Jovens homicidas: como pensar o conceito de sujeito? De que sujeito falamos?
Alessandro Pereira dos Santos1
Resumo: O Brasil assiste, nas três últimas décadas, a um expressivo aumento dos
indicadores de criminalidade violenta, especialmente o homicídio. Diante dessa
realidade, cabe indagar e problematizar o lugar da adolescência e da juventude no
século XXI, especialmente nas periferias dos centros urbanos brasileiros. Como esses
sujeitos se constituem? Nossa proposta é estabelecer uma articulação teórica com a
psicanálise para pensarmos o conceito de sujeito atrelado a adolescência e juventude
brasileiras no século XXI e sua trajetória, especialmente dos jovens envolvidos com a
criminalidade, membros de gangues e autores de homicídio doloso.
Palavras-Chave: Jovem – sujeito – inconsciente – pulsão - corpo
Pra começo de conversa
Não é de hoje que a psicanálise se debruça sobre o sujeito. Na obra freudiana,
encontramos um pesquisar que buscou entender sua constituição, ainda que essa
nomeação, “sujeito”, não tenha sido utilizada em momento algum. É Lacan, ao retomar
ao texto freudiano, que cunha tal conceito, com o qual avança ao longo de seu ensino.
Este artigo tem como proposta articular a noção de sujeito na psicanálise pura e
aplicá-la a uma realidade: jovens envolvidos com a criminalidade, especificamente os
que cometeram o crime de homicídio doloso, quando se tem a intenção de matar.
Uma questão se apresenta: é possível falar em sujeito quando nos referimos a
jovens que cometem homicídio doloso?
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação da PUC Minas.
Segundo Ramos e Musumecci (2004), há no Brasil uma “geografia da
violência”, um recorte racial, etário, de gênero e territorial em relação à criminalidade.
Os indicadores de criminalidade violenta, especialmente de homicídio, ocorreriam
principalmente entre homens, negros, jovens e moradores de favelas e periferias.
Quando nos aproximamos da realidade, deparamo-nos com um quadro
dramático quanto aos registros de homicídios no Brasil. A partir da década de 1980,
assistimos a uma explosão do número de homicídios, especialmente a partir de 1985,
quando, de acordo com o DATASUS (2010), foram registrados no Brasil 19.745
homicídios. Em 1990, já eram 31.989. Em 1995, foram 37.127, número que passou para
45.360 em 2000, chegando ao ápice em 2008, com 50.113 homicídios. São cometidos
em sua maioria por jovens envolvidos com a criminalidade e membros de gangues.
Para Feffermann (2006), o termo “gangue” surgiu nos Estados Unidos e pode ser
entendido como atividade empresarial, mas é eminentemente uma associação de jovens
que tem na violência uma forma de estabelecer relações sociais. Pertencer a uma gangue
seria buscar um lugar e uma posição em um jogo de rivalidades, tentando construir uma
identidade social, mesmo que na delinquência. Assaltar, comercializar drogas, cometer
homicídios, apesar de ilícitas, são ações válidas para uma gangue.
Em que medida a gangue pode conectar os jovens? A prática de homicídio, por
sua vez, seria uma desconexão?
Quando falamos de conexão e desconexão, estamos nos referindo ao campo do
Outro, pelo qual o sujeito se constitui e se apresenta. Para investigar os processos de
subjetivação, como este trabalho se propõe, precisamos falar de sujeito.
Pacheco (1996) afirma que Freud não utiliza a palavra sujeito, embora essa
noção permeie toda a sua obra. Seria do texto “A dissecção da personalidade psíquica”
(1932/1996) a definição mais radical em Freud do que Lacan chamará de sujeito. Nele,
Freud afirma que os sintomas são derivados do reprimido, nomeando-os como
“território estrangeiro interno”, primeira menção ao inconsciente como algo estranho,
desconhecido, mas fundamentalmente interno.
Freud (1932/1996) discorre sobre as atribuições do ego e do superego, até o
momento em que faz uma inflexão para investigar o que se encontra oposto ao ego. É
assim que coloca o inconsciente como ponto central da psicanálise:
No-lo apresenta um fato observado durante o trabalho da análise, uma
observação que é realmente muito antiga. Como não raro acontece, levou
muito tempo até se chegar ao ponto de ser avaliada sua importância. Toda a
teoria da psicanálise, como sabem, é de fato construída sobre a percepção da
resistência que o paciente nos oferece, quando tentamos torna-lhe consciente
o seu inconsciente [...] Acontece que tínhamos razão; mas, nesse caso, sua
resistência também era inconsciente, tão inconsciente quanto o reprimido, em
cujo esclarecimento estamos trabalhando. (FREUD, 1932/1996, p.73)
O autor prossegue sua explanação constatando que ego e superego podem operar
inconscientemente, e traz o conceito de inconsciente:
Denominamos inconsciente um processo psíquico cuja existência somos
obrigados a supor – devido a algum motivo tal que o inferimos a partir de
seus efeitos - , mas do qual nada sabemos. Nesse caso, temos para tal
processo a mesma relação que temos com o processo psíquico de uma outra
pessoa, exceto que, de fato, se trata de um processo nosso, mesmo. Se
quisermos ser ainda mais corretos, modificaremos nossa assertiva dizendo
que denominamos inconsciente um processo se somos obrigados a supor que
ele está sendo ativado no momento, embora no momento não saibamos nada a
seu respeito. (FREUD, 1932/1996, p.75)
Em seguida, Freud (1932/1996) estabelece uma divisão do aparelho mental em
ego, superego e id. Por fim, afirma que o id (inconsciente) contém necessidades
pulsionais, sem organização e buscando uma satisfação.
De acordo com Pacheco (1996), desde o “Projeto para uma Psicologia
Científica”, de 1895, Freud já apontava para o sujeito do inconsciente. Em “Para além
do princípio do prazer”, texto de 1920, traz a radicalidade da pulsão, a pulsão de morte,
e, em “O eu e o isso”, apresenta a divisão do aparelho psíquico nessas duas instâncias.
Sobre a construção do sujeito e sua dimensão pulsional, Pacheco (1996) afirma
que o isso é sede das pulsões e que o funcionamento pulsional exige novas organizações
subjetivas, criação, sublimação, não apenas rearrumações, em consonância com a ideia
de sujeito como produção.
Podemos perguntar: o que acontece no ato homicida? Existe produção? Haveria
nele uma reorganização pulsional?
Pacheco (1996, p. 35), afirma que “o isso é o que repete, que jamais poderá ser
falado, mas que retorna sempre”. Quanto ao isso, a autora destaca a produção freudiana,
reportando-se, por sua vez, a Lacan para o estabelecimento do eu. Esse autor, em 1953,
formula a noção de estrutura formada por três registros: real, simbólico e imaginário.
Ao longo de seu percurso, segundo Pacheco (1996), Lacan teria feito um deslocamento
na teorização: do imaginário para o simbólico e, finalmente, para o real. A estrutura do
sujeito depende da amarração dos três registros.
Essa formulação abre uma questão: o ato homicida amarra ou desata os
registros?
Ao final de sua obra, Lacan trabalha a partir do real (PACHECO, 1996),
aproximando sujeito e objeto e caminhando, assim, em direção a um sujeito pulsional.
Teoriza a partir do “das Ding” como campo da Coisa, do inominável, um ponto cego.
Podemos interrogar: será o ato homicida um ponto cego?
Sobre o sujeito, Lacan (1964/1998) afirma que ele deve advir do inconsciente,
referindo-se a ele como pulsação. Se até aqui exploramos a noção de sujeito a partir da
concepção de inconsciente, é fundamental atentarmo-nos também a outro conceito: a
pulsão.
Lacan (1964/1998) diz que as pulsões estão ligadas a fatores econômicos,
definindo-as como montagem através da qual a sexualidade participa da vida psíquica,
em um movimento de vaivém, com caráter circular. O autor estabelece uma relação
entre pulsão e sujeito:
É preciso bem distinguir a volta em circuito de uma pulsão do que parece –
mas também por não aparecer, - num terceiro tempo. Isto é, o aparecimento
de einneues Subjekt que é preciso entender assim – não que ali já houvesse
um, a saber, o sujeito da pulsão, mas que é novo ver aparecer um sujeito.
Esse sujeito, que é propriamente o outro, aparece no que a pulsão pôde fechar
seu curso circular. É somente com sua aparição no nível do outro que pode
ser realizado o que é da função da pulsão. (LACAN, 1964/1998, p.169).
O autor diz do sujeito da pulsão, condicionando seu surgimento ao fechamento
do circuito pulsional. Em relação ao objeto desse artigo, perguntamos: podemos
localizar, a partir do circuito pulsional, um sujeito quando nos referimos a jovens que
cometem homicídio?
Lacan (1964/1998) afirma que a pulsão segue um trajeto, e que seu alvo é
simplesmente o retorno para o circuito. Por fim, estabelece uma relação entre pulsão e
princípio do prazer:
O sujeito se aperceberá de que seu desejo é apenas vão contorno da pesca, do
fisgamento do gozo do outro – tanto que, o outro intervindo, ele se
aperceberá de que há um gozo mais além do princípio do prazer. (LACAN,
1964/1998, p.173-174).
É a partir dessa relação que trabalharemos outro conceito caro a este trabalho, o
gozo. Lacan (1972/1985, p. 11) define-o: “o gozo é aquilo que não serve para nada”.
Diz do direito ao gozo e não do dever de gozar. Ninguém força alguém a gozar, com
exceção do superego, imperativo de gozo, dizendo ao sujeito: “goza!”.
No que tange a noção de supereu na obra freudiana e lacaniana, Miller (2002)
afirma:
O supereu-eu freudiano tem exigências completamente incoerentes; de modo
algum é um todo harmonioso – é uma lei, uma ordem, mas o é na medida em
que é impossível para o sujeito respeitá-la. Se é uma lei, é uma lei com todo o
seu valor irracional, uma lei terrível. Lacan é muito fiel à posição do super-eu
nos texto de Freud, ele fala da figura obscena e feroz do super-eu. O super-eu
é, em Freud, uma função impossível de satisfazer [...] o super-eu nunca fica
satisfeito. (MILLER, 2002, p.83).
Sobre o gozo, Miller (2002, p. 83) diz: “o gozo está além do princípio do prazer,
e como tal é impossível obtê-lo de forma plena”. Qual o estatuto do ato homicida em
relação ao gozo? Ele é sua regulação ou desregulação?
Lacan (1972/1985) afirma que, para gozar, é necessário ter um corpo, aparelho
de gozo. Mandet (apud Lazzarini; Viana, 2006) elucida que a concepção de corpo em
psicanálise refere-se ao corpo enquanto objeto e construção do psiquismo, representação
do inconsciente. Essa construção no pensamento freudiano pode ser dividida em três
momentos (Mandet apud LAZZARINI; VIANA, 2006):
•
marcado por cisão e oposição entre corpo biológico e corpo da
psicanálise;
•
transição de corpo auto-erótico e fragmentado para corpo unificado pelo
narcisismo;
•
a partir da pulsão, surgimento do eu corporal.
E em Lacan? Cukiert e Priszkulnik (2002) afirmam que o ensino lacaniano segue
na esteira da postulação freudiana sobre a noção de corpo: não biológico, marcado pelo
significante, pela libido, erógeno e singular. O corpo no ensino lacaniano é afetado pelas
vertentes do Imaginário, do Simbólico e do Real - respectivamente, corpo como
imagem, corpo esculpido a partir dos significantes, corpo como sinônimo de gozo.
Lacan (LACAN, 1953/1998, p.35) aponta para a noção de corpo como
substância gozoza, instrumento de gozo, e conclui: “Gozar tem esta propriedade
fundamental de ser em suma o corpo de um que goza de uma parte do corpo do Outro”
(LACAN, 1953/1998, p.35).
Retomemos, então, a questão da constituição do sujeito. Pacheco (1996) afirma
que tanto Freud quanto Lacan pensam o sujeito inicialmente como representação,
fazendo um deslocamento posterior para um sujeito pulsional, a surgir, uma construção.
Algumas considerações
Este artigo é fruto de uma pesquisa de mestrado ainda em construção, marcada
por questões sobre o estatuto do sujeito autor do crime de homicídio. Várias indagações
são colocadas a respeito do assunto. Entre elas, é importante localizar marcadores que
apontem para um sujeito, o do inconsciente. É sobre ele que continuaremos nos
debruçando.
Referências bibliográficas:
BRASIL. DATASUS. Óbitos por Causas Externas – Brasil. Imediata, 2010.
Disponível
em
<http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/extuf.def>.
Acesso em: 21 nov. 2010
CUKIERT, Michele; PRISZKULNIK, Léia. Considerações sobre eu e corpo em
Lacan. Estudos de Psicologia, Natal, v.7, 2002. p.143-149. Disponível em <
http://www.scielo.br/pdf/epsic/v7n1/10961.pdf>. Acesso em 24 jul. 2011.
FEFFERMANN, Marisa. Vidas arriscadas: o cotidiano dos jovens trabalhadores do
tráfico. Petrópolis: Vozes, 2006. 352 p
FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud: volume 22 : novas conferências introdutórias sobre psicanálise e
outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 283p.
FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud: volume 2 : estudos sobre a histeria. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
350p.
FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud: volume 14: a história do movimento psicanalítico, artigos sobre
metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 396p.
FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud: volume 18 : além do princípio de prazer, psicologia de grupo e outros
trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 317p.
FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud: volume 19 : o ego e o id e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago,
1996. 357p.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. 937p.
LACAN, Jacques; MILLER, Jacques-Alain. O seminário: livro 11: os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. 269p.
LACAN, Jacques; MILLER, Jacques-Alain. O seminário: livro 20 : mais, ainda. 2. ed.
rev. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985. 201p.
LAZZANINI, Eliana Rigotto; VIANA, Terezinha de Camargo. O Corpo em
Psicanálise. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v.22, a.14, n.02, a mai-ago, 2006.
p.241-250. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/%0D/ptp/v22n2/a14v22n2.pdf>.
Acesso em 24 jul. 2011.
MILLER, Jacques-Alain. Percurso de Lacan: uma introdução. 2. ed. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 2002. 152 p.
MUSUMECI, Leonarda; RAMOS, Silvia. “Elemento suspeito”: abordagem policial e
discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2004. Disponível em:
<http://www.ucamcesec.com.br/at_proj_conc_texto.php?cod_proj=9>. Acesso em 21
nov. 2010
PACHECO, Olandina Monteiro Cruz Assis. Sujeito e singularidade: ensaio sobre a
construção da diferença. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1996. 107p.
Download

Alessandro Pereira dos Santos