CONSIDERAÇÕES GERAIS
A Filosofia surgiu no final do século VII e início do VI a.C. na Grécia antiga.
Resultou de um processo lento e gradativo para que contribuíram vários fatores,
como as viagens marítimas, a invenção da escrita, a invenção da moeda, o
nascimento da pólis (cidade-estado). Os primeiros filósofos tinham uma preocupação
cosmológica e foram posteriormente denominados de pré-socráticos. A Filosofia
surge em um mundo povoado por concepções míticas e em oposição a elas. O mito
é a forma mais primária de compreensão da realidade. Trata-se de um tipo de saber
que é afetivo, coletivo e dogmático. Os mitos são mantidos vivos pela tradição e
cumprem uma função importante de atribuir sentido ao mundo, de explicar a
realidade, de ordenar o caos. Esses primeiros filósofos desconfiavam das
explicações míticas e passam a buscar uma explicação racional para o existente.
Dessa forma, a Filosofia surge opondo-se à visão mítica predominante na época e
vai configurar-se como uma reflexão racional para explicação do existente.
Filosofia: de phílos ‘amigo, amante’ e sophía ‘conhecimento, saber’;
significava no período pré-socrático o estudo teórico da realidade, o saber do
sábio, amor e conhecimento do lógos ‘verbo, palavra’, que tudo rege e unifica.
(Dicionário eletrônico HOUAISS da língua portuguesa)
Alguém poderia perguntar, mas qual, afinal, o objeto da Filosofia? As ciências
particulares possuem objetos definidos; e a Filosofia, de qual objeto especificamente
ela se ocupa? Os pré-socráticos, por exemplo, tinham uma preocupação
cosmológica, enquanto Sócrates passa a preocupar-se mais com a questão
antropológica e ética. Aristóteles investigou sobre lógica, política, biologia entre
outros temas. Outros filósofos ocuparam-se com a teoria do conhecimento, com a
estética etc. Cabe lembrar que as ciências particulares tal como concebemos
atualmente vão configurar-se a partir do século XVII, com Galileu, antes disso,
encontravam-se no bojo da Filosofia. A questão fundamental é que a Filosofia não
se define pelo objeto, como as ciências particulares, mas pela forma de abordagem
do objeto. E qual é essa forma? Segundo o filósofo e educador brasileiro, Dermeval
Saviani (2000),1 essa forma é radical, rigorosa e de conjunto. Radical, porque a
reflexão filosófica precisa ir até a raiz do problema, investigar seus fundamentos.
Rigorosa, porque a reflexão filosófica implica sistematização apoiada no rigor de um
método próprio; De conjunto, porque ao mesmo tempo que o problema é visto em
profundidade deve ser também visto em uma perspectiva mais ampla, de conjunto,
em relação a outros elementos do contexto. Para Saviani, é nessa característica
“que a filosofia se distingue da ciência de modo mais marcante. Com efeito, ao
contrário da ciência, a filosofia não tem objeto determinado; ela se dirige a qualquer
aspecto da realidade, desde que seja problemático; seu campo de ação é o
problema, esteja onde estiver” (2000, p. 17). Dessa forma, a Filosofia pode ocuparse de problemas da esfera política, ambiental, científica, social, educacional, entre
outras. Segundo Terezinha Azeredo Rios, a filosofia é sempre “filosofia de” alguma
coisa; ela explica que:
1
SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 13 ed.
Campinas, SP: Autores Associados, 2000.
Cosmológica: ETIM gr. kosmología, do gr. kósmos ‘lei, ordem, mundo,
universo’ + rad. gr. -logía ‘tratado, ciência, discurso’. (Dicionário eletrônico
HOUAISS da língua portuguesa)
A philo-sofia caracteriza-se então como uma reflexão que busca compreender o
sentido da realidade, do homem em sua relação com a natureza e com os outros, do
trabalho do homem e seus produtos: a cultura e a história. É enquanto re-flexão que
descobrimos a filosofia sempre como filosofia de. Às vezes tenta-se menosprezar o
conhecimento filosófico por não ter objeto próprio, na medida em que qualquer
objeto pode ser objeto do filosofar. Deve-se então retomar a afirmação de que não é
pelo objeto que a filosofia se define. Ela tem sempre como objeto os problemas que
a realidade apresenta, sejam quais forem esses problemas e o lugar em que se
situam.
(RIOS, Terezinha Azeredo. 10 ed. São Paulo: Cortez, 2001, p.18)
Pré-socráticos: relativo aos primeiros pensadores do mundo ocidental e às
suas doutrinas, anteriores à etapa subseqüente inaugurada por Sócrates na
filosofia grega. (Dicionário eletrônico HOUAISS da língua portuguesa)
13.1 FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO
Muitos de vocês já devem ter-se perguntado: Qual a relação entre Filosofia e
Educação? Afinal, a Filosofia é necessária para a Educação? Por que o educador
deve filosofar? Vamos responder começando com outras perguntas: É importante
refletir sobre qual ser humano se quer formar? É importante refletir para que educar?
É importante analisar os valores que devem orientar a prática educativa? Se você
respondeu sim a essas interrogações é porque a reflexão filosófica não pode ser
negligenciada pelo educador.
No item anterior foi abordado que a Filosofia não tem um objeto de estudo
específico, mas que se preocupa com diferentes problemas, colocando-se de forma
crítica e reflexiva diante deles. Assim, um dos problemas com que se ocupou e se
ocupa a Filosofia é a Educação. Daí a afirmação de Saviani: “Acreditamos, porém,
que a filosofia da educação só será mesmo indispensável à formação do educador,
se ela for encarada, tal como estamos propondo, como uma reflexão (radical,
rigorosa e de conjunto) sobre os problemas que a realidade educacional apresenta”
(2000, p.23). Configura-se, dessa forma, a importância da reflexão para a educação.
A palavra reflexão “[...] vem do verbo latino ‘reflectere’ que significa ‘voltar atrás’. É,
pois, um repensar, ou seja, um pensamento em segundo grau” (SAVIANI, 2000,
p.16). A reflexão é uma análise consciente daquilo que se apresenta como
problema. Assim, se pensar é uma atividade que se coloca em prática
espontaneamente, o mesmo não se pode dizer do refletir, porque “[...] se toda
reflexão é pensamento, nem todo pensamento é reflexão” (SAVIANI, 2000, p.16). A
reflexão implica uma atitude consciente de examinar detidamente as questões vitais
da existência humana. Dessa forma, se se defende a reflexão enquanto um valor
fundamental para a educação é necessário que essa reflexão possa ser também
adjetivada de filosófica.
E o que induz o educador a filosofar? Segundo Saviani:
O que leva o educador a filosofar são os problemas (entendido esse termo com o
significado que lhe foi consignado) que ele encontra ao realizar a tarefa educativa. E
como a educação visa o homem, é conveniente começar por uma reflexão sobre a
realidade humana, procurando descobrir quais os aspectos que ele comporta, quais
as suas exigências referindo-as sempre à situação existencial concreta do homem
brasileiro, pois é aí (ou pelo menos a partir daí) que se desenvolverá o nosso
trabalho.
(SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 13 ed.
Campinas, SP: Autores Associados, 2000. p.23)
Assim, o exercício filosófico possibilita que as pessoas diante dos problemas
respondam com reflexão e não com idéias prontas. E, diante dos problemas que a
realidade educacional apresenta ao educador, este não deve abrir mão da reflexão
filosófica.
13.2 O ATO DE EDUCAR*
Kant inicia seu texto Sobre a pedagogia2, enfatizando que o ser humano é o único
ser que precisa ser educado. Com isso, o filósofo de Königsberg chama a atenção
para o fato de que o ser humano não nasce pronto e para se desenvolver e não
perecer necessita de educação. E a educação, por sua vez, acontece de várias
formas e em variados lugares e tempos. Vejamos quais são seus propósitos gerais.
Kant, Immanuel - (1724-1804) Fonte:
http://www.consciencia.org/imagens/banco/
Filósofo alemão, representante do
Iluminismo, autor da Crítica da razão
pura entre outras obras.
Segundo Abbagnano e Visalberghi, na sua História da Pedagogia (1999) o mito de
Prometeu, exposto por Platão no diálogo Protágoras, é a melhor e mais fácil forma
para se compreender a natureza e as tarefas da educação.
Platão - (428-348 a.C.) Fonte:
http://www.consciencia.org/imagens/banco/
2
KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. Trad. Francisco Cock Fontanella. 4 ed. Piracicaba:
Editora UNIMEP, 2004.
O mito conta que quando os deuses criaram os animais encarregaram Prometeu e
Epimeteu de distribuírem as qualidades necessárias à sobrevivência de cada grupo.
Epimeteu3 começou a distribuição sem Prometeu.4 Para alguns concedeu
velocidade, mas não força; dessa forma, poderiam fugir daqueles que dotou com
força, mas não com velocidade; alguns revestiu com peles grossas; outros dotou
com garras; alguns outros receberam asas etc. Enfim, procurou estabelecer um
certo equilíbrio de modo que todas as raças pudessem sobreviver e nenhuma
pudesse desaparecer. Mas Epimeteu3, ue não era muito inteligente, havia gastado
quase todas as faculdades com os animais e se esquecido do gênero humano. Foi
quando chegou Prometeu4 e constatou que realmente havia um certo equilíbrio entre
os animais, mas que o homem encontrava-se nu e indefeso e dessa forma poderia
facilmente perecer diante das ameaças do meio. Prometeu então, resolveu roubar o
fogo de Hefesto e a habilidade mecânica (técnica) de Atena e concedê-los aos
homens. Com esses dois atributos os homens ficaram providos para se defender e
sobreviver. Com a habilidade mecânica o homem pôde criar moradias, vestimentas,
armas, utensílios etc. Foram dotados também da arte de emitir sons e palavras.
Mas, mesmo assim, ainda não tinham sua vida assegurada porque viviam separados
e não uniam forças para lutar contra as feras. Quando tentaram se unir e criar
cidades não foi possível conviver, pois não possuíam a arte política. Foi quando
Zeus interveio e dotou a todos com a arte política, ou seja, com a capacidade de agir
com respeito recíproco e justiça. Aqueles que se recusassem a agir assim deveriam
ser expulsos da comunidade ou condenados à morte.
Dessa forma, segundo Abbagnano e Visalberghi (1999), podem-se extrair algumas
verdades importantes do mito de Prometeu:
Primeira, que o gênero humano não pode viver sem a arte mecânica e sem a arte da
convivência. Segunda, que estas artes, justamente por serem tais (é dizer, artes e
não instintos ou impulsos naturais) devem ser aprendidas. (1999, p.9)
No ser humano, o período de sua “infância” é mais longo e penoso do que,
comparativamente, o correspondente nos animais. Esse período serve para o ser
humano aprender a utilizar os órgãos com os quais foi dotado pela natureza. O
filósofo da educação Olivier Reboul5 chama a atenção para o fato de o ser humano
nascer inacabado, como se nascesse prematuramente, antes de estar totalmente
pronto. Segundo ele, esse “inacabamento”, embora aparente um limite, revela, na
verdade, a grandeza do ser humano. Enquanto os animais nascem praticamente
prontos, já que rapidamente se apropriam das capacidades que foram distribuídas
por Epimeteu, o ser humano ao maturar-se lentamente vai muito mais longe, uma
vez que aos poucos vai revelando todas suas potencialidades latentes. Nos animais,
suas possibilidades já estão inscritas na estrutura orgânica e não necessitam de
aprendizagem, no sentido humano. No ser humano, apenas o uso de seus órgãos
não é garantia de vida, já que necessita utilizar os dons concedidos por Prometeu –
3
Do grego epimetheús: aquele que pensa depois.
Do grego prometheús: aquele que pensa antes.
5
REBOUL, Olivier. A filosofia da educação. Lisboa, Portugal: Edições 70.
4
o uso das técnicas mecânicas - e por Zeus – a arte moral. É por isso que se faz
necessária uma aprendizagem mais longa e penosa. O pressuposto para aquisição
de tais técnicas é a linguagem. Sem a linguagem não haveria comunicação entre os
homens e também não haveria aprendizagem, nem desenvolvimento, assim como, a
possibilidade de fazer abstrações e generalizações necessárias para a formação e
desenvolvimento das técnicas.
*(O texto desse item foi extraído de: FERNANDES, Vladimir. Filosofia, ética e
educação na perspectiva de Ernst Cassirer. FEUSP: Tese de doutorado, 2006, cap.
4)
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