Políticas Públicas em perspectiva comparada: impactos do desenho políticoinstitucional nas relações intergovernamentais na América Latina.
Cristiane Kerches da Silva Leite
Universidade de São Paulo
e-mail: [email protected]
VERSÃO PRELIMINAR
Preparado para apresentação no 21° Congresso Mundial de Ciência Política da IPSA
(International Political Science Association)
Santiago, Chile, 12 a 16 de julho de 2009
O presente texto objetiva estruturar as bases para o desenvolvimento de uma
ampla agenda de pesquisa que tem como tema o processo de descentralização da rede de
proteção social na América Latina. Considera-se que se trata de um processo complexo,
no qual dinâmicas políticas e econômicas de natureza endógena e exógena geram
impactos importantes nos caminhos político-institucionais percorridos historicamente
pelos países nas distintas áreas das redes de proteção social, como as áreas de saúde,
educação e assistência social. Da mesma forma, os processos descentralizadores em
áreas políticas diferentes geram impactos nas relações intergovernamentais, tanto em
países federativos como em países unitários, como demonstram os casos do Brasil,
Argentina e Chile.
O ponto de partida conceitual deste trabalho é o conceito de descentralização e o
seu contraste com a concepção de federalismo. Segundo Montecinos (2005), entende-se
por descentralização “(...) aquel proceso de transferencia de poder político, fiscal y
administrativo desde el nivel central a los niveles subnacionales del gobierno. Em
América Latina la descentralización se ha entendido como un medio para alcanzar
diversos objetivos, entre los cuales podemos destacar: profundizar y perfeccionar la
democracia, fortalecer el desarrollo “desde abajo”, contribuir a la equidad ciudadana,
disminuir el aparato del Estado y hacer más eficiente la gestión pública” (pg. 74).
Arretche (2002), por sua vez, argumenta que federalismo e descentralização são
conceitos diferentes, ou seja, “não implicam engenharias políticas gêmeas”. Enquanto
Estados federativos podem ser definidos como “uma forma particular de governo
dividido verticalmente, de tal forma que diferentes níveis de governo têm autoridade
sobre a mesma população e território” (Lijphart, 1999 apud Arretche, 2002: 27/28),
descentralização refere-se à “distribuição das funções administrativas entre os níveis de
governo (Riker, 1987). Formas as mais variadas de transferência de recursos e
delegação de funções permitem que um dado nível de governo desempenhe funções de
gestão de uma dada política, independentemente de sua autonomia política e fiscal”
(idem: 29). Desta forma, pode-se refletir sobre processos de descentralização em
contextos políticos unitários, uma vez que o objeto de estudo é o processo de
transferência de poder político, fiscal e/ou administrativo entre níveis de poder –
federativos ou não.
A literatura de Ciências Sociais pode ser agrupada em cinco grupos distintos,
conforme o enfoque teórico da descentralização, conforme Montecinos (2005). O
enfoque econômico é o enfoque do federalismo fiscal e do regionalismo. A
descentralização é associada à co-participação dos governos locais nas finanças
nacionais e à capacidade de gerar recursos novos a partir de impostos locais. O
pressuposto de análise é a eficiência da competição intergovernamental, ou seja, uma
vez que os indivíduos se movem entre governos subnacionais dependendo de suas
preferências, os distintos níveis de governo oferecem diferentes gastos e impostos a seus
cidadãos (pg. 75). O regionalismo entende a descentralização como um processo de
consolidação de uma estratégica de desenvolvimento regional e local para fazer frente à
globalização e ao ajuste estrutural das regiões. Um conceito importante é o de territórios
competitivos, que contem uma forte articulação entre o setor público, privado e atores
políticos subnacionais (pg. 76).
O segundo enfoque destacado pelo autor é o sociológico, o qual associa
descentralização com processos de recuperação ou estabelecimento de distintos
processos da vida social e democrática dos países latino-americanos, que incluem maior
participação social e cidadania, provisão de serviços sociais, fortalecimento da
governabilidade democrática da sociedade civil e movimentos sociais. Este enfoque
destaca o “(re)descobrimento” das organizações não governamentais e dos governos
1
municipais como instituições de participação da sociedade civil nos processos
decisórios (pg. 77). O terceiro enfoque é o da nova gestão pública, que entende a
descentralização como uma tendência instrumental para a liberação das potencialidades
gerenciais nas administrações públicas tanto em países desenvolvidos como em vias de
desenvolvimento. Na América Latina este enfoque se relaciona com a reforma do
Estado, com a governabilidade democrática e com a gestão descentralizada em rede,
elementos que formam parte da nova reorientação administrativa do Estado-Nação (pg.
79).
O quarto enfoque é o “otimismo multilateral” que trata da concepção dos
organismos internacionais (BID e Banco Mundial) sobre a descentralização como o
princípio orientador do desenho das políticas públicas dos países latino-americanos,
principalmente nas áreas de saúde e educação. Em linhas gerais, os estudos desse
enfoque consideram o papel ideológico da descentralização na crise do Welfare State, o
papel técnico-burocrático para tornar mais eficiente e eficaz a prestação dos serviços
públicos e os propósitos políticos, ou seja, as condições políticas, econômicas e sociais
de cada realidade nacional para implementar políticas públicas descentralizadas (pg.
82). Por fim, o quinto enfoque, o politológico, entende a descentralização como um
processo determinado por processos políticos. Pergunta-se quais são as causas e
conseqüências da descentralização e quais são os impactos de determinadas instituições
políticas na descentralização. Em que medida o tipo de sistema partidário, eleitoral, a
burocracia e o presidencialismo explicam a profundidade dos processos de
descentralização? (pg. 80). Complementando as questões de Montecinos (2005): em que
medida o federalismo ou as relações intergovernamentais afetam os processos
descentralizadores?
Neste trabalho, procura-se realizar uma reflexão que se alinha com o enfoque
politológico, mas que considera pertinentes as questões referentes aos pressupostos
políticos para a implementação da concepção de descentralização oriunda dos
organismos internacionais. O motivo para este recorte de problema de pesquisa é
empírico, na medida em que nos países da América Latina há motivações muito
diversas para a implementação da descentralização das políticas sociais.
Os países latino-americanos passaram nas duas últimas décadas por processos de
redemocratização conjugados com reformas econômicas liberalizantes. No mesmo
período, defrontaram-se com o desafio de implementar uma agenda de políticas sociais
difundida internacionalmente por organizações internacionais, na qual os processos de
descentralização administrativa e de busca por ganhos de eficiência adquiriram
centralidade, como demonstra o caso das reformas nos sistemas de saúde, por exemplo.
O contexto de crise econômica e redemocratização influenciou fortemente o arranjo
institucional do financiamento da saúde, o desenho da política e a democratização do
processo de formulação e implementação. Contudo, a despeito dos macro-processos
políticos e econômicos comuns e a influência exógena das mesmas instituições
internacionais (Banco Mundial e BID), a forma de implementação e os resultados das
políticas nos países são distintos, em função das idiossincráticas trajetórias das políticas
(policies) em cada país, da correlação de poder entre atores políticos e sociais (politics)
e de diferenças institucionais (polities).
Dessa forma, verifica-se uma tensão entre duas agendas governamentais nas
décadas de 1980 e 1990. A agenda do desenvolvimento econômico concebida pelos
organismos internacionais parte do diagnóstico de que há disfunções nas estruturas dos
Estados que tornam as ações estatais ineficientes, produzem desperdício dos recursos
públicos e impactos deletérios no quadro fiscal e financeiro dos governos. Logo, a
prescrição derivada desse quadro é que as estruturas estatais e seus desenhos
2
institucionais precisam ser reformados para garantir melhores resultados em termos de
eficiência e eficácia, em um contexto em que também se discute a redução dos gastos
sociais. A descentralização é concebida nesse vetor como mecanismo institucional de
ganho de eficiência na oferta de serviços públicos. Essa agenda foi fortalecida na
América Latina no final da década de 1970 em um panorama de crise do modelo de
desenvolvimento econômico centrado no Estado e de crise da dívida externa e de
financiamento estatal.
Por sua vez, a agenda de desenvolvimento social foi fortemente vinculada aos
processos redemocratizantes e de ampliação dos direitos de cidadania. Um primeiro
aspecto é a reinserção de atores sociais organizados nos processos decisórios, em um
contexto de quebra da lógica top-down no âmbito de espaços institucionalizados de
participação da sociedade civil. Essa agenda impacta os governos com a
institucionalização descentralizada de direitos sociais e a crescente necessidade da
definição e ampliação de fontes perenes de financiamento da rede de proteção social. A
descentralização é defendida por grupos sociais e estatais como instrumento de aumento
dos espaços de participação e controle sobre as políticas públicas.
As diferentes tendências descentralizadoras efetivam-se nas políticas sociais
mediadas por distintas formas de relação política entre as esferas intergovernamentais
nos vários países, sejam unitários ou federativos. Dessa forma, há duas grandes questões
que estruturam a agenda de pesquisa que se inicia. A primeira é: como ocorreram os
processos de descentralização nos países latino-americanos?
Em linhas gerais, Draibe (1997) argumenta que grandes processos de
permanências e de mudanças caracterizam o desenvolvimento das reformas das
redes de proteção social na América Latina. A manutenção de características
meritocrático-particularistas ou conservadoras das políticas sociais convivem que a
implementação de inovações institucionais importantes, como as descentralizações
políticas e institucionais e a criação de instituições de participação na formulação e
implementação das políticas sociais, como os conselhos setoriais. Desta forma, a
descentralização deve ser analisada dentro de um contexto mais complexo, no qual
convivem mudanças institucionais e a perenidade de processos sociais e
econômicos que estão na raiz das características conservadoras dos sistemas de
proteção social. A autora destaca fatores estruturais como os processos
socioeconômicos de acumulação, que caracterizaram um quadro de dificuldade em
construir sistemas de políticas sociais em função de mercados de trabalho pouco
integrados (principalmente a segmentação urbano-rural), níveis baixos de
assalariamento e patamares baixíssimos de salários. O resultado desse processo de
natureza estrutural foi a formação de sistemas conservadores de Welfare State, que
tenderam a proteger sempre as categorias sociais dotadas de maior poder de organização
e barganha e de excluir ou a preterir dos seus benefícios as populações rurais; os setores
pobres urbanos e rurais; os trabalhadores ligados ao setor informal e a atividades
marginais.
Desta forma, quatro ordens de questões devem ser observadas nas análises dos
processos de descentralização. A primeira questão refere-se à organização política dos
Estados. Em Estados unitários ou federativos houve grande diferenciação das
competências específicas de cada nível de governo sobre programas sociais
determinados. Mesmo entre países com organizações de governo idênticas, variavam
também as esferas governamentais que efetivamente concentravam poder e capacidades
para a implementação dos programas. Em quase todos, era o governo central que de fato
concentrava tais capacidades, em geral as províncias, regiões e principalmente
3
municípios carecendo fortemente daqueles recursos e capacidades. Por exemplo, o
Brasil e a Argentina destacam-se, entre os países estudados, pelo fato de que seus níveis
provinciais (ou estaduais) apresentavam, no início dos anos 1980, fortes capacidades
referentes aos programas de educação básica e secundária e de saúde.
A segunda questão refere-se à variação das dimensões das redes públicas de
serviços sociais e capacidade de mudança. Países dotados de grandes e extensas redes
de educação, saúde e seguridade (como o Brasil e o México) já mostravam, no final dos
anos 1970, problemas típicos de entropia, de ausência de mecanismos de controle da
qualidade da prestação, além dos desperdícios e problemas de gerência. Em países
dotados de redes relativamente pequenas, as carências organizacionais e sistêmicas
tendiam a constituir obstáculos à coordenação e gerência, bem como à implementação
de inovações (Bolívia e Colômbia). Argentina, Chile e Costa Rica são classificados pela
autora como situações intermediárias que seriam mais vantajosas em termos de
condições de mudança do sistema.
A terceira questão é o comportamento de atores estratégicos. Os corpos
profissionais médicos e docentes, em geral de forte tradição sindical, mobilizavam
significativos recursos organizacionais e de voz, principalmente nos países dotados de
extensos sistemas de políticas, como a Argentina, o Brasil e o México. Os
comportamentos desses atores institucionais – pró ou contra reformas – operaram como
fatores decisivos nos episódios de mudanças, seja pela força das suas resistências
corporativas, seja pelas suas capacidades de liderarem processos reformistas. Houve
forte atuação reformista dos profissionais da saúde em prol da construção de sistemas
únicos no Brasil, na Costa Rica e no México. Resistências corporativas contra reformas
educacionais (municipalização do ensino ou quebra da gratuidade do ensino superior)
são freqüentes em quase todos os casos, salvo nas situações em que o regime autoritário
suprimiu a atividade sindical, como no Chile.
A quarta questão é a ausência sistemática de tradição participativa na
operação dos programas sociais. A participação de associações voluntárias no
desenho e implementação não constituiu traço marcante da dinâmica das políticas
sociais da região, com exceção do tradicional envolvimento sindical nos sistemas de
seguridade (em períodos de regimes políticos democráticos), ou das “juntas de padres”
no sistema de ensino fundamental em alguns países.
Pode-se agregar a essas quatro questões a influência do Banco Mundial no
debate sobre as políticas de bem-estar nos países latino-americanos como elemento
constitutivo de uma agenda de governo estruturada a partir do dilema de produzir uma
resposta à crise econômica e aos novos atores políticos e suas demandas de democracia
social. A partir da segunda metade da década de 1970, o Banco Mundial enfatizava a
contraposição entre eficiência e equidade, ou seja, a possibilidade inevitável de
implementar políticas redistributivas mediante o crescimento econômico. Segundo
Almeida (2002) alguns conceitos passaram a ser difundidos, configurando um quadro
de dissonâncias no debate das políticas sociais. Reconhecia-se a importância da
intervenção estatal no setor social, mas, ao mesmo tempo, criticava-se a efetividade e a
capacidade resolutiva da ação estatal para atender as necessidades básicas da população
mais necessitada. O conceito era a “má utilização dos recursos” (mistargeting), ou seja,
não se tratava de irrelevância do gasto, mas de ineficientes e ineficazes utilizações dos
recursos. No bojo desse debate conceitual a reforma administrativa e a descentralização
surgiram como soluções de reengenharia institucional que redundariam em maior
eficiência, equidade e em um contexto de diminuição de “comportamentos
depredadores e nocivos”.
4
No final da década de 1980, o Banco Mundial exprime abertamente sua posição
de mudar a estratégia de atuação na América Latina, formulando um conjunto de ações
incisivas na área da saúde, que teriam o objetivo de minorar os impactos sociais dos
programas de ajuste macroeconômico através de reformas das políticas setoriais sociais.
Segundo Almeida (2002), no documento “Financing Health Care: An Agenda for
Reform”, de 1989, o financiamento das reformas sanitárias é enquadrado no elenco de
condições negociadas nas bases dos ajustes econômicos. O enfoque mais pragmático e
dirigido às prescrições de políticas é a base para as intervenções na área de saúde que
emergiu no debate entre as agências internacionais que atuam na região, inclusive a
Cepal. As intervenções deveriam diminuir a “carga de enfermidade” e serem
comprovadamente custo-efetivas.
A agenda do Banco Mundial para reforma dos sistemas de saúde teve como
propostas a redefinição do mix público-privado; a separação de funções de
financiamento e provisão; o fortalecimento do papel regulador do Estado e redução do
seu papel provedor; o foco na oferta de serviços básicos (e de baixo custo) para grupos
sociais que não tem condições de satisfazer suas necessidades a partir da oferta de
serviços no mercado; a descentralização funcional das responsabilidades de prestação
dos serviços para os níveis subnacionais de governo; a criação de mecanismos
competitivos e o estimulo à privatização da assistência médica.
A segunda questão que estrutura a presente agenda de pesquisa é: Quais são as
conseqüências político-institucionais dos processos de descentralização nas relações
intergovernamentais dos países?
Estudos recentes do Banco Mundial têm atribuído aos governos locais um papel
central na prestação de serviços públicos. Essa tendência descentralizadora convive,
contudo, com distintos modelos de relação entre as esferas inter-governamentais nos
vários países. No Brasil, o modelo federativo é marcado pela baixa autonomia das
unidades federativas e pelo alto grau de coordenação do Governo Federal. No caso
argentino, o modelo federativo é denominado como "centralismo descentralizado", no
qual o Governo Federal é o grande produtor de políticas públicas em contraste à grande
descentralização fiscal das províncias. Já no caso do modelo unitário chileno o legado
neoliberal do regime Pinochet ainda gera impacto nas políticas públicas, como pode ser
verificado na descoordenação e fragmentação do processo de regionalização e
municipalização das políticas de saúde.
O caso brasileiro é tomado aqui como referência em razão de se diferenciar do
regime federativo argentino e do regime unitário chileno. Trata-se de um caso de
institucionalização de reformas descentralizadoras na área de políticas sociais que tem
ocorrido concomitantemente às reformas centralizadoras na área fiscal e desenham,
assim, um arranjo federativo complexo. A descentralização em diversas áreas de
políticas públicas, como saúde, educação e programas de transferência de renda têm
alterado as relações intergovernamentais. Nesses casos, o Governo Central se relaciona
diretamente com as esferas locais (municipais), reduzindo ou mesmo dispensando a
participação da esfera intermediária de governo (estadual).
Neste âmbito deste texto, objetiva-se iniciar uma discussão de hipóteses de
pesquisa que contemple as duas questões apresentadas, partindo do caso brasileiro de
descentralização de políticas sociais como espelho para a análise dos casos argentino e
chileno.
O caso brasileiro de descentralização das políticas sociais como espelho para a
análise dos casos argentino e chileno
5
No início dos anos 1990 as instituições políticas federativas brasileiras já
estavam instauradas, em razão da redemocratização, e havia também fatores exógenos e
endógenos formadores de uma agenda de descentralização de políticas sociais no Brasil.
Em 1993 o Banco Mundial publicou um relatório denominado “Investindo em Saúde”,
no qual introduziu novos conceitos ao debate internacional sobre políticas de saúde e
mudou algumas de suas posições adotadas durante a década de 19801. Esse relatório
influenciou o desenho da gestão de políticas sociais, especialmente na área de saúde, no
Brasil. Endogenamente, desde o final dos anos 1970 e início dos anos 1980
desenvolveu-se uma agenda democratizante que tinha como objetivo central garantir a
democratização das políticas e da administração pública. A ênfase na descentralização e
na participação dos cidadãos na formulação e implementação de políticas públicas
deveria garantir que a redemocratização não se limitasse à mudança de regime político,
mas se enraizasse em instituições e práticas (Farah 2006).
Como apontamos anteriormente, deve-se ressaltar o papel das agências
multilaterais em todo o ciclo das políticas públicas nos países periféricos, de tal forma
que seu desenho provém em larga medida dessas entidades, com inúmeras implicações.
Contudo, não se pode afirmar que não tenha havido resistências e negociações internas,
assim como mudanças nas posições das mesmas. Desta forma, a formação da agenda da
descentralização – com seus componentes exógenos e endógenos – não garantiu no
mesmo período a institucionalização das políticas sociais descentralizadas. A
implementação de instituições e políticas descentralizadas na gestão de políticas
públicas ocorreu somente a partir de meados da década de 1990. “As evidências de que
havia ocorrido descentralização do gasto social pareciam indicar que havia também
ocorrido descentralização das políticas sociais (Médici, 1994 apud Arretche, 2002)”.
Há várias explicações possíveis para essa dissonância entre gasto social
descentralizado e ausência de estruturas políticas institucionais descentralizadas. Desde
o início da “Nova República” até meados da década de 1990 a agenda social estava
submetida às contingências da agenda econômica, tanto do ponto de vista orçamentário
como do ponto de vista de distribuição de poder nas estruturas decisórias
governamentais. Conseqüentemente, houve um processo de retração e desmantelamento
das políticas sociais no Brasil (Medeiros, 2001) naquele período por vários motivos: a
crise econômica da década de 1980 causou retração dos recursos para a área social; a
estrutura legislativa e executiva montada no período autoritário favoreceu o uso
eleitoreiro das políticas sociais na transição para a democracia; a falta de apoio político
impediu a geração de programas de grande impacto social; o excesso de expectativas
acerca da nova Constituição (idem 2001).
Segundo Arretche (2004), o formato que resultou da Constituição de 1988 foi o
das competências concorrentes para a maior parte das políticas sociais brasileiras:
qualquer ente federativo estava constitucionalmente autorizado a implementar
programas nas áreas de saúde, educação, assistência social, habitação e saneamento.
1
O Bird moderou o discurso anti-universalização dos serviços de saúde – devido a pressões de grupos
vulneráveis em diversos lugares –, reconhecendo a necessidade de uma maior abrangência, mas
condicionada a políticas focalizadas (acesso aos pobres, foco nas famílias e na educação da mulher);
procurou medir a efetividade das intervenções de saúde em termos de custos; argumentou no sentido da
divisão entre financiamento e provisão: financiamento deveria ser por meio de impostos destinados a
determinados fins e ‘dinheiro deve seguir o paciente’ e não ser alocado diretamente para as unidades
prestadoras do serviço; indicou que a provisão pública deveria ser voltada somente aos serviços essenciais
em áreas em que haveria necessidade de muitos subsídios e incentivos à competição entre provedores de
serviços; apoiou a descentralização do gerenciamento; e enfatizou a repartição de responsabilidades entre
níveis de governo e o setor privado. (Mattos 2001).
6
Simetricamente, nenhum ente federativo estava constitucionalmente obrigado a
implementar programas nessas áreas (p. 22).
Como resultado dos dispositivos constitucionais e de processos decisórios mais
amplos (citados acima), o processo de descentralização das políticas sociais no Brasil
foi caracterizado na primeira metade da década de 1990 como “caótico, lento,
insuficiente ou mesmo inexistente” (Medeiros 2001; Almeida, 1995, Affonso e Silva,
1996 apud Arretche 2002). Entre 1990 e 1992 configura-se uma descentralização
acelerada e caótica, caracterizada por vazios institucionais em determinados setores de
política social e superposições em outros; por privilégio de ações assistenciais e
fragmentadas pelo Executivo que favoreciam o fisiologismo e o clientelismo; e por
cortes drásticos de orçamento sob a justificativa da necessidade de descentralização
administrativa (Fagnani, 1997 apud Medeiros, 2001: 17).
Somente a partir da segunda metade da década de 1990 é que “foi
significativamente alterada a distribuição de competências entre municípios, estados e
governo federal para a provisão de serviços sociais” (Arretche, 2002: 31). A autora
argumenta que a descentralização efetiva das políticas sociais passou a ocorrer somente
quando o governo federal reuniu condições institucionais para formular e implementar
programas de transferência de atribuições para os governos locais (p. 45). Como se
sabe, condições institucionais têm como fonte apoio político, entre os quais o do
Congresso que, no caso do Governo FHC, fora profuso, dada a folgada maioria
parlamentar.
No primeiro mandato do Governo FHC iniciou-se a implementação de reformas
nas políticas sociais na direção de uma alteração na distribuição de competências entre
municípios, estados e governo federal na provisão de serviços sociais (Arretche, 2002:
31). De fato, desenhou-se um forte movimento de transferência de funções de gestão
para os municípios, conforme demonstram a desestatização dos serviços habitacionais e
de saneamento, a transferência da totalidade dos serviços de atenção básica para os
municípios e a significativa municipalização da oferta de matrículas no ensino
fundamental (idem: 31).
As reformas nas políticas sociais foram mais do que reformas de gestão
administrativa. Várias mudanças, como a descentralização das políticas, a articulação de
fato entre os diversos programas e a parceria entre governo e movimentos sociais foram
inovações2 que permitiram a redução das práticas clientelistas, distanciamento das
políticas assistenciais e continuidade dos programas3. De políticas assistenciais
emergenciais e benevolentes passa-se a uma visão da assistência social como direito
2
Farah (2006) exemplifica uma série de inovações em governos locais que correspondem a novos
conteúdos de política e novos processos: os governos locais passam a se envolver com a extensão da
cidadania a novos segmentos da população (crianças, idosos, deficientes, comunidades indígenas),
rompendo com a centralização federal e o assistencialismo; políticas de geração de emprego e renda: idéia
de fomento de um mercado local com a criação de instituições de crédito locais para pequenos e médios
produtores; nova governança na formulação e na implementação de políticas públicas: conselhos de
educação e saúde, cooperativas e mutirões para construção de casas populares, orçamento participativo.
Também são exemplos de novas práticas as parcerias para a provisão de serviços públicos com ONGs e
comunidade: gestão de escolas e gestão de unidades de saúde (além dos conselhos); prestação integral de
serviços por entidades não-estatais: serviços de creche e transporte coletivo urbano; ações integradas e de
intersetorialidade (colaboração de diferentes agências estatais); colaboração entre governos de mesmo
nível: consórcios intermunicipais (lixo, recursos hídricos, especialmente saúde e meio ambiente; redes de
atores e entidades).
3
Como tema de pesquisa para futuros trabalhos, deve-se ressaltar a permanência de práticas clientelistas
na vida política brasileira, sendo os parlamentos o melhor exemplo, mesmo com a universalização das
políticas sociais. Para utilizar uma terminologia conhecida, as várias gramáticas convivem no Brasil. Cf.
Nunes, E. (2007).
7
social, universalização do acesso e gratuidade dos serviços públicos. A tensão entre um
modelo mais inclusivo e um modelo mais estratificador transmutou-se para o debate
entre políticas universalizantes e focalizadas, tema que não será possível tratar neste
trabalho, apesar de sua inegável pertinência. Contudo, há vertentes que entendem que,
dentre as mudanças importantes dos últimos vinte anos nas políticas sociais no Brasil,
está a introdução de critérios de delimitação territorial do público-alvo que, aliados aos
de renda, permitiram melhor focalização dos beneficiários (Medeiros 2001: 18).
A configuração da tendência descentralizadora que marcou as relações
federativas no Brasil completa-se quando se observa a área fiscal. O processo de
descentralização fiscal, um capítulo do processo de descentralização política, pode ser
entendido como aumento relativo dos recursos financeiros postos à disposição dos
estados e municípios, vis-a-vis à União. Foi a partir da década de 1980 que o processo
descentralização fiscal a favor dos municípios se intensificou (Serra e Afonso, 1999:
06). Segundo os autores, a fração dos dois principais impostos federais – sobre a renda
(IR) e sobre o valor adicionado pela indústria (IPI) – transferida aos fundos de
participação dos Estados (FPE) e dos Municípios (FPM) aumentou de 18% para 44%
entre 1980 e 1990. Considerando todas as transferências constitucionais, chega-se a uma
parcela transferida de 47% do IR e 57% do IPI. Em 1980, este total era de 20% (idem).
A partir da Constituição de 1988 foi fortalecida e consolidada a capacidade de
tributação própria das esferas subnacionais de governo: no caso dos estados, foi
ampliada a base de incidência do imposto estadual sobre circulação para todas as
mercadorias e serviços (ICMS) de comunicações e transportes. Paralelamente, foram
aumentadas em 25% as transferências desse imposto aos municípios (Serra & Afonso,
1999: 06/07).
Em suma, comparando as últimas quatro décadas e meia, pode-se dizer que os
governos central e estadual perderam importância relativa na divisão federativa dos
recursos tributários. Em contraste, ao mesmo tempo em que a Constituição de 1988
ampliou a porção das receitas fiscais da União, compartilhadas com os governos
subnacionais, também permitiu a expansão dos recursos do Governo Federal por meio
das contribuições sociais, cujo objetivo deveria ser o financiamento das políticas
sociais. Nos anos 1990, os recursos não partilhados, à disposição da União, foram
acrescidos com a criação da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras
(CPMF), em julho de 1993 (Almeida, 2005: 34). Segundo Rezende e Afonso (2004),
apesar de seu ímpeto descentralizador, na prática a Constituição de 1988 implantou um
federalismo fiscal duplo: por um lado criou mecanismos de transferência de grande
parte dos recursos arrecadados por meio dos principais tributos federais – IR e IPI –
para estados e municípios; por outro, criou contribuições sociais para financiar as
responsabilidades sociais da União.
Como se sabe, uma grande mudança que se deu com a Constituição de 1988 foi
a redefinição da Seguridade Social no Brasil, incluindo-se Previdência, Saúde e
Assistência Social num arcabouço de princípios e objetivos em que se destacam: a
universalidade da cobertura e do atendimento; a uniformidade e equivalência dos
benefícios e serviços; a diversidade da base de financiamento; a democratização e
descentralização da gestão, com participação da comunidade (Draibe 1997 apud Barreto
Júnior e Silva 2004).
A legislação infraconstitucional que regulamentou a Seguridade Social gerou
arranjos institucionais do SUS, SUAS4 e Fundef/Fundeb altamente complexos. Em
razão dos objetivos deste texto e do espaço disponível, não poderemos explorar a
4
SUAS: Sistema Único de Assistência Social.
8
complexidade de cada uma dessas políticas públicas. Assim, privilegia-se aqui abordar
aspectos da implementação relacionados à descentralização e à relação entre os gestores
municipais, estaduais e federais. Assim, pode-se levantar hipóteses que expliquem o
impacto da descentralização das políticas sociais nas relações intergovernamentais.
Afinal, em cada uma das áreas observam-se diferentes processos de construção
político/institucional que, por sua vez, sugerem diferentes impactos nas relações
federativas. Analisemos detidamente o SUS e o Fundef/Fundeb:
- O Sistema Único de Saúde (SUS)
O SUS foi criado a partir da Constituição Federal de 1988 (Artigos 196 a 200) e
teve como principais marcos normativos a Emenda nº 29, a Regulamentação da PEC nº
29, a Lei nº 8080/90, a Lei nº 8142/90, a Norma Operacional Básica (NOB SUS 93), a
Norma Operacional Básica do Sistema de Saúde (NOB SUS 01/96), a Norma
Operacional da Assistência à Saúde (NOAS SUS 2002) e o Pacto pela Saúde 2006
(Consolidação do SUS e suas Diretrizes Operacionais).
Esse conjunto de regras estabeleceu a seguinte distribuição intergovernamental
de funções: coube à União o financiamento e a formulação da política nacional de
saúde, bem como a coordenação das ações intergovernamentais. O Governo Federal –
isto é, o Ministério da Saúde – tem autoridade para tomar as decisões mais importantes
nessa política setorial. A edição de portarias ministeriais tem sido o principal
instrumento de coordenação das ações nacionais em saúde, com forte poder de indução
sobre a política setorial5 (Baptista 2007). O conteúdo dessas portarias consiste, em
grande medida, em condicionar as transferências federais à adesão de Estados e
Municípios aos objetivos da política federal. As portarias, ao representarem importantes
recursos institucionais, aumentam exponencialmente a capacidade federal de coordenar
as ações dos governos estaduais e municipais (Arretche, 2004). Nesse modelo de
distribuição de funções, coube aos governos locais implementar as políticas formuladas
pelo Ministério da Saúde, com grande dependência das transferências federais e das
regras definidas pelo Ministério. A participação de estados e municípios no processo de
formulação da política de saúde, por sua vez, está institucionalizada por meio de
Conselhos com representação dos mesmos. A institucionalização desses espaços de
negociação suprimiu do Ministério da Saúde a possibilidade de estabelecer
unilateralmente as regras de funcionamento do SUS (idem).
O fortalecimento do vetor municipal no sistema público de saúde no Brasil
constituiu-se a partir de um processo político-administrativo descentralizador,
envolvendo a transferência de serviços e de responsabilidades, poder e recursos da
esfera federal para a estadual e a municipal (Levcovitz et. al. 2001). Os instrumentos
desse processo foram a municipalização das políticas, o maior controle público por
meio da criação dos Conselhos Municipais de saúde, o estabelecimento das prioridades
locais no Plano Municipal de Saúde e a centralização dos recursos financeiros para
financiamento da política local no Fundo Municipal de Saúde (Barreto Júnior e Silva,
2004)6. Segundo os autores, o gestor estadual sofreu relativamente o maior impacto no
5
Segundo Baptista (2007), o predomínio da atuação do Ministério da Saúde e do Poder Executivo Federal
na condução da política da saúde, por meio do caráter indutor das portarias ministeriais, têm suscitado
críticas de vários grupos que atuam no setor, especialmente os gestores estaduais e municipais e do
Conselho Nacional de Saúde, que reclamam da falta de participação nos processos decisórios.
6
No que tange às implicações para o relacionamento entre as esferas de governo, a Lei Orgânica de
Saúde, Lei nº 8.080, de setembro de 1990, definiu, entre outras, as atribuições e competências de cada
nível de governo. Aos municípios coube o gerenciamento e a execução dos serviços públicos de saúde,
criando os sistemas locais. Aos estados coube promover a descentralização dos serviços e ações de saúde,
prestando apoio técnico e financeiro aos municípios. Apenas supletivamente os estados executarão ações
9
processo de descentralização “ao ter o seu papel original de executor de ações e de
contratante de serviços privados e filantrópicos substituído por uma função de
coordenação, apoio e regulamentação do sistema estadual de saúde” (idem: 49).
A edição das Normas Operacionais Básicas (NOBs) do SUS orientaram esse
processo na medida em que constituem instrumentos de regulação da descentralização,
tratando de aspectos como divisão de responsabilidades, relações entre gestores e
critérios de transferência de recursos federais para estados e municípios (Levcovitz et.
al. 2001). Enquanto as três NOBs da década de 1990 – nºs 91, 93 e 96 – desenharam um
quadro de municipalização em que a relação entre Governo Federal e municípios foi
privilegiada, a NOAs 01/02 aponta para atribuição de novas responsabilidades ao gestor
estadual com a entrada na agenda do SUS da regionalização dos serviços e da oferta dos
de alta complexidade (Barreto Júnior e Silva, 2004).
Essas três NOBS SUS, a despeito de diferenças importantes quanto ao contexto
em que foram formuladas (Levcovitz et. al. 2001) fortaleceram a relação entre o
Governo Federal e os municípios. Na NOB SUS 01/91, por exemplo, adotou-se o
critério de transferência negociada de recursos para os municípios, configurando uma
tentativa de centralização dos recursos pela União (idem): nesta NOB houve o
esvaziamento do papel do gestor estadual e a ampliação do papel dos municípios na
construção do Sistema de Saúde.
A NOB SUS 01/93, segundo Levcovitz et. al. (2001), reafirmou a relação direta
entre o nível federal e o municipal no modelo de gestão semiplena7 por meio da
implementação das transferências “fundo a fundo” dos recursos federais e transferências
automáticas aos fundos municipais para a assistência ambulatorial e hospitalar. Os
municípios habilitados na gestão semiplena tinham total autonomia para programar a
execução dos recursos na diferentes áreas assistenciais. Para os estados, esta NOB
possibilitou o redimensionamento de seu poder de interferência na condução da política
da saúde: ao atribuir funções mais complexas no gerenciamento dos sistemas de
informações; ao dividir a responsabilidade sobre a aprovação de critérios de distribuição
dos recursos federais entre os municípios; e também sobre a definição dos municípios
aptos para receberem a transferência automática “fundo a fundo” (p. 278). Contudo, não
foram definidas as novas funções para os governos estaduais, como também os recursos
e instrumentos para a sua implementação.
A NOB SUS 01/96 promoveu uma profunda reestruturação ao avançar na
responsabilização dos municípios na Gestão da Saúde. Foi criado o SUS municipal,
“que consiste em subsistemas, um para cada município, que devem responder pela
totalidade das ações e de serviços de atenção à saúde no âmbito do SUS” (Barreto Jr. e
Silva, 2004: 52). Segundo os autores, esta NOB também redefiniu o papel dos estados e
da União na gestão do sistema ao determinar que serão co-responsáveis pelo SUS em
suas respectivas competências ou na ausência da função municipal. Entre 2001 e 2002
houve intenso debate entre secretários estaduais e municipais e o Conselho Nacional de
Saúde em torno dos limites da municipalização. A NOAS SUS 01/02 estabeleceu um
espaço institucional de responsabilidade do gestor estadual ao destacar a diretriz da
regionalização dos sistemas como estratégia de hierarquização dos serviços de saúde e
de busca de maior equidade com a elaboração do Plano Diretor de Regionalização –
PDR. A operacionalização desse plano e das estratégias de regulação do sistema
e serviços de saúde. Suas atribuições referem-se, principalmente, ao acompanhamento, ao controle e à
avaliação das redes hierarquizadas do SUS, bem como à gestão dos sistemas públicos de alta
complexidade, de referência regional e estadual (Barreto Júnior e Silva 2004).
7
Refere-se aos aspectos da descentralização das ações e serviços de saúde, instituídos pela Norma
Operacional Básica SUS 01/93, que foram efetivamente implementados.
10
tornaram-se responsabilidade dos estados, assim como a coordenação da “Programação
Pactuada e Integrada”, que prevê a parcela de recursos a ser gasto em cada município
para cada área de alta complexidade.
Pode-se concluir que o exemplo da implementação do SUS sugere que está
ocorrendo uma mudança no vetor municipalista no sentido de adequá-lo a processos que
demandam esforços regionais de implementação – serviços de maior densidade
tecnológica e relacionados à especialidade médica - , especialmente em casos de baixa
capacidade executiva em municípios pequenos. Se inicialmente o processo de
descentralização fora profundamente marcado pela municipalização da gestão,
incluindo-se recursos e instrumentos administrativos, a partir dos anos 2000 os gestores
estaduais estão reconquistando espaços políticos e institucionais ao assumirem a
coordenação de ações intermunicipais e regionais. Contudo, esse processo também se
deve a movimentos de cooperação intermunicipal articulados nos Consórcios de Saúde.
Em muitos casos, a gestão intermunicipal no plano dos Consórcios entra em conflito
com as instâncias regionais oriundas do plano estadual, fenômeno este que torna mais
complexa a análise dos impactos da descentralização nas relações intergovernemantais.
Na área da saúde a análise dos impactos da descentralização não pode se restringir às
relações entre Governo Federal, estados e municípios, mas deve incluir a relação entre
os próprios municípios no que tange a temas específicos.
- O Fundef/Fundeb
Em relação às políticas de educação, as mudanças no financiamento da
educação pública no Brasil nos últimos anos refletem o processo de descentralização do
aparelho de proteção social (Rodriguez 2001). A Assembléia Constituinte de 1988 foi
marcada por movimentos que objetivavam aumentar e garantir os recursos para a
educação pública:
Durante esta época, os níveis de vinculação de recursos de
estados e municípios a serem gastos com desenvolvimento e
manutenção do ensino aumentaram de 20% para 25% do total da
receita de impostos e transferências. Delimitou-se o que poderia
ser considerado gastos com Manutenção e Desenvolvimento do
Ensino (MDE), minimizando uma fonte de desvios de recursos
constitucionais do setor educacional para outros gastos. Esta
tendência foi aprofundada nos processos constituintes estaduais e
municipais, nos quais várias unidades da federação fixaram sua
vinculação em gastos para educação em 30% da receita de
impostos (Rodriguez, 2001: 42/43).
A Constituição Federal de 1988 definiu as competências na educação
fundamental como concorrentes, estabelecendo apenas que esta deveria ser oferecida
preferencialmente pelos governos municipais, reforçando o papel coordenador e
equalizador da União. Rodriguez (2001) distingue duas etapas de descentralização do
setor educacional na direção de uma maior municipalização: entre 1988 e 1996 e de
1996 em diante. Na primeira etapa (1988 a 1996), a descentralização fiscal para estados
e municípios aumentou a disponibilidade de recursos nessas instâncias governamentais.
Em contrapartida, houve um aumento modesto e focalizado no ensino pré-escolar, com
a anuência dos governos estaduais. A incipiente expansão da oferta no ensino
fundamental municipal deveu-se, segundo o autor, em grande parte a transferências
realizadas – no âmbito das municipalidades – na execução orçamentária dos recursos
educacionais para outras atividades. Esse cenário legitimou a intervenção da União para
11
a formulação da política nacional de educação por meio da Emenda Constitucional (EC)
nº 14/96, que criou o Fundef, e da Lei nº 9324/96.
A EC do Fundef, que findou em 31 de dezembro de 2006, estabeleceu que, no
prazo de dez anos, estados e municípios deveriam aplicar, no mínimo, 15% de todas as
suas receitas exclusivamente no ensino fundamental. Além disso, 60% desses recursos
deveriam ser aplicados exclusivamente ao pagamento de professores em efetivo
exercício do magistério. Para reduzir a desigualdade de gasto, a EC 14/96 estabeleceu
que o governo federal deveria complementar o gasto naqueles estados em que um valor
mínimo nacional não fosse alcançado com base nas receitas dos governos locais. As
receitas do Fundef eram redistribuídas, em cada estado, entre governos estaduais e
municipais de acordo com o número de matrículas oferecido anualmente. O Fundef
estabeleceu assim um vínculo entre encargos e receitas fiscais, além de garantir a efetiva
transferência dos recursos, cujo efeito foi eliminar as desigualdades intra-estaduais de
gastos no ensino fundamental. Neste caso, para alcançar seus objetivos o governo
federal adotou a estratégia de constitucionalizar as transferências intra-estaduais,
eliminando a incerteza quanto ao recebimento dos recursos vinculados à oferta de
matrículas. Para obter o comportamento desejado dos governos locais, criou uma
obrigação constitucional, dada sua limitada capacidade institucional de afetar as
escolhas dos governos locais (Arretche 2004)8.
A despeito de suas virtudes na coordenação dos objetivos das políticas
educacionais no território nacional, o Fundef foi alvo de críticas em função de
problemas acarretados com sua estrutura. Rodriguez (2001) denomina esses problemas
de “fraturas” entre diferentes níveis de ensino básico assim como no que tange às
esferas política e institucional. Entre 1988 e 1995 a priorização de gastos de alguns
municípios voltava-se ao ensino pré-escolar, em muitos casos instalando sistemas
municipais de alta qualidade – com suporte educacional e pedagógico, atendimento em
período integral, saúde, alimentação e outros benefícios –, que implicavam um nível de
gasto elevado no orçamento das secretarias municipais dado o objetivo de realizar 25%
da receita. O Fundef, ao ser implantado, retirou recursos do ensino pré-escolar para
serem alocados privilegiadamente no ensino fundamental, apresentando-se “como uma
armadilha para os prefeitos que terão de enfrentar a diminuição da oferta do nível préescolar e, mais do que isso, deverão reduzir os níveis de qualidade do sistema, com os
custos políticos que pesarão sobre a opinião pública nos seus municípios” (idem: 45).
Ainda segundo o autor, “isto recria novamente um clima de desconfiança com relação
às ações políticas supranacionais e uma disputa federativa que se traduz (...) no elevado
número de ações legais contra o Fundef por parte das municipalidades” (Rodriguez,
2001: 46). Os impactos políticos e eleitorais da constitucionalização, nas diversas áreas
das políticas sociais, notadamente na educação, expressam uma das dimensões da vida
política brasileira, e necessitam ser analisados com mais profundidade, pois representam
divisores de água quanto ao processo anteriormente existente.
Mas, mais importante para a argumentação deste texto é a fratura política e
institucional. Os vários processos de descentralização que se seguiram à tendência de
municipalização dos serviços estaduais desenvolveram um sistema de arenas de
discussão intergovernamental, privilegiando o caminho da negociação. Segundo
Rodriguez (2001), os exemplos dos estados do Rio Grande do Sul e do Paraná são
notórios. Já em 1995 esses estados:
8
Há diversas maneiras de se compreender essa estratégia de indução, via penalização (caso os estados
não se adequassem não receberiam as verbas), do comando político do Governo Federal, entre as quais se
destaca a histórica desconfiança no poder local, notadamente o coronelismo de suas elites. Cf. Leal, V.
Nunes. (1978).
12
haviam vislumbrado a necessidade da instituição de um custo
per capita para as matrículas que estavam sendo deslocadas de
um nível governamental para outro. Embora anteriores à
engenharia fiscal e financeira do Fundef, esses processos já
apontavam para o caminho possível de fazer a descentralização
sem ônus entre os parceiros governamentais. Apesar disso,
havia fundadas críticas a esses processos por eles serem
conduzidos de forma autoritária por parte dos governos
estaduais (Raggio, 1996 apud Rodriguez 2001: 46).
Dessa forma, o Fundef, do ponto de vista da construção de arenas de negociação
que envolveriam os estados na provisão de serviços educacionais, representou o
“sacrifício de foros de articulação intergovernamentais que facilitariam o diálogo no
interior do processo de descentralização” (idem: 47). Para Rodriguez:
no cenário criado, pode-se aventar a hipótese de um
aprofundamento do estranhamento político dos entes
governamentais sub-nacionais com relação à legitimidade
política de coordenação federal. A forte autonomia política dos
municípios herdada de 1988, a total autonomia financeira dos
sistemas municipais de ensino na atual reforma e a falta de
foros político/institucionais apropriados retiram dos estados a
capacidade de articular políticas educacionais estaduais, de
coordenar os processos de correção e ajuste das desigualdades
geradas pelo próprio Fundo. Assim, deixaria de existir, aos
poucos, um sistema estadual de educação que seria substituído
por múltiplos sistemas municipais diversos e possivelmente
desiguais. Este outro tipo de fratura institucional não é de
menor relevância que o anterior (idem:47, grifos nossos).
Observa-se aqui um novo arranjo político/federativo, com impactos importantes
nas relações entre os entes federados e consequentemente no modus operandi das
políticas públicas sociais. Em outras palavras, há vários padrões de relação política na
federação brasileira.
Ainda quanto aos desdobramentos da educação, em dezembro de 2006 foi
aprovado o Fundeb (EC nº 53/06) para ampliar as áreas de educação abrangidas por
financiamento federal, corrigindo as falhas do Fundef, como a exclusão da educação
infantil, do ensino médio e de seus profissionais, assim como para permitir a
complementação federal. O Fundeb prevê redistribuição de recursos destinados à
educação básica da rede pública de acordo com o número de alunos matriculados no
ensino infantil (incluindo creches), fundamental e médio. A partir da crítica feita por
Rodriguez (2001), pode-se argumentar que o Fundeb minimizou os efeitos perversos do
Fundef, que privilegiava o ensino fundamental em detrimento dos demais, sem planejar
e articular de forma integrada o sistema público como um todo. Contudo, é importante
ressaltar que a margem de escolha dos governos estaduais e municipais, assim como
suas possibilidades de articulação intergovernamental, continuam limitadas ao âmbito
da institucionalidade do fundo.
Embora tenhamos observado a ação entre estados e municípios nos foros
intergovernamentais a partir da implementação dos mecanismos de intervenção da
União na política nacional de educação – o Fundef e o Fundeb –, há pesquisas que
demonstram que a municipalização do ensino no país não depende somente dos
13
incentivos institucionais desses fundos, mas do interesse dos estados, consubstanciado
em ações de políticas públicas. Gomes (2008) argumenta que a variável mais importante
para explicar a municipalização do ensino no país é o interesse dos governos estaduais
em transferir os serviços para os seus municípios. Ademais, quando os governos
estaduais se mobilizam para implementar programas estaduais de municipalização, e
esses funcionam como incentivos adicionais ao Fundef, tais ações se tornam a variável
mais importante para explicar a municipalização. Assim, depreende-se que as relações
históricas entre estados e municípios pesam nas variações dos resultados nos processos
de municipalização incentivados por mecanismos federais, como o Fundef/Fundeb.
Breves observações à guisa de comparação entre os casos brasileiro, argentino e
chileno.
A abordagem do caso brasileiro sugere a importância de problematizar os
impactos da descentralização nas relações federativas, num contexto político,
institucional e federativo complexo, pois marcado por forças centrípetas e centrífugas e
por mediações, arranjos e (re)negociações entre elas. Além disso, outros atores,
exógenos e endógenos, tais como respectivamente as entidades internacionais e os
movimentos sociais participam, de forma assimétrica, da arquitetura política e
institucional da descentralização, demonstrando que o vetor dos constituintes de 1988
está eivado de temas e questões não previstos quando da elaboração da Constituição e
que variam fortemente dependendo de cada política setorial. Esse processo está se
delineando justamente após os vinte anos da Constituição, devido, entre outros
elementos, à lógica dos sistemas nacionais presentes nas políticas públicas sociais, entre
outros fatores.
Uma primeira aproximação de uma análise comparativa entre os casos pode ser
feita pela área da saúde. A análise dos processos de implementação das políticas de
saúde na América Latina tem demonstrado a existência de distintas modalidades de
reforma dos sistemas a partir do fio condutor comum da tentativa de conciliar eficiência
e equidade. Em geral, houve mudanças nas regras de separação das funções de
regulação, provisão e financiamento; na participação de agentes públicos e privados e
estímulo a uma maior presença do setor privado na provisão e gestão dos serviços.
Observando as quatro questões sugeridas por Draibe (1997) e o elemento da influência
do Banco Mundial, podemos analisar a evidência empírica de que os países
implementaram de forma muito distinta a agenda internacional de reforma. Alguns
países foram paradigmáticos na implementação das recomendações contidas na agenda,
como o Chile e a Colômbia. Há especificidades em três casos apontados por Almeida
(2002): Costa Rica, Brasil e Argentina.
Conforme Almeida (2002), o Chile foi o caso mais radical ao adotar a
privatização como cerne da reforma, combinando “seguro privados, competencia en el
aseguramiento y segmentación de la estrutura de financiamiento” (p. 921). A
Argentina, por sua vez, “es ejemplo de los intentos de introducir cambios en un sistema
universal, también mixto, pero fuertemente segmentado y controlado por grupos
corporativos, debido a la importancia de la seguridad social en su estructuración”
(idem). O caso brasileiro tem uma forte influência do processo de transição democrática
“(...) y es un intento de consolidar un sistema único de salud, público, universal y
descentralizado, basado en la concepción de salud como derecho de ciudadanía y deber
del Estado, aparentemente en una ruta contraria a la dinámica mundial” (idem).
Em que pese o fato de que Brasil e Argentina sejam países federativos e o Chile
um país unitário, nos três casos é possível observar processos de implementação de
14
sistemas nacionais de saúde marcados por conflitos entre entes intergovernamentais e
atores sociais organizados. De fato, nos três casos em análise, há o elemento comum
do corporativismo marcando historicamente a implementação de sistemas de
saúde “altamente excludentes, heterogêneos e fragmentados, bastante resistentes à
pretensão reguladora do aparelho estatal” (Buss e Labra, 1995). Contudo, o elemento
corporativo ligado à atuação da representação da classe médica explica essas
características dos sistemas em momentos históricos distintos.
O Chile destaca-se entre os países da América do Sul por ter implementado,
desde o século XIX, amplas e bem-sucedidas políticas de educação e saúde, que
garantiram ao país índices sociais bastante elevados em relação a vários de seus
vizinhos ao longo de todo o século XX. Nas primeiras décadas do século passado, o
tema da saúde pública dividia o país em três correntes de interesses bastante distintas:
a direita conservadora, que defendia um regime público de saúde preventiva apenas para
os miseráveis e desvalidos; o centro, que propugnava um modelo de assistência
preventiva nos moldes da Organização Internacional do Trabalho (OIT) voltado aos
trabalhadores assalariados e separado da saúde pública; e as esquerdas, que lutavam por
um sistema único de saúde, público, integral e de qualidade (Labra, 2002). Na década de
1920 foi criado o Seguro Social Operário Obrigatório sem a interferência da corporação
médica. Em 1952 criou-se a base do Estado de Bem-Estar Social na Saúde, o Seguro
Nacional de Saúde que foi fruto, entre outros fatores, da intensa mobilização da
sociedade civil e dos profissionais da saúde em direção àquele modelo. No entanto,
apesar da forte presença da classe médica na cena política do país e na definição das
políticas públicas de saúde durante décadas, com a instauração da ditadura militar, a
partir de 1973, aquele sistema sofreu fortes modificações, todas sob inspiração
privatista. Entre elas se destacam: a criação de 27 superintendências regionais de saúde,
dotadas de autonomia financeira e operacional e o conseqüente esvaziamento do
Ministério da Saúde, a quem coube, a partir de então, apenas funções normativas; a
municipalização dos serviços de atenção básica de saúde; a criação do Fundo Nacional
de Saúde, financiado com descontos nos provimentos dos trabalhadores assalariados;
redução radical dos recursos públicos destinados à saúde. A área da saúde é
emblemática do processo de destruição que o autoritarismo político causou no quadro
da “medicina socializante” da primeira metade do século XX, nas prerrogativas de
cidadania e na articulação que havia entre estruturas estatais e grupos sociais
organizados.
Em 1980 a Constituição imposta pelo regime ditatorial solapou aquela
construção institucional. Uma nova reforma do sistema criou um sistema coordenado de
saúde privada, de aderência voluntária e sustentado por subsídios cruzados com o
governo. Apenas em 1991, já sob o governo democrático de Patrício Aylwin criou-se
uma superintendência federal para fiscalizar as relações entre aquele sistema privado e
seus clientes. (Azevedo, 1998). A abertura política não impediu que houvesse
continuidades: fragmentação do sistema de saúde em razão da regionalização, da
municipalização e da privatização; a dispersão associativa; a ausência de propostas de
reforma global; o duplo deslocamento centralizador do poder decisório: o primeiro, em
direção às arenas econômicas e o segundo, no Ministério da Saúde, que mantém o
controle político, técnico e regulador do sistema. Labra (2000) afirma que o atual clima
de “concertação” no âmbito governamental neutraliza o potencial de conflito entre 3
vertentes: voltar ao passado, restaurando a medicina socializada que encarnava o
Sistema Nacional de Saúde; aperfeiçoar o atual mix público/privado, dotando-o de
maior coordenação, eficiência e eqüidade; aprofundar a privatização, inclusive
15
entregando os hospitais públicos ao empresariado privado. Essas posições antagônicas
dividem a tecnocracia, os colégios profissionais e também a sociedade chilena.
Apesar da supremacia da agenda econômica neoliberal no país e o seu inegável
impacto no sistema de saúde pública com o crescimento dos serviços privados de saúde,
a memória da sociedade chilena em relação à intensa mobilização dos profissionais de
saúde, ao longo de décadas, em direção à criação de um sistema público e universal não
foi totalmente apagada pelo período autoritário, e constrange os governos do período
democrático a buscar a construção de um modelo naqueles moldes, ainda que existam
travas constitucionais deixadas pela ditadura e restrições orçamentárias para tanto.
Distintos projetos para a saúde chilena seguem em disputa, refletindo a própria
polarização ideológica que o país continua a viver. Atualmente um amplo modelo
privado de serviços de saúde coexiste com um colchão minimamente aceitável de
provisão de serviços de saúde para a população de baixa renda. Toda a população tem
acesso a cuidados preventivos e curativos, enquanto que o acesso à atenção médica e
hospitalar é estratificado segundo critérios econômicos e da qualidade do serviço.
Na Argentina, a grande discussão histórica relaciona-se com a forte associação
entre características do sistema político e organização dos serviços de saúde. O
corporativismo se apresenta com força no período peronista, centralizando a decisão
sobre políticas de saúde no Ministério do Trabalho e na Fundação María Eva Duarte de
Perón. O resultado foi a institucionalização das Direcciones Generales que marcaram
nos 50 anos subseqüentes um sistema fragmentário, heterogêneo, capturado pelos
grupos mais organizados e altamente descoordenado. Em 1949 a reforma constitucional
incorporou os direitos sociais à Carta Magna, contudo sem explicitar como se daria o
financiamento do sistema de serviços. Na década de 1950, a autodenominada Revolução
Libertadora teve como principal estratégia o desmonte da estrutura de serviço público
montada no período anterior – “a semisocialização da medicina” na Argentina. O
governo transferiu para as províncias, municípios e o setor privado as funções
infraestruturais, competências e governabilidade do sistema construídas na década
anterior. “Las contradicciones que seguirían luego muestran un largo período en que la
sucesión de gobiernos civiles y militares generó un péndulo en el cual los servicios
nacionales eran transferidos a las provincias por los gobiernos militares (que a su vez
en nombre del federalismo intervenían con gobernadores militares todas las
provincias) hospitales que eran vueltos a pasar a la esfera nacional por los débiles
gobiernos democráticos que lo seguían (Rovere, 2004).
A forma descoordenada como se deu a descentralização administrativa nas
províncias e seus resultados, a partir do final dos anos 1970, pode ser explicada pelos
elementos históricos da área de saúde: escassa eficiência operativa dos gastos,
sobreposição de funções, baixa coordenação na regulação e nas fiscalizações, baixo
cumprimento de normas de credenciamento. Nos últimos 20 anos a Argentina continua
a carecer de um plano nacional de saúde que possa unificar a miríade de subsistemas
desenvolvidos localmente e altamente excludentes. “La Ley de Seguro Nacional de
Salud se sanciona en 1988 bajo el número 23.661 pero la Ley nunca fue reglamentada.
Lo cierto es que desde el abandono del Seguro Nacional de Salud en adelante nunca
mas se llevó a discusión el problema de la universalidad del sistema de salud en la
Argentina” (Rovere, 2004).
No Brasil, a concepção de cidadania regulada está na base do processo de
organização das políticas de saúde. Nas décadas de 1930 e 1940 a assistência médica
era prestada por uma previdência social incipiente, relacionando historicamente a
institucionalização da previdência social com o sistema de saúde. Caminhou-se de um
“sanitarismo campanhista” (início do século XX até os anos 1960) para um “modelo
16
médico-assistencial privatista” (a partir de meados dos anos 1960 até a década de 1980)
(Buss e Labra, 1995). Observa-se que o processo de redemocratização a partir dos anos
1980 foi acompanhado pela formulação de um sistema público gratuito e universal de
saúde, cuja implementação conviveu com o crescimento de uma vasta rede privada de
serviços de saúde. O caso brasileiro apresenta um processo político-institucional
descentralizador, no qual os municípios acumularam importantes atribuições na oferta
dos serviços de saúde no processo de institucionalização do Sistema Único de Saúde
(SUS), conforme abordado anteriormente.
O caso brasileiro diferencia-se dos casos argentino e chileno por conta da forte
atuação, desde os anos 1970, ainda no auge da ditadura, e sobretudo no período de
transição do regime militar para o regime democrático, do movimento sanitarista,
composto por profissionais da saúde espalhados por todo o território nacional. Embora
não seja tão antigo quanto a militância pela saúde pública chilena, o movimento
sanitarista brasileiro, surgido no início do século XX, foi um ator fundamental no
processo de elaboração do capítulo sobre seguridade social da nova Constituição do
país, entre 1985 e 1988. Naquela oportunidade, os sanitaristas defenderam a criação de
um sistema universal de saúde, público, gratuito e de qualidade, a ser totalmente
financiado por recursos públicos. Além disso, defendiam que a participação do setor
privado no provimento de serviços de saúde se desse por regime de concessão e
trabalharam ainda pela crescente descentralização da administração dos serviços de
saúde entre estados e municípios.
Ainda que tenham tido diversos de seus pleitos contemplados no texto final da
Carta Magna, não foram totalmente bem-sucedidos na medida em que a atuação dos
interesses organizados das empresas de saúde privada fez constar da nova Constituição
a temática da cobertura particular, a quem ficou prevista atuação complementar em
todas as ações de saúde. Além disso, os sanitaristas não conseguiram fazer com que as
fontes de recursos para o financiamento da saúde pública deixassem de ser,
majoritariamente, federais, ainda que a concentração dos recursos em Brasília pudesse
contribuir para a eventual redução da desigualdade da prestação dos serviços de saúde
nos níveis subnacionais. Um breve balanço do período que se estende da promulgação
da Constituição até os dias de hoje nos mostra que houve avanço do Sistema Único de
Saúde: descentralização crescente das fontes de recursos para a provisão dos serviços,
melhoria de diversos indicadores de saúde e também aumento da cobertura privada de
saúde entre diversos segmentos da população. Em outras palavras, o país ampliou o
acesso da população a serviços públicos de saúde, caracterizando-se assim uma política
pública mais eficaz, eficiente e efetiva, ao mesmo tempo em que significativos extratos
da sociedade migraram para o sistema privado. Ao mesmo tempo, a institucionalização
do financiamento do gasto em saúde é uma pauta que enfrenta historicamente grande
dificuldade de avançar na agenda governamental em função da sobreposição com a
agenda fiscal.
A análise das reformas nos sistemas de saúde nos três países nos últimos 20 anos
permite afirmar que a despeito de elementos corporativistas comuns que marcaram o
histórico dos sistemas de saúde, do contexto de crise econômica e mudança política e da
influência dos organismos multilaterais, especialmente o Banco Mundial, na construção
da agenda de reformas das políticas sociais, há claras diferenças nos processos de
implementação dessas reformas. O caso brasileiro se destaca como um caso de
mudança incremental de construção de um sistema de saúde público, gratuito e de
grande cobertura, com claros traços de mudanças e permanências. Em um contexto
político e econômico no qual a descentralização das políticas sociais apresentou um
duplo significado – democratização e eficiência -, a construção do sistema público de
17
saúde foi marcado por um amplo processo de negociação entre grupos sociais
organizados e atores políticos subnacionais, capitaneado pelas instâncias políticas do
Governo Federal (traço de permanência de centralização política com a mudança na
descentralização da implementação dos serviços). O caso argentino, a despeito de ser
um país federativo como o Brasil, apresenta características próximas ao caso chileno no
que tange ao histórico do sistema de saúde e seus impactos nos processos
contemporâneos de reforma.
Nos casos argentino e chileno, houve importantes experiências socializantes de
amplos sistemas nacionais e gratuitos de saúde, sustentados por poderosos grupos
sociais organizados, interrompidas abruptamente por governos autoritários. Os
movimentos de centralização e descentralização administrativa foram instrumentos de
poder de governos democráticos e autoritários, respectivamente. O histórico de
desmonte radical das estruturas públicas e gratuitas de serviços de saúde é um dos
elementos que explica, por exemplo, a falta de regulamentação da Lei de Seguro
Nacional de Saúde sancionada em 1988 na Argentina e a existência de um sistema
altamente fragmentado e segmentado no Chile. A prevalência da agenda econômica
neoliberal – implementada de forma radical na Argentina e no Chile - na agenda mais
recente de descentralização das políticas de saúde também configura como um
importante elemento desta hipótese de pesquisa que deve ser investigada em trabalhos
vindouros.
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