Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul
UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751
ENUNCIAÇÃO EM BAKHTIN
Patrícia da Silva VALÉRIO 1
RESUMO: O trabalho proposto tem a intenção de resgatar os conceitos de alguns termos
presentes na produção teórica de Mikhail Bakhtin e de seu Círculo a fim de investigar
princípios que permitam a identificação de uma teoria da enunciação. Este estudo parte da
hipótese de que existe, na produção científica do Círculo, uma teoria da enunciação bastante
próxima da teoria enunciativa tal como formulada por Émile Benveniste, o linguista da
enunciação. A fim de atingir seu objetivo, buscar-se-á, primeiramente, identificar os
conceitos dos termos palavra, ideologia, signo, diálogo e interação presentes em três obras
de autoria de Bakhtin e seu Círculo: Discurso na vida e discurso na arte, Freudismo e
Marxismo e filosofia da linguagem. Além da busca da conceituação de conceitos nessas
obras, serão comparadas as definições encontradas com alguns conceitos enunciativos
desenvolvidos por Benveniste. Esse estudo corresponde à fase inicial de uma investigação
que pretende aprofundar a relação entre os estudos bakhtinianos e a teoria da enunciação de
Benveniste.
PALAVRAS-CHAVE: Palavra; Ideologia; Signo.
ABSTRACT: This paper aims to rescue the concepts of some terms found on Mikhail Bakhtin's
theoretical production and his Circle, in order to investigate principles that allow the
identification of an enunciation theory. This study comes from the hypothesis that, on the
Circle scientific production, exists an enunciation theory quite close to the enunciation theory
as the one formulated by Émile Benveniste, the enunciation linguist. With the purpose of
achieving its objective, primarily, it will try to identify the concepts of the terms word,
ideology, sign, dialogue and interaction found in three pieces of Bakhtin and his Circle
autorship: Discourse in life and discourse in art, Freudianism and Marxism and Philosophy
of Language. Besides the search for conceptualization of concepts on those pieces, the
definitions found will be compared to some enunciative concepts developed by Benveniste.
This paper corresponds the initial stage of a research that aims to explore the relations
among the Bakhtinian studies and Benveniste's Enunciation Theory.
KEYWORDS: Word; Ideology; Sign.
1 Introdução
O estudo a que nos propomos encontra-se em fase inicial de pesquisa e propõe-se a
investigar, em um conjunto de textos de Mikhail Bakhtin2, algumas possíveis definições de
1
Doutoranda em Linguística Aplicada pela UNISINOS, RS, Mestre em Letras, Universidade de Passo Fundo,
RS, [email protected].
2
É preciso esclarecer que Bakhtin não é, necessariamente, o único autor das obras aqui mencionadas. Legón e
Pereira (2009) traduzem o artigo Voloshinov: a palavra na vida e a palavra na poesia, de Bubnova, o qual
analisa o texto que conhecemos por Discurso na vida e discurso na arte. Nesse artigo, a autora afirma ser o texto
em análise um dentre os vários que foram assinados por V. Voloshinov, P. Medvedev e I. Kanev que, em 1970,
foram atribuídos a Bakhtin, passando a constituir, desde então, o conjunto de textos considerados “apócrifos” de
Bakhtin (BUBNOVA, 2009, p. 32). Por essa razão, muitos autores optaram por referir-se a esses textos como
produções do Círculo de Bakhtin ou aos autores que aparecem nas respectivas capas. Neste estudo, empregamos
1
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termos considerados chave na linguística da enunciação, tal como pensada por Emile
Benveniste, a fim de analisar se há possibilidade de derivar, a partir dos conceitos desses
termos em Bakhtin e seu Círculo, uma linguística da enunciação.
É necessário esclarecer, primeiramente, o que nos levou a essa escolha. Encontramos
em algumas leituras de obras de Bakhtin algumas referências ao termo translinguística que
parecem remeter ao que entendemos por enunciação. Decidimos, portanto, beber na própria
fonte, isto é, buscar nos primeiros textos produzidos pelo Círculo de Bakhtin, definições que
possam iluminar a hipótese que lançamos, a de que é possível derivar da produção do Círculo
uma teoria da enunciação.
Optamos, inicialmente, por estudar três textos da produção do Círculo: Freudismo 3, a
obra publicada em 1927, Discurso na vida e discurso na arte, publicado em 1926 e Marxismo
e Filosofia da linguagem, publicado em 1929/1930.
Dado o curto período de tempo em que os dois textos foram publicados, especialmente
os dois primeiros, acreditamos que possam ter sido discutidos paralelamente. Interessa-nos
investigar se há formulação de conceitos sobre palavra, signo, interação que possam nos
levar a derivar uma aproximação da teoria da linguagem ou da enunciação em Benveniste.
2 Com a palavra, O Freudismo
A obra Freudismo 4 foi publicada em 1927, em um contexto marcado por forte
radicalização ideológica. A União Soviética vivia um período conturbado, com censura de
ideias e obscurantismo, devido ao regime stalinista, porém de grande riqueza intelectual.
Encontra-se nessa obra crítica radical à psicanálise, principalmente pelo fato de ter
sido considerada, pelos membros do Círculo, como uma forma de sustentação da ideologia
burguesa. A crítica, contudo, não faz jus a sua principal contribuição para os estudos da
linguagem, pois no conjunto da discussão e da análise revela-se o núcleo central, a própria
medula do pensamento bakhtiniano (grifos nossos), o método dialógico.
Não pretendemos fazer uma análise da crítica freudiana presente na obra. Como dito,
partimos da hipótese de que seja possível derivar, a partir da definição de alguns termos-chave
em Bakhtin, conceitos que permitam aproximação do pensamento do Círculo com uma teoria
enunciativa ou, ao menos, com uma concepção de linguagem muito próxima das concepções
de Benveniste.
Moura-Vieira (2009) destaca a importância das discussões travadas pelo Círculo de
Bakhtin a respeito da teoria psiquiátrico-psicológica mais influente da época a qual, ainda que
aparentemente distante do campo propriamente linguístico, revela-se como absolutamente
legítima: “ao dedicar-se a realizar discussões específicas sobre as ideias de Freud e ao
escrever uma série de críticas dirigidas especialmente à sua escola psicanalítica, materializa a
importância de dialogar criticamente com as ideias do pensamento em Psicologia como um
dos pilares da teoria dialógica” (p. 54).
ora a expressão Círculo de Bakhtin, ora apenas Bakhtin, em busca da mesma solução encontrada por outros
pesquisadores. Não queremos, com isso, subestimar a produção de Bakhtin, apenas justificar o emprego da
referência que julgamos mais adequada, se respeitarmos, historicamente, o que se produziu até hoje sobre os
autores que integraram o Círculo.
3
Freudismo, conforme Moura-Vieira (2009), foi primeiramente publicado sob assinatura de Nokolaevich
Voloshinov (1895-1936) em 1925, sob forma de artigo. O segundo texto, já sob forma de livro, foi editado em
1927. Mesmo assim referir-nos-emos a Bakhtin por razões já expostas no início desse trabalho.
4
Conforme Moura-Vieira (2009), especialistas como Clark e Holquist (1998) e mesmo componentes do Círculo
de Bakhtin confirmam a participação do filósofo russo na construção dos textos sobre freudismo.
2
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No segundo capítulo de Freudismo, é feita referência às duas tendências em voga na
época, na Europa e na URSS, para o estudo da vida psíquica: a psicologia objetiva e a
psicologia subjetiva. A primeira tendência defendia a tese de que o homem só poderia
observar (nos outros homens e nos animais) as respostas do organismo estranho aos
estímulos. Nessa experiência externa não haveria desejos nem sentimentos, já que esses não
poderiam ser vistos nem ouvidos, apenas suas consequências (no organismo) seriam
observáveis. A segunda tendência analisava o homem em si mesmo, em sua experiência
interior, suas vivências emocionais, suas concepções, sentimentos, desejos. Como é possível
perceber, as duas tendências5 opunham-se, radicalmente, uma a outra.
O autor questiona sobre qual das duas experiências deveria ser a base para a psicologia
científica e, quando reflete sobre “a resposta verbalizada” parece aproximar sua reflexão sobre
a base da linguística saussuriana, a relação entre pensamento e linguagem: “nós pensamos,
sentimos e queremos com o auxílio das palavras” (2012, p. 17). Nesse ponto já é possível
estabelecer um primeiro ponto de contato com Benveniste quando este afirma que “a
linguagem serve para viver” (BENVENISTE, 1989, p. 222).
Como o marxismo e a psicologia eram as correntes da psicologia da época, é a partir
desses pontos que Bakhtin tece sua crítica. O filósofo russo defendia a tese de que a
psicologia do homem deveria ser socializada, por exemplo: as “respostas” não poderiam ser
analisadas fisiologicamente, pois “a formação das respostas verbais só é possível nas
condições do meio social” (BAKHTIN, 2012, p. 19). A grande crítica a Freud se deve ao fato
de que, na percepção de Bakhtin, o pai da psicanálise explicaria “processos essencialmente
sociais do ponto de vista da psicologia individual” (idem, p. 20). Para Bakhtin, todas as
respostas têm uma origem genuinamente social, sendo assim, as enunciações são produto da
dinâmica social do médico e do paciente.
A seguir, quando Bakhtin discorre sua reflexão sobre “id” (inconsciente, ligado ao
prazer) e “ego” (consciente, relacionado à realidade) aprofunda aspectos relevantes para
pensar a linguagem: o inconsciente é não-verbal “pode transformar-se em pré-consciente
através da união com respectivas representações verbais” (BAKHTIN, 2012, p. 45).
Mas é na terceira parte da obra, quando Bakhtin constrói a sua crítica a Freud, que
conseguimos captar algumas definições que nos parecem úteis ao estudo que intentamos.
A grande crítica feita pelo filósofo russo diz respeito à análise restrita aos enunciados
verbalizados do homem, os quais se constroem no campo consciente do psiquismo, via
introspecção. É através da introspecção que os produtos do inconsciente encontram expressão
verbalizada e, assim, em forma de motivo, o homem toma consciência deles. Mesmo que
Freud tentasse penetrar nas camadas mais profundas do psíquico, não conseguia analisar esses
enunciados em uma realidade objetiva, ou seja, a partir das raízes fisiológicas ou sociológicas,
mas buscava encontrar, nos próprios enunciados, a explicação para o comportamento humano,
“o próprio paciente deve lhe comunicar a respeito das profundezas do ‘inconsciente’”
(BAKHTIN, 2012, p. 77).
Em Freudismo, é possível resgatar a relação entre linguagem e enunciação para os
pensadores da época:
a linguagem e suas formas são produto de um longo convívio social de um
determinado grupo de linguagem. A enunciação a encontra pronta no aspecto
fundamental. Elas são o material da enunciação, o qual lhe restringe as
possibilidades. O que caracteriza precisamente uma dada enunciação – a
5
A questão da Filosofia e Psicologia objetiva e subjetiva é retomada em Marxismo e Filosofia da linguagem,
quando são discutidas as duas correntes do pensamento filosófico-linguístico da época, o objetivismo abstrato e
o subjetivismo idealista, que são negados em defesa de um outro processo, o da interação.
3
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escolha de certas palavras, certa teoria da frase, determinada entonação de
enunciação – é a expressão da relação recíproca entre os falantes e todo o
complexo ambiente social em que se desenvolve a conversa (BAKHTIN,
2012, p. 79).
A noção de linguagem para o Círculo de Bakhtin está atrelada ao que entendem como
produto da enunciação. Não veem a linguagem e suas formas apenas enquanto forma, mas
como conteúdo que, via enunciação, transforma-se. Nesse momento a enunciação parece ter
relação direta com o que os pensadores denominam de entoação, noção que é rediscutida em
textos posteriores, como Marxismo e filosofia da linguagem, Os gêneros do discurso, dentre
outros.
Parece-nos possível derivar das noções de linguagem e do conceito de palavra e
discurso em O Freudismo, a enunciação que vislumbramos possível aproximar entre Bakhtin
e Benveniste. Sobre a palavra, o filósofo da linguagem define-a como “uma espécie de
cenário daquele convívio mais íntimo em cujo processo ela nasceu, e esse convívio, por sua
vez, é um momento do convívio mais amplo do grupo social a que pertence o falante” (p. 79).
Sobre o discurso, declara: “o discurso interior é tanto produto e expressão do convívio social
quanto o discurso exterior” (p. 80).
Para Bakhtin, o conteúdo verbal expresso na fala do paciente é determinado por
fatores objetivo-sociais: “todo o verbal no comportamento do homem (assim como os
discursos interior e exterior) de maneira nenhuma pode ser creditado a um sujeito singular
tomado isoladamente, pois não pertence a ele, mas sim a seu grupo social (ao seu ambiente
social)” (BAKHTIN, 2012, p. 86). Nas enunciações verbalizadas “reflete-se não a alma
individual, mas a dinâmica social das inter-relações entre médico e paciente” (idem, p. 80).
Esse aspecto social da linguagem não coincide - e nisso reside a principal diferença
entre conceptual entre os dois grandes pensadores - como sabemos, com as concepções de
linguagem e enunciação tais como as conhecemos em Benveniste, para quem “a enunciação é
o colocar a língua em funcionamento por um ato individual de utilização” (BENVENISTE,
1989, p. 82).
No entanto, em texto anterior, quando Benveniste discute estrutura da língua e
sociedade, declara que a primeira é o interpretante da segunda e que a língua contém a
sociedade: “A sociedade torna-se significante na e pela língua, a sociedade é o interpretado
por excelência da língua” (BENVENISTE, 1989, p. 98). Ainda que a perspectiva
benvenistiana seja diferente da de Bakhtin, é no mínimo temeroso afirmar categoricamente
que Benveniste desconsidera o aspecto social da linguagem.
Bakhtin afirma não estar interessado no contexto imediato da enunciação, mas “nos
laços sociais mais amplos, longos e sólidos, em cuja dinâmica se elaboram todos os elementos
do conteúdo e as formas de nossos discurso interior e exterior, todo o acervo de avaliações,
pontos de vista, enfoque, etc., através dos quais lançamos luz, para nós mesmos e para os
outros, sobre os nossos atos, desejos, sentimentos e sensações” (2012, p. 86).
Não é possível identificar a origem da enunciação individual procurando-a definir a
partir de um indivíduo singular, pois toda e qualquer tomada de consciência de um indivíduo
é sempre verbal e, portanto, está sujeita a uma norma social. Quando um indivíduo olha para
si, o faz sempre a partir da perspectiva do outro “eu tento como que olhar para mim pelos
olhos de outra pessoa, de outro representante de meu grupo social, da minha classe”
(BAKHTIN, 2012, p. 87). A origem das enunciações verbalizadas mais íntimas decorre da
autoconsciência que, por sua vez, leva o indivíduo à consciência de sua classe, por isso é que
o filósofo russo crê que a autoconsciência manifestada verbalmente é a socialização do
indivíduo e de seu ato.
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Pelo que vimos até aqui, poderíamos inferir que enunciação, para Bakhtin é apenas
expressão verbalizada, dedução que seria um equívoco, pois ele afirma adiante que “toda
enunciação verbalizada do homem é uma pequena construção ideológica” (2012, p. 88).
E como podemos entender a que ideologia Bakhtin se refere?
Esse conceito é fundamental na teoria do Círculo de Bakhtin. A ideologia em questão
é fruto do discurso interior e exterior, a ideologia do cotidiano, a qual penetra integralmente
no nosso comportamento, em oposição a uma ideologia oficial, que corresponde à moral, ao
direito, a uma visão de mundo.
A motivação de meu ato é, em pequena escala, uma criação jurídica e moral;
uma exclamação de alegria ou tristeza é uma obra primitiva; as
considerações espontâneas sobre as causas e efeitos dos fenômenos são
embriões de conhecimento científico e filosófico etc. Os sistemas
ideológicos estáveis e enformados das ciências, das artes, do direito etc.
cresceram e se cristalizaram a partir do elemento ideológico instável, que
através de ondas vastas do discurso interior e exterior banham cada ato nosso
e cada recepção nossa. Evidentemente, a ideologia enformada exerce, por
sua vez, uma poderosa influência reflexa em todas as nossas reações
verbalizadas (BAKHTIN, 2012, p. 88).
O conceito de ideologia do cotidiano interessa a Bakhtin, pois é através dela que se
acumulam as contradições que, quando atingem certo limite, explodem no sistema de
ideologia oficial. Os conflitos psíquicos da psicanálise, a luta entre consciente e inconsciente é
explicada como conflito entre o discurso interior e exterior, muito além do aspecto
fisiológico: “não são conflitos ‘psíquicos’, mas ideológicos, razão pela qual não podem ser
entendidos nos limites estreitos de um organismo individual e de um psiquismo individual”
(2012, p. 89). Para Bakhtin, em um grupo sadio a ideologia do cotidiano é integral e forte, não
há divergência entre consciência oficial e não-oficial.
A partir das considerações de Bakhtin em Freudismo, pode-se observar que os
conceitos de palavra, enunciação e ideologia são gestados a partir de uma crítica à
psicanálise. É a partir dessa crítica, portanto, que tais conceitos precisam ser pensados. Tais
concepções são mantidas ao longo da produção teórica do Círculo? Essa é uma das tarefas
que, por ora, nos cabe. Veremos, a seguir, como esses termos aparecem (e se aparecem) em
outro texto do Círculo de Bakhtin contemporâneo ao Freudismo.
3 Em discussão Discurso na vida e discurso na arte 6
Para Bubnova, nesse texto é que surge “uma primeira versão da teoria do enunciado
(vyskazyvanie: “enunciado” e “enunciação”) produzido pelo Círculo de Bakhtin, com uma
detalhada descrição de como funciona a comunicação verbal” (2009, p. 36). Investigar
conceitos de enunciado/ enunciação em Bakhtin, não parece ser o interesse principal da
autora, que procura analisar o texto bloco a bloco, tal como ele foi publicado, diferentemente
do que faremos.
O texto, inicialmente, põe em discussão o caráter social de uma obra de arte, o que cria
a necessidade de um método sociológico para compreensão e a análise de uma obra de arte
6
Como não há tradução para esse texto (oficialmente publicada) em língua portuguesa, referimo-nos ao ano da
publicação do texto em russo, mas às páginas da tradução feita por FARACO & TEZZA, a qual circula
amplamente no meio acadêmico.
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concreta. A partir dessa perspectiva é que deriva o conceito de ideologia, tão caro aos estudos
que envolvem Bakhtin e seu Círculo.
Quando define a arte como imanamente social (grifo nosso), Bakhtin a compreende
como uma variedade do que é social, tal como a estética, o jurídico, o cognitivo. Razão pela
qual não é possível compreendê-la de outro modo que não o sociológico.
Como Bakhtin defende a análise da arte seja sob o prisma social, defende a rejeição a
dois pontos de vista que considera falaciosos: a fetichização da obra artística enquanto
artefato e o estudo restrito da psique do criador ou do contemplador (ou de ambos). O
equívoco do primeiro ponto de vista, explica-nos, é restringir a análise da obra ao seu aspecto
material, à forma; já o segundo ponto de vista igualmente é falho, pois, ao tentar encontrar o
estético na psique individual do criador ou do contemplador, acaba por isolar a parte do todo.
A arte, defende Bakhtin, é um tipo especial de comunicação, a qual possui uma forma
peculiar, por isso precisa ser analisada por um viés sociológico, o que justifica a necessidade
de “compreender esta forma especial de comunicação realizada e fixada no material de uma
obra de arte” (1926, p. 3) como uma tarefa da poética sociológica”. Bakhtin vê a obra de arte
como resultado de um processo de interação entre criador e contemplador, razão de sua
condição especial, que não permite reduzi-la apenas a um artefato físico ou a um exercício
linguístico.
Bakhtin critica os métodos que ignoram a essência social da arte e defende o
“entendimento do enunciado poético como uma forma de comunicação estética especial
verbalmente implementada” (1926, p. 4). Para isso, antes de analisar os enunciados artísticos,
analisa enunciados da vida e das ações cotidianas, porque para ele “a essência do discurso
verbal aparece aqui num relevo mais preciso e a conexão entre um enunciado e o meio social
circundante presta-se mais facilmente à análise” (1926, p. 4).
Bakhtin defende que quando aflora o discurso verbal, ele nunca é autossuficiente, isto
é, todo discurso verbal inclui a situação extra verbal em que ocorre. O contexto extra verbal é
o que Bakhtin denomina de horizonte extra espacial e ideacional. “O enunciado concreto,
sempre une os participantes da situação comum como co-participantes que conhecem,
entendem e avaliam a situação de maneira igual” (1926, p. 5).
Essa compreensão de enunciado concreto nos leva ao diálogo que tentamos
estabelecer com Benveniste. Referimo-nos em especial à noção de co-participação que, em
Beneveniste, é tida como alocução:
O locutor se apropria do aparelho formal e enuncia sua posição [...] desde
que ele se declara locutor e assume a língua, ele implanta o outro diante de
si, qualquer que seja o grau de presença que ele atribua a este outro. Toda
enunciação é, explícita ou implicitamente, uma alocução, ela postula um
alocutário (BENVENISTE, 1989, p. 84).
Em Bakhtin entendemos que cada enunciado funciona, nas relações discursivas, como
uma espécie de senha (grifo do autor) compartilhada apenas pelos sujeitos que pertencem ao
mesmo campo social. Assim sendo, os julgamentos de valor não estão no conteúdo do
discurso nem derivam dele, mas encontram expressão na entoação, essa sim responsável por
estabelecer “um elo firme entre o discurso verbal e o contexto extraverbal” (1926, p. 6). É
através da entoação – a qual é social por excelência – que o discurso entra em contato com a
vida.
Cada instância da entoação é orientada em duas direções: uma em relação ao
interlocutor como aliado ou testemunha, e outra em relação ao objeto do
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enunciado como um terceiro participante vivo, a quem a entoação repreende
ou agrada, denigre ou engrandece. Essa orientação dupla é o que determina
todos os aspectos da entoação e a torna inteligível (BAKHTIN/
VOLOSHINOV, 1926, p. 8).
Para Bakhtin, o enunciado concreto só existe no processo de interação social entre os
participantes da enunciação. É na interação social que o enunciado nasce, vice e morre. Podese, portanto, localizar nesse texto a definição da enunciação como produto da interação:
qualquer locução dita em voz alta ou escrita para uma comunicação
inteligível (isto é, qualquer uma exceto palavras depositadas num dicionário)
é a expressão e produto da interação social de três participantes: o falante
(autor), o interlocutor (leitor) e o tópico (o que ou o quem) da fala (o herói).
O discurso verbal é um evento social: ele não está autoencerrado no sentido
de alguma quantidade linguística abstrata, nem pode ser derivado
psicologicamente da consciência subjetiva do falante tomada em
isolamento... (BAKHTIN/ VOLOSHINOV, 1926, p. 9).
Bakhtin desenvolve a ideia de que as palavras são habitadas de sentido, portanto a vida
entra no discurso e lhe preenche sentidos: “o poeta seleciona as palavras não do dicionário,
mas do contexto da vida onde as palavras foram embebidas esse impregnaram de julgamentos
de valor” (1926, p. 10).
Ainda sobre a enunciação, podemos encontrar a seguinte explicação: “a enunciação
está na fronteira entre a vida e o aspecto verbal do enunciado; ela, por assim, dizer, bombeia
energia de uma situação da vida para o discurso verbal, ela dá a qualquer coisa
linguisticamente estável o seu momento histórico vivo, o seu caráter único” (1926, p. 9).
Nesse ponto também consideramos possível estabelecer um diálogo com Benveniste
quando afirma que “antes da enunciação, a língua não é senão possibilidade da língua. Depois
da enunciação, a língua é efetuada em uma instância do discurso, que emana de um locutor,
forma sonora que atinge um ouvinte e que suscita uma outra enunciação de retorno”
(BENVENISTE, 1989, p. 84).
Quando Bakhtin define o discurso verbal, emprega a metáfora do esqueleto, afirmando
que este só toma sua forma viva no processo da comunicação social, isto é, na interação, fora
da qual não se justifica. Quando trata da pessoa verbal, Bakhtin parece novamente aproximarse de Benveniste. Se Bakhtin está preocupado com a relação entre autor e herói, é porque não
compreende essa relação como algo completo, considera, inclusive, essa relação insuficiente.
Diz ele que o ouvinte é uma espécie de terceiro participante, cuja presença afeta a relação
entre herói e autor. O ouvinte, para o filósofo da linguagem, tem papel essencial, mas não
deve ser confundido como igual ao autor, deve ocupar uma posição especial “uma posição
bilateral com respeito ao autor e com respeito ao herói – e é esta posição que tem efeito
determinativo no estilo de um enunciado” (1926, p. 13).
Ainda sobre o ouvinte, Bakhtin define-o como algo que está intrínseco à obra, não
pode ser confundido com o público leitor, que está de fora, é uma espécie de representante
autorizado de uma pessoa e de seu grupo social, um participante constante na fala interior e
exterior de uma pessoa. Em geral, é o “ouvinte” o responsável pelo que chamamos de estilo
em uma obra.
O fato é que e nenhum ato consciente de algum grau de nitidez pode existir
sem a fala interior, sem palavras e entoações – sem avaliações, e,
consequentemente, todo ato consciente já é um ato social, um ato de
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comunicação. Mesmo a mais íntima autoconsciência é uma tentativa de se
traduzir no código comum, de se avaliar de outro ponto de vista, e,
consequentemente, vincula a orientação para um ouvinte possível
(BAKHTIN/ VOLOSHINOV, 1926, p. 15).
De acordo com o que vimos em “Discurso na vida e discurso na arte”, todo fator da
forma é sempre produto de uma interação social. O objetivo do texto parece ter sido
demonstrar que a forma, a estrutura da forma poética possibilita uma análise sociológica.
A partir da leitura de Discurso na vida e discurso na arte, podemos derivar os
conceitos de palavra, ideologia, enunciado, interação, todos eles inter-relacionados. Se a
palavra é habitada de sentido, é porque ela é viva, é enunciado, portanto seus sentidos
(palavra transformada em enunciado através da enunciação) decorrem dos valores que elas
produzem socialmente, no seio da sociedade na qual lutam valores contraditórios.
4 Em busca de uma enunciação em Marxismo e filosofia da linguagem
Certamente, dentre os três textos que utilizamos para este estudo, é este último que
traz elementos em maior número para a leitura que buscamos fazer em Bakhtin. Estima-se que
Marxismo e filosofia da linguagem, doravante MFL, tenha sido publicado em 1929-1930 e,
ainda que sob assinatura de Volsohinov, de acordo com Jakobson que prefacia a obra, acabouse descobrindo que a autoria era, em verdade de Bakhtin, assim como a autoria de outros
textos veiculados nessa mesma época7.
Já no primeiro capítulo de MFL, encontramos uma primeira definição de ideologia,
associada à ideia de signo: “Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo
situado fora de si mesmo [...] tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe
ideologia” (2010, p. 31).
É importante distinguir nos autores a noção de signo e signo ideológico. Signo é o
objeto natural, específico, ou um produto natural, tecnológico ou de consumo. Em Bakhtin, o
signo “não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma
outra” (2010, p. 32) realidade; isto é, os signos estão sujeitos a avaliações psicológicas:
verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, ruim, etc. “Ali onde o signo se encontra, encontrase também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico (grifo do autor)”
(2010, p. 33).
Esse texto retoma a discussão iniciada em O Freudismo a respeito da consciência,
defendendo-a como um fato sociológico:
“os signos só emergem, decididamente, do processo de interação entre uma
consciência individual e uma outra. E a própria consciência individual está
repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando se impregna
de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no
processo de interação social” (BAKHTIN, 2010, p. 34).
Bakhtin/ Volshinov afirmam que todo signo é produto de um consenso entre
indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação (grifo nosso).
Por isso, as formas do signo são determinadas pela organização dos indivíduos bem como
pelas condições em que a interação acontece (grifo nosso). Se há qualquer modificação
destas formas, ocorre uma modificação do signo. Para os autores, estudar a evolução do signo
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Novamente devemos lembrar que não ampliaremos a polêmica da autoria, já que nosso interesse não é pelo
indivíduo Mikhail Bakhtin, senão pelas ideias discutidas pelo seu Círculo nesse período histórico.
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UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751
social linguístico é umas das atribuições da ciência das ideologias, a única capaz de explicar a
passagem do ser ao signo. Para tanto, é necessário observar certo rigor metodológico, o qual
prevê três condições: “a primeira é não separar a ideologia da realidade material do signo; a
segunda é não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social e a terceira é não
dissociar a comunicação e suas formas de sua base material” (2010, p. 45). Desse modo, todo
signo ideológico e também o signo linguístico estão determinados pelo horizonte social de
uma dada época e de um dado grupo social.
Nessa obra, Bakhtin rechaça qualquer contribuição de ordem psicológica para o estudo
das ideologias (2010, p. 36), como já havia predito em o Freudismo. Para Baktin, a realidade
dos fenômenos ideológicos tem relação com os signos sociais, onde encontram razão de sua
materialidade.
O termo palavra, em MFL, é definido como fenômeno ideológico por excelência (grifo
do autor): “a realidade toda da palavra é absorvida pela sua função de signo” (2010, p. 36).
Mas a palavra é também um signo neutro, isto é, que pode preencher qualquer função
ideológica: estética, científica, moral, religiosa. Isso quer dizer que a palavra pode tanto servir
como signo interior, isto é, sem expressão externa, como material semiótico da consciência,
como também da expressão verbal externa, o que lhe dá status de material privilegiado na
comunicação da vida cotidiana:
todas as propriedades da palavra [...] sua pureza semiótica, sua neutralidade
ideológica, sua implicação na comunicação humana ordinária, sua
possibilidade de interiorização e, finalmente, sua presença obrigatória, como
fenômeno acompanhante, em todo ato consciente [...] fazem dela o objeto
fundamental do estudo das ideologias (BAKHTIN, 2012, p. 38-39).
Para Bakhtin/ Volshinov, o fato de o signo ser determinado socialmente faz com que
ele se torne “a arena onde se desenvolve a luta de classes” (2010, p. 47). A metáfora da arena
é interessante ao passo que ilustra as diferentes possibilidades de significação sígnica, isto é,
ao mesmo tempo em que um signo pode significar um elogio, pode revelar-se uma crítica,
pode significar uma verdade ou uma mentira. Todo signo reflete e também refrata a realidade.
Quando os autores discutem a palavra expressa por um indivíduo, entendem-na como
signo ideológico, ou seja, quando a palavra é enunciada, “apresenta-se como uma arena em
miniatura onde se cruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória [...] como
produto da interação viva das forças sociais” (BAKHTIN, 2010, p. 67).
Há, em MFL, recorrentes referências à enunciação. Cabe-nos retomar a noção que nos
parece mais completa, a da enunciação viva. Bakhtin/ Volshinov insistem na necessidade “de
uma abordagem da enunciação em si” (2010, p. 129), que consideravam como uma ausência
nos estudos linguísticos da época. A enunciação, para eles, só pode ser realizada na
comunicação verbal, pois supõe a interação verbal: “a enunciação realizada é como uma ilha
emergindo de um oceano sem limites, o discurso interior. As dimensões e a forma dessa ilha
são determinadas pela situação de enunciação e por seu auditório” (idem, p. 129).
Essa noção de enunciação como processo de interação está presente, mais uma vez,
em Benveniste, quando afirma que “a enunciação é a acentuação da relação discursiva com o
parceiro, seja este real ou imaginado, individual ou coletivo” (BENVENISTE, 1989, p. 87).
5 Considerações finais
O presente estudo, que ainda não foi concluído, teve por objetivo dar início ao resgate
de algumas definições para os termos palavra, ideologia, diálogo, signo, enunciação em três
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obras de autoria atribuída ao Círculo de Bakhtin e ao próprio Bakhtin, com a finalidade de
investigar, a partir dessas definições uma possível relação com a teoria da linguagem/
enunciação em Émile Benveniste. Trata-se de um trabalho metódico, que carece de maior
aprofundamento, razão pela qual justificamos alguma leitura que, por enquanto, possa ser
incompleta ou até mesmo equivocada.
Encontramos algumas dificuldades nesse processo de investigação, sendo a principal a
relação imbricada entre as definições dos termos pesquisados nos diferentes textos em análise.
Pelo que vimos até agora, parece possível um diálogo mais estreito entre as reflexões dos
pensadores do Círculo e Émile Benveniste. Por enquanto, temos ciência da necessidade de
uma investigação que possa apurar e profundar ainda mais essas discussões, mapeando com
rigor metodológico a ocorrência dos termos que queremos aproximar na produção
bibliográfica dos autores em questão. Esse é o compromisso que assumimos.
Referências:
BAKHTIN, Mikhail M. O freudismo: um esboço crítico. São Paulo: Perspectiva, 2012.
_____. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010.
BENVENISTE, E. O aparelho formal da enunciação. In: Problemas de linguística geral
II. Campinas: Pontes, 1989, p. 81-90.
_____. Estrutura e análises. In: Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 1989, p.
91-104.
BUBNOVA, T.V. A palavra na vida e a palavra na poesia. Tradução de Fernando Légon e
Diana A. Pereira. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin e o Círculo. São Paulo: Contexto, 2009.
MOURA-VIEIRA, M.O freudismo: uma crítica à ideologia psiquiátrico-psicanalítica. In:
BRAIT, B. (Org). Bakhtin e o Círculo. São Paulo: Contexto, 2009.
VOLOSHINOV, V.N./M.M.BAKHTIN. Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética
sociológica). Tradução de Carlos Alberto Faraco & Cristóvão Tezza. Circulação restrita.
[1926] Disponível em: <http://ebookbrowse.com/artigo-volosh-bakhtin-discurso-vida-artepdf-d92482784>. Acessado em agosto de 2012.
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1 ENUNCIAÇÃO EM BAKHTIN Patrícia da Silva VALÉRIO RESUMO