Brief 4/2015 O OCASO DO “DESENVOLVIMENTO” O OCASO DO “DESENVOLVIMENTO” Alfredo Valladão Junho de 2015 Foto: 1ª Conferência de Lisboa sobre Desenvolvimento, Fundação Calouste Gulbenkian, 3-4 de dezembro de 2014. © Conferências de Lisboa 1 IMVF BRIEF 4/2015 O OCASO DO “DESENVOLVIMENTO” O OCASO DO “DESENVOLVIMENTO” O conceito de “desenvolvimento” está a tornar-se obsoleto num mundo globalizado, em que os governos perderam o poder de controlar as suas próprias economias, a capacidade de redistribuição de riqueza e até a sua visão nacional. Assistimos hoje a uma revolução industrial tão profunda como a do início do século XX, à medida que até o atual modelo de cadeias de valor transnacionais está a perder o valor agregado e a ser ultrapassado pela revolução tecnológica. Aqueles capazes de controlar e dominar as tecnologias beneficiarão de uma parcela crescente do estoque global de valor agregado, o que cria necessariamente vencedores e perdedores. Introdução A ideia de que cada unidade nacional “em desenvolvimento” possa estabelecer dentro do próprio território uma política produtiva e social a fim de alcançar os países mais desenvolvidos, não faz mais sentido neste nosso mundo dito globalizado. Na minha opinião, o próprio conceito de ‘’desenvolvimento’’ está a tornar-se obsoleto. Hoje por exemplo, fabricar um automóvel nos Estados Unidos da América para o mercado americano custa mais barato do que na China. Algo, importantíssimo, está a mudar. Estamos a viver uma nova revolução industrial tão profunda e “implosiva” quanto a que sucedeu no início do século XX. Num artigo recente intitulado “Masters of the Algorithms: The Geopolitics of the New Digital Economy from Ford to Google”, tentei demonstrar essa evolução que está a mudar as relações de poder e, consequentemente, as hierarquias de poder no mundo. Estamos a passar de um modelo característico do século XX, a “produção de massa para um consumo de massa”, para um modelo de produção global em rede, fragmentada e descentralizada, para um consumo personalizado (customised, para utilizar a expressão inglesa). 2 IMVF BRIEF 4/2015 Da “substituição de importações” às multinacionais A ideia de “desenvolvimento” surgiu no final de 1940, no meio dos economistas da CEPAL (Comissão Económica para América Latina), que trabalhavam sobre o impasse que se registava nas economias demasiado dependentes de matérias-primas. A ideia subjacente era que a solução passava por um processo de industrialização nacional, capaz de gerar mais riqueza e ser mais sustentável. Fundamentalmente, tratava-se de favorecer a criação de indústrias graças às políticas ditas de “substituição de importações” baseada no protecionismo e nos subsídios públicos. Esse modelo teve várias variantes, entre as quais a capitalista e a soviética, a industrialização pesada ou as indústrias de bens de consumo, ou uma mistura das duas. Esse modelo não era senão a tentativa de trilhar a mesma senda que os Estados Unidos da América haviam percorrido no início do século XX, e a Europa depois da II Guerra Mundial, graças à ajuda do Plano Marshall. No entanto, esse modelo de industrialização nacional ‘’bateu no teto’’ no início dos anos 1970. As empresas dos grandes países industrializados, para garantir a própria sobrevivência foram forçadas a apostar na sua internacionalização, dando origem às multinacionais. Primeiro, era necessário encontrar novos mercados, já que a capacidade do consumo doméstico solvível começava a se esgotar. Segundo, para aumentar a própria produtividade, foram criadas cadeias produtivas de valor cada vez mais fragmentadas, a fim de otimizar todas as fases do processo de produção. Isso simplesmente marginalizou, de forma brutal, as cadeias produtivas estritamente nacionais que não tinham condições de competir com esse novo modelo de otimização transnacional. Das cadeias de valor transnacionais à revolução digital A ideia de “desenvolvimento pela industrialização” alterou-se, passando a dar primazia à busca de “nichos” produtivos dentro dessas grandes cadeias de valor transnacionais. Há exemplos muito clássicos, como a Costa Rica (que conseguiu atrair uma importante fábrica de circuitos integrados da Intel) e a Índia (que apostou nos serviços informáticos para as grandes multinacionais). A China, segue sendo o melhor exemplo, adquirindo matérias primas, peças e componentes em vários países desenvolvidos ou em desenvolvimento, montando o produto final com mão de obra barata e vendendo boa parte dessa produção para os grandes mercados consumidores dos países industrializados. O OCASO DO “DESENVOLVIMENTO” Hoje, os mercados de consumo americano e europeu representam, cada um, mais de um quarto do consumo mundial privado. Tudo quanto é fabricado no mundo tem que ter um comprador final e, por enquanto, quem compra são os europeus e os americanos. O mercado chinês só representa 6% do consumo privado mundial. Falta ainda muito para que a China seja a grande locomotiva do mundo. O problema põe-se porque até esse modelo de cadeias transnacionais de valor está a tornar-se obsoleto, em parte por causa da revolução tecnológica. Esse é o nosso grande desafio. A revolução tecnológica a que assistimos resulta da convergência de todas as tecnologias de informação e comunicação com o salto qualitativo, extraordinário, na otimização da produção. Ou seja, automatização e robotização de ponta. Resulta também da capacidade que temos atualmente, graças às novas tecnologias, de interagir em tempo real com os consumidores e com cada consumidor pessoalmente. Isso está a criar um processo de produção extremamente flexível, caracterizado pela permanente inovação e adaptação dos processos. Há uns anos, por exemplo, alterar uma cadeia de produção de automóveis e criar peças numa nova cadeia de produção levava seis meses; hoje em dia, com as novas tecnologias, leva apenas alguns dias ou algumas semanas no máximo. Os custos do produto final são, assim, reduzidos de forma drástica – não são só os custos de fabrico, mas todos os custos, como por exemplo custos logísticos. 3 IMVF BRIEF 4/2015 As cadeias de valor nacionais e até transnacionais estão a se tornar cada vez menos competitivas a perder progressivamente valor agregado em relação a esse novo tipo de economia. Quem vai ficar com o valor agregado? Atualmente, estamos a assistir ao que podemos designar de começo de uma produção global, não linear, criadora de uma forma de estoque de valor agregado global. Quem souber controlar e dominar as novas tecnologias tirará a maior parte dos benefícios desse estoque de valor agregado global. Tal situação cria vencedores e vencidos. Quem serão? Para captar um quinhão desse valor global, essencial para qualquer tipo de desenvolvimento social ou político, são necessários vários fatores e todos combinados. O primeiro fator é a Educação – e há consenso geral sobre isto. Sem educação não há inovação, não há ciência, não há nova tecnologia. E não é apenas educação, é também a constituição de polos de pesquisa de excelência vinculados ao processo produtivo – ou seja, universidades de excelência, capazes de inovar e transformar ciência em tecnologia e tecnologia em produto. O segundo fator remete para a garantia de uma enorme liberdade de comunicação e intercâmbio de ideias. O OCASO DO “DESENVOLVIMENTO” Sem isso, não há inovação possível, não há capacidade de adaptação rápida, como o processo produtivo demanda atualmente. É também fulcral que existam sistemas jurídicos, previsíveis e estáveis, capazes de proteger a propriedade privada e intelectual, e garantir os direitos dos litigantes. É necessário também que exista liberdade de movimento de capitais e concentração de capitais de risco. E, mais importante ainda, é necessária a existência de sociedades que aceitem uma maior competição interna, onde os inovadores e as empresas emergentes tenham a possibilidade concreta para ameaçar as posições estabelecidas das elites locais. Em suma, adaptar-se à nova revolução da economia digital significa menos rentismo e clientelismo, e mais destruição criativa capitalista. Não há dúvida, trata-se de um programa pesado e muito difícil para quem é afetado negativamente por esta revolução, mas também para as elites que não querem perder suas vantagens e posições. O que significa hoje uma política de desenvolvimento, num contexto em que os governos nacionais perderam o poder de controlar a sua própria economia e inclusive a sua própria visão nacional? Não possuo resposta para isso, porque o problema chave com que nos deparamos atualmente tem a ver com a incapacidade das políticas nacionais e dos governos nacionais e a inexistência de uma instituição política supranacional. 4 IMVF BRIEF 4/2015 Vencedores... No entanto, algo está claro: na revolução económica atual, tal como está a se desenvolver, assiste-se à emergência de uma nova hierarquia de poder no mundo. No topo dessa hierarquia de poder estão o que eu apelidei de ‘’mestres dos algoritmos’’ – Google, Apple, Facebook, Amazon, entre outros. São eles quem produzem e controlam a infraestrutura hard e soft das tecnologias da informação que garante o funcionamento do novo paradigma social e económico. São eles quem monopolizam a porção mais importante de valor agregado desse estoque de valor agregado global. Logo a seguir, encontramos os criadores de novos produtos, dentro desse novo ecossistema de tecnologias de informação – aplicações, software, aparelhos e objetos conectados, etc. Em terceiro lugar, as indústrias de produtos físicos que ambicionam dominar o conjunto dessas novas tecnologias e a relação com os consumidores. Existem dois exemplos interessantes, em campos completamente diferentes. O primeiro é o exemplo da Apple, uma empresa que não produz nenhum objeto concreto, e se especializa na elaboração do desenho, da marca, do marketing, do ecossistema de serviços associados, enquanto que a produção é feita na China, por outra empresa (a taiwanesa Foxcom). Ao sair da fábrica, na China, os produtos da Apple custam cerca de 140 dólares, mas nos Estados Unidos da América, a firma do Vale do Silício vende o mesmo produto por mais de 600 dólares. Depois de descontar o custo das partes e componentes importadas sobra para China não mais 6 a 8 dólares por produto. Quem está a fazer o verdadeiro negócio, retirando maior percentagem de valor agregado, é claramente a Apple. O outro exemplo, relacionado com o velho sector das matérias-primas, é a Rio Tinto, uma das três maiores produtoras de ferro no mundo. A Rio não se dedica mais apenas à comercialização do ferro simples. Aproveitando a procura de ferro com características específicas, ela criou “marcas” de ferro, comercializando ferro x, y, z, podendo até ‘’construir’’ pacotes de ferros de acordo com as exigências do cliente. Essa capacidade dota-a de valor agregado que as suas adversárias não possuem. Uma empresa como a Glencore, que é o maior negociante de minérios do mundo, não vende apenas a matéria-prima mas também o transporte, o seguro, o financiamento ou capacidades de armazenagem. Ou seja, vende todos os serviços que estão associados ao comércio da matéria-prima e que rendem o maior valor agregado. Assim, hoje em dia é cada vez mais complicado distinguir entre o produto em si e os serviços embutidos, sendo necessário ter a capacidade de dominar todo esse processo para conseguir ser bem sucedido. O OCASO DO “DESENVOLVIMENTO” . ... e perdedores Os três primeiros níveis de hierarquia referidos, que ditam os vencedores da revolução económica, estão localizados essencialmente nos Estados Unidos da América, na Europa e alguns no Japão. A maioria dos vencedores não são países mas polos e regiões onde as grandes vantagens estão concentradas e conectadas. Esta dinâmica tem um reverso, porque cria fortes contrastes no interior dos países, com regiões competitivas economicamente e regiões não competitivas. Quanto ao quarto lugar da hierarquia, encontramos as cadeias de valor transnacionais, de produção de massa tradicionais. Essas vão continuar a existir, só que com margens cada vez menores e portanto com menos possibilidades de captar o valor agregado global. Uma situação que constitui um travão para poder alcançar algum tipo de desenvolvimento. Em quinto lugar, estão os produtores de matéria-prima, que irão continuar dependentes das oscilações dos preços de suas produções no mercado mundial – como assistimos atualmente com o preço do petróleo. No Brasil, por exemplo, em 2000 exportavam-se cerca de 60% de produtos industrializados e 40% de matéria-prima; atualmente, as percentagens inverteramse: 60% de matéria-prima e 40% de produtos industrializados. O perigo é a “re-primarização” da economia e a volta à dependência completa dos ciclos das matérias-primas. O último nível é o da ‘’massa de miseráveis’’, que continuarão a sê-los. Em suma, nos Estados nacionais a nova revolução está a produzir profundas desigualdades sociais, mas também territoriais. Os governos perderam a capacidade de administrar o problema e estão a perder, rapidamente, a capacidade de redistribuir riqueza no espaço nacional. Atualmente é muito falada a questão da governança global, mas o que está a faltar é governo global. Encontrar uma solução para essa situação é o grande desafio da próxima geração. Ser pessimista ou otimista? Não sei, ambos acham que têm razão. Mas o pessimista, achando que tem razão, sofre o tempo inteiro; enquanto o otimista só sofre no fim. 5 IMVF BRIEF 4/2015 As IMVF Briefs são publicações dirigidas a um púbico alargado, onde se apresentam de forma concisa as questões essenciais sobre determinado tema ligado ao desenvolvimento e à cooperação. Este paper foi inicialmente apresentado na 1ª Conferência de Lisboa sobre Desenvolvimento, realizada em Dezembro de 2014. Mais informações em www.conferenciasdelisboa.com Alfredo Valladão é Professor na Escola de Relações Internacionais de Paris - Sciences Po, em Geopolítica da América Latina. É doutorado em Ciências Políticas pela Sciences Po, Paris. É presidente do Conselho Consultivo da Associação UE-Brasil em Bruxelas, Membro do Conselho de Curadores do UNITAR e do Comité de Encontros Internacionais de Genebra, e Diretor da Cátedra de Pesquisa América-Latina no Centro de Estudos Sociais, Económicos e de Gestão (HEM, Rabat – Marrocos). SOBRE O IMVF O Instituto Marquês de Valle Flôr (IMVF) é uma fundação de direito privado e uma Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD) que realiza ações de ajuda humanitária, de cooperação e educação para o desenvolvimento económico, cultural e social, realiza estudos e trabalhos científicos nos vários domínios do conhecimento, bem como fomenta e divulga a cultura dos países de expressão oficial portuguesa. ABOUT IMVF Instituto Marquês de Valle Flôr (IMVF) is a private foundation and a Non-Governmental Development Organization (NGDO) that carries out humanitarian aid and economic, cultural and social development cooperation and education. It also conducts studies and produces scientific papers on several fields of knowledge, and promotes and disseminates the culture of countries whose official language is Portuguese. Instituto Marquês de Valle Flôr Rua de São Nicolau, 105 1100-548 Lisboa Portugal Tel.: + 351 213 256 300 Fax: + 351 213 471 904 E-mail: [email protected]