1 352&(662&,9,/(62&,('$'(&,9,/ 5RVHPLUR3HUHLUD/HDO 3URIHVVRUGD*UDGXDomRH3yV*UDGXDomRGD38&0LQDV 3URIHVVRUGD*UDGXDomRH3yV*UDGXDomRGD)80(& 3URIHVVRU&RQFXUVDGRGD)'8)0* 3UHVLGHQWHGD&RPLVVmRGH(QVLQR-XUtGLFRGD2$%0* $GYRJDGR0LOLWDQWH 680È5,2: 1- Introdução; 2- Jurisdição como Processo Civilizatório; 3Jurisdição e Estado-Juiz; 4- Processo Civilizatório como Processo Civil; 5Processo Civil e Violência Concentrada; 6- Conclusão. 1,1752'8d2 O que há de comum entre as expressões do título (e que será o ponto temático deste artigo) é a palavra FLYLO que apresenta duas sílabas que, por si, já apontariam, em etimologias greco-latinas, origens significativas ao estudo da organização dos agrupamentos humanos. Se FL, traduzível do italiano por Dt, ou seja, lugar (espaço) habitado pelo ente (]Rp) em sua condição de ELRV que é o orgânico-relacional e YLOOD (casa) como índice patrimonial do RLNRV (esfera privada humana-clã) em face do SRWXV (do errante, tonto, vadio, despossuído), poder-se-ia remover o engano dos dicionaristas de traduzir FLYLOLV (latim) como qualificativo de cidadão. Ora, FLGDGmR jamais, a rigor, seria sinônimo de FLYLO, porque cidadão seria o habitante da FLGDWXV (cidade) – o lugar dado pelo FLYLO ao povo (SRWXV), daí o substantivo latino FLYLOLWDV que é a ciência de governar, politicar. O SRYR, quando adotado pelos &,9,6, torna-se o coletivo de cidadãos, livres de sua vida errante, vadia, despossuída. Não são pessoas inatamente portadoras de liberdade, são FLGDGmRV OLYUHV no sentido de libertados da errância e desorganização. Por isso, exercer a SRWHVWDV correspondia a ter o povo, cidadanizado ou não, sob comando, porque o libertado ainda não seria livre a tal ponto de ser o libertador de outrem ou de si mesmo. Historicamente, o SRWXV é falado (falhado) quando fala. O seu VHOI não lhe pertence, porque é uma metáfora que habita a língua do &,9,/. O governo civil é dirigido aos cidadãos (povo adotado) e dirigente do SRWXV (não adotado) e que confere a este YLOHMDU (andar na vila), portar e usar as feitorias civis1, FLHQWLILFDQGRVH na elaboração preservadora da YLOOD, continuando SRWXV a quem é dado um espaço sem YLOOD, isto é, uma cidade (FLGDWXV) sem edificações arquitetônicas (hoje ao morador de rua, favelado, campesino, excluído social, ao despojado de lugar (WRSRV) na YLOOD) O SURFHVVR FLYLO era (ainda é para os bülowianos) originariamente o PRGR, o meio, o método, o LQVWUXPHQWR da jurisdição e da DomR dos civis (os patrimonializados, os possuidores, os filantropos milenares que governam, administram, protegem e PACHECO, José da Silva. (YROXomRGR3URFHVVR&LYLO%UDVLOHLUR, Editora Renovar, RJ, 2ª edição, 1999, ps. 7-20 1 2 sentenciam os cidadãos (os adotados) e o SRWXV). Por isso é que a JUSTIÇA dos CIVIS sempre tem o IyUXP na cidade, porque é DOL que sua FLYLOL]DomR é desenvolvida, consolidada, marcada, preservada. Santo Agostinho em sua obra já assinalava, quanto à VRFLHGDGH FLYLO, conforme anota Leo Strauss y Joseph Cropsey2, que a “sede, por excelência, da justiça é a cidade e, entretanto, a justiça rara vez, talvez nunca, existe nela”. (WUDGXomROLYUH) -85,6',d2&202352&(662&,9,/,=$7Ï5,2 Antes de registrar um possível debate sobre os conceitos de VRFLHGDGHFLYLO em Hegel e Marx, passando por Hobbes Locke, Kant e Rousseau, há de se preencher um vazio jurídico que sempre comparece nos estudos políticos ao versarem sobre as origens da Sociedade e do Estado. A MXULVGLomR em seu conceito de atividade de dicção e aplicação do direito por grupos humanos patrimonializados, que se mitificavam em dinastias, é perfeitamente aferível no mais antigo e conhecido VLVWHPD de resolução de conflitos na História do Direito denominado OHJLVDFWLRQHV vigorante na Realeza Romana (séc. VIII ao V a. C). A jurisdição é tida e exercida a partir desse período como instrumento (processo) da classe poderosa e senhorial para regrar não só as suas próprias condutas, como também para impor seu LPSHULXP (mando normativo) a todos os seus súditos. Pode-se verificar que a OHL romana era criada, da Realeza à Monarquia Absoluta (séc. VIII a.C ao séc. VI d. C.)3, pelos reis, cônsules, príncipes e monarcas, instalando competências e funções, por via de delegações variadas, num complexo burocrático a permitir a perenização do modelo FLYLO de paternalização das classes inferiores pela sociedade patrimonializada (filantrópica). 2- Pelo que se lê na excelente análise de Andrade Filho4, ao se supor em Hobbes que o estado de natureza era a guerra de todos contra todos (EHOOXP RPQLXP FRQWUD RPQHV) que caracterizava a VRFLHGDGHFLYLO e em Kant já se admitindo esta sociedade civil como saída legal e organizada do estado de natureza, fica oculto o que seja FLYLO quanto ao aspecto patrimonial de hierarquização nessa sociedade. Mesmo que Hegel veja na VRFLHGDGHFLYLO uma “PDVVDLQIRUPHHDQiUTXLFD” como fragmentação da família, ainda assim admite a evolução desta para uma VRFLHGDGHSROtWLFD que equivaleria à idéia de ESTADO como “PRPHQWRVXSHULRUGHUDFLRQDOLGDGH”, o que certamente não retiraria dessa FpOXOD IDPLOLDU, fragmentada em “grupos sociais” em conflito, o atributo de opulência patrimonial informativa do Estado, substituto majestoso da sociedade civil, como autor do ordenamento social para todos. Entretanto, o que não se mostra esclarecido é como este ESTADO adquire consciência de sua qualidade unificadora (consciência de si) por um LGHDO coletivo a não ser que sua origem estivesse nas próprias relações materiais de vida (econômicas) da VRFLHGDGH FLYLO (forma de dominação burguesa) conforme observam Marx e Engels em sua obra ,GHRORJLD$OHPm : “$6RFLHGDGH&LYLOFRPSUHHQGHRFRQMXQWRGDVUHODo}HVPDWHULDLV GRV LQGLYtGXRV GHQWUR GH XP HVWiJLR GHWHUPLQDGR GH GHVHQYROYLPHQWR GDV IRUoDV 2 STRAUSS, Leo y Joseph Cropsey. +LVWRULDGHOD)LORVRILDPolítica, Fondo de Cultura Econômica, México, 2000, pág. 182 3 MARKY, Thomas. &XUVR(OHPHQWDUGH'LUHLWR5RPDQR, 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 1995,ps. 5-10 4 ANDRADE FILHO, Francisco Antônio de. 0HWDItVLFDH)p&ULVWm, Síntese- Revista de Filosofia, vol. 26, nº 86, set.-dez., Belo Horizonte – MG, 1999, ps. 393-403 5 MARX, Karl e FRIEDRICH, Engels. $,GHRORJLD$OHPm, Editora Martins Fontes, SP, 1998, p. 33-34 3 SURGXWLYDV &RPSUHHQGH R FRQMXQWR GD YLGD FRPHUFLDO H LQGXVWULDO GH XP HVWiJLR H XOWUDSDVVDSRULVVRPHVPRR(VWDGRHDQDomRHPERUDGHYDSRURXWURODGRDILUPDU VH QR H[WHULRU FRPR QDFLRQDOLGDGH H RUJDQL]DUVH QR LQWHULRU FRPR (VWDGR 2 WHUPR VRFLHGDGH FLYLO DSDUHFHX QR VpFXOR ;9,,, TXDQGR DV UHODo}HV GH SURSULHGDGH VH GHVOLJDUDP GD FRPXQLGDGH DQWLJD H PHGLHYDO $ VRFLHGDGH FLYLO HQTXDQWR WDO Vy VH GHVHQYROYHFRPDEXUJXHVLDHQWUHWDQWRDRUJDQL]DomRVRFLDOUHVXOWDQWHGLUHWDPHQWHGD SURGXomR H GR FRPpUFLR H TXH FRQVWLWXL HP TXDOTXHU WHPSR D EDVH GR (VWDGR H GR UHVWDQWH GD VXSHUHVWUXWXUD LGHDOLVWD WHP VLGR FRQVWDQWHPHQWH GHVLJQDGD SRU HVVH PHVPRQRPH´ Tanto em Hegel quanto em Marx a VRFLHGDGHFLYLO não é o povo, mas um núcleo de potenciação econômica que influi na modelação das formas de vida e que assume controles sociais. As raízes colonialistas da VRFLHGDGHFLYLO penetram a atualidade, uma vez que, a todo instante, é convocada a se mobilizar a favor de direitos que lhe são secularmente inerentes como sociedade pressuposta e indissolúvel dos que se mantêm (ou se tornam) patrimonializados. Habermas intenta distinguir a sociedade civil na acepção hegueliana como “ VLVWHPD GH QHFHVVLGDGHV´ (sistema do trabalho social e do comércio de mercadorias numa economia de mercado), advertindo que³KRMHHPGLDR WHUPR ³VRFLHGDGH FLYLO´ QmR LQFOXL PDLV D HFRQRPLD FRQVWLWXtGD DWUDYpV GR GLUHLWR SULYDGRHGLULJLGDDWUDYpVGRWUDEDOKRGRFDSLWDOHGRVPHUFDGRVGHEHQVFRPRDLQGD DFRQWHFLDQDpSRFDGH0DU[HGRPDU[LVPR2VHXQ~FOHRLQVWLWXFLRQDOpIRUPDGRSRU DVVRFLDo}HVHRUJDQL]Do}HVOLYUHVQmRHVWDWDLVHQmRHFRQ{PLFDVDVTXDLVDQFRUDPDV HVWUXWXUDV GH FRPXQLFDomR GD HVIHUD S~EOLFD QRV FRPSRQHQWHV VRFLDLV GR PXQGR GD YLGD$VRFLHGDGHFLYLOFRPS}HVHGHPRYLPHQWRVRUJDQL]Do}HVHDVVRFLDo}HVRVTXDLV FDSWDPRVHFRVGRVSUREOHPDVVRFLDLVTXHUHVVRDPQDVHVIHUDVSULYDGDVFRQGHQVDP QRV H RV WUDQVPLWHP D VHJXLU SDUD D HVIHUD S~EOLFDSROtWLFD2 Q~FOHR GDVRFLHGDGH FLYLO IRUPD XPD HVSpFLH GH DVVRFLDomR TXH LQVWLWXFLRQDOL]D RV GLVFXUVRV FDSD]HV GH VROXFLRQDUSUREOHPDVWUDQVIRUPDQGRRVHPTXHVW}HVGHLQWHUHVVHJHUDOQRTXDGURGH HVIHUDVS~EOLFDV(VVHV³GHVLJQV´GLVFXUVLYRVUHIOHWHPHPVXDVIRUPDVGHRUJDQL]DomR DEHUWDVHLJXDOLWiULDVFHUWDVFDUDFWHUtVWLFDVTXHFRPS}HPRWLSRGHFRPXQLFDomRHP WRUQR GD TXDO VH FULVWDOL]DP FRQIHULQGROKH FRQWLQXLGDGH H GXUDomR´6. Mais adiante acrescenta: “ R VLVWHPD SROtWLFR TXH GHYHFRQWLQXDU VHQVtYHO DLQIOXrQFLDV GDRSLQLmR S~EOLFDFRQHFWDVHFRPDHVIHUDS~EOLFDHFRPDVRFLHGDGHFLYLODWUDYpVGDDWLYLGDGH GRVSDUWLGRVSROtWLFRVHDWUDYpVGDDWLYLGDGHHOHLWRUDOGRVFLGDGmRV.” 7 O que Habermas talvez não tenha percebido é que historicamente a sociedade dos &,9,6 invade as FLGDGHV(espaços públicos) que eles próprios concedem ao SRWXV como forma de diluição e propagação estratégica (ideológica) de suas formas de dominação. A ocupação de espaços da FLGDGH, como que a dilatar os domínios civis, agrega o povo despatrimonializado (alienado), dando continuidade ao projeto de FLYLOL]DomR a que alude Freud e não ao exercício de cidadania nos moldes de um sistema político que permitisse FRQH[}HV libertárias ou impositivas de direitos fundamentais em países excluídos da arbitragem monetária e econômica das nações hegemônicas8. HABERMAS, Jürgen. 'LUHLWRH'HPRFUDFLDHQWUHIDFWLFLGDGHHYDOLGDGH. Vol. II, Editora Tempo Brasileiro, RJ, 1997, p. 99 7 HABERMAS, Jürgen. 2EFLW, p. 101 8 LEAL, Rosemiro Pereira. 'LUHLWR(FRQ{PLFR±6REHUDQLDH0HUFDGR0XQGLDO, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 2005. 6 4 Colhe-se das legislações civis, até hoje, principalmente do 3URFHVVRFLYLO codificado, a inexistência de procedimentos efetivadores de pleitos atinentes a direitos fundamentais de vida e dignidade jurídica. As questões referentes a tais itens são transferidos para uma HVIHUDS~EOLFD (habermaseana) em que é reclamada a eficiência de uma estrutura comunicativa do mundo da vida como fator esperado (nunca alcançado!) de inclusão social. Disso decorre que uma comunidade que não se constituísse pelo GHYLGR SURFHVVR FRQVWLWXFLRQDO não teria possibilidade de construir-se em Sociedade Democrática de Direito, porque a HVIHUDS~EOLFD, ao conectar-se com o sistema político, este já originariamente se acharia dominado pelas atividades dos partidos políticos polarizadores dos interesses dessa VRFLHGDGH FLYLO que, segundo Marx, uma vez dissimulada em Estado, colocaria este como reprodutor do sistema de dominação. Infere-se que Habermas concebe a VRFLHGDGHFLYLO como agrupamento de atores sociais transformativos dos rumos do poder oficial, o que não coincide com as raízes históricas do FLYLO que, em sua origem, é fonte ou usuário do poder estatal. Essa inversão proposta por Habermas oculta a massa de excluídos sociais que não têm acesso sequer às presenças episódica, organizada ou abstrata, para pensar a condição de SRWXV a que estão secularmente condenados. Em não podendo organizar-se, essa massa de excluídos não pode ser situada no mundo da vida que seria o recinto de um agir comunicativo aludido por Habermas como “ MiUDFLRQDOL]DGR” 9. Aliás, é essa massa de excluídos que sofrerá, por compressão, o processo de FLYLOL]DomR (colonização cultural) desenvolvido intensamente, no curso histórico, pelos &,9,6 e seus aliados FLGDGmRV já paternalizados pelo sistema social e político civilmente adotado. Então, na formação da opinião e da vontade, há segmentos sociais que não se incluem na estrutura discursiva voltada ao desempenho da função social integradora. Não podem, por conseguinte, receber a designação de VRFLHGDGH FLYLO, porque não são sociedade, nem são civis os qualificativos de sua existência. 3- -85,6',d2((67$'2-8,= Tanto em Hegel quanto em Marx, o Estado assume o significado de lugar domiciliar do anonimato da VRFLHGDGHFLYLO que não desaparece, em Marx, com o advento do Estado, nem migra, com qualidades redentoras como quer Habermas, para uma HVIHUDS~EOLFD oficiante da atuação de um mundo da vida a se comunicar integrativamente com o sistema legal e político já engedrado pela VRFLHGDGHFLYLO. Por isso é que a MXULVGLomR nessa conjectura atua pelo (VWDGR-XL] que é a forma secular de expressão (seqüela) da sociedade civil como YRQWDGH suprema dos patrimonializados (FLYLV). O julgamento do SRYR cidadanizado e descidadanizado fica à mercê, sem o GHYLGR SURFHVVR democraticamente constitucionalizado, de uma JUSTIÇA concebida como SRGHU de sentenciar (declarar e executar) o destino dos despossuídos. Lê-se, por ensino de Ovídio Baptista da Silva10, que a ciência cartesiana da ordinariedade obrigava o MXL] a julgar “ FRP EDVH HP YHUGDGHV FODUDV HGLVWLQWDV” , o que tornava o Estado-Juiz um WRSRV de vidência e auto-evidência institucional aos moldes cartesianos (decisão com manutenção da dúvida – a MXULVGLFWR adequada a preservar a instabilidade do SRWXV). Aliás, dos romanos a Leibniz e deste aos modernos, conforme ressalta o insigne professor, repetindo Leibniz, “ /D GRFWULQD GHO GHUHFKR HV GH OD tQGROH GH DTXHOODV FLHQFLDV TXH QR GHSHQGHQ GH H[SHULPHQWRV VLQR GH GHILQLFLRQHV QR GH ODV 9 HABERMAS, Jürgen. 2EFLW, p. 104 SILVA, Ovídio Baptista da. -XULVGLomRH([HFXomR, 2ª ed. revista, Editora RT, São Paulo, 1977, p. 126 10 5 GHPRQVWUDFLRQHVGHORVVHQWLGRVVLQRGHODVGHODUD]yQ\VRQSRUDVtGHFLUORSURSLDV GHOGHUHFKR\QRGHOKHFKR$VLSXHVFRPRODMXVWLFLDFRQVLVWHHQXQFLHUWRDFXHUGR\ SURSRUFLyQ SXHGH HQWHQGHUVH TXH DOJR HV MXVWR DXQ TXH QR KD\D TXLpQ HMHU]D OD MXVWLFLDQL VREUH TXLpQ UHFDLJDGHPDQHUDVHPHMDQWHDFRPRORVFiOFXORVQXPpULFRV VRQYHUGDGHURVDXQTXHQRKD\DTXLpQQXPHUDQLTXpQXPHUDU$ODPDQHUDFRPRVH SXHGHSUHGHFLUGHXQDFRVDGHXQPiTXLQDRGHXQ(VWDGRTXHVLKDQGHH[LVWLUKDGH VHUKHUPRVDHILFD]\IHOL]DXQTXHQXQFDKD\DQGHH[LVWLU3RUWDQWRQRHVVRUSUHQGHQWH TXHORVSULQFLSLRVGHHVWDVFLHQFLDVVHDQYHUGDGHVHWHUQDV´ A cada dia, o caráter interdital da VXPPDULDFRJQLWLR se fortalece entre os integrantes do Poder Judiciário e seus epígonos em nome da JUSTIÇA RÁPIDA (a justiça verdadeira e justiceira de Liebniz), uma justiça dita racional da razão do &,9,6 que, vestidos agora de magistrados de uma interditalidade eternizante, querem ser mais que juízes de uma racionalidade efêmera. A MXULVGLomR, sem procedimento e processo, é a tônica da contemporaneidade tirânica, travestida de uma efetividade processual, que prolonga secularmente a VRFLHGDGHFLYLO, fixando-a dentro e fora do ESTADO, à margem da lei, suspendendo as conjecturas de Hegel e Marx ao se encravar numa ]RQD GH DQRPLD11 que embosca a lei estatal num espaço extra-sistêmico com força de lei e em nome da lei (caráter constitutivo e legiferativo-suplementar da atividade jurisdicional). Essa atuação em zona anômica (que torna ingênuas as convicções legalistas de Carl Schmitt em suas concepções de estado de exceção) é que inaugura, para os &,9,6 adeptos da escola instrumentalista do processo, o chamado PROCESSO JURISDICIONAL englobante de todas as especialidades do PROCESSO civilizatório como marcha acelerada da VRFLHGDGHFLYLO em várias ritualísticas. Tem-se o RITO (alegoria judiciária) a realizar o MITO da justiça célere, ao fazer o presente e o futuro como aceleração do passado, em moldes romano-canônicos, oscilando entre a 5$7,2 (episteme apodítica) e a VEROSSIMILHANÇA (saber do senso comum) na distribuição de uma JUSTIÇA de escopos meta-jurídicos só detectáveis na órbita exclusiva da VRFLHGDGH FLYLO dos patrimonializados, hoje estrategicamente diluídos na expressão sincrética de FLGDGmRVFLYLV12. Claro que o SURFHVVRFLYLOL]DWyULR aí empregado não difere do que hoje se pratica com o nome de SURFHVVRFLYLO e de seus derivados penais, trabalhistas e comerciais. O grau de opressão desse processo civilizatório (regulamentos culturais do vigiar operoso e constante) é bem evidenciado pela convicção de um dos mais ilustres integrantes dessa VRFLHGDGH FLYLO que verbera13 “ eWmRLPSRVVtYHOSDVVDUVHPRFRQWUROHGDPDVVDSRUXPDPLQRULD TXDQWR GLVSHQVDU D FRHUomR QR WUDEDOKR GD FLYLOL]DomR Mi TXH DV PDVVDV VmR SUHJXLoRVDVHSRXFRLQWHOLJHQWHVQmRWrPDPRUjUHQ~QFLDLQVWLQWXDOHQmRSRGHPVHU FRQYHQFLGDV SHOR DUJXPHQWR GH VXD LQHYLWDELOLGDGH RV LQGLYtGXRV TXH DV FRPS}HP DSyLDPVHXQVDRVRXWURVHPGDUUpGHDOLYUHDVXDLQGLVFLSOLQD” . Em seguida, na obra indicada, é o mesmo Freud que sugere o extermínio dos associais em nome do SURFHVVRFLYLO (civilizatório), ao preconizar que “ 3URYDYHOPHQWHXPDFHUWD SHUFHQWDJHPGDKXPDQLGDGHGHYLGRDXPDGLVSRVLomRSDWROyJLFDRXDXPH[FHVVRGH IRUoD LQVWLQWXDO SHUPDQHFHUi VHPSUH DVVRFLDO VH SRUpP IRVVH YLiYHO VLPSOHVPHQWH AGAMBEN, Giorgio. (VWDGRGH([FHomR. Boitempo Editorial, SP, 2003, p. 48 LEAL, Rosemiro Pereira. 3URFHVVR H 'HPRFUDFLD – $ $omR -XUtGLFD FRPR ([HUFtFLR GD &LGDGDQLD, Revista Eletrônica da PUC/Minas, www.fmd.pucminas.br/virtuajus; ano4, nº1, julho 2005. 13 FREUD, Sigmund. 2)XWXURGHXPD,OXVmR20DO(VWDUQD&LYLOL]DomRH2XWURV7UDEDOKRV, vol. XXI, Editora Imago, RJ, 1974, p. 18 11 12 6 UHGX]LU D XPD PLQRULD D PDLRULD TXH KRMH p KRVWLO j FLYLOL]DomR Mi PXLWR WHULD VLGR UHDOL]DGR±WDOYH]WXGRRTXHSRGHVHUUHDOL]DGR” 14. Vê-se que em Freud a FLYLOL]DomR, como atividade historizada de contenção gradual de agressividade, assemelha-se a um treinamento necessariamente coercitivo que uma classe controladora e institutiva da culturalidade impõe às maiorias ociosas e desobedientes. E esse padrão de controle (superego cultural predominante) não pode, em Freud, perder suas características estratégicas, porque adverte que “ 1mR p SUHFLVR GL]HU TXH XPD FLYLOL]DomR TXH GHL[D LQVDWLVIHLWRXPQ~PHURWmRJUDQGHGHVHXVSDUWLFLSDQWHVHRVLPSXOVLRQDjUHYROWDQmR WHP QHP PHUHFH D SHUVSHFWLYD GH XPD H[LVWrQFLD GXUDGRXUD” .15 Portanto, é desse superego que deriva o ESTADO-JUIZ da VRFLHGDGHFLYLO (civilizadora) por via de um processo civil como instrumento da JURISDIÇÃO entendida pelos &,9,6 como atividade de GL]HURGLUHLWR. 4- 352&(662&,9,/,=$7Ï5,2&202352&(662&,9,/ Conclui-se que o mal-estar da civilização registrado por Freud é o desespero (aumento da repressão) contemporâneo (sintoma) da VRFLHGDGH FLYLO em ver ameaçados seus padrões civilizatórios e já quase impotentes seus velhos aparelhos ideológicos, provocando-lhe uma preocupante e terrível instabilidade atribuída a uma violência social praticada pelos YLOHMDQWHV que transitam nas FLGDGHV ainda não devidamente cidadanizados (o SRWXV)16. A eliminação do SRWXV por uma técnica de abandono mortífera (SURFHVVR FLYLO) vem sendo desenvolvida, em nossos dias, com rótulos de Reforma do Judiciário, Procedimentos Sumaríssimos, Mediação, Tutelas de Urgência, Juizados Especiais, Direito Alternativo, Súmulas Vinculantes, ao resgate, em vão, da imagem da JUSTIÇA dos civilizadores. A camuflagem (velamento) retórica da expressão FLYLO é que permite a continuidade do SURFHVVRFLYLOL]DWyULR com rótulos já inocentados pelo cotidiano alienante: construção FLYLO, engenheiro FLYLO, desobediência FLYLO, guerra FLYLO, polícia FLYLO, ação FLYLO, direito FLYLO, casa FLYLO, juízo FtYHO, a indicarem que os &,9,6 decidem e controlam o destino do SRWXV mediante disputa de poderes egressa de suas próprias estruturas organizativas. Daí, também é equívoca a resposta epistolar de Freud17 a Einstein sobre as causas de os homens fazerem as guerras, porque as guerras não são feitas pelos homens na totalidade concreta de uma comunidade política, mas é o ativismo cultural da VRFLHGDGHFLYLO que, nuclearizada na comunidade, engendra os seus próprios conflitos estratégicos a provocarem uma secular fragmentação (ILVVmR) do SRWXV, cujo esforço de IXVmR há de ser continuadamente submetido ao eixo de comando dos FLYLV. A aculturação do SRWXV pelos CIVIS não traz qualquer esperança de desaceleração dos conflitos humanos, uma vez que os enganosos tempos de paz são pausas voluntárias para o amestramento ideológico necessário ao IXVLRQDPHQWR (agregação) do SRWXV ao domínio (poder) &,9,/. A pergunta seria pertinente se indagasse como civilizar o civil. Entretanto, Freud, nessa carta a Einstein, desperta o mundo para um aspecto que jaz inexumável (proibido pelo sagrado!) que é o crescimento propositadamente FREUD, Sigmund. 2EFLW., p. 19 FREUD, Sigmund. 2EFLW., p. 23 16 LEAL, Rosemiro Pereira. 3URFHVVRH'HPRFUDFLD. $UWLJRFLW 17 FREUD, S. – (O3RUTXHGHOD*XHUUD. Viena, 1932, LQ Obras Completas, vol. III, Biblioteca Nueva, 4ª ed., Madrid, 1981, ps. 3207 a 3215. 14 15 7 descontrolado das populações miserabilizadas (“ <\DKR\ODVUD]DVLQFXOWDV\ODVFDSDV DWUDVDGDV GH OD SRSXODFLyQ VH UHSURGXFHQ PiV UDSLGDPHQWH TXH ODV GH FXOWXUD HOHYDGD” ). O que Freud não observa é que tal ocorre em virtude de sua própria convicção de que uma sociedade civil (sociedade de civilizadores-educadores) seria pacificadora dos grupos humanos, louvando-se em sua elevada cultura (VXPPXP ERQXP) para empreender a luta contra as guerras que teriam origem na classe dirigida em face de uma desorganização (promiscuidade) inata que habita inexoravelmente os despossuídos e ignorantes, consoante preconiza: “ /RVVXERUGLQDGRVIRUPDQODLQPHQVD PD\RUtDQHFHVLWDQXPDDXWRULGDGTXHDGRSWHSDUDHOORVODVGHFLVLRQHVDODVFXDOHVHP JHQHUDO VH VRPHWHQ LQFRQGLFLRQDOPHQWH 'HEHUtD DxDGLUVH DTXL TXH HV SUHFLVR SRQHU PD\RU HPSHxR HQ HGXFDU XQD FDSD VXSHULRU GH KRPEUHV GRWDGRV GH SHQVDPLHQWR LQGHSHQGLHQWHLQDFFHVLEOHVDODLQWLPLGDFLyQTXHEUHJXHQSRUODYHUGDG\DORVFXDOHV FRUUHVSRQGDODGLUHFFLyQGHODVPDVDVGHSHQGLHQWHV” . Essa entrega das decisões às autoridades da VRFLHGDGHFLYLO secularmente encarnada nas vestes dos SRGHUHV judiciário, legislativo e executivo que se recusam a uma fiscalidade incessante pelo GHYLGR SURFHVVR FRQVWLWXFLRQDO desde a observância dos critérios da formação das vontades funcionais até sua explicitação em forma de sentença, ato administrativo, lei (respectivamente), e no decurso de sua aplicação, vem tiranizando o destino dos povos pela transformação do direito (por uma razão cínica-contingente)18 em mero espelho das leis míticas de uma gaia ciência (Nietzsche), não epistemológica, fundadora de uma HFRQRPLD autopoiética, de uma sociologia OLELGLQDO e de uma ética apriorísticamente HVWpWLFD, só perscrutáveis pelo ORJXV sensitivo e rastreador dos &,9,6. Assim, esse GLUHLWR dado ao povo pela YRQWDGH livre dos &,9,6 (livre-negativa de controles processualizados19 desde a sua gênese à sua aplicação, validade e legitimidade) equipa-se de uma coatividade, aos moldes de Kelsen, a qual, ocultando o exame criteriológico de sua validade normativa, é meramente sancionária (punitiva) pelo advento da lesão na fase da circulação da OHL (publicação e vigência). Essa lei não se ofereçe, em sua contextualidade, por direitos-de-ação coextensos aos procedimentos jurídicos abertos a todos os destinatários normativos indistintamente, à investigação (controle) incessante dos fundamentos de sua existência e compatibilidade com o paradigma teórico de uma constitucionalidade processualmente (discursivamente) adotada que seria designativa do VLVWHPD GHPRFUiWLFR concebível na contemporaneidade e dissociado da 3DLGpLDgrega. 5- 352&(662&,9,/(9,2/Ç1&,$&21&(175$'$ O célebre estudo de Bobbio20 sobre o conceito de VRFLHGDGH FLYLO em Marx, para distingui-lo em Gramsci, não mitiga o caráter opressivo do SURFHVVRFLYLO como modo secular de produção das relações econômicas, jurídicas e sociais dos &,9,6, sejam estes considerados na base estruturante do Estado ou inclusos na sociedade política como determinante das funções do Estado, porque as atividades da sociedade dos CIVIS (civilizadores) têm o SURFHVVR FLYLO como historização da “ YLROrQFLD FRQFHQWUDGD” e preservada pelo Estado como depositário fiel e instrumento estabilizador do padrão de acumulação de capital dos interesses particularistas. O Estado de Direito hegeliano, ao pretender constituir-se em esfera superior e totalizante de purificação das seqüelas HABERMAS, J. 3DUDD5HFRQVWUXomRGR0DWHULDOLVPR+LVWyULFR, Editora Brasiliense, SP, 1990, p. 33 LEAL, Rosemiro Pereira. 7HRULD3URFHVVXDOGD'HFLVmR-XUtGLFD Editora Landy, SP, 2003 20 BOBBIO, Norberto. 2&RQFHLWRGD6RFLHGDGH&LYLO, 1ª ed., Edições Graal, RJ, 1962, ps.19/41 18 19 8 hegemônicas da sociedade civil (momento dissoluto, pré-estatal, entre a família e o Estado), é tutor explícito do SURFHVVRFLYLOL]DWyULR de manutenção da exclusão social do SRWXV (vilejante) pela negativa de auto-entrega jurídica a uma fiscalidade processualizada pelos destinatários normativos21. Em Gramsci, a universalização da sociedade civil, como forma extintiva do Estado e “ FRQTXLVWDHVWiYHOGRSRGHUSRUSDUWHGDVFODVVHVVXEDOWHUQDV” 22, não avalia o processo civilizatório da sociedade civil como técnica de extermínio gradual dos excluídos sociais e como forma de reduzir as perdas do Modo de Produção Capitalista (decorrentes da queda da taxa de lucro pela redução necessária do poder aquisitivo do proletariado: o SRWXV ou o “ cidadão” patronalmente adotado). Por isso, o SURFHVVRFLYLO, ao se definir como instrumento da JURISDIÇÃO ao longo dos séculos, e sendo a MXULVGLomR, conforme o ensino dos instrumentalistas, a atividade de o juiz dizer o direito em nome do ESTADO, é certo que a vontade do Estado expressa na VHQWHQoD traduz a ideologia patrimonialista da VRFLHGDGH FLYLO. Nessa perspectiva de dominação social, também a FLGDGDQLD é adquirida pelo SRWXV se este obtém a condição de consumidor. O PLOLWDU não se opõe ao CIVIL como se poderia ingenuamente imaginar, porque o CIVIL ostensivamente MILITANTE (militarizado) é que, de modo emblemático, alegoriza-se em autoridade devotada ao SURFHVVRFLYLOL]DWyULR. A SRO\V (ser político) como lugar do justo e do supremo saber coletivo definia-se como um agregado social patrimonializado que exercia o destino da cidade-estado grega, o que mostra a dissimulada (privada) ancestralidade governativa dos CIVIS que se explicitou de modo exuberante nos textos legais do Direito Romano. 6- &21&/862 De conseguinte, a expressão FyGLJR GH SURFHVVR FLYLO já suplica, na atualidade, por absoluta FRQWUDGLFWLR LQ WHUPLQLV, erradicação para a elaboração de um FyGLJR GH SURFHGLPHQWRV LQGLYLGXDLV H FROHWLYRV regidos (balizados) pela garantia do DEVIDO PROCESSO no marco do Direito Processual Constitucional. Evitar-se-ia assim a fragmentação do Direito em sub-espécies jurídicas, tão caras ao Estado Liberal discriminador, que estigmatizam e compartimentam as condutas humanas com finalidades meramente retóricas, inquisitórias e punitivas. Essa seria uma iniciativa pioneira para que o mesmo ocorresse nos chamados direito processual penal, administrativo, econômico, direito processual do trabalho e várias outras sub-espécies do obsoleto Direito Processual Civil que poderiam ser agrupados num &yGLJR GH 3URFHGLPHQWRV-XUtGLFRV. ),0 Belo Horizonte, 10 de dezembro de 2005 21 22 LEAL, Rosemiro Pereira. 7HRULD3URFHVVXDOGD'HFLVmR-XUtGLFDREFLW BOBBIO, Norberto. REFLW, p. 43 9 68%675$&7 352&(662&,9,/H62&,('$'(&,9,/$57,*2 A singeleza de uma compreensão de um 3URFHVVR&LYLO que se opusesse a um processo militar, ou a quaisquer modalidades de processo, obscurece as origens temáticas do SURFHVVR científico que ainda se intitula, por várias escolas do pensamento jurídico arraigadas na autoridade e tradição, o instrumento de uma MXULVGLomR onividente por excelsas súmulas vinculantes e que se diz, até hoje, redentora por anunciadas realizações de escopos meta-jurídicos (justiça e paz social). Exatamente essa WHOHRORJLD (teologia?) LQVWUXPHQWDOLVWD GR SURFHVVR plantada, por séculos, na técnica e ciência como ideologia de dominação e ocultação dos problemas estruturais da Comunidade Jurídico-Política é que precisa ser interrogada. A cogitação de uma VRFLHGDGHFLYLO, como lugar histórico-hipotético, de uma reserva de HVIHUD S~EOLFD de decolagem integrativa por uma comunicação entre atores sociais supostamente pré-conscientes da problemática da organização humana, como imaginada de Rousseau a Habermas por diversas designações, não retira os traços ideológicos da dominação. Por isso, essa VRFLHGDGH FLYLO pressuposta, tão miticamente invocada no paroxismo retórico dos palanques eleitoreiros como guardiã da ordem e progresso (Comte), serve-se na atualidade de um SURFHVVRFLYLO como instrumento fetichizado de propósitos meta-jurídicos para corrigir, de modo privilegiado, os equívocos da sociedade que os civis supõem existir desde sempre por uma criação e aplicação do direito segundo o poder e saber solitários de seus crédulos especialistas. Essa reflexão que falta no percurso histórico da WHRULD GR SURFHVVR jurídicodemocrático é objeto de nosso estudo. ______________________________________________________________________ Belo Horizonte, 12 de dezembro de 2005 5RVHPLUR3HUHLUD/HDO Professor da Pós-Graduação da PUC/Minas, UFMG e FUMEC