REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr
ISSN: 1984-7920
O JUS COGENS NA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS E ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A TEORIA DO
DIREITO.
Rodrigo de Souza Tavares∗
RESUMO
O presente artigo visa discutir algumas implicações do conceito de
jus cogens para a teoria do direito, principalmente no que tange a questão das
fontes do direito segundo as teorias jusnaturalistas e juspositivistas. A
abordagem do conceito de jus cogens terá como fundamento proferimentos
recentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos envolvendo a matéria
em destaque. Ao final do artigo podemos ver que o conceito de jus cogens
conforme enunciado atualmente nos debates de Direito Internacional Público
representa um complexo obstáculo para a teoria do direito, principalmente de
cunho juspositivista, o que revela um campo de debate em aberto, no qual a
função do trabalho é apenas a de chamar alguma atenção.
PALAVRAS-CHAVE: Jus Cogens – Direitos Humanos – Teoria do
Direito – Jusnaturalismo – Positivismo Jurídico.
ABSTRACT
∗
Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho. Professor da UFRJ e UGF.
REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr
ISSN: 1984-7920
The article pretends to discuss a few implications from the concept of
jus cogens for legal theory, chiefly the litigation on the sources of law beyond
the natural law theories and legal positivists. The approach to the concept of jus
cogens will be having as a base recent utterances from the Interamerican Court
of Human Rights encompassing the concept into emphasis. In the end, we can
observe that the concept of jus cogens as enunciated actually in the debates of
Public International law renders a elaborate handicap for legal theorists, chiefly
for legal positivists, in fact it revels an open arena for discussion, where the
function of the work is only to claim some attention.
KEY WORDS: Jus Cogens – Human Rights – Legal Theory –
Natural Law – Legal Positivism.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo irá destacar uma questão suscitada por votos do
juiz Augusto Cançado Trindade, no julgamento do caso Ximenes Lopes versus
Brasil e na opinião consultiva 18/03, especificamente no ponto em que
ressaltam a necessidade de ampliação do conteúdo material do Jus Cogens. O
argumento enfatizado então servirá para subsidiar uma análise que aborda as
implicações do tema junto à teoria do direito – especialmente no que tange à
divergência entre juspositivistas e jusnaturalistas quanto às fontes do direito.
Para cumprir tal desiderato optamos por fazer primeiramente uma
sucinta exposição sobre o conceito de Jus Cogens que ocupa o plano central
do debate, para depois então apresentá-lo conforme suscitado pelo material
selecionado dentro do repertório de julgados e opiniões consultivas da Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Por fim, poderemos equacionar o
conceito de Jus Cogens e a ampliação proposta pela Corte frente a algumas
questões clássicas da teoria do direito.
2
REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr
ISSN: 1984-7920
2. JUS COGENS
Devemos a distinção das normas de Direito Internacional Público
entre aquelas imperativas (jus cogens) e aquelas dispositivas (jus dispositivum)
sobretudo às clássicas lições de Verdross, cujas palavras transcrevemos em
seguida:
“Afirman algunos autores que en principio todas las normas del D.I.P.
son dispositivas. Lo único cierto en esta afirmación es, que en
principio dos Estados pueden acordar entre sí una regulación que se
aparte del D.I. común en la medida en que no afecte los derechos de
terceros Estados.
Pero hay también otras normas que ni algunos Estados particulares
pueden inter se alterar. Por ej., dos Estados que sean miembros de la
O.N.U. no pueden acoradr que dejaron de observar entre sí los
principios del art. 2º de Carta, porque estos deberes son absolutos.
Lo mismo cabe decir de tratados inmorales que v. gr. tuviesssen por
objeto proteger o favorecer la trata de esclavos o de ninõs (XXIII, C,
iii, e, 4). De ahí que ante cada norma sea preciso averiguar si por su
sentido es dispositiva (jus dispositivum) o taxativa (jus cogens).1
Assim, as normas de jus cogens seriam aquelas obrigatórias,
imperativas ou absolutas, cuja obediência não se encontra sujeita ao arbítrio
dos Estados, ultrapassando os limites do basilar princípio de D.I. do pacta sunt
servanda. Essas normas se encontram em um plano hierárquico superior frente
às demais normas de D.I., pois traduzem os valores fundamentais que
consubstanciam a ordem pública internacional, portando conformam e
restringem a produção normativa dos Estados e Organizações Internacionais,
bem como a jurisprudência das Cortes e Tribunais Arbitrais Internacionais 2.
Aliás, a expressão ordem pública internacional é perfeitamente assimilável à
1
Derecho Internacional Público, Trad. Truyol y Serra, Madri: Ed. Aguilar, 1963, p. 81
É notório que o conceito de Jus Cogens e sua relação hierárquica frente ao restante do
sistema de normas do D.I. suscita enorme polêmica na doutrina. Adotamos aqui como
premissa básica a posição defendida na literatura nacional por Pereira, Antônio Celso Alves.
Normas Cogentes no Direito Internacional Público, in PEREIRA, Antônio. C. A., MELLO, Celso
R. D. de Albuquerque. (orgs.) Estudos em Homenagem a Carlos Alberto Menezes Direito, Rio
de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 87-109.
2
3
REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr
ISSN: 1984-7920
noção de jus cogens, significando ambos a cristalização dos valores básicos
que alicerçam o direito internacional3.
Para além da doutrina internacionalista, o chamado jus cogens
encontrou previsão expressa na Convenção de Viena sobre o Direito dos
Tratados, em seus artigos 53 e 64 que assim dispõem:
Artigo 53.º - Tratados incompatíveis com uma norma imperativa de
direito
internacional
geral
(jus
cogens)
É nulo todo o tratado que, no momento da sua conclusão, seja
incompatível com uma norma imperativa de direito internacional geral.
Para os efeitos da presente Convenção, uma norma imperativa de
direito internacional geral é uma norma aceite e reconhecida pela
comunidade internacional dos Estados no seu todo como norma cuja
derrogação não é permitida e que só pode ser modificada por uma
nova norma de direito internacional geral com a mesma natureza.
Artigo 64º - Superveniência de uma norma imperativa de direito
internacional
geral
(jus
cogens)
Se sobrevier uma nova norma imperativa de direito internacional,
geral, qualquer tratado existente que seja incompatível com essa
norma torna-se nulo e cessa a sua vigência.
O fato da positivação das normas cogentes de D.I. ter por base um
diploma sobre direito dos tratados induziu alguns comentadores a afirmar que
sua abrangência se limita a este campo. Porém, parece-nos mais acertada a
opinião contrária, ou seja, aquela que defende a existência do jus cogens nos
mais diversos setores do D.I.P. Essa visão é particularmente relevante na
seara do Direito Internacional dos Direitos Humanos4. A idéia de imperatividade
do jus cogens e o dever irrenunciável dos Estados de proteção e garantia dos
Direitos Humanos convergem em sentido ao vértice de uma nova ordem
internacional, onde o paradigma é o respeito à dignidade da pessoa humana5 e
3
“Neste breve relato histórico salta aos olhos a sinonímia estabelecida entre as expressões Jus
Cogens e Ordem Pública Internacional, sinonímia esta que se iniciou em Roma, perpassou a
codificação civilistica do séc. XIX e recebeu a denominação definitiva de ‘Normas Imperativas
de Direito Internacional Geral’, na convenção de Viena de 1969”. Cf. FIORATI, Jete Jane. Jus
Cogens: as normas imperativas de direito internacional público como modalidade extintiva dos
tratados internacionais. Franca: Unesp, 2002, p. 69.
4
Idem, p. 103.
5
No mesmo sentido do texto: “A consolidação das obigações erga omnes de proteção em meio
à incidência das normas de jus cogens, é imprescindível aos avanços na luta contra o poder
arbitrário e no fortalecimento da proteção do ser humano contra os atos de barbárie e as
atrocidades contemporâneos.” Cf. TRINDADE, Antônio A. Cançado, Direitos Humano:
4
REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr
ISSN: 1984-7920
não à vontade dos Estados. Portanto, restringir a existência de normas
cogentes ao âmbito do direito dos tratados é enfraquecer a tutela internacional
dos D. H., posição teórica que repudiamos.
A Corte Internacional de Justiça, por sua vez, tem ratificado em seus
julgados o conceito de normas imperativas de D.I.P., acrecentando-lhes ainda
a característica de serem obrigações oponíveis erga omnes. Podemos
sublinhar a afirmativa neste trecho da manifestação no caso sobre as
atividades militares e paramilitares na Nicarágua6:
I fully concur with the rest of the Judgment, as I firmly believe that the
non-use of force as well as non-intervention - the latter as a corollary
of equality of States and self-determination - are not only cardinal
principles of customary international law but could in addition be
recognized as peremptory rules of customary international law which
impose obligations on all States.
With regard to the non-use of force, the International Law Commission
in its commentaries on the final articles on the Law of Treaties said:
"the law of the Charter concerning the prohibition of the use of force in
itself constitutes a conspicuous example of a rule in international law
having the character of jus cogens" (International Law Commission
Yearbook, 1966, Vol. II, p. 247).
As far as non-intervention is concerned, in spite of the uncertainties
which still prevail in the matter of identifying norms of jus cogens, I
submit that the prohibition of intervention would certainly qualify as
such, if the test of Article 53 of the Vienna Convention on the Law of
Treaties is applied. A treaty containing provisions by which States
agree to intervene, directly or indirectly, in the internal or external
affairs of any other State would certainly fall within the purview of
Article 53, and should consequently be considered void as conflicting
with a peremptory norm of general international law.
3. O JUS COGENS NA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE
INTERAMERICANA
DE
DIREITOS
HUMANOS:
BREVES
COMENTÁRIOS SOBRE O CASO XIMENES E O PARECER
CONSULTIVO Nº 18 DA CIDH
Personalidade e Capacidade Jurídica Internacional do Indivíduo. in O Brasil e os Novos
Desafios do Direito Internacional, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2004, p. 225
6
Military and Paramilitary Activities, Nicaragua v. U. S. A., I.C.J. Reports 1986, p. 14
5
REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr
ISSN: 1984-7920
A Corte InterAmericana de Direitos Humanos detém competência
consultiva e contenciosa no que tange a interpretação e aplicação da
Convenção Americana e outros tratados de proteção dos direitos humanos de
âmbito regional. Esse órgão, ao lado da Corte Européia de Direitos Humanos,
tem exercido papel central na consolidação dos sistemas regionais de proteção
dos direitos humanos.
Optamos por abordar, a título ilustrativo, dois pronunciamentos desta
Corte de suma relevância para a caracterização do jus cogens dentre as fontes
normativas do ordenamento jurídico internacional.
O primeiro caso escolhido é o acórdão na controvérsia entre
Ximenes Lopes e o Estado brasileiro. A Corte declarou na ocasião a
responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de Damião Ximenes, paciente
psiquiátrico
internado
numa
instituição
pública.
Trata-se
da
primeira
condenação do Brasil num tribunal de justiça internacional por violação dos
direitos humanos, fato que por si só já torna a decisão extremamente relevante.
Contudo, para efeito de nossa pesquisa, cumpre ressaltar o voto
concorrente do juiz Antônio Cançado Trindade, no ponto em que defende a
necessidade de ampliação do conteúdo material do jus cogens. Em
manifestação apartada o magistrado tece críticas ao comedimento da Corte,
que, em sua opinião, deveria ter enquadrado não só a regra que proíbe a
tortura e a imposição de penas cruéis e tratamento desumano no âmbito do
chamado jus cogens. Para ele, foi perdida uma oportunidade de se conceder a
outros dispositivos da Convenção Americana a chancela de norma imperativa
de direito internacional público, notadamente àqueles que garantem o direito de
acesso à justiça e o devido processo legal. Vejamos sua declaração:
No meu entender, na presente Sentença no caso Ximenes Lopes, ao
determinar as violações não só dos artigos 4 e 5 da Convenção
(reconhecidas pelo próprio Estado), mas também dos artigos 8(1) e
25 da Convenção, deveria ter ido mais além quanto a estes últimos,
estendendo o domínio do jus cogens também ao direito de acesso à
justiça lato sensu, aí compreendidas as garantias do devido processo
legal. (...) Espero tenha a Corte o valor de vir em breve a dar este
6
REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr
ISSN: 1984-7920
novo salto qualitativo em sua construção jurisprudencial, já que não o
fêz na presente Sentença no caso Ximenes Lopes. A partir do dia em
que o fizer - espero que muito em breve - estará contribuindo a tornar
mais difícil que se repitam histórias como as de Electra e Irene em
meio à impunidade.
Outra lição sobre o assunto pode ser extraída da opinião consultiva
nº 18 da CIDH. Ela trata da condição jurídica e dos direitos dos trabalhadores
imigrantes ilegais. O parecer teve origem numa petição do México, refletindo a
preocupação com a situação dos seus nacionais que ilegalmente emigram para
os E.U.A. O Estado mexicano alegou, em síntese, o descumprimento dos
princípios da igualdade e não discriminação (amplamente protegidos em
tratados internacionais), haja vista que a legislação e a política trabalhista
norte-americana não amparam os imigrantes ilegais da mesma forma que seus
cidadãos7.
Com base nessa premissa, foi suscitado perante a CIDH, dentre
outras questões, qual seria o caráter dos princípios da igualdade e não
discriminação dentro da hierarquia das normas de direito internacional;
podemos considerá-las como parte do chamado jus cogens? E qual é a
conseqüência da implementação, no seio do ordenamento jurídico interno dos
Estados, de leis e políticas contrárias a tais princípios? A resposta da Corte,
novamente na admirável expressão do juiz Antônio Cançado Trindade, não
poderia ser mais contundente:
En la presente Opinión Consultiva sobre La Condición Jurídica y los
Derechos de los Migrantes Indocumentados, la Corte Interamericana
ha significativamente reconocido que el referido principio fundamental
de la igualdad y no-discriminación, en la actual etapa de la evolución
del Derecho Internacional, "ha ingresado en el domínio del jus
cogens"; sobre dicho principio, que "permea todo ordenamiento
jurídico", - há agregado acertadamente la Corte, - "descansa todo el
andamiaje jurídico del orden público nacional e internacional" (párr.
101, y cf. puntos resolutivos ns. 2 y 4). La Corte, además, no se ha
eximido de referirse a la evolución del concepto de jus cogens,
7
Sobre o tema ver: PEREIRA, Antônio Celso Alves. Os Direitos do Trabalhador Imigrante Ilegal
à Luz da Opinião Consultiva 18/03 da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível
em: <http://brcz.com/lightpill/antonio_celso_alves_pereira.html>. Acesso em 19 jul. 2007.
7
REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr
ISSN: 1984-7920
transcendiendo el ámbito tanto del derecho de los tratados como del
derecho de la responsabilidad internacional de los Estados, de modo
a alcanzar el derecho internacional general y los propios fundamentos
del orden jurídico internacional (párrs.98-99). En respaldo a este
importante pronunciamiento de la Corte me permito agregar algunas
reflexiones. (...)
Las manifestaciones del jus cogens internacional marcan presencia
en la propia manera como los tratados de derechos humanos han
sido interpretados y aplicados: lãs restricciones, en estos previstas, a
los derechos humanos que consagran, son restrictivamente
interpretadas, salvaguardando el Estado de Derecho, y demonstrando
que los derechos humanos no pertenecen al dominio del jus
dispositivum, y no pueden ser considerados como simplemente
"negociables"197; todo lo contrario, permean ellos el propio orden
jurídico nacional e internacional. En suma y conclusión sobre el punto
en examen, la emergencia y consagración del jus cogens evocan las
nociones de órden público internacional y de una jerarquía de normas
jurídicas, así como la prevalência del jus necessarium sobre el jus
voluntarium; el jus cogens se presenta como la expresión jurídica de
la propia comunidad internacional como un todo, la cual, en fin, toma
conciencia de sí misma, y de los principios y valores fundamentales
que la guían.
Como observamos, a CIDH tem contribuído intensamente para a
defesa e delimitação das normas imperativas de direito internacional. Sua
proposta de ampliar o conteúdo material das normas de Jus Cogens para
abarcar princípios amplamente difundidos na cultura jurídica da maioria dos
Estados Democráticos que integram a sociedade internacional é bastante
coerente com o próprio conceito em questão. Este, desde o princípio, teve por
intenção representar a supremacia de valores amplamente compartilhados
entre as nações sobre as chamadas razões de estado.
4. A POSIÇÃO DO JUS COGENS NO DEBATE ENTRE
JUSNATURALISTAS E POSITIVISTAS JURÍDICOS
4.1 Jus Cogens e o Direito Natural
A noção de Jus Cogens sempre esteve intuitivamente ligada à
doutrina do direito natural. Segunda essa escola do pensamento jurídico, as
fontes do direito positivo se encontram em relação de subordinação hierárquica
8
REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr
ISSN: 1984-7920
frente a uma ordem superior de valores, ora emanada da vontade divina, ora
da própria natureza desvelada pela razão humana. A doutrina do Direito
Natural se funda em quatro premissas essenciais: a) existe uma natureza
constante e imutável; b) essa natureza contém em si uma ordem normativa ou
legalidade que lhe é estruturante; c) o homem pode conhecer essa ordem
normativa contida na natureza; d) o direito positivo, como ordem normativa
criada pelo homem para regular sua convivência em sociedade, retira sua
validade da conformidade com essa ordem normativa natural, que lhe serve
como molde ou paradigma.8
Seguindo esse enquadramento teórico não é difícil equiparar a
ordem pública internacional a tal ordem superior que subordina todo
ordenamento jurídico positivo. Não por acaso, as representações diplomáticas
que votaram em favor da atual redação do art. 53 na Convenção de Viena
sobre Tratados de 1968 recorreram amplamente à doutrina do direito natural
para justificar o dispositivo. Vejamos, por exemplo, o voto da delegação
mexicana9:
En droit interne, il n’est pás permis aus individus de déroger par
contrata aux dispositions légales considérées comme d’ordre public.
En droit internationalm, lês auteurs les plus ancien, y compris lês
grands précurseurs espagnols et Grotius, étaient profondément imbus
des principes du droit naturel prédominant. Ils ont postulée, pour cette
raison, l’existence des principes dérivant de la raison, principes don’t
la validité est absolue et permanente et auxquels les conventions
humaines ne peuvent derogér. Sans prétendre établir une definition
stricte povant figurer dans um traité, le représentant du Mexique est
d’avis que les régles de Jus Cogens sont celles qui dérivent des
príncipes que la conscience juridique de l’humanité consideré comme
absolument indispensables à coexistence au sein de la communauté
internationale, à un stade determine de son évolution historique.Il y a
toujours dês principes de Jus Cogens. Bien qu’ils aient été peu
nombreaus à une époque ou les obligations entre Etats étaient
également rares. Leur nombre aucmenté depuis lors continuera à
s’accroìte avec l’extension des relations humaines, économiques,
sociales et politiques. Les normes de Jus Cogens varient dans leur
contenu et de nouvelles normes sont appellés à apparait dans
8
Sobre o Jusnaturalismo e suas diversas tentativas de fundamentação ver: TEIXEIRA, António
Braz. Sentido e Valor do Direito: introdução à filosofia jurídica. 2ª edição revista e ampliada.
Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2000.
9
Cf. FIORATI, Jete Jane. op. cit, pp. 63-64.
9
REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr
ISSN: 1984-7920
l’avenir, comme est prévu à article 61. D’autres normes peuvent, le
moment venu, perdre lê caractere de Jus Cogens, comme ce fut lê
cãs, en Europe, pour la doctrine de l’unité religieuse ou pour lê droit
du systéme féodal.
Dessa
forma, podemos ver que o conceito de Jus Cogens foi
desde os primórdios correlacionado a padrões mínimos da moral internacional
que subordinavam os Estados. Essa posição é amplamente concordante com a
doutrina do direito natural conforme preconizada por seus próceres na Idade
Moderna, i. e., Hugo Grócio, Francisco Suárez, Bartolomeu de las Casas e
Francisco de Vitória, considerados também os fundadores do D.I.P.
4.2 Jus Cogens e o Positivismo Jurídico
Apesar do início humanista, os ensinamentos dos fundadores do
Direito Internacional, que o concebiam como uma ordem jurídica universal
erigida para proteção dos homens, foram trocados pela doutrina do positivismo
voluntarista, desde o fim do séc XIX até meados do séc. XX10. Nesse período o
Estado foi alçado a único titular de direitos na ordem jurídica internacional.
Conseqüentemente, a única fonte de direitos na ordem internacional seriam os
tratados, fruto da regra pacta sunt servanda. Nenhuma regra que não fosse
oriunda do concerto da vontade dos Estados poderia ser imposta contra os
mesmos.
Na concepção do positivismo jurídico o direito sempre foi tãosomente o resultado de convenções sociais e epistemologicamente apartado
da moral. Como explicar o fenômeno de normas que suplantam as convenções
explicitamente enunciadas nos tratados em nome de princípios que
correspondem em última instância a uma moral compartilhada pelas nações,
mas não positivada em nenhum texto com autoridade jurídica? Nesse cenário,
o conceito de Jus Cogens como norma superior que derroga a vontade dos
Estados tem dificuldades em prosperar.
10
Ver: TRINDADE, Antônio A. Cançado. op. cit., pp. 205-211.
10
REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr
ISSN: 1984-7920
5. CONCLUSÃO
O Jus Cogens representa a cristalização dos grandes princípios que
perpassam a sociedade internacional. Sendo o equivalente no Direito
Internacional do conceito de ordem pública amplamente difundido no direito
interno de inúmeros países. As regras de Jus Cogens representam um
processo de verticalização das fontes normativas no D.I.P., aproximando-o
funcionalmente da estrutura piramidal da maioria dos ordenamentos jurídicos
das nações que adotam o modelo do Estado Democrático de Direito.
A previsão do Jus Cogens como causa de nulidade de tratados e
convenções na declaração de Viena reacendeu a polêmica entre positivistas e
jusnaturalistas. Para os positivistas, é difícil conciliar a idéia de normas
inderrogáveis em função de um especial conteúdo com a tese das convenções
sociais. Segundo esta, o direito é tão-somente fruto de convenções e práticas
humanas, sendo assim, nenhuma matéria estaria alijado a priori de uma
possível positivação. Qualquer conteúdo, assim, pode ser direito, como
preconizou Kelsen. Como explicar a existência de normas inderrogáveis que
traduzem valores partilhados pela sociedade internacional?
Em que pese seu reconhecimento formal no Tratado de Viena, outra
difícil questão que resta em aberto é sobre quais são efetivamente as normas
internacionais que ostentam esse status.
Apesar de uma nítida influência jusnaturalista em seu nascedouro,
acreditamos que o conceito de jus cogens pode ser reinterpretado segundo as
concepções contemporâneas sobre as fontes do direito que ressaltam o papel
dos princípios no ordenamento jurídico. Conforme Dworkin11, por exemplo, o
ordenamento jurídico não é formado apenas por regras enunciadas por
11
Ver: DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2002; e O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
11
REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr
ISSN: 1984-7920
autoridades competentes. Ao lado destas, ele ressalta a existência de
princípios que radicam em última instância na melhor interpretação das práticas
sociais que compõem o direito e não em fatos sociais ou convenções como, em
sua opinião, faz crer o positivismo. Essa visão difere também do jusnaturalismo
clássico, pois não remete o direito a um ordenamento superior e objetivo, mas
sim a uma interpretação construtiva das práticas sociais, vistas então sob sua
melhor luz.
Contudo, essa intuição sobre as relações entre jus cogens e a teoria
do direito contemporânea mereceria um desenvolvimento muito mais
cuidadoso do que as parcas considerações que lhe dispensamos. Fica aqui a
porta aberta para futura e mais acurada reflexão. Esperamos ter demonstrado
com este artigo as implicações do tema do jus cogens para o entendimento do
próprio conceito de direito, tema tão tormentoso e caro à jusfilosofia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DANILENKO, Gennady M. International Jus Cogens: Issues of Law-Making.
European Journal of International Law, vol. 2, nº 1, Disponível em:
<http://www.ejil.org/journal/Vol2/No1/art3.html>. Acesso em 19 jul. 2007.
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
_______. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
FIORATI, Jete Jane. Jus Cogens: as normas imperativas de direito
internacional público como modalidade extintiva dos tratados internacionais.
Franca: Unesp, 2002.
12
REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO
http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr
ISSN: 1984-7920
PEREIRA, Antônio Celso Alves. Normas Cogentes no Direito Internacional
Público, in PEREIRA, Antônio. C. A., MELLO, Celso R. D. de Albuquerque.
(orgs.) Estudos em Homenagem a Carlos Alberto Menezes Direito, Rio de
Janeiro: Renovar, 2003, pp. 87-109.
_______. Os Direitos do Trabalhador Imigrante Ilegal à Luz da Opinião
Consultiva 18/03 da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em:
<http://brcz.com/lightpill/antonio_celso_alves_pereira.html>. Acesso em 19 jul.
2007.
TEIXEIRA, António Braz. Sentido e Valor do Direito: introdução à filosofia
jurídica. 2ª edição revista e ampliada. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da
Moeda, 2000.
TRINDADE, Antônio
A. Cançado, Direitos Humano:
Personalidade e
Capacidade Jurídica Internacional do Indivíduo. in O Brasil e os Novos
Desafios do Direito Internacional, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2004.
VERDROSS, Alfred. Derecho Internacional Público, Trad. Truyol y Serra,
Madri: Ed. Aguilar, 1963.
13
Download

REVISTA DE DIREITO DA UNIGRANRIO http://publicacoes