ALIMENTAÇAO, SAÚDE E CULTURA: NOVOS DESAFIOS PARA A PESQUISA Jesús Contreras Observatorio de la Alimentación I Simpósio Nacional sobre Alimentaçao, Saúde e Cultura FIOCRUZ, Rio de Janeiro 16 de outubro de 2007 Novos desafios para pensar na relaçao entre alimentaçao e cultura • • Atualmente, a alimentaçao parece evoluir mais rápido que a cultura Um “giro copernicano” O problema da sociedade contemporânea deixou de ser a escassez A nossa relaçao com os alimentos começa a ser muito diferente • • Do alimento aos seus componentes: os alimentos funcionais Uma mudança qualitativa: De alimento a medicamento Proliferaçao de novas categorias alimentares • • • • • • • Tecnologia alimentar e perda de identidade O futuro bem-estar alimentar passa pela biotecnologia: um processo de “individualizaçao” A biotecnologia: um processo de “individualizaçao” O futuro de Brian J. Ford (2003): dasaparecimento da gastronomia doméstica; comeremos para ativar o célebro y atrasar a velhice Uma nova paradoxa para o onívoro A “individualizaçao” da biotecnologia: desculturalizaçao do onívoro? E, no entanto... Novos desafios para pensar na relaçao entre alimentaçao e cultura Atualmente, a alimentaçao parece evoluir mais rápido que a cultura • As relaçoes entre alimentaçao e cultura sao óbvias tanto para as ciências sociais quanto para as ciências da saúde. • Contudo, este fato nao significa que tais relaçoes sejam as mesmas de antigamente. • Aparentemente, os alimentos e a alimentaçao estao evoluindo de uma forma mais rápida que a cultura. • Ainda de que as “comidas” nao se tranformam tao rapidamente como os alimentos. • A impressao é que a cultura e as comidas se transformam em uma velocidade más próxima entre si. E, por sua vez, as atitudes e os valores relacionados com a comida evolucionam mais lentamente. Um “giro copernicano”: O problema da sociedade contemporânea deixou de ser a escassez • Ao longo da História, as aprendizagens alimentares desenvolvidas e transmitidas tiveram relaçao com, principalmente, dois processos: Aprender a conseguir alimentos. Aprender a conhecer as especifiçadades de cada alimento. • A história da humanidade é, em grande parte, uma história de busca de recursos ou de soluçoes para resolver os problemas da fome, quantitativa ou qualitativa. • Hoje, ao contrário, o primeiro problema alimentício nas sociedades industrializadas – o de garantir o nível de subsistência – parece estar resolvido. Nunca, como agora, estivemos tao saciados. • O principal interesse neste momento é saber se podemos confiar na alimentaçao que escolhemos entre diversas opçoes, em termos de qualidade e de inocuidade. Um “giro copernicano”: A nossa relaçao com os alimentos começa a ser muito diferente • Basta pensar em alguns nutrigenómica, alicamento... • Nunca como hoje tivemos tantos conhecimentos sobre os alimentos, as doenças e sobre a biologia e fisologia humanas. • Os avanços científicos permitem realizar análises extraordinariamente pormenorizadas, de forma que qualquer “alimento” pode expressar a sua composiçao qualitativa ou quantitativa até o mínimo detalhe. • Assim, já nao parece que: termos novos: gastronomia molecular, Comemos maças, carne de frango ou porco, atum, couve-flor, pao, iogurte; ou bebemos vinho, cerveja, leite, água... ...Mas sim que que ingerimos cálcio, ferro, polifenoles, flavonoides, carotenoides, glucosinalatos, fibra, gorduras saturadas, monoinsaturadas o poliisaturadas, licopeno, esteroles, ácido oleico, proteínas, antioxidantes, taninos, bífidus, omega 3, fitoesteroles, etc, etc. Alimentos funcionais: sobre o alimento e alguns dos seus componentes PRODUTO SUBSTÂNCIA BENEFÍCIOS Azeite de oliva Antioxidantes (vit.E) Polifenoles Previnem o câncer Previnem os infartos Detêm o envelhecimento Previnem a diabetes Reduzem o colesterol Iogurte Bífidus LCI Etc. Melhoram o sistema imunológico Melhoram o funcionamento do sist. digestivo Protegem do risco de câncer de colo Reduzem o nível de colester. E triglicér. Chá Flavonoides Reduz o risco de arteriosclerose Vinho Flavonoides Taninos Combatem o mal colesterol Evitam malformaçoes fetais Atrasam o envelhecim. Celular Previenem o câncer de colo Cerveja Álcool etílico Vitaminas Fóforo, cálcio Ácido fólico Polifenoles Fibra solúvel Combatem o mal colesterol Evitam malformaçoes fetais Atrasam o envelhecim. Celular Previenem o câncer de colo PROVÁVEIS RELAÇOES ENTRE ALIMENTAÇAO E SAÚDE E RECOMENDAÇOES DE CONSUMO SEGUNDO “ESTUDOS CIENTÍFICOS” •“O C.S.I.C. recomenda beber até un litro de cerveja cada semana por razoes de saúde”. •“Aquelas pessoas que toman entre 1 e 6 taças de vinho semanais reduzem em 34% o risco de sofrer apoplexia. •“Comer um ovo ao dia nao significa um maior risco para o coraçao”. •“Comer cinco peças de fruta e verdura ao dia reduz em 31 % a possibilidade de sofrer infarto cerebral”. •“Um consumo diário de dois ou três xícaras de chá reduz até 46 % o risco de sofrer arteriosclerose. •“Um adulto saudável deve ingerir um mínimo de meio litro de leite ao dia”. •“O consumo diário de iogurte atrasa o aparecimento de certos tumores”. •Etc., Etc. Uma mudança qualitativa: de alimento a medicamento • As categorias para classificar os alimentos se modificaram consideravelmente em relaçao ao passado, no sentido de uma maior descomposiçao química impulsada pela ciência. • Em poucos anos, a inovaçao dentro do setor agroalimentário transformou profundamente a dimensao imaterial ou simbólica da alimentaçao. • O alimento se transforma progressivamente em medicamento e a alimentaçao já nao responde a uma necessidade de saciar a fome ou de obter energia, mas sim à fome de saúde ou de ausência de doenças. • A inovaçao parece ser um objetivo por si só, independentemente de que esteja ou nao orientada a resolver um problema ou a melhorar uma soluçao já existente. Uma mudança qualitativa: proliferaçao de novas categorias alimentícias • Proliferam novos alimentos, novas composiçoes, “novos conceitos”: equilibrados, suplementados, enriquecidos, funcionais, data de validade, cadeia de frio, pronto para o consumo, alimentos que engordam, ecológicos, orgânicos, biológicos, gourmet, transgênico, surimi (“Kani Kama”), “produtos da terra”, DOP, IGP, traçabilidad, “com carnê de identidade”, étnicos, pré-cozinhados, “light”, “produtos com”, “produtos sem”, alimentos modificados, alimentos de síntese, alimentos análogos, salgadinhos dietéticos, “bebidas inteligentes”, “embutidos’ vegetais”, alimentos exóticos, reformulados, tradicionais, “selvagem” (para o peixe), “novos alimentos” (CE: todos os que nao eram consumidos na CE antes do dia 15 de maio de 1997), etc. • E também categorias tradicionais como fresco, natural, artesanal, saboroso, etc., nao só siguem em vigor como adquiriram novos valores e significados. Tecnologia alimentar e perda de identidade • Os recentes desenvolvimentos da tecnologia e da indústria alimentícia perturbaram a dupla funçao "identificadora" do culinário (Fischler: 1985, 188): Identificaçao do alimento Construçao da identidade dos indivíduos • O alimento se converteu em um objeto sem história conhecida e o sujeito já nao sabe mais o que realmente está comendo: a indústria proporciona um fluxo de “alimentos sem memória”. • Assim, se a ciência nao soubesse tanto, os consumidores nao saberiam tao poco a respeito do que realmente comem: embutidos sem carne, sucedâneos de angula (alevín do peixe anguía), de caviar, etc.; animais e plantas modificados geneticamente, produtos enriquecidos, “light”, sem, des, com, inteligentes, energéticos, vacas que no comem erva, peixes que come produtos cárnicos... INOVAÇOES APRESENTADAS NA FEIRA “ALIMENTARIA 2006” •Pirulitos de codorna •Sorvete de bacalhau e pimentao assado •Pao de forma nas cores amarela, laranja e verde (com tomate, azafrao e espinafre) •Balas em spray e sem açúcar •Mostarda com pontas de urtiga •“Morcilla” (morcela, espécie de embutido sem carne) light •Falafel congelado •Ovos fervidos e sem casca O futuro bem-estar alimentar passa pela biotecnologia: um processo de “individualizaçao” • Hoje, a engenharia genética abre grandes expectativas à possibilidade de selecionar variedades enriquecidas em alguns componentes de interesse para a saúde. • Diversos exemplos sobre a influência dos gens na alimentaçao: Existência de gens que contribuem de forma significativa à obesidade. A doença celíaca tem transmissao genética e a intolerância à lactosa... exemplos relativos às diferenças genéticas que podem ser observadas em grupos humanos em relaçao a un alimento. Desenvolvimento de alergias a alimentos concretos (por exemplo, alergia à lactoglobulina, à caseína do leite, aos frutos secos, ao peixe, ao marisco, etc.). ALGUNS DOS NOVOS ALIMENTOS DA BIOTECNOLOGIA •Uma salada de suaves tomates e arroz con mais vitaminas. •Uma banana que protege contra a hepatitis. •Cenouras com antioxidantes para reduzir o risco de câncer. •Patatas que contêm uma vacina contra o cólera. •Porcos com um menor conteúdo em gordura animal e mais adequados para dietas baixas em colesterol. A biotecnologia: um processo de “individualizaçao” • Além de conhecer os gens que provocam doenças, também é possível saber que existem indivíduos geneticamente predispostos a contrair certas doenças (cardiovasculares, diabetes...). • Pouco a pouco, estarao disponíveis diversos procedimientos para conhecer as bases genéticas do metabolismo e de sua resposta aos alimentos: descobrir que tipo de alimentaçao será a mais adequada em quantidade e qualidade para cada indivíduo e, assim, evitar doenças e alcançar um melhor nível de vida. • Desta forma, os indivíduos serao cada vez mais distintos entre si, mais específicos: cada vez menos “identificados” com uma espécie, uma cultura e cada vez mais identificados pelo seu exclusivo DNA e pelo segmento de mercado dentro do qual possa ser circunstancialmente clasificado. O futuro de Brian J. Ford (2003): desaparecimento da gastronomia doméstica; comeremos para ativar o cérebro e atrasar a velhice • “Seremos testimunhas da morte global da gastronomia doméstica, já que chegam novos alimentos até agora desconhecidos, como os elaborados a partir de fungos e uma infinidade de outras substâncias. • No futuro, a comida será escolhida segundo o poder que tenha de ativar o cérebro ou de atrasar a velhice. • No passado, comíamos para nao morrer de fome ou porque resultava gratificante; no futuro, ao contrário, escolheremos alimentos que nos permitam desfrutar ao máximo da vida. • Serao desenhados aperitivos capazes de melhorar o estado de ânimo das pessoas, no lugar de simplesmente saciar o apetite. • Diversos alimentos serao processados para garantir que contenham determinados nutrientes, ainda que cada ano mudem de acordo com as modas e capturem mais a atençao uns ingredientes que outros. • Os alimentos sintéticos com conteúdos gordurosos reduzidos substituirao a carne que serviu de alimento ao mundo ocidental até agora”. Uma nova paradoxa para o onívoro • Durante miles de anos, a espécie humana, o onívoro, ao possuir as mesmas necessidades nutricionais, precisou se adaptar a diferentes ecossistemas. Este fato gerou soluçoes gastronômicas diversas. • Hoje, com a mundializaçao dos mercados, o “meio alimentar” é, praticamente, o mesmo para todos os onívoros do planeta. • A uniformizaçao do espaço através da globalizaçao do mercado já nao representará uma homogeneizaçao alimentar, e sim uma enorme variedade nutricional graças à nutrigenomica. • Se durante miles de anos, até hoje, o onívoro necessitou conhecer seu meio para se adaptar a ele, a partir de amanha, o indivíduo adaptará a sua alimentaçao em funçao da sua carta de DNA e, assim, poderá se prevenir de “suas próprias” doenças. • Estamos diante de um onívoro paradóxico. Um exemplo desta manifestaçao: Em França, existe uma Association de Défense des Consommateurs de Suppléments Nutritionnels et Botaniques. A “individualizaçao” da biotecnologia: desculturalizaçao do onívoro? • Ainda hoje, as recomendaçoes nutricionais sao bastante amplas e proponem valores que deveriam ser úteis como guia geral para a populaçao, de maneira que cada um pudesse adaptar a sua situaçao pessoal; • No entanto, os biólogos moleculares esperam que, em um futuro próximo e de forma progressiva, esteja dsponível uma informaçao muito mais personalizada sobre o estilo de vida e a alimentacao que melhor convém a cada indivíduo em particular; Da nutrigenomica à desculturalizaçao do onívoro? • Com a nutrigenomica, a cultura alimentar deixará de ser algo que se herda da infância ou que se impoe através dos mecanismos de uma identidade cultural. • Já proliferam movimentos de desocializaçao da alimentaçao através da medicalizaçao e da judicializaçao dos comportamentos alimentares. • Percebe-se, assim, que já nao será possível a transmissao do conhecimento alimentar de geraçao em geraçao, como havia ocorrido até agora. • O conhecimento será tao particular para cada tipo de indivíduo que a trasmissao estará nas maos, exclusivamente, da classe médica – e a sua ignorância poderá comportar responsabilidades penais. • Com isso, o processo de individualizaçao-desculturalizaçao do onívoro através da medicalizaçao da sua alimentaçao será definitiva. E, no entanto... • Curiosamente (e para que as paradoxas nao se acabem), também a ciência da nutriçao – alarmada pela piora dos hábitos alimentares que afectam às populaçoes mais desenvolvidas – reclama a volta à dieta tradicional: “nossos filhos comerao pior que nós porque nao estao educados para se alimentar de forma adequada, e a tendência da sociedade nos conduz a ter cada vez menos tempo para cozinhar”. A comensalidade: uma categoria nutricional no caso da terceira idade? A comensalidade: uma categoria nutricional no caso da terceira idade? • • • • • • • Envelhecer: situaçao de risco nutricional A importância dos fatores sociais e culturais O que significa envelhecer? Conseqüencias nutricionais da solidao: Relaçao entre a viuvez e a perda do apetite Significados de comer sozinho/a Diferentes formas de solidao e diferentes expressoes alimentícias: “Comer sozinho” constitui uma forte experiência de solidao A “perda do apetite”, reinvindicaçao afetiva diante da vivência da solidao • • • • • • • Expressando a solidao: O “medo a nao ser capaz de cozinhar” e o “comer qualquer coisa” O valor da comensalidade: Comer sozinho X comer em família Comer em família, antítese da solidao Conclusao: O significado social, moral e emocional de cozinhar “Comer” vai muito mais além que se nutrir Envelhecer: situaçao de risco nutricional • Os problemas nutricionais associados à velhice se apresentam como objeto de primera atençao em relaçao à saúde. • O processo de envelhecimento implica em uma série de mudanças, biológicas e sociais, que aumentam a possibilidade de sofrer deficiências nutricionales. • Pode-se identificar quatro fatores malnutriçao no caso dos idosos: de risco Fatores derivados das alteraçoes na autonomia funcional; Fatores fisiopatológicos próprios da velhice; Fatores médicos; e Fatores psicosociais, emocionais e culturais. de A importância dos fatores sociais e culturais • Além dos fatores fisiológicos, é preciso considerar os fatores sociais e culturais que permitem compreender os comportamentos alimentares dos idosos. Por exemplo, a perda quase total do apetite. • Nos referimos, em particular, às situaçoes de solidao, real e/ou sentida. • Trata-se de interelacionar questoes como a velhice, a solidao, a comensalidade e a alimentaçao para, desta manera, avaliar a incidência das causas sociaies e culturais na inapetência e na malnutriçao. O que significa envelhecer? • Envelhecer nao é só o resultado de um processo biológico. • É, também, um processo social repleto de circunstâncias e significados, podendo significar, ainda: Aposentadoria, Viuvez, e maior ou menor perda de relaçoes sociais de caráter afetivo. • Todos esses fatores podem afetar mais ou menos diretamente e, em menor ou maior grau, a qualidade da dieta das pessoas idosas. As conseqüências nutricionais da solidao: Viuvez e perda de apetite "A morte da minha milher me afetou muito. De repente morreu. Foi uma mudança radical, em tudo. Fui viver com os meus filhos. Minha mulher cozinhava muito bem, nao existia desperdício. Quando ela morreu eu perdi o apetite, a fome. Agora como menos. Quase sempre sozinho. Como salsicha, fruta, hambúrguer, mas nao como muito.” • A perda do cônjugue pode traduzir-se numa perda do apetite e desânimo geral, ainda mais se nao há o apoio dos familiares. Também pode provocar um certo empioramento da saúde devido a uma má dieta. • Ficar viúvo/a implica em comer “qualquer besteira”… nao se cozinha porque a motivaçao afetiva desaparece. • Em suma, esta situaçao pode levar a um abandono alimentar. As conseqüências nutricionais da solidao: os significados de comer sozinho • Comer sozinho adquire o seu significado em relaçao ao comer em companhia , a partir da percepçao de uma ausência de relación social. • A cozinha exige relaçao social, requer comensalidade. A normalidade alimentar é a normalidade do comer em família e do cozinhar para a família. • A perda do apetite e/ou da vontade de cozinhar expressa claramente a vivência da solidao em relaçao à família: • O esquecimento –ou a atitude de esquecimento– em relaçao à cozinha [“nao me lembro, nem me interessa”] expressa uma insatisfaçao diante do fato de nao ter para quem cozinhar. Diferentes formas de solidao e diferentes expressoes alimentares: ‘Comer sozinho’, uma forte experiência de solidao “Comer sozinho é a coisa mais triste do mundo... Uma pessoa idosa tem muitas dificuldades na hora de cozinhar, mas existe uma que nao tem soluçao, que é a solidao, a ausência de companhia. Por mais que você esteja bem de saúde, no momento de entrar na cozinha para fazer um prato simples para comer sozinho, você acaba fazendo maquinalmente, sem nenhuma vontade, porque sabe que vai comer mais ou menos de acordo com a fome que tiver, mas acompanhado só da tua própria sombra e de um ambiente triste e frio... Desde que estou sozinho, nao cozinhei mais, nao tenho vontade. Como qualquer porcaria”. • Ter que comer sozinho evidencia a falta de relaçao social e afetiva. • O fato de ter que comer parece levar a uma total ‘fisiologizaçao’ e/ou ‘desritualizaçao’ das refeiçoes. • Cozinhar e comer sólo adquirem sentido dentro de la relaçao social. • Portanto, a solidao ou ausência de comensalidade permite comer qualquer porcaria. Mais que una perda de apetite, o que ocorre é uma perda de sentido, uma perda de sua razao de ser: Na solidao, as dimen-soes fisiológica y social próprias da alimenta-çao se relacionam de maneira distinta. O fisiológico se separa do social: a fome e o engolir substituem o apetite e o comer; a ausência de comensalidade “deshumaniza” a comida. Diferentes formas de solidao e diferentes expressoes alimentares: A “perda de apetite”, reinvindicaçao afetiva diante da vivência da solidao “Agora sim que eu me sinto sozinha. Isso me dá nos nervos. Sinto que nao tenho fome... Como porque tenho que comer, para encher o estômago. Quando como na casa da minha filha, como mais do que o normal, claro, porque se está em família, entao dá para falar, beber mais, é normal, e nestes dias sim que você come, e só pensa nessa comida porque vai estar com a companhia da família. Agora eu cozinho coisas mais simples porque nem me lembro mais, e também já nao gosto. Antes cozinhava mais. Chegava o domingo e você podia se dedicar mais... Estávamos os três juntos. Mas já faz um bom tempo que eu nao tenho mais vontade”. • A inapetência expressa um mal-estar produzido pela vivência da solidao e constitui uma manifestaçao social ou afetiva. • Torna-se claro, assim, o valor comunicativo da linguagem alimentar. Representa un vínculo social e afetivo que em alguns casos foi rompido, e em outros se reforça. Representa uma ansiedade que produz o medo a estar sozinho. Expressando a solidao: O “medo de nao ser capaz de cozinhar” “Antes comia de tudo, mas agora estou perdendo o gosto pelo guisado, a nao ser que venham os meus filhos. Se um dia vêm os meus filhos e me dizem “prapara para a gente o macarrao com molho de cogumelos”, eu preparo. Mas a última vez que convidei o meu sobrinho para almoçar, ele me disse:”Ah, tia, nao dá para convidar os outros se você já nao pode fazerlas coisas para si mesma!”. Eu trabalhei muito na cozinha, mas agora penso, vamos ver si eu vou conseguir!” • Nao poder cozinhar anuncia a solidao, na medida em que reduz ou modifica os espaços potenciais de encontro com a família. • O medo de perder a capacidade de cozinhar expressa a preocupaçao por manter o entorno de sociabilidade mais perto, sem deixar de se sentir útil aos outros. É um medo social. Expressando a solidao: o “comer qualquer coisa” “Paquita me dá pena. É horrível, essa mulher nao tem nenhum estímulo de nada, e eu que achava que estava bem porque o marido era médico. E tem um aparta-mento fantástico. É muito triste que nao tenha ninguém. Esta solidao tao absoluta... e passar os dias comendo sanduíches”. • A perda do gosto pelo guisado remete a uma perda de motivaçao e de sentido relacionada diretamente con a fragilidade do entorno social familiar. • É o aspecto lúdico e social da alimentaçao (aglutinante) o que produz o gosto pelo guisado, tanto por prepará-lo como por saboreá-lo. O valor da comensalidade: “Comer sozinho” X “ Comer em família”. • Diante da inapetência que provoca a solidao, o desfrutar da comida é pensado, significado e realizado dentro da comensalidade e da sociabilidade familiar. • Neste sentido, a família surge, mais além de outros possíveis espaços de relaçao social e afetiva, como a referência quase única dentro da qual se sente e se pensa a solidao. É o último reduto de afeto e de sociabilidade. • A instituiçao familiar, e o cenário de mudanças em relaçao ao cuidado nos últimos trinta anos, constituem o âmbito onde as sensaçoes de déficit e de insatisfaçao (em geral associadas à experiência da solidao) podem se manifestar com maior veemência. O valor da comensalidade: “Comer em família”, antítese da solidao • A ausência de comensalidade poe claramente de manifiesto a importância de relaçao social e afetiva. • Comer adquire sentido dentro da relaçao social, da mesma maneira em que existem pratos que nao podem ser pensados fora desta situaçao de comensalidade: “Agora tenho que fazer só para mim uma porçao de arroz para cada refeiçao? Nao vale a pena, nao vale a pena porque nao existe lugar nem para o molho e nem para o arroz…”. O valor da comensalidade: ‘Comer em família’, antítese da solidao. • As refeiçoes familiares sao um motivo para preparar pratos mais elaborados e suculentos. “Nos dias que os meus filhos vêm, sempre faço alguma coisa diferente. Vêm o meu filho, minha nora e os netos, entao preparo filé de merluza ao forno...” • Festa e comensalidade sao as dos caras da moeda: “- As mulhers fazem o que querem. A minha mulher me pergunta: o que você gostaria que eu te preparasse hoje? - Tal coisa. - Ah, mas isso nao vai fazer bem para a gente. Melhor se eu preparo na chapa. - Entao um dia ela me diz que vai fazer carne na chapa e eu chego em casa e encontro uma moqueca de peixe. - O que significa isso? - Ah, é porque o menino vem (o filho) - Quando vem o menino, a comida é o que ele quiser.” Conclusao: O significado social, moral e emocional de cozinhar • A alimentaçao aparece, dentro do cotidiano da terceira idade como: a) um âmbito básico de relaçao social e afetiva b) como um intenso meio de comunicaçao. • A comida constitui um campo multidimensional, através do qual é possível recorrer e compreender o sentido dos processos sociais e da rede de relaçoes sociais e afetivas (de parentio, de amizade, etc) que, em certa medida, dao sentido à vida social das pessoas idosas. • Este fato permite compreender os processos sociais e afetivos que – à margem das suas conseqüências nutricionais – repercurtem nas escolhas e comportamento alimentares de terceira idade. Conclusao: O significado social, moral e emocional de cozinhar • Definitivamente, a alimentaçao se encontra no conjunto de aspectos que integram y ordenam a vida social, transferindo e condensando significado e identidade. • Paradoxamente, a comida e a cozinha expressam e colocam em circulaçao processos e relaçoes sociais e afetivas que ganham sentido dentro do contexto histórico, social e pessoal que os integra. • Através destas relaçoes, pode-se descrever e compreender as dinâmicas de integraçao social das pessoas idosas, assim como refletir sobre a experiência de solidao em que se encontram imersos tao freqüentemente. Conclusao: “Comer” é muito mais que nutrir-se • A parte dos aspectos nutricionais, se alimentar é uma conduta que se desenvolve mais além da sua própria finalidade, e que substitui, resume ou aponta para otras. • A experiência de solidao se expressa por meio da alimentaçao: a sua dimensao social e cultural está por atrás de determinados trastornos do comportamento alimentar. • Fenômenos como perder o apetite, nao sentir mais vontade de comer guisado, comer qualquer besteira, perder o interesse pela cozinha, comer porque tem que comer, se alimentar de sanduíches… nao se compreendem fora do sentimento de insatisfaçao que produz a solidao.