Coleção CONPEDI/UNICURITIBA
Vol. 13
Organizadores
Prof. Dr. Orides Mezzaroba
Prof. Dr. Raymundo Juliano Rego Feitosa
Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira
Profª. Drª. Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr
Coordenadores
Profª. Drª. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches
Prof. Dr. Carlos André Birnfeld
Prof. Dr. Luiz Ernani Bonesso de Araujo
DIREITO E SUSTENTABILIDADE
2014
2014
Curitiba
Curitiba
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
D597
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Direito e sustentabilidade
Coleção Conpedi/Unicuritiba.
Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano
Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira
/ Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.
Coordenadores : Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini
Sanches / Carlos André Birnfeld / Luiz Ernani Bonesso
de Araujo.
Título independente - Curitiba - PR . : vol.13 - 1ª ed.
Clássica Editora, 2014.
573p. :
ISBN 978-85-8433-001-0
1. Direito. 2. Sustentabilidade - pluridimensionalidade.
I. Título.
CDD 342.
EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Allessandra Neves Ferreira
Alexandre Walmott Borges
Daniel Ferreira
Elizabeth Accioly
Everton Gonçalves
Fernando Knoerr
Francisco Cardozo de Oliveira
Francisval Mendes
Ilton Garcia da Costa
Ivan Motta
Ivo Dantas
Jonathan Barros Vita
José Edmilson Lima
Juliana Cristina Busnardo de Araujo
Lafayete Pozzoli
Leonardo Rabelo
Lívia Gaigher Bósio Campello
Lucimeiry Galvão
Equipe Editorial
Editora Responsável: Verônica Gottgtroy
Capa: Editora Clássica
Luiz Eduardo Gunther
Luisa Moura
Mara Darcanchy
Massako Shirai
Mateus Eduardo Nunes Bertoncini
Nilson Araújo de Souza
Norma Padilha
Paulo Ricardo Opuszka
Roberto Genofre
Salim Reis
Valesca Raizer Borges Moschen
Vanessa Caporlingua
Viviane Coelho de Séllos-Knoerr
Vladmir Silveira
Wagner Ginotti
Wagner Menezes
Willians Franklin Lira dos Santos
XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBA
Centro Universitário Curitiba / Curitiba – PR
MEMBROS DA DIRETORIA
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente
Cesar Augusto de Castro Fiuza
Vice-Presidente
Aires José Rover
Secretário Executivo
Gina Vidal Marcílio Pompeu
Secretário-Adjunto
Conselho Fiscal
Valesca Borges Raizer Moschen
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
João Marcelo Assafim
Antonio Carlos Diniz Murta (suplente)
Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)
Representante Discente
Ilton Norberto Robl Filho (titular)
Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)
Colaboradores
Elisangela Pruencio
Graduanda em Administração - Faculdade Decisão
Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira
Graduada em Administração - UFSC
Rafaela Goulart de Andrade
Graduanda em Ciências da Computação – UFSC
Diagramador
Marcus Souza Rodrigues
Sumário
APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................
14
A (IN)APLICABILIDADE DO ESTATUTO DOS REFUGIADOS PARA OS DESLOCADOS AMBIENTAIS
(Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza) ................................................................................................
25
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
26
QUEM É REFUGIADO? ..............................................................................................................................
29
OS DESLOCADOS AMBIENTAIS ................................................................................................................
34
O SISTEMA GLOBAL DE PROTEÇÃO DOS REFUGIADOS E OS DESLOCADOS AMBIENTAIS ..................
37
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
41
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
42
A APLICAÇAO DO PRINCÍPIO DA INTEGRAÇAO AMBIENTAL NAS POLÍTICAS SETORIAIS EUROPEIAS
(Jamile Bergamaschine Mata Diz e Rayelle Campos Caldas Goulart) .........................................................
46
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
47
GÊNESE E DESENVOLVIMENTO DA PROTEÇÃO AMBIENTAL NA COMUNIDADE EUROPEIA ...............
49
TRANSVERSALIDADE DAS QUESTÕES AMBIENTAIS NAS POLÍTICAS SETORIAIS DA UNIÃO EUROPEIA
57
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
70
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
73
A DEFESA DE UM CONSUMO ÉTICO COMO PRESSUPOSTO PARA A CONSOLIDAÇÃO DO PRINCÍPIO
DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL (Adriana da Veiga Ladeira e Maristela Aparecida de Oliveira
Valadão) ......................................................................................................................................................
76
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
77
APONTAMENTOS SOBRE O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO PRINCÍPIO ÉTICO ................
78
A TRAJETÓRIA DA PRODUÇÃO PARA O CONSUMO E SUAS IMPLICAÇÕES AMBIENTAIS ...................
82
PÓS-MODERNIDADE: A CONSTRUÇÃO DE UM HOMEM VAZIO ............................................................
89
CONCLUSÕES ............................................................................................................................................
92
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
93
A FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO E O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA DIANTE DOS LIMITES DO
PLANETA: A ALTERAÇÃO DAS GRAMÁTICAS DE PRÁTICAS SOCIAIS PARA UMA EDUCAÇÃO
SÓCIO-AMBIENTAL COMPROMETIDA COM A EMANCIPAÇÃO EM UMA SOCIEDADE RESILIENTE
(Abraão Soares Dias Dos Santos Gracco e Gianno Lopes Nepomuceno) ....................................................
95
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
96
O CONTROLE SOCIAL E A MEDIAÇÃO DAS VARIADAS FORMAS DE VIOLÊNCIA SINDICÁVEIS EM
RELAÇÃO À SUSTENTABILIDADE ..............................................................................................................
98
AS DIMENSÕES COMPARTILHADAS DA NOÇÃO SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL COMO DESAFIO
CONTEMPORÂNEO PARA CADA AFETADO .............................................................................................
105
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
108
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
109
A INFLUÊNCIA DA DENSIDADE POPULACIONAL NO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL (Isabel
Nader Rodrigues e Pavlova Perizzollo Leonardelli) .....................................................................................
112
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
112
ENTENDIMENTO SOBRE O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ..........................................................
113
A RELAÇÃO ENTRE O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A POPULAÇÃO .......................................
123
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
128
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
129
A PRECEDENCIA DOS DIREITOS HUMANOS SOBRE DIREITOS PATRIMONIAIS DO ESTADO QUANDO DO
ESTUDO DAS TERRAS DEVOLUTAS (Cristiano Tolentino Pires) ...................................................................
132
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
134
EVOLUÇÕES SOBRE A PROPRIEDADE ESTATAL EXERCIDA SOBRE AS TERRAS DEVOLUTAS ................
135
PANORAMA GERAL DAS TERRAS DEVOLUTAS EM MINAS GERAIS .......................................................
143
O REGIME JURÍDICO DOS BENS PÚBLICOS BASEADO EM FINS PÚBLICOS ..........................................
147
A DESAFETAÇÃO EM CONTRAPONTO À VERTENTE PATRIMONIAL DE TITULARIDADE DO BEM
PÚBLICO QUE GERA ESPECULAÇÃO ........................................................................................................
152
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
155
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
157
A REALIDADE DOS CATADORES DE RESÍDUOS SÓLIDOS REUTILIZÁVEIS, REFLETIDA NA
FORMAÇÃO DE UMA NOVA IDENTIDADE SOCIAL ESTIGMATIZADA (Luiz Fernando Kazmierczak e
Lucyellen Roberta Dias Garcia) ...................................................................................................................
161
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
162
O CATADOR DE RESÍDUOS SÓLIDOS RECICLÁVEIS E SUA IMPORTÂNCIA NO CONTEXTO DA
PROBLEMÁTICA SOCIOAMBIENTAL .........................................................................................................
165
ESTIGMATIZAÇÃO SOCIAL DA FUNÇÃO DE CATADOR ...........................................................................
175
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
181
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
182
A SOCIEDADE DE RISCO E A NECESSIDADE DE REDISTRIBUIÇÃO DOS ÔNUS AMBIENTAIS SOB O
ASPECTO DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO E DO MÍNIMO ECOLÓGICO-SUSTENTÁVEL (Pedro
Miron de Vasconcelos Dias Neto e Emmanuel Teófilo Furtado) .................................................................
184
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
158
A SOCIEDADE PÓS-MODERNA: SOCIEDADE DE RISCO .........................................................................
186
O DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE E O MÍNIMO ECOLÓGICO-SUSTENTÁVEL .............
191
A SOCIEDADE DE RISCO E A NECESSIDADE DE REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS AMBIENTAL SOB O
ASPECTO DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO ......................................................................................
195
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
202
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
203
AÇÃO CIVIL PÚBLICA E SUSTENTABILIDADE (Felipe Laurini Tonetti) ....................................................
209
AÇÃO CIVIL PÚBLICA E SEU CAMPO DE ATUAÇÃO ................................................................................
210
NATUREZA JURÍDICA DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA ......................................................................................
212
CONDIÇÕES PARA O EXERCÍCIO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA ....................................................................
215
INQUERITO CIVIL ......................................................................................................................................
221
TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA ................................................................................................
227
AÇÃO CIVIL PÚBLICA E SUSTENTABILIDADE ...........................................................................................
229
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
231
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
232
AS MULHERES DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS NA PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL (Fábio Rezende Braga e Márcia Rodrigues Bertoldi) .........................................................
234
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
235
DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE ................................................................................................
239
COMUNIDADES TRADICIONAIS E SUSTENTABILIDADE: UMA POSSÍVEL ALTERNATIVA .....................
241
O ECOFEMINISMO E A MULHER TRADICIONAL COMO VETOR NA PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ..............................................................................................................................
243
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
255
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
258
CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO E APLICAÇÃO DO PROTOCOLO DE NAGOYA NOS
ESTADOS PLURINACIONAIS LATINOAMERICANOS DO SÉCULO XXI (Miguel Etinger de Araujo Junior)
261
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
262
PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO GENÉTICO E DO CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO ............
264
ESTADOS PLURINACIOANAIS ...................................................................................................................
272
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
278
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
280
DIREITO E DESENVOLVIMENTO NO MEIO RURAL: AGROECOLOGIA COMO PARADIGMA DA
SUSTENTABILIDADE (Iranice Gonçalves Muniz) .......................................................................................
283
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
284
UM NOVO SENTIDO AO DIREITO DE PROPRIEDADE NOS ASSENTAMENTOS DA REFORMA AGRÁRIA
285
ASSOCIAÇÃO CAMPONESA COMO META PARA ENFRENTAR OS DESAFIOS SÓCIO/ECONÔMICO NO
MEIO RURAL ..............................................................................................................................................
287
ASSENTAMENTOS RURAIS: MEIO AMBIENTE, CONSTITUIÇÃO DE 1988 E TEXTOS INTERNACIONAIS,
NA PERSPECTIVA DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ....................................................................
290
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
296
REFERENCIA ..............................................................................................................................................
297
DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUSTENTABILIDADE: DIREITO À SAÚDE E A QUESTÃO DA QUALIDADE
DA ÁGUA PARA CONSUMO HUMANO (Marcos Leite Garcia) ................................................................
299
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
299
A SAÚDE COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL ......................................................................................
300
DIREITO À ÁGUA COMO DIREITO FUNDAMENTAL ................................................................................
307
REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO DA SUSTENTABILIDADE A PARTIR DAS PROPOSTAS DE NICHOLAS
GEORGESCU-ROEGEN ..............................................................................................................................
314
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
323
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
324
GREENWASHING E A PUBLICIDADE ENGANOSA: A ATUAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE AUTORREGULAMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA (CONAR) (Maitê Cecilia Fabbri Moro e Vanessa Toqueiro Ripari) ................
327
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
329
O NOVO PAPEL DA EMPRESA ...................................................................................................................
331
GREENWASHING .......................................................................................................................................
334
ATUAÇÃO DO CONAR ...............................................................................................................................
336
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
340
BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................
341
O ATIVISMO JUDICIAL COMO FERRAMENTA DE IMPLEMENTAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SUSTENTABILIDADE (Luciana Costa Poli e Bruno Ferraz Hazan) ...............................................................................
343
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
344
ATIVISMO JUDICIAL E CLÁUSULAS GERAIS ............................................................................................
345
A COMPATIBILIDADE DO ATIVISMO JUDICIAL NA ESTRUTURA DO PODER JUDICIÁRIO NO
CONTEXTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO .............................................................................
349
SUSTENTABILIDADE: NOÇÕES GERAIS ....................................................................................................
357
SUSTENTABILIDADE E ATIVISMO JUDICIAL: A SUSTENTABILIDADE COMO PRINCÍPIO SISTÊMICO
ORIENTADOR DAS DECISÕES JUDICIAIS .................................................................................................
356
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
363
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
364
O CAPITALISMO GLOBAL E REFLEXÕES SOBRE A SOLIDARIEDADE (Pellin e Daniela) ........................
368
O CAPITALISMO E AS NOVAS TECNOLOGIAS .........................................................................................
370
REFLEXÕES SOBRE A SOLIDARIEDADE ...................................................................................................
388
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
395
BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................
399
O VALOR CONSTITUCIONAL DA SUSTENTABILIDADE COM SUA PLURIDIMENSIONALIDADE:
ÉTICA, SOCIAL, ECONÔMICA, JURÍDICOPOLÍTICO E AMBIENTAL (Elizangela Pieta Ronconi) ...............
401
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
402
O VALOR CONTITUCIONAL DA SUSTETABILIDADE .................................................................................
403
A PLURIDIMENSIONALIDADE DA SUSTENTABILIDADE ..........................................................................
406
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
412
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
414
O PROCESSO DE CERTIFICAÇÃO DO ETANOL BRASILEIRO DE ACORDO COM O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E SUAS REPERCUSSÕES (Hellen Priscilla Marinho
Cavalcante e Yanko Marcius de Alencar Xavier) .........................................................................................
417
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
418
A FORMAÇÃO DO CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL .................................................
419
SISTEMA DE CERTIFICAÇÃO AMBIENTAL DO ETANOL BRASILEIRO .....................................................
424
A ADOÇÃO DOS CERTIFICADOS DE SUSTENTABILIDADE E SUAS CONSEQUÊNCIAS ...........................
432
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
435
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
436
REPENSAR DA ATUAL VISÃO DO MERCADO E A IMPORTÂNCIA DO SER HUMANO (Cristiana Eugenia
Nese) ..........................................................................................................................................................
441
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
442
DIREITOS HUMANOS E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ...............................................................
442
“COISIFICAÇÃO” DO SER HUMANO DIANTE DO CAPITALISMO ............................................................
446
UMA NOVA LEITURA DO CAPITALISMO PELA ÓTICA HUMANISTA .......................................................
453
O DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE: A TEORIA DE AMARTYA SEN ............................................
455
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
458
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
459
SUSTENTABILIDADE INFORMACIONAL AMBIENTAL: TECNOLOGIAS EM REDE PARA CONSTRUÇÃO
DA CIDADANIA ECOLÓGICA (Jerônimo Siqueira Tybusch e Francielle Benini Agne Tybusch) .................
461
ASPECTOS INTRODUTÓRIOS ....................................................................................................................
462
A QUESTÃO ECOLÓGICA ...........................................................................................................................
463
MOVIMENTOS AMBIENTALISTAS: A REDESCOBERTA DA NATUREZA ...................................................
466
ATIVISMO AMBIENTAL DIGITAL EM BUSCA DA CIDADANIA ECOLÓGICA ............................................
473
DIGRESSÕES FINAIS ..................................................................................................................................
478
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
480
O PRINCÍPIO DA SUSTENTABILIDADE E O TERCEIRO SETOR: UMA RELAÇÃO NECESSÁRIA PARA
CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE LIVRE, JUSTA E SOLIDÁRIA (Patrícia Siqueira) ..........................
485
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
486
OS OBJETIVOS FUNDAMENTAIS DA REPÚBLICA ENQUANTO PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS .........
487
CONTORNOS PARA CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE LIVRE, JUSTA E SOLIDÁRIA .........................
488
A SUSTENTABILIDADE SOB A ÓTICA PRINCIPIOLÓGICA ........................................................................
490
TERCEIRO SETOR ......................................................................................................................................
495
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
499
REFERENCIAS ............................................................................................................................................
499
O CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA UMA ADMINISTRAÇÃO
EFICIENTE DA JUSTIÇA (Sérgio Braga e Samantha Ribeiro Meyer-Pflug) ................................................
502
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
503
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA .........................................................................................................
504
O CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA E A CRISE DO PODER JUDICIÁRIO ............................................
513
O PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA E A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA ..........................................................
515
CAMINHOS PARA A CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA NA ADMINISTRAÇÃO DA
JUSTIÇA ......................................................................................................................................................
517
CONCLUSÕES ............................................................................................................................................
524
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
525
SUSTENTABILIDADE: REVISITANDO CONCEITOS SOB NOVOS PARADIGMAS PARA ALCANÇAR
SUA REAL IMPORTÂNCIA (Ronaldo Felipe Rolim Nogueira) ...................................................................
530
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................
531
A ORIGEM DO TERMO SUSTENTABILIDADE ...........................................................................................
532
AS NOÇÕES FRACA E FORTE DA SUSTENTABILIDADE ............................................................................
533
NOVE FORMAS PARA ALCANÇAR A SUSTENTABILIDADE ......................................................................
535
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: UM PRINCÍPIO? ...........................................................................
539
CONCLUSÕES ............................................................................................................................................
542
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
544
VALORAÇÃO ECONÔMICA NO DIREITO AMBIENTAL: MÉTODOS PARA VALORAÇÃO DE DANOS
AO MEIO AMBIENTE (Custódio, Maraluce Maria e Ramos, Levy Christiano Dias) ....................................
546
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
546
BREVE HISTÓRICO DO SURGIMENTO DO DIREITO AMBIENTAL ...........................................................
548
DA VALORAÇÃO ECONÔMICA DE DANOS AMBIENTAIS ........................................................................
557
CONSIDERAÇÕES FINAIS: A RELAÇÃO DIREITO E ECONOMIA NA VALORAÇÃO DE DANOS AMBIENTAIS
568
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
570
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Caríssimo(a) Associado(a),
Apresento o livro do Grupo de Trabalho Direito e Sustentabilidade, do XXII Encontro
Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI),
realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias 29 de maio e 1º
de junho de 2013.
O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente
de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos
da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma
reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito,
nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela
tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do
processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos
parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN
do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da
Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro
Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas.
Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos,
tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da
produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no
âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a
mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não
apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as
especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos.
Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a
enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2)
aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a
todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiramnos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores
11
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido
mais difícil.
Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada
em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para
seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e
que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto
para eventos.
O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso
comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de
2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão
sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que
inserirem seus dados.
Futuramente, o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os
programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor
fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço
no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –,
mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da
segunda versão, disponível em 2014.
Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de
programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará
importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05,
além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as
dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do
Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube
conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de
elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será
fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07.
12
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III
Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o
estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores
do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo
livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras
parcerias e editais para a área do Direito.
Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de
Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do
UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.
Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que
agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada
logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.
Curitiba, inverno de 2013.
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente do CONPEDI
13
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Apresentação
A presente obra, que enfeixa um rico conjunto de artigos rigorosamente selecionados
para apresentação no grupo de trabalho homônimo no XXII CONPEDI destaca-se, além da
profundidade das pesquisas que sintetizam, pela diversidade de matizes que permearam a
abordagem da questão da sustentabilidade.
Nesta perspectiva, em que pese o alto grau de transversalidade dos artigos, o que é
inevitável na temática da sustentabilidade, foi possível organizar a presente obra a partir de
distintos, mas complementares, grupos de abordagens, de sorte que o primeiro grupo abrange
cinco artigos focados, direta ou indiretamente, na abordagem principiológica e conceitual da
própria sustentabilidade.
Os cinco artigos seguintes envolvem as interações da sustentabilidade com o que se
poderia denominar pilar da comunidade (tomando
aqui emprestadas as lições de de
Boaventura de Souza Santos), destacando-se, dentre os artigos, tanto abordagens teóricas
gerais envolvendo emancipação e cidadania como desdobramentos da questão em realidades
sociais específicas de distintos agrupamentos sociais.
A seguir, apresenta-se um grupo de quatro artigos que abrangem as interações da
sustentabilidade com o que se poderia denominar pilar do mercado (tomando de novo
emprestadas, no mesmo sentido, as lições do mestre lusitano), envolvendo, entre outras, tanto
abordagens conceituais da própria economia ecológica como abordagens críticas da sociedade
de mercado contemporânea.
Completando o conjunto de ilações com os pilares referidos por Boaventura de Souza
Santos, o terceiro grupo de artigos opera na confluência da questão da sustentabilidade com o
pilar do Estado, mais precisamente em temáticas relacionadas a atuação do Poder Judiciário,
iniciando com a questão do ativismo judicial, passando pelas potencialidades da Ação Civil
Pública e culminando com as questões relacionadas ao Conselho Nacional de Justiça.
A obra prossegue com outro grupo de três artigos, que procuram relacionar a questão da
sustentabilidade com os direitos fundamentais, notadamente com o direito à saúde, ao acesso à
terra e o direito ao meio ambiente do trabalho.
14
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
O último dos grupos enfeixa quatro artigos e abrange as questões da sustentabilidade
projetadas no plano internacional, envolvendo desde a crítica do capitalismo global e das
políticas internacionais até a análise tópica de questões normativas específicas.
Nesta perspectiva, passa-se ao breve detalhamento dos artigos que compõem a presente
coletânea:
passando para as suas concepções fraca e forte, buscando investigar qual o uso que
determinadas classes da sociedade fazem de ambas as concepções. Esse debate tem como
elemento central os recursos naturais e a sua relação com as necessidades humanas econômicas
e sociais. O artigo ainda enfrenta a questão se pode o desenvolvimento sustentável ser
considerado um princípio e conclui apresentando a perspectiva da valorização de foros de
consenso, os quais os cidadãos legítimos se reuniriam na busca de um Estado de Direito
Ambiental.
Elizangela Pieta Ronconi, da UNIVALI, no artigo O VALOR CONSTITUCIONAL
DA SUSTENTABILIDADE COM SUA PLURIDIMENSIONALIDADE: ÉTICA, SOCIAL,
ECONÔMICA, JURÍDICO- POLÍTICO E AMBIENTAL busca identificar a sustentabilidade
como princípio constitucional, inserido na Constituição Federal de 1988, assegurando os
direitos relacionados ao meio ambiente como garantia do bem-estar das presentes e futuras
gerações. O contexto pluridimensional da sustentabilidade é estudado a partir de cinco
abordagens: sustentabilidade na dimensão ética, sustentabilidade na dimensão social,
sustentabilidade na dimensão econômica, sustentabilidade na dimensão jurídico-político e
sustentabilidade na dimensão ambiental.
Uma forte crítica ao atual modelo de consumo é o que nos apresenta Adriana da Veiga
Ladeira e Maristela Aparecida de Oliveira Valadão, da Escola Superior Dom Helder Câmara,
em seu artigo A DEFESA DE UM CONSUMO ÉTICO COMO PRESSUPOSTO PARA A
CONSOLIDAÇÃO DO PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ao
apontarem para o agravamento das condições do meio ambiente em decorrência do
esgotamento dos recursos naturais e de sua utilização como depósito de resíduos. Nesta
15
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
perspectiva, entendem que a tecnologia agregada ao sistema capitalista ensejou um incremento
na produção e a necessidade do aumento de circulação e venda dos novos produtos, o que
desaguou em um modelo de consumo na sociedade, no qual as pessoas são instigadas a
consumir cada vez mais, o que significa ir contra a possibilidade de se ter um desenvolvimento
sustentável. Nesse sentido propõem uma nova ética voltada para a coletividade, uma ética
ambiental que combine o funcionamento da economia e o meio ambiente para a promoção e
construção de um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, pressuposto essencial
para a existência humana, com dignidade, na Terra.
Hellen Priscilla Marinho Cavalcante e Yanko Marcius de Alencar, da UFRN, no artigo
O PROCESSO DE CERTIFICAÇÃO DO ETANOL BRASILEIRO DE ACORDO COM O
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E SUAS
REPERCUSSÕES buscam demonstrar a importância de certificações sustentáveis na indústria
do etanol, de acordo com o princípio do desenvolvimento sustentável, explicando acerca da
evolução do seu conceito, da sua regulação nas leis brasileiras e da prioridade de um equilíbrio
entre as atividades econômicas e o mencionado princípio. O estudo abrange também os
critérios utilizados para estabelecer os padrões de certificação e seus atores participantes, em
conjunto com um estudo das iniciativas já existentes, enfatizando as repercussões no comércio
internacional da adoção de um plano de certificação para o etanol no Brasil.
SOCIEDADE
temática da sustentabilidade como
princípio normativo de aplicabilidade em várias searas da ordem constitucional, destacando sua
condição de pilar da ordem econômica social para a construção de um Estado Constitucional
Solidário, tendo por foco especial os fatores social, econômico e ambiental da atuação das
organizações de Terceiro Setor. A pesquisa procura demonstrar que o desenvolvimento do
princípio da sustentabilidade em seus aspectos multidimensionais associado a atuação do
Terceiro Setor possibilitam a recondução aos objetivos fundamentais da República, para
promoção de uma sociedade solidária, emancipada e justa.
16
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Jerônimo Siqueira Tybusch e Francielle Benini Agne Tybusch, da UFSM, em seu
artigo SUSTENTABILIDADE INFORMACIONAL AMBIENTAL: TECNOLOGIAS EM
REDE PARA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA ECOLÓGICA buscam analisar a crise
ambiental com propósito de realizar uma reflexão acerca das temáticas do ativismo ambiental
digital e meio ambiente, demonstrando a importância da sustentabilidade informacional
ambiental como um mecanismo de fortalecimento no processo participativo, bem como um
instrumento imprescindível para a politização das novas tecnologias no cenário brasileiro. Esta
pesquisa indica, outrossim, que para que a informação realmente tenha efetividade é necessário
que se salve também a própria técnica e a tecnologia para amparar a natureza e o homem e, por
consequência a sustentabilidade em todos os seus níveis.
Partindo do pressuposto que os limites do planeta sem uma gestão consciente e um
compartilhamento racional de seus riscos poderá ampliar os padrões de todas as espécies de
violência, Abraão Soares Dias Dos Santos Gracco e Gianno Lopes Nepomuceno, da Escola
Superior Dom Helder Câmara, em seu artigo intitulado A FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO E O
FENÔMENO DA VIOLÊNCIA DIANTE DOS LIMITES DO PLANETA: A ALTERAÇÃO
DAS GRAMÁTICAS DE PRÁTICAS SOCIAIS PARA UMA EDUCAÇÃO SÓCIOAMBIENTAL COMPROMETIDA COM A EMANCIPAÇÃO EM UMA SOCIEDADE
RESILIENTE se voltam para o processo educacional, onde propõem que através de um
método compreensivo, se faça uma reflexão das recorrentes categorias de violência a partir de
um processo de aprendizado sincrônico e não mais diacrônico, a respeito da necessidade de
novos padrões eticizantes de produção e consumo. Desse modo, concebe-se uma moral e uma
ética pós-tradicional, sob uma base principiológica de interpretação do ordenamento jurídico
que entrelaça, sem preponderância a priori, o direito posto (positivismo) e a leitura moral
metafísica (direito natural). Para tanto, é necessário manter-se a tensão permanente entre os
limites do planeta e a necessidade de desenvolvimento econômico para ensejar um processo
pedagogicamente aberto de formas inteligentes, autônomas e resilientes de vida que inspiram a
principiologia do ordenamento jurídico.
O catador de resíduos sólidos reutilizáveis, ao mesmo tempo em que se revela como
agente co-responsável pela sustentabilidade e preservação dos recursos naturais, mostra sua
condição de vulnerabilidade, de ser um excluído social, por exercer uma atividade que, em
17
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
razão das condições em que é realizada, apresenta-se desumana, exaustiva e opressora. Assim,
na análise de Luiz Fernando Kasmierczak e Lucyellen Roberta Dias Garcia, da UENP, no
artigo A REALIDADE DOS CATADORES DE RESÍDUOS SÓLIDOS REUTILIZÁVEIS,
REFLETIDA
NA
FORMAÇÃO
DE
UMA
NOVA
IDENTIDADE
SOCIAL
ESTIGMATIZADA, a inexistência de um suporte técnico eficiente para o redirecionamento
adequado dos resíduos sólidos através de políticas públicas de saneamento, faz com que haja
transferência de tal responsabilidade para os catadores de materiais recicláveis, o que além de
favorecer o progresso econômico do setor privado, torna-os marginalizados e excluídos da
sociedade.
Fábio Rezende Braga e Marcia Rodrigues Bertoldi, da UNIT, no artigo intitulado AS
MULHERES
DAS
COMUNIDADES
TRADICIONAIS
NA
PROMOÇÃO
DO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, partindo do referencial do ecofeminismo e
utilizam-se da pesquisa bibliográfica e documental para identificar o papel da mulher
pertencente a comunidades tradicionais no desenvolvimento de práticas sustentáveis que
fomentam a continuidade cultural e a promoção do desenvolvimento sustentável.
No
artigo
DIREITO
E
DESENVOLVIMENTO
NO
MEIO
RURAL:
AGROECOLOGIA COMO PARADIGMA DA SUSTENTABILIDADE, a autora Iranice
Gonçalves Muniz, do Centro Universitário de João Pessoa apresenta a pesquisa que
desenvolveu junto aos camponeses associados à Ecovárzea (Associação dos agricultores e
Agricultoras da Várzea Paraibana), no Município de Sapé, situado no Estado da Paraíba,
objetivando analisar as mudanças ocorridas na agricultura familiar dos assentamentos rurais
que utilizam a produção agroecológica na Zona da Mata paraibana e verificar em que
proporções essas mudanças têm contribuído para redefinir as relações entre os camponeses, a
produção agrícola e o meio ambiente. A autora identificou uma mudança tanto no discurso
como na pratica desse grupo de camponeses que respeita o princípio constitucional da função
social da propriedade, estabelecido na da Constituição de 1988, no artigo 170 inciso III.
18
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
e procedimentos mais recorrentes na literatura acerca
sados.
Cristiana Eugenia Nese, da UNINOVE, em seu artigo REPENSAR DA ATUAL
VISÃO DO MERCADO E A IMPORTÂNCIA DO SER HUMANO, tendo por foco o
princípio da dignidade da pessoa humana como núcleo central da Constituição da República
Federativa do Brasil, procura repensar a atividade econômica capitalista, propondo uma nova
leitura do liberalismo econômico, onde busca um capitalismo mais ético, humano e solidário a
partir das
teorias de Amartya Sen e sua perspectiva da liberdade como forma de
desenvolvimento.
Isabel Nader Rodrigues e Pavlova Perizzollo Leonardelli, da UCS, em seu artigo
intitulado
A
INFLUÊNCIA
DA
DENSIDADE
POPULACIONAL
NO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL nos trazem uma instigante análise sobre a relação
entre os recursos disponíveis e população. Para eles, a necessidade crescente de suprir a
demanda por recursos, sem a finitude do planeta, leva a uma análise do desenvolvimento
sustentável. Inicialmente referida com o termo ecodesenvolvimento, a problemática
demográfica sempre foi uma constante para ambientalistas, já que os dados sobre crescimento
populacional, seja ou não vista por meio de progressões geométrica ou aritmética, comprovam
que há discrepância entre o aumento populacional e a produção de recursos, principalmente de
alimentos. A possibilidade de enfrentamento dessa questão, no entendimento dos autores,
passa necessariamente por um enfoque que leve em conta a observação e prática do
desenvolvimento sustentável.
No artigo GREENWASHING E A PUBLICIDADE ENGANOSA: A ATUAÇÃO DO
CONSELHO NACIONAL DE AUTORREGULAMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA (CONAR)
as autoras Maitê Cecilia Fabbri Moro e Vanessa Toqueiro Ripari, da UNINOVE, considerando
“
k
”
mou-se em algo desejável e almejado pelas
empresas, as quais encontraram nessa nova modalidade uma forma de ampliar e fidelizar sua
clientela, buscam refletir sobre como as empresas, mediante sua comunicação com o público,
19
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
propagam a imagem de sustentabilidade e de responsabilidade social. Em especial, e a partir da
avaliação da atuação do CONAR, verificam como no Brasil tem sido combatido o mal uso
desse marketing verde pelas empresas visando a sua autopromoção.
Luciana Costa Poli e Bruno Ferraz Hazan, da Escola Superior Dom Helder
Câmara/MG, no artigo
examinam a atuação do Poder Judiciário, mais precisamente o
fenômeno do ativismo judicial no contexto do Estado Democrático de Direito no artigo: O
ATIVISMO JUDICIAL COMO FERRAMENTA DE IMPLEMENTAÇÃO DO PRINCÍPIO
DA SUSTENTABILIDADE. Abordam a importância da atuação do juiz para efetivação dos
princípios constitucionais e principalmente como esses podem contribuir para as metas de
sustentabilidade propostas pelo Estado. Para os autores a sustentabilidade não se encerra em
um conteúdo destituído de normatividade, ao contrário, pode ser compreendida como um
princípio geral e sistêmico, orientador das decisões judiciais.
No artigo AÇÃO CIVIL PÚBLICA E SUSTENTABILIDADE, Felipe Laurini Tonetti,
da UNICURITIBA, faz uma abordagem da ação civil pública nos seus mais variados aspectos
desde a exposição da base jurídica do referido instituto, passando pelas condições para seu
exercício, até chegar em dois instrumentos específicos e segundo o autor de valiosa
importância para que ela atinja os objetivos: o inquérito civil e do termo de ajustamento de
condita. A finalidade do artigo é traçar um paralelo com a teoria da sustentabilidade, de modo a
aferir e demonstrar que a ação civil pública é um mecanismo fundamental para que o
desenvolvimento da atividade empresarial ocorra de maneira sustentável.
-
Nacional de Jus
20
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
eficiente.
Marcos Leite Garcia da UNIVALI, em artigo intitulado DIREITOS FUNDAMENTAIS
E SUSTENTABILIDADE: DIREITO À SAÚDE E A QUESTÃO DA QUALIDADE DA
ÁGUA PARA CONSUMO HUMANO, partindo do paradigma geocêntrico e utilizando-se do
referencial teórico de Nicholas Georgescu-Roegen, afirma que o direito à água potável e ao
saneamento básico fazem parte do direito à saúde como direito fundamental, dentro do
contexto dos direitos sociais e das necessidade humanas básicas. Estuda questões como a
qualidade da água para o consumo humano, bem como as consequentes doenças relativas ao
consumo de agua contaminada, seja ela poluição química ou biológica.
Cristiano Tolentino Pires, da PUC-Minas, apresenta no seu artigo A PRECEDENCIA
DOS DIREITOS HUMANOS SOBRE DIREITOS PATRIMONIAIS DO ESTADO
QUANDO DO ESTUDO DAS TERRAS DEVOLUTAS a intenção de colocar em discussão os
fundamentos que justificam a adoção do regime jurídico dos bens públicos pela legislação
brasileira, que por sua vez pauta-se em um Estado de direito que é democrático, participativo,
plural e multiético, cuja existência se justifica apenas se alicerçada na garantia de direitos
individuais que consigam ser efetivados e não apenas dispostos na legislação. Para o autor,
constata-se que a aplicação cega das prerrogativas existentes a favor da proteção dos bens
públicos, no caso específico das terras devolutas, somente vem defender o interesse público
secundário – do Estado enquanto pessoa jurídica – deixando à margem a própria razão de ser
estatal, que é a proteção do interesse público primário, legítimo enquanto interesse de todos e
cada um individualmente considerado. Nesse sentido, os bens públicos merecem proteção a
partir do momento que efetivamente cumprem sua função social.
A partir do referencial teórico de Ulrich Beck no exame do que considera uma
sociedade de risco, Pedro Miron de Vasconcelos Dias Neto e Emmanuel Teófilo Furtado, da
UFC, no artigo intitulado A SOCIEDADE DE RISCO E A NECESSIDADE DE
REDISTRIBUIÇÃO DOS ÔNUS AMBIENTAIS SOB O ASPECTO DO MEIO AMBIENTE
DO TRABALHO E DO MÍNIMO ECOLÓGICO-SUSTENTÁVEL analisam a necessidade de
redistribuição do ônus ambiental sob o aspecto do meio ambiente do trabalho como
21
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
instrumento eficaz de tutela do mínimo ecológico-sustentável, o qual se encontra fortemente
vinculado à noção de mínimo existencial e com a própria dignidade humana. Na medida em
que a aplicação dos institutos de prevenção e precaução se são vistos como instrumentos
eficazes para evitarem a ocorrência de danos, estes devem ser dirigidos ao meio ambiente do
“
” à
imprevisíveis.
No
artigo
O
CAPITALISMO
GLOBAL
E
REFLEXÕES
SOBRE
A
SOLIDARIEDADE, Daniela Pellin, da UNINOVE se contrapõe às teorias econômicas do
capitalismo que procuram convencer seus interlocutores de que o surgimento se deve ao
regime de troca. Busca demonstrar, que historicamente o capitalismo possui razões bélicas de
conquista e subjugação dos povos com exploração das gentes e das economias locais, numa
franca acumulação de riquezas de toda ordem. Segundo o autor, no séc. XXI, na nossa atual era
da tecnologia, a concorrência acirrada se dá de forma qualificada, em tempo e espaço reais; os
grandes monopólios econômicos continuam a subjugar povos conduzindo a humanidade em
ameaça de extinção. Necessário se faz que países representando agentes de resistência ao
sistema imposto, se reúnam para mitigar e impedir a subjugação dos povos, cuja proteção da
dignidade da pessoa humana conduz a um novo ciclo de pacificação social: o da solidariedade
internacional.
Jamile Bergamaschine Mata Diz e Rayelle Campos Caldas Goulart, da UFMG, no
artigo intitulado A APLICAÇAO DO PRINCÍPIO DA INTEGRAÇAO AMBIENTAL NAS
POLÍTICAS SETORIAIS EUROPEIAS abordam o tratamento normativo e a consequente
aplicação do princípio da integração ambiental nas políticas comunitárias europeias,
especialmente no que se refere às políticas econômicas, industrial, exterior, de transportes e
agrícola, setores que apresentam uma maior inter-relação com a matéria ambiental e que
contam com um desenvolvimento normativo progressivo mais acentuado. Ao realizar um
estudo sobre a integração do meio ambiente nas políticas setoriais apontam para a abertura de
uma nova linha de investigação que possa fundamentar a necessidade de que o meio ambiente
seja destinatário de uma maior proteção no momento de tomada de decisão em qualquer campo
ou âmbito de atuação das instituições comunitárias. Entendem que a aplicação do princípio da
22
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
integração, tanto do ponto de vista da horizontalidade como da globalidade, pode servir de
referência para outros processos de integração em curso, como o caso do MERCOSUL.
Com forte base na ideia de proteção e respeito à biodiversidade, Miguel Etinger de
Araujo Junior, da UEL, no artigo CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO E
APLICAÇÃO DO PROTOCOLO DE NAGOYA NOS ESTADOS PLURINACIONAIS
LATINO- AMERICANOS DO SÉCULO XXI, apresenta os parâmetros para a efetividade e
legitimação do Protocolo de Nagoya nos países latino-americanos que experimentaram neste
início de Século XXI a construção do novo constitucionalismo baseado na ideia de pluralidade
e diversidade do povo. O autor afirma que será com respeito aos princípios ali construídos que
os acordos internacionais poderão se sustentar como mecanismos eficazes de promoção do
desenvolvimento ambiental e social.
Os problemas ambientais em nível internacional não se restringem tão somente a
questões de poluição, depleção da natureza, erosão da biodiversidade, mas atingem questões de
movimento de pessoas, tal como descreve o artigo intitulado A (IN)APLICABILIDADE DO
ESTATUTO DOS REFUGIADOS PARA OS DESLOCADOS AMBIENTAIS, de Maria
Cláudia da Silva Antunes de Souza, da UNIVALI, que destaca a problemática das pessoas que
são obrigadas a abandonarem seus lares motivados por mudanças ambientais, quando o meio
onde vivem torna-se impróprio para a sobrevivência. Ao analisar o sistema global de
refugiados e verificar sua incompatibilidade aos deslocados ambientais, chama a atenção para
a necessidade de se construir um sistema de proteção específico para os mesmos, de modo a
garantir uma efetiva proteção às pessoas que se encontram nessa condição. Para a autora a
ocorrência cada vez mais frequente de desastres ambientais e de degradação dos recursos
naturais compromete a qualidade de vida do homem e, em alguns casos, inviabiliza a sua
permanência em seus locais de origem. A partir dessa realidade, a pesquisa busca verificar em
que circunstâncias o sistema global de proteção dos Refugiados aplica-se aos deslocados
ambientais, suprindo a ausência de normas que instituam seu estatuto e assegurem a proteção
de seus Direitos Fundamentais. Nesse sentido, destaca a necessidade de se construir um
sistema de proteção específico para os deslocados ambientais, que garanta uma efetiva
proteção às pessoas que se encontram nessa condição.
Uma boa leitura a todos e a todas.
23
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Coordenadoras do Grupo de Trabalho
Profª. Drª. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches – UNINOVE/UNIVEM
Prof. Dr. Carlos André Birnfeld – FURG
Prof. Dr. Luiz Ernani Bonesso de Araújo – UFSM
24
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A (IN)APLICABILIDADE DO ESTATUTO DOS REFUGIADOS PARA OS
DESLOCADOS AMBIENTAIS
THE (IN)APPLICABILITY OF THE STATUTE OF REFUGEES TO
ENVIRONMENTALLY DISPLACED PERSONS
1
Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza
RESUMO
A ocorrência cada vez mais frequente de desastres ambientais e de degradação dos recursos
naturais compromete a qualidade de vida do homem e, em alguns casos, inviabiliza a
permanência em seus locais de origem. O presente artigo tem como contexto a crescente
preocupação com as pessoas que abandonam seus lares, motivadas por mudanças ambientais
que tornam o meio em que habitam impróprio para a sobrevivência humana. Nessa esteira,
objetiva-se verificar se e em que circunstâncias o sistema global de proteção dos Refugiados
aplica-se aos Deslocados Ambientais, suprindo a ausência de normas que instituam seu
estatuto e assegurem a proteção de seus Direitos Fundamentais. Nesse sentido, destaca-se a
necessidade de se construir um sistema de proteção específico para os Deslocados
Ambientais, que garanta uma efetiva proteção às pessoas que se encontram nessa condição.
Palavras-chave: Refugiado. Deslocado Ambiental. Refugiado Ambiental. Perseguição
Ambiental.
ABSTRACT
The increasingly frequent occurrence of environmental disasters and natural resources
degradation compromises the quality of life of humankind and, in some cases, prevents
people from remaining in their places of origin. As context, the present article has the crescent
preoccupation with people that abandon their homes, motivated by environmental changes
that render the place they live inadequate for human survival. In this sense, the article has the
objective to verify if and under which circumstances the global system of Refugees protection
is applied to Environmentally Displaced Persons, filling the absence of rules regulating their
situation and securing their Fundamental Rights. Accordingly, it is highlighted the necessity
1
Doutora pela Universidade de Alicante – Espanha. Mestre em Derecho Ambiental y de la Sostenibilidad pela
Universidade de Alicante – Espanha. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí –
UNIVALI. Graduada em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Professora no Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica, nos cursos de Doutorado e Mestrado em Ciência Jurídica, e na
Graduação do Curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Professora responsável pelo
Núcleo de Prática Jurídica – NPJ da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Tem experiência na área de
Direito, com ênfase em Direito Civil e Ambiental, atuando principalmente nos seguintes temas:
Responsabilidade Civil, Danos Ambientais, Responsabilidade Ambiental e Sustentabilidade. Email:
<[email protected]>.
25
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
to build a specific protection system to Environmentally Displaced Persons that guarantee an
effective protection to people in that condition.
Keywords: Refugee. Environmentally Displaced Person. Envrionmental Refugee.
Environmental Persecution.
INTRODUÇÃO
O crescimento alarmante de desastres ambientais e da degradação de recursos
naturais provoca uma preocupação no cenário mundial3. São mais de 33 milhões de
refugiados, solicitantes de refúgio, deslocados internos e outras pessoas que abandonam seus
lares, pondo em risco a própria vida, liberdade e segurança, na tentativa de fugir de
perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. A
essas pessoas a comunidade internacional reconhece o estatuto de Refugiados, presta-lhes
assistência e concede-lhes asilo, por intermédio do ACNUR e sob os auspícios da Convenção
de 1951 Relativa ao Estatuto dos Refugiados (doravante apenas Convenção de 1951 ou
Convenção dos Refugiados) e de seu Protocolo de 1967 Relativo ao Estatuto dos Refugiados
(doravante apenas Protocolo de 1967 ou Protocolo dos Refugiados).
Nessa estatística, porém, não estão computados outros milhões de indivíduos que
também necessitam abandonar seus lares e que também arriscam a própria vida, liberdade e
segurança, motivados por mudanças ambientais que tornam o meio em que habitam
completamente impróprio para a sobrevivência humana. Esses indivíduos, denominados
Deslocados Ambientais, não gozam, como os Refugiados, de um estatuto jurídico próprio e,
portanto, padecem de seus sofrimentos sem uma efetiva e direcionada ação da comunidade
internacional no sentido de assegurar-lhes seus Direitos Fundamentais. Conforme destaca o
preâmbulo do Projeto de Convenção Relativa ao Estatuto Internacional dos Deslocados
Ambientais, de autoria da equipe do Centre de Recherche Interdisciplinaire en Droit de
l’Environnement, de l’Aménagement de de l’Urbanisme:
[...] a despeito dos numerosos instrumentos internacionais visando a proteção do
meio ambiente, não existe, no estado atual do direito internacional aplicável aos
refugiados, nenhum instrumento específico prevendo a situação do conjunto dos
deslocados ambientais e podendo ser aplicado e invocado em seu favor. (PRIEUR
et. al., 2008, preâmbulo, tradução oficial do Centre de Recherche Interdisciplinaire
en Droit de l’Environnement, de l’Aménagement et de l’Urbanisme.).4
3
35.440.128. Esse é o número de pessoas sob o mandato do Alto-Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (ACNUR ou UNHCR, do inglês: United Nations High Commissioner for Refugees). Dado oficial do
ACNUR, disponível em: <http://www.acnur.org/t3/portugues/recursos/estatisticas/>. Acesso em: 06 mar 2013.
4
Texto original em francês: “[...] malgré les nombreux instruments internationaux visant à protéger
l’environnement, il n’existe, dans l'état actuel du droit international applicable aux réfugiés, aucun instrument
26
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Este artigo tem por objeto a análise de uma nova categoria — os Deslocados
Ambientais — e tem por objetivo verificar se (e em que circunstâncias) a Convenção e o
Protocolo dos Refugiados podem ser aplicados a esses Deslocados Ambientais, suprindo a
ausência de normas que instituam seu estatuto e assegurem a proteção de seus Direitos
Fundamentais. Nesse sentido, destaca-se a necessidade de se construir um sistema de proteção
específico para os Deslocados Ambientais, que garanta uma efetiva proteção às pessoas que
se encontram nessa condição.
Durante as fases de investigação, tratamento dos dados e redação do relatório final da
pesquisa, adotou-se uma postura metodológica indutiva, colhendo os dados pertinentes dos
instrumentos convencionais supracitados e da doutrina especializada no assunto, para daí
chegar à conclusão que é apresentada ao final deste artigo científico.
Para tanto, foram acionadas as técnicas da categoria e do conceito operacional, a fim
de definir claramente os termos trabalhados e estabelecer as conexões existentes entre eles.
Desenvolveu-se pesquisa bibliográfica, devidamente direcionada pela técnica do referente e
registrada por meio da técnica do fichamento5.
Nesse sentido, apresenta-se primeiramente o regime adotado pela Convenção de
1951 para os Refugiados, destacando-se o conceito operacional6 desta categoria7 e os critérios
condicionantes do reconhecimento da qualidade de Refugiado. Em seguida, aborda-se a
questão dos Deslocados Ambientais, conceituando-se esta categoria e examinando-se a
complexidade dos fenômenos que nela se enquadram. Por fim, enfrenta-se a questão da
possibilidade ou não de aplicação da Convenção de 1951 aos Deslocados Ambientais.
Para as categorias centrais deste trabalho, são adotados os seguintes conceitos
operacionais:
Refugiado: pessoa que,
[...] temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo
social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não
pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que,
se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência
spécifique prévoyant la situation d’ensemble des déplacés environnementaux et pouvant être appliqué et invoqué
en leur faveur.”
5
Sobre a técnica da categoria, ver PASOLD, 2008, p. 25-35. Sobre a técnica do conceito operacional, v.
PASOLD, 2008, p. 37-52. Sobre a técnica do referente, v. PASOLD, 2008, p. 53-62. Sobre a técnica do
fichamento, bem como sobre seu uso conjunto com a técnica do referente, ver PASOLD, 2008, p. 107-123.
6
“Quando nós estabelecemos ou propomos uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que
tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que expomos, estamos fixando um Conceito Operacional [...]”
(todo em negrito no original) (PASOLD, 2008, p. 37).
7
Categoria é “a palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou expressão de uma idéia.” (todo em negrito no
original) (PASOLD, 2008, p. 25).
27
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
habitual [...], não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1951, art. 1-A(2)).
Perseguição: ação prejudicial, ou ameaça de tal ação, praticada contra uma pessoa
ou um grupo de pessoas, por motivos relacionados a quem a pessoa é — raça, nacionalidade
ou pertencimento a um grupo social particular — ou àquilo em que ela acredita — religião ou
opinião política.
Migração Internacional: deslocamento de um indivíduo ou de um grupo de
indivíduos que deixa o país de sua nacionalidade ou onde possuía residência habitual com
destino a outro país.
Deslocados Ambientais:
“[…] aquelas pessoas que foram forçadas a deixar seu habitat tradicional,
temporariamente ou permanentemente, por conta de uma determinada perturbação
ambiental (natural e/ou causada por pessoas) que comprometeu sua existência e/ou
afetou seriamente a qualidade de suas vidas. (EL-HINNAWI, 1985, p. 4 apud
BATES, 2002, p. 466, tradução livre).8
Perturbação Ambiental: “[…] qualquer mudança física, química e/ou biológica no
ecossistema (ou recurso básico) que o torna, temporariamente ou permanentemente,
inadequado para sustentar vida humana.” (EL-HINNAWI, 1985, p. 4 apud BATES, 2002, p.
466, tradução livre).9
Perseguição Ambiental: utilização de Perturbações Ambientais para prejudicar uma
pessoa ou um grupo de pessoas, por motivos relacionados a quem a pessoa é — raça,
nacionalidade ou pertencimento a um grupo social particular — ou àquilo em que ela acredita
— religião ou opinião política.
Deslocado Ambiental Stricto Sensu: aquela pessoa que é forçada a deixar seu
habitat tradicional, migrando interna ou internacionalmente, em caráter temporário ou
permanente, por conta de uma determinada Perturbação Ambiental (natural e/ou causada por
pessoas) que, sem configurar Perseguição Ambiental, compromete sua existência e/ou afeta
seriamente sua qualidade de vida.
Perseguido Ambiental: aquela pessoa que, por fundado temor de Perseguição
Ambiental que comprometa sua existência e/ou afete seriamente sua qualidade de vida, é
forçada a deixar seu habitat tradicional, temporária ou permanentemente.
8
Texto original em inglês: “[...] those people who have been forced to leave their traditional habitat, temporarily
or permanently, because of a marked environmental disruption (natural and/or triggered by people) that
jeopardized their existence and/or seriously affected the quality of their life [sic]”.
9
Texto original em inglês: “[…] any physical, chemical, and/or biological changes in the ecosystem (or resource
base) that render it, temporarily or permanently, unsuitable to support human life”.
28
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Refugiado Ambiental: toda pessoa que, por fundado temor de Perseguição
Ambiental que comprometa sua existência e/ou afete seriamente sua qualidade de vida, é
forçada a deixar o país de sua nacionalidade, temporária ou permanentemente, e que não pode
ou, em virtude daquele temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem
nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual, não pode ou,
devido ao referido temor, não quer voltar a ele.
1 QUEM É REFUGIADO?
Segundo o ACNUR, no final de 2010, o mundo já computava mais de 10 milhões de
Refugiados10. Não é à toa que Earl Huyck e Leon Bouvier (apud CASELLA, 1984, p. 260,
tradução livre) afirmam que “[h]oje se pode apontar quase qualquer lugar em um globo
girando e por-se-á o dedo em uma situação de refugiado”11.
Apesar da existência de Refugiados remontar às eras bíblicas — lembre-se do êxodo
dos escravos Egípcios, sob a liderança de Moisés, em busca da Terra Prometida —, a
comunidade internacional somente esboçou uma preocupação acerca da questão após a
Primeira Guerra Mundial, com a criação da Liga das Nações. Sem nunca ter definido a
categoria Refugiado, a Liga atuou de forma eminentemente pragmática e pontual, protegendo
grupos específicos, por meio do desenvolvimento empírico de mecanismos institucionais, cuja
extensão dependia de considerações políticas e de simpatias humanitárias. (ANDRADE,
2001, p. 120-121).
É apenas após a Segunda Guerra Mundial que a proteção internacional dos
Refugiados adquire caráter geral, embasando-se em duas vertentes fundamentais, conforme
destaca José Henrique Fischel de Andrade (2001, p. 99 e 99-100): uma institucional, “[...]
materializada no estabelecimento de organizações que têm como escopo a assistência e a
proteção dos refugiados [...]”; e uma jurídica, “[...] que ocorre por meio da redação de
instrumentos convencionais, extraconvencionais e domésticos, os quais conceituam o termo
‘refugiado’ e definem o estatuto jurídico de seus beneficiários”. A vertente institucional é,
hoje, representada pelo ACNUR, enquanto a vertente jurídica está consubstanciada na
Convenção de 1951 e no Protocolo de 1967.
10
Dado oficial do ACNUR, disponível em: <http://www.acnur.org/t3/portugues/recursos/estatisticas/>. Acesso
em: 02 maio 2012.
11
Texto original em inglês: “[t]oday one may point almost anywhere on a spinning globe and put a finger on a
refugee situation”.
29
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Enquanto base jurídica da proteção global dos Refugiados, a Convenção de 1951 traz
a grande contribuição de oferecer um conceito operacional para a categoria. Tal conceito, por
conter os elementos essenciais que caracterizam a figura do Refugiado, é decisivo para
assinalar as obrigações contratuais ou convencionais dos Estados que são signatários daquele
instrumento (CASELLA, 1984, p. 253). Ipsis litteris, assim se expressa a Convenção:
Para os fins da presente Convenção, o termo "refugiado" se aplicará a qualquer
pessoa [...] que, em conseqüência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de
janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua
nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da
proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no
qual tinha sua residência habitual em conseqüência de tais acontecimentos, não pode
ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele. (ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS, 1951, art. 1-A(2), sem negrito no original)
Quando firmada em 1951, a Convenção estabelecia duas restrições: uma de cunho
temporal, pela qual a caracterização do Refugiado dependia de evento ocorrido antes de 1º de
janeiro de 1951, e um de cunho geográfico, limitando a caracterização do Refugiado a
acontecimentos ocorridos no continente europeu (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS, 1951, art. 1-B(1)). Ambas as restrições, contudo, foram levantadas pelo Protocolo
de 1967, que assim se expressa:
Para os fins do presente Protocolo, o termo "refugiado" [...] significa qualquer
pessoa que se enquadre na definição dada no artigo primeiro da Convenção, como se
as palavras "em decorrência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de
1951 e..." e as palavras "...como conseqüência de tais acontecimentos" não
figurassem do §2 da seção A do artigo primeiro.
O presente Protocolo será aplicado pelos Estados Membros sem nenhuma limitação
geográfica [...] (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1967, art. 1(2) e (3)).
Destarte, sem as restrições de cunho temporal e geográfico, o conceito da Convenção
de 1951, adotado também neste artigo, impõe três condições para a caracterização da situação
do Refugiado: 1) o fundado temor de Perseguição; 2) a Migração Internacional; e 3) a
ausência de proteção do país de origem.
O fundado medo de Perseguição é “[o] critério crucial para conceituar um refugiado
[...]” (CASELLA, 2001, p. 20). Não há, porém, uma definição universalmente aceita de
Perseguição, nem uma uniformidade de interpretação do termo — de tal maneira que fica a
cargo de cada Estado, ao decidir sobre a concessão do asilo territorial12, o reconhecimento do
estatuto do Refugiado (CANÇADO TRINDADE, 2004, p. 302). Além disso, a definição não
exige a efetiva Perseguição, mas o temor justificado de Perseguição, o que implica a presença
12
Ao acolher em seu território um Refugiado, o Estado está a lhe conceder asilo territorial (que não se confunde
com o asilo político ou diplomático, “[...] que é concedido a perseguidos por motivos políticos e que é concedido
nas ‘legações, navios de guerra, aeronaves militares e acampamentos militares’.”). (MELLO, 2000, p. 161).
30
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
de um elemento subjetivo da pessoa que demanda ser considerada Refugiada. (UNITED
NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES, 1992, parágrafos 37-50). Ainda
assim, o conceito operacional da categoria Perseguição é essencial para este artigo, posto que,
sendo condição sine qua non para o reconhecimento da situação de Refugiado à luz da
Convenção de 1951, será instrumento de análise no item 3, quando se examinará a
possibilidade de aplicação do sistema global de proteção dos Refugiados ao caso dos
Deslocados Ambientais.
Nesse diapasão, o Guia do ACNUR de Procedimentos e Critérios de Aplicação para
Determinar o Estatuto de Refugiado à Luz da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967
Relativos ao Estatuto dos Refugiados (doravante apenas Guia do ACNUR) oferece uma
indicação do que seja Perseguição, ao afirmar que:
Do artigo 33 da Convenção de 1951, pode-se deduzir que as ameaças à vida ou à
liberdade por razões de raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou
pertencimento a certo grupo social são sempre perseguições. Outras violações
graves dos direitos do homem — pelas mesmas razões constituiriam igualmente
perseguições.
A questão de saber se outras ações prejudiciais ou ameaças de tais ações constituem
perseguições dependerá das circunstâncias de cada caso [...]. (UNITED NATIONS
HIGH COMMISSIONER FOR REFUGESS, 1992, parágrafos 51-52, tradução
livre).13
Também o Relatório do ACNUR de 1993 é útil para compreender a categoria
Perseguição, quando, ao tratar da dinâmica dos Deslocamentos e das principais causas dos
fluxos de Refugiados, assim se expressa: “ A Convenção de 1951 identifica o que ainda é uma
grande causa-raiz do fluxo de refugiados: a perseguição baseada em que o refugiado é (raça,
nacionalidade, pertencimento a um grupo social particular) ou em que ele acredita (religião ou
opinião política).” (UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGESS, 1993,
tradução livre).14
Tendo em vista essas indicações do Guia do ACNUR e do Relatório de 1993,
propõe-se o seguinte conceito operacional para a categoria Perseguição, a fim de que esta
possa servir como instrumento de análise neste artigo, sem, contudo, intentar a construção de
13
Texto original em francês: “De l'article 33 de la Convention de 1951, on peut déduire que des menaces à la vie
ou à la liberté pour des raisons de race, de religion, de nationalité, d'opinions politiques ou d'appartenance à un
certain groupe social sont toujours des persécutions. D'autres violations graves des droits de l'homme – pour les
mêmes raisons constitueraient également des persécutions. La question de savoir si d'autres actions
préjudiciables ou menaces de telles actions constituent des persécutions dépendra des circonstances de chaque
cas [...]”
14
Texto original em inglês: “The 1951 Convention identified what is still a major root cause of refugee flows:
persecution based on who the refugee is (race, nationality, membership of a particular social group) or what he
or she believes (religion or political opinion).”
31
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
uma definição que seja necessariamente aceita universalmente. Assim, considera-se
Perseguição como a ação prejudicial, ou a ameaça de tal ação, praticada contra uma pessoa
ou um grupo de pessoas, por motivos relacionados a quem a pessoa é — raça, nacionalidade
ou pertencimento a um grupo social particular — ou àquilo em que ela acredita — religião ou
opinião política.
A segunda condição imposta pela Convenção de 1951 para o reconhecimento da
situação do Refugiado exige que o indivíduo já se encontre fora do país de sua nacionalidade
— isto é, faz-se necessária a verificação de uma Migração Internacional, entendida aqui
como o deslocamento de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos que deixa o país de sua
nacionalidade ou onde possuía residência habitual com destino a outro país. Por conseguinte,
não são considerados Refugiados os migrantes internos, que deixam suas residências com
destino a outras regiões do mesmo país, mesmo quando vítimas de Perseguição. Nesse
sentido, o relatório do ACNUR de 1993: “As situações que produzem refugiados também
produzem outras formas de deslocamento, incluindo pessoas que não cruzaram uma fronteira
internacional, mas enfrentam os mesmos medos e perigos dos refugiados.” (UNITED
NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES, 1993, tradução livre)15.
A terceira condição prevista pelo conceito da Convenção de 1951 determina que o
país da nacionalidade do Refugiado (ou onde ele mantenha sua residência habitual) não lhe
ofereça a devida proteção contra a Perseguição sofrida ou ainda que o Refugiado não queira,
pelo temor de Perseguição, a proteção de seu País. Isso significa que o Estado de origem do
Refugiado sempre estará envolvido com a situação de Perseguição que gerou o fluxo
migratório, quer porque 1) o Estado de origem do Refugiado é o próprio agente da
Perseguição; ou 2) o Estado de origem do Refugiado não é o agente da Perseguição, mas não
toma as medidas necessárias para cessar tal Perseguição. Em ambos os casos, o indivíduo não
goza da proteção de seu próprio Estado e acaba buscando asilo para além das fronteiras. É
exatamente esse desamparo que está no nascedouro das duas condições anteriores: por não
poder contar com o seu próprio Estado, a pessoa é tomada do justificado temor de
Perseguição e deixa sua residência, migrando internacionalmente, a fim de defender sua vida,
sua liberdade e sua segurança através do refúgio em outro país. Por esse motivo, Flávia
Piovesan (2001, p. 38) afirma que “[c]ada refugiado é conseqüência de um Estado que viola
os Direitos Humanos”.
15
Texto original em inglês: “The situations that produce refugees also produce other forms of displacement,
including people who have not crossed an international border but face the same fears and dangers as refugees.”
32
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Reunidas essas três condições (temor de Perseguição, Migração Internacional e
ausência de proteção do país de origem), configurada está a situação do Refugiado, que deve
ser reconhecida pelos Estados da comunidade internacional16, especialmente pelos membros
da Convenção de 1951 e de seu Protocolo de 1967. Conforme salienta o Guia do ACNUR:
Uma pessoa é um refugiado, no sentido da Convenção de 1951, desde que ela
satisfaça os critérios enunciados na definição. Essa situação é necessariamente
realizada antes que o estatuto de refugiado seja formalmente reconhecido ao
interessado. Por consequência, a determinação do estatuto de refugiado não tem por
efeito conferir a qualidade de refugiado; ela constata a existência dessa qualidade.
Uma pessoa não se torna refugiada porque ela é reconhecida como tal, mas ela é
reconhecida como tal porque ela é refugiada. (UNITED NATIONS HIGH
COMMISSIONER FOR REFUGEES, 1992, parágrafo 28, tradução livre)17.
A Convenção de 1951 e seu Protocolo de 1967 não são os únicos instrumentos
internacionais que trazem um conceito operacional para a categoria Refugiado. Pode-se citar
pelo menos mais dois documentos que adentram essa questão e chegam a cunhar uma
definição ainda mais ampla do que a da Convenção de 1951: a Convenção da Organização da
Unidade Africana (OUA), de 1969, e a Declaração de Cartagena, de 1984. Conforme destaca
Flávia Piovesan (2001, p. 36), ambos os instrumentos, além de adotarem o conceito da
Convenção de 1951, “[...] prevêem a violação maciça dos direitos humanos como
caracterizadora da situação de refugiado”18. Todavia, tanto a Convenção da OUA quanto a
Declaração de Cartagena são instrumentos de alcance regional, aplicáveis, respectivamente,
apenas à África e à América Latina. Por isso, as extensões da definição de Refugiado ali
16
A concessão de asilo territorial ao Refugiado é ato de soberania, não sendo obrigatório para o Estado.
Conforme lembra Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva (2001, p. 13 e 14), “[...] a concessão do asilo é um
direito do Estado baseado em sua soberania”. E ainda: “[...] não existe um direito ao asilo, ou seja o Estado, no
exercício de seu direito de soberania, tem o direito de recusá-lo”. Por outro lado, Flávia Piovesan (2001, p. 4748) defende que o princípio do non refoulement, pelo qual é vedada a devolução do Refugiado ao país em que
sua vida e liberdade estejam ameaçadas, deve ser reconhecido e respeito por toda a comunidade internacional,
por se consubstanciar como um princípio de jus cogens.
17
Texto original em francês: “Une personne est un réfugié, au sens de la Convention de 1951, dès qu'elle
satisfait aux critères énoncés dans la définition. Cette situation est nécessairement réalisée avant que le statut de
réfugié́ ne soit formellement reconnu à l'intéressé. Par conséquent, la détermination du statut de réfugié́ n'a pas
pour effet de conférer la qualité de réfugié; elle constate l'existence de cette qualité. Une personne ne devient pas
réfugié parce qu'elle est reconnue comme telle, mais elle est reconnue comme telle parce qu'elle est réfugié.”
18
A Convenção da OUA, após adotar o mesmo conceito da Convenção de 1951, estende a definição de
Refugiado a fim de abranger também “[...] qualquer pessoa que, devido a uma agressão, ocupação externa,
dominação estrangeira ou a acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública numa parte ou na
totalidade do seu país de origem ou do país de que tem nacionalidade, seja obrigada a deixar o lugar da
residência habitual para procurar refúgio noutro lugar fora do seu país de origem ou de nacionalidade”
(ORGANIZAÇÃO DA UNIDADE AFRICANA, 1969, art. 1(2)).
Já a Declaração de Cartagena, recomenda que o conceito de Refugiado adotado para a América Latina abarque,
além dos casos previstos pela Convenção de 1951, aqueles casos de “[...] pessoas que tenham fugido dos seus
países porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão
estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham
perturbado gravemente a ordem pública” (COLÓQUIO SOBRE PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS
REFUGIADOS NA AMÉRICA CENTRAL, MÉXICO E PANAMÁ, 1984, conclusão terceira).
33
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
presentes não são adotadas por este artigo, que pretende, conforme esclarecido anteriormente,
analisar o sistema global de proteção dos Refugiados, a fim de verificar a possibilidade de sua
aplicação ao caso dos Deslocados Ambientais. O artigo atem-se, portanto, ao conceito da
Convenção de 1951 e às condições de caracterização da condição de Refugiado ali impostas.
2 OS DESLOCADOS AMBIENTAIS
Em 1985, Essam El-Hinnawi (apud BATES, 2002, p. 466, sem negritos no original,
tradução livre), pesquisador do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
(PNUMA), cunhou pela primeira vez o termo Refugiados Ambientais, conceituando-o
como:
[…] aquelas pessoas que foram forçadas a deixar seu habitat tradicional,
temporariamente ou permanentemente, por conta de uma determinada perturbação
ambiental (natural e/ou causada por pessoas) que comprometeu sua existência e/ou
afetou seriamente a qualidade de suas vidas. Por “perturbação ambiental” nesta
definição entende-se qualquer mudança física, química e/ou biológica no
ecossistema (ou recurso básico) que o torna, temporariamente ou permanentemente,
inadequado para sustentar vida humana.19
O termo Refugiado Ambiental, contudo, no que pese ter sido utilizado largamente
nos últimos 25 anos, não parece ser o mais apropriado para caracterizar a situação descrita por
El-Hinnawi20. Isso porque, levando em consideração o que já se expôs no item anterior, ao
falar-se na categoria Refugiado, fala-se também em uma série de critérios (temor de
Perseguição, Migração Internacional e ausência de proteção do país de origem) que não
figuram na definição acima proposta. Nesse mister, Liliana Jubilut e Silvia Apolinário (2010,
p. 288, itálicos no original) afirmam que:
Do ponto de vista do direito internacional, a expressão refugiados ambientais não é
correta, pois a definição dada pelo direito internacional à palavra refugiado abrange
critérios específicos que fazem que uma pessoa possa receber a proteção do refúgio.
Por esse motivo, adota-se, neste artigo, o conceito operacional de Essam El-Hinnawi
não para definir a categoria Refugiado Ambiental, mas sim para definir a categoria Deslocado
Ambiental, que é mais adequada ao fenômeno descrito. Isso porque o termo “Deslocado”
19
Texto original em inglês: “[...] those people who have been forced to leave their traditional habitat,
temporarily or permanently, because of a marked environmental disruption (natural and/or triggered by people)
that jeopardized their existence and/or seriously affected the quality of their life [sic]. By “environmental
disruption” in this definition is meant any physical, chemical, and/or biological changes in the ecosystem (or
resource base) that render it, temporarily or permanently, unsuitable to support human life.”
20
“A expressão ‘refugiados ambientais’, apesar de utilizada largamente nos últimos vinte anos, é erroneamente
aplicada.” (LOPEZ, 2007, I. Introduction, tradução livre). Texto original em inglês: “The expression
‘environmental refugees’, though widely used for the past twenty years, is mistakenly applied.”
34
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
reflete: a pluralidade de causas dos deslocamentos ambientais; o caráter não apenas pessoal,
mas também coletivo dos movimentos populacionais; bem como a ideia de que não se trata de
uma migração voluntária ou motivada por necessidades econômicas, mas sim imposta por
uma ameaça ambiental inelutável (LAVIEILLE; BÉTAILLE; MARGUÉNAUD, 2008, p.
462). Nesse mesmo diapasão, manifesta-se Julien Bétaille (2012, Introduction, tradução
livre):
Nós escolhemos aqui o termo deslocados ambientais por duas razões principais. A
primeira é que o termo “refugiado” remete à Convenção de Genebra de 1951, cujo
texto não é adaptado à realidade do fenômeno aqui estudado. A segunda é que o
adjetivo “ambiental” permite englobar ao mesmo tempo os deslocados ligados à
mudança climática, mas também às outras catástrofes naturais ou tecnológicas.
Ademais, esses termos traduzem melhor a ideia segundo a qual a migração é
imposta e não escolhida.21
Assim, a categoria Deslocado Ambiental é aqui utilizada para descrever a pessoa ou
o grupo de pessoas que é forçado a deixar o local onde habita por conta de uma Perturbação
Ambiental. Esse fenômeno representa um dos mais relevantes desafios da Sociedade22
internacional contemporânea. Para se ter uma ideia da dimensão dos Deslocamentos
Ambientais, lembre-se das estimativas de Norman Myers (1997, p. 167, 168 e 175). Segundo
o autor, nos idos de 1997, já havia pelo menos 25 milhões de Deslocados Ambientais no
mundo, localizados principalmente na África Subsaariana, no subcontinente indiano, na
China, no México e na América Central. Isso equivaleria dizer que, em 1997, para cada 225
pessoas do mundo, pelo menos uma poderia ser caracterizada como Deslocado Ambiental.
Ainda segundo o autor, a questão dos Deslocados Ambientais promete tornar-se uma das mais
proeminentes crises humanas de nosso tempo. Já Jodi Jacobson (apud LONERGAN, 1998, p.
8, tradução livre) chama a atenção para o fato de que os Deslocados Ambientais “[...] se
tornaram simplesmente na maior classe de deslocados do mundo [...]”23.
A complexidade dessas migrações causadas por mudanças ambientais pode ser
vislumbrada na classificação de Deslocados Ambientais de Diane C. Bates (2002, p. 46921
Texto original em francês: “Nous choisissons ici le terme de déplacés environnementaux, ce pour deux raisons
principales. La première est que le terme ‘réfugié’ renvoie à la Convention de Genève de 1951 et que ce texte
n’est pas adapté à la réalité du phénomène ici étudié. La seconde est que l’adjectif ‘environnementaux’ permet
d’englober à la fois les déplacements liés au changement climatique mais aussi à d’autres catastrophes naturelles
ou technologiques. De plus, ces termes traduisent mieux l’idée selon laquelle la migration est subie et non
choisie.”
22
Utiliza-se o termo Sociedade com a letra S em maiúscula pelo seguinte motivo: “[...] se a Categoria ESTADO
merece ser grafada com a letra E em maiúscula, muito mais merece a Categoria SOCIEDADE ser grafada com a
letra S em maiúscula, porque, afinal, a SOCIEDADE é a criadora e mantenedora do Estado! Por coerência, pois,
se a criatura/mantida (Estado) vem grafada com E maiúsculo, também e principalmente a criadora/mantenedora
(Sociedade) deve ser grafada com o S maiúsculo!” (PASOLD, 2008, p. 169, negritos e sublinhados no original).
23
Texto original em inglês: “[...] have become the single largest class of displaced persons in the world [...]”.
35
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
475). No ministério da autora, esses fluxos migratórios originam-se de três tipos diversos de
alterações ambientais: desastres, expropriações e deteriorações.
O primeiro desses tipos de alterações ambientais — os desastres — são
“[p]erturbações agudas no ambiente que causam migrações humanas imprevistas [...]”
(BATES, 2002, p. 469, tradução livre)24. Pode-se dividir os desastres ambientais em eventos
naturais (erupções vulcânicas, furacões, terremotos) e acidentes tecnológicos (Chernobyl, em
1986; Fukushima, em 2011).
Já as expropriações, segundo tipo de mudanças ambientais que causam fluxos
migratórios, envolvem “[...] o deslocamento permanente de pessoas cujo habitat é apropriado
para uso do terreno incompatível com a continuidade de sua residência”25. As expropriações
ocorrem por motivos de desenvolvimento (áreas inundadas para a construção de uma usina
hidroelétrica, expansão urbana em território indígena) ou guerra (ecocídio, entendido como
“[...] a destruição intencional de um ambiente humano a fim de realocar estrategicamente uma
população alvo durante um período de guerra”26) (BATES, 2002, p. 471-472, traduções
livres).
Por fim, as deteriorações, terceira espécie de modificações ambientais levantada pela
autora, são alterações ambientais graduais de origem humana, causadas por poluição (“[...] a
liberação de substâncias tóxicas no ambiente, que gradualmente prejudica a saúde humana ou
a habilidade dos residentes de manter sua qualidade de vida”27 — ex.: aquecimento global) ou
esgotamento (“[...] a remoção gradual de algumas partes do ecossistema”28 — ex.:
desmatamento) (BATES, 2002, p. 474, traduções livres)
Em um quadro sinóptico, ter-se-ia a seguinte estrutura29:
Desastre
Um evento involuntário e
catastrófico provoca migração
humana
Subcategoria
Origem
Intenção da migração
Duração
Natural
Natural
Involuntária
Aguda
Tecnológico
Antropogênica
Involuntária
Aguda
Expropriação
A destruição intencional do ambiente
torna-o inapropriado para a habitação
humana
Desenvolvmto
Antropogênica
Intencional
Aguda
Ecocídio
Antropogênica
Intencional
Aguda
Deterioração
Uma deterioração incremental do
ambiente compele migração na
medida em que aumentam os
obstáculos à sobrevivência humana.
Poluição
Esgotamento
Antropogênica
Antropogênica
Involuntária
Involuntária
Gradual
Gradual
24
Texto original em inglês: “[a]cute disruptions in the environment that cause unplanned human migration [...]”.
Texto original em inglês: “[...] the permanent displacement of people whose habitat is appropriated for land
use incompatible with their continued residence”.
26
Texto original em inglês: “[...] the intentional destruction of human environments in order to strategically
relocate a target population during a period of war”.
27
Texto original em inglês: “[…] the release of toxic substances into the environment that gradually impairs
human health or the ability of residents to sustain their quality of life”.
28
Texto original em inglês: “[…] the gradual removal of some part of the ecosystem”.
29
Quadro adaptado e traduzido pelos autores. Original em inglês em: BATES, 2002, p. 470.
25
36
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Essa classificação de Diane Bates permite perceber a grande complexidade da
categoria Deslocado Ambiental. Entre causas naturais ou antropogênicas, intencionais ou
involuntárias, e consequentes deslocamentos permanentes ou temporários, agudos ou
graduais, ao se tratar de Deslocados Ambientais, está-se lidando com uma série de situações
com características próprias, causas próprias e consequências próprias.
Nesse diapasão, não se pode ignorar as múltiplas facetas desse complexo fenômeno
na persecução do objetivo inicial que foi proposto. A verificação da aplicação aos Deslocados
Ambientais do sistema de proteção global dos Refugiados deve necessariamente considerar a
pluralidade desse fenômeno. É essa a análise que se faz no item seguinte.
3 O SISTEMA GLOBAL DE PROTEÇÃO DOS REFUGIADOS E OS DESLOCADOS
AMBIENTAIS
A verificação da aplicação da Convenção de 1951 aos Deslocados Ambientais é
questão que exige análise de compatibilidade da situação dos Deslocados Ambientais àqueles
critérios de reconhecimento dos Refugiados esboçados na primeira parte deste artigo.
Contudo, conforme se ressalta acima, o fenômeno em exame é complexo, posto que abrange
um extenso leque de situações. A fim de melhor caracterizar essas diversas situações em um
esquema que seja útil para a consecução do objetivo inicialmente estabelecido, toma-se a
categoria Deslocado Ambiental como um gênero que comporta pelo menos duas espécies: o
Perseguido Ambiental e o Deslocado Ambiental Stricto Sensu.
O Perseguido Ambiental diferencia-se do Deslocado Ambiental Stricto Sensu pela
presença do temor de Perseguição Ambiental. A Perseguição Ambiental ocorre quando
Perturbações Ambientais são utilizadas como meio ou estratégia de Perseguição contra um
indivíduo ou um grupo de indivíduos. A esse respeito, o Relatório do ACNUR de 1993 assim
se manifesta:
Eventualmente, a destruição de um habitat toma as características de perseguição —
por exemplo, se ela ocorre como resultado de uma ação governamental deliberada
ou negligência grosseira e nenhum esforço é feito para compensar ou assistir as
pessoas afetadas. (UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR
REFUGEES, 1993, tradução livre).30
30
Texto original em inglês: “Occasionally, the destruction of a habitat takes on the character of persecution – for
example if it occurs as a result of deliberate governmental action or gross negligence and no effort is made to
compensate or assist the people affected.”
37
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Pode-se, portanto, tomando por base o conceito operacional proposto para a categoria
Perseguição, definir a Perseguição Ambiental como a utilização de Perturbações Ambientais
para prejudicar uma pessoa ou um grupo de pessoas, por motivos relacionados a quem a
pessoa é — raça, nacionalidade ou pertencimento a um grupo social particular — ou àquilo
em que ela acredita — religião ou opinião política. A Perseguição Ambiental pode
caracterizar-se positivamente ou negativamente. Ocorre positivamente quando a Perturbação
Ambiental é causada diretamente pelo agente perseguidor, com o objetivo de prejudicar e/ou
causar o deslocamento das vítimas. Ocorre negativamente quando, face um desastre natural
ou um acidente ambiental, os agentes competentes para prestar assistência às vítimas (via de
regra, o Estado) não o fazem por motivos relacionados a quem a pessoa é ou àquilo em que
ela acredita.
Nesse contexto, e tendo em mente a definição de Essam El-Hinnawi que se adota
para a categoria-gênero Deslocado Ambiental, conceitua-se Perseguido Ambiental como
aquela pessoa que, por fundado temor de Perseguição Ambiental que comprometa sua
existência e/ou afete seriamente sua qualidade de vida, é forçada a deixar seu habitat
tradicional, temporária ou permanentemente.
E se a Perseguição Ambiental é o fator diferenciador entre Perseguido Ambiental e
Deslocado Ambiental Stricto Sensu, propõe-se o seguinte conceito para este último: aquela
pessoa que é forçada a deixar seu habitat tradicional, migrando interna ou internacionalmente,
em caráter temporário ou permanente, por conta de uma determinada Perturbação Ambiental
(natural e/ou causada por pessoas) que, sem configurar Perseguição Ambiental, compromete
sua existência e/ou afeta seriamente sua qualidade de vida.
Todavia, a mera classificação dos Deslocados Ambientais em Perseguidos
Ambientais e Deslocados Ambientais Stricto Sensu ainda não basta. É preciso diferenciar,
entre os Perseguidos Ambientais, aqueles que migram internamente daqueles que migram
internacionalmente. Os que migram internacionalmente, por fundado temor de Perseguição
Ambiental, não gozando da proteção de seu país e não podendo mais a ele retornar, dá-se a
denominação de Refugiados Ambientais.
Note-se que a categoria Refugiado Ambiental adquire aqui um sentido
completamente diferente daquele que lhe foi dado por Essam El-Hinnawi. Os Refugiados
Ambientais compõem uma classe especialíssima de Deslocados Ambientais, reunindo todas
as condições para o seu reconhecimento, ao mesmo tempo, como Refugiados à luz da
Convenção de 1951 e como Deslocados Ambientais (da espécie dos Perseguidos Ambientais)
38
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
à luz dos apontamentos supra expostos. Graficamente, é possível representá-los pela área de
sobreposição de dois círculos secantes:
Refugiado
Refugiado
Deslocado
Ambiental
Ambiental
Nesse diapasão, o conceito mais apropriado para a categoria Refugiado Ambiental há
de conjugar as definições de Perseguido Ambiental (enquanto espécie do gênero Deslocado
Ambiental) e de Refugiado. Como resultado, propõe-se que Refugiado Ambiental seja
entendido como toda pessoa que, por fundado temor de Perseguição Ambiental que
comprometa sua existência e/ou afete seriamente sua qualidade de vida, é forçada a deixar o
país de sua nacionalidade, temporária ou permanentemente, e que não pode ou, em virtude
daquele temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se
encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual, não pode ou, devido ao referido
temor, não quer voltar a ele.
Tendo em mãos esse esquema de classificação dos Deslocados Ambientais em
Deslocados Ambientais Stricto Sensu, Perseguidos Ambientais e Refugiados Ambientais,
percebe-se com muito mais clareza a questão relacionada com a aplicação do sistema global
de proteção dos Refugiados. A Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 podem sim ser
aplicados aos Deslocados Ambientais — contudo, não em todas as circunstâncias. A
incidência das normas da Convenção e do Protocolo estão condicionadas à verificação dos
três critérios para o reconhecimento da condição de Refugiado: o fundado temor de
Perseguição, a Migração Internacional e a ausência de proteção do país de origem do
Refugiado. Por conseguinte, a Convenção e o Protocolo dos Refugiados somente se aplicam
aos Refugiados Ambientais e não aos demais Perseguidos Ambientais e nem aos Deslocados
Ambientais Stricto Sensu.
Assim, apesar do sistema global de proteção dos Refugiados poder ser utilizado para
a garantia dos Direitos Fundamentais de um grupo bastante específico de Deslocados
39
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Ambientais, ele não é suficiente para lidar com o crescente contingente de pessoas que
migram interna e internacionalmente, motivadas por Perturbações Ambientais, sem que esteja
necessariamente caracterizado o temor de Perseguição. Ao abandonar seus lares, esses
indivíduos submetem-se a condições das mais degradantes e testemunham a violação de seus
Direitos Fundamentais, inclusive do direito à vida, do direito à liberdade, do direito de não ser
submetido a tortura, do direito à privacidade, do direito à vida familiar, do direito de não ser
submetido ao exílio arbitrário etc. (PIOVESAN, 2001, p. 30)31
Todos esses direitos estão consubstanciados em um extenso rol de tratados
internacionais, a saber: na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; no Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos e no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, ambos de 1966; na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de
Genocídio, de 1948; na Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes, de 1984; na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Racial, de 1965; na Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989; e nos
demais instrumentos que compõem o Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Exatamente por isso Érika Pires Ramos (2011, p. 112) alerta que o vazio normativo
referente à situação dos Deslocados Ambientais “[...] não se coaduna com o atual estágio de
evolução do próprio Direito Internacional, especialmente com a proteção internacional da
pessoa humana — entendida de forma ampla —, na qual se insere a dimensão ambiental [...]”.
Destarte, no caso específico dos Deslocados Ambientais, a garantia de seus Direitos
Fundamentais passa inexoravelmente pelo reconhecimento jurídico internacional de um
estatuto próprio. Nesse sentido, destaca-se a contribuição de Michel Prieur que, juntamente
com uma equipe formada por mais oito estudiosos do tema32, sob os auspícios do Centre de
Recherche Interdisciplinaire en Droit de l’Environnement, de l’Aménagement de de
l’Urbanisme, redigiu um Projeto de Convenção relativo ao estatuto internacional dos
Deslocados Ambientais (PRIEUR et. al., 2008). Esse documento traz uma definição e uma
classificação dos Deslocados Ambientais, bem como consubstancia os princípios de sua
proteção e os direitos que lhes devem ser garantidos, além de prever a criação de uma
Agência especializada para lidar com os fluxos migratórios de Deslocados Ambientais. É uma
proposta inicial de reconhecimento do problema e implementação de soluções. E, conforme
31
O comentário da autora refere-se aos Refugiados, mas se adequa plenamente à condição dos Deslocados
Ambientais.
32
Jean-Pierre Marguenaud, Gérard Monediaire, Julien Betaille, Bernard Drobenko, Jean-Jacques Gouguet, JeanMarc Lavieille, Séverine Nadaud e Damien Roets
40
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
afirma Jean Lambert (apud RAMOS, 2011, p. 5, tradução livre): “Ao se reconhecer os
refugiados ambientais, reconhece-se o problema. Ao se reconhecer o problema, inicia-se o
caminho de se aceitar a responsabilidade e implementar as soluções.”33
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O problema dos Deslocados Ambientais já é um dos mais relevantes desafios da
Sociedade internacional contemporânea. Fenômeno não apenas de alcance global, mas
também de extrema complexidade, não recebeu ainda o devido tratamento jurídico no âmbito
internacional global. Como consequência, milhões de pessoas veem violados seus Direitos
Fundamentais, sem ter acesso a qualquer instituição internacional de alcance universal que
lhes garanta os direitos consubstanciados desde 1948 na Declaração Universal dos Direitos
Humanos e no Direito Internacional dos Direitos Humanos que a partir daquela Declaração se
desenvolveu.
A complexidade do tema exige um tratamento especial das categorias de Refugiados
e Deslocados Ambientais, considerando que as normas jurídicas vigentes de Direito
Internacional não trazem uma diferenciação jurídica, apesar de se tratarem, na prática, de
situações distintas.
O assunto vem ganhando repercussão e destaque na imprensa internacional, em
especial nas regiões vulneráveis à ocorrência de catástrofes ambientais que, em consequência,
provocam o deslocamento populacional. Assim, os indivíduos ou grupos abandonam
temporária ou definitivamente seus lares de origem pressionados por questões ambientais.
Surge uma nova categoria — os Deslocados Ambientais —, que ainda não há
consenso internacional, considerando que inexiste este termo na Convenção Relativa ao
Estatuto dos Refugiados (1951).
Em busca de diminuir essa lacuna normativa, intentou-se verificar a aplicação do
sistema global de proteção dos Refugiados aos casos de Deslocados Ambientais. Para tanto,
analisou-se, dentro da vertente jurídica daquele sistema, quais são os critérios impostos pela
Convenção de 1951 e por seu Protocolo de 1967 para a caracterização da condição de
Refugiado. A partir do conceito da categoria Refugiado consagrado pela Convenção e
modificado pelo Protocolo, foram identificadas três condições para o reconhecimento da
33
Texto original em ingês: “By recognizing enviromental refugees you recognize the problem. By recognizing
the problem you start on the road to accepting responsibility and implementing solutions.”
41
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
qualidade de Refugiado: o fundado temor de Perseguição, a Migração Internacional e a
ausência de proteção do país de origem do Refugiado.
Em seguida, foram apresentados os contornos do fenômeno dos Deslocados
Ambientais, destacando-se sua complexidade, que tem por base a pluralidade de situações que
se enquadram nessa categoria.
Tendo em vista essa pluralidade, propôs-se uma classificação dos Deslocados
Ambientais em duas espécies, que se diferenciam, respectivamente, pela presença ou não da
Perseguição Ambiental: os Perseguidos Ambientais e os Deslocados Ambientais Stricto
Sensu. Dentre os Perseguidos Ambientais, foram destacados aqueles que conseguem cruzar a
fronteira, migrando internacionalmente. A esses foi dada a denominação de Refugiados
Ambientais.
Tal classificação permitiu a realização de um juízo de compatibilidade entre os
diversos tipos de Deslocados Ambientais e os critérios de caracterização da categoria
Refugiado, impostos pelo sistema global de proteção. Como resultado, conclui-se que a
Convenção e o Protocolo dos Refugiados apenas se aplicam à classe especialíssima dos
Refugiados Ambientais, posto que é a única espécie de Deslocados Ambientais em que é
possível se verificar o fundado temor de Perseguição (na forma de Perseguição Ambiental), a
Migração Internacional e a ausência de proteção do país de origem. Os demais Perseguidos
Ambientais e os Deslocados Ambientais Stricto Sensu continuam sem estatuto jurídico e sem
um instrumento internacional de alcance global que concretize, a esses grupos vulneráveis, as
garantias do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Dessa maneira, é urgente a necessidade de criação de um instrumento internacional
de alcance global que conceda um estatuto jurídico aos Deslocados Ambientais,
reconhecendo-lhes e garantindo-lhes seus Direitos Fundamentais, inclusive por meio da
criação de uma instituição ou agência de proteção própria. Nesse mister, é louvável a
iniciativa de criação do Projeto de Convenção Relativa ao Estatuto dos Deslocados
Ambientais, de autoria de Michel Prieur e de sua equipe do Centre de Recherche
Interdisciplinaire en Droit de l’Environnement, de l’Aménagement de de l’Urbanisme.
REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS
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culminou na proteção internacional dos refugiados. In: ARAUJO, Nadia de. ALMEIDA,
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45
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A APLICAÇAO DO PRINCÍPIO DA INTEGRAÇAO AMBIENTAL NAS
POLÍTICAS SETORIAIS EUROPEIAS
Jamile Bergamaschine Mata Diz1
Rayelle Campos Caldas Goulart2
Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar como se deu o tratamento normativo e
a consequente aplicação do princípio da integração ambiental nas políticas comunitárias
europeias, especialmente no que se refere às políticas econômicas, industrial, exterior,
de transportes e agrícola, setores que apresentam uma maior inter-relação com a matéria
ambiental e que contam com um desenvolvimento normativo progressivo mais
acentuado. Buscou-se estabelecer ainda como a transversalidade afeta o processo
decisório vinculado a estas políticas, e como os tratados fundacionais foram
paulatinamente elevando o nível de integração do meio ambiente a este processo
decisório comum. Ao realizar um estudo sobre a integração do meio ambiente nas
políticas setoriais pretende-se abrir uma nova linha de investigação que possa
fundamentar a necessidade de que o meio ambiente seja destinatário de uma maior
proteção no momento mesmo da tomada de decisão, em qualquer campo ou âmbito de
atuação das instituições comunitárias. A aplicação do princípio da integração, tanto do
ponto de vista da horizontalidade como da globalidade, pode servir de referência para
outros processos de integração em curso, como o caso do MERCOSUL.
Palavras-chaves: princípio da integração; proteção do meio ambiente; políticas
setoriais; União Europeia.
LA APLICACIÓN DEL PRINCIPIO DE LA INTEGRACIÓN AMBIENTAL EN
LAS POLÍTICAS COMUNITARIAS EUROPEAS
Resumen: Este trabajo tiene por objetivo analizar cómo se dio el tratamiento normativo
y la consecuente aplicación del principio de la integración ambiental en las políticas
comunitarias europeas, especialmente en lo que se refiere a las políticas económicas,
industrial, exterior, de transportes y agrícola, sectores que presentan una mayor interrelación con la materia ambiental y que cuentan con un desarrollo normativo progresivo.
Se buscó establecer aún como la transversalidad afecta el proceso decisivo vinculado a
dichas políticas, y como los tratados fundacionales fueron paulatinamente elevando el
nivel de integración del medio ambiente a este proceso decisivo común. Al realizar un
estudio sobre la integración del medio ambiente en las políticas sectoriales se pretende
abrir una nueva línea de investigación que pueda fundamentar la necesidad de que el
medio ambiente sea destinatario de una mayor protección en el momento mismo de la
toma de decisión, en cualquier campo o ámbito de actuación de las instituciones
comunitarias. La aplicación del principio de la integración, tanto del punto de vista de la
Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Professora da
Universidade de Itaúna-MG Brasil. Doutora em Direito Público/Direito Comunitário pela Universidad
Alcalá de Henares - Madrid. Membro do Grupo de Pesquisa “Governança Global e Direitos Humanos”.
Assessora Jurídica do Setor de Assessoria Técnica Secretaria do MERCOSUL - Montevidéu (período:
2008-2009). Master en Instituciones y Políticas de la UE - UCJC/Madrid. E-mail:
[email protected].
2
Bolsista PIBIC/FAPEMIG. Faculdade de Direito, Ciências do Estado, UFMG.
1
46
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
horizontalidad como de la globalidad, puede servir de referencia para otros procesos de
integración en curso, como el caso del Mercosur.
Palabras claves: principio de integración; protección del medioambiente; políticas
sectoriales; Unión Europea.
Sumário
1. Introdução. 2. Gênese e desenvolvimento da proteção ambiental na Comunidade
europeia. 3. Transversalidade ambiental nas políticas setoriais da União Europeia.
3.1. Integração do meio ambiente na política econômica. 3.2. Integração do meio
ambiente na política industrial. 3.3. Integração do meio ambiente na política
exterior e de cooperação. 3.4. Integração do meio ambiente na política de
transportes. 3.5. Integração do meio ambiente na política agrícola comum.
4. Conclusão.
1. Introdução
A criação de uma comunidade de países que compartem objetivos e valores
comuns sempre foi objeto de atenção por parte dos estudiosos e teóricos do Direito,
especialmente quando essa comunidade adota também um sistema normativo, jurídico e
institucional próprio, onde o processo de tomada de decisões realiza-se por um esquema
completamente diferenciado dos modelos tradicionais existentes, baseados nos moldes
do sistema estatal.
No caso da União Europeia (UE) – união econômica e monetária criada na
década de 50 – a estrutura do nível decisório relativo às chamadas políticas setoriais,
âmbitos públicos cuja elaboração, adoção e aplicação foram transferidas a instituições
supranacionais, revela-se como um processo de integração regional cujas características
foram sendo gradativamente construídas ao longo da associação entre os Estadosmembros desta associação interestatal.
Neste sentido, a inclusão da proteção do meio ambiente no rol de políticas que
são decididas pelas instituições comunitárias demandou a criação de uma ordem jurídica
voltada para a criação de medidas e ações destinadas a garantir que a proteção do meio
ambiente possa ocupar um espaço central na agenda de discussões do processo
comunitário (MATA DIZ, 2012).
47
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A possibilidade de transferir às instituições comunitárias poder decisório sobre a
política ambiental nasce justamente do quadro de competências compartilhadas,
previstas pelos Tratados fundacionais, e que são assim consideradas porque a União, por
via de atribuição dos Tratados, reparte as competências com os Estados-membros num
âmbito concreto. Neste caso, tanto a União como os Estados-membros gozarão da
potestade para legislar e adotar atos juridicamente vinculantes sobre essa matéria. Não
obstante, os Estados membros poderão exercer sua competência somente na medida em
que a União não a estiver exercendo ou, também, se esta houver optado por renunciar ao
seu exercício. E é no rol das competências compartilhadas que inclui-se a política do
meio ambiente.
Agora, no marco da política do meio ambiente, deve-se analisar ainda como
serão estipuladas as medidas que deverão ser observadas pelos Estados membros e até
mesmo pelas próprias instituições, no momento mesmo da formulação das normas
comunitárias relativas às políticas setoriais comuns. A consideração da proteção
ambiental resultou, neste aspecto, na adoção do princípio da integração onde
determinou-se que toda ação, medida, norma ou programa comunitária – relacionados
com todas e quaisquer políticas comunitárias – deveria ser precedida pela valoração das
implicações ambientais que possam derivar-se de tais atos, devendo ainda incidir
diretamente no processo de tomada de decisões das instituições europeias.
O enfoque do presente trabalho será analisar o desenvolvimento normativo e
jurisprudencial presente na aplicação do princípio da integração e sua inserção nas
políticas setoriais tanto de natureza privativa (econômica) quando de natureza
compartilhada (política agrícola, industrial, transportes, etc.) e até mesmo aquelas que
se enquadram na chamada competência complementar (indústria). A eleição destes
temas deveu-se, em grande medida, à necessidade de compatibilizar a atuação
institucional comunitária com os objetivos estipulados pelo Tratado de Lisboa em seu
artigo 2º.
A metodologia de trabalho deverá centrar-se nos aspectos principais
estabelecidos para uma pesquisa interdisciplinar que envolve temas de direito ambiental
e seu tratamento pelo Direito Comunitário, devido especialmente ao caráter específico e
singular que deve estar presente em toda análise de um sistema jurídico próprio aplicado
a um determinado tipo de relação interestatal, como é o caso da UE. Neste sentido,
devem-se utilizar métodos que permitam analisar a evolução da construção do direito
ambiental e sua aplicação pelos Estados-membros. Os métodos histórico e indutivo
48
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
permitirão estabelecer as premissas conceituais e práticas aplicadas ao tema da proteção
ambiental no marco do processo de criação das políticas setoriais escolhidas, no
desenvolvimento do presente trabalho, ao possuírem maior inter-relação com o meio
ambiente.
No que tange a vertente teórico-metodológica, planeja-se seguir uma linha
crítico-metodológica, que, nas palavras de GUSTIN e DIAS (2002:41)
supõe uma teoria crítica da realidade e sustenta duas teses de grande valor
para o repensar da Ciência do Direito e de seus fundamentos e objeto: a
primeira defende que o pensamento jurídico é tópico e não dedutivo, é
problemático e não sistemático. Essa tese trabalha com a noção de razão
prática e de razão prudencial para o favorecimento da decisão jurídica. A
segunda tese insere-se na versão postulada pela teoria do discurso e pela
teoria argumentativa. Essa linha compreende o Direito como uma rede
complexa de linguagens e de significados.
Deve-se ainda ressaltar que estes temas foram objeto de numerosas iniciativas
comunitárias que permitiram a criação de um conjunto de programas, medida e normas
que serão examinados no decorrer deste artigo, voltados para o fortalecimento da
complexa relação entre o desenvolvimento econômico e a proteção ambiental.
2. Gênese e desenvolvimento da proteção ambiental na Comunidade europeia
A história da formação e da evolução das políticas da União Europeia se funde –
direta ou indiretamente – com a preocupação relativa aos mecanismos de proteção e
desenvolvimento de uma matriz normativa vinculada ao meio ambiente. O processo de
integração europeu, referência exitosa e importante no rol das experiências de
integração, demonstra tal preocupação ao criar um acervo de instrumentos destinados à
temática ambiental, e pode ser considerado como “modelo” para que outros processos
como, por exemplo, o MERCOSUL, se inspirem em prol de uma fluidez maior entre os
campos das políticas setoriais e o meio ambiente.
Tendo a gênese da Comunidade Econômica Europeia (CEE) ocorrida através do
Tratado de Roma (1957), que a instituiu como processo regional de viés econômico,
neste primeiro momento ainda não havia menção expressa ao tema ambiental. Após
séculos de descaso mundial da sociedade, somente na segunda metade do século XX
houve o início da tomada de consciência geral, e, mais especificamente, da União
Europeia sobre a existência de um problema ambiental de fato, partindo-se da premissa
de que era necessário maior intervenção das instituições comunitárias sobre a aplicação
de normas de caráter ambiental. Para CUADRADO-ROURA (2001: 140) “As políticas
49
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
ambientais surgem quando o nível real de qualidade ambiental for menor que o desejado,
(...) ou quando houver uma destruição iminente”. Segundo PERALES (2000:65) foi
somente a partir do momento em que as políticas da Comunidade começaram a adotar
um nível mais profundo de integração que normas passaram a ser ditadas sobre a
matéria:
A política ambiental é uma questão relativamente nova no âmbito da UE. O
Tratado de Roma de 1957, pelo qual se criou a Comunidade Econômica
Europeia não se referia de modo expresso ao meio ambiente; seria com
posteridade, quando a questão ambiental surge com força no nível
internacional, que a CEE começaria a atuar nesse âmbito. 3
Neste mesmo sentido, afirma KRAMER (1999:13-14) que
Conceitos como “ambiente”, “proteção ambiental” ou “política ambiental”
estavam ausentes na versão original do Tratado de 1957. Apesar disso, a
Comunidade adotou, inclusive antes de 1987, numerosas medidas de proteção
ambiental, que podem agrupar-se sob a rubrica geral de “política ambiental
comunitária”. Com isso, pouco depois da entrada em vigor do Tratado de
Roma tornou-se evidente que a criação de uma Comunidade Econômica
Europeia com um mercado comum, em que as fronteiras nacionais já não
representariam fronteiras econômicas, fez surgir a necessidade correlativa de
mecanismos comunitários de salvaguarda do homem e do meio ambiente. Daí
que, desde a finalização do período transitório para a construção do mercado
comum, a CE se acha comprometida cada vez mais em atividades de proteção
do meio ambiente.4
Segundo a doutrina (LEITE, 2004), a primeira norma ambiental adotada pela
então Comunidade Europeia foi a Diretiva 67/548 da CEE, de 1967 relativa à
aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas vinculadas à
classificação, embalagem e rotulagem das substâncias perigosas.
Essa lacuna não foi motivo para impedir que uma série de padrões a serem
seguidos sobre a matéria fossem criados e as discussões fossem colocadas em pauta
dentro da eurocomunidade, especialmente com o advento da Diretiva 70/157, de 6 de
fevereiro, sobre níveis de ruídos e da Diretiva 70/220, de 20 de março, sobre emissões
de gases contaminantes por veículos a motor (GARCÍA, 1993), abrindo espaço para que
3
Tradução do original: “La política ambiental es una cuestión relativamente nueva en el ámbito de la UE.
El Tratado de Roma de 1957 por el que se creó la Comunidad Económica Europea no se refería de modo
expreso al medio ambiente; sería con posterioridad, cuando la cuestión ambiental surge con fuerza a nivel
internacional, que la CEE empezaría actuar en este ámbito.”
4
Tradução do original: “Conceptos como ‘ambiente’, ‘protección ambiental’ o ‘política ambiental’ estaban
ausentes en la versión original del Tratado de 1957. A pesar de ello, la Comunidad adoptó, incluso antes
de 1987, numerosas medidas de protección ambiental, que pueden agruparse bajo la rúbrica general de
‘política ambiental comunitaria’. De hecho, poco después de la entrada en vigor de los Tratados de Roma
se puso de manifiesto que la creación de una Comunidad Económica Europea con un mercado común, en
el que las fronteras nacionales ya no representarían fronteras económicas, hacía surgir la necesidad
correlativa de mecanismos comunitarios de salvaguardia del hombre y del medio ambiente. De ahí que,
desde la finalización del período transitorio para la construcción del mercado común, la CE se haya ido
comprometiendo cada vez más en actividades de protección del medio ambiente.”
50
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a partir deste momento fossem adotadas mais de 300 diretivas e regulamentos que
abarcavam todas as searas do meio ambiente (DOUMA; JACOBS, 1997). Somente a
partir da década de 70, quando os impactos do descaso com o meio ambiente
começaram a ser notados através do aumento da poluição em dimensões globais,
iniciaram-se as discussões para a criação de uma agenda ambiental em um nível global,
tendo como marco principal a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente,
em 1972. E foi justamente neste ano que o Conselho Europeu adotou, em 22 de
novembro, seu primeiro programa de ação relativo ao meio ambiente, frisando a
necessidade de avançar na construção de uma política ambiental que se integrasse no
esquema comunitário, ao estabelecer que:
[…] conforme o artigo 2º do Tratado, é tarefa da CEE promover na
Comunidade um desenvolvimento harmonioso das atividades econômicas e
uma expansão contínua e equilibrada, que agora não pode imaginar-se com
ausência de uma campanha efetiva para combater a poluição e de uma
melhora na qualidade de vida e na proteção do meio ambiente.” (PERALES,
2000:65) 5
Sobre este período, escreve ainda PERALES (2000:66) que “a partir de 1972 a
questão ambiental formará parte do corpo legal da CEE, primeiro de modo indireto
(como meio para garantir o mercado comum), e depois de modo direto, como política
que 'per se' deva formar parte dos objetivos da UE”. Porém controvérsias surgiram
acerca dos fundamentos jurídicos necessários para determinar a competência
comunitária sobre o meio ambiente na Comunidade, já que o artigo 2º do Tratado CEE
não atribuía potestades à Comunidade, ou seja, poder para legislar sobre a matéria no
marco das competências atribuídas pelos Estados à então Comunidade. Neste sentido
conforme RUIZ (1999:429)
Nos Tratados Constitutivos, não existia base jurídica precisa que postulava a
implantação de uma política comunitária de meio ambiente. Este silêncio dos
Tratados se compreende facilmente caso se considere que, nos anos cinquenta,
os conceitos de 'política de meio ambiente' ou de 'proteção do meio ambiente',
no sentido que tem hoje, não eram conhecidos; por isso não é de se estranhar
que, durante os primeiros anos de vida, a Comunidade funcionara sem tomálos em consideração. 6
5
No original: “[...] conforme el artículo 2 del Tratado, es tarea de la CEE promover en la Comunidad un
desarrollo armonioso de actividades económicas y una expansión continua y equilibrada, que ahora no
puede imaginarse con ausencia de una campaña efectiva para combatir la polución y de una mejora en la
calidad de vida y la protección del medio ambiente.”
6
No original: “En los Tratados constitutivos, no existía base jurídica precisa que postulara la
implantación de una política comunitaria del medio ambiente. Este silencio de los Tratados se comprende
fácilmente si se considera que, en los años cincuenta, los conceptos de "política del medio ambiente" o de
"protección del medio ambiente", en el sentido que tienen hoy, no se conocían; por ello no es de extrañar
que, durante los primeros años de su andadura, la Comunidad funcionara sin tomarlos en consideración.”
51
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Foi através do Ato Único Europeu (AUE 1986-1987) que, em seu artigo 130,
introduziu o meio ambiente nos instrumentos fundacionais da Comunidade,
determinando especificamente a necessidade de harmonização das normas ambientais
com as políticas econômicas no recém-formado mercado comum. MATEO (1991:450)
ao comentar a importância do AUE para a formação de um direito ambiental
comunitário especifica que tal instrumento “supõe o respaldo jurídico no mais alto nível
das preocupações comunitárias neste campo, superando-se assim sua relativa orfandade
legal, que havia obrigado a adotar, um tanto forçadamente, a cobertura de outros
empoderamentos conexos, suscitando-se com ele sensíveis inconvenientes”7.
Ainda, o caráter jurídico que justificava a competência da União Europeia para
legislar sobre assuntos do meio ambiente foi confirmado, naquele momento, por
sentença do então Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias que determinou ser o
meio ambiente interesse ou valor atendível juridicamente, e que se encontrava
especificamente vinculado ao comércio intracomunitário (GARCÍA, 1993).
O Tratado de Maastricht de 19928, que alçou a União Europeia à categoria de
união econômica e monetária, modificou o conteúdo ambiental existente no AUE,
inserindo-o no Título XVI, instrumento que foi consolidado ao ser incorporado juntamente com todos os outros Tratados já existentes9 - ao Tratado de Amsterdam de
1997, em vigor a partir de 1º de maio de 1999, e onde finalmente o tema ambiental foi
inserido nas políticas comunitárias ao estabelecer, nos artigos 174, 175 e 176 (título
XIX do TUE), tratamento específico sobre a matéria meio ambiente (KRAMER, 1999),
e determinar que as exigências em matéria de proteção do ambiente passassem a
integrar-se na definição, adoção e aplicação das demais políticas comunitárias10. Uma
breve análise sobre seus impactos será feita a seguir para que se entenda a profundidade
de seu conteúdo em relação à integração das medidas ambientais às ações comunitárias
7
No original “supone el respaldo jurídico al más alto nivel de las preocupaciones comunitarias en este
campo, superando-se así su relativa orfandad legal, que había obligado a arroparle, un tanto forzadamente,
bajo la cobertura de otros apoderamientos conexos suscitando-se con ello sensibles inconvenientes (...)”
8
Atualmente também conhecido como TUE - Tratado da União Europeia - foi este tratado que modificou
o título da União Europeia, de Comunidade Econômica Europeia para Comunidade Europeia.
9
Ou seja, foram consolidados no Tratado de Amsterdam os Tratados de Paris de 1951, os Tratados de
Roma de 1957, o Ato Único Europeu de 1987 e o de Maastricht de 1992.
10
Cabe fazer um pequeno adendo ao lembrar que tais exigências feitas pelo Tratado em matéria de
ambiente já havia sido citado pelo 4º Programa de Ação Ambiental (1987-1992), que propunha integração
da dimensão ambiental nas diversas políticas setoriais comunitárias, ao fixar quatro eixos de atividades: 1)
implementação efetiva da legislação comunitária existente; 2) regulamentação das “matérias” e “fontes de
poluição” e de todos os seus impactos sobre o meio ambiente; 3) incremento do acesso do público à
informação e a sua disseminação; e 4) criação de empregos. Secretaria de Estado do Meio
Ambiente/Coordenadoria de Educação Ambiental (1997: 22).
52
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empreendidas no marco do processo europeu.
O artigo 174 ditava os objetivos da Comunidade Europeia no que diz respeito à
matéria ambiental, explicitando quais seriam as ações necessárias para a existência de
uma política ambiental comunitária, e no numeral 2 do supracitado artigo, considerava a
necessidade de alcançar um nível de proteção elevado, ao considerar a gama de
situações passíveis de ocorrer em um território tão extenso quanto o abarcado pela
Comunidade, sempre tendo como base os princípios de prevenção, de correção dos
danos ambientais preferentemente na fonte e o principio do poluidor-pagador.11 Cabe
aqui fazer um parênteses para citar a questão dos princípios ambientais, tão
emblemáticos e influenciadores para as medidas ambientais tomadas a partir de sua
criação12. Tais princípios foram estabelecidos pelos primeiro e segundo Programas de
Ação em matéria de meio ambiente, e buscavam soluções para controlar a diversidade
de problemas relacionados com as diversas questões ambientais (contaminação; gestão
dos recursos; etc.). Foram onze os princípios e eles se mantiveram vigentes em todos os
programas de ação a posteriori. São eles:
- Prevenir é melhor que remediar (este princípio tornou-se proeminente no quarto
programa de ação em matéria de meio ambiente);
- Os impactos sobre o meio ambiente devem ser considerados o mais cedo possível no
11
“Artigo 174 - 1. A política da Comunidade no domínio do ambiente contribui para a persecução dos
seguintes objetivos:
- a preservação, a proteção e a melhoria da qualidade do ambiente,
- a proteção da saúde das pessoas,
- a utilização prudente e racional dos recursos naturais,
- a promoção, no plano internacional, de medidas destinadas a enfrentar os problemas regionais ou
mundiais do ambiente.
2. A política da Comunidade no domínio do ambiente tem por objetivo atingir um nível de proteção
elevado, tendo em conta a diversidade das situações existentes nas diferentes regiões da Comunidade.
Baseia-se nos princípios da precaução e da ação preventiva, no princípio da correção, prioritariamente na
fonte, dos danos causados ao ambiente e no princípio do poluidor-pagador..”
12
a) Princípio da precaução: significa que algo que pode ser potencialmente gerador de alterações
negativas no meio ambiente deve ser evitado, se a ciência não for capaz de esclarecer quais são os efeitos
concretos desse fato para o ambiente. Pressupõe juízo de valor sobre essas análises dos fatos, passíveis de
razoabilidade sobre a existência ou não de abalos reais ao meio ambiente; b) Princípio da prevenção: “é
mais fácil prevenir que remediar”. Medidas preventivas devem ser tomadas para evitar-se danos aos
ecossistemas, segundo esse princípio, como relatórios de impacto ambiental, estudos de impacto
ambiental, concessões de licenças ambientais, "eco auditorias", etc. Conhecido pela expressão em inglês
“PPP”: “Pollution prevention pays”, ou seja, a prevenção da poluição compensa; c) Princípio da correção
na fonte: também conhecido como princípio do produtor-eliminador, da auto-suficiência ou da
proximidade. Necessário identificar quem deve corrigir o problema, onde e quando; d) Princípio do
Poluidor-pagador: “dita que as ações de proteção ao meio ambiente devem ser promovidas pelos paísesmembros do bloco de forma integrada com os outros setores, de forma que tais políticas setoriais se
mostrem harmonizadas ao meio ambiente, tendo em vista que tanto este quanto sua degradação não
respeitam fronteiras nacionais ou regionais sendo tal princípio claramente definido através do atual artigo
6º do TUE” ( sic da autora, no texto em pauta). (ANTUNES, 2002:45).
53
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
processo de tomada de decisões;
- A exploração dos recursos naturais que provoque danos significativos no equilíbrio
ecológico deve ser evitada;
- Os conhecimentos científicos devem ser desenvolvidos com o objetivo de permitir a
implementação de determinadas ações de preservação ambiental;
- O princípio “poluidor/pagador”, isto é, o custo da prevenção e da reparação dos danos
ao ambiente deve ser suportado pelo poluidor;
- As atividades promovidas no território ou sob a jurisdição de um Estado-membro não
devem provocar danos ao ambiente de outro;
- A política ambiental dos Estados-membros deve promover a proteção internacional e
mundial do meio ambiente através das organizações internacionais;
- A proteção ambiental é responsabilidade de todos, sendo necessário promover a
educação nesse domínio;
- As medidas de proteção ao meio ambiente devem ser tomadas no “nível mais
apropriado”, levando em consideração o tipo de poluição, a ação necessária e a zona
geográfica a proteger, na esteira da aplicação do princípio da subsidiariedade.
Vale realçar que o principio quiçá mais significativo, sendo prioritário desde o
AUE (1987), seja o princípio da integração ambiental o qual determina que as ações de
proteção ao meio ambiente devem ser promovidas pelos países-membros de forma
integrada com os outros setores, de maneira que tais políticas setoriais se mostrem
harmonizadas com os parâmetros de proteção ao meio ambiente, tendo em vista que a
possível degradação não respeita fronteiras nacionais ou regionais, sendo tal princípio
claramente definido no artigo 6º do TUE:
Artigo 6º- As exigências em matéria de proteção do ambiente devem ser
integradas na definição e execução das políticas e ações da Comunidade
previstas no artigo 3º, em especial com o objetivo de promover um
desenvolvimento sustentável.
Cabe salientar ainda que o artigo 176 permitia que cada país-membro ditasse
normas de proteção ambiental, desde que tais normas: i) fossem compatíveis com o
Tratado; ii) buscassem um “maior nível de proteção ambiental”, e iii) fosse feita uma
notificação à Comissão Europeia, que passaria a controlar a aplicação da norma
nacional com a norma comunitária. Neste sentido, previa o art. 176 que “As medidas de
proteção adotadas por força do artigo 175 não obstam a que cada Estado-Membro
mantenha ou introduza medidas de proteção reforçadas. Essas medidas devem ser
compatíveis com o presente Tratado e serão notificadas à Comissão.”
54
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
No atual instrumento normativo fundacional – Tratado de Lisboa – o princípio
da integração encontra-se explicitamente delimitado no art. 11 do Tratado de
Funcionamento da UE (TFUE) ao estabelecer que “As exigências em matéria de
proteção do ambiente devem ser integradas na definição e execução das políticas e
ações da União, em especial com o objetivo de promover um desenvolvimento
sustentável.”13 Também o art. 191 prevê – de forma similar à disposição do art. 174
TUE – os objetivos e princípios aplicados pela UE em matéria ambiental, destacando-se
como elemento mais inovador a inclusão da mudança climática como tema prioritário
na agenda ambiental comum. Portanto, e segundo PLAZA MARTÍN (2013:100)
“O Tratado de Lisboa não introduziu grandes novidades nas disposições de
direito originário em matéria meio ambiental. Seu maior aporte é realçar
ainda mais a importância do princípio da integração (presente no Tratado
desde o Ato Único Europeu), cujo protagonismo na política ambiental
começou a cobrar um especial destaque a partir do Tratado de Amsterdam
como requisito sine qua non para avançar em direção a um desenvolvimento
sustentável. De forma que a influência da política ambiental nas demais
políticas e ações da União, com o objetivo de fomentar um modelo de
desenvolvimento sustentável, é cada vez mais notável.” 14
Importante foram, também, os sucessivos programas de ações ambientais que
criavam uma agenda temática sobre as questões ambientais consideradas prioritárias
para cada período15. Conforme já mencionado, os dois primeiros programas trataram de
delimitar aspectos considerados relevantes a partir da adoção da matriz principiológica
que deveria nortear toda a atuação comunitária.
Neste sentido, o primeiro programa, cujo alcance temporal foi determinado para
o período 1973-1977, tinha como temas principais a luta contra a contaminação; a
manutenção do equilíbrio ecológico e a luta contra a exploração irracional dos recursos
naturais, entre outros; já o segundo programa, adotado para o período 1977-1981
13
Digno de nota é o art. 13 que estabelece especial menção o direito dos animais ao bem-estar ao fixar:
“Na definição e aplicação das políticas da União nos domínios da agricultura, da pesca, dos transportes,
do mercado interno, da investigação e desenvolvimento tecnológico e do espaço, a União e os EstadosMembros terão plenamente em conta as exigências em matéria de bem-estar dos animais, enquanto seres
sensíveis, respeitando simultaneamente as disposições legislativas e administrativas e os costumes dos
Estados-Membros, nomeadamente em matéria de ritos religiosos, tradições culturais e património
regional.”
14
No original: “El Tratado de Lisboa no va a introducir grandes novedades en las disposiciones del
derecho originario de la Unión en materia de medio ambiente. Su mayor aportación es la de realzar aún
más la importancia del principio de integración (presente en el Tratado desde el Acta Única Europea),
cuyo protagonismo en la política ambiental comenzó a cobrar un especial relieve a partir del Tratado de
Amsterdam como requisito sine qua non para avanzar hacia un ‘desarrollo sostenible’. De manera que la
influencia de la política ambiental en todas las demás políticas y acciones de la Unión con el objetivo de
fomentar un modelo de desarrollo sostenible, es cada vez más notable.”
15
Os programas de ação são instrumentos onde se concretizam os projetos, meios e ações que devem ser
adotadas, durante certo período, para a consolidação da política ambiental.
55
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
consolidava as diretrizes geradas pelo primeiro programa e iniciava os debates sobre a
conexão entre o meio ambiente e o desenvolvimento econômico, sentando as bases para
que o terceiro programa (1982-1986) pudesse estabelecer o princípio da integração,
através do enfoque da horizontalidade e da globalidade que posteriormente foram
reforçadas no quarto e quinto programas de ação. E é justamente este enfoque que foi
amplamente analisado por RAMON (1998:5) ao afirmar que
O III Programa Comunitário de Ação Ambiental (1982-1986) continuou a
consolidação dos interesses ambientais entre as linhas de atuação da
Comunidade Europeia, conforme as ideias de generalidade e globalidade. Por
uma parte, a partir do III Programa, a proteção do meio ambiente não
constituiu somente o objetivo de uma das linhas de ação comunitária. De
maneira que junto a específica política ambiental, se identificou um objetivo
geral de proteção do meio ambiente, que devia ser perseguido por quaisquer
outras políticas comunitárias “que se trate de integrar as preocupações do
meio ambiente nas demais políticas comunitárias”. Por outra parte, se
constatou que as considerações ambientais incidiam tão intensamente sobre
determinadas políticas comunitárias – agricultura, energia, indústria,
transportes, turismo – que era preciso ampliar os objetivos da política
específica do meio ambiente, formulando, em definitivo, uma “estratégia
global”.
Vale ressaltar somente que o quinto Programa de Ação Ambiental, intitulado
“Para um Desenvolvimento Sustentável”, ao consolidar a integração meio ambiente e
políticas setoriais comunitárias, enfatizou a necessidade de que todas as medidas
destinadas aos setores capazes de gerar maior impacto negativo sobre o meio ambiente
(indústria, energia, turismo, transporte, agricultura) fossem objeto de maior atenção por
parte das instituições comunitárias e dos próprios Estados-membros.
O sexto programa de ação, cujo período abarcou os anos de 2002 a 2012, foi
considerado como a base para as medidas propostas na Estratégia comunitária de
desenvolvimento sustentável, adotada pelo Conselho em junho de 2001. Os objetivos
prioritários assinalados por este programa foram: mudança climática; biodiversidade;
meio ambiente, saúde e qualidade de vida; e recursos naturais e resíduos. Um ponto
interessante sobre o sexto programa foi que sua adoção deu-se mediante uma decisão
emanada do Parlamento e Conselho, considerada como atípica, pois até este momento
os programas eram aprovados pelas instituições, mas não adquiriam a natureza de
norma comunitária. A principal consequência derivada de tal modificação refere-se
basicamente à natureza jurídica dos programas, pois estes - ao serem considerados como
instrumentos para determinar e conduzir a atuação comunitária em temas ambientais ostentam mais um caráter político que jurídico, ao não possuir efeitos vinculantes
diretos.
56
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
2. Transversalidade das questões ambientais nas políticas setoriais da União
Europeia
O termo “transversalidade” refere-se à capacidade que um setor possui de atingir
todas as demais áreas com as quais pode se co-relacionar, e dentro do universo jurídico,
a transversalidade no âmbito do meio ambiente surge a partir do momento em que há a
necessidade de integração das questões ambientais com as demais políticas setoriais
(energética, de transporte, de saúde, agrícola, de comércio, etc). Percebe-se que o meio
ambiente, pelo enorme alcance de sua definição e de seus componentes (naturais ou
artificiais), se interpenetra por todos os setores econômicos e sociais, e impõe sua
condição de patrimônio ecológico em áreas tradicionais na busca do equilíbrio do
sistema ambiental.
Segundo a doutrina (LEME MACHADO, 2007), a transversalidade de uma
normatização de cunho ambiental se dá devido ao caráter horizontal e o poder de
interação com as demais áreas e políticas, e tem a finalidade de orientar o ordenamento
num sentido ambientalista. Ainda, o meio ambiente pode ser considerado como uma
vertente transversal e multidisciplinar por incluir, em sua composição, agentes bióticos e
abióticos, sociais, econômicos, jurídicos e político-institucionais (PADILHA, 2010).
Na União Europeia essa transversalidade considera-se marcante e decisiva para
o futuro ambiental da Comunidade, e mesmo antes do AUE, essa integração da política
ambiental nas diretrizes comunitárias já aparecia implicitamente nas tentativas de
harmonização em busca de um mercado comum, porém, foi a partir de 1987, conforme
já analisado, com a aprovação do Ato Único Europeu, onde a política de meio ambiente
finalmente se revela institucionalizada como política comunitária, e onde se expressam
os princípios e o componente transversal que o meio ambiente possui, criando uma
diretriz que deve conduzir toda a política comunitária e nacional.
A solução para aplicação dessa transversalidade vem por meio de
harmonização legislativa e administrativa dos países membros da União Europeia com
as diretrizes legais que a política comunitária em matéria de ambiente determina,
sempre pautada nos procedimentos decisórios adotados pelos instrumentos normativos
que se sustentam na concepção do triple bottom line, ou “tripé da sustentabilidade”.
Criado em 1994 por Elkington (2004: 10), o termo significa que “as organizações
devem levar em consideração aspectos não somente econômicos, mas também sociais e
ambientais, que se relacionem com suas respectivas atividades”. O conceito recebeu
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críticas relativas à falta de clareza na hora de ponderar e aplicar as variáveis propostas
pelo método, porém a importância do triple bottom line é inegável para a manutenção
da defesa do desenvolvimento sustentável em vários âmbitos, e cada vez mais torna-se
patente a necessidade de um ordenamento jurídico consistente com o maior nível de
proteção ambiental.
O princípio da transversalidade ganha maior destaque ao ser elencando no rol
dos princípios gerais da União Europeia, pois conforme PLAZA MARTIN (2013:125126) o princípio da integração pode ser considerado como
Princípio geral inspirador de cada atuação da União, bem como a
horizontalidade que necessariamente caracteriza a política ambiental (...),
ademais, dada sua atual posição como princípio geral do Direito da União – e
não só como princípio da política e do Direito ambiental – deve ser levado
em consideração na interpretação de qualquer norma de Direito comunitário,
tal e como estabelecido em diversas decisões do Tribunal de Justiça das
Comunidades Europeias (…); deve-se assinalar que este princípio tem
especial importância e tem que ser respeitado pelos Estados membros ao
executar todas e cada uma das normas adotadas no marco de qualquer ação
16
ou política comunitária.
Um dos principais reflexos de tal inclusão se refere ao fato de que pode ser
utilizado como fundamento para decisões judiciais do Tribunal de Justiça da União
Europeia, como foi o caso de um recurso da Comissão em relação a um projeto de
autoestrada construída por Portugal, onde o Tribunal da então Comunidade Europeia
recorreu aos princípios de proporcionalidade e transversalidade para solucionar a
demanda. Em sua sentença, o Tribunal reconheceu a pertinência dos argumentos
apresentados pela Comissão, que afirmavam não ter Portugal realizado a devida
avaliação dos impactos sobre o local onde o projeto de autoestrada seria implantado, já
que o traçado espacial da mesma passava por uma zona de proteção especial, tendo,
assim, violado os dispositivos das Diretivas 92/43/CEE e 97/62/CE, e os princípios
supracitados, ao ignorar uma prática de proteção do ambiente por motivos de defesa da
política setorial de transportes, e por não ter optado por soluções alternativas para o
traçado em questão, que aliassem proteção do ambiente e baixo custo financeiro. Sendo
No original: “principio general inspirador de cada actuación de la Unión, así como la horizontalidad
que necesariamente caracteriza a la política ambiental” (…), además, dada su actual posición como
principio general del Derecho de la Unión – y no solo como principio de la política y el Derecho
ambiental – debe de ser tomado en consideración en la interpretación de cualquier norma de Derecho
comunitario, tal y como ha quedado dispuesto en diversas decisiones del Tribunal de Justicia de las
Comunidades Europeas (…); hay que señalar que este principio tiene especial importancia en cuanto ha
de ser respetado por los Estados miembros al ejecutar todas y cada una de las normas adoptadas en el
marco de cualquier acción o política comunitaria.”
16
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assim, nota-se que os princípios claramente norteiam as decisões do Tribunal17, e que,
para o juiz comunitário, caso não haja proteção do meio ambiente nos processos
decisórios relativos às distintas políticas, as considerações econômicas não serão iguais
ou mais importantes que as considerações ecológicas.18
O princípio da transversalidade, muito antes de ser adotado como marco
essencial do direito comunitário, já era considerado como uma relevante diretriz no
tocante à harmonização vigente em distintas regulamentações como, por exemplo,
aquela que criou o selo ambiental comunitário Ecolabel, em 1987, posteriormente
aprovado pelo Conselho da União Europeia em 1992. O Ecolabel é um programa
comunitário de rotulagem ecológica que possui como objetivo “promover o desenho,
produção, comercialização e consumo de produtos com reduzido efeito ambiental
durante o ciclo de vida e informar melhor os consumidores sobre o impacto dos
produtos ao meio ambiente”19. Ele foi criado na tentativa de amenizar a dificuldade de
compatibilização da política comunitária ambiental com as diferentes políticas internas
relativas à embalagem de produtos, evitando assim que diversos programas ambientais
fossem adotados pelos países-membros e concorressem entre si, gerando distorções no
comércio interno e externo da comunidade, afetando também a competitividade dos
países. Assim, o Ecolabel foi criado como instrumento de padronização de critérios para
que houvesse apenas um rótulo ambiental para toda a União Europeia, beneficiando-a,
assim, com a harmonização das legislações ambientais com as outras políticas setoriais.
Uma vez analisado o marco normativo e instrumental da atuação da UE em
matéria ambiental, nos dedicaremos a examinar como se dá a relação entre meio
ambiente e políticas setoriais, especificamente no que se refere à política econômica,
política industrial, política exterior e de cooperação, política agrícola, política de
transporte, entre outras, de forma a estabelecer como o princípio da integração tem sido
amplamente aplicado no espaço europeu regional, sem contudo pretender, nestas breves
linhas, esgotar completamente o tema dado o caráter abrangente de tais políticas.
3.1. Integração do meio ambiente na política econômica da União Europeia
Vide entre outros, TJCE, assunto C-300, Comissão versus Conselho, sentença de 11.06.1992 (também
conhecido como assunto dióxido de titânio); TJCE, assunto C-513, sentença de 17.12.2002.
18
TJCE, assunto C-239/04, Comissão versus Portugal, publicado em 11/09/2004.
19
Resolução do Parlamento Europeu de 19 de junho de 1987, regulamentado pela União Europeia de
acordo com o regulamento nº 880/92 do Conselho, que criou o sistema comunitário de atribuição do
rótulo ecológico.
17
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A partir da publicação - no Diário Oficial da UE - da Comunicação da
Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu, documento destinado a criar um
marco geral com a finalidade de conciliar as necessidades e responsabilidades para
integrar as questões ambientais e o desenvolvimento sustentável na política econômica
da União Europeia 20 , reforçou-se a necessidade de compatibilizar o crescimento
econômico com a manutenção de um nível aceitável de qualidade ambiental,
entendendo que ambos devem se integrar em prol, simultaneamente, da redução da
poluição e dos benefícios de uma economia saudável. Portanto, pode-se observar que a
principal estratégia voltada para a integração do meio ambiente com o setor econômico
deve dar-se, exatamente, através da criação ou fomento do mercado voltado para os
bens ambientais, através de uma série de soluções propostas pela Comunicação para
incrementar o nível de funcionamento desse mercado. São elas:
- fixação de preços adequados para os bens ambientais;
- criar e regular os direitos de propriedade desses bens e serviços ambientais, no sentido
de torná-los aplicáveis e comercializáveis;
- estabelecer um valor preciso para a poluição (por meio de impostos ou taxas);
- estabelecer sistemas de depósito – reembolso como incentivo a reciclagem;
- fornecer subsídios aos bens e serviços que têm um efeito positivo sobre o meio
ambiente;
- negociar acordos com a indústria;
- informar sobre as características ambientais de produtos e serviços.
Deixando sempre clara a relação entre competitividade de mercados princípio dominante dentro de um processo regional que visa a criação de uma
integração mais aprofundada entre seus Estados-membros - e a respectiva relação com o
meio ambiente, a Comunicação ainda afirma que uma maior proteção do meio ambiente
não deve repercutir negativamente na competitividade que a União Europeia possui em
escala global, ao contrário, deve reforçá-la, pois políticas ambientais não possuem, em
seu cerne, custos globais elevados sendo que, se aliadas a instrumentos tecnológicos,
estes custos podem ser gradativamente diminuídos. Como exemplo, pode-se citar a
aplicação do princípio do poluidor-pagador (elemento de integração entre os dois
setores), onde a repartição dos custos entre produtores e consumidores é alterada, tendo
20
Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu, com vistas a conciliar as
necessidades e responsabilidades para integrar as questões ambientais e o desenvolvimento sustentável na
política econômica da União Europeia, COM (2000) 576 final.
60
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
em vista que, para cobrir o valor da redução de emissão de poluentes, o produtor poderá
aumentar os preços. Aparentemente, a competitividade é afetada com este princípio,
porém é visível que a lucratividade virá a partir do momento em que gastos com outras
políticas públicas como a saúde, por exemplo, diminuirão progressivamente.
Através da proposta da Comissão ao Conselho de uma análise das
repercussões ambientais nos sistemas jurídicos de cada um dos Estados-membros, é
possível estabelecer políticas ambientais com efeitos positivos para ambos os setores,
pela aplicação de elementos básicos para uma estratégia comunitária de integração do
meio ambiente na política econômica, tais como os enunciados pela Comunicação
supracitada:
a) adotar uma política progressiva e factível de integração ambiental na política
econômica a partir de uma análise dos dados científicos e técnicos disponíveis, da
situação ambiental na Comunidade e dos custos e benefícios da intervenção e da não
intervenção;
b) adotar uma estratégia compatível com a estratégia de desenvolvimento sustentável
que o Conselho Europeu adotou em junho de 2001;
c) as Orientações Gerais da Política Econômica deveriam ter em conta os objetivos de
integração das questões do meio ambiente;
d) adotar uma estratégia que tenha em conta a importância das políticas fiscais, os
gastos e a eficácia dos instrumentos econômicos para a realização dos objetivos meio
ambientais;
e) incluir a supressão das subvenções que tenham uma incidência negativa sobre o meio
ambiente.
Conforme analisamos anteriormente, a UE adotou vários programas em matéria
ambiental cuja principal finalidade foi aliar tais objetivos aos princípios do direito
comunitário em matéria ambiental, o que contribuiu para consolidar a meta europeia de
transformar sua economia em uma “economia verde”, seguindo preceitos de mercado
sustentáveis e ecologicamente benéficos para todos os setores econômicos envolvidos,
sempre atentos as oscilações do mercado e seus possíveis impactos nas questões
ambientais, e vice versa. Segundo VIOLA (2011:43) “a crise econômica de 2008-9 e a
consequente instabilidade na eurozona erodiram fortemente a capacidade europeia de
liderar a transição para uma economia verde”, porém a crise econômica não atingiu,
ainda, os esforços em prol de uma política fortemente calcada na proteção ambiental, ao
contrário, aproveitando-se dos impactos econômicos ocasionados pela crise, o momento
61
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
poderia ser considerado propício para que tais mudanças ocorram também na forma de
lidar com os problemas ambientais, inserindo um novo sistema, ainda mais eficiente e
democrático que o antigo modelo utilizado pelas instituições comunitárias, e que
consiga aliar economia e meio ambiente.
Como a crise econômica é sistêmica, o processo de recuperação em curso
atualmente não significa a volta a uma situação similar à existente antes de
setembro de 2008. Diferentemente do que teriam imaginado em meados de
2008 a grande maioria dos economistas e analistas internacionais, uma parte
substancial dos pacotes de estímulo econômico, iniciados em novembro de
2008 em vários países chave, destinou-se a impulsionar a transição para uma
economia de baixo carbono. (VIOLA, 2011:44)
3.2. Integração do meio ambiente na política industrial da União Europeia
Sempre preocupada com a busca da limitação dos impactos negativos que suas
indústrias podem causar ao meio ambiente, a União Europeia desenvolveu estratégias
para integrar as questões ambientais nos temas relativos à política industrial, de forma a
integrar as duas áreas sem que houvesse impactos negativos para o desenvolvimento
econômico ou ambiental. Dois documentos são paradigmáticos para demonstrar tal
inter-relação, sendo eles as Conclusões do Conselho sobre uma estratégia para
integração do desenvolvimento sustentável na política empresarial da União Europeia,21
(2001) e as Conclusões do Conselho sobre política empresarial e desenvolvimento
sustentável (2002).22
As demandas apresentadas pelas grandes indústrias em prol de maior eficiência
na produção em larga escala podem ser apontadas como o grande entrave para a
absorção de novos parâmetros relativos à proteção de impactos (especialmente
negativos) sobre o meio ambiente. De forma a impedir um incremento em tais impactos,
a União Europeia adotou como eixo a dissociação do desenvolvimento econômico das
empresas estabelecidas nos Estados-membros da degradação ambiental decorrente das
atividades por estas geradas, ao estabelecer normas que permitam prevenir a
contaminação do meio ambiente, e, ainda caso ocorra, exigir a reparação dos danos
causados, sempre perseguindo a missão de que haja um alto grau de conservação
ambiental sem comprometimento da competitividade das empresas.
As normas
21
Conclusões do Conselho (Energia/Indústria) sobre a estratégia para a integração do desenvolvimento
sustentável na política empresarial da União Europeia (8328/01), publicado no Boletim do Parlamento
Europeu, 18.06.2001, p. 05.
22
Conclusões do Conselho sobre política empresarial e desenvolvimento sustentável, disponível em
http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cms_data/docs/pressdata/pt/intm/71057.pdf, acesso em março
2012.
62
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
emanadas pelas instituições comunitárias basearam-se, portanto, nos princípios
fundamentais da política europeia ambiental, especialmente aqueles especificados no
artigo 174 do Tratado da União Europeia (TUE), anteriormente analisados.
Tais princípios fundamentais são incorporados, portanto, pelas normas
específicas aplicáveis às atividades industriais na UE. A integração dos setores
industriais com o meio ambiente se coloca claramente como prioridade para a União
Europeia, tendo sua legislação ambiental estabelecido limites para as descargas de
poluentes de determinados setores para a atmosfera e no ambiente em geral, assim como
os resíduos advindos das indústrias, através da Diretiva IPPC23, que prevê, alêm destes
limites, que haja procedimentos de autorização das atividades com forte potencial de
contaminação e estabelecimento de requisitos mínimos que devem incluir em toda
autorização, especialmente quanto a emissão de poluentes. Há também a Diretiva EIA,24
que submete determinados projetos públicos e privados a uma avaliação prévia de seus
efeitos sobre o meio ambiente antes que possa ser concedida sua autorização. Tais
projetos se relacionam principalmente às instalações de futuras refinarias de petróleo ou
empresas que utilizem produtos químicos industriais. Várias são as iniciativas e normas
que se direcionam harmoniosamente ao meio ambiente e sua delicada relação com o
setor industrial, cabendo realizar uma pesquisa mais exaustiva sobre sua eficácia e
avanço legislativo, jurisprudencial e doutrinário, que não serão aprofundados no
presente artigo.
3.3. Integração do meio ambiente na política exterior e de cooperação
A transversalidade presente nas relações externas e as questões ambientais na
União Europeia pode ser verificada a partir da adoção de vários instrumentos e
programas considerados como primordiais para que haja uma coerente rede de
princípios que aumentem a proteção ambiental em nível internacional, levando em conta
que a União Europeia mantem relações com países terceiros, e que da ajuda (financeira
ou técnica) concedida à esses devam advir algum benefício manifesto, ao perseguir e
incentivar um desenvolvimento harmonioso das relações internacionais promovendo
23
Diretiva 2004/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, relativa à
responsabilidade ambiental em termos de prevenção e reparação de danos ambientais.
24
Sobre tal diretiva, os documentos oficiais se encontram em processo de construção de atos
modificativos, e, para uma breve explicação sobre, vide:
http://europa.eu/legislation_summaries/environment/general_provisions/l28163_es.htm#AMEN
DINGACT, acesso em outubro de 2012.
63
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
sempre um caráter equitativo e sustentável para os países com os quais se relaciona.
Ao definir formas específicas de ajuda e cooperação comunitárias contribui
para uma integração de fato, acoplada com as dimensões ambientais, presentes nas
medidas de cooperação entre a União e os países receptores, principalmente os
chamados em desenvolvimento, e com a fixação de estreita relação de cooperação com
as organizações nao-governamentais e outras associações da sociedade civil destes
países, apoiando de forma incisiva, também, na elaboração e adoção de convenções
internacionais sobre o meio ambiente.
Entre os principais documentos que defendem a aplicação da interrelação
entre políticas externas e meio ambiente deve-se destarcar o Sexto Programa de Ação
em Matéria de Ambiente25, onde se coloca como essencial a inserção do tema ambiental
no contexto internacional, ao levar-se em consideração o alargamento da União
Europeia, e determinar às administrações públicas dos países candidatos que observem a
normativa sobre desenvolvimento sustentável neles existentes e a consequente
compatibilidade com as normas comunitárias, uma vez que os instrumentos jurídicos de
proteção ao meio ambiente (e a consequente aplicação dos mesmos) é considerado
como critério para recepção de novos membros ao processo integrador, incentivando
práticas de maior nível de conservação ambiental por parte desses países.
Pontos importantes são apontados na Estratégia do Conselho Europeu sobre a
integração dos aspectos ambientais nas políticas exteriores, de 11 de março de 2002.26
Esta Estratégia apresentou um rol de princípios que afetam o diálogo político com
terceiros países, os temas horizontais, a política comercial e a governança internacional,
e determinou que os temas ligados ao meio ambiente devem estar presentes nas
negociações externas, buscando alcançar um consenso em torno das prioridades
ambientais a serem aplicadas entre os países. Para que haja uma atuação horizontal,
apresentaram-se as seguintes diretrizes:
i) Apoio à aplicação dos princípios relativos aos direitos humanos, da democratização e
da governança, que também contribuam para fortalecer a proteção ambiental;
ii) Consideração do meio ambiente nas atividades de prevenção de conflitos, para
25
Comunicação da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu, ao Comité Económico e Social e ao
Comité das Regiões, de 24 de Janeiro de 2001, relativa ao sexto programa comunitário de ação em
matéria de ambiente “Ambiente 2010: o nosso futuro, a nossa escolha” [COM(2001) 31 final - Não
publicada no Jornal Oficial].
26
Comunicação da Comissão para Integração do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável na
política de cooperação econômica e para o desenvolvimento “Elementos para uma estratégia geral”, de 15
de maio de 2000, COM/2000/0264 final.
64
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
reduzir as tensões relacionadas ao acesso dos recursos naturais e sua utilização;
iii) Promoção da dimensão ambiental em todas as áreas de reconstrução pós-conflito. 27
A Estratégia definiu ainda diferentes abordagens para países industrializados e
para países em desenvolvimento, onde as preocupações ambientais precisam se
direcionar em busca de maior integração com instrumentos e programas de cooperação
e no reconhecimento das assimetrias. Em relação às negociações e transações
comerciais, deve haver uma constante preocupação voltada para as questões ambientais
no sentido de promover uma harmonização das diretrizes do sistema comercial
internacional com os acordos em matéria de meio ambiente, além de fomentar a
responsabilidade social das empresas em escala internacional28, abordando assistência
técnica, transferências de tecnologias limpas e a realização de estudos prévios para
avaliação de impactos ambientais. É necessário, porém, aperfeiçoar o marco
institucional internacional, para que haja a integração sistemática dos temas ambientais
nas agendas discutidas nos forúns internacionais, de forma a alcançar maior coerência
entre os debates bilaterais e multilaterais e ainda entre as organizações internacionais e a
UE.
3.4. Integração do meio ambiente na política de transportes
Por apresentar impactos diretos sobre a proteção do meio ambiente, o setor dos
transportes é um dos mais importantes no que concerne a necessidade de harmonização
de legislações, já que este setor é considerado como responsável por cerca de um terço
(28%) das emissões totais de CO² e de gases de efeito estufa no espaço territorial
integrado
29
. Há, portanto, urgência na redução dessas emissões, seguindo as
determinações do Protocolo de Quioto, por meio de investigações e aplicações de
soluções alternativas para transportes (em especial os rodoviários) que utilizem fontes
limpas de combustíveis, diminuindo assim os impactos negativos causados sobre o meio
ambiente.
27
No original: “a) apoyo a las mejoras en el ámbito de los derechos humanos, de la democratización y de
la gobernanza, que también contribuyan a fines ambientales; b) consideración del medio ambiente en las
actividades de prevención de conflictos, para reducir las tensiones relacionadas con el acceso a los
recursos naturales y a su utilización; c) fomento de la dimensión ambiental en todos los ámbitos de
reconstrucción tras un conflicto”. “Integración de los aspectos medioambientales en las relaciones
exteriores”,
disponivel
em:
http://europa.eu/legislation_summaries/environment/sustainable_development/l28166_es.htm, acesso em
junho de 2012.
28
Podendo-se utilizar do princípio do Triple Bottom Line para tal.
29
Fonte: Comissão Europeia, 2012.
65
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Na busca pela integração da proteção ambiental na política dos transportes, a
estratégia europeia em matéria de transporte e meio ambiente, elaborada por meio de
um Informe ao Conselho de Helsinki30, definiu objetivos para a atuação dos Estadosmembros da União Europeia destinados a mitigar o impacto dos transportes no meio
ambiente, ao realçar sempre os temas ambientais na elaboração e aplicação das políticas
voltadas ao setor de transportes como um todo. As diretrizes apontadas pela estratégia
para tal podem ser assim resumidas:
- Prevenção ou eliminação dos efeitos negativos do aumento do trafégo, especialmente
com medidas de gerenciamento territorial e de tarifação das infraestruturas;
- Promoção do transporte público, do transporte intermodal e do transporte combinado,
assim como os meios de transporte menos prejudiciais para o meio ambiente
(especialmente o transporte ferroviário e fluvial);
- Pesquisa e desenvolvimento tecnológicos, especialmente voltados para redução das
emissões de CO² e de ruído;
- Educação do público, dos condutores e da indústria automotiva sobre redução do
impacto dos transportes sobre o ambiente, por meio de indicadores e padronização dos
veículos.31
De forma a lograr a concretizaçao de tais diretrizes, introduziu-se na política
setorial de transportes um pacote de promoção do uso dos biocombustíveis, para que
haja redução nas emissões de poluentes no transporte rodoviário e aéreo. A Estratégia
Europa 202032 foi implantada para alcançar a meta de “reduzir as emissões de gases
com efeito estufa em, pelo menos, 20 % relativamente aos níveis de 1990 ou em 30%,
se estiverem reunidas as condições necessárias”33 em todos os países-membros, atráves
da iniciativa “Uma Europa eficiente em termos de recursos”, que, em linhas gerais,
busca
implantar
gradualmente
uma
economia
hipocarbônica,
utilizando-se
30
Informe do Conselho ao Conselho Europeu de Helsinki sobre a estratégia para integrar os aspectos
ambientais e o desenvolvimento sustentável na política de transportes, de 6 de outubro de 1999, não
publicado.
31
No original: “a) prevenir o eliminar los efectos negativos del aumento del tráfico, especialmente con
medidas de ordenación territorial y de tarificación de las infraestructuras; b) fomentar el transporte
público, el transporte intermodal y el transporte combinado, así como los modos de transporte menos
perjudiciales para el medio ambiente (especialmente el transporte ferroviario y fluvial); c) proseguir la
investigación y el desarrollo tecnológico, especialmente para reducir las emisiones de CO2 y el ruido; d)
concienciar al público, a los conductores y a la industria del automóvil sobre la forma de reducir las
incidencias del transporte en el medio ambiente, por ejemplo con indicadores y con la normalización de
los vehículos.”
32
Comunicação da Comissão Europa 2020 - "Estratégia para um crescimento inteligente, sustentável e
inclusivo", COM (2010) 2020 final.
33
Comunicação da Comissão Europa 2020, op. cit., p. 12.
66
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
eficientemente de todos os recursos ambientais renováveis disponíveis. Para que isso
ocorra, a Comunidade europeia se comprometeu, através do Pacote Clima-Energia, a
fomentar a investigação e o desenvolvimento tecnológico de meios de transporte que
sejam movidos atráves de recursos alternativos ao petróleo (biocombustíveis,
hidrogênio, pilhas de combustíveis, etc), e promover, ainda, a exploração potencial de
novas tecnologias de captura e armazenamento de carbono.
A partir de concessões de incentivos econômicos que induzam à criação de
uma normatização comum e desenvolvimento das infraestruturas necessárias, a
modernização do setor dos transportes precisará promover e dominar a comercialização
em larga escala de tecnologias voltadas para a implantação de redes de abastecimento
de veículos movidos a eletricidade, a melhoria dos sistemas logísticos e a uma gestão
inteligente do tráfego. Cada Estado-Membro precisa, também, assegurar a realização
sincronizada dos projetos de infraestrutura, contribuindo para a eficiência do sistema
comunitário de transportes. O transporte marítimo suscita também uma preocupação
constante com a poluição marinha, e por isso a União intervém no sentido de limitar a
poluição provocada pelos navios e sancionar os comportamentos dolosos. Para que a
competitividade da União Europeia não seja prejudicada por essas medidas, há a
necessidade de desenvolver um sistema logístico ambientalmente adequado para o setor
dos transportes, mantendo-se, assim, no topo do mercado das tecnologias limpas e
sustentáveis.
3.5. Integração do meio ambiente na política agrícola comum
A agricultura foi tradicionalmente uma das prioridades dos responsáveis
políticos pela criação do processo integrador, e mais ainda durante a negociação do
Tratado de Roma, quando ainda permanecia recente na memória a recordação da
penúria alimentícia do pós-guerra. A Política Agrária Comum (PAC), adotada em 1962,
viu-se impulsionada pela necessidade estratégica de dispor de um fornecimento seguro
de alimentos em Europa, o que conduziu a um aumento deliberado da produção
nacional de alimentos e a uma redução da dependência das importações. A UE tem mais
poder neste âmbito que em qualquer outro, e a legislação agrícola comunitária supera
amplamente a legislação aprovada pela UE em qualquer outra política setorial. A PAC
se considera um dos âmbitos mais importantes das políticas da União Europeia, não só
pela importância em termos comerciais e orçamentários (uma percentagem próxima a
67
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
50% do valor total do orçamento comum é ocupada pela matéria agrícola, que diminuiu
gradativamente, mas ainda representa grande parcela das despesas), mas também por
envolver um número significativo de pessoas beneficiadas e pela extensão do território
onde se aplica; além da questão relativa ao exercício da competência legislativa
efetuada pelos Estados membros em favor das instituições europeias.34
A PAC se financia com recursos do Fundo Europeu de Orientação e de
Garantia Agrícola (FEOGA), o qual absorve, conforme já comentamos, uma parte
substancial do orçamento comunitário. A grande quantidade de recursos econômicos
que são destinados a esta política permitiu que o setor agropecuário em diversos países
da Europa – caso da França, Espanha ou Itália – pudessem subsistir frente ao mercado
mundial. A PAC foi, assim, atingindo gradativamente os objetivos que tinham sido
adotados pelo Tratado de Roma e demais instrumentos normativos, tais como: fomentar
a produção e a produtividade, estabilizar os mercados agropecuários, assegurar o
abastecimento e proteger os agricultores das oscilações dos mercados mundiais.
Não obstante, o que poderia ser considerado como um êxito da atuação
comunitária foi acompanhado de uma série de efeitos colaterais menos positivos: os
agricultores comunitários incrementaram sua produção até superar o nível de absorção
do mercado interno, de maneira que gerou-se enorme excedente de produção e
incrementou exponencialmente o gasto agrícola comunitário. Por isso, desde a década
de 80 as instituições comunitárias procuram soluções adequadas para que os problemas
derivados do excedente de produção agrícola da UE possam ser efetivamente
minimizados, sem prejudicar os produtores e o agronegócio (MATA DIZ, 2006).
Ademais, as propostas relativas à participação da PAC no orçamento comunitário
sempre foram objeto de controvérsias entre os países-membros produtores e nãoprodutores agrícolas, o que pode ser comprovado pela difícil negociação quando da
adoção das perspectivas financeiras para o período 2007-2013 (LAZARO, 2011).
Agora bem, é indubitável que o setor agrícola é um dos que mais se
interrelaciona com os demais setores, e, por conseguinte, com as questões ambientais, já
que as práticas agrícolas modificam os hábitats naturais e os ecossistemas,
influenciando intensamente o ambiente onde são aplicadas. A União Europeia possui
um intrincado sistema de produção agrícola (PAC), sempre voltada para uma agricultura
sustentável e que respeite todos os componentes presentes no meio ambiente,
34
Vale lembrar que a política agrícola está incluída no rol das competências compartilhadas pela UE.
68
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
principalmente após a reforma de 2003, a partir da qual houve concessão de
financiamentos comunitários que tinham por objetivo a proteção do meio ambiente, ao
limitar todo e qualquer tipo de poluição advinda de práticas agrícolas, e incentivar o
desenvolvimento, produção e utilização de biocombustíveis e a proteção da fauna e da
flora dos ecossistemas. Programas de remuneração e subsídios voltados para o setor
agroambiental foram considerados como a grande estratégia para gerar a integração do
ambiente na política agrícola, sendo que os agricultores são remunerados através da
prestação de serviços ambientais e da prática agrícola que se compatibilize com o meio
ambiente, lembrando sempre que cada região deverá adotar as medidas agroambientais
que se adequem às suas condições naturais.
O interesse estimulado por meio da política agroambiental e a repercussão
positiva do mesmo fizeram com que a Comissão Europeia entenda que, futuramente, as
diretrizes de ordem ambiental presentes dentro do setor agrícola constituam mecanismo
central para integração na PAC. Para que isso ocorra a Comissão propôs três programas
de ação para promoção de melhorias entre várias medidas de política rural relacionadas
ao meio ambiente:
* Aumento do orçamento destinado às medidas agroambientais;
* Enfoque mais preciso nas mesmas;
* Integração de medidas agroambientais com outras medidas complementares que serão
adotadas no âmbito de uma nova geração de programas de desenvolvimento rural.
Além da PAC, as tentativas de integração das políticas agrícolas com as
práticas ambientais são fomentadas por distintos programas, podendo-se citar, entre eles,
o importante Programa LIFE +, que tem como objetivo financiar projetos que se
utilizem de práticas de desenvolvimento sustentável. Para induzir uma integração do
setor agrícola comum (e de outros que utilizem métodos sustentáveis em suas políticas),
com os interesses ambientais, os critérios selecionados para elegibilidade dos projetos a
serem financiados exige-se o cumprimento de distintos requisitos que afetam
significativamente as atividades agrícolas, tais como:
- Possuir interesse comunitário, contribuindo para o desenvolvimento, a execução e a
atualização da política e da legislação ambientais da União;
- Ser técnica e financeiramente coerentes e viáveis, além de apresentar comprovada
rentabilidade;
- Obedecer, pelo menos, a um dos seguintes critérios: i) projetos de melhores práticas ou
de demonstração no domínio da preservação das aves selvagens ou dos habitats; ii)
69
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
projetos inovadores ou de demonstração a nível comunitário relacionados com os
objetivos da política do meio ambiente; iii) campanhas de sensibilização ou formação
para a prevenção de incêndios florestais; iv) projetos para o acompanhamento ampliado,
harmonizado e a longo prazo das florestas e das interações ambientais.35
Pode-se notar claramente que a União valoriza as florestas e apoia as
iniciativas que visam a prevenção dos incêndios e a salvaguarda dos meios selvagens,
dos habitats naturais e das aves. Além do LIFE +, devemos citar ainda o Plano de Ação
sobre Biodiversidade na Agricultura 36 , onde se estabelece um plano de ação para
aperfeiçoamento ou manutenção da biodiversidade e que impede que as atividades
agrícolas venham a provocar degradação nesta área de indubitável importância
ambiental, e finalmente o Sexto Programa de Ação em Matéria de Ambiente37, ut supra,
que coloca como uma diretriz principal estimular a adoção de medidas agroambientais
de maior alcance protetivo.
4. Conclusão
Não é a insistência em repetir palavras de cunho sustentável e implantação
incisiva de modelos unilaterais de harmonização de políticas setoriais com as questões
ambientais em processos de integração regionais que irá, de fato, alterar
substancialmente as políticas e práticas ambientais de comunidades como a União
Europeia. Apesar de este processo integrador apresentar índice de proteção ambiental
considerado como coerente com as metas comunitárias, é necessário que se use de uma
lógica de gestão racional e de resguardo dos recursos, principalmente os não-renováveis,
de maneira a regular transversalmente os objetivos ambientais, obviamente inseparáveis
das políticas econômicas, comerciais, agrícolas, de transporte, sociais, entre outras,
sempre balanceando as prioridades e objetivos em foco, e atentando-se para
necessidades das gerações presentes, porém sem se esquecer do legado futuro.
35
Regulamento (CE) n. 614/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Maio de 2007,
relativo ao instrumento financeiro para o ambiente (LIFE+) - Declaração da Comissão.
36
Comunicación de la Comisión al Consejo y al Parlamento Europeo - Planes de acción sobre
biodiversidad en los ámbitos de la conservación de los recursos naturales, la agricultura, la pesca y la
cooperación al desarrollo y cooperación económica. COM/2001/0162 final.
37
Comunicação da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu, ao Comité Económico e Social e ao
Comité das Regiões, de 24 de Janeiro de 2001, relativa ao sexto programa comunitário de ação em
matéria de ambiente.
70
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Entretanto, a transversalidade da política de ambiente não pode impor-se e
minimizar todos os objetivos de outras políticas setoriais, pois o ambiente, mesmo
onipresente em todos os campos, não pode desconsiderar os demais objetivos elencados
pelos tratados fundacionais, assim como não devem ser desconsideradas as necessidades
ambientais comunitárias, sejam elas da União Europeia, ou de qualquer outro processo
de integração. Conforme comentamos, o princípio da integração tem como principal
finalidade a necessidade de adotar múltiplas atuações comunitárias, abarcando os mais
diversos domínios, de forma a levar em consideração os impactos que o ambiente
sofrerá. O que está em voga é a utilização de uma lógica de equilíbrio, a busca pela
máxima interconexão, pela transversalidade entre distintos valores, pois é de
conhecimento geral que o bem-estar socioeconômico, por exemplo, depende de
múltiplas variáveis, entre elas uma vida em ambiente saudável, em harmonia com os
ecossistemas, da mesma forma que a conservação da natureza depende de um mínimo
de desenvolvimento econômico. A transversalidade se ampara nestes valores, muitas
vezes em confluência com princípios de desenvolvimento sustentável como referência
para sua busca.
Segundo a Comunicação Europeia “A sustainable Europe for a better world: an
European Union Strategy for a sustainable development”, a transversalidade, apoiada
pelo desenvolvimento sustentável, “exige que o crescimento econômico apoie o
progresso social e respeite o meio ambiente, que a política social favoreça o
desempenho econômico e que a política ambiental baseie-se no custo-benefício” 38 .
Fica evidente, assim, que o arcabouço normativo das políticas ambientais deve ser
harmonizado, porém este assunto gera enorme sensibilidade política, pois produz
impactos em todos os setores da organização social, que vão desde a formulação de
políticas públicas, ao comportamento dos mercados e da produção, até as demandas da
sociedade, tanto de um país quanto do próprio sistema comunitário.
Uma política ambiental transversalmente harmonizada deve levar em conta não
só a aproximação da legislação ambiental com outras políticas comunitárias, mas
principalmente o fato de que as diversidades geoambientais que encontram-se
vinculadas a num processo de integração demandam legislações ambientais distintas,
conforme CORRÊA (1998). Outro fator a ser tomado em consideração são os diferentes
38
“A sustainable Europe for a Better World: an European Union Strategy” Comunicação da Comissão
264 final, de 15 de maio de 2001. No original:” requires that economic growth supports social progress
and respects the environment, that social policy underpins economic performance, and that environmental
policy is cost-effective”
71
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
níveis de desenvolvimento econômico dos países que compõem o processo regional no
qual serão implantadas as políticas transversais, sendo que as escolhas dos instrumentos
que estejam estreitamente vinculados às políticas ambientais incidem diretamente neste
fator, ao considerar-se sua aplicação como sendo conveniente ou não para os interesses
de determinado país.
Entretanto, as complexidades derivadas da grande diversidade de legislações
ambientais, com diferentes níveis de aplicação, envolvem questões que externam as
preocupações ambientais, como é o caso do comércio internacional, e assim a
harmonização das normas pode se tornar ainda mais necessária. A transversalidade
analisada aqui implica em normas comunitárias que legitimam uma preocupação com a
proteção ambiental, sendo que estas são diferentes para cada região (ou blocos, no caso).
Logo, especificidades regionais ambientais se veem atreladas a questões e transações de
cunho mais geral, o que muitas vezes podem minar as negociações intraestatais, quando
normas distintas incidem sobre diferentes métodos e processos de produção e os
respectivos impactos sobre a competitividade e a concorrência.
No caso de interesses ambientais atrelados aos comerciais, por exemplo,
normas menos rigorosas, que versem sobre matéria ambiental, vigentes em países em
desenvolvimento criariam um vantagem injusta aos seus produtores, um dumping
ambiental, o que acarretaria possíveis distorções na concorrência. Porém, imposições de
medidas comerciais visando forçar a adoção de certos standards nas políticas ambientais
de outros países podem também ser consideradas como protecionistas, e não há nenhum
marco obrigatório que exijam aos países em desenvolvimento utilizarem das mesmas
políticas e modelos que os países desenvolvidos adotaram.
Uma possível solução pode estar contida na Declaração do Rio sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, princípio 11º, onde prevê-se que os Estados adotem uma
legislação ambiental eficaz, que seja adequada ao contexto ambiental a que se aplicam,
levando em conta o fato de que normas aplicadas por alguns países podem ser
inadequadas para outros, principalmente para os países em desenvolvimento, o que
geraria custos socioeconômicos injustificados, aumentando ainda mais a assimetria
entre os Estados.
Cabe afirmar, portanto, que a questão da transversalidade das questões
ambientais e sua inserção nos processos de integração devem ser alcançadas de maneira
flexível, mas que pode amparar-se na promoção e integração das políticas ambientais e
de desenvolvimento mediante acordos e instrumentos eficazes, realizados em comunhão
72
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
com bases científicas de pesquisa sólidas, sempre levando em consideração os
princípios universais relativos às necessidades e interesses particulares e diferenciados
de cada Estado.
Finalmente, a aplicação do princípio da integração num processo avançado de
associação interestatal como é o caso da EU demonstra a importância de que todos os
projetos, ações e medidas relativas às distintas políticas setoriais sejam acompanhados
de uma prévia e detalhada análise dos impactos que os mesmos poderão causar ao meio
ambiente, numa perspectiva renovada de considerá-lo como um valor a ser protegido
em toda e qualquer situação.
AGRADECIMENTO: as autoras agradecem à FAPEMIG – Fundação de Apoio à
Pesquisa do Estado de Minas Gerais – pelo auxílio concedido na realização da pesquisa
científica.
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A DEFESA DE UM CONSUMO ÉTICO COMO PRESSUPOSTO PARA A
CONSOLIDAÇÃO DO PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
THE DEFENSE OF AN ETHICAL CONSUMPTION AS ASSUMPTION FOR
CONSOLIDATION OF SUSTAINABLE DEVELOPMENT PRINCIPLE
Adriana da Veiga Ladeira1
Maristela Aparecida de Oliveira Valadão2
RESUMO
O presente artigo traz uma breve análise acerca do atual modelo de consumo, de caráter
exacerbado, que gera graves implicações ambientais advindas do esgotamento de recursos
naturais e da utilização do meio ambiente como depósito de resíduos. A tecnologia agregada
ao sistema capitalista ensejou um incremento na produção e a necessidade do aumento de
circulação e venda dos novos produtos, o que desaguou em um modelo de consumo na
sociedade, no qual as pessoas são instigadas a consumir cada vez mais. À luz de tal
perspectiva, percebe-se que, a todo instante, os lares são invadidos por promessas de
satisfação que nunca são verdadeiramente alcançadas. Insertos em um estado permanente de
insatisfação, os consumidores não percebem que trabalham cada vez mais para consumir
ainda mais. Na busca da felicidade por meio da aquisição incessante de bens, o ser humano
sente-se cada vez mais solitário, ainda que tente se moldar, através do consumo, a seus pares
na sociedade. Revela-se uma sociedade iludida que, mesmo temendo seu próprio futuro, não
aceita a imposição de limites jurídicos ou éticos. Registra-se a importância de buscar a chave
para o desenvolvimento sustentável, entretanto, o caminho para o seu alcance demanda a
construção de uma nova ética voltada para a coletividade – presente e futura – e cuja
efetivação não comporta o modelo produtivista adotado que se desenrola e cresce cada vez
mais na modernidade. Busca-se, através da ética ambiental, um caminho para combinar o
funcionamento da economia e o meio ambiente para a promoção e construção de um meio
ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, pressuposto essencial para a existência humana,
com dignidade, na Terra.
Palavras-chave: Consumo. Ética. Meio ambiente. Desenvolvimento sustentável.
ABSTRACT
This paper gives a brief analysis on the current model of consumption in exacerbated
character that generates serious environmental implications resulting from the depletion of
natural resources and the use of the environment as waste repository. The added technology to
the capitalist system has resulted a increase in production and the need for increased
circulation and sale of new products, which flowed into a model of consumption in society, in
which people are urged to consume more and more. In light of this perspective, it is clear that,
at any moment, the homes are invaded by promises of satisfaction that are never truly
achieved. Inserts in a permanent state of dissatisfaction, consumers do not realize they are
increasingly employed to consume even more. In pursuit of happiness through the relentless
1
2
Mestranda em Direito Ambiental e Sustentabilidade pela Escola Superior Dom Helder Câmara
Mestranda em Direito Ambiental e Sustentabilidade pela Escola Superior Dom Helder Câmara.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
acquisition of goods, the human being feels increasingly lonely, yet try to shape, through
consumption, to their pairs in society. Proves to be a deluded society that even fearing his
own future, does not accept the imposition of legal or ethical boundaries. Join the importance
of seeking the key to sustainable development, however, the path to reach demands the
construction of a new ethic for the community - present and future - and whose fulfillment
does not support the productivist model adopted that deploys and grows increasingly in
modernity. Looking up through the environmental ethics, a way to combine the functioning of
the economy and the environment for the promotion and building a healthy environment and
ecologically balanced prerequisite for human existence with dignity on earth.
Keywords: Consumption. Ethics. Environment. Sustainable development.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO. 2 APONTAMENTOS SOBRE O DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL COMO PRINCÍPIO ÉTICO. 3 A TRAJETÓRIA DA PRODUÇÃO PARA
O CONSUMO E SUAS IMPLICAÇÕES AMBIENTAIS. 4 PÓS-MODERNIDADE: A
CONSTRUÇÃO DE UM HOMEM VAZIO. 5 CONCLUSÕES. REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
O avanço econômico vem sendo buscado pelos Estados como forma de promoção do
crescimento da nação e do seu povo, sendo realmente necessário ao desenvolvimento
humano, na medida em que proporciona o acesso ao trabalho e aos ganhos dele decorrentes,
bem como o bem-estar, possibilitando aos cidadãos a obtenção de bens e serviços essenciais à
sadia qualidade de vida.
Entretanto, o que se verifica na prática é um crescente aumento na produção de bens
e serviços para satisfazer um mercado de consumo insaciável, o que conduz a um
desequilíbrio ambiental, seja em razão da extração excessiva e irracional dos recursos
naturais, seja pelo descarte desproporcional e inadequado de resíduos.
Observa-se que o modelo de Estado Capitalista advindo da Revolução Industrial
propiciou uma atitude comum e, até mesmo, desejável à sociedade: o consumo contínuo e
habitual de novos produtos. A produção em larga escala passou a ser vista como ideal de
desenvolvimento econômico, incentivada pela concorrência – interna e externa – das
atividades econômicas.
A todo instante, os consumidores são bombardeados por propagandas que incitam o
consumo de produtos de forma desenfreada e, muitas vezes, desnecessária. Partindo-se do
pressuposto de que o desenvolvimento econômico tem lugar no crescimento da circulação de
77
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
capital e riquezas, mediante o aumento da oferta de produtos e serviços, a obsolescência
programada passou a ser uma importante estratégia empresarial para alimentar ainda mais o
consumo.
Em contrapartida, o homem, que desde sempre buscou a felicidade e com a natureza
moral que lhe é inerente, procurando estabelecer, ora por meio da religião, ora por normas, os
princípios e verdades absolutas a serem perseguidos para a realização do bem e afastamento
do mal e do sofrimento, encontra-se cada vez mais fragilizado na sua liberdade de escolha,
uma vez que o encontro da felicidade, na sociedade pós-moderna, está atrelado à adequação a
atuais padrões de consumo, cada vez mais crescentes e em constante renovação.
Essa conduta humana frente ao consumo traz ínsita a ideia de que a moralidade pósmoderna está fulcrada no vazio, numa moralidade sem ética, conquanto a busca desenfreada
pela satisfação pessoal, através da crescente aquisição de bens, nunca é concretamente
alcançada e, de outra parte, ocasiona a perda crescente das riquezas naturais.
O presente estudo tem por objetivo analisar a influência do sistema capitalista de
consumo sobre o ser humano, enquanto consumidor e enquanto sujeito moral, em contraponto
ao princípio ético de preservação ambiental, sendo importante frisar que a saúde do meio
ambiente é fator primordial para o bem-estar da humanidade e, portanto, do próprio indivíduo.
Utilizando-se a metodologia dedutiva, o presente artigo traz, em um primeiro
momento, breves considerações sobre desenvolvimento sustentável como princípio ético para
adentrar na trajetória da evolução da produção para o consumo e suas implicações ambientais,
para demonstrar que a opção pelo consumo irresponsável e desmedido descortina uma
moralidade sem ética, destituída de cuidado para com o meio ambiente e o homem torna-se o
ser mais degradado de todos: um ser humano vazio.
2 APONTAMENTOS SOBRE O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO
PRINCÍPIO ÉTICO
O Estado moderno foi construído a partir de teorias desenvolvidas com o intuito de
garantir os direitos à liberdade, à igualdade e à propriedade, estabelecidos pelas cartas
constitucionais, ora limitando a atuação estatal, ora impondo-lhe a obrigação de proteger os
direitos fundamentais reconhecidos. Os objetivos centravam-se na fixação dos direitos e
deveres do indivíduo enquanto cidadão, e no respeito às liberdades e aos direitos da
78
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
coletividade, sempre considerando o crescimento econômico como aspecto primordial para o
desenvolvimento das nações e de seus povos.
Com o crescente aumento da população e a aceleração da economia, surgiram novas
preocupações decorrentes da contínua depleção dos recursos naturais e do avanço da poluição,
causadas pelas ações antrópicas. Nesse viés, iniciou-se uma reflexão voltada para uma nova
ordem
econômica
fundada
no
binômio
desenvolvimento-sustentabilidade,
ficando
estabelecido que a preservação do meio ambiente e de seus recursos naturais se revestem de
importância crucial para a sobrevivência humana no planeta.
A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em
Estocolmo em junho de 1972, foi a primeira grande reunião organizada a debruçar-se sobre as
questões ambientais, constituindo-se um marco histórico para o pensamento do século XX, ao
inserir a variável ambiental nas discussões atinentes ao ecodesenvolvimento, que iria desaguar
posteriormente no conceito de desenvolvimento sustentável (em 1983). A partir daí, os países
passaram a estruturar uma legislação ambiental, estabelecendo regras para o controle da
atividade econômica, com o fito de prevenir os danos ao meio ambiente.
A Assembléia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) instituiu, em 1983, a
Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, responsável pela produção do
denominado Relatório Brundtland, documento que afirmou a necessidade de implementação
de medidas e políticas públicas para o desenvolvimento sustentável.
Posteriormente, os resultados do referido relatório foram discutidos na Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992, no Rio de
Janeiro, que culminou com a aprovação da chamada Agenda 21, a qual veio consolidar a ideia
de que o desenvolvimento e a conservação do meio ambiente devem constituir um binômio
indissolúvel, rompendo com o antigo padrão de crescimento econômico fundado somente nos
resultados da economia. Essa ruptura trouxe o novo paradigma do desenvolvimento
sustentável, exigindo uma reinterpretação do conceito de progresso, que considere também os
aspectos de ordem social e ambiental.
Ultrapassados vinte anos, em junho de 2012, foi promovido novo encontro da
Conferência das Nações Unidas no Rio de Janeiro, a “Rio+20”, com a finalidade de renovar o
compromisso político dos Estados e implementar novas metas para o desenvolvimento
sustentável e erradicação da pobreza. Contudo, mais uma vez, o estabelecimento de metas
para a busca de solução de questões importantes foi adiado, principalmente pela divergência
de interesses econômicos e políticos das nações envolvidas. Indaga-se até quando a geração
79
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
humana no planeta será uma “geração inacabada”, e qual o caminho para o alcance de um
desenvolvimento sustentável que possibilite a sobrevivência humana no planeta.
Os objetivos estabelecidos nas principais Conferências Internacionais são o ponto de
partida e a base principiológica para a elaboração, implantação e interpretação das regras
jurídicas no ordenamento interno, traçando a conduta a ser seguida em toda e qualquer
operação jurídica. Contudo, percebe-se que a agenda ambiental não pode mais aguardar a
tomada de decisões, porque os problemas ambientais são globais e estão alcançando um
patamar cada vez mais crítico, e não comportam mais a lógica consumista prevalecente.
As mudanças dos padrões de consumo e dos processos produtivos, como também a
erradicação da pobreza, a proteção à saúde humana, a promoção de cidades sustentáveis,
acompanhados da necessidade de uma conscientização dos Poderes Públicos e da sociedade
como um todo, surgem como objetivos sociais de especial importância que compõem uma
verdadeira cartilha para o desenvolvimento sustentável.
Nesse sentido, Édis Milaré (2011) leciona:
A composição das “legítimas” necessidades da espécie humana com as “legítimas”
necessidades do planeta Terra efetiva-se no âmago do processo de “desenvolvimento
sustentável’”. Este, por sua vez, tem como pressupostos (e, de certo modo,
corolários) a “produção sustentável” e o “consumo sustentável”. Em outras palavras,
não se atingirá o desenvolvimento sustentável se não se proceder a uma radical
modificação dos processos produtivos, assim como do aspecto quantitativo e do
aspecto qualitativo do consumo. Por isso, o conceito e a prática do desenvolvimento
sustentável, uma vez desencadeado, facilitará processos de produção e critérios de
consumo adequados à composição dos legítimos interesses da coletividade humana e
do ecossistema global. (MILARÉ, 2011, p. 58).
Indissociável e decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana, o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado é, ao mesmo tempo, direito e dever fundamental
do Poder Público e de toda a coletividade, por força do artigo 225, caput, da Lei Fundamental.
Por conseguinte, a dignidade da pessoa humana é apontada como finalidade última
da ordem econômica constitucional, segundo dispõe o caput do artigo 170 da Carta Magna e,
como alerta Fiorillo (2011, p. 91), “devemos lembrar que a ideia principal é assegurar a
existência digna, através de uma vida de qualidade [...].”.
Nesse diapasão, temos que o ordenamento constitucional hodierno reconheceu o
direito à vida como direito fundamental da pessoa humana e foi além, ao estabelecer o direito
à qualidade de vida. Na análise de Édis Milaré (2011, p. 127), “[...] acrescentou o legislador
constituinte, no caput do artigo 225, um novo direito humano fundamental, direcionado ao
desfrute de adequadas condições de vida em um ambiente saudável.”.
80
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Observe-se que o equilíbrio ambiental é pressuposto de uma vida saudável, sem o
qual se torna impossível o alcance da condição mínima essencial para o desenvolvimento da
pessoa humana. Trata-se, portanto, de um princípio fundamental e ético, na medida em que
visa à proteção da vida, em todas as suas formas, sendo estabelecido normativamente, a fim
de direcionar a conduta humana para a sua concretização.
Esse novo paradigma diz respeito à ética ambiental e social, impulsionando a
sociedade na busca da sustentabilidade, tendo como fim último o respeito ao ser humano e ao
planeta Terra. A experiência demonstra que já não cabe mais priorizar as aspirações de
poucos em detrimento da maioria, porquanto essa prática termina por provocar o desequilíbrio
de todo o sistema. Como alerta Milaré (2011):
A questão ambiental, tal como está posta, evidencia sem rebuços que a crise
ecológica não se restringe às condições naturais do Planeta: é uma crise de
civilização e da própria sociedade, porque está associada a uma crise de valores a
aponta para a necessidade de novos tipos de relações humanas.
É inelutável o reordenamento das sociedades, tanto do Norte quanto do Sul, com
vistas a uma conciliação dos opostos. Em semelhante contexto de dimensões
planetárias “trata-se de elaborara uma ética socioambiental que se ocupe das
relações Norte-Sul à base de uma ecologia social. Não uma ética superficial, mas
profunda, que possa ajudar a descobrir as raízes comuns da crise global e ecológica,
e sirva para inspirar a mudança radical das relações dos homens com a natureza e
dos homens e povos entre si.”. (MILARÉ, 2011, p. 170).
A ética socioambiental considera a depleção dos recursos naturais e a
superexploração do trabalho e da natureza como redutoras das verdadeiras riquezas. Defende
um mercado ético, voltado para um futuro mais saudável e uma compreensão mais
aprofundada das responsabilidades sociais e ecológicas, especialmente pautada em uma
economia produtiva que coexista em harmonia com a Terra e com o bem-estar social.
Os efeitos do primado da sustentabilidade irradiam-se em todas as dimensões,
especialmente na economia, passando a exigir dos consumidores, produtores e prestadores de
serviços, a atenção para uma economia responsável, comprometida com um dever de cuidado
ambiental e promoção da sadia qualidade de vida. Esse novo comando traduz um
mandamento primordial, focado na ética e na transparência, e exige um engajamento concreto
na sua efetivação, atribuindo a todos os envolvidos o comprometimento com as
responsabilidades sociais e ambientais.
Torna-se emergencial buscar um novo modelo de consumo que seja sustentável, para
que as metas estabelecidas nas Conferências Internacionais não passem de discursos vazios e
descomprometidos, uma vez que não se verifica uma perspectiva efetiva de um modelo de
81
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
sociedade sustentável sem o enfrentamento da relação entre produção e consumo inseridos na
prática social moderna.
Leonardo Boff (2012, p. 9) escreve que “é de bom tom falar de sustentabilidade. Ela
serve de garantia de que a empresa, ao produzir, está respeitando o meio ambiente. Atrás
desta palavra se escondem algumas verdades, mas também engodos.” Inclusive, o autor
apresenta uma visão acerca da sustentabilidade usada como adjetivo ou substantivo. O
primeiro caso, adjetiovo, refere-se a acomodação; agrega-se algo à empresa, sem mudar a sua
essência, por exemplo, coloca-se um filtro melhor, de modo que a relação da empresa com a
natureza não muda. Por sua vez, observa o autor que “a sustentabilidade como substantivo
exige mudança de relação com o sistema-natureza, sistema-vida, sistema-Terra.”. Assim, Boff
(2012, p. 11) chama a atenção para o fato de que a sustentabilidade dos poderosos do mundo
não é nem adjetiva nem substantiva, não há mudanças de rumo, de valores éticos, pois as
empresas só assumem responsabilidades socioambientais se comprometidos os ganhos e
competitividade.
Nesse diapasão, instaura-se uma reflexão acerca da “síndrome do consumo” que
sucedeu a “síndrome da produção”3 (BAUMAN, 2009, p. 109), um percurso que põe em risco
um desenvolvimento sustentado no tempo, egoisticamente voltado para a ótica
mercadológica, que resultou na degradação e exaustão ambiental que se retrata na
contemporaneidade.
3 A TRAJETÓRIA DA PRODUÇÃO PARA O CONSUMO E SUAS IMPLICAÇÕES
AMBIENTAIS
O caminho para uma sociedade de consumo é de difícil explicação pela tradição
cultural ou religiosa. Para Platão, o saber alimenta a alma e outros apetites devem ser
evitados. Aristóteles, por sua vez, ensinava a virtude da moderação através de um consumir
somente aquilo que fosse necessário para a realização das tarefas dignas da vida. A tradição
cristã defendia o despojamento dos bens materiais. (SAGOFF, 2005, p. 485).
Atribui-se ao capitalismo a responsabilidade pelos níveis crescentes de consumo.
Segundo Max Weber, inicialmente o capitalismo não era tão inescrupuloso na perseguição de
fins monetários como nos últimos tempos, pois oferecia um sistema de tutela dos recursos
naturais, bem como uma ética de responsabilidade social. (SAGOFF, 2005, p. 485).
3
Menciona o autor (BAUMAN, 2009, p. 109) que todos os seres humanos são e sempre foram consumidores, e
nossa preocupação com o consumo não é novidade.
82
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Entretanto, na medida em que se perdeu o interesse para com o mundo sobrenatural,
as elites sociais e econômicas da Europa e América vislumbraram na Revolução Industrial o
ponto de partida para acabar com a escassez material e estabelecer, primariamente, através de
princípios racionais, a administração dos recursos naturais. Pensava-se que a conquista
contínua da natureza asseguraria um progresso material ilimitado sem, contudo, prever que a
crença inabalável nesse progresso, como solução dos problemas sociais, conduziria a tamanha
degradação ambiental e desigualdade social. Assim, na atualidade, como poucos acreditam na
economia capitalista e na fé iluminista do progresso material, instaura-se na sociedade um
pessimismo acerca do destino da humanidade. (SAGOFF, 2005, p. 485).
Entretanto, desde a época da Revolução Industrial, a fé na tecnologia e na ciência
conduziu à certeza da dimensão dos ganhos decorrentes da produtividade, tornando
imprescindível a criação de um mercado para o consumo dos produtos. Nos anos cinquenta,
os consumidores já se apresentavam doutrinados a cumprir o seu dever de ampliar o consumo
para manter o ritmo de produção.
As necessidades humanas variam de uma sociedade para outra. Percebe-se que, de
quanto mais conforto as pessoas desfrutam, mais desenvolvem o hábito consumista e tendem
a querer mais do que necessitam. Considera-se que a sociedade de consumidores não conhece
exceções, nem reconhece diferenças de idade, gênero ou classe social, e tampouco faz
concessões. O universo formado por esse perfil social divide-se entre mercadorias e
consumidores, e tem como característica marcante a transformação dos membros da
sociedade de consumidores em mercadorias, o que os identifica como membros da sociedade.
(BAUMAN, 2008, p. 20).
O consumo apresenta dois sentidos: o primeiro refere-se à aquisição e utilização de
coisas materais que conduzem, inevitavelmente, ao segundo sentido, qual seja, o esgotamento
dos recursos naturais finitos, sobrecarregando a capacidade da Terra, não só para fornecer os
recursos como também para absorver os resíduos. (SAGOFF, 2005, p. 483.). Lança-se o
questionamento sobre se os avanços tecnológicos poderão compatibilizar as duas concepções
de consumo, ou seja, produzir mais do que as pessoas necessitam, com menor dispêndio de
energia e matéria-prima.
Satisfeitas as necessidades básicas, o consumo não se autojustifica e tampouco
promove a felicidade das pessoas. Para a manutenção de altos níveis de consumo, há um
empobrecimento não só do meio ambiente natural como também dos valores e convivências
sociais. (SAGOFF, 2005, p. 484). Ainda que fosse possível sustentar altos níveis de consumo,
83
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
não se acredita que sejam desejáveis. Cada dia se trabalha mais para comprar mais coisas, e,
no entanto vive-se menos, o que Bauman (2008, p. 128) considera como sendo um “assalto
que o consumo faz” às vidas humanas, e referencia as palavras de Thoreau de que “o custo de
uma coisa não é o que o mercado determina, mas o que o indivíduo tem de suportar por causa
dela: é a quantidade do que eu chamo vida que é preciso trocar por ela, imediatamente ou a
longo prazo”.
O consumismo é, na verdade, uma “economia do engano” (BAUMAN, 2008, p. 76),
assentada na irracionalidade e no estímulo de emoções consumistas. A prosperidade da
sociedade de consumo caminha com a insatisfação de seus membros, impulsionados pela
busca do alívio para a ansiedade, e pela solução de seus problemas por meio do “suposto”
conforto dos produtos adquiridos. As pessoas acabam sendo “possuídas” pelas coisas que
adquirem, e talvez seja bem mais difícil obtê-las do que se livrar delas. (SAGOFF, 2005, p.
484).
Uma intervenção oportuna é a inconsciência do consumidor que, ao se preocupar em
destacar-se junto a seus pares e ter um sentimento de pertença a seu grupo social, passa a
consumir simplesmente porque os outros consomem. Com isso, o indivíduo caminha para um
processo de mercadorização, ou seja, torna-se uma mercadoria vendável, sem perceber que o
próprio consumo fragiliza os laços sociais e constitui uma atividade isolada, mesmo que
realizada em companhia de alguém. (BAUMAN, 2008, p. 10). Fato é que a utopia consumista
não abriga o afeto, preocupação e solidariedade entre as pessoas – todos os vínculos humanos
são pedagiados pelo mercado de consumo.
O capital, de mãos dadas com a tecnologia, promove um aumento constante da
produção, o que só pode desaguar em um aumento das necessidades para consumir tudo o que
se produz, através da transformação de luxos em conveniências e depois em necessidades,
como exemplifica a aquisição de carros, telefones, computadores, dentre tantos outros
produtos. Enfim, houve um incremento do mínimo exigido para habitação, saúde, transporte,
etc., adequados a um padrão de vida “decente” ditado pelo consumo.4 (SAGOFF, 2005, p.
487-488).
Interessante refletir sobre o motivo que leva as pessoas a consumirem além do
necessário, já que o consumo não é bom nem para o ser humano, nem para o planeta.
Paradoxalmente, observa-se que os marketings de venda de produtos sempre utilizam a
4
Os economistas muitas vezes dizem que as pessoas ficam melhor- o seu bem-estar aumenta- na medida em que
tem maior quantidade das coisas pelas quais estão dispostas a pagar. Luxos se converteram em conveniências e
depois em necessidades. (SAGOFF, 2005, p. 468).
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satisfação do cliente como motivo para a aquisição de novos produtos, sendo que o ideal é
manter o consumidor insatisfeito, com o intuito de alimentar o seu desejo de consumir cada
vez mais. Após incutir o desejo no consumidor de adquirir determinado produto, há
desvalorização do mesmo, gerando uma insatisfação, e o que começa como uma necessidade
acaba se transformando em uma compulsão. Tudo isso se resume na tese de que a indústria
precisa da insatisfação do cliente para sustentar a obsolescência planejada. 5 (SAGOFF, 2005,
p. 484-486).
Para o funcionamento da sociedade de consumo, toda promessa deve ser enganosa,
ou, pelo menos, exagerada, para que a busca prossiga. Sem os desejos frustrados, a demanda
pelo consumo reduz e a economia desacelera. Como Bauman (2009, p. 107) ensina, “o
consumismo é a economia do excesso do lixo”, a alta mortalidade das expectativas – o
excesso e caminho curto para o lixo é o que garante a sobrevida da sociedade de
consumidores.
No contexto da sociedade, que Bauman (2009, p. 17) denomina de “líquidomoderna”, nada pode ficar imune ao descarte e à rapidez com que os produtos caminham para
o lixo. Ser “consumidoristicamente correto” é consumir mais e descartar mais, pois, na
sociedade líquida de consumo, a produção “sólida” de lixo é imune a crises. Assim, a
remoção do lixo fica entre os maiores problemas ambientais na atualidade. Isto, sem deixar de
lado que outro problema é a “ameaça de ser jogado no lixo” (BAUMAN, 2009, p. 17), visto
que a vida flutua entre os prazeres do consumo e os horrores da pilha de lixo.
A “síndrome do consumo” não só atua no reino das compras em si, como também na
construção e reconstrução da identidade, além de não preservar o relacionamento entre as
pessoas, que se constitui como uma ameaça, ao passo que pode exigir uma atenção constante
do consumidor e concorrer com o mercado. Em um mundo de velocidade, até mesmo
relacionamentos de muito tempo, casamentos, que superavam suas crises, aborrecem
rapidamente seus envolvidos. O mercado favorece o obsoletismo dos relacionamentos,
intermedeia as relações entre as pessoas, conectando e desconectando, deletando, reorientando
o itinerário da busca existencial de cada um, e as pessoas buscam soluções para seus
problemas no trajeto do consumo que, por sua vez, não dispõe de meios para tanto.
(BAUMAN, 2009, p. 116).
Percebe-se que o consumismo está cheio de armadilhas. Em um primeiro momento,
as pessoas cobiçam um bem e, ao alcançá-lo, não se sentem mais felizes; em outro, pensam
5
Para Mark Sagoff (2005, p. 484-486), um consumidor insatisfeito é exatamente o que a indústria precisava criar
e destaca que a indústria precisa da criação organizada da insatisfação para vender seus produtos.
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que querem e depois descobrem que não queriam tanto como pensavam, e assim tudo se torna
um ciclo vicioso entre querer, adquirir, descartar e querer novamente. Nessa esteira, lança-se a
reflexão de que “somos ricos na medida da quantidade das coisas sem as quais podemos
passar”. (SAGOFF, 2005, p. 486).
Contudo, se o consumo não se relaciona à satisfação, de outro lado, os níveis de
consumo aumentam cada vez mais e talvez a inibição ou disciplina dos desejos tenham maior
probabilidade de alcançar a felicidade do que sua satisfação. (SAGOFF, 2005, p. 485-486).
Nesse giro, abre-se um parêntesis para destacar a visão de Étienne Gilson (2006):
Tudo acontece como se cada um de nós não pudesse perseguir outro fim que não
nossa felicidade, mas também como se fôssemos incapazes de alcançá-la, porque
tudo nos agrada mas nada nos contenta. Quem possui uma propriedade vai querer
ampliá-la; se é rico, quer ser um pouco mais rico, se a mulher que ama é bonita, ele
ama uma ainda mais bonita ou até menos bonita, contanto que seja bonita de outro
modo.
[...] Se o que ele possui é bom, o que ele não possui também é. Empolgado com o
movimento que o arrasta, necessita perder um bem para adquirir outro; esgotar um
prazer para experimentar outro; sentir o mesmo desprazer com o que termina
pressentir, através do desejo, o desprazer com o que vai vir. (GILSON, 2006, p.
347).
Em sede do consumo, o indivíduo busca a felicidade e a paz, mas, a bem da verdade,
por mais que o consumo traga inúmeras comodidades, está na contramão de tal conquista. A
todo tempo, os espaços privados são invadidos pela mídia que promove a divulgação de novos
produtos, abrindo um leque de novidades para atrair o consumidor que, por sua vez, dispõe-se
a trabalhar cada vez mais para pagar o preço da novidade e, no entanto, não encontra meios
para pagar o preço na construção de uma sociedade sustentável.
Percebe-se que a cultura de consumo vem travestida de um privilégio, trabalhando
falsamente com a autoestima das suas vítimas, para que estas abandonem seu passado e suas
tradições e renasçam livres para o universo do consumo, privadas de si próprias, da
convivência familiar e social.
E assim o consumo norteia todas as relações dos indivíduos na sociedade pósmoderna, e o ser humano, despido de um referencial, torna-se vulnerável aos comandos do
mercado capitalista. Inclusive, o mercado de consumo é monitorado constantemente, como
releva Bauman (2008):
Afinal de contas, quando o crescimento avaliado pelo PIB ameaça diminuir, ou
ainda mais quando cai de zero, é dos consumidores procurando o talão de cheques
ou, melhor ainda, os cartões de crédito, devidamente persuadidos e estimulados, que
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se espera que “façam a economia ir em frente”- a fim de “tirar o país da repressão”.
(BAUMAN, 2008, p. 102).
Na atualidade, o consumo exacerbado, incentivado pelo sistema capitalista, tem
gerado preocupações, na medida em que promove a exploração desenfreada dos recursos
naturais e uma crescente e irreversível poluição do Planeta, situação que se agrava em razão
do crescimento populacional e das características de fabricação de produtos que se tornam
cada vez mais descartáveis e substituíveis. Observe-se que os problemas ambientais não só
advêm de intervenções diretas na natureza, como também de problemas sociais que refletem
na natureza.
Fica claro que o modelo capitalista da economia atual prioriza o crescente aumento
de produção, com intuito de gerar mais volume de capital, sem se preocupar com as
consequências. Não se pode negar que a crise ambiental é um problema enraizado na esfera
do consumo e que, mesmo havendo uma transformação na forma de pensar e agir em relação
ao ambiente, a mudança de comportamento das pessoas em relação ao consumo é um desafio
que se descortina, porque vive-se hoje em uma sociedade doutrinada a consumir, que terá
grandes dificuldades em frear o consumo de algo que lhe traz prazer e um ”suposto” bemestar.
Quando se pensa que o que se consome não se recupera, percebe-se o quanto a dívida
em relação à natureza vem se estendendo. Será que tudo o que se consome é necessário? O
que é a necessidade de cada um? Qual seria o ponto de partida para uma solução viável
econômica, social e ambientalmente, que respeite os limites ecológicos do planeta, ao mesmo
tempo em que reduza a desigualdade social e seja politicamente aceitável?
São diversos questionamentos e, certamente, a compreensão da natureza do consumo
só pode ser endossada se consideradas as relações sociais. Ora o consumidor é percebido
como vítima da exploração da lógica mercadológica voltada para a maximização dos lucros,
ora se apresenta como um ser soberano, dotado de autonomia e vontade, apto a eleger suas
escolhas. O consumidor pós-moderno apresenta-se com poder de decisão e escolha, pautados
na sua aceitação em determinado grupo social.
Ainda há tempo para despertar e pensar em soluções viáveis para o planeta. Não
precisamos editar tantas leis, basta que as leis existentes sejam cumpridas e a lei interna de
cada um volte-se para uma consciência ambiental. A própria Lei 12.305/2010, que instituiu a
Política Nacional de Resíduos Sólidos no Brasil, destaca o princípio da ecoeficiência, que tem
por pressuposto a objetivação de padrões adequados e sustentáveis de fabricação e
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fornecimento de produtos e serviços, na medida em que estabelece a compatibilização
econômica e satisfatória em favor dos consumidores, aliada à qualidade de vida e à redução
de impacto ambiental, de modo que o consumo não ultrapasse a capacidade de sustentação
estimada do planeta. O consumidor, antes destinatário dos produtos ou serviços, também é
convocado a participar da gestão dos resíduos sólidos gerados pelo consumo, como prevê o
Decreto nº 7.404, de 2010, que regulamenta a Lei de Política Nacional de Resíduos Sólidos,
ratificando a responsabilidade do setor produtivo e da sociedade civil pelo ciclo de vida dos
produtos e sua disposição final.
Na prática, entretanto, decisões ambientais urgentes são adiadas e, dificilmente, os
efeitos morais e culturais são discutidos, pois os críticos do consumo se atentam somente para
os efeitos ambientais focados na não sustentabilidade, devido à escassez dos recursos naturais
e produção de resíduos sólidos. (SAGOFF, 2005, p. 489). Ou seja, não se trabalha (e não se
pretende trabalhar) o problema do consumo em si, não se reflete sobre sua origem.
Existem várias respostas para a chave da sustentabilidade e muitas se repetem em
todas as Conferências já realizadas, tais como a busca de tecnologias mais limpas e que
produzam menos resíduos, a substituição de recursos escassos por abundantes, o “fazer mais
com menos” ou produzir diferentemente através de novas tecnologias, reciclar materiais,
controlar a poluição. É necessário ultrapassar os discursos teóricos e avançar para
deliberações humanas sensatas, visto que tudo depende das escolhas a serem feitas em favor
da proteção do meio ambiente natural. (SAGOFF, 2005, p. 489-490).
Nessa esteira, é importante observar que a legislação tem por pressuposto a
implementação daquilo que se entendeu como sendo ético, no intuito de informar e orientar a
conduta humana. Entretanto, verifica-se que a normatização não tem sido eficaz, ficando
relegada ao bel prazer daqueles a quem se destina e, muitas vezes, propositalmente esquecida,
pois o objetivo incrustado na sociedade pelo sistema capitalista é a obtenção do lucro e a
aquisição de bens.
Na verdade, não há um respeito pelo mundo natural, as preocupações com a natureza
são econômicas e radicam no conforto e bem-estar humano. Não se busca, portanto, um
comportamento ético da sociedade em relação ao consumo, mas sim uma receita que permita
consumir mais.
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4 PÓS-MODERNIDADE: A CONSTRUÇÃO DE UM HOMEM VAZIO
O surgimento da modernidade é marcado pela autonomia que o ser humano adquire
através do conhecimento, por meio da razão, desligando-se da vontade divina como único e
último mandamento. A partir daí, o homem começa a se pensar isolado da comunidade que
integra, desvinculando-se do antigo mito que criava uma identidade cultural baseada na
origem comum. A origem mítica das sociedades modernas passa a ser o vínculo contratual, de
tal forma que a união com o outro se dá, não por imposição externa, mas pela própria vontade
individual, guiada pela razão.
Na percepção de Dwivedi (2005, p. 49), “o que as pessoas fazem ao ambiente em
que vivem depende da maneira que se vêem em relação à natureza”. Ao discorrer sobre as
raízes históricas da crise ecológica, destaca que os ensinamentos do Cristianismo,
particularmente na Europa e América do Norte, que situavam o ser humano como superior a
toda criação divina e que tudo foi criado para o desfrute humano, gerou muitas crises
ambientais, e a única forma de enfrentar a crise ecológica é rejeitar essa visão antropocêntrica
da natureza, em um viés utilitarista, ou seja, voltada para servir a humanidade. Vale dizer que
até mesmo a preocupação ambiental é discutida dentro de uma visão antropocêntrica dos
prejuízos para humanos. Inclusive Lynn White (2003) ensina que “[...] a crise ambiental
perante a qual estamos hoje não é apenas uma crise da ciência e da tecnologia, nem é somente
uma crise de valores, mas é também uma crise do espírito humano”.
Percebe-se que alcançamos o século XXI e a crise de identidade afeta o ser humano
que, cada vez mais, se sente vazio e inseguro quanto ao seu destino, o que motiva Fábio
Koner Comparato (2006, p. 34) a indagar: “quem somos afinal?”.
Ainda que o método cartesiano tenha se revelado adequado no campo das ciências, o
que é questionável, não se mostrou apto a compreender complexidade do ser humano, cujas
partes não podem ser analisadas separadamente. (COMPARATO, 2006, p. 305-306).
A partir dessa mesma razão, foram criadas as leis humanas, como proposta de
implementação de uma ética fundada na moralidade, capaz de ordenar e orientar as atitudes
do indivíduo na sociedade, bem como suas responsabilidades. Contudo, as leis casuísticas são
editadas e tornam-se simbólicas porque foram criadas para dar uma resposta à sociedade
perseguida pelos vários tipos de medos. Na realidade, vive-se em uma época na qual as
medidas de segurança adotadas geram mais insegurança. (BAUMAN, 2010b, p. 72).
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Essa característica líquida do medo faz com que ele seja explorado pelos políticos e
vendedores de bens de consumo, que acabam utilizando-o em um mercado lucrativo que não
cura a ansiedade, ao contrário, alimenta mais ainda o medo. Uma vez destituídos de laços
sociais, afeto e segurança, os consumidores, vulneráveis, irão buscar o conforto nos produtos.
(BAUMAN, 2010b, p. 74).
Pontualmente, esclarece Zygmunt Bauman (2010b) que o ser humano é um ser
essencialmente moral, antes mesmo de identificarmos a qualidade de sua ação – se boa ou má
– na medida em que o próprio confronto da relação com o outro traz ínsito o desafio da
responsabilidade pelo outro. A moralidade, portanto, está atrelada à capacidade humana de
responsabilizar-se por suas ações, independentemente de serem identificadas como boas ou
más.
Seguindo tal entendimento, conceitos de responsabilidade, antes situados no campo
do dever ético e da preocupação moral com o outro, migraram para o reino da autorrealização
e do cálculo de riscos. Nesse processo, o outro é afastado pelo “eu” do próprio autor e as
escolhas responsáveis são aquelas que atendem aos interesses e satisfazem os desejos do “eu”.
(BAUMAN, 2010b, p. 119). Sendo assim, constata-se que, em um mundo globalizado, as
pessoas tornam-se cada vez mais privadas e fechadas em si mesmas.
Para amenizar o desconforto da ambivalência traduzida na necessidade de escolha
entre o bem e o mal, e a partir de estudos aprofundados dos costumes e valores consolidados
dentro da sociedade, foram estabelecidas condutas éticas, por meio de um código de leis, que
prescreve um comportamento universalmente correto. Assim, a ética – entendida como os
hábitos, costumes, usos e regras materializados na assimilação social dos valores – informa e
preceitua o ordenamento jurídico da sociedade moderna.
A ordenação da sociedade por meio das leis aliviou o peso das responsabilidades do
indivíduo em relação à escolha moral. Assim, durante um longo período, as atitudes humanas
foram regidas pela enunciação de determinações éticas, vigorando a lei humana como
mandamento comportamental das relações, abrangendo também a atuação estatal, com as
atribuições que lhe são inerentes e prerrogativas de poder.
Entretanto, de modo paradoxal, as mudanças de comportamento dos indivíduos, a
partir da sociedade pós-moderna, trouxe novos questionamentos acerca da eficácia e da
validade das leis implementadas, principalmente tendo em vista que a cultura contemporânea
é feita de ofertas, não de normas. A cultura vive de sedução, não de regulamentação; de
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relações públicas, não de controle policial; da criação de novas necessidades, desejos e
exigências, não de coerção. (BAUMAN, 2010b, p. 33).
Em um mundo habitado por consumidores, que se transformou em um grande
magazine em que se vende “tudo aquilo de que você precisa e com que pode sonhar”
(BAUMAN, 2010b, p. 36), a cultura se apresenta como se fosse uma loja de departamentos.
Mesmo que o consumo de tecnologia aparente ser uma opção, muitas vezes a utilização de
celulares, computadores, faxes, são requisitos sociais e, muitas vezes, figuram como
exigências profissionais. Seja como for, ao ingressar na trajetória do consumo, torna-se difícil
sair dela e não há como retornar, pois todos dependem da tecnologia e a capacidade de pensar
e agir fora dela é limitada.
Constata-se que as implicações do consumo não afetam, única e diretamente, o meio
natural, mas também penetram nas searas sociais, políticas e psicológicas. Hans Jonas (2006,
p. 44) aponta que o imperativo de Kant, que diz que “age de tal maneira que os efeitos de tua
ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica”, não se atém à
destruição física do homem, mas estende-se à morte de seus valores, da sua identidade moral,
da sua ética, para dar lugar à construção de um homem vazio, sem referência.
Querendo ou não, todos são responsáveis uns pelos outros. Tudo o que se pratica
individualmente repercute na vida dos outros, como também recebe os reflexos de atitudes
alheias. Ao ignorar essa teia de conexões, constata-se a evidente falta de responsabilidade em
relação aos atos praticados. Como toda ação tem uma reação, o efeito das ações negligentes
geram efeitos colaterais não calculados e, como releva Bauman (2010b), os danos podem ser
minimizados, pois impossível seria eliminá-los completamente, “se aprendermos mais sobre a
importância do bem-estar das pessoas e o quanto elas podem sofrer com o resultado de nossas
ações”. (BAUMAN, 2010b, p. 76).
Portanto, a moralidade atual, focada na escolha do consumo irresponsável e
desmedido, revela uma moralidade sem ética, destituída de cuidado para com o meio
ambiente e com os outros indivíduos, que segue na contramão das diretrizes impostas pelo
princípio do desenvolvimento sustentável, o qual pressupõe a garantia da preservação do
planeta Terra para as atuais e futuras gerações.
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5 CONCLUSÕES
A realidade é que a sustentabilidade da sociedade consumista ainda não foi pensada
com seriedade, nem mesmo os governos atingiram o cerne do problema em seus diagnósticos
e ações. Certamente, o Estado e o mercado são aliados, e as políticas ditas “democráticas” são
construídas no interesse e segundo as regras mercadológicas para garantir a longevidade do
seu domínio.
O consumo sustentável é uma utopia. Embora se defenda, com tranquilidade, a
redução do consumo ou o consumo consciente ou mesmo a utilização de tecnologias verdes,
constitui-se grande desafio a prática de um consumo que respeite os limites do planeta,
principalmente diante do modelo de desenvolvimento econômico adotado, em que a
monetarização fala mais alto. A sustentabilidade é um problema global e comum e, ao mesmo
tempo, muito complexo, diante das diferenças culturais e particularidades de cada nação, o
que dificulta a imposição de limites e a tomada de decisões conjuntas.
É de extrema importância a conscientização das questões ambientais em nível
transnacional, mas ainda se faz urgente a sua internalização, para que a sociedade se
reconheça não só como vítima, mas também como agente.
Aponta-se a necessidade da disseminação de práticas que se traduzam em um
consumo responsável e solidário com as gerações presentes e futuras, como também a adoção
de uma ética renovada, voltada para o bem de todos, pois a ética tradicional, individualista,
antropocêntrica, não se adequa às necessidades emergentes. Um consumo sustentável não se
perfaz sem um comportamento ético e coletivo.
Todavia, ninguém quer se privar do conforto e não existe uma seleção de
consumidores na sociedade, pois todos são consumidores por excelência, nascem consumindo
e assim permanecerão. Entretanto, para a sobrevivência dos seres humanos no planeta, o
consumo que tenha como envoltório uma ética ambiental é medida de urgência que se impõe,
considerando que ainda temos escolha. Assim, concluímos que,
se não desviarmos do
caminho do consumo volátil, não se pode vislumbrar um futuro otimista para a humanidade.
As principais questões relacionadas ao consumo exigem uma compreensão
multidisciplinar para auxiliar na precaução dos riscos em potencial, muitas vezes silenciosos,
incontroláveis, transnacionais, e que atravessam gerações que podem inclusive comprometer a
existência humana na Terra.
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A vida caminha em um ritmo tão acelerado, muitas vezes difícil de acompanhar. Os
conceitos tornam-se impróprios, as tradições ficam no passado, os relacionamentos efêmeros
e as experiências obsoletas. Resta-nos a esperança de habitarmos um mundo melhor, mais
solidário e mais hospitaleiro, fulcrado numa nova ética socioambiental. Se muitas vezes nos
colocamos acima dos sonhos, talvez possamos ser otimistas em acreditar que o
desenvolvimento sustentável deixe de ser uma utopia e navegue nas ondas da realidade.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO E O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA DIANTE DOS
LIMITES DO PLANETA: a alteração das gramáticas de práticas sociais para uma
educação sócio-ambiental comprometida com a emancipação em uma sociedade
resiliente
THE FORMATION OF THE PERSON AND THE PHENOMENON OF VIOLENCE
BEFORE THE LIMITS OF THE PLANET: the grammars of social practices for social and
environmental education committed to emancipation in a resilient society
Abraão Soares Dias Dos Santos Gracco
Gianno Lopes Nepomuceno
RESUMO
O desafio colocado aos seres vivos em tempos de padrões sustentáveis de produção e
consumo empurra o sistema educacional e os meios de controle social para um possível
abismo: os limites do planeta sem uma gestão consciente e um compartilhamento racional de
seus riscos poderá ampliar os padrões de todas as espécies de violência. O presente trabalho
parte da premissa que, ao considerar a política como o âmbito de interpretação evolutiva do
fenômeno da violência, a filosofia política passou a informar ao sistema do direito que essa
construção social exige dos processos de campartilhamento de gramáticas de práticas sociais
(processo educacional), em seus diversos matizes, uma intervenção social de cada afetado
como partícipe de uma relação sujeito-sujeito e não mais sujeito-objeto, como ocorria na
filosofa da consciência. A circularidade dessa “educação na sustentabilidade” rompe com a
noção ainda do século passado de “educação para a sustentabilidade”. Por meio do método
compreensivo, enseja-se uma reflexão das recorrentes categorias de violência, defende-se uma
processo de aprendizado sincrônico e e não mais diacrônico, a respeito da necessidade de
novos padrões eticizantes de produção e consumo, sob o marco teórico da teoria do discurso.
Esse concebe uma moral e uma ética pós-tradicional, sob uma base principiológica de
interpretação do ordenamento jurídico que entrelaça, sem preponderância a priori, o direito
posto (positivismo) e a leitura moral metafísica (direito natural). Desse modo, necessário
manter-se a tensão permanente entre os limites do planeta e a necessidade de desenvolvimento
econômico para ensejar um processo pedagogicamente aberto de formas inteligentes,
autônomas e resilientes de vida que inspiram a principiologia do ordenamento jurídico.
95
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
PALAVRAS-CHAVE: Violência Instrumental; Educação na Sustentabilidade Ambiental;
Relatório Resiliência; Emancipação.
ABSTRACT
The challenge to living beings in times of sustainable patterns of production and consumption
impel the educational system and the means of social control for a possible gap: the limits of
the planet without a conscious management and a rational sharing of risks can extend patterns
all species of violence. This study assumes that in considering the policy as part of the
evolutionary interpretation of the phenomenon of violence, political philosophy has to inform
the system of law that requires the social construction processes share grammars of social
practices (educational process), in its various hues, a social intervention for each affected
participant as a subject-subject relationship and no longer subject-object, as occurred in the
philosophical consciousness. The circularity of this "education in sustainability" still breaks
with the notion of the past century "education for sustainability". Through the comprehensive
method, entails a reflection the recurrent category of violence, argues a learning process is
synchronic and not diachronic about the need for new patterns of production and consumption
ethics, in the theoretical framework of the theory speech. This conceives a moral and an
ethical post-traditional, principled basis under an interpretation of the juridical system that
intertwines without preponderance a priori, the legal position (positivism) and reading moral
metaphysics (natural law). Thus, necessary to keep constant tension between the limits of the
planet and the need for economic development give rise to a process of open pedagogically
intelligent forms, autonomous and resilient life that inspire principium the juridical system.
KEYWORDS: Instrumental Violence; Education in Environmental Sustainability; Report
Resilience; Emancipation.
01 INTRODUÇÃO
No nascente século de constelação pós-nacional, a qualidade e a quantidade de
mecanismos de compartilhamento de gramáticas de práticas sociais entre indivíduos, entre
estes e diversas formas de sociedade no globo é infinitamente superior em relação à mesma
década do século passado. Nesse período, o processo de acumulação do modo de produção
capitalista encontrou nova formatação e, consequentemente, exigiu-se novas habilidades e
96
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
competências fincadas ainda na noção de soberania nacional tradicional. No desfecho dessas
contradições a humanidade passou por duas grandes Guerras Mundiais, cujas consequências
alicerçaram os ordenamentos jurídicos da segunda metade daquele breve século (Erick
Hobsbaw) como a proteção a relações jurídicas interpretadas como atos de vontade,
preponderando-se a lei e relegando os princípios a uma terefa secundária.
Atualmente, a crise do modo de produção empurra a humanidade para novos desafios
que exigem crescentes habilidades e competências no panorama de uma soberania nacional
mitigada, principalmente em razão dos excessos da primeira metade do século passado. O
ordenamento jurídico passa a proteger valores, agora interpretados como atos de compreensão
das pretensões envolvidas. Esses valores, considerados como escolhas por determinadas
formas de vida boa, são abrigadas no ordenamento jurídico como expectativas de
comportamento, preponderamente por normas de alto grau de abstração (normas - princípios),
efetivadas por normas com baixo grau de abstração (normas-regras).
Desse modo, os valores que inspiram o ordenamento jurídico devem ser
interpretados como atos de compreensão, voltados para a integridade do direito (Ronald
Dworkin), ao se levar a sério as pretensões de cada membro da comunidade política. Essa
procedimentalização dos atos de abordagem dos fenômenos sociais oriundos das carências
humanas possui na educação, o mesmo tempo, seu ponto de partida e de chegada. Por isso, a
efetivação da política pública de educação ambiental deve ser diretamente interligada ao risco
da desdiferenciação (Niklas Luhmann), diante da possibilidade de frustração de suas
expectavas normativas.
Essa frustração realimenta os afetados de modo que a anomia pode traduzir-se em
uma “corrupção de códigos” que retira o poder legítimo, entendido como a capacidade dos
seres humanos de agirem racionalmente em conjunto, formando-se um condições de
possibilidades para um aprendizado contínuo e emancipatório dos indivíduos para os atos
racionais (violência não é natural, irracional e nem pessoal) de barbárie ou premissas
desarrazoadas de hegemonia. Com efeito, esse poder político, imanente à qualquer
comunidade de seres livres e iguais que entabulam as regras para sua convivência em comum,
deverá canalizar todas as formas possíveis de informação e participação engajada (tradicional
e virtual) no nível local, nacional e internacional para uma “educação na sustentabilidade”.
Essa elevada a uma seara de intepenetração dos atores que fazem de sua sociedade um locus
de convivência civilizacional muito além de um projeto de felicidade individual (Consenso
97
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
por Sobreposição), de modo que todas as formas de vida razoáveis sejam efetivametne
protegidas pelo estatuto constitucional dessa comunidade política, limitando-se a
interpretação das gramáticas de práticas sociais que indicam excessos das pretensões
(Übermassverboten) bem como ampliando-se essas interpretações diante da proteção
deficiente (Untermassverboten).
02 O CONTROLE SOCIAL E A MEDIAÇÃO DAS VARIADAS FORMAS DE
VIOLÊNCIA SINDICÁVEIS EM RELAÇÃO À SUSTENTABILIDADE
A modenidade, fundada a partir de premissas iluministas do século XVII, depositava
na racionalidade humana a possibilidade de construir sociedades de seres humanos livres e
iguais, proprietários, no mínimo, do próprio corpo. Ao permitir a separação, até então
amalgamada, de diversas categorias como direito, política, religião, economia e ética,
permitiu-se a criação de sociedades cada vez mais complexas como do paradigma (KUHN,
2001, p. 46) do Estado Liberal e do Estado Social.
Com isso, seja pelos excessos do Estado Liberal, até a primeira metade do século XIX,
seja pelos excessos do Estado Social, até a primeira metade do século XX, o paradigma do
Estado Democrático de Direito rompe estruturalmente com a percepção comum a ambos da
inesgotabilidade dos recursos naturais (SANTOS GRACCO, 2008, p. 44). Mas antes de
avançar sobre seus pressupostos da constatação de esgotabilidade desses recursos e a
alteração da antropocentrismo radical para o antropocentrimo mitigado, importante resgatar a
relação entre controle social e as variadas formas de violência, na perspectiva as
sustentabilidade ambiental.
Em primeito lugar deve-se reconhecer que a fomação do indivíduo perpassa por um
sistema de instituições e padrões normativos de comportamento por meio de agências de
controle social de nível primário, de ocorrência no âmbito das relações pessoais, concretas e
afetivas como a família (HOLLINGSHEAD, 1970, p. 58). Já o agenciamento do controle
social de nível secundário, possui sua ocorrência no âmbito das relações impessoais, abstratas
e informais como na escola 1 e no emprego.
1
No curso da segunda metade do século XX completou-se definitivamente e se impôs em âmbito mundial uma
radical transformação da pedagogia, que definiu sua identidade, renovou seus limites e deslocou o seu eixo
epistemológico. Da pedagogia passou-se à ciência da educação; de um saber unitário e “fechado” passou-se a um
saber plural e aberto; do primado da filosofia passou-se ao da ciências. Tratou-se de uma revolução no saber
98
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Nesse aspecto, a ética (bom/ruim) e a moral (certo /errado) são agregadas ao indivíduo
com um processo de construção e da formação social. Esse apredizado contínuo se traduz por
meio de compartilhamento e trocas formais e informais com os outros indivíduos na aquisição
de habilidades e competências. Segundo Oliveto (2012, p.24), pesquisadores americanos
identificam processo cerebral ligado a valores fundamentais construídos ao longo dessa
formação. Esses estudos buscam orientar políticas públicas para ordenar a vida em sociedade,
principalmente no tocante à socialização preventiva, cuja função primorcial é inibir a práticas
de infrações e desvios por meio de instituições informais. Essa prática contíntua naturaliza (a
construção) na espécie humana a capacidade de avaliação moral com a própria seleção
natural. Tanto assim que passa-se a reconhecer que os mecanismos cerebrais que possibilitam
distinguir o certo do errado já vêm com certificado da origem do humano, ou seja, uma
aquisição evolutiva e civilizacional que passa a integrar um dado biológico (REVISTA
JURÍDICA CONSULEX, 2011, p. 66).
Por seu turno, a definição de ética como originária do grego ethos e entendido na
dimensão do "modo de ser", ou "caráter", enquanto maneira de vida que o homem adquire ou
conquista à medida que forja sua existência no mundo, passa a significar a episteme do
comportamento que fundamenta as preferências dos seres humanos em sociedade, conforme
trabalhado por Vázquez (1982, p. 17). Já a moral é parte dos atos da vida concreta que
ensejam juízos de valor. Trata da prática real das pessoas que se expressam por costumes,
hábitos e valores culturalmente estabelecidos como padrão de expectativas normativas de
comportamento. Uma pessoa é moral quando age em conformidade com as expectativas
socialmente atribuídas pelas normas entabuladas com o passar do tempo, que constituem no
processo de formação de seu caráter.
Estes podem, eventualmente, determinar se uma pessoa pode ser moral (segue os
costumes até por conveniência), mas não necessariamente ética (obedecendo a convicções e
princípios). Tais definições são abstratas porque não mostram o processo como a ética e a
moral efetivamente, surgem. (BOFF, 2006, p.37).
Observa-se que Kant (1788) já escrevia que a formação moral altruísta não é uma
garantia em si mesma. Ser "moral" implicaria em pensar no outro, em qualquer ser. O
indivíduo em pleno gozo de seus atributos racionais deveria possuir vontade e consciência de
educativo que se afirmou rapidamente e que se colocou como um “ponto de não-retorno” da revolução da
pedagogia. (CAMBI, 1999, p. 595).
99
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raciocinar além do próprio "eu", e às vezes, singnificaria perder vantagens imediatas. Para
Kant (1788), o conhecimento pressupõe uma faculdade de conhecer objetos que produzam em
nós uma “sensação”. Sem experiência e observação dos fenômenos não há conhecimento,
pois somente aquela nos dá o fato atual e contingente. 2 No entanto, a mente humana encerra
concepções necessárias e universais. O que é necessário e universal não pode vir somente da
experiência. A universalidade e a necessidade constituem a indicação de uma idéia a priori.3
O conhecimento humano seria impossível se não se concebesse certas formas na inteligência
a priori. Tais moldes preexistentes a todo conhecimento ou juízo de entendimento puro
denominam-se categorias ou formas de entendimento puro.
Por isso, o ceticismo é a conclusão final de toda a “Crítica da razão pura”, ao passo
que se constata que a inteligência é de tal modo constituída que sem as categorias não se pode
adquirir conhecimentos. Essas categorias existentes no “eu” são inerentes ao espírito humano.
É tudo o que se sabe e nos é permitido averiguar. Uma barreira intransponível se ergue entre o
“eu” e o mundo exterior. Tais concepções, a priori, fazem parte de sua temática razão pura,
teórica ou especulativa e nenhuma relação têm com a conduta humana.
A razão humana é uma faculdade superior que pode dividir-se em pura ou prática. Ora,
se a razão teórica contém as mencionadas formas de “sensibilidade pura”, formas estas
completamente estranhas à prática, e nenhum elemento presta para a formação dos preceitos
impostos à atividade voluntária, a razão prática encerra em si mesma certas concepções a
priori, independentes de qualquer experiência que compreenda os fundamentos de todas as
regras éticas a que se subordina a vontade humana.
A liberdade, conceito central para a discussão sobre aquisição de competências e
habilidades, é inseparável da razão, uma vez que se alguém não se faz compreender este é
levado cegamente a realizar o seu destino, como numa educação fundada em comandar e
obedecer. Dessa forma, a causa 4 que a razão humana concebe é nitidamente a de um ser livre
e racional. 5
Portanto, só há uma coisa que pode influir na vontade livre e racional sem a presença
da coação: que constituem os motivos compreendidos e livremente almejados. Um ser livre e
2
Exatamente o que a filosofia clássica não aceita para o conceito de ciência.
Tal conceito é trabalhado por Kant na obra “Crítica da Razão Pura” na parte onde desenvolveu a idéia de
“Estética Transcendental”, ou seja, as formas imediatas do “conhecimento sensível”, examinando-as nas
variantes tempo e espaço.
4
Categoria que para Kant, segundo as leis da inteligência humana, cada indivíduo tem em sua razão a idéia de
“causa livre”.
5
Nota-se nesta construção o princípio racional do “livre arbítrio”.
3
100
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
racional na condição de aprendizado só pode inclinar-se ao entendimento sob a influência de
argumentos discursivamente coerentes, que os aceite livre e racionalmente. Assim, a idéia de
dever e a idéia de lei moral (universais por natureza) existem no espírito humano muito antes
de qualquer experiência (universo de pré-compreensões). Desse modo, a universalidade e a
obrigatoriedade6 passam a ser características necessárias do dever, ou lei moral, ou motivo
legítimo, que influi na atividade dos seres racionais e livres. Ao admitir a racionalidade como
guia do ser humano livre, caso realmente o seja 7, o único motivo virtuoso da alteridade que
pode influir nas suas resoluções é o dever. Verificando se o motivo é apresentado como
caráter obrigatório e se pode ser universalizável, converter-se-á em um preceito universal,
praticado por todos os seres livres e racionais numa sociedade bem ordenada 8.
Por isso a vida moral integra o conjunto da existência globalizadora do indivíduo, na
unificação da vida com o conjunto da existência, mediante a relação do ethos razoável
pluralísticamente compartilhado. Sendo assim, além da socialização 9, tem-se as diversas
instituições de normatividade ética integram o controle social em caráter repressivo nos
hábitos, nas cortesias, nas normas morais (facultas agendi) e nas normas jurídicas (ultima
ratio).
6
Tal “obrigatoriedade” destoa da idéia de coação uma vez que a razão de todos os seres livres, compreendendo
sua força contingente, submete a esta sem qualquer coação.
7
Para averiguar tal afirmativa, leva-se em consideração que o ser humano verifica que entre os motivos que o
impelem a agir - o prazer, o interesse e outros -, há um que se lhe apresentar com os caracteres da
obrigatoriedade e da universalidade. Cada ser humano, reconhecendo-se causa livre e racional, descobre em sua
“razão prática” uma ordem que não se impõe pela coação de praticar certos atos abster-se de outros. Essa ordem
é categórica: Não admite condições, nem restrições. Manifesta-se por fórmulas como estas: “Não matar”, “não
furtar”, “não mentir”. Daí a denominação que lhe dá Kant, o de “imperativo categórico”. O qual todo indivíduo
se sente obrigado a cumprir injunções do imperativo categórico e compreende que tais preceitos podem
universalisar-se, transformar-se em regras obedecidas por todos, que são seres racionais e livres.
8
Em contraposição a esses postulados, atualmente o herdeiro da terceira geração da Escola de Frankfurt, Axell
Honneth, busca construir uma teoria de caráter normativo para a eticidade de matriz hegeliana que,
particularmente, entendemos um possuir um caráter mais de suplementariedade do que contrariedade por sua
dimensão coletiva: “Doravante as relações éticas de uma sociedade representam para ele as formas de
intersubjetividade prática na qual o vínculo complementário e, com isso, a comunidade necessária dos sujeitos
contrapondo-se entre si são assegurados por um movimento de reconhecimento. A estrutura de uma tal relação
de reconhecimento é para Hegel, em todos os casos, a mesma: na medida em que se sabe reconhecido por um
outro sujeito em algumas de suas capacitadas e propriedades e nisso está reconciliado em ele, um sujeito sempre
virá a conhecer, ao mesmo tempo, as partes de sua identidade inconfundível e, desse modo, também estará
contraposto ao outro novamente como um particular”. (HONNETH, 2003, p. 46-47).
9
Assim como as grandes religiões universais, as doutrinas metafísicas e as tradições humanistas também
fornecem contextos em que a ‘estrutura total da nossa experiência moral’ está inserida. Elas articulam, de um ou
outro modo, uma autocompreensão antropológica, que se adapta a uma moral autônoma. As interpretações
religiosas de si mesmo e do mundo, surgidas na época axial das grandes civilizações
, convergem, de certo modo, numa autocompreensão ética mínima da espécie, que sustenta essa moral.
(HABERMAS, 2004, p. 57).
101
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
É sintomático que o enfraquecimento coletivo dessa necessidade de praticar a
alteridade como a tolerância e a solidariedade caminha na via oposta do atual fortalecimento
da idéia de prosperidade e felicidade individual, fundada na aquisição frenética de bens
corpóreos e incorpóreos sem considerar a variante inédita na história humana: os limites
ambientais do planeta.
A desconsideração dessa varíável por meio dos fenômenos como as mudanças
climáticas poderá levar os indivíduos e sociedades a um nível de violência ainda mais
sofisticada, enquando não se ajustar-se às condições humanas de sobrevivência a padrões
sustentáveis de produção de consumo (art. 3º, XIII, da Lei 12.305/2010), diante da
constatação que […] el hecho de que el hombre se exterioriza, que tiene necesidad de los
otros y de la naturaleza para realizarse, que se particulariza tomando posesión de ciertos
bienes y, que, por eso, entra en conflicto con los otros hombres” (MERLEAU-PONTY,
Maurice,1947, p. 204).
Ao resgatar a consciência que as instituições primárias e secundárias são a arena do
aprendizado, é na família, principalmente na infância, que se inicia a consolidação moral
dentre as relações familiares, embasado nos princípios básicos que regem toda sua formação
estrutural. Não é demais observar que outras variantes podem influenciar no desvio da
conduta da alteridade moral. Por meio de uma visão sócio-histórica é possível constatar uma
mudança de costumes e valores associados às dramáticas transformações da vida urbana.
Nessa a realização proposta só pode ser de aspecto material, pois o afeto verdadeiro não pode
ser adquirido nem substituído na velocidade em que o tempo preconiza. A expansão da
cultura moderna modificou de forma drástica as relações e até mesmo o conceito de família 10.
A consideração da sociedade como espaço público em permanente construção,
instituição secundária de controle social, experimenta um processo de desencantamento com
o distanciamento em relação aos valores éticos transcendentais, atribui-se ao processo de
modernização as diversas espécies de violências, concebidas na condição de instrumentais
(ARENDT, 2010, p. 79), como o bullying, a homofobia, a xenofobia, entre outras formas de
subjucação que frustram as expectativas individuais de felicidade. A preterição do indivíduo
na busca de construção de sua identidade, pode gerar transtornos mentais graves de modo que
10
O Supremo Tribunal Federal reconheceu por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental,
ADPF nº 132-RJ, a união estável entre pessoas do mesmo sexo, como locus de proteção na condição de entidade
familiar.
102
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
um transtorno de personalidade, caracterizado por ausência de emoções de forma geral,
sentimento de empatia, compaixão, culpa, remorso ou vergonha:
Nessas reações emocionais de vergonha, a experiência de desrespeito poder tornar-se
o impulso motivacional de uma luta por reconhecimento. Pois a tensão afetiva em que
o sofrimento de humilhações força o indivíduo a entrar só pode ser dissolvida por ele
na medida em que reencontra a possibilidade da ação ativa; [...]. Simplesmente porque
os sujeitos humanos não podem reagir de modo emocionalmente neutro às ofensas
sociais <violências>, representadas pelos maus-tratos físicos, pela privação de direitos
e pela degradação [...]. (HONNETH, 2003, p. 224).
Desse modo, a deficiência encontra-se no campo do afeto, tendo, portanto,
incapacidade de pensar no outro, buscando-se sempre a satisfação de seus interesses próprios
quando não permeador por uma postura de lutar por esse reconhecimento na condição de
sujeito de direitos (SILVA, 2008, p. 28).
Nota-se que, guardadas as proporções, o sentimento social desse início do século
perpassa pela amplificação desse fenômeno em escala cada vez maior, não pela doença, mas
pelos sintomas anestesiados e mecanizados nos quais os indivíduos passaram a se comportar
em relação a sí mesmo e ao planeta, fazendo surgir categorias de violência coletiva como os
refugiados ambientais (RAMOS, 2011, p. 33), cuja violência no desterro de seus habitats é
silenciosa como o câncer, uma vez que desastres naturais quase sempre não são naturais, mas
sim a reação do ecossistema à práticas reiteradas de abuso de sua capacidade regenerativa.
É de salientar que os níveis de violências como se fosse uma herança de um instinto
animal (pré-político) que a civilização ainda não fora capaz de controlar ou eliminar da vida
em sociedade, são como "[...] brutalidade, sevícia, abuso físico ou psíquico contra alguém e
caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão e intimidação, pelo medo
e pelo terror." (CHAUÍ, 2008, p. 242) não podem ser caracterizados como fonte do direito ou
do poder (ARENDT, 2010, p. 79) por serem excludentes entre si. Essa esfera pública de
controle secundário ainda é capaz de atribuir ao indivíduo possibilidades emancipatórias ainda
não experimentadas no âmbito primário, pois
Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que todos vêem e ouvem de
ângulos diferentes. É este o significado da vida pública, em comparação com a qual
até mesmo a mais fecunda e satisfatória vida familiar pode oferecer somente o
prolongamento ou a multiplicação de cada indivíduo, com os seus respectivos
aspectos e perspectivas. A subjetividade da privatividade pode prolongar-se e
multiplicar-se na família; pode até tornar-se tão forte que o seu peso é sentido na
esfera pública; mas este “mundo” familiar jamais pode substituir a realidade
resultante da soma total de aspectos apresentados por um objeto a uma multidão de
espectadores. Somente quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas, numa
variedade de aspectos, sem mudar de identidade, de sorte que os que estão à sua
volta sabem que vêem o mesmo na mais completa diversidade, pode a realidade do
mundo manifestar-se de maneira real e fidedigna. (ARENDT, 2007, p. 67).
103
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A luta por reconhecimento como a esfera de demonstração da intersubjetividade
possui nos direitos humanos a garantia do pleno exercício da cidadania, de modo a abarcar
toda concepção contemporânea e democrática, a partir de um conjunto das atividades
realizadas de maneira consciente, com o objetivo de assegurar ao ser humano a dignidade e
evitar que passe sofrimento. Conforme constatado por Cattoni de Oliveira (2007, p. 44), o
sistema de direitos humanos passa a ficar ausente diante da violência, visto que aqueles
possuem limites por não resolver fatalidades violentas. (CASTILHO, 2011, p. 39).
Para dobrar essa esquina civilizatória o processo educacional passou a incorporar a
vertente da Convenção de Estocolmo de 1972 que constatou que os processos de violência
nos quais estavam submetidos os seres vivos não poderiam ser apenas sob o ponto de vista da
condição humana, migrando-se para antropocentrismo mitigado e atualmente até mesmo para
o biocentrismo (atuais constituições do Equador e da Bolívia). Ao constatar-se o fim da noção
de inesgotabilidade dos recursos naturais, o Relatório Brundland de 1987 e as Convenções
internacionais sobre o meio ambiente forçaram a adoção uma nova gramática de práticas
sociais para o século XXI: a resiliência e a necessidade de capacitar as pessoas a realizarem
escolhas sustentáveis, conforme salientado no “Relatório Resiliência”:
Quanto mais influência tivermos na sociedade, maior será o nosso impacto potencial
sobre o planeta e maior nossa responsabilidade de nos comportar de maneira
sustentável. Isto é hoje mais verdadeiro do que nunca, quando a globalização e as
pressões sobre nossos recursos naturais significam que escolhas individuais podem
ter consequências globais. Para muitos de nós, no entanto, o problema não se limita
às escolhas não sustentáveis, mas principalmente à falta de escolhas. A verdadeira
escolha só será possível quando os direitos humanos, necessidades básicas,
segurança e resiliência humanas forem garantidos. As áreas prioritárias de ação
incluem:
[…] - promover a educação para o desenvolvimento sustentável, inclusive
educação secundária e vocacional, e capacitação para ajudar a assegurar que
toda a sociedade possa contribuir para soluções para os desafios atuais e
aproveitem as oportunidades;
- criar oportunidades de emprego, especialmente para mulheres e jovens, para
fomentar um crescimento verde e sustentável;
- capacitar os consumidores para fazerem escolhas sustentáveis e promover o
comportamento responsável de maneira individual e coletiva; [...]
- construir resiliência por meio de redes sólidas de segurança, redução de risco de
desastres e planos de adaptação (PAINEL DE ALTO NÍVEL DO SECRETÁRIOGERAL DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE SUSTENTABILIDADE GLOBAL
2012, p. 09-10, grifo nosso).
Desse modo, a sustentabilidade das práticas de cada indivíduo em sociedade, por
tratar-se de direito difuso, passa ser sindicada de forma prodrômica desde as instituições
primárias e, em grau crescente de sanções punitivas e premiais, pelas instituições secundárias
de controle social. Além da extensão desse controle, exige-se um nível de profundidade que
104
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
ainda não se deu conta de sua necessidade diante da atual avalanche de informações que
cercam os sujeitos humanos. Do mesmo modo, a postura dos afetados no presente século
deverá ser de catalisar esses mecanismos de emancipação para a durabilidade e estabilidade
das relações altruísticas.
03 AS DIMENSÕES COMPARTILHADAS DA NOÇÃO SUSTENTABILIDADE
AMBIENTAL COMO DESAFIO CONTEMPORÂNEO PARA CADA AFETADO
Assim como os recursos humanos e ambientais são desigualmente distribuídos no
planeta, os países em desenvolvimento, em sua maioria, possuem esses em abundância. No
entanto, anestesiados pelo princípio da responsabilidade comum, mas diferenciada 11, correm o
risco de não elevarem os padrões civilizatórios exigidos no presente século porque,
Ao mesmo tempo, os países em desenvolvimento, onde se concentram
hoje os jovens, têm a oportunidade de obter um dividendo demográfico substancial
nas próximas décadas. Dado que as taxas de dependência estão caindo e as
populações jovens (e cada vez mais urbanas) oferecem oportunidades econômicas
substanciais, muitos países em desenvolvimento estão prontos para um grande
aumento na prosperidade. Entretanto, esses países arriscam perder a oportunidade
de capitalizar uma população jovem se não forem providos a educação e o
treinamento necessários e se a criação de empregos não for estimulada por
meio de mercados operativos e políticas governamentais eficazes. Esses países
arriscam aumentar a estagnação econômica e a inquietação social, pois jovens
mal qualificados descarregam suas frustrações quando enfrentam
a
perspectiva de uma vida de desemprego e aspirações sufocadas (PAINEL DE
ALTO NÍVEL DO SECRETÁRIO-GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE
SUSTENTABILIDADE GLOBAL 2012, p. 09-10, grifo nosso).
Em razão disso esse “Relatório Resiliência” aponta as medidas práticas para para
alcançar a educação e a capacitação na sustentabilidade:
- Investir em educação e treinamento proporciona um canal direto para avançar a
agenda de desenvolvimento sustentável. Isto é amplamente reconhecido como um
meio muito eficiente para promover a qualificação individual e tirar gerações
da pobreza, além de proporcionar importantes benefícios de desenvolvimento para
jovens, particularmente mulheres.
11
“Os Estados deverão cooperar com o espírito de solidariedade mundial para conservar, proteger e restabelecer
a saúde e a integridade do ecossistema da Terra. Tendo em vista que tenham contribuído notadamente para a
degradação do meio ambiente mundial, os Estados têm responsabilidades comuns, mas diferenciadas. Os países
desenvolvidos reconhecem a responsabilidade que lhes cabe na busca internacional do desenvolvimento
sustentável, em vista das pressões que suas sociedades exercem no meio ambiente mundial e das tecnologias e
dos recursos financeiros de que dispõem”. Princípio 07, da Declaração do Rio de Janeiro Sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável, de 1992. Particularmente, em analogia à doutrina dos separados, mas iguais
(EUA, 1954, Brown vs. Broad Education), parece uma reprodução de uma segregação em nível internacional
que, arriscamos dizer que essa tem sido uma das razões dos entraves nas negociações sobre um acordo definitivo
e vinculante de todos os países para substituir o Protocolo de Kyoto que arrasta-se desde Copenhagen/2009 e da
própria Rio + 20.
105
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
- A educação primária para todos, em particular, é uma pré-condição para o
desenvolvimento sustentável. […]. A educação básica é essencial para superar
barreiras aos futuros empregos e à participação política, pois as mulheres
atualmente constituem aproximadamente dois terços dos 793 milhões de adultos
analfabetos do mundo.
- O Objetivo de Desenvolvimento do Milênio em educação primária
universal ainda não foi alcançado, devido em parte a fundos insuficientes, apesar
da existência de outras barreiras. [...]
- Apesar de a educação primária ser a base do desenvolvimento, a educação pósprimária e secundária e o treinamento vocacional são cruciais na construção de
um futuro sustentável. Cada ano adicional de educação nos países em
desenvolvimento aumenta a renda de um indivíduo em 10% ou mais, em média.
Os estudos demonstram também que as mulheres nos países em desenvolvimento
que concluem o ensino secundário têm, em média, um filho a menos que as
mulheres que concluem apenas o ensino primário, levando a maior prosperidade
econômica dentro das famílias e menor pobreza intergeracional. Além disto, a
educação pós-primária baseada em um currículo projetado para desenvolver as
principais competências para uma economia do século XXI - tais como a gestão
do ecossistema, ciência, tecnologia e engenharia - podem estimular a inovação e
acelerar a transferência de tecnologia, bem como apresentar as qualificações vitais
para novos empregos verdes. Embora, hoje se estima que menos de um quarto das
crianças concluam o ensino secundário.
- Simultaneamente, projeta-se que a falta de qualificações apropriadas seja uma
das principais barreiras ao desenvolvimento sustentável. O
preenchimento de empregos qualificados exigirá uma nova força de trabalho e
poderá utilizar as qualificações de jovens e mulheres que atualmente estão
cronicamente sub-representados nesses setores: as mulheres são responsáveis por
apenas 9% da mão de obra na construção civil, 12% em serviços de engenharia, 15%
em serviços financeiros e empresariais e 24% na fabricação.
- O treinamento técnico e vocacional é essencial para o crescimento e para a
capacitação humana a fim de suprir as demandas do mercado de trabalho, inclusive
em setores como saúde, educação e bem-estar público, nos quais a falta de uma
força de trabalho qualificada pode impedir o desenvolvimento sustentável de um
país.
- O treinamento em todos os setores tem que ser relevante, acessível, de custo
razoável e ministrado por treinadores qualificados e certificados. Precisa ser
desenvolvido em coordenação com o setor privado para assegurar que seja relevante
para as necessidades da indústria e que as credenciais conferidas sejam aceitas pelas
empresas como qualificação suficiente. O treinamento vocacional e as
qualificações devem também ser vistos como uma alternativa adequada a
outras trajetórias de educação tradicionais.
- Tem-se visto nos anos recentes uma explosão de inovação nos meios de
fornecimento de treinamento vocacional e de qualificações, desde boot camps
empresariais, compartilhamento de conhecimentos e centros de tecnologia e
treinamento empresarial de mulher para mulher a programas de mentores, esquemas
de estágios para jovens e programas de pesquisa e intercâmbio.Mas são necessários
esforços muito mais integrados e de grande escala (PAINEL DE ALTO NÍVEL
DO
SECRETÁRIO-GERAL
DAS
NAÇÕES
UNIDAS
SOBRE
SUSTENTABILIDADE GLOBAL 2012, p. 09-10, grifo nosso).
No âmbito das Recomendações, o “Relatório Resiliência”, além de repisar na
necessidade de alocar mais recursos para a universalização da educação primária (até 2015)
por meio de um Fundo Global para a Educação, inova na Recomentação que endereça a um
novo padrão de dignidade humana de modo que,
106
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Os governos, o setor privado, a sociedade civil e os parceiros de desenvolvimento
internacional relevantes devem trabalhar juntos para prover treinamento
vocacional, reciclagem e desenvolvimento profissional no contexto da
aprendizagem contínua para toda a vida voltada ao preenchimento das lacunas
de qualificações em setores essenciais para o desenvolvimento sustentável. Devem
priorizar mulheres, jovens e grupos vulneráveis nesses esforços.(Painel de Alto
Nível do Secretário-Geral das Nações Unidas sobre Sustentabilidade Global, 2012,
p. 53, grifo nosso).
Nota-se que esses desafios estão colocados a cada novo dia desse século. A alteridade
por meio da busca permanente de identidade numa sociedade fragmentária perfaz uma
conexão intersubjetiva entre o que somos e o que queremos ser. Por isso a “educação na
sustentabilidade” não pode ser tomada apenas nas condicionantes de normas-regras,
estabelecidos na Lei 9.795/99, ao dispor sobre a educação ambiental e instituir a Política
Nacional de Educação Ambiental (CAMPOS, 2012), mas nas condições de normasprincípios, determinando toda a interpretação do ordenamento interno e internacional que
busca emancipar os indivíduos para tornarem-se melhores senhores de seus destinos.
Esse novo padrão de dignidade humana tem na transformação de ideias em coisas
(reificação), a necessidade de manter a capacidade de regeneração dos recursos do planeta,
uma vez que nos séculos anteriores, a relação sujeito-objeto desaguou na existência de
elementos viscerais de violência no processo produtivo ser considerar-se que “[...] o homo
faber, criador do artifício humano, sempre foi um destruidor da natureza.” (ARENDT, 2007,
p. 152). Nesse aspecto, o processo educacional como controle social secundário não pode
mais
ser
fundamentado
na
relação
comandar-obedecer,
mas
numa
relação
de
compartilhamento de aprendizado mútuo entre escola-aluno. A “autoridade do argumento”
deve esforçar-se para convencer sua plausibilidade diante dos desafios apontados e não mais
no “argumento da autoridade” sedenta por legitimidade efêmera, uma vez que os afetados são,
a priori, sujeitos de direitos:
O cidadão é autônomo e contudo é considerado responsável por aquilo que faz (§
78). Para agir de modo autônomo e responsável, um cidadão deve observar os
princípios políticos que embasam e orientam a interpretação da constituição. Ele
precisa avaliar como esses princípios deveriam ser aplicados nas circunstancias
concretas. [...] Devemos avaliar teorias e hipóteses à luz da evidência apresentada
por princípios publicamente reconhecidos. […] Pessoas iguais que aceitam e
aplicam princípios razoáveis não precisam de nenhuma autoridade superior
estabelecida. (RAWLS, 2002, p. 431-432).
A releitura do processo entre educação e sociedade também não pode mais ser
sustentado na mera capacitação para o trabalho, cuja produto da força do trabalho atribui ao
indivíduo a condição de consumidor. A aprendizagem contínua para toda a vida perfaz uma
107
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
educação na cidadania, partindo-se da premissa que o indivíduo é cidadão desde sempre (art.
13, da lei 9.795/99) e não apenas pelo processo da educação formal (art. 9º, da lei 9.795/99).
Desse modo, a função do processo educacional como um todo deve servir para
vocacionar as habilidades e competências dos indivíduos que se apresentam na posição
original como um [...] procedimento figurativo que permite representar os interesses de cada
um de maneira tão eqüitativa que as decisões daí decorrentes serão elas próprias equitativas.”
(RAWLS, 2000, p. 380), em relação às novas exigências sociais e um quadro ambiental de
recursos naturais escasos.
04 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A educação na sustentabilidade não é apenas um pressuposto da emancipação social,
mas também uma forma eficaz de criar um círculo virtuoso de alteridade entre as inúmeras
pautas de valores e necessidades individuais e coletivas frente aos limitados recursos do
planeta. A transição para gramáticas de práticas sociais que deixaram de lado a
antropocentrismo radical para um antropocentrimo mitigado e, até mesmo o biocentrismo, não
foi produto da violência instrumental. No entanto, por trazer consigo a possibilidade da
ausência de poder que regule legitimamente as expectativas de comportamento, a violência
não mais pode ser justificada como um arquétipo daquilo que a civilização possuiria no seu
registro biológico. E por isso, paradoxalmente, busca-se continuamente não perpetuá-la, visto
que essa violência é uma construção social enrraizada pelo processo histórico como se fosse
naturalizada pela condição humana em seu estado irracional.
Exatamente por isso as diversas formas de controle social buscam forjar no
ordenamento jurídico formas de pluralismo razoável que estabeleçam condições de
possibilidade de se reconhecer as múltiplas demandas de seus afetados por liberdade e
igualdade. Esse tipo de resposta ao fenômeno da violência instrumental tem no processo
educacional a trincheira de seu enfrentamento por meio da intervenção preventiva na
realidade social mutante.
Desse modo, ao integrar o princípio ambiental democrático juntamente com a
dimensão do direito à informação efetiva (não apenas o acesso à informação, mas a
capacitação para tomada consciente de decisões) e a dimensão da participação qualificada
pela relação sujeito-sujeito, a educação ambiental na sustentabilidade deve preencher as
108
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
expectativas
de
correção
discursiva.
Isso
desenvolve-se
mediante
procedimentos
substancializados em valores da alteridade mais complexos na esfera da intersubjetividade,
incutindo nos afetados práticas sob novos padrões sustentáveis de produção e consumo.
Assim, possibilita-se reduzir as pressões sobre o conceito evolutivo (aumento de
complexidade) da violência instrumental. Esta por representar a ausência da igual
consideração e respeito do indivíduo e sua construção permanente de identidade, não pode
mais ser justificada sobre pressupostos biológicos e facilmente localizáveis como outrora. Na
presente modernidade fluida e cada vez mais exigente de padrões cambiantes de formas de
vida boa, os indivíduos buscam a aquisição dinâmica de novas habilidades e competências.
Agora de acordo com o seu ser (Sein) no mundo que, em muitas situações, o aprendiz tem
mais a ensinar ao ensinador do que simplesmente obedecer comandos autoritários.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
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111
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A INFLUÊNCIA DA DENSIDADE POPULACIONAL NO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
THE INFLUENCE OF POPULATION DENSITY IN
SUSTAINABLE DEVELOPMENT
Isabel Nader Rodrigues1
Pavlova Perizzollo Leonardelli2
Sumário: Introdução. 1. Entendimento sobre o desenvolvimento sustentável: 1.1
Principais correntes desenvolvimentistas, as curvas de Kuznets e a população; 1.2
A questão populacional e a perspectiva de Malthus: 2. A relação entre o
desenvolvimento sustentável e a população: 2.1 A ingerência do aumento
populacional no planeta e os dados demográficos da atualidade; 2.2. Repensando
a questão populacional e a crise ambiental. Considerações Finais. Referências.
RESUMO: A relação entre recursos disponíveis e população, inicialmente pensada por
Thomas Malthus, alerta para o agravamento da crise ecológica. A necessidade crescente de
suprir a demanda por recursos, sem a finitude do planeta, leva a uma análise do
desenvolvimento sustentável. Inicialmente com o termo ecodesenvolvimento, a problemática
demográfica sempre foi uma constante para ambientalistas. Os dados sobre crescimento
populacional, seja ou não por meio de progressões geométrica ou aritmética, comprovam que
há discrepância entre o aumento populacional e a produção de recursos, principalmente
alimentos. Estatísticas do binômio recursos-população demostram certa reversibilidade, mas
com acréscimo no impacto ambiental, aumentando a necessidade de enfoque ao
desenvolvimento sustentável.
Palavras-chave: Desenvolvimento sustentável; explosão demográfica; meio ambiente.
ABSTRACT: The relationship between resources and population, initially thought by
Thomas Malthus, alert to the worsening ecological crisis. The need is growing to meet the
demand for resources, without the finitude of the planet, leading to an analysis of sustainable
development. Initially with the term ecodevelopment, the demographic problem has always
been a constant for environmentalists. Data on population growth, whether or not by means of
geometric or arithmetic progressions, show that there is discrepancy between population
growth and the production of resources, especially food. Statistics binomial populationresources demonstrate some reversible, but with an increase in environmental impact,
increasing the need to focus on sustainable development.
Keywords: Sustainable development; population explosion; environmental.
INTRODUÇÃO
1
Advogada. Mestranda em Direito Ambiental (UCS-RS), bolsista CAPES. Especialização em Direito Tributário
(UCS-RS). Graduação em Direito (UCS-RS) e em Física (UFRGS-RS).
2
Advogada. Mestranda em Direito Ambiental (UCS-RS), bolsista CAPES. Graduação em Direito (UCS-RS) e
Administração (UCS-RS).
112
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A crise ambiental vivenciada pelo homem demanda ações que objetivem a sua
contenção. Pode-se afirmar que existe um consenso no que se refere à influência da questão
populacional sobre a degradação ambiental e a consequente utilização dos recursos além da
capacidade que conseguem se regenerar. Diante disso, é possível crer que os efeitos do
incremento populacional acabam refletindo diretamente na tentativa dos países em se
desenvolver de maneira sustentável.
Desta forma, o presente artigo pretende referir as diferentes maneiras de abordagem
de um mesmo tema, qual seja, desenvolvimento sustentável, assim como demonstrar o
vínculo existente entre as temáticas do crescimento populacional e do desenvolvimento
sustentável.
Igualmente, foi efetuada uma análise da teoria engendrada por Thomas Malthus,
ilustrando a sua perspectiva em relação ao aumento da população e a consequente escassez de
recursos. Por seu turno, o texto traz projeções e dados demográficos atualizados, os quais
foram contextualizados ao tema, buscando corroborar ou infirmar principalmente as
convicções de Malthus.
Tanto os dados quanto as informações consignadas no presente estudo buscam
mostrar qual a intensidade do impacto que os aumentos do nível populacional podem causar
sobre o ambiente, bem como de que forma interferem na perspectiva de um desenvolvimento
de maneira sustentável. Igualmente, demonstram outras variáveis que atuam conjuntamente
com o aspecto populacional e ocasionam abalo ao projeto de se operar um desenvolvimento
de forma sustentável.
1 ENTENDIMENTO SOBRE O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
O meio ambiente é essencial à sadia qualidade de vida das presentes e futuras
gerações, como preceitua a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu
artigo 225. Desde os primórdios o homem se autodenomina ser racional e considera a
natureza como um instrumento que fornece seu bem estar. Por séculos esse raciocínio de
depredação vem acumulando os efeitos nocivos desse comportamento.
Com a crescente demanda populacional por recursos, o desenvolvimento sustentável
precisa de fato ser implementado, deixando de ser apenas um discurso ‘verde’ para nortear
atitudes do ser humano e as políticas públicas.
113
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
O contexto atual nos impulsiona ao desenvolvimento, entretanto a noção de
sustentabilidade precisa ser ampliada para todos os segmentos da sociedade, além da
ambiental, a econômica e a social.
1.1 PRINCIPAIS CORRENTES DESENVOLVIMENTISTAS, AS CURVAS DE KUZNETS
E A POPULAÇÃO
Atualmente vivemos numa sociedade em que o termo desenvolvimento sustentável
está cada vez mais corriqueiro e seu status acadêmico está se tornando falácia. Qualquer ramo
da economia que acrescente no final do seu nome os termos "eco" ou "sustentável" pensa
estar ambientalmente correto, tornando redundante e banal seu uso.
No entanto, a crise ambiental é acentuada pelo binômio população-recursos. Muitos
ambientalistas acreditam que a explosão demográfica é uma das principais causas da
degradação ambiental. Usufruir esses recursos tendo como norte o desenvolvimento
sustentável refletirá diretamente na qualidade de vida do ser humano. O crescimento
demográfico descontrolado é questão ineludível sob o enfoque da sustentabilidade (LEFF,
2001, p. 207).
Até 1960 a natureza era vista como fonte inesgotável de recursos. Com o início do
ambientalismo nessa época, o desafio ambiental começou a ganhar destaque. Entre vários
desafios ambientais (efeito estufa, perda da diversidade biológica, buraco na camada de
ozônio...) a ideia de progresso sempre esteve vinculada à dominação da natureza. Com o
surgimento do ambientalismo depara-se com a questão que há limites para essa dominação
(PORTO-GONÇALVEZ, 2006, p. 62).
Ainda em meados de 1960, O Clube de Roma começou a discussão sobre a demanda
por recursos não renováveis. Com seu patrocínio foi gerado o relatório “The limits to
growth”, pelo MIT3, onde assinalava o tempo de esgotamento dos recursos naturais. Assim o
ambientalismo ganhava reconhecimento científico e técnico, onde a ciência e técnica ocupam
lugar de destaque em estabelecer o modo de produção de verdades, havendo o deslocamento
da questão cultural e política para a lógica técnico-científica.
A ideia de limites é reforçada, começando-se a falar em “sociedade de risco” (Ulrich
Beck e A. Giddens), onde se destacava que o risco que a sociedade corria era derivado da
própria intervenção da sociedade humana no planeta e principalmente da intervenção técnicocientífica. Cresce a consciência que o risco global se sobrepõe ao risco local, regional e
3
Massachusetts Institute of Technology (MIT).
114
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
nacional. Risco esse que aumenta na medida em que tenta submeter o planeta e a humanidade
a uma mesma lógica, de caráter mercantil. Sabe-se que 20% dos mais ricos consomem 80%
das matérias-primas e energia produzidas anualmente, se esta diante de um modelo limite.
Entretanto, “the americam way of life” só pode existir para uma pequena parcela da
humanidade, sendo portanto injusto.
Estamos, sim, diante de uma mudança de escala na crise atual de escassez
(por poluição) do ar, de escassez (por poluição) de água, de escassez
(limites) de minerais, de escassez (limites) de energia, de perda de solos
(limites) que demandam um tempo, no mínimo, geomorfológico, para não
dizer geológico, para se formarem, [...]. O efeito estufa, o buraco na camada
de ozônio, a mudança climática global, o lixo tóxico, para não falar do lixo
nosso de cada dia, são os indícios mais fortes desses limites colocados à
escala global. (PORTO-GONÇALVEZ, 2006, p. 72)
Esses limites deverão ser buscados e construídos entre homens e mulheres por meio
de diálogos de saberes entre modalidades distintas de produção de conhecimento. A espécie
humana terá que se autolimitar, sendo esse limite também político. O desafio ambiental
continua com a busca ‘ao’ desenvolvimento e não ‘de’ desenvolvimento.
Os limites devem ser encarados dentro de seu contraponto. De um lado o limite da
ciência e da técnica e de outro os limites da economia, de caráter mercantil. O sistema técnico
é parte do desafio ambiental, através dele se busca o controle, o mais perfeito possível, na
ação, espaço e tempo por parte de quem o principia. A substituição do trabalho vivo, por
morto (máquina) é mais que mudança de técnica, é sim mudança nas relações de poder por
meio da tecnologia. O problema não está na técnica em si, mas, no seu uso. Não há como
desprender a técnica de seu uso. A técnica não é paralela, nem exógena às relações sociais e
de poder. Toda técnica, sendo um ‘meio’, está a serviço de um ‘fim’. Visando o maior
controle de seus efeitos.
No mundo real, onde tudo reage com tudo, ninguém pode afirmar peremptoriamente
que o efeito de uma determinada ação será exatamente aquele previsto no inicio da ação. “A
decisão haverá de ser, sempre, política, por mais que se convoque, e haverá sempre de se
convocar, os cientistas, e não somente eles, para ajudar a formar opinião necessária para a
tomada de decisão” (PORTO-GONÇALVEZ, 2006, p. 116).
Segundo interpretação marxista, a exploração ilimitada na natureza não é fruto das
concepções religiosas que imperaram por certo período histórico, mas sim o surgimento de
uma sociedade fundamentada na propriedade privada e na economia monetária, que acaba por
abafar o conhecimento científico (MONTIBELLER-FILHO, 2008, p. 41-42).
115
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
As relações entre economia, ambiente e sociedade precisam ser analisadas. Os
economistas modernos fundam o conceito de economia na escassez, que paradoxalmente é o
contrário de riqueza. Tanto que os bens abundantes não tem valor econômico, são naturais.
Logo, o fundamento teórico da economia mercantil moderna é a escassez e não a riqueza.
Somente quando um bem se torna escasso, como a água (pela poluição) é que a economia
passa a se interessar e incorporar sentido econômico.
O termo "desenvolvimento" possui diversas correntes, aqui serão abordadas três
linhas mestras. Uma que acredita no desenvolvimento como critério essencial para o
crescimento econômico; outra, que vê este como uma rede de ilusão e manipulação ideológica
e ainda há aqueles que acreditam no “caminho do meio” dessas duas linhas.
Em 1987, com o relatório de Brundtland4 retoma-se o conceito de desenvolvimento
sustentável, definindo-o como sendo “desenvolvimento que responde às necessidades do
presente sem comprometer as possibilidades das gerações futuras de satisfazer suas próprias
necessidades” (MONTIBELLER-FILHO, 2008, p. 56). Anterior a esse termo, usava-se a
expressão ecodesenvolvimento, introduzido por Maurice Strong, secretário-geral da
Conferência de Estocolmo (1972), que significa o desenvolvimento de um país ou região,
baseado em suas próprias potencialidades (endógeno), sem criar dependência externa, tendo
por finalidade harmonizar os objetivos sociais e econômicos do desenvolvimento com uma
gestão ecologicamente prudente dos recursos naturais (MONTIBELLER-FILHO, 2008, p.
51).
O ecodesenvolvimento abrangia cinco dimensões as quais são a ‘sustentabilidade
social’ que implica num processo que visa reduzir as diferenças sociais; a ‘sustentabilidade
econômica’ onde a gestão mais eficiente dos recursos e um fluxo regular de investimentos
público e privado; a ‘sustentabilidade ecológica’ que compreende o uso do ecossistema com o
mínimo de deterioração; a ‘sustentabilidade espacial/geográfica’, a qual pressupõe evitar a
excessiva concentração geográfica de populações, de atividades e do poder buscando a uma
relação mais equilibrada entre campo e cidade; e por fim a ‘sustentabilidade cultural’, na qual
as soluções devem respeitar as especificidades de cada ecossistema, de cada cultura e da cada
local (MONTIBELLER-FILHO, 2008, p. 53).
Haveria distinção entre o ecodesenvolvimento do desenvolvimento sustentável. Onde
o primeiro preocupa-se com as necessidades básicas da população, partindo do mais simples
ao mais complexo; o segundo sugere o papel de uma política ambiental, a responsabilidade
4
Relatório Brundtland é o documento intitulado Nosso Futuro Comum (Our Common Future), publicado em
1987.
116
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
geral com os problemas globais e com as futuras gerações. Entretanto tal distinção é
desnecessária, pois o desenvolvimento sustentável abrange as preocupações expressas pelo
ecodesenvolvimento. Segundo Montibeller-Filho (2008, p. 59)
o novo paradigma pressupõe, portanto, um conjunto de sustentabilidades;
estas podem ser sintetizadas no seguinte trinômio: eficiência econômica,
eficácia social e ambiental. O cumprimento simultâneo desses requisitos
significa atingir o desenvolvimento sustentável.
Em 1991 a Unesco publicou um relatório denominado "Environmentally Sustainable
Economic Development: Building on Brundtland" (ODUM, 2007, p. 468), o qual diferencia
crescimento econômico de desenvolvimento econômico, mencionando que o primeiro
significa crescimento quantitativo, enquanto que o segundo implica crescimento qualitativo.
Que o desenvolvimento é condição necessária para o crescimento econômico, não se
discute mais, mas que não é condição suficiente, não está bem claro ainda na maioria das
cabeças desenvolvimentistas. Sachs (2002, p. 15) já apontava no início do século XX, para a
importância da natureza e da essencialidade de encontrar harmonia entre o processo produtivo
que fosse capaz de incorporar a natureza como valor. O mesmo autor ao prefaciar a obra de
Veiga (2010, p. 10), destaca a importância de não se limitar aos aspectos sociais econômicos
unicamente quando referir-se a desenvolvimento, destacando que a evolução das sociedades
humanas e da biosfera são dois sistemas com escalas temporais e espaciais distintas, tendo
que ser consideradas fundamentalmente.
Sachs (2002, p. 15) indica oito dimensões para a sustentabilidade: social, cultural,
ecológica, ambiental, territorial, econômica, política nacional e internacional. Quanto aos
critérios ecológicos e ambientais, os objetivos da sustentabilidade formam um tripé: (1)
Preservação do potencial da natureza para a produção de recursos renováveis; (2) Limitação
do uso dos recursos não renováveis e (3) Respeito e realce para a capacidade de
autodepuração dos ecossistemas naturais (VEIGA, 2010, p. 171).
De outro lado, filiando-se a corrente do desenvolvimento como rede de ilusão,
destaca-se Arrighi (1997, p. 371). Ele parte da existência concreta de um "núcleo orgânico"
dominante, política e financeiramente; de uma "semiperiferia", que se industrializa e se
desenvolve de forma contida, em regra sem desafiar o domínio do "núcleo orgânico"; e de
uma "periferia" que necessita existir para que haja drenagem de riquezas e variedade de
alternativas para a acumulação daquele "núcleo orgânico". O núcleo orgânico é formado por
países que no último meio século, ocuparam as primeiras posições no ranking de PNBs per
capita e em função dessa posição estabeleceram os padrões de riqueza que todos os seus
117
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
governos procuram manter e que todos os outros governos procuram atingir. (América do
Norte, Europa Ocidental e Austrália) (ARRIGHI, 1997, p. 94).
O processo de acumulação desigual e a desigualdade na distribuição global da renda
demonstra que industrialização e desenvolvimento não são necessariamente a ‘mesma coisa’.
O uso do equivalente ‘industrialização/desenvolvimento’, para os países pobres, é
profundamente equivocado. Não foi comprovado estreitamento entre riqueza, poder e bem
estar nos processos de industrialização. A industrialização acentuou a diferença de renda,
principalmente do grupo de média renda
A primeira suposição questionável é que “industrialização” é o mesmo que
“desenvolvimento” e que o “núcleo orgânico” é o mesmo que “industrial”.
É interessante que essa suposição atravesse a grande linha divisória entre as
escolas da dependência e da modernização. Para ambas as escolas
“desenvolver-se” é “industrializar-se” por definição. Desnecessário dizer que
as duas escolas discordam vigorosamente a respeito de como e por que
alguns países se industrializam e outros não ou se desindustrializam, mas a
maioria dos profissionais aceita como verdadeiro que desenvolvimento e
industrialização são a mesmíssima coisa (ARRIGHI, 1997, p. 208).
As relações núcleo orgânico - periferia são determinadas pela disputa de benefícios
da divisão mundial do trabalho. A capacidade de um Estado em se apropriar dos benefícios da
divisão mundial do trabalho é determinada principalmente por sua posição numa hierarquia de
riqueza. Quanto mais alto na hierarquia, maiores as chances de obter benefícios os dirigentes
e cidadãos terão (ARRIGHI, 1997, p. 215). O foco na industrialização é uma fonte de ilusão
desenvolvimentalista.
Adepto do pensamento do desenvolvimento como caminho do meio, destaca-se
Veiga (2010, p. 82)
O crescimento econômico, tal qual o conhecemos, vem se fundando na
preservação dos privilégios das elites que satisfazem seu afã de
modernização; já o desenvolvimento se caracteriza pelo seu projeto social
subjacente. Dispor de recursos para investir está longe de ter condição
suficiente para preparar um melhor futuro para a massa da população. Mas
quando o projeto social prioriza a efetiva melhoria das condições de vida
dessa população, o crescimento se metarmofoseia em desenvolvimento.
Esse projeto social subjacente, que busca a melhora nas condições de vida da
população, é o garantidor do desenvolvimento humano. O crescimento econômico é um meio
para expandir liberdades, as quais dependem de outros determinantes, como a educação,
saúde e direitos civis.
Com a mutabilidade dos processos de produção, o crescimento econômico é possível
sem a degradação ambiental. Com a introdução de novas tecnologias atreladas ao processo de
118
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
desenvolvimento é viável pensar na conservação dos recursos que são (ou serão) escassos,
com a consequente recuperação ecológica derivada do próprio crescimento econômico.
A investigação entre as atividades econômicas e a qualidade ambiental, já foi
realizada por diversos autores, entre eles Grossman & Krueger (VEIGA, 2010, p. 114-117),
os quais coletaram dados sobre qualidade do ar e água de diversos órgãos como a OMS5, a
GEMS6 e a EPA7. Obtendo boas ‘curvas de Kuznets’ para indicadores de poluição do ar e da
água, mas não encontrando evidências significativas que a qualidade ambiental esteja
diretamente ligada ao crescimento econômico.
Figura 1. Curva de Kuznets
A curva de Kuznets serve para demonstrar a relação entre o dano ambiental, a renda
per capita de uma determinada população e sua educação. Nela, algumas medidas de
degradação ambiental aumentariam nos momentos iniciais do crescimento econômico, porém,
eventualmente, diminuiriam quando certo nível de renda e educação fosse alcançado, traçando
a trajetória temporal da poluição de um determinado país e seu desenvolvimento econômico.
Descrevendo um máximo que seria o ponto a partir do qual ocorreria a diminuição da
poluição, consequente melhoria ambiental advinda do crescimento econômico (CARVALHO,
ALMEIDA, 2010).
Seja qual for a corrente, o desenvolvimento sustentável permeia a ideia de
aproveitamento racional dos recursos ambientais disponíveis de forma a não travar o
crescimento econômico. Bem como, a questão populacional sempre esteve presente como
enfoque constante para um desenvolvimento sustentável.
1.2 A QUESTÃO POPULACIONAL E A PERSPECTIVA DE MALTHUS
5
Organização Mundial da Saúde.
Global Environmental Monitoring System.
7
Environmental Protection Agency, U.S.
6
119
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A questão populacional é um aspecto que já foi destacado desde a revolução
industrial, por Thomas Malthus e atualmente vem preocupando ambientalistas. A relação
entre habitantes do planeta e a produção de alimentos deve ser analisada com cautela.
No “Ensaio sobre a população”, Malthus demonstra seu posicionamento ideológico e
sua a visão filosófica. Esta obra foi escrita durante o curso da Revolução Industrial na
Inglaterra, a qual vinha ocasionando dramáticas consequências para o sistema produtivo e
para as relações sociais na produção. Novos inventos eram empregados, tanto na indústria
como na agricultura Naquela oportunidade, muitos trabalhadores que exerciam atividade
laborativa na agricultura migraram rumo às grandes cidades em busca de novas
oportunidades. Portanto, além do setor agrícola se mostrar incapaz de proporcionar alimentos
em abundância, a população se deparava com a emigração (MALTHUS, 1983, p. 6).
Malthus “considerava ser a pobreza o fim inevitável do homem, tendo em vista que a
população cresceria à taxa superior à da produção de meios de subsistência” (MALTHUS,
1983, p. 7). Argumentava que a natureza do homem o impelia a procriar sempre acima do que
seria recomendável para uma vida confortável para si e para sua família. Utilizando-se de
argumentos morais, acreditava que assim seria colocado um obstáculo preventivo nesse
crescimento. Malthus (1999, p. 31) concluiu que a população, se não controlada, cresceria em
progressão geométrica e que a produção de alimentos cresceria em progressão aritmética.
Alguns autores consideravam Malthus fatalista e outros pessimistas, tendo em vista
que a escassez de alimentos estaria presente no mundo, pois o descompasso entre a produção
de alimentos e o crescimento populacional seria o objeto causador da fome e morte.
A fome parece constituir o último e mais temível recurso da natureza. O
poder da população é tão superior ao poder existente na Terra para produzir
subsistência para o homem que a morte prematura deve, de uma forma ou de
outra, visitar a raça humana (MALTHUS, 1999, p. 80).
Comparativamente com os dias de hoje, essa previsão não é totalmente descabida.
Atualmente no mundo, 925 milhões de pessoas sofrem de fome crônica e a cada seis segundos
uma criança morre por causa de problemas relacionados com a desnutrição (DIOUF).
Conforme dados do FAO, no Brasil são 13 milhões de pessoas8 que sofrem de desnutrição, a
maioria crianças. Há necessidade urgente de aumentar sustentavelmente a produção agrícola
para alimentar a população mundial que continua a crescer (CONWAY).
8
Food and agriculture organization of the United Nations.
120
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Com base em sua teoria, Malthus (1999, p. 32-33) também concluiu que
inevitavelmente a fome seria uma realidade caso não houvesse um controle imediato da
natalidade.
Pode-se seguramente declarar [...] que a população, quando não controlada,
dobra a cada 25 anos, ou aumenta numa razão geométrica. [...] Mas o
alimento, para suportar o aumento de um número tão grande, de nenhum
modo será obtido com a mesma facilidade. [...] Pode-se com justeza declarar
[...] que, considerando-se na média o presente estado da terra, os meios de
subsistência, sob as condições mais favoráveis da indústria humana,
possivelmente não poderiam crescer mais rapidamente do que numa média
aritmética.
Em sua teoria mencionou aspectos que poderiam colaborar para o equilíbrio
demográfico, os quais denominou como formas de controle preventivo e positivo. Quanto ao
controle preventivo, pode-se afirmar que as convicções de Malthus acerca do controle
populacional o fizeram crer que para não reduzir seu status econômico, os homens acabavam
adiando o casamento. Também, retardavam o casamento os homens que ainda não dispunham
de um negócio próprio capaz de proporcionar o sustento a uma família. Desta forma, o
controle preventivo tinha a capacidade de se disseminar em todos os níveis da sociedade da
Inglaterra da época.
Por seu turno, o controle positivo diz respeito às leis dos pobres, as quais foram
instituídas na Inglaterra com o objetivo de prestar auxílio aos necessitados. Entretanto,
Malthus alertou que o fato de conceder dinheiro à população faria com que a produção de
alimentos permanecesse inalterada, porém haveria um considerável incremento na demanda
pelos produtos, o que ocasionaria o aumentando dos preços e por consequência as pessoas
continuariam sem poder de compra dos produtos, bem como passando necessidades. Destarte,
Malthus sugere que não é possível através do dinheiro elevar o status de um homem pobre e
permitir-lhe melhores condições de vida sem deprimir proporcionalmente outros da mesma
classe (MALTHUS, 1999, p. 54).
Cumpre referir que outras variáveis como as doenças e as guerras também foram
abordadas na sua obra e eram consideradas por Malthus como formas de controle da
demografia.
A teoria de Malthus não se concretizou (ainda) tanto no que concerne ao crescimento
da população, quanto à produção de alimentos, pois quanto à produção de alimentos:
ocorreram avanços tecnológicos na agricultura, como descoberta de adubos químicos e grãos
híbridos, além de técnicas mais refinadas de cultivo e tratamento do solo, o que permitiu
notável aumento da produtividade agrícola com consequente aumento do dano ambiental
121
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
decorrente destes produtos; quanto à população, a utilização de métodos contraceptivos, já
consagrados em torno de 1900, fez com que a população crescesse bem menos do que
Malthus previa.
Igualmente, no que diz respeito à densidade populacional, pode-se afirmar que a
utilização de métodos contraceptivos fizeram com que a população apresentasse um
crescimento consideravelmente menor do que as previsões de Malthus supunham. Aliado aos
contraceptivos, o papel da mulher também se diferenciou, tomando essa posição de maior
destaque tanto na sociedade quanto na relação conjugal. Também, há que se ressaltar que de
forma geral houve um incremento do status econômico da população, tendo em vista a
possibilidade do planejamento familiar e do ingresso da mulher no mercado de trabalho.
Analisando uma projeção de crescimento da população Brasileira feita em 2010
(UNITED NATIONS, 2010) pelo WPP9 e a prevista pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), tem-se comparativamente, o Brasil com uma população de 193.946.886 de
habitantes, ou seja está dentro da média projetada pelo World Population Prospects (curva em
vermelho, abaixo). Os dados foram calculados para o dia 1º de julho de 2012. A estimativa foi
feita com base na que foi elaborada em 2011 e também no Censo Demográfico de 2010.
Como os dados do Censo 2010 ainda não foram totalmente trabalhados, não foi possível
atualizar o Sistema de Projeções da População do Brasil, que atualmente tem dados de 2008.
Figura 2. Estimativa de crescimento da população no Brasil
9
WPP significa World Population Prospects.
122
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Esse gráfico demostra a estimativa e a projeção da população total de 197 países e
áreas com uma população de 100.000 habitantes ou mais em 2010, com análise específica
para o país selecionado, no caso, o Brasil. A estimativa é baseada em projeções de fertilidade
probabilísticas da revisão de 2010 do World Population Prospects. Tais projeções foram
realizados com um modelo Bayiesian Hierarchical10. Os números exibem uma variante de
alta, média e baixa de 2010, da Revision of the World Population Prospects. Pode haver uma
pequena diferença entre a mediana dessas projeções populacionais experimentais
probabilísticas e a variante média da Revisão 2010 oficial das Perspectivas da População
Mundial. Isto é devido ao fato da projeção de população exibida ter sido realizada com uma
sub-amostra aleatória de 5.000 trajetórias de fertilidade probabilística das originais 100.000
trajetórias de fertilidade total, utilizadas na revisão de 2010.
Se a projeção mediana se confirmar, o Brasil terá um crescimento populacional até
2040, quando se experimentará um declínio nessa taxa de crescimento, contrariando a
previsão catastrófica de Malthus.
Contudo, a população ainda cresce e a necessidade de produção de alimentos cresce
com ela, em taxas diferentes; para produção de alimentos, os aspectos tecnológicos deveriam
considerar a necessidade da sustentabilidade ambiental e o planejamento familiar deve ser
encarado como uma ferramenta para o controle populacional desenfreado, fazendo parte das
políticas públicas de desenvolvimento.
2 A RELAÇÃO
POPULAÇÃO
ENTRE
O
DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL
E
A
Diante das colocações já expostas, é possível concluir que a questão populacional
interfere de forma significativa no equilíbrio do meio ambiente, da mesma forma que os
impactos da demanda do incremento populacional sobre os recursos podem ser fatais para a
manutenção da vida no planeta.
Por seu turno, a atualidade é o momento oportuno para que sejam discutidos e
avaliados os aspectos que conduzem à degradação ambiental e restam restringindo a
perspectiva de desenvolver-se de forma sustentável. Nessa oportunidade, a concentração do
estudo dar-se-á sobre os fatores populacionais.
10
Método matemático de tratamento de dados.
123
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
2.1 A INGERÊNCIA DO AUMENTO POPULACIONAL NO PLANETA E OS DADOS
DEMOGRÁFICOS DA ATUALIDADE
A preocupação com o crescimento da população e a manutenção do meio ambiente
ecologicamente equilibrado teve início na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente Humano, realizada em 1972. Naquela oportunidade foi redigida a Declaração de
Estocolmo, a qual proclamou em seu item 5: “O crescimento natural da população coloca
continuamente, problemas relativos à preservação do meio ambiente, e devem-se adotar as
normas e medidas apropriadas para enfrentar esses problemas” (BRASIL, Ministério do Meio
Ambiente).
Acompanhando as considerações consignadas pela Declaração de Estocolmo quanto
à importância da população em relação ao ambiente, em 1987 foi divulgado o Relatório Nosso
Futuro Comum, também denominado Relatório Brundtland, elaborado pela Comissão
Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. A partir das reflexões contidas no
mencionado relatório, é possível afirmar que o impacto da atividade humana sobre o planeta
denota uma das maiores preocupações com a manutenção do ambiente e com a possibilidade
da efetivação de um desenvolvimento que ocorra de forma sustentável.
No que concerne à influência dos aspectos populacionais em relação ao ambiente, o
relatório conclui que, com o passar dos anos, a quantidade de seres humanos aumenta, porém
a quantidade de recursos naturais destinados ao sustento dessa população permanece finita.
Também demonstra que o desenvolvimento pode restar comprometido em virtude do aumento
populacional. Entretanto, deixa claro que é inegável a expansão dos conhecimentos, o que faz
aumentar a produtividade dos recursos.
Efetivamente, as tendências demográficas indicam um aumento populacional
mundial. Os processos econômicos e tecnológicos contribuíram para a crise ambiental que já
está instalada.
Para Leff (2001, p. 299), existe uma necessidade de reverter essas tendências e
desenvolver uma racionalidade produtiva com os pilares em novos princípios:
Isso implica passar a um planejamento prospectivo de modelos alternativos
de desenvolvimento sustentável, fundados num ordenamento ecológico das
atividades produtivas e dos assentamentos humanos; o que levaria a
redistribuir a população no território segundo outros critérios que os que se
deduzem das forças do mercado e da produtividade tecnológica.
Esse novo ordenamento ecológico do território levaria em conta o limite físico de
suporte de recursos naturais daquela região para a correspondente população que lá se
124
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
encontra, bem como articulação entre políticas populacionais, econômicas e tecnológicas para
desenvolvimento daquele ambiente, de forma sustentável.
A localização geográfica dos habitantes do planeta também geram abalos em
diferentes intensidades ao ambiente. Nesse sentido, é possível verificar que a degradação
ambiental e a pobreza também estão presentes em áreas de pouca densidade populacional,
bem como um indivíduo de um país de Primeiro Mundo consome muito mais e exerce maior
pressão sobre os recursos naturais do que um habitante do Terceiro Mundo.
Em virtude disso, infere-se do mencionado relatório a necessidade de se implementar
políticas públicas com vistas a alcançar saneamento básico e alimentação aos habitantes das
regiões pobres, bem como efetuar melhorias na educação e oferecer informações e condições
para que as pessoas possam utilizar os recursos naturais de forma a não causar o seu
esgotamento.
Igualmente, conclui-se que para se concretizar a preservação dos recursos, os
padrões e as preferências de consumo devem ser considerados tão importantes quanto o
número de consumidores (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E
DESENVOLVIMENTO, 1991, p. 103).
A partir disso lobriga-se que o aumento populacional associado à escassez de
recursos vem cedendo lugar aos impactos que os hábitos de consumo da população geram ao
meio ambiente, ameaçando, dessa forma, a vida no planeta.
O ordenamento jurídico brasileiro prevê o planejamento familiar no artigo 226, § 7º
da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Tal artigo foi regulamentado pela
Lei nº 9.263 de 12 de janeiro de 1996, a qual normatiza no parágrafo único do artigo 2º que é
proibida a utilização de ações relativas ao planejamento familiar para qualquer tipo de
controle demográfico. Nesse sentido, a legislação não propõe o planejamento familiar como
uma obrigação, mas sim como um direito dos cidadãos, pretendendo integrar serviços de
assistência médica, condições e recursos informativos e educacionais que assegurem o livre
exercício do planejamento familiar.
Nesse contexto, não se podem olvidar os dados apresentados pelo Relatório Planeta
Vivo 2012 – A Caminho da Rio + 20 (2012, p. 15), o qual demonstra que nas últimas duas
décadas o impacto humano sobre o planeta continuou a crescer, ocasionando a destruição da
natureza e dos recursos naturais indispensáveis à sobrevivência. Consoante o referido
relatório, o impacto humano sobre o planeta possui três componentes: os números da
população, a parcela de consumo de cada indivíduo e a tecnologia empregada na produção de
bens e serviços.
125
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Por consequência, a Pegada Ecológica11 revela que atualmente se vive uma
sobrecarga ecológica, pois segundo dados da WWF o planeta Terra necessita de 1,5 ano para
regenerar por completo os recursos renováveis que estão sendo consumidos pelos seres
humanos em um ano. Ainda, estima que frente à ampliação da pegada humana sobre a Terra e
a consequente redução dos recursos naturais, a humanidade irá necessitar de 2,9 planetas até o
ano de 2050 (RELATÓRIO PLANETA VIVO, 2012, p. 14).
Depreende-se do mencionado relatório que ao longo do século XX a expansão da
pegada humana sobre o planeta é explicada principalmente pelo crescimento da população
mundial, que quadruplicou durante o século. Mas, conforme dados do Programa das Nações
Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA, 2011), a situação vem se modificando; desde o ano
de 1992, a população mundial cresceu 26% atingindo a marca de 7 bilhões de habitantes no
final de 2011. Ademais, o tamanho das famílias está decrescendo, sendo registrada uma média
de 2,5 filhos por mulher, o que significa a redução da taxa de crescimento de 1,65% para
1,2% ao ano (PNUMA, 2011) (RELATÓRIO PLANETA VIVO, 2012, p. 15).
Contrariando as projeções de Thomas Malthus no que se refere ao
descompasso entre a produção de alimentos e o crescimento populacional, a WWF fornece
dados que revelam o aumento na produção de alimentos na ordem de 45% nos últimos 20
anos, em contraste com o crescimento demográfico de 26% (PNUMA, 2011). Em grande
parte esse resultado foi alcançado devido à intensificação da produção agrícola, e não pela
tomada de mais terras da natureza, e um dos resultados foi a sobrevivência de muitos
ecossistemas ameaçados (PNUMA, 2011). No entanto, foi considerável o impacto ecológico
dessa intensificação, pelo uso de grandes quantidades de agrotóxicos na agricultura e também
pelo consumo exagerado de carne (RELATÓRIO PLANETA VIVO, 2012, p. 21).
Diante das informações referidas acerca dos impactos do homem sobre o ambiente,
pode-se afirmar que o decréscimo nos níveis de crescimento da população somado ao
consumo consciente e às melhorias na eficiência dos recursos, bem como no uso eficiente da
terra podem colaborar com a melhoria no cenário catastrófico que atualmente se projeta.
2.2 REPENSANDO A QUESTÃO POPULACIONAL E A CRISE AMBIENTAL
Frente aos dados apresentados pela WWF, é evidente a necessidade da
implementação de mudanças para que se almeje um desenvolvimento sustentável. A
11
A Pegada Ecológica acompanha as demandas da humanidade sobre a biosfera por meio da comparação dos
recursos naturais renováveis que as pessoas estão consumindo considerando a capacidade regenerativa da
Terra.
126
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
ingerência da demografia sobre o ambiente é nítida, porém outros fatores conduzem à
degradação ambiental. Nesse sentido, Leff (2001, p. 298-299) menciona que o incremento da
população agrava o problema, mas não o gera e ressalta que
Os efeitos da dinâmica demográfica sobre o ambiente dependem de
intervenções econômicas, tecnológicas e culturais, através das quais o
crescimento populacional induz uma superexploração da natureza, o
superconsumo de recursos limitados e os processos de degradação do
ambiente.
É manifesto que houve um incremento na produção de alimentos para que se pudesse
atender à demanda humana. Também já foi possível perceber que as formas de utilização do
solo e a produção agrícola consistem em um dos fatores que influenciam diretamente no
desenvolvimento sustentável. Leff (2001, p. 302) alerta que juntamente ao aumento na
produção de alimentos, aumentaram os níveis de degradação ambiental: processos de
desflorestamento, erosão e salinização provocados pelos padrões de uso do solo e pela
produção agrícola, conduzem a perda de fertilidade da terra, seguidos de custos ecológicos e
sociais. Tais mudanças geram processos migratórios, afetando a dinâmica populacional,
inclusive taxas de natalidade e mortalidade, pois degradam as bases de sustentabilidade do
planeta e a qualidade de vida de uma população crescente.
Da mesma forma, é crível afirmar que os padrões de consumo que se estabeleceram
principalmente nos países mais ricos abalam a perspectiva de desenvolvimento sustentável. O
consumo exagerado de recursos ocasiona uma demanda superior à capacidade da terra de se
regenerar. Novos hábitos de consumo foram sendo criados e juntamente com eles se criaram
novas necessidades. Todavia, Singer (2002, p. 34) menciona que os prazeres que uma vida
mais simples valoriza não provêm do consumo exagerado.
Leff (2001, p. 301) refere que a explosão demográfica é uma questão inescapável à
perspectiva da sustentabilidade. Porém, a eliminação da pobreza, o bem-estar básico e a
melhoria da qualidade de vida da população, além da preservação da base de recursos e dos
equilíbrios ecológicos do planeta, não poderão depender tão-somente da eficácia de políticas
demográficas.
Ademais, é fundamental a substituição da visão reducionista que considera apenas o
binômio dinâmica populacional e recursos o entrave para o desenvolvimento sustentável. Para
que se possam estabelecer metas que possibilitem o desenvolvimento de maneira sustentável,
Leff (2010, p. 62) pondera que deve haver uma análise integrada dos processos históricos,
econômicos, sociais e políticos, os quais vem gerando a crise ambiental, bem como dos
127
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
processos ecológicos, tecnológicos e culturais que poderiam permitir um aproveitamento
produtivo e sustentável dos recursos.
No que se refere ao fator demografia, o Relatório Brundtland (COMISSÃO
MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991, p. 47) resume:
“Para que haja um desenvolvimento sustentável, é preciso que todos tenham atendidas as suas
necessidades básicas e lhes sejam proporcionadas oportunidades de concretizar suas
aspirações a uma vida melhor”.
Diante das afirmações referidas, torna-se claro que o desenvolvimento sustentável
não depende tão-somente do equilíbrio demográfico, mas sim depende de um trabalho
conjunto e integrado de políticas sociais, econômicas, culturais, populacionais e de saúde.
Somente com a atuação comprometida da sociedade e do Estado é que se pode almejar o
desenvolvimento de maneira sustentável.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O binômio recursos-população é fator determinante para o desenvolvimento
sustentável, entretanto não é suficiente. Para que se opere o desenvolvimento sustentável,
deve haver uma ponderação na utilização dos recursos naturais, seja para suprir as
necessidades da população ou para garantir as das futuras gerações.
O foco demográfico já era uma tônica no ecodesenvolvimento, sendo que uma das
suas cinco dimensões abordava a ‘sustentabilidade espacial/geográfica’. Nela propunha-se
evitar a excessiva concentração geográfica de populações, de atividades e do poder buscando
a uma relação mais equilibrada entre campo e cidade.
Thomas Malthus descreveu o descompasso entre a produção de alimentos e o
crescimento populacional. Para ele, esse seria o objeto causador da fome e morte. A
população cresceria à taxa superior à da produção de meios de subsistência. Ela, se não
controlada, cresceria em progressão geométrica e que a produção de alimentos cresceria em
progressão aritmética.
O aumento populacional associado à escassez de recursos vem cedendo lugar aos
impactos que os hábitos de consumo da população geram ao meio ambiente, ameaçando,
dessa forma, a vida no planeta.
Segundo as colocações referidas no texto, essa tendência poderia ser revertida,
desenvolvendo uma racionalidade produtiva com os pilares em novos princípios. Em modelos
alternativos de desenvolvimento sustentável, considerando a produção e a população
128
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
redistribuída no território. Esse novo ordenamento ecológico do território levaria em conta o
limite físico de suporte de recursos naturais daquela região para a correspondente população
que lá se encontra, bem como articulação entre políticas populacionais, econômicas e
tecnológicas para desenvolvimento daquele ambiente, de forma sustentável.
O aumento da população em taxa superior à produção de alimentos agrava a crise
ambiental, mas não gera por si só. A degradação ambiental é acentuada pela utilização
incorreta do solo e a pela produção agrícola desenfreada.
O desenvolvimento sustentável sofre influência direta dos fatores demográficos,
desde a produção até as consequências desta. Contudo, como visto, não unicamente.
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em: 11 mar. 2013.
______. Disponível em: <http://esa.un.org/unpd/wpp/P-WPP/htm/PWPP_TotalPopulation.htm>. Acesso em: 28 ago. 2012.
______. Disponível em: <http://esa.un.org/unpd/wpp/country-profiles/countryprofiles_1.htm>. Acesso em: 28 ago. 2012.
WORLD WIDE FUND FOR NATURE. Relatório Planeta Vivo 2012 – A Caminho da
Rio+20. Disponível em:
<http://d3nehc6yl9qzo4.cloudfront.net/downloads/relatorio_planeta_vivo_sumario_rio20_fina
l.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2012.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A PRECEDENCIA DOS DIREITOS HUMANOS SOBRE DIREITOS
PATRIMONIAIS DO ESTADO QUANDO DO ESTUDO DAS
TERRAS DEVOLUTAS
THE PRECEDENCE HUMAN RIGHTS ON STATE PROPERTY RIGHTS WHEN
STUDYING THE VACANT LANDS
Cristiano Tolentino Pires1
RESUMO: O presente artigo busca, prioritariamente, colocar em discussão os fundamentos
que justificam a adoção do regime jurídico dos bens públicos pela legislação brasileira, que
por sua vez pauta-se em um Estado de direito que é democrático, participativo, plural e
multiético, cuja existência se justifica apenas se alicerçada na garantia de direitos individuais
que consigam ser efetivados e não apenas dispostos na legislação. Pelo que está tratado no
texto, constata-se que a aplicação cega das prerrogativas existentes a favor da proteção dos
bens públicos, no caso específico das terras devolutas, somente vem a defender o interesse
público secundário – do Estado enquanto pessoa jurídica – deixando à margem a própria
razão de ser estatal que é a proteção do interesse público primário, legítimo enquanto interesse
de todos e cada um individualmente considerado. Bens públicos merecem proteção a partir do
momento que efetivamente cumprem sua função social.
PALAVRAS-CHAVES: Regime jurídico; Bens públicos; Proteção patrimonial; Efetivação
de direitos.
RESUMEN: This article aims primarily to put in discussion the grounds justifying the
adoption of the law on public property by Brazilian legislation, which in turn is guided into a
rule of law that is democratic, participatory, plural and multiético, whose existence is justified
Advogado. Mestrando e Pesquisador do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas – NUJUP – do Programa de PósGraduação stricto sensu em Direito da PUC Minas. As ideias aqui traduzidas são reflexos das discussões do
referido núcleo de pesquisa e embasam a dissertação de mestrado do autor, sob orientação da Professora Dra.
Marinella Machado Araújo.
1
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only if rooted in the guarantee of individual rights who can be hired and willing not only in
legislation. From what is treated in the text, it appears that the blind application of existing
prerogatives in favor of protection of public goods, in the specific case of vacant land, only
comes to defend the public interest side - of the State as a legal person - leaving aside the very
reason for which state is the primary protection of the public interest, while legitimate
interests of each and every one individually considered. Public property deserve protection
from the moment that effectively fulfill their social function.
KEYWORDS: Legal regime; Public property; Asset protection; Effective rights.
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1 INTRODUÇÃO
Não é difícil constatar que a aplicação do direito no cotidiano não leva em
consideração, na maioria das vezes, as bases teóricas que fundamentaram a própria criação
legal. Há um grande abismo entre o direito conceitualmente considerado e aquele aplicado na
prática, apesar do direito ser derivado de fatos sociais, o que demonstra que essa dissociação é
algo que, além de estranho, mostra-se inaceitável.
Não raras vezes, quando lecionadas aulas de Direito Administrativo nas faculdades
de direito, o aluno que tem o seu primeiro contato com o estudo dos bens públicos se depara
com uma teoria consolidada atinente à forma como esses bens merecem proteção especial
pela legislação por se configurarem como bens da coletividade.
Esquecem, entretanto, de demonstrar quais são as bases que legitimam esta
concepção, ou seja, há uma confusão entre as concepções de interesse público primário e
secundário, quem sabe proposital, de modo que o entendimento disseminado é aquele que faz
crer que os bens públicos são protegidos porque são bens de todos e para todos.
Entretanto, há bens públicos que servem exclusivamente ao interesse público
secundário do Estado, interesse patrimonial, e por tal razão merecem uma melhor atenção
quanto ao regime jurídico que sobre eles calha.
Como bens patrimoniais, apresentam-se no presente estudo as terras devolutas que,
por sua própria constituição, demonstram que são inutilizados e poderiam ser mais bem
aproveitadas por particulares caso o regime jurídico não lhes fosse tão incontestavelmente
aplicado.
Desta forma, com o objetivo já explicitado de suscitar discussões e aprofundamentos
sobre o tema, o artigo que abaixo se apresenta busca fazer um estudo detalhado sobre as terras
devolutas e, posteriormente, sobre o regime jurídico a elas aplicável, contrapondo a vertente
patrimonial da titularidade dos bens públicos às bases sobre as quais se solidifica o regime
jurídico aplicável à propriedade pública em geral.
Apesar de as terras devolutas serem ocupadas por terceiros, que delas fazem uso e
tiram o seu sustento, não podem adquirir-lhe a propriedade por expressa vedação
constitucional de usucapião de bens públicos. Desta feita, há um paradoxo entre a manutenção
das terras devolutas como bens públicos numa concepção patrimonialista – propriedade,
valor, especulação – e o real sentido da imprescritibilidade que deveria sustentar-se em um
interesse público primário. Nesta perspectiva, é o uso que legitima a função social da
propriedade, especialmente aplicada aos bens públicos.
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Em grande parte dos países da América Latina, o tema é tratado praticamente da
mesma forma como no Brasil, primando sempre pela proteção do patrimônio público contra
eventuais direitos que particulares venham a reclamar sobre eles. Desta forma, constata-se que
a lógica do Estado de Direito plural, visando o interesse da coletividade, vê-se mitigada pela
vedação de melhor uso do bem público pelo particular a fim de nele constituir seus direitos de
moradia e garantia do sustento.
O Código Civil colombiano traz disposição expressa sobre a imprescritibilidade dos
bens de uso público (artigo 2519), caracterizando anteriormente no artigo 675 como de
propriedade da União as terras inseridas em seus limites territoriais e que carecem de outro
dono.
A legislação civil paraguaia, de igual forma, classifica os bens de domínio público do
Estado como inalienáveis, imprescritíveis e impenhoráveis (artigo 1898 do Código Civil),
disposição esta complementada pelo artigo 1904 do mesmo diploma legal que reafirma a
impossibilidade de prescrição dos bens do Estado e Município. De igual modo, a Constituição
Política do Peru dispõe no artigo 73 que os bens de domínio público são inalienáveis e
imprescritíveis, sendo que quanto aos bens de uso público podem ser concedidos a
particulares para seu aproveitamento econômico, nos termos da Lei 29.618 que por sua vez
reafirma a imprescritibilidade dos bens imóveis de domínio estatal.
Note-se, noutro lado, que o Código Civil da Argentina – artigo 3951 – submete à
usucapião os bens que o Estado detém na qualidade de particular (como os são as terras
devolutas no Brasil), o que também está previsto no artigo 2497 do Código Civil chileno e no
artigo 1194 do Código Civil uruguaio, demonstrando uma enorme evolução legal quanto ao
tratamento dado aos bens públicos pelos demais países latino americanos acima citados.
Importante ressaltar que as considerações aqui constantes são parte do estudo a que
se propôs o autor da possibilidade das terras devolutas serem usucapidas, eixo central da
dissertação de mestrado a ser defendida oportunamente.
2 EVOLUÇÕES SOBRE A PROPRIEDADE ESTATAL EXERCIDA SOBRE AS
TERRAS DEVOLUTAS
As terras devolutas tinham o sentido de terras devolvidas, uma vez que eram assim
designadas as glebas dadas em sesmarias e que, sem cultivo ou moradia habitual, retornavam
para a Coroa Portuguesa. Há, todavia, que se fazer uma crítica a essa definição, como bem o
faz Pereira (2003, p.42), no sentido de que as terras existentes ao tempo do Brasil Colônia não
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se resumiam apenas àquelas devolvidas pelos donatários, mas também aquelas outras que não
foram repartidas em capitanias, dada a própria extensão do território.
Desta feita, não é difícil constatar que a situação hoje vivenciada da existência de
grandes extensões de terras devolutas no Brasil remonta a uma consequência do próprio
processo de colonização sofrido. A transplantação por Portugal do instituto de sesmaria
mostrou-se como única forma de povoamento do Brasil, dada a imensa gleba descoberta. A
ordem de conceder sesmarias foi dada por D. João por Carta Régia de 1530, na qual havia a
previsão de utilização das terras em dois anos pelos sesmeiros; caso contrário, seriam dadas a
outras pessoas que delas pudessem aproveitar. Já em 1532 o território foi dividido em
Capitanias, doadas pelo rei, nas quais também houve instituição de sesmarias com pagamento
do dízimo à Ordem de Cristo2.
Constatado posteriormente o insucesso das Capitanias, passou-se ao recebimento, por
sesmarias, de enormes tratos de terras, ou seja, ao invés de concessão de capitanias, que foram
extintas, o governador geral e homens de destaque concediam sesmarias como se capitanias
fossem. Com isso, aos poucos, apossar-se das áreas livres passou a ser prática, revestindo as
sesmarias em “aspecto de uma verdadeira doação de domínios régios, a que só a generosidade
dos doadores serve de regra” (LIMA, 1990, p.41).
A posterior tentativa de instituição de foros sobre as sesmarias concedidas não foi
bem recebida no Brasil e a partir daí foram concedidas com o atributo apenas da posse
atrelada ao encargo de cultivo, posto que o domínio sobre as terras fosse público.
Com a transcrição do § II do Alvará de 05 de outubro de 1795, Lima esclarece as
consequências advindas do regime de colonização adotado:
1º - Nossa população he quase nada, em comparação da immensidade de terreno que
occupamos ha trez séculos.
2º - As terras estão quase todas repartidas, e poucas ha a destribuir, que não estejão
sugeitas a invasões dos índios.
3º - Os abarcadores possúem até 20 legoas de terreno, e raras vezes consentem a
alguma familia estabelecer-se em alguma parte de suas terras, e mesmo quando
consentem, he sempre temporariamente e nunca por ajuste, que deixe ficar a família
por alguns annos.
4º - Há muitas familias pobres, vagando de lugar em lugar, segundo o favor e
caprixo dos proprietarios das terras, e sempre faltas de meios de obeter algum
terreno em que fação um estabelecimento permanente.
5º - Nossa agricultura está em o maior atrazo, e desalento, a que ella pode reduzir-se
entre qualquer povo agricula, ainda o menos avançado em civilização. (LIMA, 1990,
p.46)
2
Lima afirma que “as terras do Brasil estavam sob a jurisdição eclesiástica da Ordem de Cristo, e que lhe eram
tributárias, sujeitas como lhe ficavam ao pagamento do dízimo, para propagação da fé” (LIMA, 1990, p.35)
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Com o fim das sesmarias em 18223, sistema este que serviu para constatar que a
forma adotada de povoamento do território brasileiro impingiu com consequências nefastas a
evolução social do povo4, a posse passou a operar-se livremente, através da ocupação, posse
esta que deveria agregar-se à cultura do terreno para que fosse respeitada e pudesse
transmudar-se em domínio, embora posição em contrário, como aquela noticiada por Lima
(1990, p.53) através do acórdão de 22 de maio de 1907 do Supremo Tribunal Federal, relatado
por Epitácio Pessoa, segundo o qual os posseiros não eram proprietários, mas o laço que os
prendiam às terras era tão somente a posse.
Mesmo durante essa fase, grande parte da população continuou sem acesso às terras,
pois eram na maioria escravos, que sequer de sua própria liberdade dispunham. Isso levava à
posse em grandes glebas por poucos posseiros, mantendo-se o latifúndio.5
Pereira comenta a falta de acesso às terras na época, justificando-a pela manutenção
da ordem econômica colonial:
O próprio sistema econômico, assentado no trinômio monocultura-latifúndioexportação, o mesmo do período colonial, produzia continuamente um contingente
de homens disponíveis que não se transformavam nem em trabalhadores livres, nem
em proprietários, excluindo-os do acesso à terra por não disporem das condições
para sua exploração. (PEREIRA, 2003, p.26)
A intenção proposital da época era manter esse contingente de trabalhadores sem
acesso a terra, para que se pudesse ter mão de obra disponível e barata. Para tanto, as terras
ainda não apossadas seriam transferidas para o Estado que, por sua vez, as venderiam a
elevados preços, mantendo a política de restrição de acesso.
Foi quando, em 18 de setembro de 1850, D. Pedro II promulgou a Lei n.º 601,
chamada de Estatuto das Terras Devolutas, que ainda serve de parâmetro para regulamentar
3
4
5
“Extinto o regime de sesmarias pela roslução de 17 de julho de 1822, ficou o País sem um instituto legal que
disciplinasse a propriedade imobiliária. Foi o período da incerteza dominial, fazendo com que o homem,
sempre preso à terra, lançasse mão de único meio de detê-la, ou seja, apossando-se dela. Configurou-se a fase
áurea do posseiro, quando a posse ou a ocupação se firmou como modo originário da aquisição do domínio de
imóveis rurais.” (PEREIRA, 1992, p.2001)
A este respeito, Almeida (2003, p.311) discorre sobre a importância histórica da implantação do sistema de
sesmarias como forma de colonização do Brasil, gerando consequências graves até hoje facilmente
constatadas. Segundo o autor, a sesmaria brasileira “trouxe sequelas insanáveis ao regime agrário pátrio, por
ter dado início à formação dos grandes latifúndios em nosso país, que ainda hoje perduram nas cinco regiões
brasileiras, diferentemente do que ocorreu em Portugal, de dimensão territorial reduzida, onde o sistema
provocou o nascedouro da pequena propriedade agrícola bem mais eficiente e justa social e economicamente
do que a grande propriedade brasileira, na maioria das vezes improdutiva”. (ALMEIDA, 2003, p.311).
Vale citar novamente trecho de Almeida que esclarece a situação vivenciada à época, para quem “a
implantação do sistema sesmarialista no Brasil foi calcado em critérios pessoais e econômicos. Apenas as
pessoas privilegiadas político-economicamente foram beneficiadas. O grande contingente rural-trabalhador
ficou desamparado e não teve outra alternativa senão trabalhar em regime de servidão ou de quase-escravidão
para os sesmeiros”. (ALMEIDA, 2003, p.311)
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
situações atuais. Referida lei adotou o critério da morada habitual e da cultura efetiva para
legitimar o domínio. Atendidos ambos, mesmo sem título anterior, sua posse seria legitimada.
A partir da Lei n. 601, a aquisição das terras somente se concretizaria por compra,
rompendo-se em definitivo com o sistema de sesmarias e capitanias. Ainda assim, não
significou o fim dos problemas de terras no Brasil, especialmente se considerada a
desvalorização das terras devolutas e o desinteresse em explorá-las como sendo os
responsáveis pela manutenção da problemática da propriedade territorial pública.
Referida Lei de 1850 foi a primeira a apresentar a definição de terras devolutas,
adotando para tanto o critério de exclusão para apresentar tal conceituação. Nos termos do
artigo 3º:
Art. 3º: São terras devolutas:
§1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional, provincial ou
municipal.
§2º As que não se acharem no dominio particular, por qualquer titulo legítimo, nem
forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial,
não incursas em commisso por falta de cumprimento das condições de medição,
confirmação e cultura.
§3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo
que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta lei.
§4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se fundarem
em título geral, forem legitimadas por essa lei. (BRASIL, 1850)
Regulando as situações passadas e com efeitos prospectivos, citada lei legitimou a
posse daqueles que já estavam estabelecidos nas terras, desde que atendidos os requisitos
dispostos por ela. Entre tais, destaca-se a obrigação dos possuidores em proceder a medição
dos terrenos nos prazos estabelecidos, sob pena de caírem em comisso6, perdendo assim o
direito à terra em favor da Coroa.
Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 9.760, de 05 de setembro de 1946, ao tratar dos
bens da União, descreveu no artigo 50 o que seriam as terras devolutas. Manteve o
Decreto, já no tempo da República, a mesma estrutura da Lei de Terras, inclusive
condicionando a posse ao efetivo aproveitamento da terra. Inovou, porém, ao eliminar do
conceito as terras já tidas como públicas, ou seja, “terras próprias” já delimitadas.
6
Guerra apresenta uma definição simples, porém esclarecedora, da expressão comisso como sendo as terras
“revertidas por descumprimento das obrigações impostas, integrando posteriormente o patrimônio imobiliário
do Estado brasileiro independente”. (GUERRA, 2003, p.06). O Decreto Estadual 34.801/93, no §2.º do artigo
2.º define a expressão nos seguintes termos: “§2.º - Considera-se comisso a falta de cumprimento das
condições de medição, cultura e confirmação de terra dada em sesmaria.”. (MINAS GERAIS, 1993)
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Art. 50 – São devolutas, na faixa de fronteira, nos Territórios Federais e no Distrito
Federal, as terras que, não sendo próprias nem aplicadas a algum uso público
federal, estadual territorial ou municipal, não se incorporaram ao domínio privado:
a) por força da Lei n. 601 de 18 de Setembro de 1850, Decreto n. 13.218, de 30 de
Janeiro de 1854, e outras leis, decretos gerais, federais e estaduais;
b) em virtude de alienação, concessão ou reconhecimento por parte da União ou dos
Estados;
c) em virtude de lei ou concessão emanada de governo estrangeiro e ratificada ou
reconhecida, expressa ou implicitamente, pelo Brasil, em tratado ou convenção
de limites;
d) em virtude de sentença judicial com força de coisa julgada;
e) por se acharem em posse contínua e incontestada com justo título e boa-fé, por
termo superior a 20 (vinte) anos;
f) por se acharem em posse pacífica e ininterrupta, por 30 (trinta) anos,
independentemente de justo título e boa-fé;
g) por força de sentença declaratória proferida nos termos do art. 148 da
Constituição Federal de 10 de Novembro de 1937.
Parágrafo Único: A posse a que a União condiciona a sua liberalidade não pode
constituir latifúndio e depende do efetivo aproveitamento e morada do possuidor ou
do seu preposto, integralmente satisfeitas por estes, no caso de posse de terras
situadas na faixa de fronteiras, as condições especiais impostas na lei. (BRASIL,
1946)
Mais tarde, os Estados passaram a disciplinar as matérias atinentes às terras
devolutas, como o fez Minas Gerais, na Lei n. 550, de 20 de dezembro de 1949, já que a
Constituição de 1891 deu a estes entes federados a titularidade de referidas terras, com
algumas exceções pautadas na defesa e desenvolvimento econômico e nacional 7.
Na Constituição Federal de 1988 restam estabelecidos no artigo 20, inciso II que as
terras pertencentes à União são aquelas ligadas à defesa nacional, preservação ambiental e
vias de comunicação federais8 e no artigo 26, inciso IV aquelas pertencentes aos Estados em
caráter residual, quando dispõe que são bens dos Estados “IV – as terras devolutas não
compreendidas entre as da União” (BRASIL, 1988). Não previu a Constituição Federal os
Municípios como titulares de terras devolutas. Entretanto, tal situação pode se configurar
quando os Estados, então titulares, transferem o domínio de parte das terras à municipalidade
na qual estão localizados os respectivos terrenos9. É o que ocorre em Minas Gerais através do
7
9
Abe (2000, p.219) pondera que a Constituição Federal de 1967 modificou sobremaneira a titularidade das terras
devolutas. Isso porque permitiu que a União, uma vez vislumbrada a necessidade de proteção nacional e
desenvolvimento econômico, poderia adquirir qualquer terra devoluta dentro da jurisdição do Estado-membro,
então seu titular. As terras continuavam a pertencer aos Estados, exceto se a União delas requisitasse. Tal
exercício do domínio público somente iria modificar-se na Constituição Federal de 1988 no qual há a prédeterminação da titularidade.
8
“Art. 20. São bens da União:
I – omissis
II – as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias
federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei;” (BRASIL, 1988)
Bandeira de Mello discorre sobre a possibilidade de trespasse das terras aos Municípios, colocando como
exemplo o caso do Estado de São Paulo, mesmo exemplo que se verifica em Meirelles (2012, p.607) e Gasparini
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
artigo 9º da Lei Estadual n.º 7.373 de 03 de outubro de 1978, que dispõe que os Municípios
receberão de doação 1/3 (um terço) dos terrenos devolutos arrecadados em zona urbana ou de
expansão urbana e aqueles terrenos devolvidos ao Estado em virtude do descumprimento da
obrigação do particular que foi legitimado em área destinada à construção em 04 (quatro)
anos e assim não o fez (MINAS GERAIS, 1978).
Vale a elucidação de Abe sobre forma pela qual se processa a aquisição das terras
devolutas:
Em primeiro lugar, a forma de aquisição das terras devolutas pelo Estado contrasta
com a forma de aquisição regulada pelo direito privado, pelo qual só se adquire o
direito de propriedade imóvel pela transcrição do título no Registro de Imóveis, pela
acessão, pelo usucapião, pelo direito hereditário (art. 530 do CC), além de casos
excepcionais, como, por exemplo, o casamento.
As terras devolutas caracterizam-se como um instituto de direito público, e sua
aquisição pelo Poder Público decorreu de lei, sendo mantida a titularidade pelas
Constituições, independentemente do exercício de um poder de fato (posse) ou da
aquisição de outro título de propriedade, dispensando qualquer formalidade (ABE,
2000, p.219)
A atual lei que disciplina a matéria no âmbito do Estado de Minas Gerais é a Lei n.º
11.020 de 08 de janeiro de 1993 que, baseando-se no artigo 12, inciso IV da Constituição
Mineira, já em seu artigo 1.º ratifica a definição dada pela Lei de Terras:
Art. 1.º - São terras devolutas do domínio do Estado as assim definidas pela Lei nº
601, de 18 de setembro de 1850, que lhe foram transferidas pela Constituição da
República de 1891 e que não se compreendam entre as do domínio da União por
força da Constituição da República de 1988. (MINAS GERAIS, 1993)
O Decreto Estadual n.º 34.801 de 28 de junho de 1993 descreve quais são as terras
devolutas mineiras:
Art. 2.º - São terras devolutas estaduais as que:
I – não se acharem sob o domínio particular por título legítimo;
II – não tiverem sido adquiridas por título de sesmaria ou outras concessões do
Governo, não incursas em comisso;
III – estiverem ocupadas por posseiros ou concessionários inclusos em comisso;
IV – não se acharem aplicadas a algum uso público federal, estadual ou municipal;
As que não se compreendam entre as do domínio da União por força do artigo 20 da
Constituição da República. (MINAS GERAIS, 1993)
(2012, p.1034). “Os Estados, de seu turno, a partir da Constituição de 1891, trespassaram, em suas Constituições
e/ou Lei Orgânicas dos Municípios, parte destas terras devolutas às Municipalidades. No Estado de São Paulo, a
última Lei Orgânica editada pelo Estado (Decreto-lei Complementar 9, de 31.12.1969) – já que, hoje, cada
Município edita a própria Lei Orgânica, na conformidade do art. 20 da Constituição Federal – outorgava aos
Municípios paulistas em geral as terras devolutas sitas em um raio de 8Km do ponto central do Município e de 6
contados do ponto central dos seus Distritos.” (BANDEIRA DE MELLO, 2012, p.937)
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Vista a conceituação legal dada às terras devolutas, é importante trazer à baila o
entendimento da doutrina administrativista acerca do conceito de terras devolutas. De
tratamento restrito pelo direito administrativo, as terras devolutas não apresentam conceitos
consideravelmente diferentes dentre aqueles que delas se ocupam. Via de regra, a
conceituação baseia-se no critério excludente já apresentado desde 1850, pelo qual terras
devolutas são aquelas não abrangidas entre as de propriedade particular ou delimitadas como
de uso comum do povo ou de uso especial pelo Poder Público.10
Justen Filho apresenta o conceito de terras devolutas pautado na Lei n.º 601 de 1850,
no seguinte sentido:
As terras devolutas são os bens imóveis que, qualificados como públicos pela Lei n.
601/1850, porque, na data da vigência dela, não se encontravam nem (a) afetados ao
desenvolvimento de atividades estatais nem (b) sob o domínio privado, não
receberam uma outra qualificação jurídica posteriormente. (JUSTEN FILHO, 2010,
p.1097)
Meirelles (2012, p.607) é um dos autores que não discorre vastamente sobre as terras
devolutas em seu Manual de Direito Administrativo, definindo-as como bens públicos que
não foram utilizados por seus respectivos proprietários e classificando-as como espécie do
gênero terras públicas11. Em sentido análogo, Bandeira de Mello (2012, p.936) informa que
são devolutas aquelas terras do Estado que não foram aplicadas a um uso público e Carvalho
Filho, ao deixar claro que são terras “nas quais não se desempenha qualquer serviço
administrativo, ou seja, não ostentam serventia para uso pelo Poder Público” (CARVALHO
FILHO, 2011, p.1106).
Em sua conceituação, Di Pietro faz referência à antiga definição de terreno
devolvido, mesclando também a ideia de terras que já seriam consideradas como bens
públicos dominicais. Escreve a autora:
Continua válido o conceito residual de terras devolutas como sendo todas as terras
existentes no território brasileiro, que não se incorporaram legitimamente ao
domínio particular, bem como as já incorporadas ao patrimônio público, porém não
afetadas a qualquer uso público.
10
Nesta linha é a definição apresentada por Gasparini, para quem “terra devoluta é que não está destinada a
qualquer uso público nem legitimamente integrada ao patrimônio particular”. (GASPARINI, 2012, p.1033)
11
“As terras públicas compõem-se de terras devolutas, plataforma continental, terras ocupadas pelos silvícolas,
terrenos de marinha, terrenos acrescidos, ilhas dos rios públicos e oceânicos, álveos abandonados, além das
vias e logradouros públicos e áreas ocupadas com as fortificações e edifícios públicos, como veremos adiante.”
(MEIRELLES, 2012, p.607)
141
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A primeira parte do conceito abrange as terras que ainda não foram objeto de
processo discriminatório; corresponde ao sentido originário da expressão, ligado ao
sentido etimológico de devoluto: vago, sem dono. A segunda parte compreende as
terras que já foram incorporadas ao patrimônio público. (DI PIETRO, 2012, p.779)
Defendendo que terras devolutas não são necessariamente aquelas sem titularidade,
Almeida, a partir de análise das disposições doutrinárias sobre o tema feitas por Clóvis
Beviláqua e Epitácio Pessoa, dentre outros, apresenta sua definição “como sendo aquelas
glebas ou porções de terras não incorporadas ao patrimônio do particular e que não se
encontram destinadas a um uso específico pelo poder público” (ALMEIDA, 2003, p.313).
Comungando do entendimento dos citados autores, pode-se afirmar que as terras
devolutas são aquelas que não se acham aproveitadas pela autoridade pública a que caiba a
sua titularidade, excluídas aquelas de propriedade privada.
Considerando a sua característica intrínseca, qual seja, a não vinculação a uma
necessidade pública específica, seja pelo Estado ou por seus cidadãos (FURTADO, 2012,
p.731), as terras devolutas, enquanto bens públicos12, são enquadradas como bens dominicais.
Gasparini, após análise semântica da locução “bens públicos”, os define como sendo
“todas as coisas materiais ou imateriais pertencentes ou não às pessoas jurídicas de Direito
Público e as pertencentes a terceiros, quando vinculadas à prestação de serviço público”
(GASPARINI, 2012, p.957). Esse conceito revela estrita identidade com o texto do Código
Civil, na medida em que amplia o rol de titularidade dos bens públicos 13.
Ainda com base na amplitude apresentada pelo Código Civil, Pereira considera “bens
públicos todas as coisas corpóreas ou incorpóreas, imóveis, móveis e semoventes, créditos,
direitos e ações, incorporadas a qualquer título, ao patrimônio das entidades públicas”
(PEREIRA, 2003, p.36). O citado jurista esclarece que essa definição coaduna com aquela
apresentada por Meirelles que, contudo, utiliza-se dos termos “entidades estatais, autárquicas,
fundacionais e empresas governamentais” (MEIRELLES, 2012, p.576).
O enquadramento das terras devolutas como bens dominicais pauta-se no artigo 99
do Código Civil, referendado pela doutrina administrativista que classifica os bens públicos
12
O artigo 98 do Código Civil estabelece como sendo bens públicos todos aqueles de propriedade das pessoas
jurídicas de direito público interno, entendendo-se estas como sendo a União, Estados, Municípios, Distrito
Federal, autarquias e demais entidades de caráter público criadas por lei.
13
Miguel (2007, p.59), ao fazer um estudo sobre os bens públicos em geral, ressalta que independente da
titularidade, o que importa na classificação dos bens como públicos ou privados é sua afetação a uma utilidade
pública. Ao seu sentir, “a discussão sobre serem tais bens públicos ou particulares torna-se inerte, tendo em vista
o critério funcional-teleológico. Qualquer bem que esteja se prestando a uma finalidade pública guardará todos
os atributos de bem público. (MIGUEL, 2007, p.59) Em sentido contrário, Carvalho Filho (2011, p.1047)
discorre que os bens das empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas de direito
privado são bens privados, uma vez que tais entidades não têm personalidade jurídica de direito privado.
142
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
como bens de uso comum do povo, de uso especial e bens dominicais (ou dominiais). Além
dessa classificação, alguns autores oferecem uma delimitação mais pormenorizada, como o
faz Carvalho Filho (2011, p.1053) quando alia ao critério da destinação o critério da
disponibilidade,
classificando-os
como
indisponíveis,
patrimoniais
indisponíveis
e
patrimoniais disponíveis e Di Pietro (2012, p.726) que apresenta a dicotomia entre bens de
domínio público (nos quais se inserem os de uso comum e uso especial) e de domínio privado
do Estado (abarcando os dominicais).
De forma bastante direta, pode-se afirmar que os bens de uso comum do povo são
aqueles de fruição geral, sem nenhuma restrição quanto ao seu gozo, o que não afasta a
necessidade de utilização razoável e atenta à sua destinação específica, seguindo padrões de
normalidade. Já os bens de uso especial são aqueles utilizados pelo Poder Público para
execução dos seus serviços, como por exemplo, os prédios onde estão instaladas as
repartições públicas. Por fim, os bens dominicais são aqueles que não têm nenhuma afetação,
por isso podem ser alienados ou ter o uso repassado a quem interessar, observados alguns
requisitos, como é o caso de licitação.
Meireles, ao tratar da classificação dos bens públicos, deixa claro que todos eles
estão sujeitos à administração do Poder Público e, adotando um critério de maior rigor
técnico, reclassifica-os como “bens de domínio público (os da primeira categoria: de uso
comum do povo), bens patrimoniais indisponíveis (os da segunda categoria: de uso especial) e
bens patrimoniais disponíveis (os da terceira e última categoria: dominiais)” (MEIRELLES,
2011, p.578).
No tocante ao regime jurídico, conjugando disposições legais e doutrinárias, inferemse como características dos bens públicos em geral a inalienabilidade, imprescritibilidade,
impenhorabilidade e não-oneração. Neste sentido, as terras devolutas são bens públicos
dominicais, e enquanto tais estão sujeitas a um regime jurídico específico, como se verá
adiante.
3 PANORAMA GERAL DAS TERRAS DEVOLUTAS EM MINAS GERAIS
Como já é sabido, o conceito de terras devolutas tem um caráter residual na medida
em que enquadram nesta espécie de bens públicos todas aquelas terras que não são tidas como
particulares.
Noutro lado, faz-se necessário um procedimento específico para a apuração das
terras devolutas de modo que possam ser identificadas e regularizadas em nome do Estado
143
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
nos termos que a lei civil determina, qual seja, através do registro imobiliário, inobstante a
titularidade pública ser presumida por lei que, até então, mostra-se como título dominial.
O procedimento especial necessário à individualização das terras devolutas, que pode
ser administrativo ou judicial é, portanto, o processo discriminatório 14, regulado em nível
federal pela Lei n.º 6.383 de 07 de dezembro de 1976 e no Estado de Minas Gerais pelo
Decreto n.º 34.801, de 28 de junho de 1993, que por sua vez regulamenta a Lei n.º 11.020 de
08 de janeiro de 1993, por força da competência constitucional que os Estados detêm de
legislarem sobre procedimentos administrativos relativos à titularidade de seus bens. Assim é
que Pereira afirma que o objetivo do procedimento discriminatório é “[...] encontrar as terras
públicas, defini-las em seus contornos e em seus lindes, estremá-la das terras particulares”
(PEREIRA, 2003, p.57), a fim de exercer maior controle sobre elas. Importante informar que,
nos termos do artigo 7.º do Decreto Estadual 34.801/93, a ação discriminatória poderá ser
dispensada nos casos de alienação ou de concessão de terras devolutas com área não superior
a 100 ha (cem hectares).
Caso ocorra administrativamente, o procedimento inicia-se com a convocação de
todos os interessados que estejam situados dentro de uma área previamente delimitada 15, que
por sua vez utilizarão dos meios competentes para comprovar a titularidade particular sobre
determinada área. Analisadas as provas, o ente público se manifestará sobre elas, separando
aquelas áreas sobre as quais se comprovou o domínio para, posteriormente, proceder à
demarcação das terras, classificando-as como legítimas (de propriedade particular) 16, de
duvidosa legitimidade (casos em que as provas foram frágeis) e devolutas (sobre as quais não
se comprovou qualquer titularidade particular). Caso sejam identificadas ocupações
legitimáveis ou não, os interessados serão notificados a firmar com o Estado de Minas Gerais
os respectivos termos de identificação.
14
“Art. 8º - A identificação técnica de que trata o inciso I do artigo anterior, inclusive para os fins do
cadastramento geral previsto no inciso III do mesmo artigo, é feita pela discriminação administrativa ou judicial
das terras públicas, dominicais e devolutas, a fim de serem descritas, medidas e extremadas do domínio
particular.” (MINAS GERAIS, 1993)
15
“Art. 12 – [...]
§ 1.º - O edital de convocação conterá a delimitação perimétrica da área a ser discriminada, com suas
características, e será dirigido, nominalmente, a todos os interessados, proprietários, ocupantes, confinantes
certos e respectivos cônjuges, bem como aos demais interessados incertos ou desconhecidos.” (MINAS
GERAIS, 1993)
16
“Art. 2.º - [...]
§ 1.º - Consideram-se títulos legítimos aqueles que, segundo a lei civil, sejam aptos para transferir o domínio,
entendendo-se, também, como tais, os títulos de sesmarias, expedidos pelo Governo, desde que não incursos em
comisso; sesmaria não confirmada, mas revalidada de acordo com a Lei n.º 601, de 18 de setembro de 1850; as
escrituras particulares de compra e venda ou doação, desde que o pagamento do imposto de siza (alvará de 3 de
julho de 1809) tenha sido realizado antes do Decreto n.º 1.318, de 30 de janeiro de 1854; bem como as terras
transcritas no Registro Torrens e decisões judiciais sobre terras, transitadas em julgado, com efeito constitutivo
de direitos.” (MINAS GERAIS, 1993)
144
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Demarcadas as terras e encerrado o procedimento discriminatório administrativo,
procede-se ao registro junto à competente serventia de registro imobiliário da comarca
respectiva, falando-se a partir de então em terras devolutas discriminadas ou apuradas.
O processo se dará na esfera judicial nos casos em que entender o ente público
desnecessário ou ineficaz o procedimento administrativo; quando da fase do chamamento dos
interessados, estes não comparecerem ou não aceitaram a notificação da Comissão Especial;
quando praticarem atentado na área discriminanda; ou, ainda, quando não for possível apurar
com segurança a legitimidade do título exibido pelo interessado. Note-se, desta feita, que
desde a Lei de 1850 – que no artigo 14 estabelecida a obrigação do governo em medir, dividir,
demarcar e descrever as terras devolutas – o critério de apuração continua sendo residual17.
Até que sejam discriminadas as terras devolutas, o caráter de indeterminação física
permanece, impossibilitando-se, desta feita, que sejam tomadas quaisquer providências por
parte do ente público para que os terrenos tenham uma utilização efetiva. Há entendimentos
de que, a partir do processo discriminatório, as terras arrecadadas para o Estado não seriam
mais denominadas devolutas18 e somente após a arrecadação é que seu titular terá poderes
plenos de disposição sobre elas:
Somente após a discriminação de terras devolutas torna-se possível a ocupação
administrativa, e a consequente afetação a um uso público. Todavia, há que lembrar
que neste estágio não teremos mais terras devolutas, mas sim terras próprias,
determinadas.
O direito de dispor do bem, que é um dos principais traços característicos do
domínio, também não poderá ser exercido pela União em sua total extensão.
Especialmente a alienação das terras devolutas aos particulares exigirá prévia
discriminação, em virtude da impossibilidade de a Administração Pública transferir
um bem indeterminado a estes sujeitos. Note-se que pela legislação atual o particular
não tem legitimidade ativa para propor ação discriminatória para determinar a terra
(art. 18 da Lei 6.383/1976). (ABE, 2000, p.220)
Deve-se ressaltar que o proprietário individual ou aquele sujeito que pretende ter sua
terra legitimada não poderá dar início ao processo discriminatório, que ficará a cargo do ente
público (União, Estados ou Municípios, conforme o caso) que, por sua vez, outorgará o
respectivo título ao particular nos termos que a legislação específica de regularização
fundiária determinar. Assim, o caráter pró-ativo do particular na busca por direitos que
17
Lima (1990, p.67) relata que a Lei de 1850, quando estabelece os procedimentos de demarcação das terras
devolutas, é uma cópia das leis de terras que foram adotadas pelos Estados Unidos que, por sua vez, gerou
grande influencia no território brasileiro diante do cenário de prosperidade lá vivenciado.
18
Segundo Magalhães “[...] podemos concluir que as terras públicas nada mais são do que as terras devolutas
devidamente arrecadadas, demarcadas e cadastradas.”. (MAGALHÃES, 2003, p.27)
145
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
consagrem a sua cidadania plena fica subjugado à adoção de políticas públicas que possam,
um dia, contemplar os seus anseios individuais.
Não é difícil concluir, entretanto, que nem todas as terras devolutas hoje existentes
passaram ou têm perspectivas imediatas de serem alvos do procedimento discriminatório, seja
ele administrativo ou judicial. Até que esse procedimento seja implementado na sua
concepção mais ampla, o caráter de indeterminação das terras devolutas permanecerá e o
direito de regularização das ocupações particulares será postergado. Aliás, Carvalho Filho
considera a “indeterminação física do bem” (CARVALHO FILHO, 2011, p.1107) como o
traço mais característico das terras devolutas.
Note-se, por exemplo, o processo de construção de Brasília, noticiado por Magalhães
(2003, p.33), ocorrido sobre terras doadas pela União e que não foram demarcadas em sua
totalidade. Com isso, a capital federal tem grande parte de seu território constituído sobre
terras cuja titularidade plena não pode ser exercida pelo Distrito Federal, haja vista que os
poderes de uso, gozo e disposição somente poderão incidir sobre bens determinados, e não
apenas determináveis.
Dessa forma, como as terras doadas ao Distrito Federal pela União não foram
discriminadas, tornou-se difícil saber o que é público e o que é privado.
Evidentemente que as propriedades privadas e as áreas efetivamente desapropriadas
não são difíceis de se identificar porque a sua titulação é de fácil comprovação. Já no
que se refere às terras devolutas, que com certeza existem, a situação é mais
complexa porque só através do processo discriminatório é possível conhecê-las.
(MAGALHÃES, 2003, p.33)
Em Minas Gerais a situação não é diferente e políticas públicas estão sendo adotadas
pelo Instituto de Terras do Estado de Minas Gerais – ITER/MG – para apuração das terras
devolutas e seu posterior aproveitamento. A Secretaria Extraordinária de Regularização
Fundiária – SEERF e o ITER/MG têm competência exclusiva de promover a regularização de
terras devolutas urbanas e rurais situadas no Estado de Minas Gerais, bem como de
administrar as terras arrecadadas até que sejam destinadas a um uso específico 19.
É de competência do ITER/MG o desenvolvimento da política de destinação das
terras públicas, compatibilizando-a com a política agrícola e o plano de reforma agrária, além
do Plano Mineiro de Desenvolvimento Integrado, planos diretores e “os objetivos de
19
“Art. 2º - O ITER tem por finalidade planejar, coordenar e executar a política agrária e fundiária do Estado, por
meio da promoção de ações destinadas à democratização do acesso e à fixação do homem à terra, de acordo com
as diretrizes do desenvolvimento sustentável e do Governo do Estado”. (MINAS GERAIS, 2001)
146
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
preservação e proteção dos patrimônios natural e cultural do Estado” (MINAS GERAIS,
1993).
Objetivando levantar dados junto ao ITER/MG, está em desenvolvimento um projeto
de pesquisa intitulado Usucapião de Bens Públicos, que por sua vez está diretamente
vinculado ao Grupo de Trabalho Função Social da Propriedade do Núcleo Jurídico de
Políticas Públicas – NUJUP. O NUJUP é um grupo de pesquisa, ensino e extensão, vinculado
à linha de pesquisa Estado, Constituição e Sociedade no paradigma do Estado Democrático de
Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, coordenado pela professora Dra. Marinella Machado Araújo, sendo que o
grupo de trabalho aborda de forma crítica a socialização do direito de propriedade e dos
demais direitos reais, como o de posse.
Como resultado das pesquisas preliminares empreendidas no ITER/MG, pode-se
afirmar que o Estado de Minas Gerais não tem, com exatidão, um panorama quantitativo das
terras devolutas sob sua jurisdição, ou seja, não é possível informar quantos hectares de terras
devolutas existem no Estado, exatamente porque somente com a implementação do processo
discriminatório em todo o seu território é que os dados poderiam ser apurados, o que não se
vislumbra em larga escala nas terras mineiras.
Isso demonstra que as políticas de conhecimento e delimitação das terras devolutas
em Minas Gerais não são capazes de atender a contento a demanda existente, razão pela qual
novas formas de regularização capazes de fixar o homem à terra de garantir-lhe o direito de
moradia e subsistência devem surgir como alternativas àquelas prática hoje regulamentadas.
4 O REGIME JURÍDICO DOS BENS PÚBLICOS BASEADO EM FINS PÚBLICOS
A proteção aos bens públicos se justifica especialmente porque o patrimônio deve,
inarredavelmente, atingir finalidades específicas que, embora em alguns casos não se
revertam imediata e diretamente em benefício da coletividade, de forma indireta sevem a um
fim público. É neste sentido que Meirelles deixa claro que esses bens, “por isso mesmo que
vinculados a um fim administrativo, sofrem restrições à sua alienação, oneração e utilização”
(MEIRELLES, 2011, p.578).
Falar em afetação de um bem é explicitar que ele serve à execução de alguma
atividade pública (bens de uso especial) ou ao uso direto pela população (uso comum do
147
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
povo), ao passo que desafetados são aqueles que não estão destinados a nenhum desses dois
fins. Afetar é, portanto, dar destinação 20.
Di Pietro (2012, p.726), ao classificar os bens públicos como de domínio público ou
domínio privado, nos termos já referenciados em linhas anteriores, utiliza-se do critério de
afetação ou não do bem a uma atividade pública e neste sentido entende que os bens
dominicais são bens de domínio privado do Estado, mas ainda assim abarcados pela proteção
do regime jurídico de direito público.
São inalienáveis, conforme preceitua o artigo 10021 do Código Civil, os bens de uso
comum do povo e os de uso especial, enquanto conservarem o atributo da afetação. Quanto
aos bens dominicais, por não serem afetados, podem ser alienados conforme autoriza o artigo
10122 do Código Civil. Assim, não podem os bens públicos, em regra, ser alienados,
transferidos ou dispostos a terceiros. Está é, portanto, a definição legal.
Furtado prefere a expressão “alienabilidade condicionada” (FURTADO, 2012,
p.701), uma vez que o próprio artigo 17 da Lei n.º 8.666/93 dispõe de forma expressa as
condições que devem ser observadas para a alienação de bens públicos, como interesse
público, avaliação prévia, autorização legislativa e licitação.
São impenhoráveis os bens públicos na medida em que, sobre eles, não pode haver
constrição judicial. Por isso, é preciso um processo de execução contra a Fazenda Pública
com características próprias, no qual a penhora é substituída pelo precatório. O pagamento se
dá com observância da ordem cronológica, exceto para os casos de créditos alimentícios e
aqueles tidos como de pequeno valor.
Quanto a não-oneração, não pode a quem caiba a administração dos bens, seja ele
chefe do executivo ou não, gravá-los livremente, justamente por não serem titulares de seu
domínio, mas tão somente seus administradores. Meireles afirma que “exige o interesse
público – e, por isso mesmo, a Constituição da República o resguardou – que o patrimônio
das pessoas públicas fique a salvo de apreensões judiciais por créditos de particulares”
(MEIRELLES, 2011, p.602), dando, pois força ao interesse público como legitimador da
proteção. Inalienáveis que são, os bens públicos não poderão ser onerados.
20
“Parte dos juristas entende que se a ocupação em determinadas áreas públicas já ocorre há muitos anos de
forma consolidada, de fato a área não está mais afetada a uso público, e portanto, não caberia a necessidade
de lei para desafetá-la. Entretanto, existem ainda posições contrárias, que apregoam a necessidade de
desafetação de áreas públicas por lei.”(SAULE JUNIOR, 2006, p.94)
21
“Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto
conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar.” (BRASIL, 2002)
22
“Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei.” (BRASIL, 2002)
148
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Por último tem-se a imprescritibilidade, ou seja, impossibilidade de aquisição de
bens públicos por terceiros através da usucapião, e neste ponto os administrativistas clássicos,
dentre eles Di Pietro, Meirelles, Bandeira de Mello, muitas das vezes referendados pelos
demais autores, são uníssonos na afirmação da vedação. Essa doutrina refuta a possibilidade
de um particular, utilizando-se de um bem público e especialmente na análise a que se
pretende fazer de forma específica das terras devolutas, acumulando requisitos de posse
prolongada no tempo e uso efetivo do bem, possa adquirir-lhe a propriedade.
Bandeira de Mello (2012, p.933) utiliza-se de uma breve retrospectiva histórica para
esboçar o entendimento de que, independente a que categoria pertençam, os bens públicos não
são passíveis de usucapião.
É o que estabelecem os arts. 102 do Código Civil e 200 do Decreto-lei 9.760, de
5.9.1946, que regula o domínio público federal. Antes dele, já a tradição normativa,
desde o Brasil-Colônia, repelia a usucapião de terras públicas, embora alguns
insistissem em questionar este tópico. A primeira lei de terras do Brasil
independente, Lei 601, de 18.9.1850, e seu Regulamento, n. 1.318/1854, impunham
tal intelecção e os Decretos federais 19.924, de 27.4.1931, 22.785, de 31.5.1933, e
710, de 17.9.1938, também espancavam qualquer dúvida sobre isto. Hoje a matéria
está plenamente pacificada (Súmula 340 do STF). (BANDEIRA DE MELLO, 2012,
p.933)
Na mesma linha, Carvalho Filho (2011, p.1058) informa que os bens públicos são
imprescritíveis, sejam eles dominicais, de uso comum ou de uso especial, afirmando inclusive
que a matéria está sedimentada com a Súmula 340 do Supremo Tribunal Federal 23 e artigo
10224 do Código Civil. Numa análise específica dos bens dominicais, assim se posiciona:
Há entendimentos no sentido de que os bens dominais seriam usucapíveis e que o
art. 188 da CF, por ter-se referido conjuntamente a terras púbicas e terras devolutas,
teria criado outra categoria de bens públicos, admitindo o usucapião dessas últimas.
Ousamos discordar, data vênia, de semelhante pensamento. No primeiro caso, os
bens dominicais se enquadram como bens públicos, estando, portanto, protegidos
contra a prescrição aquisitiva. No segundo, houve, de fato, impropriedade no texto
constitucional, mas a interpretação sistemática não conduz à criação de nova
categoria de bens públicos. As terras devolutas, como se verá adiante, se inserem
nos bens públicos, de modo que a elas também terá que se estendida a garantia
constitucional.” (CARVALHO FILHO, 2011, p.1059)
Meirelles justifica a proibição sob a alegação de que não é possível a concepção de
um direito (aquisição por particular) em contrariedade a outro direito (imprescritibilidade dos
23
“Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos
por usucapião.” (STF, 1963)
24
“Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião”. (BRASIL, 2002)
149
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
bens públicos). Para ele, “não há direito contra Direito, ou, por outras palavras, não se adquire
direito em desconformidade com o Direito” (MEIRELLES, 2011, p.600).
Ainda pela imprescritibilidade absoluta dos bens públicos, estão Furtado (2012,
p.703), Gasparini (2012, p.966) e Marinela (2012, p.829), esta última amplamente utilizada na
formação de profissionais do direito que se dedicam à carreira pública. Referida autora
afirma, sem qualquer ressalva, que os bens públicos não estão sujeitos à prescrição
aquisitiva25.
A posição esboçada pelos autores supra citados elucida a noção de cada um no que se
refere à concepção da legalidade enquanto princípio que reflete a necessidade da
administração pública ater-se às disposições literais da lei, distanciando-se desta forma da
noção de juridicidade, enquanto vinculação à toda ordem constitucional e não somente à
literalidade do texto, afastada portanto de resultados que reflitam integração, participação e
pluralidade de decisões.
Ao analisar o regime jurídico do domínio público, Rocha (2005, p.20) transcreve
quatro teorias que tratam sobre a relação de titularidade do Estado quanto aos seus bens, na
tentativa de demonstrar se tal relação se configura como de propriedade, à moda de um
particular, ou de domínio público. Segundo ele, uma primeira teoria rechaça a noção de que
no domínio público estejam presentes os elementos integrantes do conceito de propriedade.
Como segunda corrente, está aquela que equipara o domínio privado ao domínio público, ao
lado da terceira corrente que considera o “domínio público como uma categoria especial da
propriedade” (ROCHA, 2005, p.21).
A quarta corrente citada pelo autor supra referendado é aquela pela qual o bem
somente é de domínio público se afetado a uma utilidade pública; caso contrário, o bem é de
propriedade privada. Daí nota-se que o fim a que se destina o bem é que o caracteriza como
público ou privado, não havendo que se falar em bem público única e exclusivamente porque
a lei assim o designou. A consequência dessa análise é simples: se o bem é de propriedade
administrativa e está afeto a uma utilidade pública ele é acobertado pelo regime jurídico
peculiar. Noutro lado, se constituem o patrimônio do Estado à moda de um particular, o
regime jurídico aplicado é o da propriedade privada (ROCHA, 2005, p.23). Conclui que o fim
público deve, necessariamente, ser observado:
25
“Essa regra decorre do art. 102 do Código Civil, que estabelece a impossibilidade de prescrição aquisitiva,
independentemente da destinação do bem, seja dominical ou não, incluindo os bens móveis e os imóveis, estando
todos eles protegidos. Da mesma forma, o art. 183, §3º e o art. 191, parágrafo único, da CF protegem os bens
imóveis, afastando inclusive esses bens da usucapião pro labore. No mesmo sentido, o art. 200 do Decreto-Lei
nº 9.760/46 protege os bens imóveis da União, independente de sua natureza.” (MARINELA, 2012, p.829)
150
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
[...] o Estado e os seus entes, enquanto sujeitos predispostos a cumprir certas
finalidades, apresentam-se como titular de relações jurídicas de propriedade que têm
por objeto bens. O Estado, enquanto proprietário destes bens, está investido de
poderes inerentes a esta relação jurídica que, no entanto, é fortemente marcada e
influenciada pelos fins públicos a que deve obrigatoriamente atender, o que resulta
num regime jurídico diferenciado, se comparado com a propriedade particular.
(ROCHA, 2005, p.23)
Há que se ter em mente que os direitos humanos fundamentais à vida, dentre eles
aqueles elementares de alimentação e habitação, têm precedência sobre aqueles ligados ao
patrimônio, tornando-se esse último relativo se por sua vez violar outros direitos e interesses
alheios. Essa análise torna-se possível apenas se amparada numa concepção baseada nos
próprios fundamentos que sustentam o Estado Democrático de Direito, como se verá mais
adiante quando do estudo da função social da propriedade.
Como bem assevera Justen Filho, os bens públicos devem ser concebidos a partir e
em função dos direitos fundamentais, refutando a ideia tradicional de impossibilidade de sua
utilização instrumental para satisfação de necessidades humanas:
O tratamento do instituto do bem público deve ser norteado pelo enfoque da
supremacia e indisponibilidade dos direitos fundamentais. Isso significa afastar
concepções tradicionais, que se fundavam em pressupostos incompatíveis com a
ordem constitucional. (JUSTEN FILHO, 2010, p.1045)
E mais adiante, reforça o seu entendimento:
O direito administrativo continua a conceber os bens públicos como uma espécie de
“patrimônio sagrado”. Seriam bens intocáveis, vedando-se a sua utilização
instrumental para satisfação das necessidades humanas. Sob esse enfoque, a
finalidade do regime jurídico dos bens públicos é protegê-los contra qualquer uso e
impedir a sua instrumentalização em favor da sociedade.
Esse enfoque é totalmente incompatível com a ordem constitucional vigente. O
Estado é um meio de promover e assegurar os direitos fundamentais. Os bens
públicos são essencialmente um conjunto de instrumentos para que o Estado
desempenhe os seus deveres. Consolida-se, então, a concepção de que os bens
públicos são um instrumento para a promoção dos direitos fundamentais. (JUSTEN
FILHO, 2010, p.1046)
Não se pretende aqui ignorar a essencialidade da proteção dos bens públicos
através dos atributos da inalienabilidade, impenhorabilidade, imprescritibilidade e não
oneração. Entretanto, deve-se estar atento aos fundamentos que justificam a proteção,
pautados na legítima garantia de finalidades públicas, o que não parece difícil de perceber nos
casos de bens de uso comum do povo e de bens de uso especial. Já quando do estudo dos bens
151
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
dominicais, especialmente aqueles que não apresentam qualquer finalidade pública a não ser
acúmulo de patrimônio estatal, essa essencialidade passa a ser, no mínimo, questionável, à
medida que se contrapõe aos ideais de justiça e coerência legislativa.
5 A DESAFETAÇÃO EM CONTRAPONTO À VERTENTE PATRIMONIAL DE
TITULARIDADE DO BEM PÚBLICO QUE GERA ESPECULAÇÃO
A característica mais marcante para que um bem público possa ser classificado como
dominial ou não é a sua destinação a uma finalidade pública. Neste sentido, vale a transcrição
de Justen Filho ao discorrer sobre a afetação como instituto fundamental ao regime dos bens
públicos:
É usual a utilização da expressão afetação desacompanhada de qualquer outra
qualificação, o que se afigura insuficiente. Afetar significa estabelecer um vínculo
de dependência. Logo, afeta-se um objeto a algo. Ora, os bens públicos destinam-se,
em princípio, à satisfação das necessidades coletivas. Logo, deve-se reconhecer que
a afetação significa a destinação do bem a satisfazer necessidades coletivas.
(JUSTEN FILHO, 2010, p.1067)
Especificamente no caso das terras devolutas, são classificadas como bens públicos
dominiais porque não estão afetadas e, portanto, não servem a priori à satisfação de um
objetivo público. Mas ainda assim não perdem os atributos específicos a elas atribuídos pelo
regime jurídico de direito público, nos termos da doutrina majoritária acima indicada. Nas
palavras de Furtado, “o fato de o bem dominical não estar afetado não faz com que ele deixe
de ser considerado bem público ou que se submeta a regime diferenciado.” (FURTADO,
2012, p.696).
Portanto, mesmo que não estejam inseridas na razão de ser da proteção que justifica a
aplicação do regime jurídico aos bens públicos em geral, as terras devolutas estão
incondicionalmente protegidas, tanto pela lei, doutrina e jurisprudência, contra qualquer
reivindicação de particulares sobre elas, especialmente quando se trata de atribuição de
domínio àqueles que delas fazem uso direto.
É certo que o Estado precisa ter em seu domínio bens dos quais possa dispor quando
assim necessitar; afinal, a soberania nacional também se garante com um Estado forte
economicamente e possuidor de patrimônio. Aliás, a própria legislação mineira estabelece
152
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
explicitamente que os terrenos arrecadados poderão ser utilizados para composição de capital
com subscrição pelo Estado (MINAS GERAIS, 1978)26.
Entretanto, a manutenção de terras em sua titularidade, em grande escala, apenas
para demonstrar domínio patrimonial amplo, faz com que esse mesmo Estado soberano se
transmude em um grande especulador imobiliário, num país no qual o direito à moradia digna
está longe de ser universalizado.
Não há vida pois sem o apossamento da natureza, sem a faculdade ou o poder de
estar no exterior, na terra. Negar o direito de morar como um direito do homem e da
mulher significaria negar o direito fundamental à própria vida. Muito difícil, porém
seria convencer disso o Poder Judiciário, historicamente comprometido com teorias
jurídicas impregnadas de conceitos fundiários fechados em normas positivadas.
Trata-se, em suma, de um direito a ser conquistado e construído na luta política.
(BALDEZ, 2003, p.87)
A já mencionada Lei n.º 601 entrou em vigor numa época em que, na Europa, o
capitalismo já estava de tal forma amadurecido que se percebiam doutrinas consistentes
contrárias a ele, enquanto em solo brasileiro os primeiros passos ainda eram calcados rumo à
mudança do capitalismo mercantilista para capitalismo industrial, sendo referida Lei um
exemplo desse atraso histórico no que diz respeito à regulamentação do solo. A forma de
distribuição da terra na atualidade ainda é reflexo da dicotomia existente entre a livre
iniciativa de trabalho e a falta de condições de acesso seguro e autônomo à propriedade
privada do solo, seja ele urbano ou rural. 27
A lógica da supremacia dos interesses do proprietário na utilização da propriedade
produziu nas cidades e no campo a consolidação e o agravamento do processo de
exclusão socioterritorial de um contingente crescente de pessoas. Impedida, no
campo, de permanecer trabalhando na terra, nas cidades a dificuldade está em
ocupar legalmente o território – adquirir um lote, construir sua moradia. (SAULE
JUNIOR, 2006, p.15)
A par de grandes extensões de terra de titularidade pública que não têm qualquer
destinação específica, ou seja, terras desafetadas, estão inúmeros núcleos familiares que têm
26
“Art. 10 – Os terrenos arrecadados, não alienados a posseiro ou a Município, podem ser doados a autarquia,
fundação, empresa pública e sociedade de economia mista estaduais, bem como utilizados para a composição do
Capital das citadas empresas, subscrito pelo Estado.” (MINAS GERAIS, 1978).
27
Elucidando essa distância entre o processo histórico vivenciado na Europa e a produção legislativa ocorrida no
Brasil a partir do ano de 1850, Baldez faz um importante paralelo entre a Lei de Terra e a extinção do tráfico
negreiro: “No decálogo conclusivo do Manifesto Comunista de 1848, quatro de seus itens são dedicados à
libertação da terra, dado fundamental para a libertação dos subalternizados, enquanto que no Brasil, com a fusão
temática da Lei de Terra (601) e da Lei Euzébio de Queirós, de extinção do tráfico negreiro, se de um lado
libertava-se o negro, mas sem integrá-lo na sociedade, de outro consagrava-se, para garantir a destinação do
homem ao mercado de trabalho, a escravização da terra.” (BALDEZ, 2003, p.73)
153
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
que aguardar até que políticas públicas de regularização da posse (e não da propriedade plena)
sejam acessíveis a elas e possam lhes dar a sensação de que se tornarão sujeitos de sua própria
história. Ao que se parece, a escravização da terra continua, com o seu monopólio não apenas
pela classe dominante como também pelo próprio Estado, substituindo as rendas outrora
advindas dos escravos pelo poder sobre a terra como forma de acumulação de capital.
Entenda-se bem: até 1850 não se tinha um interesse maior no fechamento da terra,
embora determinados fatos políticos já levassem a classe dominante a adotar
medidas reclusivas como a Lei Orgânica dos Municípios de 1828. Não era ainda a
terra o fator primordial de sustentação da economia mas o escravo, semovente, e,
por isso, apropriado e usado, em si mesmo (não-sujeito que era), como meio de
produção. Com o fechamento da terra, em face da perspectiva da nova formação
social-capitalista em cujos pressupostos estava o trabalhador assalariado, iniciou-se
o processo de formação da propriedade latifundiária, sem a qual não se garantiria o
monopólio da terra, agora fundamental para a dominação de classe. (BALDEZ,
2003, p.76)
Não é demais lembrar que as desigualdades sociais perpassam necessariamente pela
distribuição de terras que, por sua vez, tem a origem prejudicial desde os tempos da
colonização, como acima se transcreveu, especialmente considerando as dimensões
continentais do Brasil. 28 Como consequência, além dos grandes latifúndios particulares que se
formaram e perpetuam até os dias atuais, o Estado se mantém como grande proprietário
imobiliário que, ao argumento de assegurar soberania, transmuda-se em concentrador de
terras à espera de políticas públicas de regularização fundiária.
No Brasil, a terra e o direito à propriedade foram tratados, desde o início do
processo de colonização, sob a ótica estrita da especulação, ou seja, da exploração
da propriedade em benefício – especialmente econômico – de seu proprietário.
Associava-se, em uma só equação terra, riqueza e poder. Essa lógica de tratamento
da terra era também aplicada ao patrimônio púbico: o Estado – reflexo da sociedade
– sempre olhou suas propriedades sob a perspectiva prioritária das transações
onerosas.
[...]
Finalmente, vale acrescentar que, no Brasil, a propriedade da terra continua tendo
significado crucial na distribuição da população, tanto urbana quanto rural. No
campo ou na cidade, terra ainda significa poder e riqueza. Não possuí-la, por outro
lado, significa exclusão. Neste contexto, o papel do Estado é decisivo para atender
quem está excluído do acesso a terra pelas vias formais do mercado, garantindo
direitos fundamentais a toda população. (SAULE JUNIOR, 2006, p.15/16)
28
Saule Junior (2006, p.59) deixa claro que a forma como se deu o processo de urbanização influenciou
diretamente a efetivação do direito de moradia, seja pela população de baixa renda ou pelas populações
tradicionais, dentre elas as comunidades quilombolas e os indígenas, que não tiveram seus direitos reconhecidos
pelo poder público. “Em função do processo de urbanização historicamente excludente, grande parte da
população brasileira só conseguiu ter acesso à moradia por meio de mecanismos informais e ilegais. Não é á toa
que cresce diariamente o número de moradores em favelas, palafitas, loteamentos irregulares e clandestinos,
cortiços e outras formas de assentamentos informais de baixa renda.” (SAULE JUNIOR, 2006, p.59)
154
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Com esse cenário, o problema que deveria ser corrigido na origem apenas desloca-se
da zona rural para a zona urbana, através do constante êxodo rural, sendo que a inexistência
de terras para fixação do homem passa para a esfera urbana, com o acúmulo de pessoas em
áreas favelizadas (públicas e privadas) que já não buscam condições de exploração da terra
pelo trabalho, mas tão somente a garantia do direito de moradia. Quando se fala em acesso do
homem a terra o que se pretende assegurar é a cidadania e a inclusão social, vez que “[...]
depende da terra o direito humano à alimentação e à moradia, direitos consubstanciados na
própria Constituição brasileira (art. 6º)”. (MARQUES, 2006, p.111)
A partir de tais constatações é que surge o interesse em discutir com maior riqueza de
argumentos as razões que levam à aplicação às cegas do regime jurídico público às terras
devolutas, que por sua própria natureza não têm destinação específica e não raras vezes são
ocupadas por pequenos proprietários que delas fazem uso exclusivamente para constituir
moradia ou para produção de renda. O fundamento de proteção aos bens públicos – assegurar
a propriedade em benefício da coletividade – torna-se argumento retórico diante da realidade
social vivenciada que demonstra como consequência nefasta o acúmulo imobiliário em nome
de um Estado que tem razão de ser tão somente por se fundar no interesse público que reflita
os interesses individuais de cada cidadão que o compõe.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Das considerações acima trazidas, surgem algumas perguntas que merecem uma
apurada análise para que possam ser respondidas de forma coerente e não contraditória: A
serviço de quem estão os bens públicos? Qual é o interesse tutelado pelo regime jurídico dos
bens públicos aplicável às terras devolutas? O Estado legitima-se por si só ou busca tal
legitimidade nos cidadãos que o compõem?
Não tendo como objetivo traçar conclusões finais sobre o tema, mesmo porque se
trata apenas de uma das várias nuances que envolvem a proteção dos bens públicos, melhor
será explicitar que essas devem partir do próprio leitor já que, se ao menos questionamentos
sobre os fundamentos que sustentam o regime jurídico dos bens públicos já tiverem sido
iniciados pelo interlocutor, o objetivo principal do artigo terá sido atingido.
O estudo de teorias que tratam sobre quaisquer assuntos já consolidados pela
doutrina administrativista clássica é árduo e exige uma nova concepção de Estado e de
interesse público com a qual não estão acostumados os profissionais que lidam com o direito
público.
155
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Uma sociedade carecedora de políticas públicas que efetivem o direito de moradia e
de acesso às condições mínimas de subsistência precisa de alternativas que versem sobre um
melhor aproveitamento do solo urbano e rural, independente de quem seja o seu titular. Bens
públicos não podem ficar blindados de um uso sustentável somente pelo fato de serem de
titularidade do Estado, haja vista que tal concepção não coaduna com o novo papel estatal que
a sociedade reclama, de um ente que exista para todos e em função de todos os cidadãos,
conjunta e individualmente considerados.
A partir do estudo sobre as terras devolutas percebe-se que a sua titularidade nas
mãos do Estado reflete a perpetuação de uma política inefetiva de colonização e ocupação do
território brasileiro. Soma-se a isso o fato de que o seu acúmulo e a manutenção da
titularidade estatal, a par de servir tão somente como forma de garantir autonomia e soberania,
transmuda-se em método de especulação imobiliária executada por quem deveria fiscalizar e
banir a sua existência.
É preciso que os questionamentos comecem a surgir para que soluções alternativas
possam ser buscadas. É a academia a serviço da eficácia e efetividade do direito.
156
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
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160
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A REALIDADE DOS CATADORES DE RESÍDUOS SÓLIDOS
REUTILIZÁVEIS, REFLETIDA NA FORMAÇÃO DE UMA NOVA
IDENTIDADE SOCIAL ESTIGMATIZADA
THE REALITY OF SOLID WASTE REUSABLE COLLECTORS,
REFLECTED IN THE FORMATION OF A NEW STIGMATIZED
SOCIAL IDENTITY
Luiz Fernando KAZMIERCZAK
Doutorando de Direito Penal pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestre
em Ciências Jurídicas pela Universidade Estadual do
Norte do Paraná – UENP. Professor de Direito Penal no
curso de Direito da Universidade Estadual do Norte do
Paraná (UENP) e nas Faculdades Integradas de
Ourinhos (FIO).
Lucyellen Roberta Dias GARCIA
Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade
Estadual do Norte do Paraná – UENP. Professora de
Direito Ambiental e Agrário nos cursos de Direito da
Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e da
Faculdade do Norte Pioneiro (FANORPI).
RESUMO
O objetivo da presente pesquisa consiste em promover uma reflexão crítica acerca do papel do
catador de resíduos sólidos reutilizáveis no meio social e o seu perfil socioeconômico,
destacando a sua importância como agente corresponsável pela sustentabilidade e preservação
dos recursos naturais, bem como, em contrapartida, a sua vulnerabilidade em razão do quadro
de exclusão social em que o mesmo se insere, por exercer uma atividade que, em razão das
condições em que é realizada, apresenta-se desumana, exaustiva e opressora. O excesso na
produção do lixo urbano e a dificuldade encontrada pelo Poder Público em gerenciar o
tratamento dos dejetos é um dos grandes problemas que aflige a humanidade. Inexiste, por
parte do Poder Público, um suporte técnico eficiente para o redirecionamento adequado dos
resíduos sólidos através de políticas públicas de saneamento, o que determina a transferência
de tal responsabilidade para os catadores de materiais recicláveis, os quais favorecem o
progresso econômico do setor privado, sendo, por outro lado, marginalizados e excluídos da
sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: catador de resíduos sólidos; sustentabilidade; exclusão social.
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ABSTRACT
This study aims to promote a critical discussion about the role of the reusable solid waste
collectors in the social environment and its socioeconomic profile, contrasting its importance
as a co-responsible agent for sustainability and conservation of natural resources as well as,
on the other hand, their vulnerability due to the situation of their social exclusion, as they do
an activity which, because of the conditions in which it is held, is considered inhuman,
oppressive and exhausting. The excess production of urban waste and the difficulty found by
the Government in managing the treatment of waste is a major problem that afflicts the
mankind. There is not a technical support held by the Government for redirection of solid
waste through appropriate public policies of sanitation, remaining an inert position,
transferring a portion of this responsibility to the recyclable materials’ collectors, which favor
the economic progress of the private sector, but are, otherwise, marginalized and excluded
from society.
KEYWORDS: solid waste collector; sustainability; social exclusion.
1 INTRODUÇÃO
Para o filósofo italiano Norberto Bobbio,
não é preciso muita imaginação para prever que o desenvolvimento da
técnica, a transformação das condições econômica e sociais, a ampliação dos
conhecimentos e a intensificação dos meios de comunicação poderão
produzir mudanças na organização da vida humana e das relações sociais
que criem ocasiões favoráveis para o nascimento de novos carecimentos e,
portanto, para novas demandas de liberdade e de poderes.(1992, p. 34)
O presente ensaio tem por escopo analisar uma nova demanda produzida pelos
avanços econômicos e industriais: o lixo. Assim, há de se verificar a importância da coleta de
resíduos sólidos diante da sua grande produção pela sociedade de consumo, sem, contudo,
olvidar-se daqueles que, diuturnamente, realizam este trabalho: o catador de lixo.
Não há dúvidas que analisando o contexto sócio-político em que a sociedade
encontra-se inserida, chega-se a constatação que inexiste hoje uma política pública
institucionalizada capaz de absorver a demanda de coleta de resíduos sólidos de maneira
efetiva, problemática esta que digna de reflexão e soluções urgentes. Em contrapartida, dada a
inércia estatal, muitos enxergam naquilo que é descartado pelas indústrias, comércio e
residências uma oportunidade de sobrevivência.
Surge, nesta conjuntura, a figura do catador, que é, em regra, estigmatizado pela
sociedade, relegado aos subúrbios urbanos, quando não nos arredores dos próprios aterros
162
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sanitários, mas ainda assim essencial para suprimir a ausência estatal na coleta, seleção e
reciclagem dos resíduos.
O presente trabalho se justifica, pois, no intuito de trazer à tona uma reflexão crítica
acerca de uma problemática que se inseriu na pauta do capitalismo contemporâneo, que é o
aumento significativo de um contingente de excluídos sociais que surgem na sociedade em
razão do desenvolvimento econômico exacerbado e o consumismo em massa; neste rol se
destoa a figura do catador de materiais reutilizáveis, estigmatizado pelo seu labor, mas que
exerce no meio em que vive um importante papel não somente como elemento propulsor da
economia de indústrias de reciclagem, mas principalmente como agente ambiental.
Na qualidade de agente ambiental, o catador de materiais sólidos reutilizáveis
desempenha as tarefas de recolher, separar e transportar o material coletado para as indústrias
beneficiadas, onde será novamente transformado e distribuído. É inserido neste ciclo de
produção e consumo que os denominados agentes ambientais, terminologia que mais se
adequada à posição que ocupam na sociedade contemporânea, acabam por se exporem a
diversos riscos de acidentes pessoais, e à própria condição de vulnerabilidade, que neste caso
deixa de ser um risco para se tornar uma realidade inevitável.
Por este víeis o estudo apresenta como enfoque central a realidade das condições
precárias de trabalho do catador de materiais reutilizáveis, que, aliado ao preconceito da
sociedade acerca deste labor, os relegam forçosamente à condição de excluídos sociais; Em
contrapartida, e não menos contraditório, dar-se-á a sua importância no cenário
socioambiental e econômico, como agentes responsáveis pelo desenvolvimento sustentável do
planeta.
Sob o aspecto ambiental, será dado um enfoque proeminente neste trabalho acerca da
preocupação em torno do meio ambiente e sua estreita relação com a questão da destinação
final do lixo produzido nas cidades através da reciclagem de materiais sólidos, sobretudo em
se considerando a produção em massa e o consumo exacerbado da sociedade contemporânea.
Tal preocupação merece destaque, notadamente pelo fato de que a destinação dada
ao lixo por um município reflete de forma clarividente o grau de conscientização da sociedade
e desenvolvimento atingido. Implementar medidas e políticas públicas que busquem a
preservação do meio ambiente e o equilíbrio sob todos os aspectos, sejam econômicos, sociais
ou ambientais, trata-se de um dever do Poder Público e da sociedade, encontrando tal
obrigação respaldo no artigo 225 da Constituição Federal de 1988 e na própria Lei Política
Nacional do Meio Ambiente.
163
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A conjugação dos três fatores: desenvolvimento econômico, justiça social e
qualidade de vida são determinantes para a formação de uma sociedade sustentável e
consciente da interferência indissociável de um elemento sobre outro na construção de um
Estado Democrático de Direito:
O crescimento econômico tem que continuar a acontecer. Porém, devem-se
procurar alternativas e formas de crescimento econômico que não sejam
degradadoras do meio ambiente, que não sejam impactantes, e, se o forem ,
devem ser procuradas fórmulas a fim de neutralizar os efeitos nocivos para
que o crescimento econômico continue, proporcionando as duas outras
situações acima mencionadas: Qualidade de vida e Justiça social.
(RIBEIRO; FERREIRA, 2005, p. 655)
Evidentemente que o descaso conferido à questão ambiental, fruto de uma sociedade
desorganizada e carente de uma política que priorize questões importantes como a educação
ambiental reflete de forma significativa na formação de um contingente considerável de
excluídos sociais.
Vários segmentos da sociedade, dentre os quais se afiguram os catadores de
materiais sólidos recicláveis, que sobrevivem na informalidade de um labor evidentemente
degradante e supressor de qualquer dignidade, não obstante a sua importância como
verdadeiro agente ambiental, são estigmatizados e colocados à margem de uma sociedade
preconceituosa que não educa seus filhos a colocar em prática o princípio irradiador de todos
os demais direitos, a dignidade humana.
Neste contexto, baseado nas diversas concepções que a problemática trazida pela
pesquisa impõe, a metodologia utilizada foi a dedutiva, na medida em que foram exploradas
premissas gerais, auto-evidentes, calcadas em fatos sociais de relevância para a pesquisa, leis
e proposições fenomenológicas para que se pudesse concluir um raciocínio lógico à solução
do problema proposto.
Também se utilizou do método ecológico, o qual objetiva o estudo das relações
existentes entre o homem e o meio em que vive e a interação entre os fatos sociais e os
elementos da natureza. In casu, de suma importância a análise e estudo da relação que existe
entre o labor exercido pelo catador de materiais sólidos reutilizáveis e sua contribuição para a
sustentabilidade do planeta. Sob outro viés, deve ser analisada a posição que este agente
ambiental ocupa numa sociedade que marginaliza e excluem os grupos que não se enquadram
na cadeia de consumo e poder econômico imperante.
164
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Por fim, baseou-se o presente estudo em pesquisas bibliográficas e documentais,
buscando explorar ao máximo a doutrina pátria, bem como a legislação brasileira no âmbito
do Direito Ambiental, enfatizando a sua correlação com os fatos sociais que imprimem
consequências alarmantes no processo de formação da identidade social do ser humano.
2 O CATADOR DE RESÍDUOS SÓLIDOS RECICLÁVEIS E SUA IMPORTÂNCIA
NO CONTEXTO DA PROBLEMÁTICA SOCIOAMBIENTAL
Nas últimas décadas tem-se observado um agravamento da crise ambiental mundial
sem precedentes. Malgrado possa se atribuir importância aos acontecimentos históricos
ocorridos há mais de duzentos anos como precursores do atual estágio de atenção que a
temática ambiental requer, é certo que o modelo de desenvolvimento econômico que o mundo
experimentou, notadamente após 2ª Guerra Mundial, norteado pela globalização contribuiu de
forma decisiva para o reconhecimento da insustentabilidade do planeta e consequente
conscientização da finitude dos recursos naturais.
Antes mesmo de a problemática ambiental ocupar espaço de destaque na agenda
internacional em razão da gravidade global alcançada, acreditava-se que o modelo
tecnológico adotado pelos países no intuito de alcançar o progresso econômico era
autossustentável.
Os avanços da tecnologia em evidente crescimento à época e a busca incessante pela
elevação dos índices econômicos levaram a sociedade e setor econômico a acreditar que os
produtos naturais eram inesgotáveis, e que a natureza, por si só, seria capaz de absorver e
renovar todas as suas fontes, relevando por completo os demais efeitos socioeconômicos e
ambientais, ambos reflexos da ação predatória do homem.
Ledo engano. Os efeitos predatórios cumulativos na natureza, decorrentes da
exploração econômica desenfreada, aliado ao aumento de produção e consumo pela
sociedade, começaram a transbordar trazendo prejuízos incalculáveis à humanidade. Por
consequência, surge a necessidade de uma nova forma de pensar e agir, levando-se em
consideração o modelo de desenvolvimento econômico adotado pelos países e os mecanismos
de contenção a serem desenvolvidos para frear a destruição do habitat natural do homem.
Considerando todos os fatores que envolvem a crise ambiental, a destinação dos
rejeitos produzidos pelo homem certamente tem ocupado posição de destaque dentre as
temáticas discutidas em torno da sustentabilidade ambiental, levando países do mundo todo,
165
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
numa ação conjunta e integrada, a incluir em suas agendas mecanismos de mitigação dos
efeitos nefastos e, muitas vezes irreversíveis, provocados pela atividade econômica no espaço
ambiental.
Evidentemente que a busca por este novo paradigma de desenvolvimento, então
denominado de sustentável, e que ultrapassa as barreiras da mera conciliação entre
desenvolvimento econômico e preservação do meio ambiente, para alcançar os ditames da
justiça social em sua plenitude, encontra-se condicionado a uma mudança de mentalidade,
valores, ideologias e princípios éticos da sociedade, maior interessada na propagação desta
nova realidade.
A humanidade, aos poucos, estarrecida com as inúmeras catástrofes geradas por
conta dos interesses capitalistas que predominam na sociedade contemporânea colocando em
risco sua própria sobrevivência, vem repensando suas políticas de governo voltadas
exclusivamente à busca pelo lucro e, articulando fórmulas eficazes e políticas públicas
eficientes que priorizem a conservação dos recursos naturais e a qualidade de vida humana,
além de promover a integração e a compatibilização das dimensões econômica, social,
cultural e ambiental.
Ao discorrer sobre a necessária harmonização que deve existir entre os dois
elementos informadores da sustentabilidade (desenvolvimento econômico e meio ambiente),
Édis Milaré explica:
Compatibilizar meio ambiente e desenvolvimento significa considerar os
problemas ambientais dentro de um processo contínuo de planejamento,
atendendo-se adequadamente as exigências de ambos e observando as suas
inter-relações particulares a cada contexto sociocultural, político, econômico
e ecológico, dentro de uma dimensão tempo/espaço. Em outras palavras, isso
significa dizer que a política ambiental não deve se erigir em obstáculo ao
desenvolvimento, mas sim em um dos seus instrumentos, ao propiciar a
gestão racional dos recursos naturais, os quais constituem a sua base material
(2005, p.53)
Uma das mais elaboradas definições de desenvolvimento sustentável surgiu do
Relatório da Comissão Bruntland, Nosso Futuro Comum:
O desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual,
sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas
próprias necessidades, significa possibilitar que as pessoas, agora e no
futuro, atinjam um nível satisfatório de desenvolvimento social e econômico
e de realização humana e cultural, fazendo, ao mesmo tempo, um uso
razoável dos recursos da terra e preservando as espécies e os habitats
naturais. (1988, p. 9)
166
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A abordagem sistêmica dos conceitos sobre o que vem a representar o
desenvolvimento sustentável e sua relação para com o tema proposto nesta pesquisa científica
faz-se necessária para que se compreenda a complexidade desta nova forma de encarar o meio
ambiente, considerando as suas limitações e as necessidades daqueles que o usufrui, de modo
a conciliar e satisfazer ambos os interesses equitativamente.
A partir do momento em que se criam condições concretas para a materialização do
diálogo intergeracional proposto pelo artigo 225 da CRFB, permite-se que todas as gerações
envolvidas possam atingir um nível satisfatório e equilibrado de desenvolvimento econômicosocial e realização da felicidade plena.
Não obstante se denote uma tímida, mas crescente alteração de mentalidade e
conceitos éticos acerca da responsabilidade socioambiental do Poder Público e da coletividade
para com os interesses vitais das futuras gerações, inúmeros fatores de ordem social,
econômico, político e cultural ainda representam um entrave para a materialização do ideal de
desenvolvimento sustentável e equilibrado.
O atual modelo de produção econômica adotado pela grande maioria dos países
capitalistas influencia na formação de um padrão de sociedade extremamente arraigado ao
ideal solitário e individualista de desenvolvimento tecnológico. Tal fator impõe um maior
afastamento da sociedade dos ideais de solidariedade caracterizador dos direitos fundamentais
de terceira geração, dentre os quais se inclui o meio ambiente ecologicamente equilibrado, o
que, evidentemente, ofusca a proteção constitucional deferida a este direito fundamental.
A expressão “meio ambiente ecologicamente equilibrado” apresentada de forma
inovadora pela nova ordem jurídica constitucional vigente elevou o direito ao meio ambiente
sadio à condição de direito fundamental, determinando assim a construção de um sistema de
garantias constitucionais capaz de condicionar o desenvolvimento econômico à sadia
qualidade de vida do homem (ANTUNES, 2008, p. 61).
Em que pese o prestigiado sistema constitucional de proteção conferido a questão
ambiental, os ideais de solidariedade e sustentabilidade parecem não encontrar acolhimento
quando se percebe as alterações alarmantes no cenário ambiental produzida pela atividade
econômica desenvolvida pelo homem para satisfazer a sociedade de consumo.
O consumo excessivo de produtos industrializados, que demanda a utilização cada
vez mais crescente dos recursos naturais tem superado a capacidade de renovação destes,
desencadeando um complexo desequilíbrio no bioma de irreversibilidade notória.
Analisando a temática em foco, Edson Ferreira de Carvalho expõe seu parecer acerca
dos fatores necessários para a reversão da realidade atual, assinalando:
167
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Por mais otimista que se posa ser com relação ao aperfeiçoamento da
tecnologia, parece pouco provável que seja p remédio milagroso para a crise
ambiental. Mesmo sabendo que a economia é, extremamente ineficiente do
ponto de vista ambiental, os países ricos relutam em alterar seu padrão e
nível de consumo e a aceitar a estabilização, a longo prazo das emissões de
CO2, mesmo em níveis considerados elevados. A continuar essa tendência,
para ser bastante explícito, o ambiente continuará submetido à constante e
crescente degradação. (2010, p. 462)
A gravidade da problemática aqui exposta reflete a gradativa mudança de hábitos
vitais, verificada ao longo dos anos, notadamente a partir da Revolução Industrial, justificada
pelo espírito empreendedor do homem moderno aliado às inovações tecnológicas voltadas a
satisfação do conforto e bem-estar humanos. Todos esses fatores foram determinantes para
impulsionar além da urbanização, o aumento dos bens de consumo e a consequente produção
de resíduos sólidos de difícil descarte.
Ao sopesar os problemas relacionados com o modo de produção capitalista, torna-se
perceptível e imperiosa uma análise reflexiva acerca de uma das mais graves preocupações
ambientais da atualidade, qual seja, o aumento da produção de resíduos sólidos urbanos e
materiais em geral, além das dificuldades então encontradas no que concerne ao inadequado
gerenciamento, refletindo negativamente não somente no meio ambiente, mas na própria
condição social daqueles que lidam diretamente com o lixo como fonte de sustento e
sobrevivência.
Conforme o escólio de Paulo Afonso Leme Machado:
O volume dos resíduos sólidos está crescendo com o incremento do consumo
e com a maior venda dos produtos. Destarte, a toxidade dos resíduos sólidos
está aumentando com o maior uso de produtos químicos, pesticidas, como o
advento da energia atômica. Seus problemas estão sendo ampliados pelo
crescimento da concentração das populações urbanas e pela diminuição ou
encarecimento das áreas destinadas aos aterros sanitários. (2011, p. 632)
A questão em foco, além de alcançar um alto nível de preocupação e representar até
mesmo um desafio para as administrações públicas, indústrias e sociedade em geral que
encontram dificuldades em reduzir a geração de detritos urbanos e minimizar os impactos
ambientais mediante soluções paliativas, reflete de forma negativa não somente no meio
ambiente, tido como fonte de recursos naturais que impulsiona o progresso econômico, mas
principalmente na formação de uma nova identidade social dos atores envolvidos no processo
de reciclagem de resíduos sólidos, que têm tolhidos seus direitos sociais e a própria dignidade,
consoante será abordado nesta pesquisa.
168
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Sobre o tema, Celso Antonio Pacheco Fiorillo esclarece:
O lixo urbano atinge de forma mediata e imediata os valores relacionados
com a saúde, habitação, lazer, segurança, direito ao trabalho e tantos outros
componentes de uma vida saudável e com qualidade. Além de atingir o meio
ambiente urbano, verificamos que o lixo é um fenômeno que agride também
o próprio meio ambiente natural (agressão de solo, da água, do ar), bem
como o cultural, desconfigurando valores estéticos do espaço urbano. (2012,
p. 366)
Nos termos do artigo 3º, III, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n.º
6938/81), o lixo urbano possui a natureza jurídica de poluente, restando a poluição
caracterizada “quando houver degradação da qualidade ambiental resultante das atividades
que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente
a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias
ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos.”
Os aludidos padrões ambientais ora descritos na Lei da Política Nacional do Meio
Ambiente são estabelecidos pela Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos (n.º
12.305/2010), a qual, de acordo com a redação do artigo 4º, “reúne o conjunto de princípios,
objetivos, instrumentos, diretrizes, metas e ações adotadas pelo Governo Federal,
isoladamente ou em regime de cooperação com Estados, Distrito Federal, Municípios ou
particulares, com vistas a gestão integrada e ao gerenciamento ambientalmente adequado dos
resíduos sólidos.
Analisando as disposições legais contidas no referido diploma, denota-se que a figura
do catador de resíduos sólidos reutilizáveis ou reaproveitáveis é mencionado por doze vezes
no texto legal, sendo que em todas elas denota-se o anseio de promover, através de medidas
assecutórias em favor desta classe operária, a sua emancipação econômica (artigos 15, V, e
17, IV); impulsionar o catador autônomo a não agir isoladamente, mas sim em cooperativas
ou associações (artigos 21, §3, I, 19, XI), dentre outras medidas.
Diante das recentes inovações alcançadas na esfera legal, alguns estudiosos
encontram subsídios para sustentar e defender a ideia de que os catadores de materiais
recicláveis, uma vez protegidos por um corpo normativo que lhe assegure condições de vida
dignas e saudáveis, se integrados ao sistema de cooperativas ou associações, têm assegurados
todos os seus direitos fundamentais de um cidadão.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Dentre os adeptos a teoria, encontra-se o professor Paulo Affonso Leme Machado,
segundo o qual “ao se reconhecer o resíduo sólido reutilizável e reciclável como de valor
social e um bem econômico, através da coleta desse resíduo pelo catador, promove-se a
cidadania, conforme o princípio n. VIII, expresso no artigo 6º da Lei 12.305.” (2011, p. 601)
Os questionamentos acerca da real posição dos catadores de materiais recicláveis na
sociedade requer uma análise prévia acerca da natureza jurídica do lixo urbano. Por mais
indigno que possa representar, não se pode negar que atualmente milhares de pessoas retiram
seu sustento e de suas famílias dos dejetos que compõe o lixo urbano.
Sendo o meio ambiente bem de uso comum do povo, e, portanto, de natureza difusa,
questiona-se: será que o lixo urbano apresenta-se como um direito difuso?
Celso Antonio Pacheco Fiorillo explica que a resposta para tal questionamento pode
ser encontrada na reflexão de dois caminhos defensáveis. O primeiro deles, sob o enfoque
jurídico, traz como justificativa para afastar a condição jurídica de difuso ao lixo urbano, o
conteúdo semântico do artigo 225 da CRFB, sob a lógica de que a garantia de um meio
ambiente ecologicamente equilibrado tutela uma vida com qualidade, o que se torna
inimaginável pensar daquele ser humano que se alimenta de sobras de comida, ou ainda que
trabalhe em meio ao lixo.
Sob outra ótica, agora metajurídica, Fiorillo classifica o lixo como direito difuso e,
ainda, como um bem de consumo, sendo que o Estado representaria a figura do fornecedor,
num reconhecimento claro de sua omissão no cumprimento da política urbana, e os catadores
de resíduos sólidos, os consumidores, ou seja, destinatários finais de um produto que não
obstante rejeitado por alguns, para os mesmos representam a sua própria sobrevivência.
(2012, p. 367-368).
A questão do lixo e suas implicações para o desenvolvimento econômico, cultural,
político e social começou a ser amplamente discutida após a realização da Conferência do Rio
de Janeiro, conhecida internacionalmente como “ECO 92” ou “Rio 92”, quando então se
iniciou um processo de amadurecimento das ideias em torno da necessidade de uma ação
conjunta dos países no sentido de reverter o grave quadro desenhado pela crise ambiental
mundial.
Deste importante encontro que proporcionou uma ampla discussão e reflexão acerca
da temática sustentabilidade, contando com a presença de mais de 100 chefes de Estado de
todo o mundo, foi elaborada a Agenda 21, pela qual os países signatários se comprometeram a
unir forças no sentido de materializar através de soluções céleres e efetivas o desenvolvimento
sustentável de suas nações, priorizando a qualidade de vida de seus povos.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Dentre todos os fatores que envolvem a discussão em torno do desenvolvimento
sustentável, um dos pontos que influenciam de forma significativa este processo de
compatibilização de interesses - economia e meio ambiente, é sem sombra de dúvidas o papel
do catador de materiais sólidos.
Pode afirmar que o surgimento figura do catador de material reciclável no cenário
global, ocorreu a partir do agravamento da problemática envolvendo a destinação dos
materiais sólidos não aproveitáveis. Tal se explica ante a ausência de perspectivas futuras
vivenciadas por esta parcela da população frente a grave crise socioeconômica que se instalou
com o processo de industrialização, passa a buscar nos resíduos a sua única fonte de renda e
sobrevivência, definindo claramente os contornos da desigualdade social em uma sociedade
excludente.
De acordo com ABREU (2001, p. 60), os catadores de resíduos sólidos enquadramse naquela parcela populacional destituídos de padrões mínimos de vida, ou seja, do piso vital
mínimo. Para que possam sobreviver, precisam abrir mão dos direitos e garantias
constitucionais a que o Poder Público se obriga no ordenamento jurídico vigente. A “catação”
de materiais para a comercialização e manutenção de sua sobrevivência acaba por inverter
papéis, na medida em que coloca o catador como agente responsável por amenizar os
impactos que o lixo provoca no meio ambiente.
Neste aspecto, deve-se perquirir qual seria a contribuição do catador de resíduos
sólidos reaproveitáveis para a sociedade, e se de fato, o agrupamento desses trabalhadores em
cooperativas ou associações efetivamente lhe traz um retorno satisfatório, elevando sua
dignidade e autoestima, já que considerado como uma forma de obtenção de renda, conforme
preconizado pela Lei Nacional de Resíduos Sólidos.
Abalizado nestes questionamentos, o intuito da presente pesquisa científica é definir
os contornos dos bens jurídicos envolvidos com a atividade dos catadores de materiais
recicláveis, que atuam na qualidade de interceptadores de materiais que seriam levados aos
“lixões”, interferindo no ciclo da limpeza urbana.
Busca-se discutir, pois, a importância de seu labor para a sustentabilidade do planeta
e se, de fato, uma vez empregado em cooperativas, ou atuando de forma individual, mas
garantindo diariamente uma fonte de renda, estaria o mesmo incluído socialmente e visto com
bons olhos pela coletividade.
Em suma, os questionamentos acima esposados permitirão compreender, através de
um processo reflexivo que ora se propõe se é possível afirmar, em sua completude, que o
171
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Estado e a sociedade estão garantindo ao catador de materiais reclicáveis o direito de viver em
um meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Analisando a questão sob a ótica da sustentabilidade, não se pode negar que a
reciclagem de resíduos sólidos apresenta-se no cenário mundial como uma alternativa social e
econômica viável, visto que as indústrias, cada vez mais, caminham no sentido de aderir ao
ideal de responsabilidade socioambiental como forma de se destacar no competitivo mercado
nacional e internacional e alcançar o almejado progresso.
Neste ponto, a atividade de coleta desenvolvida com esmero pelo catador de material
reciclável encaixa-se perfeitamente aos interesses dos grandes grupos econômicos, os quais,
adotando o critério da logística reversa, acabam por reinserir os resíduos no circuito
econômico, reduzindo, por conseguinte, os gastos da empresa, utilização de energia e a
exploração dos recursos naturais que tantos impactos causam sobre o meio ambiente natural.
De uma maneira silenciosa e pouco reconhecida, esses profissionais informais são
considerados os grandes responsáveis pelo abastecimento das grandes indústrias recicladoras,
as quais passam a se destacar no mercado internacional como agentes responsáveis e
comprometidos para com a causa ambiental e social. No Brasil, os catadores são os
verdadeiros responsáveis por alimentar a indústria recicladora de alumínio, repassando a estas
90% do material reaproveitável jogado nos lixos. (ABREU, 2001, p.68)
Portanto, muito mais do que contribuir para o progresso econômico de grupos
privados, os catadores de materiais recicláveis cumprem efetivamente com seu dever ético e
socioambiental de preservar o meio ambiente, de modo a torná-lo uma realidade para as
futuras gerações.
Em contrapartida, sob o aspecto social, não se observa um retorno por parte dos
agentes detentores do poder econômico, que de certa forma contribuem para o agravamento
do quadro de exclusão social desse contingente de pessoas, ao não oferecer condições dignas
para que migrem da informalidade para um ambiente de trabalho sadio.
2.1 RECICLAGEM DO LIXO: UMA MEDIDA
PRESERVAÇÃO AMBIENTAL E CONSCIENTIZAÇÃO
EFICIENTE
PARA
A
O crescimento dos trabalhadores que se submetem a encarar a degradante função de
“catação” de lixo para manutenção de sua sobrevivência está relacionado com o aumento
desenfreado do desemprego no País a partir da década de 90, em razão da implementação de
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
politicas neoliberais de flexibilização e precarização das condições de trabalho, que
determinou um aprofundamento do quadro de exclusão no mercado de trabalho.
Ao tratar do fenômeno da exclusão dos catadores de lixo, SEVERO explica o
crescimento desta nova modalidade de trabalho informal se deu em razão das consequências
decorrentes do êxodo rural, sendo que:
Em grande parte, são pessoas que têm sua origem no meio rural e que vieram
buscar na cidade melhores condições de vida. Chegando à cidade, se
defrontam com a nova conformação produtiva, maiores restrições de acesso
ao mercado de trabalho formalizado, tendo de ocupar, portanto, a franja
produtiva, em atividades como a catação" (SEVERO, 2008, p. 24).
Por consequência da crise fenomenológica que acabara de se instalar, verificou-se a
intensiva migração destes trabalhadores da zona rural para o campo da informalidade,
passando a fazer da rua, do perímetro urbano o seu próprio local de trabalho. Neste novo
cenário, destacam-se os catadores de lixo, os quais passaram a coletar vidros, papéis, latas e
outros materiais reutilizáveis para manter e auxiliar no desenvolvimento das indústrias de
materiais recicláveis, além de retirar desta atividade sua própria subsistência.
Com o passar dos anos, esses agentes passaram a ocupar um papel de importância
ímpar no processo de sustentabilidade ambiental, além de atuar como verdadeiros substitutos
do Estado, considerando o dever legal do Poder Público (e sua evidente omissão) em adotar
políticas de prevenção e preservação do meio ambiente, dentre as quais deveriam estar
inclusas as medidas voltadas para a correta destinação final dos lixos produzidos no âmbito
dos municípios.
Atualmente, o cenário que se vê ocupando os perímetros urbanos e os grandes lixões,
é composto de um número significativo de homens, mulheres, adolescentes e crianças,
marcados pela miséria, fome e sujeira, e incluídos no mercado de trabalho informal
desqualificado de catador de lixo.
A conscientização acerca da necessidade de reciclar para preservar o meio ambiente,
mantendo-o acessível para as futuras gerações encontra-se presente nas metas desenvolvidas
pelas agendas globais, as quais buscam condições eficientes para a implementação de uma
política de governo pautada no desenvolvimento sustentável.
Em suma, o processo de reciclagem de produtos sólidos constitui-se em um dos mais
eficientes métodos de sustentabilidade, na medida em que apresenta resultados econômicos,
sociais sanitários e ambientais satisfatórios.
173
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
De acordo com a Cartilha elaborada pelo Instituto Brasileiro de Administração
Municipal – IBAM (2004), várias são as formas de processamento e disposição final
aplicáveis ao lixo urbano:
 Compactação: refere-se ao processamento que reduz o volume inicial de
lixo, favorecendo posteriormente transporte e acomodação final.
 Trituração: Incide na diminuição da granulometria, ou seja, na divisão
controlada dos resíduos, por meio do emprego de moinhos trituradores,
objetivando atenuar a sua quantidade e beneficiar o seu tratamento e/ou
disposição final.
 Incineração: Consiste na queima controlada do lixo em fornos projetados
para transformar totalmente os resíduos em material inerte, propiciando
concomitantemente uma redução de volume e de peso, considera-se do ponto
de vista sanitário um processo extraordinário.
 Aterro (sanitário e controlado): Com exatidão, pondera-se como um
método excepcional de disposição final propriamente dito. Em sendo assim,
incide basicamente na compactação dos resíduos em camadas sobre o solo;
posteriormente o seu recobrimento com uma camada de terra ou outro
material inerte; e por fim a adoção de procedimentos para proteção do meio
ambiente.
 Compostagem: Esse procedimento é empregado para degeneração do
material orgânico existente no lixo, sob condições apropriadas, tencionando
impetrar um composto orgânico para utilização na agricultura.
 Reciclagem:
Essa
metodologia
tem
um
destaque
mundial,
e
concomitantemente uma aceitação ao passo que proporciona benefícios
econômicos, sociais, sanitários e ambientais.
Dentre as formas de processamento e destinação do lixo produzido no âmbito dos
municípios, evidente que o método de reciclagem é o que melhor se amolda aos objetivos da
política ambiental propagada pela Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (nº 6.038/81),
Constituição Federal de 1988 e demais princípios formulados nos eventos internacionais em
que a problemática da crise ambiental ocupa destaque prioritário na pauta de discussões.
Os catadores de lixo, que alimentam esse importante setor da informalidade são tidos
como verdadeiros agentes ambientais, representações vivas da preservação da natureza e
174
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
sustentabilidade do planeta. Não obstante a figura de destaque que este ator social representa
para o futuro do planeta, apresenta-se contraditória a constatação acerca da realidade social
por eles vivenciada, em que os predomina a marginalização, exclusão e abandono de uma
sociedade em que o lucro está acima de qualquer expectativa de vida.
3 ESTIGMATIZAÇÃO SOCIAL DA FUNÇÃO DE CATADOR
A função de catador de materiais sólidos é alvo, muitas vezes, de variadas formas de
exclusão, desde aquela provocada pelos membros da sociedade até a do mercado de trabalho,
fazendo com que o trabalho com o lixo seja a última alternativa de fonte de renda disponível
em virtude das suas condições pessoais. Dessa forma, cabe, neste momento, apontar as formas
de exclusão presentes na função de catadores de lixo.
A ideia de exclusão social é repleta de significados, com variados alcances. É certo
que alguns autores a definem a partir da noção de pobreza apenas, outros partem de um
complexo de fatores para definir quem são os excluídos. Durante certo tempo a exclusão
social podia ser medida pelo simples “não ter”, ou seja, não ter acesso aos bens e as demais
necessidades do ser humano. No entanto, a exclusão resulta de um processo mais amplo e
complexo ao longo do tempo, que supera o simples “não ter”, assumindo características de
natureza política e econômica, “fazendo com que alguns segmentos sejam algo porque têm,
enquanto outros não sejam porque não têm e, possivelmente, jamais serão, pois nunca terão”
(POCHMANN et al, 2004, p. 29).
A exclusão social manifesta-se crescentemente como um fenômeno
transdisciplinar que diz respeito tanto ao não acesso de bens e serviços
básicos como à existência de segmentos sociais sobrantes de estratégias
restritas de desenvolvimento sócio-econômico, passando pela exclusão dos
direitos humanos, da seguridade e segurança pública, da terra, do trabalho e
da renda suficiente (POCHMANN et al, 2004, p. 33).
Assim, essas formas de exclusão, chamadas de “velha” e “nova” exclusão social
subsistem e contribuem para a formação da complexidade e das múltiplas facetas da exclusão
na sociedade brasileira. Sendo que a primeira é entendida como “a forma de marginalização
dos frutos do crescimento econômico e da cidadania, expressa pelos baixos níveis de renda e
escolaridade” (POCHMANN et al, 2004, p. 43), incide, particularmente, sobre os imigrantes,
analfabetos, mulheres, famílias numerosas e a população negra. Por outro lado, a “nova
175
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
exclusão” amplia os sujeitos sociais envolvidos, bem como as suas formas de manifestação
que agora inclui as esferas da cultura, economia e política. Nesta última “atinge segmentos
sociais antes relativamente preservados do processo de exclusão social, tais como jovens com
elevada escolaridade, pessoas com mais de 40 anos, homens não negros e famílias
monoparentais” (POCHMANN et al, 2004, p. 49).
Diante das mudanças estruturais ocorridas nas últimas décadas, principalmente no
campo econômico, fez com que a sociedade moderna traçasse um movimento que partiu de
um modelo inclusivo de estabilidade e homogeneidade para um excludente de mudança e
divisão.
A transição da modernidade à modernidade recente pode ser vista como um
movimento que se dá de uma sociedade inclusiva para uma sociedade
excludente. Isto é, de uma sociedade cuja tônica estava na assimilação e na
incorporação para uma que separa e exclui. (YOUNG, 2002, p. 23).
No mundo moderno recente, segundo Jock Young, a exclusão se dá em três níveis:
exclusão econômica dos mercados de trabalho, exclusão social entre pessoas na sociedade
civil, e nas atividades excludentes sempre crescentes do sistema de justiça criminal e da
segurança privada (2002, p. 11). É certo que neste ensaio, analisaremos as duas primeiras,
bem como a possibilidade da chamada “inclusão marginal” defendida por José de Souza
Martins.
3.1 EXCLUSÃO PROMOVIDA PELO MERCADO DE TRABALHO
Presenciamos, nas últimas décadas, o abandono do chamado “Estado-social”. Aos
poucos o Estado foi deixando de lado a sua função de promoção do bem estar coletivo para
que os próprios cidadãos adquirissem os bens necessários para a sua vida digna com o
trabalho. No entanto, as diversas intempéries na economia, o advento do neoliberalismo
econômico, onde a figura do poder público fica limitada, as condições econômicas passaram a
ditar o ritmo de crescimento e desenvolvimento da sociedade na mesma proporção que
influencia a qualidade de vida dos trabalhadores.
Neste quadro, o mercado objetiva apenas o lucro e não a qualidade de vida dos seus
trabalhadores. Não há preocupação com a massa operária, pois esta é abundante e se encontra
sedenta por uma ocupação o que provoca baixos salários, poucas garantias e baixa qualidade
de vida.
176
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Mesmo com estas condições de trabalho, muitos são deixados à margem de qualquer
ocupação formal, sendo relegados aos empregos informais ou nem mesmo estes últimos. A
condição social da grande massa de trabalhadores piora e são criados verdadeiros fossos na
sociedade quando estes são colocados na periferia social, sem acesso a uma qualidade de vida
digna.
Diante deste quadro, surgem os catadores de lixo. Pessoas, no mais das vezes, sem
qualquer forma de instrução que enxerga nos restos dos núcleos centrais da sociedade a única
oportunidade de sobrevivência e sustento.
Assim, estes trabalhadores estão relegados aos extremos da esfera social, bem como
encontram-se nos porões das relações de trabalho, entregues à absoluta informalidade.
Neste momento, surge para o Estado a função de intervir na economia a fim de
propiciar a estes flagelados do mercado de trabalho o seu retorno ou condições para que
retornem, pois, no mais das vezes, são despreparados e com baixa capacitação técnica.
Este cenário é fruto de uma construção histórica. Ainda no século XIX ocorreu o
clímax da migração dos trabalhadores rurais para as cidades, onde eram empregados nas
indústrias têxteis. Com a introdução de máquinas nas linhas de produção a necessidade de
mão-de-obra foi diminuindo colocando para fora das fábricas uma legião de trabalhadores,
aumentando o desemprego industrial.
Com a modernidade, em especial, a partir da segunda metade dos anos 70, quando
começa a se delinear o período pós-fordista da economia, esse paradigma materialista é
retomado.
Com isso, o conceito de exclusão social integra a dureza e o drama das
formas estruturais de desqualificação societal, como se constata tanto no que
diz respeito ao fordismo e à marginalização social de certos grupos como no
pós-fordismo, na medida em que gera formas novas de desigualdade e de
diferenciação. (STOER, MAGALHÃES E RODRIGUES, 2004, P. 27)
Com a reestruturação do capitalismo, pós crise de 1929, já começava a dar seus
primeiros sinais, especialmente com o aumento do desemprego, conseqüência da expulsão de
uma larga fatia do trabalho desqualificado do setor industrial. Estes fatores geraram o
chamado “surplus population, isto é, uma força de trabalho em excesso no que tange à
capacidade de absorção do mercado de trabalho” (GIORGI, 2006, p. 48). Como a economia
moderna não é capaz de absorver em suas linhas de produção essa massa de trabalho
escassamente ou nada qualificada, restou apenas situações de subemprego e de informalidade,
tal como a função de catadores de lixo.
177
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Afrânio Silva Jardim afirma que “não podemos aceitar que, por trás de uma fria
racionalidade econômica, que se costuma chamar de neoliberal, esconda-se toda uma
poderosa concepção que reduz a grandeza do homem e da mulher à sua capacidade de gerar
renda” (2007, p. XIV).
Dessa forma, "a sociedade deve se modernizar revolucionando suas relações
arcaicas, ajustando-as de acordo com as necessidades do homem, e não de acordo com as
conveniências do capital" (MARTINS, 1997, p. 38), com isso deve-se buscar uma equação
equilibrada entre trabalho e livre iniciativa, de modo que esta, ao buscar o lucro, não coloque
o exercício daquele condicionado à exploração do homem.
3.2 EXCLUSÃO DECORRENTE EM VIRTUDE DE POSIÇÃO SOCIAL
É certo que a sociedade é dividida em classes, e assim sempre o foi como remontam
os exemplos histórios: clero, burguesia e plebe; senhores feudais e vassalos; dentre outros. Na
lição de Chauí,
As classes sociais não são coisas nem idéias, mas são relações sociais
determinadas pelo modo como os homens, na produção de suas condições
materiais de existência, se dividem no trabalho, instauram formas
determinadas da propriedade, reproduzem e legitimam aquela divisão e
aquelas formas por meio das instituições sociais e políticas, representam para
si mesmos o significado dessas instituições através de sistemas determinados
de idéias que exprimem e escondem o significado real de suas relações. As
classes sociais são o fazer-se classe dos indivíduos em suas atividades
econômicas, políticas e culturais. (1980, p. 21).
O ideal é que as vantagens de toda uma sociedade fossem distribuídas
equitativamente para todos os seus membros, sem quaisquer distinções. No entanto, não é o
que se demonstra a atual estrutura social, onde pequenos setores detém os maiores privilégios
ao passo que os maiores setores quase nada possuem. Beccaria já apontava que “numa reunião
de homens, percebe-se a tendência contínua de concentrar no menor número os priviégios, o
poder e a felicidade, e só deixar à maioria miséria e debilidade” (BECCARIA, 2008, p. 15).
Com o desiquilíbrio de privilégios e oportunidades são criados abismos entre grupos
dentro da sociedade. Esses grupos tendem a se afastar deixando ainda mais evidente a sua
separação. Ana Cristina Brito Arcoverde, no ensaio Manifestações da Questão Social no
Brasil, expõe que
178
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
o Brasil, segundo Pochmann (2003), detém a terceira desigualdade de renda
dentre 162 países do mundo. É até mesmo pior que a África do Sul do
aparthaid. Dez por cento dos ricos ganham cinqüenta vezes mais que os
10% mais pobres e compartilham 1% apenas da riqueza socialmente
produzida e acumulada; 20% da população apresentam renda per capita
acima de R$ 540,00 reais e 25% dos brasileiros vivem em condições
precárias, sem renda, emprego, acesso à educação, acumulando
desigualdades não só de renda, mas política, social, cultural, moral e
simbólica. (ALMEIDA, 2006, p. 33).
É certo que a estratificação em classes é a principal forma de divisão na sociedade,
fazendo com que certos locais sejam destinados apenas a certos segmentos, excluindo-se
outros. Neste ponto, Teresa Pires do Rio Caldeira afirma que os enclaves fortificados,
entendidos como condomínio residenciais, comerciais e shoppings centers, atraem aqueles
que temem a heterogeneidade social dos bairros urbanos mais antigos, criando dentro de suas
fortalezas um espaço “semipúblico”, mas que é fechado com acesso controlado
privativamente com a finalidade de que não ocorra a interação entre os grupos sociais
diversos (2000, p. 11-12).
Dessa forma, aqueles que estão relegados ao trabalho informal, em especial os
catadores de resíduos, são relegados aos espaços periféricos das cidades, nos subúrbios, longe
dos centros urbanos.
3.3. EXCLUSÃO SOCIAL OU INCLUSÃO MARGINAL?
Quando se fala em exclusão social simultaneamente se fala em inclusão social.
Assim, “a inclusão social e a exclusão são conceptualizadas como duas entidades diferentes,
nas quais o objetivo é produzir inclusão social e eliminar a exclusão social” (STOER,
MAGALHÃES e RODRIGUES, 2004, p. 27).
É comum atribuir-se todos os problemas sociais “a essa coisa vaga e indefinida a que
chamam exclusão, como se a exclusão fosse um deus-demônio que explicasse tudo. Quando,
na verdade, não explica nada”. Na verdade, seu conceito é “‘inconceitual’, impróprio, e
distorce o próprio problema que pretende explicar” (MARTINS, 1997, p. 16 e 27). Muitas
vezes a palavra exclusão é diretamente ligada à idéia de pobreza, o que não é totalmente
incorreto, mas não é a única acepção da palavra.
José de Souza Martins na obra “Exclusão social e a nova desigualdade” afirma que
não existe exclusão e que, hoje, está havendo uma certa “fetichização” desta ideia, sendo certo
que ocorre uma contradição, consubstanciada em “vítimas de processos sociais, políticos e
179
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
econômicos excludentes”; existe, na verdade, “o conflito pelo qual a vítima dos processos
excludentes proclama seu inconformismo, seu mal-estar, sua revolta, sua esperança, sua força
reivindicativa e sua reivindicação corrosiva” (1997, p. 14).
[...] quer dizer que a exclusão é apenas um momento da percepção que cada
um e todos podem ter daquilo que concretamente se traduz em privação:
privação de emprego, privação de meios para participar do mercado de
consumo, privação de bem-estar, privação de direitos, privação de liberdade,
privação de esperança. (MARTINS, 1997, p. 18)
De acordo com a passagem citada, onde a exclusão é traduzida em privações de
várias formas, é possível afirmar que algum indivíduo é totalmente excluído na sociedade
atual? Estamos inseridos em uma política econômica capitalista, onde a comercialização de
bens é seu pilar onde se faz necessário a presença cada vez maior de consumidores. Com base
neste panorama torna-se prejudicada a afirmação de que o modelo econômico-social é
excludente, sendo certo que ocorre, na verdade, uma inclusão marginal.
Para José de Souza Martins, “rigorosamente falando, só os mortos são excluídos, e
nas nossas sociedades a completa exclusão dos mortos não se dá nem mesmo com a morte
física; ela só se completa depois de lenta e complicada morte simbólica” (1997, p. 27).
Dessa forma, não há indivíduos totalmente excluídos. Há níveis de inclusão ou uma
inclusão marginal que ocorrem em vários momentos quando entramos em um ciclo de
exclusão para uma posterior inclusão, onde saímos de uma determinada situação ou status e
somos submetidos a uma outra forma.
O capitalismo na verdade desenraiza e brutaliza a todos, exclui a todos. Na
sociedade capitalista essa é uma regra estruturante: todos nós, em vários
momentos de nossa vida, e de diferentes modos, dolorosos ou não, fomos
desenraizados e excluídos. É próprio dessa lógica de exclusão a inclusão. A
sociedade capitalista desenraiza, exclui, para incluir, incluir de outro modo,
segundo suas próprias regras, segundo a sua própria lógica. (MARTINS,
1997, p. 32).
O problema se encontra nesta forma de posterior inclusão. Esta fase de transição
entre a exclusão e a inclusão passou sem ser notada por muito tempo, mas, ultimamente, salta
os olhos este período em que parcela da população encontra-se de alguma forma excluída.
Esta notoriedade contemporânea se deve ao tempo desta fase, o que antes era um breve
período de tempo, hoje não o é. Agora, o tempo em que um trabalhador, por exemplo, passa a
procurar um novo trabalho se tornou excessivamente longo e quando encontra uma forma de
180
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
inclusão, esta implica uma certa degradação, ou seja, encontra uma situação normalmente pior
daquela que se encontrava.
A sociedade moderna está criando uma grande massa de população sobrante,
que tem pouca chance de ser reincluída nos padrões atuais do
desenvolvimento econômico. Em outras palavras, o período de passagem do
momento da exclusão para o momento da inclusão está se transformando
num modo de vida, está se tornando mais do que um período transitório.
(MARTINS, 1997, p. 33 – destaque no original).
Com isso, além do tempo para a reinclusão temos as condições que esta ocorre.
Como citado, acaba ocorrendo de forma pior daquela situação da qual a pessoa se encontrava.
Dessa forma, após esta fase de transição há a readequação e reinclusão no plano econômico,
ou seja, a pessoa passa a ter renda suficiente para sobreviver, mas o que não ocorre, muitas
vezes no plano social. “A pessoa não se reintegra numa sociabilidade ‘normal’. A
reintegração não se dá sem deformações no plano moral; a vítima não consegue se reincluir na
moralidade clássica, baseada na família, num certo tipo de ordem” (MARTINS, 1997, p. 33).
Este processo forma uma “sociedade paralela que é includente do ponto de vista
econômico e excludente do ponto de vista social, moral e até político” (MARTINS, 1997, p.
34). Diante do exposto, voltamos a idéia inicial de que não há pessoa totalmente excluída na
sociedade, na verdade, encontramos níveis de inclusão.
Diante deste panorama, os catadores são aceitos no momento em que servem àquela
sociedade ao retirar dos seus olhares o lixo produzido, bem como no momento em que estas
mesmas pessoas transformam-se em consumidores, mesmo que dentro de uma realidade de
despesa modesta, ao adquirir produtos ou bens de consumo. De outro vértice, subsiste o
estigma social pelo trabalho que realizam.
4. CONCLUSÃO
Diante do atual contexto socioeconômico, delineado pelas inúmeras mudanças
políticas, econômicas, culturais e ambientais decorrentes do processo de industrialização e
globalização, a sociedade moderna assumiu uma nova feição quanto aos seus valores e
princípios éticos. Virtudes que antes realçavam o caráter do ser humano, tal como a dignidade
e solidariedade tornam-se cada vez mais negligenciados e substituídos pelo anseio de
consumo excessivo e desinteresse para com os problemas alheios.
181
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Atualmente, a importância do homem é medida pela lógica do mercado através de
sua capacidade de gerar riquezas, relegando ao segundo plano a condição de vida digna do ser
humano. Aqueles que se dedicam à coleta de resíduos são estigmatizados pela sociedade em
virtude da ausência de condição econômica e de posição na estrutura social. No entanto, esta
mesma sociedade que exclui e estigmatiza, tolera, às vezes implicitamente, essas mesmas
pessoas pelo trabalho que é realizado.
Neste contexto, a sociedade aceita e até estimula no momento em que aqueles
trabalhadores retiraram dos seus olhares o lixo produzido, bem como no momento em que
estas mesmas pessoas transformam-se em consumidores, mesmo que dentro de uma realidade
de despesa modesta, ao adquirir produtos ou bens de consumo. Por outro lado, subsiste o
estigma social pelo trabalho que realizam, principalmente nos grandes centros quando a
condução de carroças ou carrinhos (tracionados pela força motriz humana, na imensa maioria
das vezes) acaba por tumultuar trânsito ou ocupar alguma vaga destinada à estacionamento de
veículos.
Com isso, o discurso do meio ambiente equilibrado e sustentável, defendido por
todos, muitas vezes deixa à margem a preocupação com as camadas mais débeis da sociedade
que trabalham em condições degradantes, não por preocupação da sobrevivência ambiental,
mas sim da sua própria.
Dessa forma, a sustentabilidade ambiental, em parte proporcionada pela reciclagem
de resíduos sólidos realizada pelos catadores, é fruto de uma sobrevivência humana e não de
uma política organizada e voltada para tal fim.
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183
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A SOCIEDADE DE RISCO E A NECESSIDADE DE REDISTRIBUIÇÃO DOS ÔNUS
AMBIENTAIS SOB O ASPECTO DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO E DO
MÍNIMO ECOLÓGICO-SUSTENTÁVEL
THE RISK SOCIETY AND NEED FOR REDISTRIBUTION OF THE ENVIRONMENTAL
RESPONSIBILITIES UNDER THE ASPECT OF THE WORK ENVIRONMENT AND
THE MINIMUM ECOLOGICAL-SUSTAINABLE
Pedro Miron de Vasconcelos Dias Neto1
Emmanuel Teófilo Furtado2
RESUMO: O presente artigo analisa a necessidade de redistribuição do ônus ambiental sob o
aspecto do meio ambiente do trabalho como instrumento eficaz de tutela do mínimo
ecológico-sustentável, o qual se encontra fortemente vinculado à noção de mínimo existencial
e com a própria dignidade humana. Utiliza como referencial teórico o contexto da sociedade
de risco, que possui como um dos seus principais expoentes o sociólogo alemão Ulrich Beck,
e que se caracteriza pela reflexividade ou efeito-espelho, em que os danos causados ao meio
ambiente são redirecionados para o próprio meio social. Nesse cenário, os princípios da
prevenção e da precaução assumem especial destaque, posto que objetivem a adoção de
medidas preemptivas, que necessariamente se colocam em momento anterior à ocorrência do
dano ambiental. Em seguida, perscruta-se a repartição dos ônus ambientais impostos pela
Constituição Federal de 1988, observando-se flagrante desproporcionalidade em face de as
atividades preventivas serem suportadas basicamente pelo Poder Público, quando se compara
aos deveres constitucionais ambientais impostos aos agentes privados. Adiante, a pesquisa
direciona-se ao meio ambiente do trabalho, pois se trata de espaço “privilegiado” à ocorrência
dos perigos invisíveis e imprevisíveis geridos pela própria sociedade mundial do risco.
PALAVRAS-CHAVE: Sociedade de risco; Ônus Ambiental; Meio Ambiente do Trabalho;
Mínimo ecológico; Sustentabilidade.
ABSTRACT: This article examines the need for redistribution of the environmental
responsibilities under the aspect of the work environment as an effective instrument of
protection of minimum ecological-sustainable, which is strongly linked to the notion of
minimum existential and human dignity. Uses the theoretical context of the risk society,
which has as one of its leading exponents the German sociologist Ulrich Beck, and is
characterized by reflexivity or mirror effect, where the damage caused to the environment are
redirected to the medium itself social. In this scenario, the principles of prevention and
precaution are particularly prominent, aimed at the adoption of preemptive measures, which
necessarily arise just prior to the occurrence of environmental damage. Then, peering up the
distribution of environmental responsibilities imposed by the 1988 Federal Constitution,
observing striking disproportionality in the face of preventive activities primarily supported
solely by the Government, when comparing the environmental constitutional duties imposed
1
Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Especialista em Direito
Público com habilitação em Direito Previdenciário pela Universidade de Brasília (UnB). Procurador Federal da
Advocacia-Geral da União (AGU).
2
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em Direito Constitucional pela
Universidade Federal do Ceará (UFC). Juiz Titular do Trabalho (TRT-7ªRegião).
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
on private agents. Further, the research is directed to the work environment, because it is
space "privileged" to the occurrence of unseen dangers and unpredictable managed by the
world risk society.
KEYWORDS: Risk Society; Environmental Responsibilities; Work Environment; Minimum
ecological; Sustainability.
INTRODUÇÃO
Após os bombardeios atômicos em Hiroshima e Nagasaki, o acidente nuclear de
Chernobyl e o recente desastre nos reatores de Fukushima, a humanidade assiste estarrecida
ao ressurgimento do fantasma nuclear e se vê vítima e refém do próprio progresso. A antiga
crença inabalável no avanço da ciência e no contínuo aperfeiçoamento dos meios produtivos
foi substituída pelo temor em face destas novas forças destrutivas, que por vezes escapam por
completo a qualquer tentativa de controle. A criatura parece revoltar-se contra o próprio
criador.
Eis aí os contornos gerais do que a moderna doutrina pactuou denominar de
sociedade de risco, em que os meios produtivos despontam como os principais responsáveis
pela criação das ameaças e riscos com os quais a humanidade atualmente se depara. Nesse
cenário, torna-se imperioso proceder a uma nova repartição dos ônus ambientais, de modo a
transferir algumas responsabilidades antes atribuídas exclusivamente ao Estado para os
agentes produtivos privados. Imperioso, portanto, um novo enfoque constitucional da matéria,
notadamente do artigo 225, §§, da Carta Política.
O incremento na importância da proteção ambiental não decorreu tão somente de
razões factuais, a exemplo dos desastres relatados, mas também jurídicas, face à elevação do
meio ambiente à condição de direito fundamental, expressamente consignado na Constituição
de 1988. Observa-se uma aproximação entre o meio ambiente e o princípio da dignidade
humana, em que o componente ambiental torna-se um aspecto imprescindível no resguardo do
mínimo existencial, como um núcleo intangível de proteção, promoção e respeito.
Apesar de o risco encontrar-se em todos os ambientes onde o homem também se
encontra inserido, vislumbra-se o meio ambiente do trabalho como ambiente propício à sua
ocorrência, sendo produzido e gerido pela própria sociedade pós-industrial, isto é, a sociedade
reflexiva. Neste contexto, o mínimo ecológico-sustentável sob a égide da dignidade da pessoa
do trabalhador desdobra-se da noção do mínimo existencial, pois se constitui em garantia
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
essencial para a presente e futuras gerações em prol de um meio ambiente do trabalho
adequado, salubre e seguro e do respeito irrestrito à saúde e à vida humana.
1. A SOCIEDADE PÓS-MODERNA: SOCIEDADE DE RISCO
1.1. Traços principais da sociedade de risco
Desde que o homem viu-se lançado na história, foi compelido a conviver com o
imprevisível; com o acaso; com o aleatório. A natureza, em toda a amplitude e força de seus
elementos, deslumbrou e atemorizou o homem pré-histórico, representando uma constante
fonte de riscos e ameaças. Esta sensação de impotência do homem diante da natureza foi um
dos principais fatores a promover a evolução humana, que tinha como parâmetro a persecução
de duas finalidades primitivas, quais sejam: o desenvolvimento de meios para optimizar o
atendimento às necessidades básicas e a proteção contra as ameaças à sobrevivência da
espécie.
Nesta perspectiva, o próprio surgimento da religião decorreu, em grande medida, da
necessidade humana de tentar estabelecer um vínculo com as forças naturais, diante das quais
o homem possuía irrisório controle. Assim, ao instituir cultos aos diversos deuses; erguer-lhes
altares; prestar-lhes honrarias; orações; oferendas e sacrifícios; o homem buscava atrair para
si a graça das divindades, e, consequentemente, garantir alguma proteção contra as catástrofes
naturais e os eventos cataclísmicos 1.
Modernamente, com o desenvolvimento da filosofia racionalista e o refinamento dos
métodos de experimentação, o pensamento científico assume posição de vanguarda,
suplantando a religião como o principal meio para compreensão dos fenômenos naturais, além
de elaborar modelos e padrões de previsibilidade 2. A assunção do conhecimento científico
sob a égide da razão é comentada por José Rubes Morato Leite, que ressalta os possíveis
percalços do jugo à natureza imposto pela ação humana. Afirma o Autor que:
A razão humana situa o ser humano em uma irrefragável posição de
proeminência sobre a natureza. O fato de o ser humano não agir tão
instintivamente como os demais seres, podendo decidir a maioria de
suas ações, faz com que possa subjugar a natureza, embora não
devesse, transformando-a de acordo com as suas necessidades. Não é
à toa que o destino de todo o Planeta está dependendo de decisões
humanas, [...]. A proeminência humana (fruto de sua razão) possibilita
ao ser humano a escolha de seu modus vivendi. É aí que reside toda a
problemática ambiental, [...]. O modo de vida humano, baseado,
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
preponderantemente, em valores econômicos, causou impactos no
ambiente nunca vivenciados em toda a história 3.
Por conseguinte, com a consolidação do sistema de produção capitalista,
potencializado exponencialmente pelo advento da revolução industrial, o homem passa a
intervir diretamente sobre a dinâmica natural, e a ação antrópica assume a vanguarda como
um dos principais fatores da alteração do equilíbrio ecológico. Neste sentido, Ulrich Beck,
sociólogo alemão, assevera acerca da impotência do sistema industrial mundial diante da
natureza industrialmente integrada e contaminada, em um regime de progressiva dependência
e destruição ordenada nos séculos XIX e XX, consoante se segue:
A oposição entre natureza e sociedade é construção do século XIX,
que serve ao duplo propósito de controlar e ignorar a natureza. A
natureza foi subjugada e explorada no final de século XX e, assim,
transformada de fenômeno externo em interno, de fenômeno
predeterminado em fabricado. Ao longo de sua transformação
tecnológico-industrial e de sua comercialização global, a natureza foi
absorvida pelo sistema industrial. Dessa forma, ela se converteu, ao
mesmo tempo, em pré-requisito indispensável do modo de vida no
sistema industrial. Dependência do consumo e do mercado agora
também significam um novo tipo de dependência da natureza, e essa
dependência imanente da natureza em relação ao sistema mercantil se
converte, no e com o sistema mercantil, em lei do modo de vida na
civilização industrial4.
Em seguida, Beck arremata que, “[...] Assim como no século XIX a modernização
dissolveu a esclerosada sociedade agrária estamental e, ao depurá-la, extraiu a imagem
estrutural da sociedade industrial, hoje a modernização dissolve os contornos da sociedade
industrial e, na continuidade da modernidade, surge uma outra configuração social” 5.
Juarez Freitas, ao discorrer sobre o real perigo que corre a espécie humana, sobretudo
em face do modus de vida moderno (“estilo devorante” e “insaciável”), propõe a formação de
uma sociedade do autoconhecimento, conforme se segue:
Provavelmente, trata-se da primeira vez na história, salvo risco de
guerra nuclear, que a humanidade pode simplesmente inviabilizar a
sua permanência na Terra, por obra e desgraça, em larga escala, do
seu estilo devorante. O alerta está acionado. [...] Nessa medida, o
diagnóstico não deixa maiores dúvidas: muitos muros mentais terão de
cair, dado que a cultura da insaciabilidade é autofágica e se destrói,
como atesta o perecimento de várias civilizações. Para sair da rotina
insana, a presente sociedade de conhecimento terá de se tornar uma
sociedade do autoconhecimento. Somente assim experimentará
chances objetivas de fazer frente à gravidade dessas múltiplas crises
que integram entre si. Crise do aquecimento global, do ar irrespirável,
187
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
da desigualdade brutal de renda, da favelização incontida, da
tributação regressiva e indireta, da escassez de democracia
participativa, das doenças facilmente evitáveis, d afalta de paternidade
consciente, do stress hídrico, da queimada criminosa, assim por
diante6.
Concomitantemente a estas múltiplas crises que intregram entre si, sobretudo as de
natureza ecológica-ambiental, acrescentam-se: a escalada do terrorismo; o desemprego
estrutural; o tráfico internacional de drogas e armamentos; a exploração sexual e o tráfico de
mulheres e crianças; dentre outros. Frente a esse novo padrão de demandas, tanto a ciência
como o Estado mostram-se obsoletos e incapazes de fornecer respostas minimamente
adequadas.
Neste sentido, Fábio Nadal afirma que a pós-modernidade, originada da desilusão
humana com o racionalismo típico da sociedade moderna, impõe ao Direito o desafio de
combinar os subsídios trazidos pela consciência crítica do Estado com a tarefa de elaborar
uma dogmática capaz de transferir para a linguagem da juridicidade os pressupostos de
legitimidade que lhe sirvam de suporte7.
Desta forma, o quadro acima esboça alguns dos elementos que caracterizam um novo
modelo de sociedade, que surge como um desdobramento da sociedade tipicamente industrial:
a denominada sociedade de risco, no afirmar de Ulrich Beck que,
O conceito de „sociedade industrial‟ ou „de classes‟ (na mais ampla
vertente de Marx e Weber) gira em torno da questão de como a
riqueza socialmente produzida pode ser distribuída de forma
socialmente desigual e ao mesmo tempo „legítima‟. Isto coincide com
o novo paradigma da sociedade de risco, que se apoia
fundamentalmente na solução de um problema similar e, no entanto,
interiramente distinto. Como é possível que as ameaças e riscos
sistematicamente coproduzidos no processo tardio de modernização
sejam evitados, minimizados, dramatizados, canalizados e, quando
vindos à luz sob a forma de „efeitos colaterais latentes‟, isolados e
redistribuídos de modo tal que não comprometam o processo de
modernização e nem as fronteiras do que é (ecológica, medicinal,
psicológica ou socialmente) „aceitável‟? 8.
Tiago Antunes, professor da Universidade de Lisboa, afirma que se poderia
questionar a originalidade da constatação de Ulrich Beck e a sua respectiva adequação ao
nosso tempo, haja vista que “sociedade de risco” não é de agora, pois sempre existiu, ou pelo
menos existe há muito tempo. Apesar disto, reconhece o Autor que há uma diferença entre os
188
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
riscos de antigamente e os riscos atuais, ou seja, trata-se de uma diferença quantitativa – mais
riscos – mas também qualitativa – riscos mais intensos e de consequências mais vastas9.
Outrora, na sociedade tipicamente industrial, os focos de perigo e as suas possíveis
consequências estavam espacialmente localizados e possivelmente identificados. Na
sociedade de risco, pós-moderna e pós-industrial, os riscos têm uma escala planetária, isto é,
podem estender a qualquer parte do globo e não há sítio algum que se possa dizer imune à
poluição ou a uma eventual catástrofe ecológica 10.
1.2. A sociedade de risco: sociedade reflexiva
O momento atual caracteriza-se como uma segunda modernidade, ou seja, uma
espécie de ruptura ou desdobramento no seio da própria modernidade, doravante denominada
sociedade reflexiva. Tal denominação justifica-se pelo fato de que a atual sociedade do risco
gesta os próprios conflitos que, posteriormente, voltar-se-ão contra si mesma. Eis um cenário
paradoxal: a modernidade semeia as causas de sua própria destruição 11.
Na mesma direção, Maria Cristina César de Oliveira, citando Zygmunt Bauman,
registra o fenômeno da autogestão dos riscos presente na modernidade reflexiva, traço
distintivo das sociedades pretéritas, conforme segue:
O mundo pretérito, explica Bauman, era um mundo que nada sabia de
necessidade ou conhecia de acidentes, simplesmente existia. Esse
mundo irreflexivo e indiferente apenas era conhecido em descrições.
Já a modernidade representa uma era em que a ordem do mundo, do
habitat humano, do “si-mesmo” individual, e a conexão desses três
elementos é refletida em seu interior. É um assunto de consideração,
interesse e de uma prática que é consciente de si mesma, consciente de
ser uma prática e do vazio que deixaria se se detivesse ou lhe
ocorresse uma erosão. Ordem e caos são os gêmeos modenos,
concebidos a partir do rompimento do mundo “ordenado por Deus” 12.
Adiante, para uma compreensão minimamente adequada do que seja a sociedade de
risco, perquire-se, necessariamente, pela dissecação do conceito de risco. Natascha
Trennepohl, comentando a definição trazida por Mary Douglas, afirma que, “Douglas
apresenta duas concepções de risco, podendo tanto ser entendido como um conceito estatístico
e definido como „frequência esperada de efeitos indesejados que nascem da exposição a um
contaminante‟ ou, ainda, tendo-se „o risco (R) como uma classe de produto da probabilidade
(P) do evento que regula a gravidade do dano (D)‟. Tais conceituações ressaltam duas das
principais características presentes na concepção de risco, quais sejam, o efeito negativo
189
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
advindo da sua concretização (o dano) e a ideia de probabilidade ligada à sua
materialização”13.
Já a professora da Universidade de Lisboa Carla Amado apresenta o conceito de
“risco” correlacionando-o ao conceito de “perigo”, ou seja, “normalmente o conceito de risco
surge em contraposição ao de perigo. O risco seria uma consequência do perigo, uma vez que,
tendo este último causas naturais, o Homem ver-se-ia forçado a desenvolver a técnica para
lhes fazer face. E da técnica nasceu o risco, [...]. Assim, o perigo tem causas naturais, o risco
tem causas humanas ou, talvez melhor pela negativa, não tem causas naturais” 14.
Morato Leite, comentando a definição de Anthony Giddens, afirma que “o risco é a
expressão característica de sociedades que se organizam sob a ênfase da inovação, da
mudança e da ousadia. De fato, nessas afirmações, questiona-se a própria prudência e cautela
da ciência em lidar com as inovações tecnológicas e ambientais, que, mesmo trazendo
benefícios, estão causando riscos sociais não mensuráveis” 15.
Neste diapasão, compreendido o conceito de risco, pode-se analisar como ele se
distribui no atual modelo de sociedade. Quando se fala em uma sociedade de risco, transmitese a ideia de que o risco permeia e perpassa todo o agrupamento social, afetando a todos. É o
que permite diferenciar esta nova modalidade de risco dos exemplos clássicos, comumente
relacionados à dinâmica empresarial e às trocas mercantis de outrora (sociedade industrial),
em que o comerciante assumia os riscos de seu empreendimento, e caso este viesse a
desandar, seria o único a sofrer o revés.
Assim, Ulrich Beck afirma acerca da interpenetração de continuidade e ruptura no
exemplo da produção de riqueza e da produção de risco, confirmando-se o que se denomina
de “universalização do risco”. Afirma o Autor que, “[...] enquanto na sociedade industrial a
“lógica” da produção de riqueza domina a “lógica” da produção de riscos, na sociedade de
risco essa relação se inverte. Na reflexividade dos processos de modernização, as forças
produtivas perderam sua inocência. O acúmulo de poder do “progresso” tecnológicoeconômico é cada vez mais ofuscado pela produção de riscos. Estes somente se deixam
legitimar como “efeitos colaterais latentes” num estágio inicial. Com sua universalização,
escrutínio público e investigação (anticientífica), eles depõem o véu da latência e assumem
um significado novo e decisivo nos debates sociais e políticos. [...]”
16
. Desta forma, esse
novo padrão de riscos “universalizados” engendrados pelo desenvolvimento do método de
produção capitalista, reformulando o próprio conceito de modernidade, já não pode ser
reconduzido tão-somente à pessoa de seu produtor, mas, necessariamente, transbordará para
todos os demais segmentos sociais 17.
190
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Tem-se a ilação, portanto, que já não é possível aos cidadãos a tentativa de erguer
barreiras de proteção contra o risco de modo unicamente individualista, em nítida postura
omissiva e segregacionista. As possíveis respostas às diversas indagações perpassam pela
reformulação definitiva das estruturas clássicas da sociedade industrial, quais sejam ainda
assentadas na ideia de soberania absoluta dos Estados; Na crença inabalável na ciência e no
progresso; Na promoção da estratificação da sociedade; Assim como na necessidade de
criação de mecanismos de controle de índole social, política e econômica.
2. O DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE E O MÍNIMO
ECOLÓGICO-SUSTENTÁVEL
2.1. A jusfundamentalidade do meio ambiente na Constituição de 1988
No ano de 1972, a Conferência das Nações Unidas (ONU) sobre o Meio Ambiente
Humano18 abriu o precedente para os Estados começarem a reconhecer o meio ambiente com
o status de direito e dever fundamental, indispensável à condição satisfatória da vida, daí por
que o apelo aos governos e aos povos para que reúnam seus esforços para preservar e
melhorar o meio ambiente em benefício do Homem e de sua posteridade.
Por conseguinte, de acordo com a conhecida classificação de Karel Vasak 19, o direito
humano ao meio ambiente é considerado um direito de solidariedade ou de fraternidade,
portanto, de terceira geração ou dimensão 20. Assim, impõe-se aos Estados o respeito a
interesses individuais, coletivos e difusos.
No Brasil, consoante assevera Paulo Bonavides, a Constituição da República de 1988
representa o marco jurídico do rompimento com os paradigmas individualistas do Estado
Liberal até então predominantes no país, transmudando-se para a compreensão do Estado
Democrático de Direito – Estado Transformador21 - e, juntamente com este, a consagração de
valores de respeito à dignidade humana, à solidariedade e ao desenvolvimento humano. Sob
essa perspectiva, em seu artigo 225, caput, reconheceu o direito fundamental ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado como bem comum de todo o povo brasileiro.
Nesta perspectiva, afirma Canotilho que, “é por isso que se diz que o artigo 225 é, na
verdade, uma síntese de todos os dispositivos ambientais que permeiam a Constituição.
Síntese que não implica totalidade ou referência única. Em rigor, os fundamentos do art. 225
191
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
não estão ilhados, pois se ligam, de forma umbilical, à própria proteção à vida e saúde, à
salvaguarda da dignidade da pessoa humana e à funcionalização ecológica da propriedade” 22.
No entanto, os direitos fundamentais de terceira geração, assim como os direitos
sociais, econômicos e culturais, ainda carecem de concretização jurídica, mesmo quando
expressamente previstos nos textos constitucionais. Aliás, segundo Noberto Bobbio, o
problema basal em relação aos direitos do homem, atualmente, não é tanto justificá-los, mas
sim protegê-los23.
Por outro lado, o ordenamento jurídico, constitucional e legal, obriga uma
rearticulação do poder público e da sociedade, ao estabelecer uma série de princípios e regras
de como proceder para cumprir o dever de preservação ambiental, sob o apanágio dos
mandamentos ético-jurídicos esculpidos nos objetivos da República (art.3.º, da CF/88) –
cláusulas de erradicação das injustiças presentes – e da defesa do meio ambiente como
princípio geral da atividade econômica (art.170, inciso VI, da CF/88) 24.
Faz-se mister, portanto, uma reformulação do modelo de Estado de Direito, mediante
a incorporação de uma nova expressão: o Estado Socioambiental de Direito25, afirmando Ingo
Sarlet que, “para além de um bem-estar individual e social, as construções jurídicoconstitucionais caminham hoje no sentido de garantir ao indivíduo e à comunidade como um
todo o desfrute de um bem-estar ambiental, de uma vida saudável com qualidade ambiental, o
que se apresenta como indispensável ao pleno desenvolvimento da pessoa e ao
desenvolvimento humano no seu conjunto” 26.
Trata-se, na verdade, de aglutinar, sob uma mesma perspectiva político-jurídica, as
conquistas do Estado Liberal e do Estado Social. Dessa forma, o modelo de Estado
Socioambiental agrega os avanços dos modelos que o antecederam, incorporando a tutela dos
novos direitos transindividuais e, num paradigma de solidariedade humana, projetando a
comunidade do gênero humano num patamar mais evoluído de efetivação de direitos
fundamentais (especialmente dos novos direitos de terceira geração, como é o caso da
proteção ambiental) 27.
2.2. A sustentabilidade do mínimo ecológico como decorrência necessária do mínimo
existencial
No âmbito da teoria do mínimo existencial, Ricardo Lobo Torres afirma que, “há um
direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de
192
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
intervenção do Estado na via dos tributos (= imunidade) e que ainda exige prestações
positivas”, isto é, “sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade de
sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais da liberdade” 28.
Neste sentido, o mínimo existencial configurar-se-ia como direito de dupla face, isto
é, quer seja como direito subjetivo e no sentido de norma objetiva, quer seja compreendendo
os direitos fundamentais originários (direitos de liberdade), os direitos fundamentais sociais e
os direitos fundamentais de solidariedade (direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado), em sua expressão essencial, mínima e irredutível29.
Por conseguinte, a ideia de mínimo existencial refere-se umbilicalmente ao princípio
da dignidade da pessoa humana, que se trata de princípio já positivado em diversas
Constituições, notadamente após ter sido expressamente consagrado pela Declaração
Universal da ONU de 1948 30, logo depois das atrocidades ocorridas na Segunda Guerra
Mundial que se encerrou em 1945.
Outrossim, identifica-se uma nova dimensão conformadora do conteúdo do princípio
da dignidade da pessoa humana juntamente com as dimensões social, histórico-cultural,
dentre outras, qual seja: a dimensão ecológica 31. Contudo, para além da necessidade de
ampliação do mínimo existencial de modo a albergar a dimensão ecológica, imperioso
compreender esta a partir da noção de sustentabilidade, ideia intrinsecamente relacionada ao
caráter intergeracional do direito ao meio ambiente.
Conforme definição do vocábulo em dicionário 32, o adjetivo sustentável se refere
àquilo que é durável, estável, que tem condições para se manter ou conservar a longo prazo.
Quando se fala em desenvolvimento ou crescimento sustentável, refere-se a estratégias que
tenham em vista não somente os retornos ou ganhos imediatos, mas que permitam a
continuidade e perpetuação de um determinado modelo produtivo.
Juarez Freitas, em recente obra dedicada especificamente ao assunto, defende o que
denomina de sustentabilidade homeostática, em clara alusão à capacidade biológica que os
seres vivos possuem de atingir o equilíbrio interno. Eleva a sustentabilidade à condição de
princípio, atribuindo à sociedade e ao Estado o dever de assegurar, tanto no presente como no
futuro, o bem-estar físico, psíquico e espiritual dos cidadãos, como se percebe no seguinte
trecho:
[...] se chegou ao conceito de sustentabilidade, que, convém reprisar: é
o princípio constitucional que determina, independentemente de
regulamentação legal, com eficácia direta e imediata, a
193
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização
solidária do desenvolvimento material e imaterial, socialmente
inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético
e eficiente, no intuito de assegurar, preferencialmente de modo
preventivo e precavido, no presente e no futuro, o direito ao bem-estar
físico, psíquico e espiritual, em consonância homeostática com o bem
de todos 33.
Ademais, Freitas ressalta o caráter pluridimensional da sustentabilidade, visto que o
conceito não se prende apenas a um fator, mas depende da confluência de diversas dimensões,
tais como a social, ética, jurídico-política, econômica e a ambiental. Segundo a sua ótica, seria
errado ou, no mínimo, inadequado associar a sustentabilidade exclusivamente ao quesito
ambiental, o que negligenciaria todas as demais dimensões, que estão necessariamente
entrelaçadas34.
A partir de tal premissa, coadunam-se a existência tanto de uma dimensão social
quanto de uma dimensão ecológica como elementos integrantes do núcleo essencial do
princípio da dignidade da pessoa humana 35, sendo que somente um projeto jurídico-político
que contemple conjuntamente tais objetivos constitucionais atingirá um quadro compatível
com a condição existencial humana tutelada na nossa Lei Fundamental.
De igual modo, Peter Häberle afirma que os objetivos estatais do Estado Ambiental,
assim como do Estado Social, são, em seu conteúdo fundamental, consequências do dever
jurídico-estatal de respeito e proteção da dignidade humana, no sentido de uma "atualização
viva do princípio", em constante atualização à luz dos novos valores humanos que são
incorporados ao seu conteúdo normativo, o que acaba por exigir uma medida mínima de
proteção ambiental36.
Por outro lado, uma vez reconhecida a jusfundamentalidade do direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, identificando-se a dimensão ecológica incorporada ao
conteúdo do princípio da dignidade humana, fundamento normativo e axiológico do Estado
Democrático de Direito contemporâneo, forçoso reconhecer a existência de um mínimo
existencial socioambiental, coerente com o projeto jurídico, político, social, econômico e
cultural do Estado Socioambiental de Direito 37.
Adiante, decifrando terminologicamente os valores positivados no art. 225, caput,
CF/88: meio ambiente ecologicamente equilibrado e bem essencial à sadia qualidade de vida estes somente se tornam possíveis dentro dos padrões mínimos exigidos constitucionalmente
194
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
para o desenvolvimento pleno da personalidade humana, num ambiente natural com qualidade
ambiental38.
Desta maneira, no paradigma do Estado Socioambiental, além dos direitos
tradicionalmente identificados pela doutrina já consubstanciada no mínimo existencial
(moradia digna, saúde, alimentação, educação, dentre outros), faz-se mister a inclusão do
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para fins de uma sadia qualidade de vida
do cidadão.
No entanto, quando se fala em mínimo existencial em matéria ambiental e a
concretização destes direitos fundamentais, “o que se deve ter em mente é que o Estado deve
buscar ferramentas que efetivem ao máximo o direito fundamental ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, evitando, assim, um discurso minimalista, uma retórica
esdrúxula” 39.
3. A SOCIEDADE DE RISCO E A NECESSIDADE DE REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS
AMBIENTAL SOB O ASPECTO DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO
3.1. O reflexo da sociedade de risco sobre as questões ambientais: os princípios da
prevenção e da precaução
Notadamente nas questões ambientais, a justificativa para a escolha do referencial
teórico capitaneado por Ulrich Beck – Teoria da Sociedade de Risco - foi explicitada com
precisão por Morato Leite, afirmando que:
[...] tem o sentido de demonstrar ao público que a racionalidade
jurídica na esfera do ambiente ultrapassa um olhar técnico, dogmático
e monodisciplinar, havendo a necessidade de se adotarem noções
oriundas de outras áreas do saber, buscando com isso compreender a
crise ambiental através de uma visão transdisciplinar e de um enfoque
mais sociológico do risco. Acredita-se que, escapando da técnica e da
racionalidade jurídica tradicional, estar-se-á examinando temas
constitucionais de uma forma mais completa, considerando
principalmente as novas tendências trazidas pelas peculiaridades do
bem ambiental a ser protegido pelo Estado, Direito e Sociedade 40.
No mesmo sentido, Carla Amado Gomes ressalta a noção de “presente frágil” como
figura representativa da sociedade de risco, notadamente quando se trata de meio ambiente em
uma sociedade pós-industrial, na forma adiante:
195
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Já alguém, referindo-se à crise do ambiente, muito sugestivamente
definiu o futuro para que vivemos como um “futuro frágil”.
Infelizmente para aqueles que pensaram talvez não no tempo da nossa
vida, esse futuro aproxima-se vorazmente, tornando cada vez mais
frágil também o presente. [...] O “presente frágil” é o presente da
sociedade de risco, conceito introduzido pelo sociólogo alemão Ulrich
Beck em 1986, no seu livro Risikogesellschaft: Auf dem Weg in eine
andere Moderne. A sociedade pós-industrial trouxe consigo, além do
progresso ecnómico e social inerente aos avanços tecnológicos, uma
globalização do risco. O homem, qual aprendiz de feiticeiro,
transformou de tal forma o planeta – nomeadamente, através da acção
sobre os recursos naturais -, que perdeu o controle do processo,
criando um risco de destruição total41.
Ghersi, Lovece e Weingarten destacam o caráter multidisciplinar da temática
ambiental, ressaltando o potencial destrutivo do ambiente em face da ação antrópica, inclusive
os efeitos danosos além-fronteiras nacionais. Afirmam os Autores que, “afortunadamente,
existe una mayor conciencia sobre la necesidad de poner frenos a la acción devastadora y
degradante con que se ha tratado a la naturaleza y a las culturas. Cada día son más los
organismos que ha alertado de estos peligros, peligros que incluso trascienden los intereses
nacionales, ya que otros Estados pueden verse afectados por actividades con efectos nocivos
transfronterizos” 42.
Neste diapasão, a interferência da noção de sociedade de risco no disciplinamento
das questões ambientais pode ser percebida principalmente por meio dos princípios da
prevenção e da precaução, conforme ressalta Vasco Pereira da Silva no direito constitucional
português, conforme se segue:
A constituição portuguesa estabelece um conjunto de princípios
fundamentais em matéria de ambiente – como sejam o da prevenção, o
do desenvolvimento sustentável, o do aproveitamento racional dos
recursos, o do poluidor-pagador-, [...]. Um dos princípios
constitucionais fundamentais, que sem ser privativo do Direito do
Ambiente, aí assume grande relevância e especificidade, é o princípio
da prevenção. De facto, numa sociedade em que são crescentes os
factores de risco para a Natureza (e que são a contrapartida das
vantagens inerentes à sua utilização), a consciência hoje generalizada
da escassez e da perenidade dos recursos naturais torna imperiosa a
aplicação jurídica da regra – de senso comum – de que <mais vale
prevenir do que remediar>. Daí que se possa afirmar que o Direito do
Ambiente constitui um domínio jurídico forçosamente ancorado no
princípio da prevenção 43.
No caso brasileiro, Natascha Trennepohl afirma que “apesar de o princípio da
precaução não aparecer de forma explícita na Constituição Federal Brasileira de 1988 ele está
196
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
expresso no parágrafo 3º do artigo 54 da Lei 9.605/98 e no Decreto nº 4.297/02 que
regulamenta o artigo 9º, inc. II, da Lei 6.938/81 e estabelece critério para o zoneamento
ecológico-econômico, o qual deve obedecer aos princípios da prevenção e precaução” 44.
Na mesma direção, Morato Leite afirma que a “atuação preventiva e o princípio da
precaução emanam de vários dispositivos constitucionais, sendo certo que o último não está
expresso na Constituição, mas claramente incorporado ao sistema, exercendo função
normativa relevante” 45. Além da legislação infraconstitucional já citada, Morato Leite destaca
o artigo 2º do Decreto Federal nº 5.098/2004, tratando de acidentes com cargas perigosas,
além do próprio artigo 225, §1º, incisos II usque V da atual Carta Política.
No plano do Direito Internacional Público, registra-se a Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), mais conhecida sob a
designação (ECO-92), estabelecendo em seu Princípio nº 15 que os Estados deverão orientarse pelo critério da precaução com a finalidade protetiva ambiental
46
. Neste sentido, afirma a
professora de Buenos Aires Leila Devia no sentido de que “el principio precautorio merece
especial atención, a fin de no ser confundido con el principio de prevención. [...] En cambio,
el principio de prevención parte de una degradación cierta del meio ambiente ante la acción
humana” 47.
De igual maneira, Norma Sueli Padilha propõe a diferenciação entre precaução e
prevenção, haja vista que na língua portuguesa são praticamente sinônimos. Afirma que
“prevenção é antecipar-se, chegar antes, é antecipação do tempo com intuito conhecido. Por
sua vez, precaução significa precaver-se, tomar cuidados antecipados com o desconhecido,
agir com cautela evitando efeitos indesejáveis. Neste sentido, o conceito de precaução é mais
restritivo que o conceito de prevenção e, conforme alerta Édis Milaré, a prevenção engloba
precaução” 48.
Morato Leite também destaca os contornos diferenciadores dos princípios da
prevenção (ora denominado de atuação preventiva) e princípio da precaução, este se referindo
à gestão do “risco abstrato”, enquanto aquele à gestão do “risco concreto”, conforme se segue:
[...] O princípio da precaução tem sua origem no direito alemão a
partir do conceito do Vorsorgeprinzip, do ordenamento jurídico, que
exige a atuação mesmo antes de qualquer dano efetivo [...]. Não resta
dúvida de que os princípios da atuação preventiva e da precaução são,
de fato, irmãos da mesma família, e pode-se dizer que ambos são os
dois lados de uma mesma moeda. [...] pode-se deduzir que a atuação
preventiva é um mecanismo para a gestão dos riscos, voltado,
especificadamente, para inibir os riscos concretos ou potenciais, sendo
esses visíveis e previsíveis pelo conhecimento humano. Por seu turno,
197
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
o princípio da precaução opera no primeiro momento dessa função
antecipatória, inibitória e cautelar, em face do risco abstrato, que pode
ser considerado risco de dano, por muitas vezes é de difícil
visualização e previsão 49.
Adiante, Ricardo Lobo Torres agrupa os princípios da precaução e da prevenção na
categoria dos princípios da segurança. Ambos possuem naturezas bastante similares, na
medida em que visam atuar antes da configuração dos danos, mas diferenciam-se quanto ao
grau de previsibilidade do dano: quando, pela experiência, é possível estabelecer uma relação
de causalidade entre a ação infratora e o dano, configura-se o princípio da prevenção; caso as
repercussões do ato não sejam inteiramente conhecidas, mas exista um risco ou perigo
fundado, delineia-se o princípio da precaução 50.
Em seguida, Alexandra Aragão, professora de Coimbra, também distingue o
princípio da precaução, afirmando que se distingue do da prevenção “por exigir uma
protecção antecipatória do ambiente ainda num momento anterior àquele em que o princípio
da prevenção impõe uma actuação preventiva”. Por conseguinte, citando parecer do Comité
Económico e Social sobre o recurso ao princípio da precaução, arremata a Autora que,
“estamos numa época em que se dá a alteração da natureza do risco: passou-se do acidente à
catástrofe, e as catástrofes são o campo de aplicação privilegiado do princípio” 51.
Já Carla Amado Gomes, em tom de síntese conclusiva, afirma que o princípio da
prevenção já é pacificamente reconhecido ao nível internacional, comunitário (refere-se à
Comunidade Europeia) e nacional (refere-se ao Estado Português), entretanto, o princípio da
precaução ainda ganha fôlego no âmbito do Direito Internacional, não sendo ainda
unanimidade. Afirma que tal princípio deve ser entendido como “decorrente de uma
interpretação qualificada do princípio da prevenção”, o que, na ausência de comprovação
científica do respectivo dano ambiental, deverá nortear-se por um princípio in dubio pro
ambiente 52.
Ana Lamas, professora argentina, associa o princípio da precaução como parte
integrante à noção de sustentabilidade, afirma que, “obligando a ser proactivos a través de la
prevención de riesgos. Conlleva a un análisis costo-beneficio de las acciones proyectadas y
obliga a resguardar procesos ecológicos vitales. Consecuencia de este paradigma, se
promueve la noción de „triple balance‟: esa diferenciación entre el balance económico – cierra
los números si es rentable la actividad -; es socialmente viable y ambientalmente posible” 53.
Por derradeiro, importante registro de Maria Cristina César de Oliveira quanto à
aplicação do princípio da precaução e a atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos
198
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
(Corte IDH), órgão judicante do Sistema Regional Americano de Proteção dos Direitos
Humanos. Nesta perspectiva, a Corte IDH prescreve em sua jurisprudência a criação de
programas e fundos de desenvolvimento comunitário, visando prevenir a ação degradadora
nas terras ancestrais indígenas, legado para futuras gerações 54.
3.2. A desigualdade na atual repartição dos ônus ambientais na sociedade de risco sob o
aspecto do meio ambiente do trabalho
Assim como na Economia, também existe na natureza o elemento figurativo
simbolizado pela “mão invisível”, ou seja, encarregado de regular e equilibrar o
funcionamento dos ecossistemas. Neste sentido, qualquer atuação humana que afete o regular
funcionamento do meio ambiente, comportará em um risco. No afirmar de Tiago Antunes
que, “os riscos ambientais não só estão cada vez mais presentes na nossa vivência do dia-adia, como adquirem uma amplitude e uma gravidade cada vez maiores” 55.
No Brasil, o núcleo principal da proteção do meio ambiente na Constituição Federal
de 1988 encontra-se esculpido no artigo 225, embora existam outras normas esparsas ao longo
do texto constitucional. Segundo Herman Benjamin, é possível localizar direitos, deveres e
princípios ambientais, conforme se segue:
Ora o legislador utiliza-se da técnica do estabelecimento de direito e
dever genéricos (p.ex., a primeira parte do art.225, caput), ora faz uso
da instituição de deveres especiais (p.ex., todo o art.225, §1º). Em
alguns casos, tais enunciados normativos podem ser apreciados como
princípios específicos e explícitos (p.ex., os princípios da função
ecológica da propriedade rural e do poluidor-pagador, previstos,
respectivamente, nos arts. 186, II e 225, §§2º e 3º), noutros, como
instrumento de execução (p.ex., a previsão do Estudo Prévio de
Impacto Ambiental – art.225, §1º, IV – ou da ação civil pública –
art.129, III, e §1º. O constituinte também protegeu certos biomas
hiperfrágeis ou de grande valor ecológico (p.ex., a Mata Atlântica, o
Pantanal, a Floresta Amazônica, a Serra do Mar e a Zona Costeira –
art.225, §4º) 56.
No tocante ao ônus ambiental, matéria correlata aos deveres fundamentais, estes se
agrupam em quatro categorais, quais sejam: a) Art.225, caput, encontra-se uma obrigação
explícita, genérica, substantiva e positiva, no texto: “impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo”; b) No mesmo dispositivo, também persiste
uma obrigação genérica, substantiva, porém negativa e implícita, qual seja a de não degradar
o meio ambiente; c) Art.225, caput e §1º, encontram-se deveres explícitos e especiais
199
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
impostos ao Poder Público, independentemente de ser ele o degradador ou não; d) No art.225,
§§ 2º e 3º, encontram-se deveres explícitos e especiais, exigíveis de particulares ou do Estado,
quando estes passam a ocupar a posição de degradador potencial ou real (p.ex., como
minerador) 57.
Desta forma, o mesmo empenho constitucional não se observa no tocante às
incumbências delegadas aos particulares, aos quais se atribuem, basicamente, os ônus de
recuperar o meio ambiente degradado pela exploração de recursos minerais (art. 225, §2º) e a
eventual sujeição a sanções penais e administrativas por condutas e atividades lesivas ao meio
ambiente (art. 225, §3º) 58. Neste conexto, enquanto as atitudes preventivas são basicamente
suportadas pelo Poder Público, os deveres dos agentes privados resumem-se a reparar os
danos e males que vierem a cometê-los, em nítida posição protetivo-repressiva, em detrimento
da prevenção que deve nortear o enfoque jurídico-ambiental. Observa-se flagrante
desproporcionalidade na repartição dos ônus ambientais, em colisão direta com o caput do
artigo 225, que impõe de forma irrestrita a todos o dever de defender e preservar o meio
ambiente para as gerações presentes e futuras.
Por conseguinte, a atual distribuição dos ônus ambientais colide frontalmente com os
ensinamentos de Ricardo Lobo Torres, que preceitua a necessidade de um novo
relacionamento entre o Estado e sociedade no contexto da sociedade de risco, cabendo a esta
assumir o papel preponderante, devendo o Estado atuar de maneira subsidiária, por meio da
função regulatória, e no caso de patente impossibilidade do indivíduo e da sociedade solverem
os próprios problemas 59.
No mesmo sentido, Norma Sueli Padilha destaca a necessidade de repartição dos
ônus ambientais no aspecto do meio ambiente do trabalho, conforme se segue:
A constituição Federal atribuiu o dever de proteção do meio ambiente,
nele incluído o do trabalho, não só ao Poder Público, mas também à
coletividade. Nesse sentido, o ordenamento jurídico propicia
instrumentos jurídicos aptos para tanto, mas é necessário que os
próprios destinatários da norma exijam sua proteção, invocando sua
tutela. A efetividade será maior quanto mais o trabalhador, seu
sindicato e aqueles que podem atuar em seu favor reivindicarem o
cumprimento dos dispositivos legais que garantem o meio ambiente
do trabalho. [...] Verifica-se assim, que um complexo regime jurídico
garante o direito ao meio ambiente do trabalho equilibrado, não só
com relação ao Poder Público, através de uma Administração Pública
atuante e comprometida na efetivação das disposições legais, mas
também por uma nova postura dos atores sociais envolvidos, através
de uma educação ambiental e de um regime de informações que
impulsione a exigência do cumprimento de tais normas 60.
200
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Neste diapasão, destaca-se a indagação formulada por Zimmermann, “Mas afinal,
onde se encontra essa sociedade mundial do risco preconizada por Ulrich Beck?”.
Consequentemente, a Autora correlaciona à sociedade de risco e ao aspecto do meio ambiente
do trabalho, afirmando que:
Da forma como se apresenta, ela está em todo o lugar, em todos os
segmentos da sociedade, ela é a única sociedade que se tem na
atualidade, pelo simples fato de ser sociedade, ou seja, de contar com
a presença do ser humano. Todos os ambientes em que o homem está
inserido,
disposto
a
tomar
decisões
em
prol
do
desenvolvimento/crescimento econômico, compõem a sociedade
mundial do risco, porque tal elemento será admitido (ou negado
veementemente, segundo os catastrofistas) por ser encarado como
uma oportunidade ou estratégia de mercado (ainda que os riscos não
se alastrem apenas em ambientes de concorrência acirrada), sendo por
isso que o meio ambiente laboral tornou-se um dos principais
concentradores de riscos 61.
Igualmente, como forma de mitigar eventual concentração de riscos, Sebastião
Geraldo de Oliveira destaca a importância do trabalho e do respectivo meio laboral na vida do
trabalhador, senão vejamos:
O homem passa a maior parte da sua vida útil no trabalho, exatamente
no período da plenitude de suas forças físicas e mentais, daí por que o
trabalho, frequentemente, determina o seu estilo de vida, influencia
nas condições de saúde, interfere na aparência e apresentação pessoal
e até determina, muitas vezes, a forma da morte. E o instrumental
multidisciplinar, com certeza, dará mais condições de alcançar as
melhorias necessárias para a segurança e a saúde do trabalhador. [...]
Com o passar do tempo e o acúmulo da experiência, a legislação vem
atuando para garantir o ambiente de trabalho saudável, de modo a
assegurar que o exercício do trabalho não prejudique outro direito
humano fundamental: o direito à saúde, complemento inseparável do
direito à vida. As preocupações ecológicas avançam para também
preservar o homem enquanto trabalhador 62.
Por outro giro, Carlos Cañas afirma que, “con el aumento del impacto humano sobre
el meio ambiente, las sociedades han tenido que formalizar el cuidado de éste para asegurar su
longevidad. Para lograr esto, se requiere de una detección de los problemas ambientales
seguido de una acción para resolverlos. [...] Con el tiempo, esta preocupación ha
evolucionado – ahora se incluyen otros tipos de riesgo, por ejemplo los del trabajador – y se
empezó a usar en el ámbito privado tanto como en el público. Actualmente, en todas las áres
sociales se ve la influencia del análisis y la gestión de riesgo para maximizar la protección
humana y del medio ambiente” 63.
201
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Portanto, os riscos presentes no meio ambiente do trabalho também são reflexos da
chamada sociedade mundial do risco, qual seja a sociedade da insegurança e do medo, por
vezes, diante de perigos invisíveis e imprevisíveis. Neste sentido, como os riscos estão
agregados às decisões humanas, o meio ambiente laboral torna-se um espaço “privilegiado” à
ocorrência daqueles, pois se trata de habitat eminentemente humanizado na figura do cidadãotrabalhador.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os novos desafios enfrentados pela modernidade impõem a necessidade de modelos
também novos de solução dos conflitos. Nesse contexto em que os direitos difusos assumem
especial relevo, com destaque para a questão ambiental, os institutos tradicionais se mostram
defasados e inapropriados para uma adequada tutela ecológica, vez que ainda atados a uma
lógica eminentemente civilista, calcada no interesse patrimonial dos particulares.
Neste contexto, quando se fala em mínimo existencial em matéria ambiental, é dever
do Estado e da coletividade em geral a concretização do direito fundamental ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, na forma do artigo 225, caput, da Constituição Federal
de 1988. No entanto, não se verifica o mesmo empenho constitucional no tocante às
incumbências impostas aos particulares, resumindo-se a estes, basicamente, em condutas a
posteriori à ocorrência do dano ambiental (art.225, §§, CF), ou seja, potencializando a
posição protetivo-repressiva em detrimento da conotação protetivo-preventiva que deveria
nortear o enfoque jurídico-ambiental.
Assim, a atual distribuição dos ônus ambientais colide frontalmente com a
necessidade de um novo relacionamento entre o Estado e sociedade no contexto da sociedade
de risco, a quem caberia assumir o papel preponderante de proteção, respeito e promoção de
um meio ambiente equilibrado, em prol se si mesma e das futuras gerações, atribuindo-se ao
Estado atuação subsidiária por meio de função regulatória.
Ademais, pelo fato de o homem passar boa parte de sua vida útil no meio ambiente
do trabalho, no exercício de suas atividades profissionais, os riscos ambientais do trabalho
consituem-se frequentes na seara da sociedade mundial de risco. Desta forma, assevera-se que
o mínimo ecológico-sustentável decorrente do mínimo existencial também incide, de forma
decisiva, para preservação da dignidade do homem-trabalhador.
202
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
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ZIMMERMANN, Cirlene Luiza. A ação regressiva acidentária como instrumento de
tutela do meio ambiente de trabalho. São Paulo, LTr, 2012.
1
“No que se refere à Bíblia, a passagem da criação do mundo, descrita no Gênesis, foi durante muito tempo
interpretada como sendo um fundamento para a visão antropocêntrica na medida em que se entendia que Deus
teria outorgado ao homem o domínio sobre todas as outras criaturas vivas, sendo somente o ser humano criado à
sua imagem e semelhança”. LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO,
Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 3ed. São
Paulo: Saraiva, 2010, p.158.
2
“O atual estágio do conhecimento humano alterou significativamente a relação de forças existentes entre ser
humano e Natureza. Se há alguns séculos atrás o poder de intervenção do ser humano no meio natural era
limitado, prevalecendo essa relação de forças em favor da Natureza, hoje a balança se inverteu de forma
definitiva. A relação de causa e efeito vinculada à ação humana, do ponto de vista ecológico, tem uma natureza
cumulativa e projetada para o futuro”. SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito
Constitucional Ambiental. São Paulo: Editora RT, 2011, p.32.
3
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. Op. cit., p.157.
4
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma nova modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento.
2ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p.9.
5
Ibid., p.12.
6
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p.26-28.
7
NADAL, Fábio. A constituição como mito: o mito como discurso legitimador da constituição. São Paulo:
Método, 2006, p.20.
8
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma nova modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento.
2ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p.23-24.
9
ANTUNES, Tiago. O ambiente entre o Direito e a Técnica. Lisboa: Associação Académica da Faculdade
Direito Lisboa, 2003, p.10.
10
Ibidem.
11
“Não se trata mais, portanto, ou não se trata mais exclusivamente de uma utilização econômica da natureza
para libertar as pessoas de sujeições tradicionais, mas também e, sobretudo, de problemas decorrentes do próprio
desenvolvimento técnico-econômico. O processo de modernização torna-se “reflexivo”, convertendo-se a si
mesmo em tema e problema”. BECK, Ulrich. Op. cit., p.24.
12
OLIVEIRA, Maria Cristina Cesar de. Princípios jurídicos e jurisprudência socioambiental. Belo Horizonte:
Fórum, 2009, p.40.
13
TRENNEPOHL, Natascha. Seguro Ambiental. Salvador: JusPODIVM, 2008, p.20.
14
GOMES, Carla Amado. A prevenção à prova no direito do ambiente. Coimbra: Editora Coimbra, 2000,
p.16-17.
205
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
15
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, Joaquim Gomes; LEITE, José
Rubens Morato (orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 3ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.152-153.
16
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma nova modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento.
2ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p.15-16.
17
“Todo o sofrimento, toda a miséria e toda a violência que seres humanos infligiram a seres humanos eram até
então reservados à categoria dos “outros” – judeus, negros, mulheres, refugiados, dissidentes, comunistas,
etc.[...] Isso tudo continua a existir e, ao mesmo tempo, desde Chernobyl, deixou de existir. É o fim dos “outros”,
o fim de todas as nossas bem cultivadas possibilidades de distanciamento, algo que se tornou palpável com a
contaminação nuclear. A miséria pode ser segregada, mas não os perigos da era nuclear. E aí reside a novidade
de sua força cultural e política. Sua violência é a violência do perigo, que suprime todas as zonas de proteção e
todas as diferenciações da modernidade”. BECK, Ulrich. Op. cit., p. 07.
18
Mais conhecida como Convenção de Estocolmo, tinha como princípio primeiro: “o homem tem direito à
liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequada, em um ambiente que esteja em condições de
permitir uma vida digna e de bem-estar; tem a ele a grave responsabilidade de proteger e melhorar o ambiente
para as gerações presentes e futuras”. Sobre esse assunto, conferir SILVA, José Afonso Da. Curso de Direito
Ambiental Constitucional. 7ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 58-59.
19
Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.569.
20
A expressão “geração de direitos” tem sofrido várias críticas da doutrina nacional e estrangeira, pois o uso do
termo geração pode dar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, o que é um erro, já
que o processo é de acumulação e não de sucessão. Em razão disto, a doutrina recente tem preferido o termo
“dimensões”, pois uma geração não substitui ou derroga a antecedente. Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia
dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 47.
21
Cf. BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 9ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.165-178.
22
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito Constitucional Ambiental
Brasileiro. 3ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.124.
23
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 17ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 24.
24
“Pode-se dizer, portanto, em apertada síntese, que o constituinte brasileiro delineou no texto constitucional,
para além de um capitalismo social, um capitalismo socioambiental (ou ecológico), consagrando a proteção
ambiental como princípio matriz da ordem econômica (art.170, inciso VI, da CF/88)”. SARLET, Ingo Wolfgang
(organizador). Estado Socioambiental e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2010, p.24.
25
Importa consignar que existem várias terminologias similares utilizadas por diversos autores, tais como:
Estado Pós-social, Estado Constitucional Ecológico, Estado de Direito Ambiental, Estado do Ambiente, Estado
Ambiental de Direito, Estado de Bem-Estar Ambiental, dentre outros. A preferência pela expressão
socioambiental resulta da necessária convergência das "agendas" social e ambiental num mesmo projeto
jurídico-político para o desenvolvimento humano.
26
SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). Estado Socioambiental e Direitos Fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2010, p.12.
27
Cf. FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da
dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2008, p.93-142.
28
TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 35-36.
29
Ibidem, p. 37.
30
O artigo 1.º da Declaração Universal da ONU de 1948 prevê que “todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e
fraternidade”.
31
Cf. FENSTERSEIFER, Tiago. Op. cit., p. 93-142.
32
Cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, disponível em:<http://www.priberam.pt>, acesso em: 10 mar.
2013.
33
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 51.
34
Ibidem, pp. 65-67.
35
“Só há dignidade, portanto, quando a própria condição humana é entendida, compreendida e respeitada, em
suas diversas dimensões, o que impõe, necessariamente, a expansão da consciência ética como prática diuturna
de respeito à pessoa humana. Trata-se de um ideal, e como todo ideal, um objetivo antevisto a ser atingido, mas
nem por isso um ideal utópico, porque se encontra na estrita dependência dos próprios seres humanos, podendose consagrar como sendo um valor a ser perseguido e almejado, simplesmente porque (parodiando Nietzsche), se
trata de algo „humano, demasiado humano‟” (destaque nosso). ALMEIDA FILHO, Agassiz; MELGARÉ, Plínio
(orgs.). Dignidade da Pessoa Humana. Fundamentos e Critérios Interpretativos. São Paulo: Editora
Malheiros, 2010, p. 264.
206
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
36
HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: SARLET, Ingo
Wolfgang (Org.). Dimensões da Dignidade: ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.130.
37
Cf. SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). Estado Socioambiental e Direitos Fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 25.
38
Sobre o assunto, esclarece Ingo Sarlet: “[...] assim como quando se fala em mínimo existencial a ideia de
justiça social permeia a discussão (na sua feição distributiva), no sentido de garantir um acesso igualitário aos
direitos sociais básicos, da mesma maneira, quando se discute os fundamentos do mínimo existencial ecológico,
a justiça ambiental deve estar presente, balizando tanto as relações entre os Estados nacionais no plano
internacional (especialmente, diante das relações Norte-Sul), quanto às relações entre poluidor/degradador
(Estado ou particular) e cidadão titular do direito fundamental ao ambiente no âmbito interno dos Estados
nacionais [...]”. Ibidem, p. 37.
39
“Deve ser concebido da forma mais ampla possível com a incorporação da qualidade ambiental como um novo
conteúdo do núcleo protetivo”. BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica jurídica ambiental. São
Paulo: Saraiva, 2011, p. 229.
40
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, Joaquim Gomes; LEITE, José
Rubens Morato (orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 3ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.151.
41
GOMES, Carla Amado. A prevenção à prova no direito do ambiente. Coimbra: Editora Coimbra, 2000,
p.16.
42
GHERSI, Carlos A; LOVECE, Graciela; WEINGARTEN, Celia. Daños al ecoistema y al médio ambiente.
Buenos Aires: Editorial Astrea, 2004, p.57.
43
SILVA, Vasco Pereira Da. Verde cor de direito. Lições de Direito do Ambiente. Coimbra: Editora
Almedina, 2003, p.65-66.
44
TRENNEPOHL, Natascha. Seguro Ambiental. Salvador: JusPODIVM, 2008, p.32.
45
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, Joaquim Gomes; LEITE, José
Rubens Morato (orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 3ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.200.
46
“Princípio 15: Com a finalidade de proteger o meio ambiente, os Estados deverão aplicar amplamente o critério
de precaução conforme suas capacidades. Quando houver perigo de dano grave ou irreversível, a falta de certeza
científica absoluta não deverá ser utilizada como razão para que seja adiada a adoção de medidas eficazes em
função dos custos para impedir a degradação ambiental”. Disponível em: < http://www.onu.org.br/> Acesso: 21
nov. 2012.
47
DEVIA, Leila. Escenario ambiental internacional. In: DEVIA, Leila (coord.). Nuevo rumbo ambiental.
Buenos Aires-Madrid: Ciudad Argentina, 2008, p.143.
48
PADILHA, Norma Sueli. Fundamentos constitucionais do direito ambiental brasileiro. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2010, p.253.
49
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, Joaquim Gomes; LEITE, José
Rubens Morato (orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 3ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.193-196.
50
TORRES, Ricardo Lobo. Valores e princípios no direito tributário ambiental. In: TORRES, Heleno
Taveira (org.). Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 34.
51
ARAGÃO, Alexandra. Direito constitucional do ambiente da União Europeia. In: CANOTILHO, Joaquim
Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 3ed. São Paulo:
Saraiva, 2010, p.63-64.
52
GOMES, Carla Amado. A prevenção à prova no direito do ambiente. Coimbra: Editora Coimbra, 2000,
p.52-54.
53
LAMAS, Ana. La gestión ambiental en entidades financieras los seguros ambientales. In: DEVIA, Leila
(coord.). Nuevo rumbo ambiental. Buenos Aires-Madrid: Ciudad Argentina, 2008, p.204.
54
Caso Comunidade Indígena Yarye Axa Vs. Paraguai, sentença de 17 de junho de 2005 e Caso Comunidade
Moiwana Vs. Suriname, sentença de 15 de junho de 2005. Cf. OLIVEIRA, Maria Cristina Cesar de. Princípios
jurídicos e jurisprudência socioambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p.197-198.
55
ANTUNES, Tiago. O ambiente entre o Direito e a Técnica. Lisboa: Associação Académica da Faculdade
Direito Lisboa, 2003, p.09-10.
56
BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição
brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Direito constitucional
ambiental brasileiro. 3ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.114-115.
57
Ibid., p.134.
58
“[...] Entretanto, sem olvidar da importância do papel de cada uma dos legitimados à defesa do meio ambiente
do trabalho, destaque-se a relevância que a Constituição Federal deu ao Poder Público para a conquista de
efetividade ao equilíbrio do meio ambiente, nele incluído, o ao meio ambiente do trabalho. O comando
constitucional do art.225 traz em si uma exigência de direcionamento de políticas públicas voltadas para a
207
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
prevenção ao direito de proteção ao meio ambiente equilibrado e da efetiva atuação do poder de polícia
ambiental”. PADILHA, Norma Sueli. Fundamentos constitucionais do direito ambiental brasileiro. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2010, p.401.
59
TORRES, Ricardo Lobo. Valores e princípios no direito tributário ambiental. In: TORRES, Heleno
Taveira (org.). Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 30.
60
PADILHA, Norma Sueli. Fundamentos constitucionais do direito ambiental brasileiro. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2010, p.401.
61
ZIMMERMANN, Cirlene Luiza. A ação regressiva acidentária como instrumento de tutela do meio
ambiente de trabalho. São Paulo, LTr, 2012, p.33-34.
62
OLIVEIRA, Sebastião Geraldo De. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 6ed. São Paulo: LTr, 2011,
p.142.
63
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208
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
AÇÃO CIVIL PÚBLICA E SUSTENTABILIDADE
PUBLIC CIVIL ACTION AND SUSTAINABILITY
FELIPE LAURINI TONETTI
RESUMO: O presente artigo faz uma abordagem da ação civil pública nos seus mais
variados aspectos. Inicia-se pela base jurídica do referido instituto, ou seja, através da análise
do seu campo de atuação e de sua natureza jurídica, sendo que nesta última se destaca o seu
aspecto processual. Doravante, tendo em conta sua feição de direito processual, estuda-se
quais as condições para seu exercício. E fechando essas considerações sobre a ação civil
pública, são analisados dois instrumentos específicos, que são de valiosa importância para que
ela atinja os objetivos a que se propõe, quais sejam: o inquérito civil e do termo de
ajustamento de condita. Assim, com a análise específica sobre as características e finalidades
dessa ferramenta jurídica, busca-se traçar um paralelo com a teoria da sustentabilidade, de
modo a aferir e demonstrar que a ação civil pública revela ser um mecanismo fundamental ao
efeito de propiciar o desenvolvimento da atividade empresarial de maneira sustentável.
PALAVRAS CHAVE: Ação Civil Pública. Ministério Público e Co-legitimados. Inquérito
Civil. Termo de Ajustamento de Conduta. Sustentabilidade
ABSTRACT: This article is an approach to public civil action in its various aspects. It starts
by the said institute legal basis, ie by analyzing its field of action and its legal nature, while
the latter stands its procedural aspect. Henceforth, given its feature of procedural law, which
is studying the conditions for its exercise. And closing these considerations civil action are
analyzed two specific instruments, which are valuable importance toward achieving the goals
it sets itself, namely: the civil investigation and adjustment term condita. Thus, with specific
analysis on the characteristics and purposes of this legal tool, we seek to draw a parallel with
the theory of sustainability in order to assess and demonstrate that the civil action turns out to
be a fundamental mechanism of the effect of promoting the development of business activities
in a sustainable manner.
KEYWORDS: Public Civil Action. Prosecutors and Co-legitimized. Civil Survey. Term of
Adjustment of Conduct. Sustainability
209
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
1 AÇÃO CIVIL PÚBLICA E SEU CAMPO DE ATUAÇÃO
A ação civil pública foi instituída e disciplinada pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de
1985, sendo que logo nos incisos1 de seu art. 1º, deixa claro seu aberto rol de atuação, que não
é taxativo, mas exemplificativo.
Ressalva, ainda, do seu âmbito de abrangência, que a regência da ação popular e das
ações por danos morais e patrimoniais destinadas aos particulares, não se insere na sua
disciplina.
Assim, da enumeração realizada pela lei, verifica-se que seu objeto está
diametralmente oposto a questões particulares, ou seja, não pode ser utilizada para a defesa de
direitos e interesses puramente privados.
Daí a importância de se destacar os aspectos jurídicos em relação aos interesses que a
lei tem em vista: os transindividuais ou metaindividuais.
A respeito dos interesses difusos ou coletivos, Celso Ribeiro Bastos2, traça uma
definição específica para cada qual e destaca a diferença entre eles:
Os interesses coletivos dizem respeito ao homem socialmente vinculado e
não ao homem isoladamente considerado. Colhem, pois, o homem não como
simples pessoa física tomada à parte, mais sim como membro de grupos autônomos
e juridicamente definidos, tais como o associado de um sindicato, o membro de uma
família, o profissional vinculado a uma corporação, o acionista de uma grande
sociedade anônima, o condômino de um edifício de apartamentos.
Interesses coletivos seriam, pois, os interesses afectos a vários sujeitos não
considerados individualmente, mas sim por sua qualidade de membro de
comunidades menores ou grupos intercalares, situados entre o indivíduo e o
Estado.
Entendemos que cumpre distinguir interesses coletivos de interesses difusos.
Naquele há um vínculo jurídico básico. Uma geral affectio societatis, que une
todos os indivíduos. É o que ocorre nas relações de parentesco, no grupo familiar, no
título de acionista na sociedade anônima, na qualidade de integrante de determinada
categoria profissional, com o título de bacharel em direito, com a qualidade de
membro da corporação funcional profissional etc.
No caso dos denominados interesses difusos, não se nota qualquer vínculo
jurídico congregador dos titulares de tais interesses, que praticamente se baseiam
numa identidade de situações de fato. Quando nos referimos aos interesses difusos
dos usuários de automóveis, por exemplo, abarcamos uma indefinida massa de
indivíduos esparsos por todo o país, sem qualquer característica homogênea, mas
que praticaram, em comum, a compra e venda de um veículo.
Assim, caracterizam-se pela natureza extensiva, disseminada ou difusa.
1
Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais
e patrimoniais causados:
l - ao meio-ambiente;
ll - ao consumidor;
III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.
V - por infração da ordem econômica e da economia popular;
VI - à ordem urbanística.
2
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 1999.
210
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Dessa forma, o mesmo autor esclarece que fica claro ser a ação civil pública meio de
proteção de alguns interesses transindividuais, tendência que ganhou corpo na Constituição de
1988 que fortaleceu os instrumentos de defesas metaindividuais. Sendo que, dali em diante
daí a ação civil pública consagrou-se como meio de defesa de interesses indisponíveis do
indivíduo e da sociedade.
Ademais, tendo em vista a abertura do objeto da ação civil pública, este com o passar
do tempo vem cada vez mais sendo ampliado, de forma paulatina, através de outras leis que
estendem as hipóteses previstas, consoante salientam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino:
Ulteriomente, no entanto, a legislação ampliou significativamente seu
espectro de proteção, permitindo que sejam tutelados por meio da ação civil pública:
a) Os interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos relativos ao meio
ambiente, ao consumidor e ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico;
b) Outros interesses difusos ou coletivos (aqui, nesse campo genérico, não se
incluem os interesses individuais homogêneos).
Leis posteriores ampliaram ainda mais o alcance da ação civil pública, que
passou a ser instrumento para defesa dos deficientes físicos, dos investidores no
mercado de capitais, da ordem econômica e da economia popular; e das crianças e
dos adolescentes.3
Isso porque na redação original4, somente se admitia a tutela de alguns interesses ou
direitos massificados, tais como o meio ambiente, o consumidor. Assim, o sistema implantado
na sua origem era o da taxatividade do objeto material da ação civil pública.5
No entanto, como já destacado acima, a realidade do advento da Lei nº 7.347, no ano
de 1985, foi substancialmente modificada ao longo dos últimos 25 anos, com a promulgação
da Constituição da República de 1988, do Código de Defesa do Consumidor e de inúmeras
leis especiais que regularam alguns aspectos dos processos coletivos, na âmbito do mercado
imobiliário, da infância e da juventude, dos portadores de necessidades especiais, dos idosos,
3
PAULO, Vicente e ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional descomplicado. Rio de Janeiro: Editora Método, 2008,
p. 676.
4
Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos
causados:
l - ao meio-ambiente;
ll - ao consumidor;
III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
IV – (Vetado).
5
Almeida, Gregório Assagra de. A natureza da ação civil pública como garantia constitucional fundamental: algumas
diretrizes interpretativas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 242.
211
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
do estatuto das cidades, afora a Lei da Improbidade Administrativa e do Mandado de
Segurança Coletivo, bem como já preexistente Lei de Ação Popular.6
Verifica-se, o vasto campo em que poderá ser manejada a ação civil pública,
principalmente em razão de seu objetivo de tutela ou proteção de interesses e direitos
metaindividuais ou transindividuais. Como por exemplo: a) interesses ou direitos difusos; b)
interesses ou direitos coletivos e c) interesses ou direitos individuais homogêneos.7
2 NATUREZA JURÍDICA DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Como visto o interesse a ser tutelado pela ação civil pública vai além do interesse
individual. Disso dimana a natureza jurídica diferenciada da ação civil pública. Consoante
Édis Milaré ela é especialíssima, pois não é direito subjetivo, mas direito atribuído a órgãos
públicos e privados para tutela de interesses não-individuais.8
Nesse mesmo sentido, Gilmar Ferreira Mendes, salienta que a ação civil pública não se
confunde, pela própria forma e natureza, com processos cognominados de "processos
subjetivos". Porquanto a parte ativa nesse processo não atua na defesa de interesse próprio,
mas procura defender interesse público devidamente caracterizado. Além disso, destaca que a
ação civil pública aproxima-se muito de processo sem partes ou de processo objetivo, no qual
a parte autora atua não na defesa de situações subjetivas, mas fundamentalmente com o
escopo de garantir a tutela do interesse público.9
Colocados estes detalhes fica mais clarividente qual a natureza jurídica da ação civil
pública, se se consubstancia em direito de natureza processual ou substancial.
De acordo com Paulo Alexandre Ney Quevedo10, a questão não é tão difícil de se
resolver. A indagação a respeito da vocação do referido dispositivo confere uma boa ideia de
em que ramo do direito está ele inserido. A Lei de Ação Civil Pública cria direitos, ou tende a
organizar e regulamentar a aplicação dos direitos coletivos? A ação civil pública sem dúvida
6
Castro Mendes, Aluisio Gonçalves de. A ação civil pública: desafios e perspectivas após 25 anos de vigência da Lei
7.347/1985. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 65.
7
Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou
a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de
que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de
que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.
8
MILARÉ, Édis. A ação civil pública em defesa do meio ambiente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 410.
9
MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São
Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 1142.
10
Quevedo, Paulo Alexandre Ney. Anotações Sobre Ação Civil Pública.
212
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
está vocacionada a servir de instrumento à aplicação dos diversos dispositivos legais de
proteção do meio ambiente, patrimônio cultural e consumidor, dentre outros tantos direitos
metaindividuais.
Desse modo, com base no ensinamento de Rodolfo de Camargo Mancuso pode-se
afirmar que a ação civil pública se insere no objeto de trabalho da ciência processual civil, na
medida em que espraia seus dispositivos sobre searas típicas do direito processual, tais como
foro, pedido, possibilidade de ação cautelar, legitimação, atuação do MP, sentença, coisa
julgada, exceção, ônus de sucumbência, aplicação subsidiária do Código de Processo Civil.
Em que pese, na opinião do referido autor, não se tratar de instituto exclusivamente de direito
processual, porquanto existem em alguns dispositivos, mecanismos criados pelo legislador e
inseridos na lei da ação civil pública de natureza substancial.
Como por exemplo, o artigo que 10 institui uma figura penal, e o artigo 13 prevê a
criação de um fundo para o qual deverão convergir condenações em pecúnia destinadas à
reconstrução dos bens lesados. Em decorrência disso prefere o autor falar em predominância
da índole processual do dispositivo.11
Contudo, Helly Lopes Meirelles12 afirma com todas as letras que a ação civil pública
tem caráter unicamente processual na medida em que o pedido de condenação do réu deve se
fundar em algum dos inúmeros outros dispositivos de direito substancial que tutelam os
direitos coletivos em nosso ordenamento positivo. Ou seja, para o autor a lei apenas regulou
as questões processuais da tutela desses direitos, ficando para a lei material a disciplina dos
aspectos de direito substantivo dos bens protegidos pela Lei de Ação Civil Pública.
Acerca disso, Paulo Alexandre Ney Quevedo13, aduz a fim de explicar o referido
posicionamento que o ilibado administrativista para efeitos de determinar a natureza da ação
em epígrafe, leva em conta seu caráter instrumental, que de resto é a característica mais forte
do próprio direito processual civil.
Sob a ótica da Constituição da República, Gregório Assagra de Almeida, segue essa
mesma diretriz em torno da questão processual, mas vai além, pois entende que a ação civil
pública, no plano do direito constitucional, tem natureza jurídica de garantia constitucional,
conforme previsão expressa no art. 129, III:
11
MANCUSO, Rodolfo Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1997. p. 22.
12
A Lei nº 7.347/85 é unicamente de caráter processual, devendo o pedido e a condenação basear-se em disposição de
alguma lei material da União, do Estado ou do Município, que tipifique a infração ambiental a ser reconhecida e punida
judicialmente e independentemente de qualquer penalidades administrativas ou de ação movida por particular para a defesa de
seu direito individual. MEIRELLES, Helly Lopes. Proteção ambiental e ação civil pública. In: Revista Forense, n. 301, p. 41.
13
Quevedo, Paulo Alexandre Ney. Anotações Sobre Ação Civil Pública.
213
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
É uma garantia constitucional processual específica, pois as garantias
constitucionais processuais gerais seriam os princípios constitucionais processuais
(devido processo legal, contraditório, ampla defesa etc.), os quais formam uma
unidade conjunta que dão amparo a uma teoria geral do direito processual. Na
condição de garantia constitucional específica, a ação civil pública é uma ação
constitucional de tutela, mediante pedidos preventivos ou repressivos, dos direitos
ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, constituindo-se nesse
contexto do seu objeto material (art. 129, III, da CF/1988), uma espécie do gênero
“ações coletivas constitucionais”.14
Ao efeito de reforçar os argumentos alinhavados acima, Gregório Assagra Almeida,
ressalta que a ação civil pública também adquire natureza de garantia constitucional
fundamental em razão do seu objeto material, composto pelos direitos ou interesses coletivos,
amplamente considerados, inseridos no plano do sistema constitucional brasileiro como
direitos fundamentais. Assim, segundo o autor, a ação civil pública, em razão da correta e
perfeita correspondência que deverá existir entre ela e o direito fundamental tutelável,
adquire, pela força irradiante expansiva do seu objeto material, natureza fundamental,
incidindo sobre ela a multifuncionalidade da teoria dos direitos e das garantias fundamentais,
nas dimensões subjetiva e objetiva.
Em suma, a ação civil pública se apresenta sob dois critérios. Primeiro, é cível na
medida em que se trata de uma ação de conhecimento, sujeitando-se as normas de direito
processual, sendo que os dispositivos15 de natureza material não desnaturam a sua natureza
processual. Segundo, é pública porquanto tutela o interesse público na proteção do meio
ambiente, do consumidor, e demais direitos e interesses difusos e coletivos.
Por fim, acrescente-se que como sua natureza jurídica é ligada ao direito processual e,
além disso, tendo em vista que seu escopo direciona-se a tutela de interesses transindividuais
ou metaindividuais, a doutrina16 insere a ação civil pública dentro do gênero direito
processual coletivo.
14
Almeida, Gregório Assagra de. A natureza da ação civil pública como garantia constitucional fundamental: algumas
diretrizes interpretativas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 251.
15
Art. 10. Constitui crime, punido com pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, mais multa de 10 (dez) a 1.000
(mil)Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional - ORTN, a recusa, o retardamento ou a omissão de dados técnicos
indispensáveis à propositura da ação civil, quando requisitados pelo Ministério Público.
Art. 13. Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho
Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da
comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados.
§ 1o. Enquanto o fundo não for regulamentado, o dinheiro ficará depositado em estabelecimento oficial de crédito, em conta
com correção monetária.
§ 2o Havendo acordo ou condenação com fundamento em dano causado por ato de discriminação étnica nos termos do
disposto no art. 1o desta Lei, a prestação em dinheiro reverterá diretamente ao fundo de que trata o caput e será utilizada para
ações de promoção da igualdade étnica, conforme definição do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, na
hipótese de extensão nacional, ou dos Conselhos de Promoção de Igualdade Racial estaduais ou locais, nas hipóteses de
danos com extensão regional ou local, respectivamente.
16
O advento da Lei nº 7.347, de 24.07.1985, também conhecida como Lei da Ação Civil Pública, é o primeiro grande marco
histórico no Brasil do movimento mundial sobre a coletivização do direito processual, também conhecido como representação
em juízo dos interesses difusos, surgindo na década de 60 do século XX nos Estados Unidos da América e retratado como a
214
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
3 CONDIÇÕES PARA O EXERCÍCIO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Em razão da ação civil pública, no entendimento doutrinário predominante, ter a
conotação processual, sendo dessa forma uma ação de conhecimento, estará sujeita às
condições da ação.
Para que se possa exigir o provimento jurisdicional deverão ser preenchidas pela ação
civil pública as seguintes condições da ação: legitimidade para a causa, interesse de agir e a
possibilidade jurídica do pedido. Sem estas dá-se à carência da ação civil pública e,
consequentemente, a extinção do processo sem julgamento do mérito, conforme art. 267, VI,
do Código de Processo Civil.17
É cediço que a legitimidade tem por escopo a individualização da parte que poderá
exercer o direito de ação ou aquela em face da qual será demandada. Tem-se aí, a
legitimidade ativa que diz repeito a parte autora na relação processual, a qual irá propor a
demanda, bem como a legitimidade passiva, que se refere a posição da parte ré, a qual irá
suportar os efeitos da sentença em caso de procedência da ação civil pública.
A Lei de Ação Civil Pública18 confere ao Ministério Público, à Defensoria Pública, à
União, aos Estados e aos Municípios, às autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades
de economia mista e associações civis, a legitimação para a propositura da ação civil pública.
Denota-se a opção do legislador pela solução de atribuir a legitimidade ativa a entes
públicos e organismos privados voltados para a proteção de interesses difusos e coletivos.
Além disso, como já salientado inicialmente, os particulares não foram incluídos no rol dos
segunda onda renovatória ao acesso à justiça. (Almeida, Gregório Assagra de. A natureza da ação civil pública como garantia
constitucional fundamental: algumas diretrizes interpretativas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 242.).
Da mesma forma: O minissistema brasileiro de processos coletivos, formado pela Lei nº 7.347/1985- a denominada Lei da
Ação Civil Pública – e pelo Código de Defesa do Consumidor, de 1990, completou 25 anos. Por meio desses instrumentos
normativos, o Brasil Colocou-se numa posição de vanguarda, ao menos entre os países de Civil Law. Mas, a par dos
excelentes serviços prestados à comunidade na linha evolutiva de um processo individualista para um processo social, a
aplicação prática dos institutos processuais coletivos demonstra que muito ainda pode ser feito para melhorar o sistema.
Mais adiante, a autora, destaca que a evolução doutrinária brasileira a respeito dos processos coletivos autoriza a elaboração
de um verdadeiro direito processual coletivo, como ramo do direito processual civil, que tem seus próprios princípios e institutos
fundamentais, diversos dos do direito processual individual. Os institutos da legitimação, competência, poderes e deveres do
juiz e do Ministério Público, conexão, litispendência, liquidação e execução da sentença, coisa julgada, entre outros, têm feição
própria nas ações coletivas que, por isso mesmo, se enquadram numa teoria geral dos processos coletivos. (Grinover, Ada
Pellegrini. O projeto de lei brasileira sobre processos coletivos, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 15-16)
17
Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito: Vl - quando não concorrer qualquer das condições da ação,
como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual;
18
Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:
I - o Ministério Público;
II - a Defensoria Pública;
III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;
V - a associação que, concomitantemente:
a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;
b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre
concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
215
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
legitimados ativos para a causa e, via de consequência, não lhes foi dado o direito manejar a
ação civil pública.
Importante destacar também a possibilidade de litisconsórcio facultativo entre os
Ministérios Públicos da União, do Distrito Federal e dos Estados. Some-se a isso que tal qual
o Parquet, as associações não necessitam adiantar custas, emolumentos, honorários periciais
ou quaisquer outras despesas, nem serão condenadas em honorários de advogado, custas e
despesas processuais, salvo comprovada má-fé.
No entanto, em que pese à extensa gama de legitimados, dentre eles, sem dúvida
alguma, o Ministério Público é o mais atuante e que tem maior proeminência. Até porque,
dentre suas competências constitucionalmente atribuídas está a de promover o inquérito civil
e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de
outros interesses difusos e coletivos, por força do art. 129, III, da Constituição Federal, sendo
tal uma de suas funções Institucionais.
Além disso, caso não atue no processo como parte, o Ministério Público conforme §
1º, do art. 5º, intervirá obrigatoriamente como fiscal da lei. E, a teor do §3º, do mesmo
dispositivo, quando houver desistência infundada ou abandono da ação por parte de
associação legitimada autora, o Ministério Público ou outro legitimado assumirá a titularidade
ativa. Mas não é só, o art. 15, prevê ainda que decorridos sessenta dias do trânsito em julgado
da sentença condenatória, sem que a associação autora lhe promova a execução, deverá fazêlo o Ministério Público, facultada igual iniciativa aos demais legitimados.
O professor Pedro Lenza, elenca alguns motivos ao efeito de explicar essa
preponderância de atuação nessa seara pelo Ministério Público, por mais que as demais
entidades também tenham uma significativa participação. Aduz as possíveis razões dessa
concentração das ações civil públicas, da seguinte maneira:
Algumas razões podem ser apontadas no sentido de se tentar explicar o
porquê de estarem as ações civil públicas, salvo raras exceções, sendo, em sua
maioria, propostas pelo Ministério Público: a) histórica: o Ministério Público
assumiu tal papel, suprindo, de certa forma a necessidade de atuação das
associações; político-histórica: a sociedade brasileira sempre viu leis, especialmente
durante a ditadura, o instrumento dos mais fortes, da elite detentora do poder.
Observou-se, durante a constituinte para a elaboração da atual carta Magna, que
certos setores da sociedade relutavam na delimitação em lei de diversos pontos
relativos à matéria, eis que aquele passado jurídico das “trevas” ainda repercutia
naquele novo presente, sedento por uma ruptura mais democrática (esse fator, após
mais de 15 anos de criação da lei não pode ser levado em conta, tendo em vista o
avanço democrático da sociedade brasileira); c) sociológica: o cidadão brasileiro não
está inclinado a se associar, socorrendo-se ao Estado paternalista; d) econômica:
algumas associações não tem dinheiro para contratar advogados capacitados e
especializados na matéria para a propositura de ações de tamanho porte e
216
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
complexidade; e) institucional: há dificuldade em se conciliar a atividade de
organização, de associação, de política na defesa de interesses com o necessário
aparato técnico-jurídico; f) legislativa: em três situações, o legislador da Lei de Ação
Civil Pública, induziu a propositura da ação coletiva pelo Ministério Público: f.1)
art. 6º - ao estabelecer que qualquer pessoa poderá e o servidor provocar a iniciativa
do Ministério Público, ministrando-lhe informações sobre fatos que constituam
objeto da ação civil e indicando-lhes os elementos de convicção; f.2) art. 7º seguindo a prescrição do art. 40 do CPP, juízes e tribunais deverão remeter peças ao
Ministério Público, sempre que tiverem conhecimento de fatos que possam ensejar a
instauração do inquérito civil ou a propositura da ação coletiva; f.3) art. 8º - embora
a legitimação ativa seja concorrente e disjuntiva (plural), apenas o Ministério
Público tem a faculdade de instaurar o inquérito civil, que tramitará sob sua
presidência, destinado à colheita de elementos para eventual propositura da ação
civil pública.19
De outra banda, o mesmo autor, salienta o papel que está sendo cumprido nesse
sentido por algumas associações que vem propondo significativas demandas, cita como
exemplo no Estado de São Paulo, o Idec e a Associação SOS Mata Atlântica, que no seu
ponto de vista possuem rica experiência nesse campo e devem servir de modelo e substrato
concreto, para o desenvolvimento de novas associações representativas da sociedade civil.
Mesmo assim, estatisticamente o professor conta que em palestra proferida na
Universidade de São Paulo proferida em 1995, sob o tema ação civil pública – reflexões e
reminiscências após dez anos – os juristas Ada Pelegrini Grinover, José Carlos Barbosa
Moreira, Kazuo Watanabe e Rodolfo Camargo Mancuso, apontaram que o maior usuário da
ação civil pública até aquele momento era Ministério Público, com aproximadamente 90%
delas. Destaca ainda, de acordo com o relatório das atividades do Ministério Público de São
Paulo, publicado no DOESP de 09.11.2011, que das 7.979 ações civis públicas em
andamento, 7.409 tinham sido ajuizadas pelo Ministério Público, ao passo que 570 pelos
demais co-legitimados. Significando com isso, que o Ministério Público é responsável por
92,85% das ações.
Afora as explicações de Pedro Lenza, a preponderância de atuação do Ministério
Público em relação aos demais legitimados também está ligada a retrocessos em torno da
matéria que por consequência criam dificuldades aos co-legitimados para utilizá-la,
principalmente em decorrência de injustificáveis empecilhos impostos pela legislação.
Para melhor ilustrar esse quadro, vale-se do ensinamento de Eduardo Cambi, ao efeito
de demonstrar esses outros fatores que acabam por justificar a relativa insignificância da
atuação das associações em comparação com o Ministério Público, a tanto, vejamos:
19
LENZA, Pedro. Teoria Geral da Ação Civil Pública. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 181 e 182.
217
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Com efeito, parcelas da sociedade e do governo se sentiram ameaçadas com
as ações civis públicas que, durante esses vinte anos, sofreram inúmeros retrocessos
ou tentativas de retrocessos, tais como os a seguir salientados.
i) A redução do objeto da ação civil pública, pela Medida Provisória n.
2.180-35, de 24 de agosto de 2001 (ao introduzir o parágrafo único no artigo 1º da
LACP), pela qual não podem ser objeto de ação civil pública as pretensões que
envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço – FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários
podem ser individualmente determinados.
Tais restrições tiveram o intuito de evitar que interesses governamentais
venham a ser contrariados judicialmente, fazendo com que argumentos de terror
econômico (como o da quebra da Previdência) imperem sobre direitos e garantias
fundamentais.
ii) A restrição imposta às entidades associativas, quando ajuizarem ações
coletivas contra o Poder Público, que devem instruir a petição inicial,
obrigatoriamente, com a ata da assembléia da entidade associativa que a autorizou,
acompanhada da relação nominal dos seus associados e a indicação dos respectivos
endereços (art. 2º-A da Lei 9.494/97, implementado pela Medida Provisória 2.18035, de 24.08.2001).
As
mencionadas
disposições
criam
obstáculos
flagrantemente
inconstitucionais ao acesso à justiça coletiva, além de contrariarem os institutos da
legitimação para agir e a substituição processual reconhecida, constitucionalmente
(art. 5º, XXI, da CF), às entidades associativas e, ainda, os limites subjetivos da
coisa julgada das ações coletivas.
Felizmente, os Tribunais Superiores vêm considerando tais restrições
inconstitucionais.20
Em fechamento, ainda no que diz respeito à legitimidade ativa, tem-se na doutrina em
posição majoritária que nas ações coletivas ela será sempre extraordinária, porquanto há
substituição processual na defesa dos direitos ou interesses da coletividade.
A legitimidade para a defesa dos interesses metaindividuais (difusos, coletivos e
individuais homogêneos) é concorrente e cada legitimado tem autonomia para atuar, sem a
participação dos outros co-legitimados. Essa condição é importante para a efetividade da
defesa dos interesses transindividuais, pois, a legitimação ordinária seria impraticável, uma
vez que deixaria a cada lesado o ônus de provocar o Estado e, ainda que se admita essa
improvável hipótese, haveria risco de ocorrerem decisões contraditórias para aqueles que
fossem a juízo, gerando insegurança, insatisfação e prejuízos.
Isso, com base na lição de Pedro Lenza o qual destaca que a legitimação para a tutela
coletiva é extraordinária, exclusiva, concorrente e disjuntiva:
Pode-se dizer, então, por todo o exposto, que a legitimação para a tutela
coletiva é extraordinária, autônoma, exclusiva, concorrente e disjuntiva: a)
extraordinária, já que haverá sempre substituição da coletividade; b) autônoma, no
sentido de ser a presença do legitimado ordinário, quando identificado, totalmente
dispensada; c) exclusiva, em relação à coletividade substituída, já que o
contraditório se forma suficientemente com a presença do legitimado ativo; d)
concorrente, em relação aos representantes adequados entre si, que concorrem em
20
CAMBI, Eduardo. Ação Civil Pública 20 anos: Novos Desafios.
218
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
igualdade para propositura da ação; e e)disjuntiva, já que qualquer entidade poderá
propor a ação sozinha, sem a anuência, intervenção ou autorização dos demais,
21
sendo litisconsórcio eventualmente formado, sempre facultativo.
No que toca a legitimidade passiva, ela abrange qualquer pessoa responsável pelas
situações ou fatos ensejadores da ação, sejam pessoas físicas ou jurídicas, tanto de direito
público como privado, conforme prevê o art. 1°. da Lei n° 7.347/85. Em geral, poderá ser ré
na ação civil pública, quem ocasionar lesão ou ameaça de lesão aos direitos difusos, coletivos
e individuais homogêneos.
Por exemplo, em casos envolvendo questões ambientais, a identificação do legitimado
passivo da demanda, tem sido realizada a partir da noção do poluidor ou degradador,
estabelecida no art. 3º, IV, da Lei nº 6.938/8122, segundo o qual é toda pessoa física ou
jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade
causadora de degradação ambiental.
Com isso, verifica-se a abertura em relação ao polo passivo da ação, de modo que os
objetivos encartados na norma sejam alcançados, não deixando espaço para irresponsabilidade
ou impunidade para aqueles que tenham incorrido nas situações de agressões aos direitos
protegidos pela Lei.
No que tange a condição da ação, interesse de agir, revela-se oportuno lembrar que
não se confunde com o interesse substancial ou primário que se objetiva pela ação proposta.
Pois sendo, instrumental e secundário, e surge da necessidade de se obter através do processo
a proteção ao interesse substancial, ou seja, deve haver o interesse processual não apenas sob
o aspecto da utilidade do provimento jurisdicional, mas na necessidade do processo como
apto à aplicação do direito objetivo no caso concreto.23
Além disso, o interesse no âmbito do processo civil tem um caráter amplo
desdobrando-se no interesse de agir, de recorrer, de produzir provas e outros que moverão o
processo até sua conclusão. A doutrina processualista civil dá ênfase ao interesse de agir, tal
como foi destacado por Liebman, analisando o caso concreto para verificar se estão evidentes
o interesse-necessidade e o interesse-adequação.
No caso, portanto, da ação civil pública, deverá ser analisado diante da situação
concreta se há interesse-necessidade no ajuizamento da demanda, de modo que a providência
21
LENZA, Pedro. Teoria Geral da Ação Civil Pública. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 180.
Art. 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:
IV - poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade
causadora de degradação ambiental;
23
JUNIOR, Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Volume 1. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009, p. 62 - 63.
22
219
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
jurisdicional seja considerada imprescindível para a proteção dos direitos transindividuais,
sendo que de outra parte essa tutela não poderia ser resolvida por outro modo. E ainda se
ocorre interesse-adequação, entre a demanda e o procedimento escolhido pela parte para levar
a questão à análise do Poder Judiciário, então, em assim acontecendo o procedimento foi
corretamente selecionado para a defesa dos objetivos propostos nos incisos, do art. 1º, da Lei
de 7.347/85.
De acordo com Álvaro Luiz Valery Mirra24, no âmbito da ação civil pública que visa a
defesa do meio ambiente, não se apresenta de maneira diversa o interesse de agir, na medida
em que este deve ser exteriorizado, em cada situação fática, na necessidade da tutela
jurisdicional, ante a impossibilidade do autor da ação obter sem o ingresso em juízo, por
exemplo a satisfação do direito difuso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
supostamente violado, e na adequação do provimento jurisdicional solicitado à correção da
alegada lesão ambiental que em tese teria ocorrido.
Por fim, a possibilidade jurídica do pedido diz respeito à permissão ou não do direito
positivo que se instaure a relação processual em torno da pretensão do autor. Indica a
exigência de que deve existir, abstratamente, dentro do ordenamento jurídico, um tipo de
providência como a que se pede através da ação. Esse requisito, consiste na prévia verificação
que incumbe ao juiz fazer sobre a viabilidade jurídica da pretensão deduzida pela parte em
face do direito positivo em vigor.25
Referida condição da ação, como visto, está ligada a necessidade de que a formulação
da pretensão a ser submetido ao Poder Judiciário deverá estar prevista no ordenamento
jurídico positivo em vigor.
Destarte, conforme a norma26, na ação civil pública a pretensão poderá se dar de duas
maneiras. Primeira, de acordo com o art. 3º, ela poderá ter como objeto a condenação
pecuniária ou o cumprimento de uma obrigação de fazer ou não fazer. A segunda, prevista no
art. 4º, visa cautelarmente evitar o dano ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem
urbanística ou aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
Destarte, verifica-se que a ação civil pública pode ter por objeto, externalizado no
pedido, a condenação pecuniária ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, sendo
24
MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação Civil Pública e a Reparação do Dano ao Meio Ambiente. São Paulo: Editora Juarez de
Oliveira, 2004. Pag 232.
25
JUNIOR, Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Volume 1. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009, p. 60 - 61.
26
Art. 3º A ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer.
Art. 4o Poderá ser ajuizada ação cautelar para os fins desta Lei, objetivando, inclusive, evitar o dano ao meio ambiente, ao
consumidor, à ordem urbanística ou aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico
220
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
que nesse último caso o juiz deverá fixar – conforme art. 11 da Lei27 e para efeito de coagir ao
cumprimento da obrigação - a cominação de multa diária (astreintes), para a eventualidade do
descumprimento da prestação da atividade devida ou da não cessação da atividade nociva.
Essa medida coerciva colocada acima poderá ser utilizada, não apenas no contexto da
tutela reparatória ou repressiva do art. 3º, como também no da tutela preventiva de urgência,
art. 4º da Lei, pela via das ações cautelares ou ainda da antecipação de tutela final pretendida
em ações de conhecimento.
Realizadas tais considerações acerca da possibilidade jurídica do pedido no plano da
ação civil pública, surge a seguinte questão que se pode perquirir: Há lide na ação civil
pública?
Pelo que foi discorrido em torno dessa condição da ação não fica tão difícil responder
tal indagação. No entanto, para respondê-la, importante saber o que significa lide.
Deve-se o conceito de lide a Francesco Carnelutti, no entanto foi Enrico Túlio
Liebman que reformulou a teoria de Carnelutti, chegando ao conceito de lide como “conflito
de
interesses
qualificado
pela
pretensão
de
um
e
a
resistência
de
outro”.
A parte não formula apenas denúncia, mas formula pedido concreto, e neste pedido, se
configura a lide. Vislumbra Liebman a ação como poder jurídico de recorrer ao judiciário.
Visto, portanto, que a lide é definida por um conflito de interesses qualificado pela
existência de uma pretensão resistida posta em juízo, pode-se responder a pergunta de modo
afirmativo.
Isso porque, como vimos na ação civil pública a pretensão exteriorizada no pedido,
pode ter por objeto a condenação pecuniária ou na obrigação de fazer ou não fazer. Assim, de
um lado teremos o autor, Ministério Público ou os demais co-legitimados, pretendendo a
condenação da parte ré (qualquer pessoa) em alguns daqueles pedidos, sendo que a outra parte
irá resistir ao pleito que lhe é adverso.
4 INQUERITO CIVIL
Outro aspecto importante da ação civil pública, gravita em torno de um instrumento
que a Constituição Federal colocou nas mãos do Ministério Público, de modo que possa
desempenhar satisfatoriamente sua relevante função nessa seara, que é o inquérito civil. Este
se caracteriza por ser um procedimento de natureza investigatória e de caráter administrativo,
27
Art. 11. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz determinará o cumprimento
da prestação da atividade devida ou a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica, ou de cominação de
multa diária, se esta for suficiente ou compatível, independentemente de requerimento do autor.
221
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
sendo estabelecido pelo art. 8º, §1º que será presidido exclusivamente pelo Ministério
Público, o qual além de ouvir testemunhas e realizar diligências, poderá requisitar, de
qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no
prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10 (dez) dias úteis.
Por curiosidade, os demais legitimados ao efeito de instrui inicialmente a ação,
poderão requerer às autoridades competentes as certidões e informações que julgar
necessárias, a serem fornecidas no prazo de 15 (quinze) dias, uma vez que não possuem a
prerrogativa de instaurar o inquérito civil.
Nessa senda Eduardo Cambi, enaltece o papel do inquérito civil colocando a questão
da inquisitoriedade, da sua importância para o Ministério Público e da dispensabilidade
quando da preexistência de elementos probatórios e de convicção, in verbis:
O inquérito civil é um procedimento administrativo investigatório, de caráter
inquisitivo e informativo, instaurado e presidido pelo Ministério Público.
O inquérito civil se destina a colher elementos de convicção para que o
Ministério Público verifique se é caso ou não de não só promover a ação civil
pública, mas também de exercer atividades subsidiárias como a tomada de
compromissos de ajustamento, a realização de audiências públicas, a emissão de
relatórios e recomendações. Além disto, as informações colhidas no inquérito civil
podem redundar na apuração da autoria e da materialidade de ilícitos penais,
servindo de base para uma eventual denúncia, uma vez que o inquérito penal não é
indispensável à propositura da ação penal pública.
Para bem desempenhar as suas funções o Ministério Público precisa ter meios
próprios de investigação (incluindo a presença de pessoal especializado, como
técnicos em contabilidade, meio ambiente, saúde pública etc) para poder apurar fatos
que possam mostrar-se lesivos ao patrimônio público, ao meio ambiente, ao
consumidor, ao patrimônio cultural ou a outros interesses difusos, coletivos ou
individuais homogêneos.
No entanto, o inquérito civil pode ser dispensável quando existam elementos
de convicção suficientes provenientes de outras fontes (documentos provenientes de
Comissões Parlamentares de Inquérito, extraídos de outros autos de processo judicial
ou administrativo, peças recebidas do Tribunal de Contas etc). 28
Nesse campo as disposições previstas nos art. 6º e 7º da norma regente29, visam
conferir amplitude e abrangência a ação civil pública, a fim de atingir expressivo número de
casos lesivos concreta ou potencialmente. Isso porque, estabelecem que qualquer pessoa
poderá levar ao conhecimento do Ministério Público informações sobre fatos que constituam
objeto da ação civil, inclusive com indicações dos elementos de convicção. E quando, no
exercício de suas funções, juízes e tribunais tiverem conhecimento de fatos que possam
28
CAMBI, Eduardo. Ação Civil Pública 20 anos: Novos Desafios.
Art. 6º Qualquer pessoa poderá e o servidor público deverá provocar a iniciativa do Ministério Público, ministrando-lhe
informações sobre fatos que constituam objeto da ação civil e indicando-lhe os elementos de convicção.
Art. 7º Se, no exercício de suas funções, os juízes e tribunais tiverem conhecimento de fatos que possam ensejar a propositura
da ação civil, remeterão peças ao Ministério Público para as providências cabíveis.
29
222
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
ensejar a propositura da ação civil, deverão remeter peças ao Ministério Público para as
providências cabíveis.
Com isso, qualquer particular ou os órgãos oficiais poderão provocar o Ministério
Público, a fim de que venha a apurar situações que possam vir a violar ou que efetivamente
tenham ferido os bens a serem protegidos pela ação civil pública.
Definindo a natureza jurídica do inquérito civil, Marcelo Abelha Rodrigues30, destaca
que é uma ferramenta, um instrumento, vez que não tem um fim em si mesmo e não
jurisdicional ou administrativa. Segundo o jurista pode ser conceituado como “procedimento
exclusivamente à disposição do Parquet, voltado à coleta de elementos para formação de
convicção deste órgão visando à eventual propositura de ação civil para defesa de direitos
supraindividuais.
Como características o doutrinador acima, destaca as seguintes: a instrumentalidade, a
exclusividade, a dispensabilidade, a publicidade e a participação.
A instrumentalidade como visto, decorre do fato de que o inquérito civil não constitui
um fim em si mesmo, pois existe para servir de ferramenta à ação civil pública.
Exclusividade, por conta de que é exclusivo do Ministério Público e de nenhum outro
legitimado. Dispensabilidade, pois sua instauração não é requisito obrigatório para o
ajuizamento da ação civil pública. Publicidade, em razão da necessidade imposta pelo art. 37
da Constituição de atendimento a princípio.
Por fim, a participatividade, que é a mais importante sendo que por essa razão serão
dispensadas mais linhas na sua abordagem. Conforme, Marcelo Abelha, a participação está
ligada à ideia de que a livre convicção do Ministério Público deve ser feita por meio de
elementos que atestem uma situação o mais próximo da verdade, evitando um desperdício de
atividade jurisdicional, uma litispendência injusta e mais ainda uma ação civil temerária.
Assim, deve ser tida como regra a oitiva daqueles que poderão no futuro ser réus numa ação
civil pública, ao efeito de que o referido instrumento efetivamente atue na busca da verdade
probatória para evitar ações infundadas, não devendo ser visto como uma arma a ser
escondida dos futuros réus no processo.
Os autores Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino, sintetizam o panorama geral
concernente o Inquérito Civil, da seguinte maneira:
O inquérito civil e a ação civil pública são institutos distintos, embora
guardem relação entre si, conforme explicitado a seguir.
30
Almeida, Gregório Assagra de. A natureza da ação civil pública como garantia constitucional fundamental: algumas
diretrizes interpretativas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 569-572.
223
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
O inquérito civil é procedimento meramente administrativo, de natureza préprocessual, que tem por objeto coligir provas e quaisquer outros elementos de
convicção, que possam fundamentar a atuação do Ministério Público. É um meio
facultativo, de viabilizar o exercício da ação civil pública, evitando-se a propositura
de eventuais ações temerárias.
No inquérito civil, há possibilidade de uma melhor análise dos elementos e
provas apontados como fundamento para a propositura da ação civil pública.
Permite que o Ministério Público avalie bem a conveniência ou não da propositura
da ação civil.
A instauração do inquérito civil não obrigará o Ministério Público a ajuizar a
ação civil pública. Concluído o inquérito civil, desde que lhe pareçam insuficientes
as provas e demais elementos de convicção coligidos, poderá decidir pela não
propositura da ação civil pública, determinado o seu arquivamento.
A instauração do inquérito civil é facultativa; não constitui ele pressuposto
para o ajuizamento da ação civil pública. Ainda, a existência de inquérito civil, ou
mesmo o seu arquivamento, não obsta o ajuizamento da ação civil pública pelos
demais titulares ativos (associações e entidades estatais).
Em suma, podemos enumerar como características do inquérito civil:
procedimento administrativo, natureza instrumental. Pré-processual, facultativo.31
Verifica-se a questão da não obrigatoriedade de abertura o inquérito civil para
necessariamente ajuizar-se a ação civil pública, principalmente porque em sendo esgotadas
todas as diligências, não se convencendo da existência de fundamento para a propositura da
demanda, o Ministério Público de forma fundamentada promoverá o arquivamento dos autos
do inquérito civil ou das peças informativas.
Afora isso, como visto, a instauração do inquérito civil é facultativa, pois em tendo os
elementos necessários ao ajuizamento ou entendendo ser ele dispensável, independentemente
de sua instauração, o Ministério Público poderá promover a ação. Contudo, quando posta em
Juízo, dela não pode desistir por ser indisponível seu objeto, podendo somente ante as provas
produzidas opinar ao fim do processo pela improcedência.
Relevante ainda ressalta que como tem natureza de mero procedimento, não de
processo, tal fato constitui na razão ou fundamento de que nele não se pode impor sanções
(limitações, restrições ou cassações de direitos), sob pena de violação da cláusula
constitucional do devido processo legal (art. 5º, inc. LIV), pela qual ninguém pode ser privado
da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Desta forma, o inquérito civil não
se destina a coagir a imposição de sanções
legais, sendo, contudo, facultado ao agente causador dos danos submeter-se, voluntariamente,
ao compromisso de ajustamento de conduta ou, se preferir, responder em juízo eventual ação
civil pública.32
31
PAULO, Vicente e ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional descomplicado. Rio de Janeiro: Editora Método,
2008, p. 676.
32
CAMBI, Eduardo. Ação Civil Pública 20 anos: Novos Desafios.
224
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Em razão disso (ser mero procedimento) também não está submetido aos princípios do
contraditório e da ampla defesa, exsurgindo daí a questão da valoração da prova colhida no
inquérito civil.
Segundo Eduardo Cambi:
Os elementos de convencimento colhidos, durante o inquérito civil, por não
estarem sujeitos ao crivo do contraditório, perante o juiz (terceiro-imparcial), têm
valor relativo, devendo ser submetidos ao princípio do livre convencimento judicial
(art. 131/CPC).
Logo, como nosso ordenamento jurídico não adotou o sistema do tarifamento
da prova, pode-se afirmar que o juiz tem liberdade para valorar os documentos e as
informações contidas no inquérito civil, as quais devem ceder às provas, colhidas
sob o crivo do contraditório, quando estas se mostrem mais convincentes ou, quando
menos, servem como indícios a serem considerados pelo magistrado durante a
instrução probatória.
Neste sentido, o artigo 19, parágrafo único, da Lei 9.605/98, ao dispor sobre
as sanções penais e administrativas derivadas de condutas ou atividades lesivas ao
meio ambiente, afirma que a “perícia produzida no inquérito civil ou no juízo cível
poderá ser aproveitada no processo penal, instaurando-se o contraditório”.
Este posicionamento se justifica na medida em que o promotor de justiça,
freqüentemente, vale-se de laudos, relatórios e pareceres provenientes de órgãos
públicos especializados. São documentos públicos que se revestem de presunção de
legitimidade, uma vez que toda a atuação da Administração deve se pautar pela
legalidade. Verifica-se, pois, uma presunção relativa (iuris tantum) de validade,
autenticidade e veracidade, conforme prevê o artigo 364 do CPC, cabendo à parte
contrária impugnar esses atributos de legitimidade (arts. 387 e 390 do CPC).
Ademais, historicamente, admite-se, na fase extraprocessual (durante o
inquérito policial), a produção de perícia, com a sua aceitação em juízo como prova
pericial, sem contestação da sua validade ou com a exigência de nova perícia, o que,
aliás, em grande parte dos casos, seria inviável em razão do desaparecimento dos
vestígios. Mutatis mutandis, o mesmo entendimento deve ser estendido ao inquérito
civil (p. ex., quando já houver desaparecido a emissão de gases, as partículas, os
ruídos, o derramamento de óleo, a mortandade de peixes etc a configurar o dano
ambiental).
De qualquer forma, à margem da discussão sobre a valoração probatória, os
elementos de prova, colhidos durante o inquérito civil, são utilizados para a embasar
o termo de ajustamento de conduta, que resulta de uma transação entre as partes
envolvidas, ou a propositura da ação civil pública.33
Observados tais aspectos, importante analisar a questão do controle interno
mencionado na Lei nº 7.347/4534, no qual poderá ocorrer a homologação ou a rejeição do
arquivamento do inquérito civil, pelo Conselho Superior do Ministério Público, sendo que
33
34
Idem, Ibidem.
Art. 9º Se o órgão do Ministério Público, esgotadas todas as diligências, se convencer da inexistência de fundamento para a
propositura da ação civil, promoverá o arquivamento dos autos do inquérito civil ou das peças informativas, fazendo-o
fundamentadamente.
§ 1º Os autos do inquérito civil ou das peças de informação arquivadas serão remetidos, sob pena de se incorrer em falta
grave, no prazo de 3 (três) dias, ao Conselho Superior do Ministério Público.
§ 2º Até que, em sessão do Conselho Superior do Ministério Público, seja homologada ou rejeitada a promoção de
arquivamento, poderão as associações legitimadas apresentar razões escritas ou documentos, que serão juntados aos autos
do inquérito ou anexados às peças de informação.
§ 3º A promoção de arquivamento será submetida a exame e deliberação do Conselho Superior do Ministério Público,
conforme dispuser o seu Regimento.
§ 4º Deixando o Conselho Superior de homologar a promoção de arquivamento, designará, desde logo, outro órgão do
Ministério Público para o ajuizamento da ação.
225
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
nesse último caso, será designado outro órgão do Ministério Público para promover o
arquivamento da ação civil pública.
O professor Arruda Alvim35, ensina que o objetivo desse controle interno envolta do
arquivamento é impedir que os órgão do Ministério Público se esquivem, direta ou
indiretamente, do dever legal de promover a ação civil pública. De outro lado, destaca que a
lei não prevê um controle interno sobre a instauração do inquérito civil.
Diante disso, o mesmo autor, coloca a questão do controle externo da atuação do
Ministério Público em sede de inquérito civil, com a finalidade de prevenir a promoção de
atos investigatórios ilegais ou abusivos e até ulterior propositura de ação civil pública
manifestamente infundada.
Na sequencia aduz, que apesar de existir discricionariedade por parte do Ministério
Público quanto ao exame dos fatos dos quais depende o exercício da ação civil pública, essa
ausência de vinculação diz respeito somente a valoração das provas e indícios que apontem a
configuração de fatos que ensejem a propositura de ação civil pública. Entretanto, quando os
fatos que sejam objeto de apuração não configurem causa de pedir admissível para o
ajuizamento da ação, estar-se-á diante de instauração ilegal ou abusiva.
Respondendo a questão, Arruda Alvim diz que como e qualquer ato de autoridade, a
ilegal ou abusiva instauração de inquérito civil é suscetível de controle externo, pois não se
estará diante da discricionariedade dos poderes públicos. Mas, diante de controle judicial da
legalidade de ato administrativo, o que é permitido pelo ordenamento jurídico.
Por fim, como está afeto ao assunto tratado neste tópico, importante destacar que há
necessidade da justa causa para o ajuizamento da ação civil pública.
Afirma-se isso, com amparo na lição de Arruda Alvim no sentido de que o inquérito
civil por força do art. 129, III, da Constituição, foi alçado à condição de instrumento
constitucional do Ministério Público para a obtenção de informações que embasem o
ajuizamento futuro de ação civil pública.
Seguindo, o referido doutrinador, fecha o assunto arguindo que as informações obtidas
no inquérito civil poderão, naturalmente, resultar na constatação da existência ou não de justa
causa para a propositura da ação civil pública. Sendo que no primeiro caso (constatada a
existência de justa causa), será ajuizada a ação civil cabível. Já no segundo (hipótese de
inexistência de justa causa) será promovido o arquivamento do inquérito, nos termos do art. 9º
35
Alvim, Arruda. O controle judicial da legalidade da instauração de inquérito civil. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2010, p. 133 a 146.
226
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
da Lei nº 7.347/1985, que prevê o controle desse ato pelo Conselho Superior do Ministério
Público.
5 TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA
De acordo com Hugo Pedro Mazzili36, o Instituto do compromisso de ajustamento de
conduta foi introduzido pelo art. 211 do Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo
reforçado pelo art. 113 do Código de Defesa do Consumidor, que o inseriu no art. 5º, §6º da
Lei de 7.347/1985. Inspirado pela experiência prática, bem assim levando em consideração a
possibilidade já conhecida de transação até mesmo na área penal (art. 98, I, da Constituição),
a Lei 8.078/1990 introduziu uma alteração na Lei de Ação Civil Pública, que passou a
permitir o termo de ajustamento de conduta, em matéria de defesa extrajudicial de interesses
transindividuais.
Assim, o §6º, do art. 5º, da Lei 9.347/85, permitiu que os órgãos públicos legitimados
a promover a ação pudessem tomar do causador do dano o compromisso de ajustamento de
sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo
extrajudicial.
A respeito do objeto diz Mazzilli que ele se consubstancia no ajustamento da conduta
mediante estipulação de obrigação de fazer ou não fazer, podendo contar de sei termo
cominações, formando um título executivo por quantia certa.
Em razão de seu caráter consensual e de que se trata de uma garantia mínima em favor
da proteção a interesses transindividuais lesados, o professor lembra que tem-se admitido a
ampliação de objeto do compromisso para abranger outras obrigações, como o recolhimento
de importâncias ao fundo previsto no art. 13 da lei. Contudo, adverte que não se admitem
transações dessa ordem em matéria de improbidade administrativa, por força do art. 17, §1º,
da Lei 8.429/1992.
No que tange as pessoa que podem tomar os compromissos de ajustamento de conduta
é importante lembrar que são os órgão públicos legitimados. Isto é, poderão tomá-lo:
Ministério Público, União, Estados, Municípios, Distrito Federal, e os demais órgãos
públicos, a exemplo dos Procons. Não poderão toma-lo: associações civil, fundações privadas,
sindicatos.
36
Mazzilli, Hugo Pedro. Notas sobre o inquérito civil e o compromisso de ajustamento de conduta. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais. 2010, p. 316.
227
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
As características do termo de ajustamento de conduta segundo Mazzilli, são as
seguintes:
O compromisso de ajustamento de conduta tem as seguintes características:
- é tomado por termo (daí o outro nome pelo qual também é muito conhecido:
Termo de Ajustamento de Conduta – TAC)
- seu objeto deve envolver uma obrigação certa em sua existência e determinada
quanto ao seu objeto, para que tenha efetiva liquidez.
- deve prever sanção pecuniária para o caso de descumprimento (caráter
cominatório)
- dispensa testemunhas instrumentárias;
- gera a formação de um título executivo extrajudicial (anulável pelos vícios do ato
jurídico geral);
37
- dispensa homologação judicial.
Além dessas características pode-se perquirir se existe o direito subjetivo de firmar o
compromisso de ajustamento de conduta prevista na Lei da Ação Civil Pública, ou se dispõe o
Ministério Público da faculdade de não assiná-lo sem sequer discutir suas cláusulas. De
acordo com Divisão de Informativos do STJ e STF, no julgamento do Recurso Especial nº
596.764/MG, sob relatoria de Min. Antonio Carlos Ferreira, entendeu-se que o art. 5º, § 6º, da
Lei n. 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública) dispõe que os legitimados para a propositura da
ação civil pública poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua
conduta às exigências legais. Assim, do mesmo modo que o Ministério Público não pode
obrigar qualquer pessoa física ou jurídica a assinar termo de cessação de conduta, também não
é obrigado a aceitar a proposta de ajustamento formulada pelo particular. O compromisso de
ajustamento de conduta é um acordo semelhante ao instituto da conciliação e, como tal,
depende da convergência de vontades entre as partes. Ademais, não se pode obrigar o MP a
aceitar uma proposta de acordo – ou mesmo exigir que ele apresente contrapropostas tantas
vezes quantas necessárias – para que as partes possam compor seus interesses, sobretudo em
situações como a discutida, em que as posições eram absolutamente antagônicas.38
Importante trazer que compromisso de ajustamento de conduta, quando celebrado pelo
Ministério Público, nos autos do inquérito civil, enseja o seu arquivamento, necessitando, para
se completar e operar efeitos válidos, do conseqüente arquivamento, total ou parcial do
inquérito civil, pelo Conselho Superior.39
Com isso, verifica-se uma forma alternativa de resolução de conflitos em torno dos
bens protegidos pela Lei nº 7.347/1985, que na maioria das vezes tem efeito muito mais
37
38
39
Idem, Ibidem.
Divisão de Informativos do STF e do STJ.
CAMBI, Eduardo. Ação Civil Pública 20 anos: Novos Desafios.
228
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
benéfico e eficaz, na medida em que através dele poderá agir preventivamente de modo a
evitar o dano ou até sanar um dano ambiental passível de reparação, por meio dos
ajustamentos firmados entre as partes, no qual a garantia do seu cumprimento é feito
coativamente através da multa fixada no acordo.
6 AÇÃO CIVIL PÚBLICA E SUSTENTABILIDADE
Antes de adentrar especificamente no tema ação civil pública como ferramenta da
sustentabilidade, importante discorre suscintamente sobre esta última, tecendo uma visão
genérica, a fim de se ter uma noção geral a seu respeito.
A idéia de sustentabilidade foca um conceito de sistema voltado para a continuidade
dos aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais da vida em sociedade. Em geral tem
como pilares o que é biologicamente correto, o socialmente justo, o economicamente viável e
o culturalmente diverso.
Possui o escopo de ser ferramenta por meio da qual o homem possa configurar a
atividade humana no seio da sociedade de tal forma que os membros dela, e as suas
respectivas economias consigam suprir a contento suas necessidades. E, de outra parte,
preservar a biodiversidade e os ecossistemas naturais, planejando e agindo de forma a atingir
pró-eficiência na manutenção indefinida desses ideais, a ponto de a forma de uso dos recursos
atualmente existentes não afete no futuro a utilização dos mesmos pelas gerações vindouras.
A teoria da sustentabilidade originou-se de uma retomada de discussão por parte da
ONU no início da década de 1980 que levantou o debate em torno das questões ambientais.
Para compor essa entidade internacional foi indicada a primeira-ministra da Noruega Sra. Gro
Harlem Brundtland, a qual chefiou a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento, que tinha por objetivo analisar, pesquisar e discutir o assunto. Como
resultado final das discussões e estudos obteve-se um documento intitulado Nosso Futuro
Comum, também conhecido como Relatório Brundtland.
O Relatório foi publicado em 1987, e em seu bojo traça uma visão crítica do modelo
de desenvolvimento hodiernamente adotado pelos países industrializados, o qual é
reproduzido pelas nações em desenvolvimento. Alerta, outrossim, para os riscos e possíveis
consequências do uso excessivo dos recursos naturais sem considerar a capacidade de suporte
dos ecossistemas. Ao final, aponta para a incompatibilidade dos modelos de produção e
consumo vigentes e sugere como alternativa o desenvolvimento sustentável que é “aquele que
229
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras
atenderem às suas necessidades”.
Realizadas tais considerações, verificamos uma correlação entre o objetivo do
desenvolvimento sustentável e os objetivos da ação civil pública. Na medida em que ao
colocar lado a lado a definição de desenvolvimento sustentável e os bens protegidos pela Lei
nº 7.347/1985, verificar-se-á que em várias questões haverá contato entre os pontos
defendidos.
Isso fica mais evidente ainda ao analisar inciso V, do art. 1º da Lei de Ação Civil
Pública - dirigido a defesa da ordem econômica e da economia popular -, em consonância
com o art. 170 da Constituição de 198840 que traça os princípios da ordem econômica.
Os pontos de inter-relacionamento e de contato entre a ação civil pública e a
sustentabilidade, ficam claros ao se analisar os incisos do art. 1º da Lei nº 7.347/1985 e do art.
170 da Constituição, em face da teoria do desenvolvimento sustentável.
Conforme Edis Milaré41 a sustentabilidade na sua trajetória no tempo vem sendo
afetada pela sociedade industrial. Em razão disso destaca a importância das considerações
jurídicas sobre o tema ação civil pública como procedimento educativo e indutor de práticas
sustentáveis, ante esse quadro de desapego a práticas sustentáveis. Entende também ser
mecanismo de cidadania, por seu caráter intimidativo e de enfática implementação
(promovida pelo Ministério Público de modo exemplar), porquanto a ação civil pública teve o
mérito de acelerar a luta contra o chamado passivo ambiental, colocando a preocupação com o
meio ambiente em posição de destaque.
Além disso, o referido professor aduz que esse caráter intimidativo aliado à ação penal
pública (capaz de colocar como ré a pessoa jurídica, por força do art. 3º da Lei nº 9.605/1998),
possibilitou o delineamento de novas idéias e posturas no meio empresarial, eivadas de
sustentabilidade. O exemplo citado pelo autor, dessa situação, é o caso das empresas,
40
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e
serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e
administração no País
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização
de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
41
Milaré, Edis. Ação civil pública, instrumento indutor da sustentabilidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.
2010, p. 197.
230
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
principalmente de grande porte, que passaram a se associar ao esforços do Poder Público e da
sociedade nas frentes mais importantes da gestão ambiental. Medidas como a certificação
pelas normas NBR-ISSO 14000, a submissão aos chamados Princípios do Equador, a adesão
ao índice de Sustentabilidade Empresarial – ISE/Bovespa, a comercialização dos chamados
créditos de carbono, e de outras práticas sustentáveis, a exemplo do uso de energias
renováveis.
Nota-se, com isso, um novo paradigma traçado pela força que a ação civil pública
possui como indutora da sustentabilidade, em que a presença empresarial é fundamental, de
modo que sua atividade seja desenvolvida ao máximo dentro desse novo modelo de
desenvolvimento econômico. Até porque, consoante Milaré no vasto universo da produção e
das engrenagens da economia, é preciso sempre enfatizar que não há economia sem ecologia,
da mesma forma que não há ecologia sem economia bem como não há ambiental sem social,
nem social sem ambiental.
Portanto, em face da realidade brasileira sempre haverá espaço para a ação civil
pública, ao efeito de corrigir rumos e propiciar uma influência pedagógica, de modo que
possa alcançar um razoável patamar de sustentabilidade.
7. CONCLUSÃO
Diante do exposto, foi possível averiguar que a ação civil pública é fundamental para a
defesa dos direitos transindividuais ou metaindividuais, principalmente em razão da sua
promoção exemplar pelo Ministério Público, em comparação aos demais co-legitimados que
sofrem com uma série de dificuldades para atingir o ideal.
Analisada sob os mais variados aspectos – campo de atuação, natureza jurídica,
condições da ação, inquérito civil, termo de ajustamento de conduta – a Lei nº 7.347/1985,
traça em regime jurídico completo e eficaz para a proteção daqueles bens que destaca em seu
texto e de outros, a exemplo da ordem econômica.
Em que pese os doutrinadores apontarem alguns rumos para a melhora da disciplina
jurídica da ação civil pública, de maneira geral elogiam o papel por ela desempenhado após
25 anos de sua publicação.
E isso, como pode ser visto, é assente na medida em que é possível considerar a ação
civil pública como indutora do desenvolvimento sustentável, exatamente por conta de que
essa proteção não seria possível de ser realizada através do processo individual.
231
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
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233
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
AS MULHERES DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS NA PROMOÇÃO DO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
WOMEN FROM TRADITIONAL COMMUNITIES IN PROMOTING OF THE
SUSTAINABLE DEVELOPMENT
Fábio Rezende Braga1
Márcia Rodrigues Bertoldi2
RESUMO
As comunidades tradicionais têm uma importância fundamental na conservação e proteção do
meio ambiente, levando em consideração que sua organização social serve como contraponto
à nociva relação empreendida pelas grandes sociedades de consumo. Ademais, os saberes
tradicionais oriundos delas demonstram o quanto é possível estabelecer uma relação saudável
entre a natureza e o Homem. Neste contexto, a Convenção sobre Diversidade Biológica
(CDB) prevê, através das decisões das Conferências das Partes (COP), o reconhecimento das
práticas sustentáveis empreendidas pela mulher como vetor na manutenção das comunidades
tradicionais, as quais garantem a manutenção e o desenvolvimento dos conhecimentos
tradicionais associados à biodiversidade e dos habitats onde se desenvolvem. Deste modo, é
imprescindível conhecer o papel da mulher na comunidade tradicional a partir da
compreensão do ecofeminismo, movimento político que dá propriedade à relação de
intimidade estabelecida entre a mulher e a natureza, as quais se unem para combater as
opressões advindas da lógica capitalista e do patriarcado, buscando garantir o direito à
continuidade cultural e ao desenvolvimento sustentável. O presente trabalho tem caráter
qualitativo e a construção dos dados será realizada sobre a base da pesquisa bibliográficodocumental. Enquanto a pesquisa bibliográfica nos oferecerá o aporte necessário para
compreender os conceitos, princípios e instituições jurídicas que estruturam o objeto, a
documental nos oferecerá o conhecimento quanto à legislação, as discussões nos fóruns
internacionais, bem como as decisões e deliberações que a CDB emite sobre a temática.O
objetivo geral do trabalho é identificar o papel da mulher pertencente a comunidades
tradicionais no desenvolvimento de práticas sustentáveis que fomentam a continuidade
cultural e a promoção do desenvolvimento sustentável, o principal programa político, jurídico,
econômico e social, da sociedade contemporânea.
PALAVRAS-CHAVE: Mulher; Comunidades tradicionais; Desenvolvimento Sustentável.
ABSTRACT
Traditional communities have a fundamental importance in environmental conservation,
given that their social rearrangement works as a counterpoint to the harmful relationship
undertaken by large consumer societies. Furthermore, the traditional knowledge from them
demonstrates how much it is possible to establish a healthy relationship between nature and
1
FÁBIO REZENDE BRAGA. Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Tiradentes. Bolsista de
Iniciação Científica – CNPQ. E-mail: [email protected]
2
MÁRCIA RODRIGUES BERTOLDI. Doutora em Direito pela Universidade de Girona, com título revalidado
pela Universidade Federal de Santa Catarina. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito daUNIT.
E-mail: [email protected]
234
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
humankind. In this context, the Convention on Biological Diversity (CBD) provides, through
the decisions of the Conference of the Parties (COP), the recognition of women as vectors in
the maintenance of traditional communities, because of sustainable practices undertaken by
them, which ensure the maintenance and development of traditional knowledge associated to
biodiversity and habitats where they grow. Thus, it is essential to understand the role of
women in the traditional community in the light of ecofeminism, political movement that
supports the intimate relationship established between women and nature, which unite to fight
oppression from the capitalist logic and patriarchy, seeking to guarantee the right to cultural
continuity and sustainable development. The present paper is qualitative and the construction
of data will be conducted based on bibliographical and documental research. While the
bibliographical research offers the contribution needed to understand the concepts, principles
and legal institutions that structure the object, the documental will provide knowledge
concerned to law, discussions in international forums, and also the decisions and deliberations
that CBD issues on the theme. The general objective of the study is to identify the role of the
women who belong to traditional communities in the developing of sustainable practices that
promote cultural continuity and sustainable development, the main political, legal, economic
and social program of contemporary society.
KEYWORDS: Women; Traditional Communities; Sustainable Development.
1 INTRODUÇÃO
O relacionamento do Homem com a natureza tem se caracterizado de forma
hierárquica. O Homem posiciona-se como senhor dos ecossistemas que, por sua vez, somente
são utilizados como matéria prima para o motor propulsor das sociedades de consumo. Neste
sentido Bertoldi, Lucena e Silva3 explicam:
À medida que as grandes sociedades ocidentais foram se solidificando a natureza
passou a exercer um papel social para o Homem. Sua principal função foi a de suprir
todas as necessidades através da obtenção de matéria-prima fundamental para a
manutenção da máquina propulsora das relações humanas.
Em vista disso, os elementos naturais foram explorados de forma ostensiva, não
havendo qualquer critério quanto à conservação/preservação do meio ambiente. Com o passar
do tempo, os efeitos negativos de tais práticas passaram a afetar os seres humanos. As
inúmeras catástrofes naturais, como a perda da biodiversidade4, a mudança climática5, além
3
BERTOLDI, Marcia Rodrigues; LUCENA, Klecstania; SILVA, Leonardo M. Vasconcelos. “Direitos Humanos
e Biotecnologia: é possível juntar as partes do todo?”. In: BERTOLDI, Marcia Rodrigues, SPOSATO, Karyna
Batista (Coord.). Direitos Humanos: entre a Utopia e a contemporaneidade. Belo Horizonte: Fórum,
2011.p.234.
4
O estado da biodiversidade global permanece em declínio, com perdas correntes e substanciais de populações,
espécies e habitats. Por exemplo, populações vertebradas têm diminuído em média de 30 por cento desde 1970, e
até dois terços de espécies em alguns taxo estão ameaçadas de extinção. Tais decréscimos são mais rápidos nos
235
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
da exposição ao risco proporcionado por experiências científicas baseadas na manipulação
genética dos seres vivos (biotecnologia moderna6), são exemplos que se apresentam como
resposta à equivocada relação (Homem versus natureza) que vem trazendo consequências
irreparáveis à humanidade.
A construção de uma identidade histórica, cultural, social e política está diretamente
ligada aos costumes e tradições desenvolvidas por um povo. Seu modo de pensar, viver e agir,
influenciam e desenvolvem novas formas de percepção da vida como um todo. Em relação ao
meio ambiente, a sociedade moderna ocidental inspirou um modelo predatório que degrada e
esgota recursos indispensáveis à sobrevivência, tanto do humano como dos demais seres
vivos. Nesse contexto, temos nas comunidades tradicionais7 exemplos vivos de como uma
sociedade construída a partir de experiências diferenciadas, pautadas em valores imateriais e
orgânicos, proporcionam uma ligação particular com a natureza.
Essas comunidades funcionam como contraponto às sociedades de consumo, pois,
para elas, há uma notória coexistência pacífica entre a subsistência e a preservação dos
elementos in natura. No Brasil, há pelo menos 231 povos indígenas e diversas comunidades
locais (caiçaras, quilombolas, seringueiros, catadoras de mangaba, ribeirinhos, etc.),
constituindo uma população de mais de 600 mil pessoas8. “Segundo dados analisados pelo
trópicos, em habitats de água doce e para espécies marinhas utilizadas por humanos. A conversão e a degradação
dos habitats naturais está ocorrendo, alguns deles já passa por quedas de 20 por cento desde 1980. (tradução
nossa). UNEP. Environment for the future we want - 5th Global Environment Outlook (GEO-5). 2012. p.
134. Disponível em: < http://www.unep.org/geo/pdfs/geo5/GEO5_FrontMatter.pdf >.
5
A mudança climática ameaça todos os países, sendo os países em desenvolvimento os mais vulneráveis.
Segundo as estimativas, recai sobre eles de 75% a 80% dos custos de prejuízos causados pela mudança climática.
Até mesmo um aquecimento de 2°C acima das temperaturas pré-industriais — o mínimo que provavelmente o
mundo experimentará — poderia resultar em reduções permanentes do PIB de 4% a 5% para a África e o
Sudeste Asiático. BANCO MUNDIAL. Relatório sobre o desenvolvimento mundial 2010. Desenvolvimento e
mudança
climática.
2010.
p.
VIII
Disponível
em:
<http://siteresources.worldbank.org/INTWDR2010/Resources/52876781226014527953/WDR10_AdOverview_BP_Web.pdf>.
6
“Consiste no resultado da técnica da engenharia genética: a atividade de manipulação de moléculas de ADN
recombinante, ou seja, a agrupação artificial de moléculas ou partes de moléculas de ADN que não se encontram
juntas na natureza e que se convertem numa nova combinação ou nível de variação, gerando assim os
organismos vivos modificados (OVMs).” BERTOLDI, Márcia Rodrigues; BRAGA, Fábio Rezende. “A
continuidade cultural como uma preocupação comum da humanidade.” Jurispoiesis. Rio de Janeiro. v. 13. 2010.
p. 310.
7
“Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que
possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como
condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos,
inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição Art. 3o, inc. I, Decreto nº 6040/07 Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm>.
8
Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cop10/panorama/o-que-o-brasil-esta-fazendo/valorizacao-dosconhecimentos-tradicionais>.
236
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida pode-se afirmar que cerca de ¼ do Território
Nacional Brasileiro é ocupado por povos e comunidades tradicionais” 9:
Esse contingente populacional é responsável pela conservação/preservação dos
ecossistemas dos quais fazem parte, pela promoção da sustentabilidade cultural, pelo
desenvolvimento das singularidades sociais próprias que o caracteriza e, ao mesmo tempo,
pela definição da história da nação da qual faz parte. Desde a análise de um grupo de
quilombolas do Vale do Guaporé, na região norte do Brasil, Cruz narra sua percepção:
Assim, percebemos mulheres e homens remanescentes de quilombos com práticas
sociais que destoam da visão do mundo individualista, que contribuem com seus
modos de vida para constituir práticas que se situam em outras perspectivas tanto do
ponto de vista das relações interpessoais quanto das relações com a natureza; são
valores diferentes das sociedades industrialistas. 10
A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e o Protocolo de Nagoya11 têm
sido os principais instrumentos internacionais de proteção da biodiversidade, dos
conhecimentos tradicionais e das comunidades indígenas e locais (tradicionais). De maneira
transdimensional, vem sendo um veículo multidisciplinar de discussão que procura
alternativas para os problemas que cerceiam um possível desenvolvimento sustentável.
Portanto, os meios de contenção e reparação das degradações ambientais e a desconstrução da
segregação entre o Homem e o meio ambiente são imprescindíveis a tal fim. Tais objetivos
são promovidos a partir de ações políticas fomentadas e adotadas pelos países membros da
CDB.
Um dos pontos discutidos é a participação efetiva da mulher nas decisões e no
direcionamento das comunidades tradicionais. Várias são as decisões da CDB que
reconhecem o papel diferenciado das mulheres na dinâmica social das comunidades, em razão
9
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais. Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome. 2006. Brasília–DF. p. 3.
Disponível em:
<http://www.mds.gov.br/backup/arquivos/oficinas-de-construcao-da-politica-de-desenvolvimento-sustentavelpara-os-povos-e-comunidades-tradicionais-de-14-a-23-09/texto-contextualizacao-e-texto-base-da-politica.pdf >.
10
CRUZ, Tereza Almeida. Mulheres da floresta do Vale do Guaporé e suas interações com o meio
ambiente. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 18, n. 3, Dezembro. 2010 . pp.913-925. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2010000300016&lng=en&nrm=iso>.
11
O Protocolo de Nagoya sobre o acesso dos recursos genéticos e da participação justa e equitativa dos
benefícios derivados de sua utilização na Convenção sobre Diversidade Biológica é um acordo internacional
cujo objetivo é compartilhar os benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos de forma justa e
equitativa, um acesso adequado a esses recursos e uma transferência apropriada das tecnologias pertinentes,
levando em consideração todos os direitos sobre os recursos e essas tecnologias, e mediante um financiamento
apropriado, contribuindo assim coma conservação da diversidade biológica e a utilização sustentável de seus
componentes. Foi adotado pela Conferência das Partes na CDB na sua décima reunião, em 29 de outubro de
2010, em Nagoya, Japão. Disponível em: < http://www.cbd.int/abs/>.
237
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
das práticas sustentáveis fomentadas por elas. Inclusive, sugerem que ocupem posições de
liderança e diálogo na implementação de políticas públicas que visem a conservação dos
ecossistemas em que vivem. Está nos princípios gerais do programa de trabalho da CDB que a
mulher proveniente das comunidades tradicionais deve ter plena e efetiva participação em
todas as atividades do Programa de Trabalho sobre a aplicação do artigo 8j12, que diz respeito
à proteção dos conhecimentos tradicionais.
Estudar as práticas femininas e seu papel nas comunidades tradicionais implica na
compreensão das diferentes perspectivas sociais inerentes a estas sociedades que se organizam
de múltiplas maneiras, muitas vezes inexistindo comparações com a realidade social das
grandes sociedades. A priori, é possível perceber a especificidade do trato feminino com as
práticas tradicionais como é o caso das “catadoras de mangaba” que, nas palavras Britto e
Mota:
[...] tratam as plantas como indivíduos passíveis de conversação, supervalorizam as
que produzem mais e questiona os motivos pelas quais algumas não se encontram
em elevada produção. 13
Partindo deste ponto, torna-se imprescindível compreender a importância da mulher
dentro da lógica do desenvolvimento sustentável como promotora de uma consciência
ecológica e do equilíbrio econômico, social e cultural.
A principal referência desta relação encontra-se no Ecofeminismo, movimento
político, cujas pautas de luta convergem contra a lógica capitalista do patriarcado que oprime
a mulher e a natureza. Esse movimento, não só político como também social, traduz uma nova
alternativa, um novo modelo, sensível à realidade contemporânea. Nas palavras de Di
Ciommo:
[...] um novo modelo, uma nova cultura, trabalhando com a utopia, propõe a
necessidade de características antes 'femininas' para todos, e talvez essa
12
CDB, Artigo 8, alínea J "Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o
conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida
tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais
ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e
encorajar a repartição equitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e
práticas”.
13
BRITO, Jane V.S. Brito.; MOTA, Dalva Maria. “O extrativismo da Mangaba em Sergipe: uma atividade
meramente feminina?”. In: VIII CONGRESSO LATINOAMERICANO DE SOCIOLOGIA RURAL. Porto
de Galinhas. 2010. p. 14.
238
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
transformação ocorra inserindo-se nos conteúdos educativos uma maneira sensível
de olhar o meio ambiente.14
Em suma, visualizar as práticas das mulheres nas comunidades tradicionais, a
partir do Ecofeminismo, enseja a elaboração de um modelo político ecológico pautado na
organização e luta social protagonizada pelas mulheres que, mediante suas práticas cotidianas,
garantem a continuidade dos saberes tradicionais e a preservação/conservação da natureza, no
âmbito do paradigma da “cidadã ecológica”
15
, com vistas à possível efetivação do
desenvolvimento sustentável.
2 DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE
A utilização racional dos recursos naturais demarca o principal objetivo do
paradigma político, econômico, cultural, social e ambiental recentemente introduzido na
agenda da comunidade internacional e há muito tempo cobiçado pela natureza: o
desenvolvimento sustentável que “é aquele que atende às necessidades do presente sem
comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades”
16
.
O conceito de desenvolvimento sustentável17, que se difunde no Relatório
Brundtland em 198718 e se consolida na Eco/92 com a Agenda 21 e com a adoção como
princípio19 pela Declaração do Rio, é um termo que abrange a sinergia das sustentabilidades
ecológica, econômica, política, social, cultural, espacial, com vistas a promover o
desenvolvimento das presentes gerações sem afetar as possibilidades das próximas, com “[...]
14
Ibid. p.440.
Expressão inspirada no conceito de consciência ecológica, utilizada por Marcos Lobato Martins. MARTINS,
Marcos Lobato. História e meio ambiente. In: HISSA, Cássio Eduardo Viana (Org.) Saberes Ambientais. Belo
Horizonte: UFMG, 2008. p. 71-76.
16
COMISIÓN MUNDIAL DEL MEDIO AMBIENTE Y DEL DESARROLLO. Nuestro Futuro Común.
Madrid: Alianza Editorial, 1992. p. 67.
17
O conceito nasce do Relatório intitulado “Os limites do crescimento”, elaborado pelo instituto Tecnológico de
Massachusetts (MIT) para o Clube de Roma em 1972 e do conceito de ecodesenvolvimento proposto por Ignacy
Sachs e Maurice Strong.
18
Este objetivo/princípio se foi introduzido na agenda internacional por meio do Relatório Brundtland (Nosso
Futuro Comum) no ano de 1987. Um programa global para a mudança. Essa foi a petição da Assembleia Geral
das Nações Unidas para a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CMMAD), criada
pela Assembleia em 1983, que resultou na publicação do referido Relatório, o qual recebe o nome da presidente
da Comissão, a então primeira ministra da Noruega Gro Harlem Brundtland.
19
Princípio 3: O Direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas
equitativamente as necessidades de desenvolvimento e de meio ambiente das gerações presentes e futuras.
15
239
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
respeito consciente e pleno à titularidade dos direitos daqueles que ainda não nasceram e à
ligação de todos os seres, acima das coisas”20.
Machado refere-se ao aduzido no Relatório no sentido de que “o desenvolvimento
sustentável pressupõe uma preocupação de equidade social entre as gerações, preocupação
que deve estar presente, logicamente, numa mesma geração”21. Destaca ainda, a declaração
final do Simpósio Internacional de Direito Comparado do Meio Ambiente realizado em
Tóquio (1992):
[...] o meio-ambiente global é uma herança que nós – geração atual – devemos
herdar de nossos ancestrais e transmitir à geração futura com possibilidades de
desenvolvimento. Esta responsabilidade nós a chamamos “responsabilidade
patrimonial” segundo a fórmula do Prof. J. Sax. O direito ambiental global deve
poder assumir esta responsabilidade patrimonial, qualquer que seja o problema: CO2
, floresta tropical úmida ou a diversidade biológica.22
Essa responsabilidade obriga, portanto, que a exploração econômica dos recursos
da natureza atue dentro de um campo com limites bem definidos e, em tese, intransponíveis,
traduzidos na atividade econômica responsável de forma a tratar os recursos renováveis como
não renováveis, com parcimônia e resguardando a renovação, tendo em mira as futuras
gerações. Mudar a perspectiva e forçar a uma “cultura do desenvolvimento”
23
, onde todo o
corpo social deve ser responsável pela construção da nova relação que devemos ter em
relação ao meio ambiente.
Em palavras de Ruiz o desenvolvimento sustentável persegue o logro de três
objetivos essenciais: um objetivo puramente econômico, a eficiência na utilização dos
recursos e o crescimento quantitativo; um objetivo social e cultural, a limitação da pobreza, a
manutenção dos diversos sistemas sociais e culturais e a equidade social; e um objetivo
20
LEONARD, Annie. La Historia de las cosas. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica. 2010. Disponível
em: < http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=upJRjTcJORg>
21
COMISIÓN MUNDIAL DEL MEDIO AMBIENTE Y DEL DESARROLLO. Nuestro Futuro Común.
Madrid: Alianza Editorial, 1992.
22
MACHADO, Paulo Affonso Leme. “Princípios Gerais de Direito Ambiental Internacional e a Política
Ambiental Brasileira”. In BENJAMIN, Antônio Herman V. (Org.), Dano Ambiental – prevenção, reparação e
repressão, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. p. 407-408.
23
SACHS, Ignacy. A terceira margem: em busca do ecodesenvolvimento. São Paulo: Cia. das Letras. 2009.
p.352.
240
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
ecológico, a preservação dos sistemas físicos e biológicos (recursos naturais lato sensu) que
servem de suporte à vida dos seres humanos24.
Posteriormente, o princípio/objetivo foi fortalecido na Rio/92, principalmente com
a adoção da Agenda 21 e da Declaração do Rio sobre o meio ambiente e o desenvolvimento,
na Declaração de Copenhague sobre o Desenvolvimento Social de 1995, adquirindo
culminância na Reunião Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável que adotou um
documento de intenções políticas sem soluções muito alentadoras e um plano de ação um
tanto complexo, num intento de fechar a dívida existente com o Relatório de 1987 e a Rio/92.
Além dos elementos referidos, a prática necessita, segundo Almeida25, dos
seguintes pré-requisitos: democracia e estabilidade política; paz; respeito à lei e à
propriedade; respeito aos instrumentos do mercado; ausência de corrupção; transparência e
previsibilidade do governo; reversão do atual quadro de concentração de renda em esferas
global e local.
Em definitiva, um conceito ainda vazio de efetividade, pois de difícil
aplicabilidade em face de sua juventude, da pluralidade de dimensões que encerra (ambiental,
econômica e social), da ainda inexistência de instrumentos realmente capazes de fazê-lo
operante ou quiçá comprometimento em obrar os existentes, da superposição econômica
frente ao ambiente e ao social e principalmente da dificuldade que tem o Homem em adotar
um olhar de integridade (visão de mundo ecológica profunda (deep ecology) o que inclui a
ética da inconformidade, da alteridade, do cuidado).
3 COMUNIDADES TRADICIONAIS E SUSTENTABILIDADE: UMA POSSÍVEL
ALTERNATIVA
As comunidades tradicionais são responsáveis pelo desenvolvimento de técnicas
singulares de preservação ambiental, cultural, religiosa e ambiental. Seu modo de trabalhar
junto com a natureza e não de forma isolada, contribui para a construção de uma identidade
preservacionista entre todos os membros da comunidade. A comunidade tradicional é
portadora de racionalidades próprias, sejam elas econômicas políticas e sociais. É
culturalmente e de forma singular, produtiva de valores e princípios próprios. O detentor do
24
25
RUIZ, José Juste. Derecho Internacional del Medio Ambiente. Madrid: MacGraw-Hill, 1999. p. 33.
ALMEIDA, Fernando. O bom negócio da sustentabilidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
241
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
conhecimento seria como um “artesão”, tamanha complexidade de seu trabalho. Dentro da
lógica tradicional, o ser humano faz parte do ciclo e deve colaborar na perpetuação do
equilíbrio natural.
Os conhecimentos ou saberes tradicionais associados à biodiversidade são práticas
consuetudinárias, que distinguem esses agrupamentos humanos. Podem ser manifestados em
comunidades, grupos, ou inclusive individualmente. Importante salientar que apesar dos
conhecimentos tradicionais poderem ser visualizados individualmente, eles precisam ser
manifestados no contexto que pertencem. As práticas precisam ser externalizadas para que
haja um reconhecimento amplo e uma consequente valorização: “o patrimônio cultural
intangível não pode existir apenas na mente de um indivíduo ou permanecer adstrito à sua
esfera privada, mas deve ser manifestado por este indivíduo ao mundo externo ou a qualquer
outro indivíduo.” 26
Esse componente compreende:
[...] desde técnicas de recursos naturais até métodos de caça e pesca, conhecimentos
sobre os diversos ecossistemas e sobre propriedades farmacêuticas, alimentícias e
agrícolas de espécies e as próprias categorizações e classificações de espécies de
flora e fauna utilizadas pelas populações tradicionais27.
Através de métodos peculiares de fazer e enxergar a vida, incluído o meio
ambiente que os circundam, esses grupos possuem uma identidade cultural e histórica
particular, de modo que mecanismos de proteção são imprescindíveis para sua perpetuação
ao longo do tempo: manter a história viva. Em suma,
Estas sociedades tradicionais, guardiãs de um rico e ameaçado saber, compartem
estilos de vida particulares, fundados na natureza, no conhecimento dela e nas
melhores práticas para conservá-la e utilizá-la sustentavelmente, respeitando, desse
modo, sua capacidade de recuperação e conservação.28
26
SCOVAZZI, Túlio. “A definição de Patrimônio Cultural Intangível”. In: CUREAU, Sandra et al. (Coord.).
Olhar Multidisciplinar sobre a efetividade da proteção do Patrimônio Cultural. Belo Horizonte: Fórum,
2011. p.125.
27
SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e Novos Direitos. São Paulo: Peirópolis, 2005, p. 192.
28
BERTOLDI, Márcia Rodrigues; BRAGA, Fábio Rezende. Patrimônio genético e patrimônio cultural imaterial
associado à biodiversidade: desvelando a Medida Provisória nº 2186-16/2001. In: CUREAU, Sandra et al.
(Coord.). Olhar Multidisciplinar sobre a efetividade da proteção do patrimônio cultural. Belo Horizonte:
Fórum, 2011. p 469-489.
242
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A biodiversidade integra-se às comunidades através de seu pertencimento ao um
determinado ambiente natural, de seus modos de fazer, criar e selecionar, dos recursos
naturais que lhe são oferecidos. Mais do que simples atividades de subsistência essas práticas,
quando visualizadas em uma escala maior, podem ser desenvolvidas a ponto de
transformarem-se em fonte econômica, como é o caso da biotecnologia moderna. Nessa
perspectiva, Cureau29 referencia informa:
Há estimativas de que o mercado mundial de produtos biotecnológicos movimente
entre 470 bilhões e 780 bilhões de dólares por ano, bem como que, dos 120
componentes ativos isolados de plantas e utilizados pela medicina atualmente, 74%
apresentam uma correlação positiva entre o seu uso terapêutico moderno e o uso
tradicional da planta de que foram extraídos. De outro lado, 118 dos 150
medicamentos mais prescritos no ano de 1997 continham ao menos um dos
principais ingredientes ativos derivados de componentes da diversidade biológica.
Sabe-se, ainda, que 25% dos medicamentos hoje existentes são elaborados com
ingredientes ativos de plantas (...).
Por fim, cabe reforçar o relevante e significativo papel desempenhado pelas mulheres
tanto tradicionais como da comunidade civil, no desenvolvimento de práticas singulares que
fomentam um melhor alcance aos novos parâmetros estabelecidos pelo conceito do
desenvolvimento sustentável. Mulheres que além de entenderem a relação sócio-metabólica
entre a natureza e os demais seres, proporcionam um reexame da própria relação do ser
humano com os recursos naturais utilizados para sua perpetuação e sobrevivência.
4. O ECOFEMINISMO E A MULHER TRADICIONAL COMO VETOR NA PROMOÇÃO
DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
A mulher e sua relação com a natureza não é algo novo, muito menos regular. Perfaz
o caminho de suas existências entre as intempéries criadas pelo corpo social de maneira
artificial, tecnocrata e numa carnalidade sem espírito. Ambas sofrem e partilham dos produtos
do sistema masculinizante-cartesiano. O homem em si, já não mais é o vetor de promoção na
verticalização hierárquica sedimentada ao longo das décadas. O sistema não necessita em si
mais do parâmetro masculino para sua reprodução. O homem é um mero instrumento de uma
sistemática em que o mesmo sofre. O estereótipo do homem branco, rico, nortista, e
segregador, passou a diferenciar todos os demais. Mulheres, negros, índios, idosos, jovens.
Não há mais espaço para nenhuma diferença, nem contradição, tal como a Matrix dos irmãos
29
Idem. p. 245.
243
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Wachowski que, “está em toda parte e é o mundo que acreditamos ser real para que não
percebamos a verdade”
30
. O sistema patriarcal-mecanicista afastou a mulher, o homem e a
natureza para que ambos não mais interferissem na sua perpetuação inquisitorial que não
admite contradição, seja ela feminina ou natural.
4.1 Movimentos sociais
A mulher tradicional31 desenvolveu uma maneira diferenciada de lidar com a
natureza. As inúmeras técnicas (saberes tradicionais) desenvolvidas junto ao meio ambiente
permitiram à mulher um entendimento único. Em contrapartida, não só na dimensão cultural
ocorreu essa proximidade, como também nos movimentos e grupos que ensejaram uma
proteção e uma luta de direitos para ambas. Se para as mulheres, o feminismo32 surgiu como
movimento político-social de luta por direitos, a natureza encontrou no desenvolvimento
sustentável uma possibilidade de defesa também dos seus próprios direitos. Nestas diferenças,
surgiram as similaridades. Ambas a margem do sistema, encontraram no movimento políticosocial denominado ecofeminismo uma porta para novas descobertas e consecução de
objetivos que resguardassem a proteção de ambas.
30
Frase dita pela personagem Morpheu ao ser questionado pelo protagonista Neo sobre o que era a matrix. THE
MATRIX (Matrix), Direção e roteiro: Andy Wachowski e Larry Wachowski, produção Joel Silver, Distribuição:
Warner Bros. EUA, 1999.
31
Único termo encontrado para fazer referência às mulheres pertencentes a comunidades indígenas e
tradicionais.
32
“Ao longo da história ocidental sempre houve mulheres que se rebelaram contra sua condição, que lutaram por
liberdade e muitas vezes pagaram com suas próprias vidas. A Inquisição da Igreja Católica foi implacável com
qualquer mulher que desafiasse os princípios por ela pregados como dogmas insofismáveis. Mas a chamada
primeira onda do feminismo aconteceu a partir das últimas décadas do século XIX , quando as mulheres,
primeiro na Inglaterra, organizaram-se para lutar por seus direitos, sendo que o primeiro deles que se
popularizou foi o direito ao voto. As sufragetes, como ficaram conhecidas, promoveram grandes manifestações
em Londres, foram presas várias vezes, fizeram greves de fome. Em 1913, na famosa corrida de cavalo em
Derby, a feminista Emily Davison atirou-se à frente do cavalo do Rei, morrendo. O direito ao voto foi
conquistado no
Reino Unido em 1918. No Brasil, a primeira onda do feminismo também se manifestou mais publicamente por
meio da luta pelo voto. A sufragetes brasileiras foram lideradas por Bertha Lutz, bióloga, cientista de
importância, que estudou no exterior e voltou para o Brasil na década de 1910, iniciando a luta pelo voto. Foi
uma das fundadoras da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, organização que fez campanha pública
pelo voto, tendo inclusive levado, em 1927, um abaixo assinado ao Senado, pedindo a aprovação do Projeto de
Lei, de autoria do Senador Juvenal Larmartine, que dava o direito de voto às mulheres. Este direito foi
conquistado em 1932, quando foi promulgado o Novo Código Eleitoral brasileiro.” PINTO, Céli Regina Jardim.
Feminismo, história e poder. Rev. Sociol. Polit., Curitiba, v. 18, n. 36, Junho 2010 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782010000200003&lng=en&nrm=iso>.
acessado em 15 Nov. 2012. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782010000200003.
244
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Diante dessa realidade, vários foram os movimentos tradicionais femininos e
ecológicos locais que tinham como objetivo o resguardo e a proteção das condições mínimas
ambientais para a sobrevivência tanto das mulheres como dos grupos os quais ela fazia parte.
O modelo de desenvolvimento construído e implantado ao longo das últimas décadas
proporcionou crises ambientais e sociais tanto de pequena, como de grande escala. Seja em
relação à poluição alimentar no Japão (Seikatsu Club), um acidente nuclear na Ucrânia (Usina
Chernobyl), a conexão entre tecnologia e guerra descoberta pelas mulheres na Alemanha
(Cidade de Whyl), a contaminação de águas de uso público nas Catarátas do Niágara nos
EUA (Love Canal), a fuga de gás tóxico na Índia (Cidade de Bhopal), dentre tantos outras
crises que ensejaram o levante de movimentos sociais encabeçados por mulheres ativas e que
tomaram a responsabilidade de corrigir (ou de tentar ao menos) os erros provocados pelo
homem branco, burguês e colonizador.
[...] contra os interesses industriais; confirmou-se que muitas mulheres, por todo o
mundo, sentiam a mesma fúria e ansiedade, o mesmo sentido de responsabilidade
em preservar as bases da vida, e de pôr termo à sua destruição. Independentemente
das diferenças raciais, étnicas, culturais ou dos antecedentes de classe, esta
preocupação comum uniu as mulheres com vista a criar laços de solidariedade com
outras mulheres, povos e mesmo nações. Nestes processos de acção e reflexão,
também emergiram, por vezes, analises, conceitos e visões semelhantes.33
No Sudoeste da Alemanha, as camponesas do movimento Whyl lutaram
arduamente contra a construção de uma Usina nuclear na região. O fantasma do acidente
nuclear em Chernobyl amedrontava todos e, como consequência, criou-se um sentimento de
repulsa a qualquer projeto que visasse o implemento da energia nuclear próximo a locais
habitados. Diante disso, as mulheres, intelectuais, estudantes, camponesas e feministas
citadinas uniram-se em prol da luta contra a imposição de um projeto equivocado e fruto da
busca de um desenvolvimento distorcido. Neste processo, tomaram consciência da relação
patriarcal homem-mulher; para muitas mulheres, este foi o primeiro passo para a sua própria
libertação34. Neste sentido,
[...] as camponesas do movimento Whyl foram as mais activas num dos primeiros
movimentos transfronteiriços com movimentos semelhantes na Suíça e em França,
bem como com outros movimentos na Alemanha, com intelectuais, com estudantes
e com feministas citadinas35.
33
MIES, Maria; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. p. 12.
MIES, Maria; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. p. 12.
35
Ibid. p. 12
34
245
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Acrescente-se a observação de Dankelman e Davidson sobre o mesmo movimento e
a visão que as militantes possuíam acerca da relação hierárquica presente em suas vidas:
[...] Quando, após alguns anos duas dirigentes do movimento foram entrevistadas,
articularam claramente a visão que têm de uma sociedade baseada, não num modelo
de industrialismo e consumismo orientado para o crescimento, mas mais próximo
daquilo a que chamamos a perspectiva da subsistência. 36
O Clube Seikatsu no Japão foi marcado pela organização dinâmica das mulheres
japonesas com o objetivo de defender os seus filhos da poluição alimentar causada pela
poluição nuclear, pelo uso de aditivos alimentares, agrotóxicos, dentre outros. Esta
cooperativa de produção e consumo foi fundada no princípio da década de 70 numa reação à
doença de Minamata37, por mulheres, principalmente mães, que estavam preocupadas com a
poluição alimentar38. As mulheres organizaram-se a fim de garantir alimentos saudáveis a
elas mesmas e aos seus filhos. Era imprescindível uma tomada de atitude, em virtude de
muitas estarem amamentando os seus próprios filhos e conduzindo eles a mesma exposição
que elas. Elas organizaram-se e passaram a selecionar produtos livres de contaminação,
valorizando os agricultores familiares que não utilizam nem agrotóxicos nem estavam
expostos a resíduos nucleares. Dava-se início a um processo de subsistência que tanto
valorizava as pequenas fazendas e as famílias de classe baixa, como alimentava um
sentimento de resguardo para com o meio ambiente.
As mulheres japonesas não só demonstraram uma preocupação momentânea para
com sua subsistência, elas foram responsáveis pela organização de um movimento social
36
DANKELMAN, I.; DAVIDSON, J. Women and Environment in the Third World: Alliance for the future.
Earthscann. Publications Ltd. Londres. 1988.
37
Dados da literatura referentes à intoxicação mercurial em Minamata, no Japão, demonstram que a exposição a
longo prazo ao metilmercúrio resultou em efeitos tóxicos irreversíveis no SNC, caracterizando a doença de
Minamata. Segundo Harada, o aparecimento de manifestações clínicas dessa doença na Amazônia deverá seguir
a regra da evolução da contaminação ambiental, em cinco estágios, a saber: no primeiro, contaminação
ambiental pelo vapor de mercúrio; no segundo, a contaminação do solo e da água sofrendo processo de
metilação, originando derivados orgânicos; na fase subsequente, o mercúrio orgânico sendo concentrado na
cadeia alimentar aquática; no quarto estágio, o homem acumulando o metal pela ingestão de peixes; e,
finalmente no 5º estágio, o aparecimento de sinais e sintomas da doença de Minamata. HARADA, M.
Neurotoxity of methylmercury: Minamata and the Amazon. In: Yasui M, Strong MJ, Ota KK, Verity MA (eds)
Mineral and metal neurotoxicology. New York, CRC, p.177-187, 1997. apud PINHEIRO, Maria da Conceição
Nascimento et al . Avaliação da contaminação mercurial mediante análise do teor de Hg total em amostras de
cabelo em comunidades ribeirinhas do Tapajós, Pará, Brasil. Rev. Soc. Bras. Med. Trop., Uberaba, v. 33, n.
2, Abril. 2000 .
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003786822000000200004&lng=en&nrm=iso>.
acesso
em
10
de
Novembro
de
2012.
http://dx.doi.org/10.1590/S0037-86822000000200004.
38
MIES, Maria; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. p. 340.
246
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
sólido e significante. Ele ultrapassou os limites ambientais e as necessidades básicas daquele
grupo. Chegou a entender como o sistema consumista e o desenvolvimento engessado
interferiam nas suas vidas, na relação social, ambiental e de consumo. Elas lutaram contra o
sistema utilizando-se de seu próprio instrumento de controle – a relação de consumo. Assim
pois,
O exemplo do Seikatsu Club demonstra que a ação do consumidor ou, como eu
prefiro chamar, a libertação do consumidor, particularmente se iniciada a partir de
preocupações e vivências femininas, é completamente diferente dos indivíduos
atomizados, que só se preocupam em manter limpo o seu quintal. Ela pode
desenvolver uma dinâmica que consiga realmente transformar <<Toda a Vida>>.
Chizuko Ueno, que escreveu sobre o movimento de mulheres no Japão, é inclusive
da opinião que estas cooperativas e redes de consumidoras e produtoras podem
mudar o mundo. Estas redes estendem-se além do Seikatsu Club e, de produção e de
consumo, baseada não em princípios capitalistas, mas em princípios de economia
moral: auxílio mútuo, confiança, carinho, comunidade, respeito pelos humanos e
pela natureza.39
Concomitantemente em 1970, nasce no Movimento Chipko40, mais um exemplo
da liderança e do ativismo social exercido por mulheres provenientes de comunidades
tradicionais que não silenciaram nem se acovardaram perante a destruição ambiental de seu
lar provocada pelo corte indiscriminado das árvores da região do Himalaia por uma
mineradora. Literalmente abraçadas a sua casa, estas mulheres mostraram ao mundo, o porquê
a Terra não pertence ao Homem41 e sim o contrário.
O governo indiano calou perante suas próprias leis nacionais. Inclusive, a “ação
direta da população para encerrar a mina era uma consequência direta da ausência do
cumprimento das leis pelo próprio governo”42. A empresa mineradora responsável pela
destruição tentou de todas as formas, até que “em março de 1987 contratou arruaceiros que
atacaram os pacíficos manifestantes com pedras e barras de ferro”
43
. As mulheres, os
homens e os jovens, encontraram na reação pacífica, uma resposta muito mais valorosa e
digna até para com seus próprios princípios. A força/poder do movimento emanava da
39
MIES, Maria; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. p. 342.
Na década de 70, uma resistência foi organizada para impedir à destruição de florestas espalhadas por toda
Índia e veio a ser conhecida como Movimento Chipko. O nome do movimento vem da palavra “abraço”, em
virtude dos moradores locais abraçarem as árvores, e impediram o corte das mesmas. (tradução nossa)
Disponível em: < http://www.healthy-india.org/environment/the-chipko-movement.html>.
41
Mundovisão de um chefe indígena. MIES, Maria; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget,
1993. p. 141.
42
MIES, Maria; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. p.321.
43
Ibid. p.321.
40
247
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
singular perspectiva que mulheres e homens partilhavam sobre a conexão deles com o meio
ambiente em que viviam. Eles sentiam a natureza através de uma energia ecológica-espiritual
profunda, chamada shakti. A força de Chipko era à força da natureza. Era o PODER da
natureza.
Shakti vem-nos destas florestas e prados; vemo-los crescer com o passar dos anos
com o seu shakti interior e dele extraímos a nossa força. Vemos as nossas correntes
renovarem-se e bebemos a sua água limpa e cristalina que nos dá shakti. Tudo isso
nos dá não apenas o alimento para o corpo mas também uma força moral; somos os
nossos próprios mestres, controlamos e produzimos a nossa própria riqueza. Por isso
é que são as mulheres <<primitivas>> e <<atrasadas>>, que não compram as suas
necessidades no mercado, mas produzem para si próprias, que dirigem Chipko. O
nosso poder é o poder da natureza. O nosso poder contra Gujral vem destas fontes
interiores e é fortalecido pelas suas tentativas de nos oprimir e de nos intimidar com
o seu falso poder do dinheiro. Oferecemo-nos, mesmo à custa das nossas vidas para
um protesto pacífico para encerrar esta mina, para desafiar e opormo-nos ao poder
que Gujral representa. Todas as tentativas para nos agredir fortaleceram a nossa
integridade. Apedrejaram-nos no dia 20 de Março quando voltavam da mina.
Apedrejaram os nossos filhos e agrediram-nos com barras de ferro, mas não
conseguiram destruir o nosso shakti.44
Em suma, o que podemos perceber ao longo dos diferentes movimentos
socioambientais tradicionais aqui analisados é que a mulher independente de sua realidade e
contexto social encontra no meio ambiente uma forma de conexão global entre si. Como uma
rede invisível, todas lutam, constroem estratégias e delimitam objetivos, buscando sempre
uma homeostase ambiental e a garantia de um futuro comum para as mulheres e homens que
ainda estão por vir.
Em diferentes contextos, no Norte e no Sul, em zonas de erosão ecológica e em
lugares poluídos, as mulheres identificam-se com o interesse da Terra e dos seus
filhos na procura de soluções para a crise da sobrevivência. Contra todas as
adversidades tentam reconstruir a teia que liga as suas vidas as dos seus filhos e à
vida do planeta.45
Braidotti, Charkiewicz, Häusler e Wieringa, entendem que
As diferenças nas posições políticas, baseadas na classe, raça e origem geográfica
foram postas de parte; muitas mulheres reconheceram que tal consenso das mulheres
44
45
MIES, Maria; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. p 325.
Ibid. p.113.
248
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
em geral era muito urgente tendo em vista a crise que ameaça a sobrevivência de
todos nós.46
No mesmo sentido desse rio ideológico nascido das milhares de mulheres em todo o
planeta, temos o reconhecimento jurídico internacional emanado da CDB, da Agenda 21, do
fórum denominado Planeta Fêmea e da recente Rio+20.
4.3 O Reconhecimento jurídico internacional: CDB, Agenda 21, “Planeta Fêmea” e RIO+20.
A forma utilizada pela Convenção para discutir questões relativas à implementação
dos objetivos e demais medidas que os países signatários devem executar é a Conferência das
Partes. Nessas reuniões periódicas (a cada dois anos ou de maneira extraordinária) são
tomadas decisões para orientar os trabalhos e políticas desenvolvidas. Para melhor
compreensão e direcionamento, iremos nos ater às principais decisões relacionadas à temática
proposta de cada Conferência.
A primeira Conferência (Nassau, Bahamas, 28 novembro - 9 de dezembro de 1994)
estruturou a Convenção como um todo. Foi criado o regulamento das Conferências das
Partes47, a delimitação dos recursos e do mecanismo financeiro48, a seleção de organizações
internacionais competentes que desempenham as funções de secretaria da CDB49, a criação do
órgão subsidiário de assessoramento científico, técnico e tecnológico50, definido o apoio das
organizações internacionais à secretaria da CDB51, dentre outras decisões relativas ao início
dos trabalhos.
Na segunda Conferência (Jakarta, Indonésia, 6 - 17 novembro de 1995), a valorização
e observação das realidades de cada Estado-membro se faz mister na busca de um
direcionamento internacional que leve em consideração as diferenças e as similaridades de
46
BRAIDOTTI, Rosi et al. Mulher, ambiente e desenvolvimento sustentável. São Paulo: Instituto Piaget,
1994. p. 27.
47
UNEP/CDB/COP/DEC/I/1. 1994. p.36. Disponível em: < http://www.cbd.int/doc/decisions/cop-01/full/cop01-dec-es.pdf>.
48
UNEP/CDB/COP/DEC/I/2. 1994. p. 37. Disponível em: < http://www.cbd.int/doc/decisions/cop-01/full/cop01-dec-es.pdf>.
49
UNEP/CDB/COP/DEC/I/4. 1994. p. 44. Disponível em: <http://www.cbd.int/doc/decisions/cop-01/full/cop01-dec-es.pdf>.
50
UNEP/CDB/COP/DEC/I/7. 1994. p. 63. Disponível em: <http://www.cbd.int/doc/decisions/cop-01/full/cop01-dec-es.pdf>.
51
UNEP/CDB/COP/DEC/I/2. 1994. p. 37. Disponível em: <http://www.cbd.int/doc/decisions/cop-01/full/cop01-dec-es.pdf>.
249
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
cada um. A busca de uma igualdade de direitos diferenciados para cada comunidade
tradicional levando em consideração suas singularidades deve nortear qualquer programa ou
política de trabalho desenvolvida pelos Estados-membros e pela Convenção. Um espécie de
homeostase jurídico-social deve ser implementada a partir de estudos e a pesquisa de outras
informações pertinentes sobre a valorização social e econômica dos recursos genéticos e dos
saberes tradicionais, inclusive acerca da demanda industrial.52
O estabelecimento de um processo contínuo de investigação e estudo para examinar
a aplicação do artigo 8 j) foi uma das principais decisões da terceira Conferência 53 (Buenos
Aires, Argentina, 4 - 15 novembro de 1996) . É essencial que todo o processo seja
acompanhado pelos governos e representado pelas comunidades indígenas e locais (incluindo
também as mulheres). O monitoramento é realizado através da elaboração de informes
nacionais, nos quais estão presentes informações acerca da conservação, utilização sustentável
e participação justa e equitativa dos grupos tradicionais – objetivos da CDB.
A quarta reunião dos Estados-membros da CDB (Bratislava, Eslováquia, 4 - 15 maio
de 1998) serviu dentre outros objetivos, para promover processos consultivos de caráter
participativo, integrando a comunidade civil (representada pelos governos, empresas e demais
entidades envolvidas) e as comunidades tradicionais a fim de obter resultados práticos acerca
dos problemas e causas relacionadas aos objetivos da CDB54. A decisão de número 10 dispõe
sobre a valorização dos recursos genéticos de origem natural sobre a base do enfoque
participativo, a fim de que sirva de incentivo para a conservação e utilização sustentável tanto
para a sociedade civil, como para as comunidades tradicionais55.
Na quinta Conferência das Partes (Nairóbi, Quênia, 15 - 26 maio de 2000) é iniciado
o processo de reconhecimento formal do papel fundamental desempenhado pelas mulheres e
suas organizações na conservação e utilização sustentável da diversidade biológica 56. É
demonstrada uma maior atenção ao labor ecológico-feminino. Por meio de decisões que
consagram e fortalecem a função e a participação das mulheres provenientes de comunidades
52
UNEP/CDB/COP/DEC/2/11. 1995. p. 79. Disponível em: < http://www.cbd.int/doc/decisions/cop-02/full/cop02-dec-es.pdf>.
53
UNEP/CDB/COP/DEC/3/14. 1995. p. 82. Disponível em: < http://www.cbd.int/doc/decisions/cop-03/full/cop03-dec-es.pdf>.
54
UNEP/CDB/COP/DEC/4/10. 1998. p. 121. Disponível em: < http://www.cbd.int/doc/decisions/cop04/full/cop-04-dec-es.pdf>.
55
UNEP/CDB/COP/DEC/4/10. 1998. p. 121. Disponível em: < http://www.cbd.int/doc/decisions/cop04/full/cop-04-dec-es.pdf>.
56
UNEP/CDB/COP/DEC/V/16. 2000. p. 87 . Disponível em: < http://www.cbd.int/doc/decisions/cop05/full/cop-05-dec-es.pdf>.
250
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
indígenas e locais é possível perceber que a realidade patriarcal-reducionista adquiriu uma
grande e poderosa inimiga – a força feminina.
Cabe salientar que em consonância ao reconhecimento do papel feminino na
salvaguarda do meio ambiente, tanto os governos, os órgãos subsidiários da Convenção, bem
como o próprio Secretário Executivo e as organizações competentes, ao aplicar as disposições
e programas de trabalho, devem incorporar em todas as atividades as mulheres e todas as
organizações as quais façam parte. 57
Também é possível reconhecer que a conservação dos saberes associados à
biodiversidade depende da perpetuação das identidades culturais, que abarcam aspectos
ambientais, sociais, econômicos, políticos e religiosos de cada comunidade tradicional58.
Deste modo, a criação de registros nacionais59 para os conhecimentos, inovações e práticas
tradicionais é uma medida essencial para a continuidade das sistemáticas sociais
desenvolvidas por mulheres e homens tradicionais. Os programas, informes e grupos de
orientação, além da utilização de todos os meios possíveis de comunicação (internet, TV,
rádio, periódicos, boletins...), inclusive com a maior utilização das línguas locais, 60 é uma
medida básica para a criação de uma capacidade técnica e consequente participação plena e
efetiva das mulheres e das comunidades tradicionais em todas as atividades e programas de
trabalho desenvolvidos pela CDB.
A sexta Conferência (The Hague, Países Baixos, 7 - 19 abril de 2002) traz a inclusão
nos informes nacionais61 de medidas que melhorem a participação das mulheres nos
programas de trabalho desenvolvidos, inclusive destacando a necessária inclusão delas nos
processos consultivos acerca da preparação das sessões relativas ao artigo 8 j)62. De um modo
ou de outro, tanto a mulher como a natureza estão sujeitas à indiscriminada apropriação
masculina, de tal modo que decisões provenientes das Conferências das Partes que trabalhem
um reposicionamento das mulheres, ouvindo suas opiniões acerca das realidades costumeiras,
servem como ponto de partida para uma possível nova relação Homem versus natureza.
57
UNEP/CDB/COP/DEC/V/16. 2000. p. 89. Disponível em: < http://www.cbd.int/decision/cop/?id=7158 >.
Ibid. p. 90.
59
Ibid. p. 90.
60
UNEP/CDB/COP/DEC/V/16. 2000. p. 90. Disponível em: < http://www.cbd.int/decision/cop/?id=7158 >.
61
UNEP/CDB/COP/DEC/VI/10. 2002. p. 160. Disponível em: < http://www.cbd.int/doc/decisions/cop06/full/cop-06-dec-es.pdf>.
62
Ibid. p. 160.
58
251
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
É importante mencionar os “Princípios e Diretrizes de ADDIS Abeba para a
utilização sustentável da diversidade biológica”63, publicação realizada pela Secretaria da
CDB em Montreal (2004) em um evento paralelo à sétima Conferência (Kuala Lumpur,
Malásia, 9 - 20 fevereiro 2004). Na introdução do texto é destacada a importância das
mulheres que são frequentemente os principais usuários e administradores dos componentes
da diversidade biológica. É pontuada uma necessária atenção à mulher no que diz respeito ao
direito à voz e voto na aplicação dos princípios e diretrizes, assim como na gestão dos
componentes naturais.
Os recursos comunicativos, como já comentado, a quinta Conferência e reforçado na
sétima, são fundamentais para ajudar a aumentar a conscientização acerca dos últimos
métodos e medidas relativas tanto à realização como à integração das preocupações culturais
sociais e outras relacionadas com a diversidade biológica. Diante da visão participativa que as
mulheres devem ter sobre todos os processos e trabalhos é necessária à capacitação técnica
para que as mesmas possam interagir e discutir sobre as políticas voltadas a elas e as
sociedades as quais fazem parte64. Seria uma falta de sensibilidade não perceber que mulheres
de contextos tão diferenciados estariam preparadas para lidar com uma realidade jurídicoburocrática tão complicada. Mesmo que o acesso e o linguajar utilizado pelas Conferências
seja facilitado ao máximo, é essencial que haja uma promoção de cursos, trabalhos, palestras,
folhetins e um acompanhamento técnico individual e coletivo, dentre outras formas, para que
a equidade e o acesso à justiça internacional realmente sejam respeitadas.65
A oitava Conferência (Curitiba, Brasil, 20 - 31 de março de 2006) iniciou um projeto
denominado “Fundo fiduciário voluntário para facilitar a participação de comunidades
indígenas e locais nos trabalhos da Convenção sobre Diversidade Biológica”
66
. Além de
proporcionar uma ajuda financeira significativas às comunidades tradicionais, mobiliza as
diversas Partes, governos, instituições, fundações financeiras, organizações governamentais,
ONGs e entidades privadas a contribuir no nível de responsabilidade que compete a cada uma.
Importante destacar que nos principais critérios estipulados para a aquisição de ajuda e
63
Principios y directrizes de Addis Abeba para la utilización de la diversidad biológica. Secretaría Del
Convenio
sobre
la
Diversidad
Biológica.
Montreal.
2004.
Disponível
em:
<
http://www.cbd.int/doc/publications/addis-gdl-es.pdf>.
64
UNEP/CDB/COP/DEC/VII/16. 2004. p. 298. Disponível em: < http://www.cbd.int/doc/decisions/cop07/full/cop-07-dec-es.pdf>.
65
UNEP/CDB/COP/DEC/VI/10. 2002. Disponível em: <http://www.cbd.int/decision/cop/?id=7184>.
66
UNEP/CDB/COP/DEC/VIII/5. 2006. p.76. Disponível em: < http://www.cbd.int/doc/decisions/cop08/full/cop-08-dec-es.pdf>.
252
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
inclusive no formulário técnico de solicitação67, o equilíbrio de gênero é um dos principais
objetivos, devendo ser aplicado a fim de garantir o reconhecimento da função especial das
mulheres das comunidades indígenas e locais.
A nona Conferência (Bonn, Alemanha, 19 - 30 de maio de 2008), enfatiza a dupla
comunicação necessária entre a CDB e os povos tradicionais. Vincular as práticas
desenvolvidas pelas comunidades à teoria proporcionada pelos grupos de trabalho da CDB é
essencial para a implementação do artigo 8 j. Os grupos indígenas e locais, inclusos jovens,
mulheres e outras organizações nacionais e regionais, devem além de identificar as lacunas e
deficiências do diploma normativo internacional, informar ao Grupo de Trabalho sobre o
progresso alcançado, garantindo assim um balanço sobre o direcionamento internacional
acerca dos objetivos estabelecidos pela CDB. 68
Por fim, temos na décima Conferência (Nagoya, Aichi Prefecture, Japão, 18 - 29
outubro de 2010), a identificação da função de cada ente social (anciãos, jovens, mulheres...)
dentro das comunidades tradicionais. Percebe-se a importância primordial deles no processo
de divulgação cultural, já que são responsáveis pela transferência intergeracional dos
conhecimentos, inovações e práticas tradicionais. Deste modo, as estruturas sociais das
comunidades indígenas e locais devem ser respeitadas, incluindo o direito de transmitir seus
conhecimentos em conformidade com suas tradições e costumes. 69
De igual modo, a Agenda 21 nos seus capítulos 15 (Conservação da Diversidade
Biológica)70 e 24 (Ação Mundial pela Mulher, com vistas a um Desenvolvimento Sustentável
e Equitativo)71 procuram estabelecer objetivos claros para a consolidação de medidas que
67
Ibid. p. 80.
UNEP/CDB/COP/DEC/IX/13. 2008. p. 8. Disponível em: < http://www.cbd.int/doc/decisions/cop-09/cop-09dec-13-es.pdf>.
69
UNEP/CDB/COP/DEC/X/42. 2010. p. 8. Disponível em: < http://www.cbd.int/doc/decisions/cop-10/cop-10dec-42-es.pdf>.
70
Reconhecer e fomentar os métodos tradicionais e os conhecimentos das populações indígenas e suas
comunidades para a conservação da diversidade biológica e o seu uso sustentável, enfatizando o papel específico
das mulheres. DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento: Agenda 21. Brasília, 02 Ago. 1994. Tradução do Ministério das Relações Exteriores. p. 15.
Disponível em: < http://www.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/agenda-21/agenda-21-global>
71
Medidas para examinar políticas e estabelecer planos a fim de aumentar a proporção de mulheres que
participem como responsáveis pela tomada de decisões, planejadoras, gerentes, cientistas e assessoras técnicas
na formulação, no desenvolvimento e na implementação de políticas e programas para o desenvolvimento
sustentável; Medidas para fortalecer e dar poderes a organismos, organizações não governamentais e grupos
femininos a fim de aumentar o fortalecimento institucional para o desenvolvimento sustentável; Programas para
apoiar e aumentar as oportunidades de emprego em condições de igualdade e remuneração equitativa da mulher
nos setores formal e informal, com sistemas e serviços de apoio econômico, político e sociais adequados que
compreendam o cuidado das crianças, em particular creches e licença para os pais, e acesso igual a crédito, terra
e outros recursos naturais. Ibid. p. 21.
68
253
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
protejam, incentivem e implementem as estratégias conservacionistas propostas pelas
mulheres com um todo. Deste modo,
O foco está no endosso estabelecido pela Comunidade Internacional, quanto aos
vários planos de ação, e convenções que permitem a integração plena, equitativa e
benéfica da mulher em todas as atividades relativas ao desenvolvimento O objetivo é
propor aos Governos nacionais a implementação de estratégias prospectivas para o
progresso da mulher, particularmente em relação à participação da mulher no
manejo nacional dos ecossistemas e no controle da degradação ambiental. Ao lado
disso, pretende-se aumentar a proporção de mulheres nos postos de decisão,
planejamento, assessoria técnica, manejo e divulgação no campo de meio ambiente e
desenvolvimento72.
Outro instrumento e símbolo de convalidação do pensamento jurídicointernacional estabelecido pela CDB e pela Agenda 21 foi o fórum intitulado “Planeta Fêmea”
que é considerado um marco no debate ecológico feminino por reunir mulheres de diferentes
realidades e contextos sociais com a finalidade, dentre outras, de discutir os vários pontos
relacionados à conservação e utilização dos recursos naturais. Ultrapassando os limites
ambientais, esse debate promoveu uma mudança de perspectiva das mulheres reunidas,
fazendo as mesmas perceberem a correlação entre patriarcado, capitalismo, segregação
étnico-racial e destruição ambiental. Nas palavras de Brito73:
O intuito do Planeta Fêmea era propor uma mudança para o mundo que corrigisse os
danos causados pelo desequilíbrio da relação com o Planeta Terra. Era uma imensa
vontade política de pensar uma transformação que não perpetuasse as exclusões da
sociedade capitalista e que construísse uma ética baseada no respeito às diferenças.
Para finalizar, a recente declaração da Rio+20, O Futuro que Queremos, destinou
uma gama de artigos que enfatizaram o valor das atitudes femininas ligadas à natureza. De
forma enfática, reconhece a posição de liderança e promove a participação plena da mulher na
72
DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento:
Agenda 21. Brasília, 02 Ago. 1994. Tradução do Ministério das Relações Exteriores. p. 20. Disponível em: <
http://www.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/agenda-21/agenda-21-global>
73
BRITO, Priscilla Caroline. “20 anos depois do Planeta Fêmea”. CFEMEA - Centro Feminista de Estudos e
Assessoria. Disponível em: http://www.cfemea.org.br/index.php?view=article&catid=390%3Anumero-172janeiro-a-junho-de-2012&id=3715%3A20-anos-depois-do-planeta
femea&format=pdf&option=com_content&Itemid=129
254
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
gestão do meio ambiente como também declara o papel vital feminino como vetor na
promoção de um possível desenvolvimento sustentável.74
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O planeta necessita de um novo direcionamento, uma nova perspectiva, um plano
que traduza as necessidades pares de todos os seres humanos. Uma visão holística,
multifacetada e transdiciplinar que permita à mulher e ao homem enxergarem qual a posição
ocupada por cada um na teia da vida. Não iremos explicar tal posicionamento por meio de
uma simples utopia. A Terra é viva e seus integrantes também o são. A capacidade
regenerativa da mãe-terra deve fluir através dos seres que a coabitam, concedendo a todos o
shakti necessário para uma transformação de corpo, mente e espírito.
É imprescindível visualizar um novo direcionamento, pautado em princípios éticos e
não numa relação de dominação patriarcal subjugadora da mulher pelo homem, do negro pelo
branco, do pobre pelo rico e da natureza pelo Homem. Requer o abandono ou pelo menos a
diminuição dos parâmetros individualistas, segregadores e excludentes, impostos através de
séculos pelos países nortistas e reproduzidos agora por todo o planeta. A colonização
territorial nos moldes do século XVI até meados do século XXI, oportunizou a aplicação
dessa sistemática nas relações sociais, econômicas e culturais. O homem branco, burguês e
nortista, necessita implantar o sistema colonial para manter seu padrão de desenvolvimento.
As mulheres, indígenas, negros, jovens tem sido as colônias do homem branco75.
Vampirizadas, permeiam sua sobrevivência por meio da utilização de sua mão de obra física e
intelectual. Entretanto, cabe salientar que para a necessária mudança almejada, o próprio
homem branco também necessita mudar. Descolonizar o Sul é uma questão intimamente
relacionada com a de descolonizar o Norte76. O sistema suplantou os indivíduos, inclusive o
homem. Mudar significa buscar alternativas no olho do furacão e na margem do sistema.
Dentro haverá o embate, a quebra de paradigmas, a revolução. Fora serão descobertas novas
74
A/RES/66/288.11 de setembro de 2012. p. 9. Disponível em: < http://daccess-ddsny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N11/476/13/PDF/N1147613.pdf?OpenElement>.
75
SANDER, Helke (1980) Uber die Beziehungen von Liebensverhältnissen un Mittelstreckenraketen. Courage.
Nº 4: 4-7. Berlim: Courage Verlag apud MIES, Maria; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. Lisboa: Instituto
Piaget, 1993. p. 62.
76
MIES, Maria; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. p. 345.
255
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
formas de entender a vida e seus componentes, por meio da análise de grupos sociais pouco
interessados no desenvolvimento parâmetro. Entender que a felicidade é relativa para
mulheres, homens, negros, idosos e todos os grupos sociais espalhados pelo mundo, mas é
fundamentada por meio do estabelecimento de condições mínimas, básicas, intrínsecas a todo
ser humano.
As novas formas de entender o todo, engendradas pelas comunidades tradicionais
funcionam como alternativa à visão patriarcal-reducionista imposta. O entendimento dos seus
particulares universos nos faz pensar o que realmente é necessário para se alcançar o
desenvolvimento. Como a busca desenfreada por soluções para a realidade crítica que
vivenciamos só há pouco tempo enxergou valor aos conhecimentos tradicionais e as
comunidades detentoras? Os Estados devem entender o quão necessária é a proteção das
identidades culturais, sociais, religiosas, políticas, econômicas e ambientais das comunidades
tradicionais. O resguardo da historicidade de uma nação, representada também por suas
comunidades tradicionais, é sinônimo de respeito e ética perante o passado, o presente e o
futuro de todos os cidadãos, sejam eles mulheres, homens, índios, brancos, ou negros. As
mulheres representam uma parte fundamental e suas atitudes são traduzidas como princípios
alternativos nessa conjuntura.
O importante em relação ao reconhecimento do papel feminino exercido tanto nas
comunidades tradicionais, como na sociedade civil, é compreender o objetivo dessa
valorização. O direcionamento internacional proposto pelos diplomas jurídicos internacionais
(CDB, Agenda 21, Rio+20) reconhecem e passaram a criar condições para que o labor
feminino seja referenciado como um dos principais instrumentos para a consolidação do
desenvolvimento sustentável. A mulher não funciona como personagem de uma utopia
acrítica, ela é mais um ente colaborativo do corpo social. As alternativas propiciadas pela
análise das atitudes ecológico-femininas devem proporcionar uma releitura dos parâmetros
sociais e culturais estabelecidos ao longo dos séculos. A responsabilidade é recíproca,
intrínseca e multidimensional entre mulheres e homens. Todos tem responsabilidade perante a
realidade sedimentada e as consequências arrasadoras provenientes de um desenvolvimento
distorcido e equivocado.
Para finalizar, a consolidação do desenvolvimento sustentável depende da mudança
de múltiplos fatores. A ciência reducionista, o sistema econômico cartesiano pautado no
princípio do lucro pelo lucro, o patriarcalismo, a desvalorização dos conhecimentos dito não
256
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
especializados (saberes tradicionais), as novas tecnologias invasivas e antiéticas propagam
uma única interpretação:
a base principiológica do direcionamento mundial necessita
mudanças.
A ciência baseada em princípios mecanicistas e reducionistas impõe uma segregação
de experiências e técnicas ditas não especializadas, a exemplo dos saberes tradicionais
associados à biodiversidade e, em especial, das mulheres. Elas, como protagonistas de um
desenvolvimento diferenciado, entendem o quanto necessário é a valorização de suas atitudes
cotidianas por interferirem na própria conjuntura social das comunidades tradicionais. Seus
conhecimentos técnico-tradicionais são essências para a reprodução de culturas de
subsistência desenvolvidas pelas comunidades. Portanto, o papel científico da mulher
tradicional constitui fonte inquestionável para a consolidação do desenvolvimento sustentável.
A visão das mulheres em relação à produção econômica também deve ser tratada
como uma alternativa à imposição do sistema pautado exclusivamente no lucro. As mulheres
compreendem a relação entre necessidade e desperdício. Elas não sugam a energia vital do
ambiente, transformam e adquirem uma ligação peculiar com os componentes naturais. Deste
modo, a função econômica homeostática desenvolvida por elas funciona como ponto de
partida para uma nova interpretação acerca das reais necessidade humanas.
De um modo geral, a mulher tradicional desempenha funções singulares em todos os
contextos descritos nesse trabalho. A implementação do desenvolvimento sustentável é fruto
da convergência de políticas públicas adequadas, normatização jurídica nacional e
internacional, da mudança dos parâmetros estabelecidos pelo desenvolvimento moderno e a
valorização e reconhecimento dos papéis diferenciados exercidos por povos e comunidades
tradicionais, especialmente as mulheres.
257
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
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260
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO E APLICAÇÃO DO
PROTOCOLO DE NAGOYA NOS ESTADOS PLURINACIONAIS LATINOAMERICANOS DO SÉCULO XXI.
CONOCIMIENTO TRADICIONAL ASOCIADO Y APLICACIÓN DEL PROTOCOLO DE
NAGOYA EN LOS ESTADOS PLURINACIONALES LATINOAMERICANOS DEL
SIGLO XXI
Miguel Etinger de Araujo Junior1
RESUMO:
A diversidade é uma palavra que permeia os mais variados aspectos da vida humana, e
constituí a própria essência da vida no planeta. Uma simples observação dos diversos
elementos que compõem os mais variados ecossistemas permite comprovar a assertiva
anterior, da mesma maneira que enorme variedade de pessoas quanto à sua raça, cor, cultura e
vários outros aspectos leva à mesma conclusão. Se no ambiente dos recursos naturais o
equilíbrio alcançado por estes diversos elementos é uma consequência natural, atém mesmo
por questão de sobrevivência, o ser humano não apresenta esta mesma facilidade em lidar
com o outro. Estes dois aspectos da diversidade, a biológica e a humana, vêm sendo objeto de
regulações jurídicas, almejando-se o necessário equilíbrio e o respeito entre todos. Em sua
área de abrangência, o Protocolo de Nagoya visa promover este respeito à biodiversidade, e,
no presente estudo, procura-se apresentar os parâmetros para sua efetividade e legitimação
nos países latino-americanos que experimentaram neste início de Século XXI a construção do
novo constitucionalismo baseado na ideia de pluralidade e diversidade do povo. Será,
portanto, com respeito aos princípios ali construídos que os acordos internacionais poderão se
sustentar como mecanismos eficazes de promoção do desenvolvimento ambiental e social.
PALAVRAS-CHAVE: Biodiversidade; Protocolo de Nagoya; Estados plurinacionais;
Contratos; Conhecimento Tradicional Associado.
RESUMEN
1
Doutor em Direito da Cidade pela UERJ, Professor permanente do Programa de Mestrado em Direito Negocial e da
Graduação em Direito da UEL - Universidade Estadual de Londrina/PR. Advogado.
261
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
La diversidad es una palabra que penetra en diversos aspectos de la vida humana, y constituye
la esencia misma de la vida en el planeta. Una simple observación de los distintos elementos
que componen los ecosistemas más diversos puede demostrar la afirmación anterior, así como
la gran variedad de personas por su raza, color, cultura y muchos otros aspectos llevan a la
misma conclusión. Si el ambiente de los recursos naturales el equilibrio alcanzado por estos
elementos es una consecuencia natural, incluso se pega una cuestión de supervivencia, el ser
humano no tiene la misma facilidad en el trato con los demás. Estos dos aspectos de la
diversidad biológica y humana, han sido objeto de regulaciones legales, buscando el necesario
equilibrio y el respeto entre todos. En su área de cobertura, el Protocolo de Nagoya tiene
como objetivo promover el respeto por la biodiversidad, y en el presente estudio, tratase de
proporcionar los parámetros para su eficacia y legitimidad en los países latinoamericanos en
los cuales se ha experimentado en el inicio del siglo XXI la construcción del nuevo
constitucionalismo basado en la idea de la pluralidad y la diversidad de la gente. Por lo tanto,
será con respecto a los principios construidos allí que los acuerdos internacionales pueden
sostenerse como mecanismos eficaces para promover el desarrollo ambiental y social.
PALABRAS CLAVE: Biodiversidad; Protocolo de Nagoya; Estados plurinacionales;
Contratos; Conocimiento Tradicional Asociado.
INTRODUÇÃO
O processo de reconhecimento da importância do meio ambiente equilibrado para
todas as pessoas no mundo, seja para as presentes como para as futuras gerações, parece ter
encontrado relativo consenso nos mais diversos locais do Planeta. Este sentimento pode ser
consequência da constatação fática de que a degradação ambiental causa uma vida
inadequada, citando como exemplo a questão da mudança climática, gerando eventos
extremos e a consequente massa de refugiados ambientais. Ou ainda uma consequência
natural da conscientização do lugar do Homem enquanto elemento constitutivo da Natureza.
Independente da concepção adotada, desde a mais pragmática até a mais espiritual, tem-se
verificado a construção de diversos mecanismos voltados à proteção ambiental, desde o nível
global até a esfera local, impondo-se a necessidade de verificar a adequação destes
mecanismos com a diversidade existente no planeta. Diversidade de ordem cultural,
econômica, religiosa, política, etc.
262
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
No caso da mudança climática, citada acima, tem-se verificado um movimento
global voltado à construção de mecanismos que impeçam a ocorrência de situações limítrofes
anunciadas por diversos mecanismos de pesquisa. Tais mecanismos, no entanto, esbarram nas
mais variadas dificuldades de implementação, como não aceitação de que a causa da mudança
climática decorre da utilização inadequada dos recursos naturais, ou ainda, em questões mais
pontuais, como a crise financeira mundial, que impede uma postura mais efetiva na
implementação daqueles mecanismos.
O caso do presente estudo envolve a proteção da biodiversidade e ao conhecimento
tradicional associado a ela, bem como a verificação sobre a possibilidade de alguns
instrumentos de cunho internacional que estão sendo construídos, poderem ser aplicados nos
Estados Plurinacionais latino-americanos, na medida em que se utilizam instrumentos
clássicos do Direito, como o contrato, para o alcance dos objetivos da Convenção sobre a
Diversidade Biológica. Dentre estes objetivos se destaca a preservação da biodiversidade e a
justa repartição dos benefícios econômicos pela utilização do patrimônio genética de
determinado elemento da Natureza entre as partes contratante.
Parte-se, portanto, para a análise doutrinária acerca da questão da biodiversidade e da
exploração do patrimônio genético com base em documentos internacionais, como a referida
Convenção sobre a Diversidade Biológica, o Protocolo de Nagoya, e normas internas
brasileiras sobre o tema.
Ato contínuo, é feita uma análise sobre o que vem se convencionando chamar de
novo constitucionalismo latino-americano, onde a tônica é o reconhecimento da diversidade
cultural dos diversos países do continente, e além deste reconhecimento formal, uma
conquista material do poder por parte destes segmentos, contrariando uma lógica de
dominação e submissão por setores da sociedade que tradicionalmente os alijaram do poder,
inclusive com a utilização do Direito.
A relevância da pesquisa consiste em verificar a validade da utilização de
instrumentos internacionais, sabidamente difíceis de serem cumpridos, na preservação tanto
da biodiversidade, como da autonomia dos povos originários dos países latino-americanos.
Por meio do método hipotético-dedutivo pretende-se, com base em doutrina e legislação
brasileira e estrangeira, comprovar a possibilidade da adoção daquelas normas internacionais
no âmbito interno desses países, e, nesse sentido, promove-se uma abertura interpretativa na
construção e implementação dos contratos relacionados ao tema, fugindo de conceitos prédeterminados e de estruturas fechadas no campo do Direito.
263
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
1. PROTEÇÃO
DO PATRIMÔNIO GENÉTICO
E DO
CONHECIMENTO
TRADICIONAL ASSOCIADO
Em relação aos bens ambientais que mereceram especial proteção do legislador
constituinte brasileiro de 1988, tem-se que é dever do Poder Público “preservar a diversidade
e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e
manipulação de material genético”, nos termos do artigo 225, § 1º, II, da Constituição
Federal.
Inserido que está no Capítulo dedicado ao Meio Ambiente, a diversidade a que se
está referindo é a “biodiversidade” ou “diversidade biológica”, entendida como a
“considerável variedade de genes, espécies vivas e diferentes ecossistemas” 2.
No processo de efetivação dos deveres ambientais, quando da realização da
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, mais conhecida
como RIO/92 ou ECO/92, em relação à biodiversidade, o Brasil foi signatário da Convenção
sobre a Diversidade Biológica3, que dispõe em seu Artigo 2:
Diversidade biológica significa a variabilidade de organismos vivos de
todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas
terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos
ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade
dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas.
Com efeito, ainda o Artigo 2 da Convenção sobre a Diversidade Biológica (ou
Biodiversidade) conceitua material genético como “todo material de origem vegetal, animal,
microbiana ou outra que contenha unidades funcionais de hereditariedade”, acrescentando que
recurso genético é todo “material genético de valor real ou potencial”.
Como visto, ficou evidenciado que a comunidade internacional já tinha
conhecimento do valor financeiro do patrimônio genético presente na biodiversidade. E mais,
via de regra, será a comunidade local de onde estão situados estes patrimônios que possuem o
conhecimento necessário para extrair toda sua potencialidade.
Esta diversidade de patrimônio genético, objeto de tutela, está, portanto, diretamente
ligada ao modo pelo qual ele é utilizada. Tal modo de utilização é conhecido como
conhecimento tradicional associado, bem imaterial igualmente objeto de tutela, definido pelo
2
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 694.
3
Convenção
sobre
a
Diversidade
Biológica.
Disponível
em:
<
http://www.mma.gov.br/estruturas/chm/_arquivos/cdbport.pdf>. Acesso em 14 maio 2012.
A Convenção sobre a biodiversidade foi internalizado no direito brasileiro por meio do Decreto Legislativo 2, de 03.02.1949,
e promulgada através do Decreto 2.519, de 16.03.1998.
264
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
artigo 7º da Medida Provisória nº 2.186/2001 como sendo a “informação ou prática individual
ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial,
associada ao patrimônio genético”.
A própria Convenção sobre a Biodiversidade prevê mecanismos para ao acesso a este
conhecimento tradicional associado, tomando destaque a necessidade do consentimento
prévio fundamentado para sua utilização (Art. 15.5) e a adoção de medidas legislativas,
administrativas ou políticas para “compartilhar de forma justa e equitativa os resultados da
pesquisa e do desenvolvimento de recursos genéticos e os benefícios derivados de sua
utilização comercial” (Art. 15.7).
Em relação a este Artigo 15 merece menção a crítica feita por Sarita Albagli 4,
apontando como um dos aspectos não claramente resolvidos, a atribuição ao governo do país
provedor do material genético, na qualidade de Parte Contratante, a prerrogativa de decidir
sobre o acesso ao recurso genético, não se fazendo qualquer remissão às comunidades
tradicionais.
Note-se nesta observação da referida Autora, um primeiro ponto de conflito com os
fundamentos dos Estados plurinacionais latino-americanos, cujo desenvolvimento será
efetuado ao longo do estudo.
Para Sandra Akemi Shimada Kishi5, esta observação, no entanto, parece atentar
contra outros comandos constitucionais, em especial no que diz respeito ao acesso ao
conhecimento dos povos indígenas, em face do artigo 231, § § 2º e 3º e artigo 232, ao
observar que “o Estado não participa como parte sempre, em todos os contratos de acesso,
porque não há relação jurídica de domínio estatal do bem acessado”, invocando ainda a atual
redação do parágrafo único do art. 4º do Código Civil, que não mais cogita do FUNAI atuar
como tutor.
Tal preocupação é compartilhada por Marie-Angèle Hermitte 6 que, no entanto,
sinaliza com a possibilidade das Conferências das Partes exercerem papel fundamental no
reconhecimento das comunidades locais como protagonistas neste cenário, transportando para
4
ALBAGLI, Sarita. “Convenção sobre diversidade biológica: uma visão a partir do Brasil”. In BECKER, Bertha K.;
GARAY, Irene. Dimensões humanas da biodiversidade: o desafio de novas relações sociedade-natureza no século XXI.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 119
5
KISHI, Sandra Akemi Shimada. “Repartição de benefícios na atual legislação e nos projetos de lei no Brasil – críticas e
dilemas”. In Revista Internacional de Direito e Cidadania / Instituto Estudos Direito e Cidadania – v.5, n. 12, Fevereiro
2012. – Erechim, RS : Habilis, 2012. Disponível em: <http://www.reid.org.br/?CONT=00000254>. Acesso em 14 maio
2012.
6
HERMITTE, Marie-Angèle. “O acesso aos recursos biológicos: panorama geral”. In PLATIAU, Ana Paula Barros;
VARELLA, Marcelo Dias (Orgs.).Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.
06.
265
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
o cenário internacional a importância que lhes é deferida pelos Estados Plurinacionais latinoamericanos, como se verificará em capítulo próprio mais adiante.
A função de cada interveniente neste processo (Estado, comunidades tradicionais,
interessado economicamente) foi em boa parte objeto de regulamentação pela Medida
Provisória nº 2.186/2001, conforme se verificará mais adiante.
1.1 O PROTOCOLO DE NAGOYA
Como visto, tem-se buscado uma forma de efetivar o comando do Artigo 15.7 da
Convenção sobre a Diversidade Biológica, tornando justo e equitativo os resultados de
pesquisas envolvendo recursos genéticos, inclusive os benefícios econômicos. Esta
efetividade passa pela implementação de um Regime Internacional de Acesso e Repartição de
Benefícios, e nesse sentido o Protocolo de Nagoya 7 pode trazer significativa contribuição ao
estabelecer parâmetros contratuais mais sólidos.
O prazo para a assinatura do Protocolo terminou no dia 1º de fevereiro de 2012, e
contou com 91 países signatários (inclusive o Brasil) e ainda a União Europeia. Esperava-se
que até a realização da Rio+20, Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento
Sustentável, realizada no Rio de Janeiro, no mês de Junho de 2012, 50 países tivessem
ratificado o Protocolo para que ele entrasse em vigor, o que não aconteceu. Até o dia 28 de
fevereiro de 2013 somente 15 países haviam ratificado (Albânia, Botswana, Estados
Federados da Micronésia, Etiópia, Fiji, Gabão, Índia, Jordânia, República Democrática
Popular do Laos, Maurício, México, Panamá, Ruanda, Seychelles e África do Sul) 8.
O ponto que merece especial atenção neste Protocolo é a confirmação do princípio
em que “benefícios decorrentes da utilização de recursos genéticos bem como aplicações
subsequentes e comercialização serão repartidos de modo justo e equitativo com a Parte
provedora” (Artigo 5.1). E ainda, que estes benefícios sejam repartidos de modo justo e
equitativo com as comunidades envolvidas, com base em termos mutuamente acordados
(Artigo 5.2).
7
PROTOCOLO DE NAGOYA no âmbito da convenção da diversidade biológica sobre acesso a recursos genéticos e a
repartição
justa
e
equitativa
dos
benefícios
decorrentes
de
sua
utilização.
Disponível
em:
<http://www.mma.gov.br/estruturas/sbf_chm_rbbio/_arquivos/cdbport_72.pdf>. Acesso em 15 fev 2013.
O Protocolo de Nagoya foi aprovado no âmbito da Convenção da Biodiversidade, durante a 10ª Conferência das Partes
(COP), realizada na cidade de Nagoya, no Japão, em outubro de 2010.
8
ONU – Organização das Nações Unidas. “Albania, Botswana and the Federated States of Micronesia ratify Nagoya
Protocol”. Press release de 28/02/2013. .Disponível em: < http://www.cbd.int/doc/press/2013/pr-2013-02-28-abs-en.pdf>.
Acesso 28 fev 2013.
266
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
No que se refere ao efetivo cumprimento destes Protocolos, Calogero Pizzolo 9 em seus
estudos sobre globalização e integração aponta o surgimento de seis problemas decorrentes do
conflito de competência entre as normas internas e internacionais.
O primeiro destes problemas seria o conflito entre soberania interna e internacional,
que se apresenta em verdade como uma questão de convivência normativa com problemas de
implementação, em face de existência da dificuldade em admitir que uma nação soberana se
encontra obrigada a tratados internacionais.
Insta esclarecer que a soberania de um país não depende diretamente da primazia do
direito interno ou do direito internacional. A soberania trata-se da liberdade de um Estado de
expressar sua vontade, interna e externamente, inclusive através do direito internacional, que
não é uma ameaça a esta soberania, mas a expressão da vontade jurídica do país no plano
internacional, se apresentando como um elemento10.
Destarte, não se pode negar que os processos de globalização que desencadearam a
internacionalização da economia e a criação de blocos regionais exigiram a reformulação do
conceito clássico de soberania nacional, como observa Márcio Monteiro Reis:
A satisfação do interesse pessoal das partes depende da realização do
escopo que compartilham. Assim, da mesma forma que não se pode
dizer que os sócios de uma empresa perdem sua liberdade ao
constituí-la, também não se pode dizer que os Estados-membros
perdem sua soberania por participarem de uma ordem supranacional
11
.
O segundo problema seria de integração normativa ante a dificuldade de integração
entre o ordenamento jurídico interno e uma nova norma internacional, vez que a norma
internacional recém-criada não detém um âmbito de aplicação autônoma.
O terceiro entrave encontra ligação direta com o anterior, tratando-se do problema da
força normativa, gerado pela discussão da capacidade de força normativa de um tratado para
criar direitos e estabelecer obrigações junto ao direito intraestatal.
A quarta dificuldade permite determinar o problema de hierarquia normativa, vez que
o órgão constitucionalmente competente incorporou a norma internacional ao direito interno,
restando definir que hierarquia as normas convencionais internacionais possuem frente às
normas do ordenamento jurídico interno.
9
PIZZOLO, Calogero. Globalización e integración. Ensayo de una teoria general. Buenos Aires: EDIAR, 2002. p. 188189.
10
DAUDT, Gabriel Pithan. “Os tratados internacionais e as isenções heterônomas”. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/rev_77/artigos/Gabriel-rev77.htm. Acesso em: 10 maio 2012.
11
REIS, Márcio Monteiro. Mercosul, União Europeia e Constituição: a integração dos Estados e os ordenamentos
jurídicos nacionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 41.
267
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
O quinto problema reside em controlar a legalidade das normas internacionais, sendo
questionado se a jurisdição local resta inabilitada para uma permanente revisão aos tratados
internacionais.
Por fim, o sexto entrave permite a observação do problema do conflito, consistente na
busca da solução de conflitos de interesses gerados a partir do desenvolvimento e adesão de
um tratado internacional. A solução deste problema é fundamental para o êxito da
internalização dos tratados internacionais com sua respectiva executoriedade.
Retornando à questão da efetividade do referido Protocolo, observe-se que o modo
pelo qual o acordo entre os interessados no patrimônio genético será celebrado deve obedecer
ao sistema jurídico de cada Parte contratante. Logo, serão as normas de Direito interno que
irão trazer os parâmetros para a celebração de um acordo sobre esta repartição justa e
equitativa.
Estes são, conforme se posiciona Cristiane Derani12, a grande inovação e o grande
desafio inserido no Protocolo de Nagoya: (i) a utilização de uma norma interna de cada país
para a elaboração do contrato, tornando esta norma interna com validade internacional (na
medida em que deve ser aceita, nos termos do Protocolo de Nagoya) e (ii) utiliza internamente
uma norma internacional, na medida em que o contrato a ser realizado terá como base este
Protocolo.
Com
efeito,
a
solidificação
deste
instrumento
contratual
pode
alterar
significativamente as relações internacionais no que se refere ao efetivo cumprimento dos
Tratados celebrados entre os países.
Se, como se observou acima, existem diversos entraves para o cumprimento destes
Tratados, o referido contrato será regulamentado por normas de direito interno, o que pode
resolver, em tese, alguns dos problemas que se apresentam quando da necessidade de
cumprimento de acordos internacionais.
Ainda que ultrapassadas essas premissas, e partindo-se para a formulação de um
contrato com base no direito interno, note-se que a simples aplicação de instrumentos
tradicionais de celebração de contrato, baseado na verificação dos elementos clássicos de
validade do contrato: agente capaz, objeto lícito, forma não vedada em lei, já não são se
enquadra em alguns modelos constitucionais contemporâneos, pois como será visto em
seguida, em alguns países latino-americanos deve-se observar o modo de vida peculiar das
diversas Nações que compõem um Estado.
12
DERANI, Cristiane. Conforme palestra proferida no dia 10 de abril de 2012, com o título “Produção econômica e
biodiversidade brasileira no protocolo de Nagoya”, por ocasião da I Conferência Internacional Direito Ambiental,
Transnacionalidade e Sustentabilidade, evento preparatório para a Rio+20, realizado na cidade de Itajaí/SC.
268
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
1.2 A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.186/2001.
Procurando dar-se concretude e efetividade ao disposto na Convenção sobre
Diversidade Biológica, na data de 23 de agosto de 2001 foi promulgada a Medida Provisória
(MP) nº 2.186-16, que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao
conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e
transferência de tecnologia para sua conservação e utilização, como uma das medidas voltadas
para a efetiva implementação da Convenção sobre a Biodiversidade.
A MP traz a definição sobre conhecimento tradicional associado, em seu artigo 7º, II:
“informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade
local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético”.
Traz ainda o referido diploma geral a previsão de um contrato visando regulamentar
este processo de transferência do conhecimento relacionado ao material genético, conforme
artigo 7º, XIII:
XIII - Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição
de Benefícios: instrumento jurídico multilateral, que qualifica as
partes, o objeto e as condições de acesso e de remessa de componente
do patrimônio genético e de conhecimento tradicional associado, bem
como as condições para repartição de benefícios;
(negrito introduzido)
Não se trata, obviamente, como observou Sandra Akemi Shimada Kishi13, “de um
instituto sujeito ao clássico regime do direito civil dos contratos”, pois:
Segundo a Medida Provisória nº 2186-16/01, que regula a matéria no
Brasil, o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) tem
a atribuição de dar anuência aos contratos de utilização do
patrimônio genético e de repartição de benefícios e de registrá-los,
numa instância ad referendum ou de ratificação para a validade e
eficácia do contrato. Isso significa que hoje esses contratos no
Brasil são regidos pelo regime jurídico de direito privado, ad
referendum do Poder Público, visto que depende da anuência do
Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, que tem natureza de
autarquia federal, salvo quando a própria União for parte. Neste
último caso, o contrato estará sob a égide do regime jurídico de
direito público.
Diante da natureza do objeto do contrato, consubstanciado num bem
de interesse público ou difuso, por óbvio não se trata de um negócio
jurídico regido pelas normas do regime jurídico dos contratos, mas por
um sistema jurídico sui generis contratual, dotado de elementos
próprios de proteção de bem de interesse difuso ou coletivo lato sensu.
Essa concepção é inevitável, pois em se tratando de acesso ao
13
KISHI, op. cit.
269
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
conhecimento tradicional, não apenas o objeto do negócio jurídico é
bem de interesse difuso, mas também as partes – uma comunidade ou
indivíduos ou grupos representativos de direitos coletivos – e ainda o
tempo e o modo dessa relação contratual sui generis invocam
diferentes dinâmicas e instrumentos, próprios do direito das minorias e
dos povos tribais.
(negrito introduzido)
A referida Media Provisória procura regulamentar diversos momentos do processo
de acesso e utilização do patrimônio genético, atenta aos diversos interesses envolvidos na
questão, bem como a não rara necessidade de proteção de determinadas populações.
Assim é que podem ser identificados os seguintes aspectos de regulamentação: (i)
acesso ao patrimônio genético; (ii) acesso a eventual conhecimento tradicional associado ao
patrimônio genético; (iii) formalização de um contrato entre as partes interessadas.
O legislador (sic) reconhece, portanto, nessa relação, o interesse econômico na
exploração do patrimônio genético, a necessidade de proteção das áreas de acesso e das
populações envolvidas, e o reconhecimento do papel do Estado como interveniente para a
salvaguarda dos interesses econômicos e dos interesses socioculturais.
Note-se que não se está falando de tutela, o que atentaria contra o espírito do novo
constitucionalismo latino-americano, que reconhece a diversidade e a identidade dos
diferentes povos que compõem o país, como será visto adiante.
O primeiro passo para o acesso e remessa do componente do patrimônio genético
segue uma lógica muito simples, mas que nem sempre tem acolhida nos complexos sistemas
jurídicos: pedir licença ao “dono” do local onde se encontra o produto ou àquele que sabe
manipular este produto. A utilização desta linguagem coloquial é proposital, para que não
haja dúvida quanto ao que pretendeu o legislador;
Medida Provisória nº 2.186/2001.
Art. 16. O acesso a componente do patrimônio genético existente
em condições in situ no território nacional, na plataforma continental e
na zona econômica exclusiva, e ao conhecimento tradicional
associado far-se-á mediante a coleta de amostra e de informação,
respectivamente, e somente será autorizado a instituição nacional,
pública ou privada, que exerça atividades de pesquisa e
desenvolvimento nas áreas biológicas e afins, mediante prévia
autorização, na forma desta Medida Provisória.
...
§ 8o A Autorização de Acesso e de Remessa de amostra de
componente do patrimônio genético de espécie de endemismo estrito
ou ameaçada de extinção dependerá da anuência prévia do órgão
competente.
§ 9o A Autorização de Acesso e de Remessa dar-se-á após a
anuência prévia:
270
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
I - da comunidade indígena envolvida, ouvido o órgão indigenista
oficial, quando o acesso ocorrer em terra indígena;
II - do órgão competente, quando o acesso ocorrer em área protegida;
III - do titular de área privada, quando o acesso nela ocorrer;
IV - do Conselho de Defesa Nacional, quando o acesso se der em área
indispensável à segurança nacional;
V - da autoridade marítima, quando o acesso se der em águas
jurisdicionais brasileiras, na plataforma continental e na zona
econômica exclusiva.
(negrito introduzido)
Somente após esta prévia autorização é que poderá ser concedida uma autorização de
acesso e de remessa de componente do patrimônio genético e/ou conhecimento tradicional
associado, fornecida pelo Poder Público Federal, por meio do órgão colegiado do Conselho de
Gestão do Patrimônio Genético – CGEN (art. 16, caput, c/c art. 11, IV, a, b, ambos da MP nº
2.186/2001).
Cristiane Derani observa que aqueles que consentem com o acesso ao patrimônio
genético não são proprietários deste, mas sim detentores, pois a informação genética não tem
detentores: “os sujeitos provedores de recurso genético, o fazem, porque em seu território se
encontram recursos biológicos, cuja informação genética apresenta algum interesse científico
ou econômico” 14.
Este consentimento prévio para acesso ao patrimônio genético e/ou conhecimento
tradicional associado recebeu da legislação brasileira o nome de Termo de Anuência Prévia –
TAP (descrito, por exemplo, nas Resoluções 5/2003, 06/2003 e 19/2005 do CGEN) e
constitui-se como verdadeira garantia para a justa e equitativa da repartição dos benefícios,
um dos princípios da Convenção sobre Diversidade Biológica.
Vale ainda observar importante dispositivo previsto na MP 2.186/2001, nos casos
onde haja perspectiva de uso comercial do componente do patrimônio genético ou do
conhecimento tradicional associado (art. 16, §4º), quando as partes – provedor e usuário –
devem firmar um Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de
Benefícios (CURB).
Em síntese, para o acesso e utilização do patrimônio genético e/ou conhecimento
tradicional associado deve-se primeiro obter o consentimento prévio do detentor do produto
por meio do TAP – Termo de Anuência Prévia, depois deve firmar o CURB - Contrato de
Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios, para só então receber a
autorização do CGEN.
14
DERANI, Cristiane. Estudos sobre Acesso aos Recursos Genéticos da Biodiversidade, Conhecimentos Tradicionais
Associados e Repartição de Benefícios. Interpretação da Medida Provisória n. 2.186-16/2001. Florianópolis : Fundação
Boiteux, 2012, p. 33, 34.
271
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Há, portanto, diversas etapas a serem ultrapassadas. São exigências formais que
devem ser aplicadas de forma integrada com normas de caráter substancial, dentre as quais
aquelas contidas nos ordenamentos constitucionais recentes de alguns países da América
Latina, que reconhecem e asseguram os legítimos direitos das comunidades tradicionais, tema
sobre o qual se desenvolverá em seguida.
2. ESTADOS PLURINACIOANAIS
A terminologia homenageada no presente capítulo é uma dentre tantas a indicar um
modelo de Estado que torna efetivo o respeito e reconhecimento dos poderes deferidos aos
diferentes grupos sociais que compõem uma Nação, entendida aqui como aquele conceito
firmado por Luis Villoro15, com a existência de quatro condições: “uma comunidade de
cultura, consciência de pertencer a esta comunidade, projeto comum e relação com um
território”, mas, com a ressalva de Boaventura de Souza Santos16, para quem:
El primer concepto de nación es el concepto liberal que hace
referencia a la coincidencia entre nación y Estado; es decir, nación
como el conjunto de individuos que pertenecen al espacio geopolítico
del Estado y por eso en los Estados modernos se llaman Estadonación: una nación, un Estado. Pero hay otro concepto, un concepto
comunitario no liberal de nación, que no conlleva consigo
necesariamente el Estado.
Necessário se faz, portanto, uma breve conceituação de alguns modelos de Estado, de
forma a tornar mais clara a mudança de paradigma que se pretende demonstrar.
2.1 CONCEITOS CLÁSSICOS DE ESTADO
Diversos ramos do conhecimento procuram analisar e discutir as formas de
organização da sociedade, desde seus mais remotos modelos de convivência social, até os
atuais agrupamentos de países das mais diferentes culturas, motivados pela necessidade de
sobrevivência em um mundo voltado para a economia, produção e produtividade. O caso da
15
VILLORO, Luis. Estado plural, pluralidade de culturas. México: Paidós, 1998, p. s. d., apud FAGUNDES, Lucas
Machado; WOLKMER, Antonio Carlos. Tendências contemporâneas do constitucionalismo latino-americano: estado
plurinacional e pluralismo jurídico. Pensar, Fortaleza, v. 16, n. 2, p. 371-408, jul./dez. 2011, p. 390.
16
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pensar el Estado y la sociedad: desafíos actuales. Buenos Aires: Waldhuter, 2009, p.
202, apud FAGUNDES, Lucas Machado; WOLKMER, Antonio Carlos. Tendências contemporâneas do constitucionalismo
latino-americano: estado plurinacional e pluralismo jurídico. Pensar, Fortaleza, v. 16, n. 2, p. 371-408, jul./dez. 2011, p. 390.
272
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
União Europeia é emblemático, quando se verifica a intenção de fortalecer a produtividade do
bloco de países que a compõe.
Até a configuração do cenário atual, em relação à organização dos Estados que
reúnem uma maior ou menor diversidade de culturas, etnias, religiões, etc., a sociedade já
passou por diversos modelos, desde a completa ausência de organização de uma unidade
territorial e governamental, passando pela época dos grandes Impérios e do feudalismo.
Um aspecto que sempre se fez presente nos arranjos institucionais, com menor um
maior intensidade, foi a presença de diversidades conviventes em um mesmo território. Esta
diversidade foi por vezes respeitada pelos governos, e por vezes foi silenciada em uma
tentativa de manutenção do poder. Nesta última situação, ainda que temporariamente sem voz,
as diferenças permaneceram, e por vezes, aumentaram.
Em geral, são os sistemas de governo autoritários que tentam manter a unidade
territorial com emprego da força. Em estudo sobre regimes políticos e tipos de organização
territorial de poder, Márcia Miranda Soares afirma que “a resposta autoritária consiste em
manter a unidade política silenciando a expressão dos interesses territoriais, o que requer o
controle dos instrumentos de coerção física” 17.
Com efeito, até a Constituição dos Estados Unidos de 1787, considerada um marco
do federalismo, os Estados organizavam-se ou de uma forma Confederada ou constituíam-se
como Estados Unitários.
Em relação a estas formas de organização territorial do poder político, Márcia
Miranda Soares afirma:
Estas três formas se distinguem, em linhas gerais, pelo locus do poder
político: o sistema unitário é caracterizado pela centralização do poder
político (o governo central é que controla toda a vida política do
Estado), enquanto o sistema federal se caracteriza por uma divisão
igualitária do poder político entre o governo central e as sub-unidades
territoriais, e o sistema confederal, ao contrário do sistema unitário,
tem o locus do poder nas unidades territoriais que compõem a
comunidade política18.
Pedro Estevam Alves Pinto Serrano afirma que “Federação é antes de tudo forma de
distribuição geográfica do exercício do poder político no plano interno”
19
. Para Aspásia
Camargo20, o modelo federativo é uma engenharia política e um modelo de organização do
17
SOARES, Márcia Miranda. “Federação, democracia e instituições políticas”. In Lua Nova: revista de cultura e política.
Nº 44, 1988, p. 14.
18
SOARES, Márcia Miranda, op. cit. p. 141.
19
SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Região Metropolitana e seu regime constitucional. São Paulo: Verbatim, 2009,
p. 10.
20
CAMARGO, Aspásia. “Federalismo cooperativo e o princípio da subsidiariedade: notas sobre a experiência recente do
Brasil e da Alemanha”. In Federalismo na Alemanha e no Brasil Orgs. CARNEIRO, José Mário Brasiliense;
HOFMEISTER, Wilhelm. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, Série Debates, nº 22, Vol. I, abril 2001. p. 69
273
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Estado, e para Márcia Miranda Soares, “uma forma de organização do Estado Nacional,
caracterizada pela dupla autonomia territorial do poder político” 21. Afirma ainda esta última
autora que o sistema federal e o sistema unitário são formas opostas de organizar o poder
político dentro de um Estado Nacional. Cabe neste particular uma ressalva em relação aos
modelos formais e aos modelos reais de federalismo, como é o caso do Reino da Espanha, que
sendo um Estado Unitário apresenta grandes características de uma Federação, e o da extinta
União Soviética, que a despeito de prever em sua antiga Constituição a forma federativa de
poder, em muito se distanciava deste conceito.
Fernando Luiz Abrucio22 destaca que a divisão territorial do poder, em especial sob o
modelo federativo, facilita a descentralização do poder no plano nacional e promove a
manutenção da integridade espacial de países grandes ou com heterogeneidades relevantes.
Para Aspásia Camargo, o federalismo seria uma “versão democrática e
institucionalizada” dos grandes impérios23, ressaltando ainda que o federalismo tem um
“efeito sanfona”, cuja maleabilidade e capacidade natural de adaptar-se às ondas de
centralização e descentralização tem-lhe garantido assento formal em diversas Constituições24.
Estas transformações das diferentes conformações de poder vêm acompanhando as
sucessivas mudanças das sociedades, principalmente europeias, com maior ou menor
demanda da atuação do poder público nas questões coletivas. Assim é que tem no plano
histórico tem-se a formação dos Estados liberais, seguido dos Estados sociais e mais
recentemente, no final do século XX e início do século XXI, o fortalecimento de Estados
neoliberais, cuja transferência de atividades estatais aos particulares sugere, nas palavras de
Zulmar Fachin25, a existência de um verdadeiro “Estado privado”, com a existência de novos
leviatãs.
2.2 DEMANDAS NÃO ATENDIDAS
Como visto, alguns modelos de Estado foram sendo construídos ao longo dos anos,
cada qual com seus objetivos específicos.
O federalismo norte americano buscou conformar as forças centrípetas, que
almejavam um governo central forte com poderio militar contra ameaças externas, a
21
SOARES, Márcia Miranda, op. cit. p. 137, 138.
ABRUCIO, Fernando Luiz. “A reconstrução das funções governamentais no federalismo brasileiro”. In Federalismo na
Alemanha e no Brasil. Orgs. CARNEIRO, José Mário Brasiliense; HOFMEISTER, Wilhelm. São Paulo: Fundação Konrad
Adenauer, Série Debates, nº 22, Vol. I, abril 2001, p. 95.
23
CAMARGO, Aspásia, op. cit. p. 74.
24
CAMARGO, Aspásia, op. cit. p. 70.
25
FACHIN, Zulmar. Curso de direito constitucional. São Paulo: Método, 2008, p. 168.
22
274
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
solidificação de um mercado mais amplo, dentre outros motivos, que duelavam com as forças
centrífugas, que pretendiam manter a posição de independência das ex-colônias que haviam
conseguido sua independência26. Tratava-se de um esquema de solução de controvérsias27.
No Brasil, também se procurou com o federalismo dirimir controvérsias entre estas
forças políticas e sociais. No entanto, se nos Estados Unidos o movimento federalista
procurava criar uma unidade com o Estado Nacional, de forma a acomodar as tendências
separatistas das ex-colônias, no Brasil o que se procurava manter era a unidade nacional com
a manutenção de privilégios das elites locais.
No entanto, especificamente no Brasil e em toda a América Latina, as formas de
Estado e de governo que se formaram até o século XX procuravam privilegiar um
determinado segmento social, em detrimento de outros. A independência das colônias
permitiu uma reorganização da ordem social e econômica, mantendo-se os privilégios de
pequenos grupos, geralmente grandes proprietários de terra, pois como afirmam Fagundes e
Wolkmer:
Poucas vezes, na história da região, as constituições liberais e a
doutrina clássica do constitucionalismo político reproduziram,
rigorosamente, as necessidades de seus segmentos sociais
majoritários, como as nações indígenas, as populações afroamericanas, as massas de campesinos agrários e os múltiplos
movimentos urbanos 28.
E como afirmado acima, a diversidade e a pluralidade de uma Nação podem ser
subjugadas por um modelo de Estado e de governo, mas ela não desaparece, e em algum
momento e com variada força, estas vozes se fazem ouvir. Os recentes movimentos
constitucionalistas latino-americanos dos últimos anos parecem reproduzir estas vozes, como
brevemente se demonstrará em seguida.
2.3 A CONSTRUÇÃO DE UM MODELO CONSTITUCIONAL LATINO-AMERICANO
As recentes alterações constitucionais promovidas principalmente por Venezuela,
Equador e Bolívia indicam a resposta a uma demanda formulada pelas classes sociais
historicamente alijadas dos processos decisórios, “dentro de um contexto social de
26
SOARES, Márcia Miranda, op. cit. p. 139.
BERCOVICI, Gilberto, Dilemas do Estado Federal Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 12.
28
FAGUNDES, Lucas Machado; WOLKMER, Antonio Carlos. “Tendências contemporâneas do constitucionalismo latinoamericano: estado plurinacional e pluralismo jurídico”. Pensar, Fortaleza, v. 16, n. 2, p. 371-408, jul./dez. 2011, p. 377.
27
275
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
exigibilidade da concretização de políticas eficazes em torno de necessidades fundamentais”
29
.
Trata-se de se apropriar de mecanismos utilizados pelas elites (!) que predominavam
até então, mas desta vez com um real comprometimento no atendimento das demandas das
populações historicamente marginalizadas política, social e economicamente. É o que
Boaventura de Souza Santos chama de “uso contra-hegemônico de instrumentos
hegemônicos” 30.
Alguns autores espanhóis citados por Fagundes e Wolkmer 31 sustentam a evolução
do “neoconstitucionalismo”, presente na década de setenta que apresenta normas materiais e
substantivas que condicionam a atuação do Estado, passando pelo “novo constitucionalismo”
que mais além de uma preocupação jurídica apresenta uma preocupação política com a
legitimidade da soberania popular, e chegando finalmente ao “novo constitucionalismo latinoamericano”, que busca atender as demandas vitais das comunidades que não experimentaram
o Estado social, indo além da construção de um modelo jurídico garantidor dos direitos
sociais e da formulação de mecanismos de legitimação popular, sem, no entanto negar estas
conquistas.
Como exemplo cite-se a chamada “rigidez” constitucional boliviana, onde a alteração
das normas constitucionais se dará pelo mesmo podes constituinte originário, ou ainda o
Tribunal Constitucional Plurinacional, voltado a resolver conflitos entre as diferentes
nacionalidades do país e cuja constituição deve representar esta mesma diversidade.
BOLÍVIA. Constitución Política del Estado.
Artículo 411.
I. La reforma total de la Constitución, o aquella que afecte a sus
bases fundamentales, a los derechos, deberes y garantías, o a la
primacía y reforma de la Constitución, tendrá lugar a través de una
Asamblea Constituyente originaria plenipotenciaria, activada por
voluntad popular mediante referendo. La convocatoria del referendo
se realizará por iniciativa ciudadana, con la firma de al menos el
veinte por ciento del electorado; por mayoría absoluta de los
miembros de la Asamblea Legislativa Plurinacional; o por la
Presidenta o el Presidente del Estado. La Asamblea Constituyente se
autorregulará a todos los efectos, debiendo aprobar el texto
constitucional por dos tercios del total de sus miembros presentes. La
vigencia de la reforma necesitará referendo constitucional
aprobatorio.
29
MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. El nuevo constitucionalismo latinoamericano y el proyecto de Constitución del Ecuador
de 2008. Alter Justicia: Estudios sobre teoría y justicia constitucional, ano 2, n. 1, p. 13-28, oct. 2008, apud FAGUNDES,
Lucas Machado; WOLKMER, Antonio Carlos. “Tendências contemporâneas do constitucionalismo latino-americano: estado
plurinacional e pluralismo jurídico”. Pensar, Fortaleza, v. 16, n. 2, p. 371-408, jul./dez. 2011, p. 378.
30
SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: perspectivas desde una epistemología del
Sur. Lima: Instituto Internacional de Derecho y Sociedad, 2010, p. 80.
31
FAGUNDES; WOLKMER, op. cit. p. 381-384.
276
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
II. La reforma parcial de la Constitución podrá iniciarse por
iniciativa popular, con la firma de al menos el veinte por ciento del
electorado; o por la Asamblea Legislativa Plurinacional, mediante
ley de reforma constitucional aprobada por dos tercios del total de
los miembros presentes de la Asamblea Legislativa Plurinacional.
Cualquier reforma parcial necesitará referendo constitucional
aprobatorio.
Artículo 197.
I. El Tribunal Constitucional Plurinacional estará integrado por
Magistradas y Magistrados elegidos con criterios de
plurinacionalidad, con representación del sistema ordinario y del
sistema indígena originario campesino.
Com efeito, este movimento ainda está em curso, como afirmam Dalmau e Pastor32:
“... el neo constitucionalismo es una corriente doctrinal, producto de
años de teorización académica mientras que, como vamos a ver a
continuación, el nuevo constitucionalismo latinoamericano es un
fenómeno en el extrarradio de la Academia, producto más de las
reivindicaciones de los movimientos sociales que de los profesores de
Derecho Constitucional. Y, consiguientemente, carece de una
cohesión y una articulación como sistema cerrado de análisis y
proposición de un modelo constitucional”
No entanto, demonstra uma preocupação com as peculiaridades de cada sociedade,
buscando atender efetivamente as demandas das camadas da sociedade que foram
marginalizadas, e que constituem a própria formação desta sociedade, bem como sua maior
parcela.
E considerar estes diferentes modos de vida significa respeitar o modo de vivência e
convivência destes grupos sociais. Se no campo da democracia efetiva e da legitimidade de
um governo este movimento representa um forte avanço, no campo ambiental é possível
vislumbrar também um sistema de governo mais preocupado com as práticas sustentáveis, na
medida em que a relação destes grupos sociais, em especial os aborígenes das comunidades
andinas têm forte respeito pela preservação dos ecossistemas.
E no Brasil, pode-se comentar a especial relação do homem campesino com a terra,
que busca seu melhor aproveitamento com base em técnicas não predatórias, com a não
utilização de agrotóxicos, por exemplo.
32
MARTÍNEZ DALMAU, Rubén; PASTOR, Roberto Viciano. ¿Se puede hablar de un nuevo constitucionalismo
latinoamericano
como
corriente
doctrinal
sistematizada?
Disponível
em:
<http://www.juridicas.unam.mx/wccl/ponencias/13/245.pdf>. Acesso em 04 set 2012.
277
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão da biodiversidade envolve uma complexidade de aspectos e interesses que
pode ser comparada com o significado desta própria expressão. Biodiversidade envolve um
plexo de elementos da Natureza, desde um pequeno inseto até o próprio Ser Humano, em cuja
harmonia se encontra a base para uma vida digna e duradoura, o que em outras palavras
também pode ser chamada de sustentável.
A preocupação com a biodiversidade toma contornos globais na medida em que
movimentos até então isolados de preservação dos ecossistemas e das comunidades
tradicionalmente exploradora destes recursos ganha expressão internacional, resultando, por
exemplo, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em
Estocolmo no ano de 1972. Este marco no tratamento da questão ambiental foi impulsionado
pela constatação fática da degradação do meio ambiente produzida pelo modo de exploração
dos recursos naturais, e que pode ser percebida em varais partes do planeta.
O desdobramento deste movimento, que constata o modo insustentável de lidar com
a questão ambiental, é o surgimento de propostas para a construção de medidas concretas para
utilização racional do meio ambiente. São construídos acordos globais, com uma abrangência
global, mas sem desprezar a importância de ecossistemas locais, e especialmente, a relação do
Homem com estes ambientes. Num dos pontos objeto de estudo deste trabalho apresenta-se o
modelo que se encontra em construção para a proteção da biodiversidade. Proteção dos
diferentes elementos que compõem ecossistemas locais (e de maior abrangência também) bem
como da população que tradicionalmente interage com estes elementos, promovendo ao
mesmo tempo a sua preservação e a exploração das potencialidades, sem que haja o
esgotamento de seus recursos, como se verifica em outros segmentos.
Reconhece-se,
portanto,
a
diversidade
de
culturas
e
interesses
na
exploração/preservação destes recursos, e busca-se a construção de modelos institucionais que
permitam acomodar satisfatoriamente dos envolvidos. Neste sentido tanto a Convenção sobre
Diversidade Biológica (1992) como o Protocolo de Nagoya (2010), documentos
internacionais, tentam buscar este equilíbrio. No Brasil, a legislação avança no sentido de dar
concretude a estas normas internacionais. Tais documentos não são a panaceia dos problemas
de preservação ambiental e da biodiversidade, mas apontam (mais) um caminho na busca da
almejada sustentabilidade.
Um fator que não pode ser alijado desta discussão, mais uma vez, diz respeito a uma
parte da população especialmente interessada na preservação da biodiversidade, que são
278
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
aquelas pessoas que possuem um vínculo histórico com o local onde residem e trabalham,
fazendo do conhecimento acumulado por várias gerações para como os elementos da
Natureza, a sua grande riqueza. Saber como manejar adequadamente a grande variedade de
elementos naturais é considerado, hoje, um verdadeiro patrimônio de diversos países.
Neste sentido, o reconhecimento da diversidade e importância de parte desta
população é objeto alterações sociais, políticas e jurídicas na América Latina.
Percebe-se no ambiente latino-americano o surgimento de um movimento a partir do
final do século XX direcionado ao reconhecimento da identidade e da diversidade dos
diferentes povos que a compõe. Estes povos têm sido tradicionalmente subjugados pelos
grupos sociais dominantes, chamados de elites sociais, e cujos instrumentos foram desde a
simples força bruta até mecanismos menos violentos, como o Direito.
As Constituições que surgiram no continente procuraram então se estruturar no
modelo europeu, cuja realidade tanto econômica quanto cultural sempre se distanciou da
América Latina.
As demandas reprimidas destes segmentos sociais passam então a partir do início do
século XXI a se apropriar deste instrumento jurídico (Constituição), para, sem rupturas
traumatizantes, estabelecer uma nova ordem jurídica que contemple os interesses desta
diversidade, mas preocupada em não construir um novo modelo hegemônico.
Neste sentido, o respeito às minorias constitui-se como elemento fundamental deste
novo Estado, chamado de Plurinacional. E este respeito deve necessariamente se traduzir em
mecanismos eficazes de participação do poder.
Para além deste reconhecimento e eficácia, faz-se necessária a criação e execução de
mecanismos que permitam a manutenção destes diferentes tipos de vida da variadas
identidades. Esta manutenção pode ser chamada de sustentabilidade, que dentre tantas
definições e elementos conformadores, diz respeito à questão ambiental e à questão
institucional, considerada aqui como mecanismos de preservação de uma determinada
identidade, com base no respeito à diferença.
A construção de um modelo contratual com base em acordos internacionais pode ser
apontado como um caminho a ser seguido na busca de princípios consagrados nestes mesmos
acordos: preservação ambiental e da biodiversidade, respeito às comunidades tradicionais,
repartição dos benefícios oriundos da exploração econômica do patrimônio genético e do
conhecimento tradicional associado.
Não há que se falar em um modelo contratual clássico dos países ocidentais, com
base na legislação civil. Em um primeiro momento, faz-se necessário, para preservação da
279
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
biodiversidade, uma diversidade de elementos constitutivos do próprio contrato, promovendo
uma integração entre os diferentes modos de viver e pensar a relação para com o outro e para
com a Natureza.
Em um segundo momento, as instâncias decisórias e a legitimidade para celebrar
acordos deve prever uma participação efetiva dos diversos segmentos de cada país, em
especial aqueles tradicionalmente alijados do poder. Os órgãos estatais devem contemplar a
participação destes segmentos, sob pena de se estar instaurando uma nova tutela dos
interesses dos outros, que sempre tiveram capacidade de decidir o modo de vida que
pretendem para sua comunidade.
Se o Protocolo de Nagoya, citado neste estudo, pretende utilizar-se das normas
jurídicas internas de cada país para a formalização dos contratos, estes devem ser os dois
parâmetros principais na conformação de sua legalidade, e, sobretudo, legitimação.
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282
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
DIREITO E DESENVOLVIMENTO NO MEIO RURAL: AGROECOLOGIA
COMO PARADIGMA DA SUSTENTABILIDADE
Iranice Gonçalves Muniz
Doutora e mestre em Direito Público pela Universitat Pompeu Fabra,
Barcelona, Espanha. Atualmente, é professora titular do Centro
Universitário de João Pessoa (UNIPÊ) e pesquisadora do Núcleo de
Cidadania e Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB), Brasil.
Resumo
A presente pesquisa foi realizada junto aos camponeses associados à Ecovárzea (Associação dos
agricultores e Agricultoras da Várzea Paraibana), no Município de Sapé, situado no Estado da Paraíba,
Brasil. Teve como objetivo, dentre outros, analisar as mudanças ocorridas na agricultura familiar dos
assentamentos rurais que utilizam a produção agroecológica na Zona da Mata paraibana e verificar em
que proporções essas mudanças têm contribuído para redefinir as relações entre os camponeses, a
produção agrícola e o meio ambiente. A pesquisa foi realizada durante a execução do projeto de extensão
“Agricultura orgânica e feira agroecológica como estratégia de complementação de renda para os camponeses
assentados da Mata Paraibana” e do projeto “Juventude rural e empoderamento: formação de agentes
ambientais e troca de saberes no campo da agroecologia”, uma parceria da Ecovárzea com a Universidade
Federal da Paraíba, visando à troca de saberes. Através das visitas in loco nas áreas de produção
agreocológica; das visitas às feiras agroecológica, que acontecem semanalmente no Campus da
Universidade Federal da Paraíba; e das entrevistas realizadas com as famílias envolvidas na produção e na
Ecovárzea, foi possível identificar a mudança ocorrida tanto no discurso como na pratica desse grupo de
camponeses que respeita o princípio constitucional da função social da propriedade, estabelecido na da
Constituição de 1988, no artigo 170 inciso III, com a observância dos requisitos para o cumprimento
dessa função social estabelecido no artigo 186, incisos I, II, III e IV da Constituição Federal.
Palavras-chave: Direito fundamental; função social; agroecologia; desenvolvimento e sustentabilidade
RIGHT AND DEVELOPMENT IN THE RURAL AREAS: AGRO ECOLOGY AS A PARADIGM
OF SUSTAINABILITY
Summary
This research was conducted in a co-operation with peasants associated to Ecovárzea (Associação dos
agricultores e Agricultoras da Várzea Paraibana), in the Municipally of Sapé, in Paraiba State, Brazil. It
has the objective, among others, to analyse the changes that happened in the family agriculture of the
rural settlements that use the agro ecological production in the forest area of Paraíba and verify in which
proportions these changes have been contributing to redefine the relationship among the peasant, with the
agricultural production and the environment. The research was realized during the execution of the
extension project “Organic agriculture and agro ecological fair as a strategy of supplementary income for
peasants settled in Paraíba Forest” and the project “Rural youth empowerment: formation of
environmental agents and the exchange of knowledge in the agro ecological field”, a partnership of
Ecovárzea and the Federal University of Paraíba, with the aim of knowledge exchange. Through site
visits in the areas of agro ecological production; visits of agro ecological fairs, that happened weekly in
the campus of the Federal University of Paraíba; and interviews realized with the families involved in the
production and in the Ecovárzea, it was able to identify the changes occurred both in the speech and in
the practice of these peasant groups witch respect the constitution principle of the social function of
property, established in the Constitution of 1988, in the article 170 item III, compliance with the
requirements to the fulfilment of this social function established in the article 186, item I, II, III and IV of
the Federal Constitution.
Key-words: Fundamental right; social function; agro ecology; development and sustainability
283
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
1. Introdução
O presente trabalho visa a analisar as mudanças ocorridas na agricultura familiar dos
assentamentos rurais que utilizam a produção agroecológica na Zona da Mata paraibana
e verificar em que proporções essas mudanças têm contribuído para redefinir as relações
entre os camponeses, a produção agrícola e o meio ambiente. A pesquisa foi desenvolvida
a partir dos projetos de extensão “Agricultura orgânica e feira agroecológica como estratégia de
complementação de renda para os camponeses assentados na zona da mata paraibana” e do
projeto “Juventude rural e empoderamento: formação de agentes ambientais e troca de
saberes no campo da agroecologia”, ambos da Universidade Federal da Paraíba (UFPB),
através do grupo de pesquisa Gestar: Território, trabalho e cidadania. Teve como espaço de
realização os assentamentos Padre Gino e Rainha dos Anjos, situados no Município de Sapé/PB, e
a Associação dos Agricultores e Agricultoras da Várzea Paraibana (Ecovárzea). Outros dados da
pesquisa foram colhidos na Comissão Pastoral da Terra (CPT), onde ocorrem, mensalmente, as
reuniões de representantes de assentamentos e acampamentos rurais, para tratar de temas de
interesse dos camponeses que lutam pela reforma agrária no país.
Os sujeitos sociais envolvidos na pesquisa são os camponeses e seus filhos (as) assentados
(as) pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (ICRA/PB). A pesquisa foi
realizada por um grupo de pesquisadores formado por professores e estudantes universitários, com
a participação de membros da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e de técnicos em agropecuária
formados pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA).
O conjunto das atividades desenvolvidas pelos projetos de extensão teve como metas, dentre
outras, incentivar os assentados que usam a agroecologia a interagir com outros assentamentos
rurais da região, fortalecer as experiências de reflorestamento da Mata Atlântica nas áreas das
nascentes e dos açudes, bem como proporcionar a formação de agentes ambientais no meio rural.
Teve ainda os seguintes objetivos paralelos: despertar o interesse dos jovens por práticas
educativas que caracterizam o zelo e o cuidado pelo ambiente em que vivem e produzem;
proporcionar oportunidades de trocas de saberes através de aulas teórica sobre meio ambiente e
função social da terra, intercâmbios e cursos de capacitação e práticas de manejo do solo, com
vista à educação ambiental.
Para execução da pesquisa partiu-se das seguintes indagações: Quais são os desafios a ser
enfrentados nos assentamentos rurais da reforma agrária? Porque os camponeses optaram pela
agroecologia como meio de produção? Qual o tratamento dado ao meio ambiente pela
284
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Constituição Federal de 1988 e textos internacionais, na perspectiva do desenvolvimento
sustentável?
1. Um novo sentido ao direito de propriedade nos assentamentos da reforma
agrária
No Estado da Paraíba, principalmente na região pesquisada, a produção de cana-de-açúcar é
largamente utilizada, ocupando um espaço bastante significativo da terra agricultável. Até a
promulgação da Constituição Federal de 1988, os camponeses não tinham garantia constitucional
sobre a função social da propriedade, tornando-se refém do Código Civil de 1916, Lei bastante
protetora do direito de propriedade no modelo do Estado liberal, o que facilitou, legalmente, a
concentração da propriedade e o uso inadequado da terra.
Dentre as atividades econômicas praticadas na Zona da Mata paraibana, pode-se afirmar que a
monocultura da cana-de-açúcar é responsável pelo desflorestamento, pelo esgotamento da terra,
bem como pelo quase desaparecimento da cultura tradicional do manejo da terra. Esse conjunto
de fatores afetou, como ainda vem afetando a sobrevivência de milhares de famílias camponesas e
proporcionou uma constante disputa pela terra entre os proprietários que detinham o domínio da
propriedade e os camponeses que detinham à posse desta.
Com a promulgação da Constituição de 1988 os conflitos de terra tornaram-se mais
visíveis por todo o Estado brasileiro. Na Paraíba, por exemplo, os anos de 1990 foram
marcados por mobilizações, prisões e condenações de camponeses; liminares de
reintegração de posse; ocupações de propriedades improdutivas; ocupações do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA); e passeatas dos movimentos
sociais com o claro objetivo de uma reforma agrária. A mobilização dos habitantes do
espaço rural chamou a atenção de muitos teóricos que tentavam traduzir as novas formas
de luta e resistências. Fernandes (1996, p. 86), abordando o tema assinala:
Configuraram-se movimentos com o objetivo de transformar as suas realidades, de
reconquistar frações do território, lutando contra a miséria e resistindo ao assalariamento,
que tem crescido com a territorialização do capital e, consequentemente, com a expansão
da propriedade capitalista, em detrimento da propriedade e do trabalho familiar. Essas
lutas são parte de um processo de resistência.
Nos assentamentos Padre Gino e Rainha dos Anjos (espaço da pesquisa), vivem
muitos camponeses que outrora trabalhavam para os donos de engenhos, usinas e
fazendas. Nesse tipo de trabalho, atendiam as ordens dos patrões e dos administradores.
285
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Além disso, não tinham qualquer participação nos lucros da “produção” da terra. As
mulheres, por exemplo, não tinham oportunidade de emprego.
Após as desapropriações das propriedades para fins de reforma agrária esse
cenário vem se alterando significativamente. Das trinta mulheres camponesas
entrevistadas nos dois assentamentos, 80% responderam que, agora, trabalham no
roçado, participam das feiras agroecológicas, reúnem-se na associação do assentamento
(ecovárzea), seus filhos estão na escola e os adolescentes participam do projeto de
formação de agentes ambientais. Duas dessas mulheres responderam que têm filhos
participando de um projeto de formação de lideranças. O presidente da Ecovázia
participa mensalmente de reuniões na Comissão Pastoral da Terra para avaliar a
conjuntura política/social/econômica do Estado.
Atualmente, segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA/PB), existem no Estado da Paraíba 300 assentamentos da reforma agrária, o que
representa mais de 5% do território paraibano.
A imissão de posse pelo INCRA, em áreas desapropriadas pelo governo federal, iniciada
na década de 1990, sob a pressão dos movimentos sociais, em especial dos camponeses,
oportunizou a emergência de novas estratégias de lutas. Para alguns assentamentos, o objetivo era
produzir de forma diferenciada do modelo imposto pelo sistema neoliberal que prima pela
produção em escala. Hoje, em vários assentamentos rurais da Paraíba, no que diz respeito à
produção agrícola, a monocultura da cana-de-açúcar foi substituída pela diversificação da
produção através da agroecológia, o que significa um rompimento com o modelo mercantil
(anterior) de produção. Sobre a exploração do trabalho, em propriedades rurais, nos moldes
mercantis, Silveira (2009, p. 76) afirma que:
A exploração de trabalho, compatível em uma economia nos moldes mercantis, exigia
disponibilidade de trabalhadores em grande quantidade, da qual um dos efeitos é a sua
mercantilização, sua conversão em propriedade do dono da plantação, disso decorrendo
sua sujeição pessoal, sua destituição da posse dos meios de produção, implicando um
controle de seu trabalho.
A iniciativa de trabalhar a produção, tomando como paradigma a agroecologia, trata-se de
uma das alternativas utilizadas pelos camponeses, em alguns assentamentos da reforma agrária,
por exemplo, os pesquisado, não só para a produção de alimentos sem agrotóxicos, mas também
como uma nova bandeira de luta em favor do desenvolvimento socioeconômico rural, e do meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
A escolha da agroecologia como paradigma da produção camponesa, segundo Rodrigues
(2009), contém fortes componentes da memória coletiva. A memorização foi um elemento
286
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
comum na construção das etapas de transição da agricultura convencional para a agroecologia.
Esse exercício foi marcado pelas lembranças de relatos dos pais, avós, enfim dos ancestrais, sobre
as formas como cultivavam os alimentos e como organizavam a produção. O relato dessas
memórias em reuniões e em oficinas serviu de exemplo para estimular a retomada do processo
produtivo, livre de agrotóxicos, de fertilizantes artificiais e de práticas predatórias. Nos
assentamentos Padre Gino e Rainha dos Anjos, quase toda a produção dos camponeses
associados à Ecovárzea é consumida nos próprios assentamentos. O excedente é comercializado
nas feiras agroecológicas realizadas na cidade de João Pessoa.
Através das entrevistas realizadas com as famílias dos assentamentos rurais,
envolvidas na produção agroecológica, foi possível constatar que, atualmente, a relação
entre os camponeses e a terra busca dar um novo sentido ao meio rural. Esses homens e
mulheres, jovens e crianças que habitam no espaço rural buscam superar o modelo de
produção que não leva em consideração o uso adequado da terra e seus recursos
naturais, bem como, a cultura camponesa.
2.
Associação camponesa como meta para enfrentar os desafios sócio/econômico no
meio rural
Com base nos dados do Censo de 2006, o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) apontou a existência de quase 4,4 milhões de estabelecimentos
característicos da agricultura familiar, onde vivem e trabalham 12,3 milhões de pessoas.
Ocupando 24,3% da área, a agricultura familiar responde por 38% da renda gerada e
emprega quase ¾ da mão de obra do campo. Em termos comparativos, a agricultura
familiar ocupa 15,3 trabalhadores/ha contra 1,7 da patronal; fornece 70% do feijão, 58%
do leite, 87% da mandioca, 46% do milho, 50% das aves e 59% dos suínos para a mesa
do brasileiro1.
No Estado da Paraíba, especialmente nos assentamentos Padre Gino e Rainha dos
Anjos, os camponeses que lutaram pela desapropriação de propriedades que não
cumpriam a função social, como determina o artigo 186 da Constituição de 1988,
compreenderam que tão importante quanto os recursos naturais, para o tema
sustentabilidade, são os hábitos e as práticas de produção que garantam a sobrevivência
econômica, social e cultural dos que habitam no meio rural. Nesse sentido, as regras
1
Fonte: Brasil. MDA. Um novo Brasil rural. Brasília, 2010, p. 124.
287
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
formais que regulam o uso adequado do solo devem ser observadas na perspectiva da
inclusão social e o respeito as diferentes formas de produção, e estimular as aptidões
dos que vivem e sobrevivem da terra.
Com esse propósito, cinco assentamentos, na região da várzea paraibana, criaram uma
associação dos camponeses assentados que trabalham com a agroecologia - a Ecovárzea2. A
entidade tem como objetivos principais: modificar a estrutura da propriedade da terra nos
assentamentos; garantir a produção sem agrotóxicos; escoar a produção sem a participação de
atravessadores; desenvolver tecnologias adequadas à realidade, conservando e recuperando os
recursos naturais, no sentido de garantir melhores condições de vida para todos, tanto os que
vivem nos assentamentos, como os que vivem fora deles3.
Os integrantes da Ecovárzea e seus familiares participam ativamente da sociedade
sem deixarem o cotidiano rural. Vivem nos assentamentos, trabalham na produção
agrícola, participam das feiras agroecológicas. Alguns jovens participam de projetos de
formação de técnicos agrícolas; outros estudam na Universidade Federal da Paraíba,
especialmente, no curso de Pedagogia do campo. Muitos participam de reuniões da
Comissão Pastoral da Terra (CPT) e de outras entidades não-governamentais. Merece
especial destaque a participação de duas jovens no grupo de pesquisa e em um grupo de
estudo, ambos da UFPB, e a participação de trinta e quatro adolescentes no projeto
“Juventude rural e empoderamento: formação de agentes ambientais e troca de saberes
no campo da agroecologia”.
Os camponeses associados à Ecovárzea parecem compreender o significado do
termo sustentabilidade nos assentamentos em que vivem. Para eles, sustentabilidade
significa o exercício dos direitos fundamentais como alimentação, trabalho, moradia,
saúde, educação (inclusive ambiental) necessários para garantir a produção e a
reprodução da vida humana e do planeta, protegendo a natureza, a cultura e a vida de
cada pessoa, independentemente de onde ela viva (no campo ou na cidade). Tal postura
vincula-se diretamente aos princípios da República Federativa do Brasil estabelecidos
no artigo 3º da Constituição de 1988: “construir uma sociedade livre, justa e solidária;
garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça e quaisquer outras formas de discriminação”.
2
Associação dos Agricultores da Várzea Paraibana.
Depoimento de Luizinho, ex-presidente da Ecovárzea, em reunião do Memorial das Ligas Camponesas,
em abril de 2010.
3
288
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Nesse aspecto, a descentralização da propriedade da terra, a diversidade cultural e a
observância
das
normas
são
peças
fundamentais
para
o
desenvolvimento
sócio/econômico/ambiental. Deveras a diversidade cultural e a descentralização da
propriedade, assim como a importância das normas que regulam o uso adequado dos
recursos naturais, numa perspectiva de sustentabilidade, tornam-se um desafio para a
intervenção positiva do Estado, com vista ao desenvolvimento sustentável.
O desenvolvimento sustentável, segundo Leff (2001), converte-se num projeto
destinado a erradicar a pobreza, satisfazer as necessidades básicas do ser humano e
melhorar a qualidade de vida da população. Para o autor, os princípios de racionalidade
ambiental oferecem novas bases para construir um novo paradigma produtivo fundado
no potencial ecológico, na inovação tecnológica e na gestão participativa dos recursos.
É nesse sentido que se pode entender o direito ao desenvolvimento como um
direito fundamental voltado para a qualidade de vida das pessoas. Assim, todos, sem
distinção de qualquer natureza, estão habilitados a participar do desenvolvimento
econômico, social, cultural, político e ambiental, a ele contribuir e dele desfrutar
(SILVA, 2010, p. 49).
A degradação ambiental, segundo Leff (2001), emerge do crescimento e da
globalização da economia. Para o autor, essa agressão generalizada se manifesta,
também, como uma crise de civilização que questiona a racionalidade do sistema social,
os valores, os modos de produção e os conhecimentos que o sustentam.
Visivelmente, no Brasil, é o espaço rural que mais constantemente sofre com as
desigualdades sociais, a fome e a extrema pobreza. Para evitar que, famílias inteiras continuem
migrando para as periferias das cidades, engrossando ainda mais o cordão dos desempregados
urbanos, como estratégia pedagógica, nos assentamentos Padre Gino e Rainha dos Anjos, há uma
agenda de atividades, como por exemplo, envolver os adolescentes em projetos de extensão
oferecidos pelos editais públicos das instituições de ensino. Tenta-se, por meio das atividades
do grupo, integrar o maior número possível de famílias residentes nos assentamentos.
Este parece ser, para os que ocupam o espaço rural, especialmente para os
adolescentes integrantes dos projetos, um desejo e uma necessidade para enfrentar o
futuro, garantindo uma melhor qualidade de vida para todos. Trata-se de proposta
diferente que pode abrir perspectivas futuras. Os movimentos camponeses, no passado e
no presente, sempre buscaram um caminho alternativo à realidade posta. Para
Comparato (2003, p. 422), a grande injustiça em matéria ambiental reside no fato de
289
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
que, embora os grandes poluidores do mundo sejam os países desenvolvidos, são as
nações proletárias que sofrem mais intensamente os efeitos da degradação ambiental.
Do ponto de vista da segurança alimentar, a agroecologia tende a apresentar
vantagens quando comparada com o modelo mercantil de produção de alimentos em
larga escala. Por ser diversa, a agroecologia produz e reproduz alimentos carregados de
atributos territoriais, culturais e locais, com base na sustentabilidade tema obrigatório de
uma agenda socioambiental na esfera local, nacional e internacional.
A degradação ambiental, segundo Leff (2001), emerge do crescimento e da
globalização da economia. Para o autor, essa agressão generalizada se manifesta,
também, como uma crise de civilização que questiona a racionalidade do sistema social,
os valores, os modos de produção e os conhecimentos que o sustentam.
2. Assentamentos rurais: meio ambiente, Constituição de 1988 e textos internacionais,
na perspectiva do desenvolvimento sustentável
A experiência vivida pelas famílias camponesas nos assentamentos pesquisados chama a
atenção para vários ramos do direito, principalmente o direito constitucional e o direito
internacional. Ao conectar o direito ao meio ambiente com o direito ao desenvolvimento
sustentável, reivindica-se o direito ao desenvolvimento de cada indivíduo, que assegure uma vida
digna para todos e garanta uma relação ética e democrática na promoção do desenvolvimento
nacional e o progresso da humanidade.
No debate oficial, o desenvolvimento sustentável foi introduzido, como
estratégia de combate à crise ambiental mundial, pelo relatório de Founex (1971) e pela
Conferência de Estocolmo (1972). Posteriormente, foi reiterado nas demais
conferencias sobre meio ambiente. Em 1985, a Organização das Nações Unidas (ONU),
através da Assembleia Geral, atribuiu ao Programa das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente a tarefa de reexaminar os principais problemas do meio ambiente e o
desenvolvimento do mundo, bem como de apresentar soluções possíveis projetadas até
o ano 2000 e subsequentes.
Para a execução dessa tarefa, criou-se a Comissão Mundial sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, presidida por Gro Harlem Brundtland, primeira-ministra
da Noruega. Em 1987, a Comissão apresentou à Assembleia Geral da ONU um
relatório, conhecido como Relatório Brundtland, no qual apontava o conceito de
desenvolvimento sustentável como “processo de mudança em que o uso de recursos, a
290
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e as mudanças
institucionais concretizam o potencial de atendimento das necessidades humanas do
presente e do futuro”. A Declaração sobre o Ambiente Humano, firmada na Conferência das
Nações Unidas de Estocolmo em 1972, inclui homem e natureza no mesmo espaço, a partir da
seguinte ótica:
O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições
de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida
digna, gozar de bem-estar e é portador solene de obrigações de proteger e melhorar o
meio ambiente, para as gerações presentes e futuras. A esse respeito, as políticas que
promovem ou perpetuam o apartheid, a segregação social, a discriminação, a opressão
colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira permanecem
condenadas e devem ser eliminadas. Os recursos naturais da terra, incluídos o ar, a água, o
solo, a flora e a fauna e, especialmente, parcelas representativas dos ecossistemas naturais,
devem ser preservados em benefício das gerações atuais e futuras, mediante um
cuidadoso planejamento ou administração adequados. Deve ser mantida e, sempre que
possível, restaurada ou melhorada a capacidade da terra de produzir recursos renováveis
vitais. O homem tem a responsabilidade especial de preservar e administrar
judiciosamente o patrimônio representado pela flora e fauna silvestres, que se encontram
atualmente em grave perigo, por uma combinação de fatores adversos. Em consequência,
ao planificar o desenvolvimento econômico, deve ser atribuída importância à conservação
da natureza, incluídas a flora e a fauna silvestres4.
Assim, uma agenda socioambiental, segundo Floriani (2000, p. 38), exigirá o
diálogo multi e interdisciplinar, no qual as ciências da vida, da natureza e da sociedade
buscarão novas alianças. Essa agenda exigirá, também, uma mudança de atitude diante
da “trama complexa da vida, tecida entre os seres humanos em sociedade e com a
natureza”. Nesse sentido, três problemas devem ser enfrentados para conter uma
agressão maior ao meio ambiente: empresas públicas ou privadas, que poluem o ar, os
rios e os mares; as terras agricultáveis que estão sendo ocupadas pelo cultivo de canade-açúcar, café, soja, eucalipto e outras monoculturas; a aplicação maciça de compostos
químicos conhecidos por agrotóxicos. Essas três formas de agressão à natureza vêm se
tornando uma ameaça à vida do ser humano, da fauna, da flora e do próprio planeta.
Nessa busca de proteção à natureza, foi realizada, no período de 3 a 14 de junho
de 1992, na cidade do Rio de Janeiro, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Eco-92, também denominada Cúpula da
Terra. Nessa Conferência, tentou-se demonstrar que o modelo de desenvolvimento na
atualidade não é sustentável. Já naquele ano, a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente
chamava a atenção para a criação de novos níveis de cooperação entre os Estados, os
setores-chave da sociedade e os indivíduos, para que se respeitassem os interesses de
4
Conferência das Nações Unidas, Suécia, junho de 1972.
291
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
todos e se protegesse a integridade do sistema universal de meio ambiente e
desenvolvimento, reconhecendo a natureza como espaço integral e interdependente da
terra.
Em seus princípios, a Conferência do Rio de Janeiro de 1992 declarava que os
seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável.
Por isso, têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza.
Declarava, também, que a paz, o desenvolvimento e a proteção ambiental são elementos
interdependentes
e
indivisíveis.
Por
fim,
foi
estabelecido,
como
meta,
o
desenvolvimento sustentável, no sentido de tentar traduzir o conceito de
sustentabilidade. Nesse evento, foi criado um plano de ação conhecido como Agenda
21.
Embora diante de vária crítica, a Conferencia do Rio de Janeiro sobre Meio
Ambiente em 2012, conhecida como Rio+20 no documento final intitulado “O futuro
que queremos” ao tratar das desigualdades sociais
- nas
linhas iniciais do texto
destacam que “Erradicar a pobreza é o grande desafio global colocado para o mundo
atual e um pressuposto indispensável para o desenvolvimento sustentável. Para isso,
teremos de libertar a humanidade da pobreza e da fome com urgência”. Mais adiante, é
dito que o desenvolvimento sustentável se dará através da integração dos aspectos
econômicos, sociais e ambientais, “reconhecendo seus vínculos intrínsecos”.
No documento final, texto de 49 páginas, fica claro que o termo
desenvolvimento não é o mesmo que crescimento econômico, e que a redução das
desigualdades sociais é matriz essencial para o desenvolvimento sustentável. O futuro
que queremos, fruto da Rio+20 defende “a mudança de padrões insustentáveis de
produção e consumo”. E sugere como alternativa a “promoção da gestão sustentável e
integrada dos recursos naturais”, para possibilitar mais oportunidades para todos,
consequentemente, reduzindo as desigualdades.
O documento final da Rio+20 reconhece a necessidade de se “acelerar o
progresso para que se reduza a distância entre os ritmos de desenvolvimento entre os
países desenvolvidos e em desenvolvimento”. Para isso, é necessário “aumentar a
cooperação internacional” que não descarte crescimento econômico, mas, sobretudo,
assegure o desenvolvimento sócio/ambiental.
Não obstante, no direito brasileiro, os campos do direito ambiental, direito
agrário e do direito internacional ainda são incipientes no que diz respeito à inserção na
realidade. Em consequência, verifica-se a escassez de profissionais militantes nessa
292
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
área, sendo nítida a aplicação das normas exclusivamente do direito civil, nos conflitos
agrários, mantendo-se um modelo que se repete durante séculos. Laranjeira (2000)
analisa a especialidade jurídico-agrária, no Brasil, como algo que surgiu a pouco e
pouco, a partir da elaboração de leis específicas sobre os fenômenos agrários, que
sempre fizeram parte do arcabouço do direito civil e do direito administrativo. Segundo
o citado autor, os operadores do direito em geral deverão investir-se de compromisso
humanista, acionando mecanismos de justiça social que se mantêm estagnados na
legislação. Outros mecanismos precisam ser criados com tal finalidade, de modo que se
possa combater, sobretudo, a fome e a pobreza (LARANJEIRA, 2000, p. 251).
A proteção ao meio ambiente tem suas bases legais estabelecidas na Constituição Federal
de 1988, especificamente no capítulo VI do título VIII, que cuida “da ordem social”. O direito
constitucional, assim como o direito ambiental e o direito agrário, têm uma série de pontos
comuns com os direitos humanos, atribuindo-lhes um grande reforço. Por sua vez, os direitos
econômicos, sociais e culturais, bem como os direitos individuais e coletivos, não só se definem
como direitos constitucionais, mas também como direitos humanos, incluindo o direito a um meio
ambiente equilibrado. O desenvolvimento nacional, preconizado na Constituição de 1988
como princípio fundamental, passa pela observância das práticas econômicas utilizadas,
as quais devem respeitar a cultura e as diferenças de cada região brasileira. Portanto, o
crescimento econômico não tem sentido, se vier a implementar práticas que
inviabilizem a reforma agrária ou que sejam predatórias ao meio ambiente.
Sem dúvida, o maior desafio de ordem socioambiental no século XXI é o meio
ambiente. Assim, em se tratando da experiência analisada, o quase desaparecimento da
Mata Atlântica, bem como dos animais silvestres, expõe uma das razões da falta de
conhecimento sobre a natureza por parte da juventude dos assentamentos pesquisados.
Contudo, o interesse pela história da Mata Atlântica se fez presente em quase todas as
oficinas, tanto teóricas como práticas, realizadas no decorrer da execução dos projetos
de extensão citados no texto. O reflorestamento das margens das nascentes dos rios e
dos açudes, pelos integrantes do projeto, atende as normas constitucionais e as
orientações internacionais. A educação é um direito fundamental previsto nos arts. 6º e
205 da Constituição. Além disso, o artigo 225 da Carta Magna prescreve que incumbe
ao poder público promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a
conscientização pública para a preservação do meio ambiente. Trata-se, portanto, de um
processo dinâmico, que envolve aproveitamento atual, continuidade e manutenção
futura.
293
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A preservação do solo com sua vegetação natural, às margens dos mananciais é
indispensável. São os córregos, os riachos, os rios e as represas que fornecem água
potável à população. Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde, cada pessoa
necessita de 190 litros de água por dia, para o consumo, a higiene e o preparo de
alimentos. Em contrapartida, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), cerca
de dois bilhões de pessoas no mundo já sofreram com a crise de abastecimento,
comprometendo suas necessidades básicas.
A Constituição de Federal de 1988 dá o suporte jurídico que permite promover
no Estado brasileiro o direito ao meio ambiente. Há, na Constituição, um amplo rol de
dispositivos relacionados à área ambiental. Se forem interpretados e aplicados
conjuntamente, permitem a efetivação desse direito, nos âmbitos econômico, social e
cultural. O capítulo sobre o meio ambiente está incluído no título VIII, “Da Ordem
Social”. A matéria está relacionada ao disposto no art. 193, ao estabelecer que a ordem
social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça
social.
Complementando essas prescrições, a dignidade da pessoa humana (inciso III) e
a cidadania (inciso II), previstas no art. 1º, fazem parte do título I da Constituição
Federal que trata dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil. Esses
princípios vinculam-se diretamente com o art. 225, que estabelece: “Todos têm direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial
à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Nesse sentido, enfatiza
D´Isep (2009, p.84):
Ao atribuir a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a
Constituição Federal atribuiu ao povo a titularidade do bem ambiental,
ratificando a sua posição democrática, consoante o artigo 1º, caput e parágrafo
único, assim como a visão antropocêntrica que a matéria comporta. Trata-se de
um direito constitucional simultaneamente social e individual.
Dessa forma, ao atribuir ao povo a titularidade do bem ambiental, a Constituição
Federal de 1988 incorpora o direito ao meio ambiente aos direitos coletivos difusos.
Assim acontece, porque se trata de um direito que não pode ser fruído, com
exclusividade, por um único titular. A indeterminação dos indivíduos beneficiários é
uma característica inerente a essa categoria de direitos, na medida em que não há um
titular identificável (MAGALHÃES, 2008, p. 252). A Carta Magna estabelece que a
294
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
ordem social tem como objetivos o bem-estar e a justiça social. A esse respeito, Silva
(2010, p.772) faz a seguinte observação:
Aí estão explicitados os valores da ordem social. Ter como objetivo o bemestar social e a justiça social quer dizer que as relações econômicas e sociais
do país, para gerarem o bem-estar, hão de proporcionar trabalho e condições
de vida, material, espiritual e intelectual, adequada ao trabalhador e sua
família, e que as riquezas produzidas no pais, para gerar justiça social, há de
ser equanimemente distribuída.
Ademais, da leitura do inciso I, § 1º, do art. 225, extrai-se que para assegurar a
efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, incumbe ao poder
público preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo
ecológico das espécies e ecossistemas. Ao analisar esse dispositivo Silva (2010, p. 859)
sublinha:
Ecossistemas é um conceito fundamental em ecologia. As relações ecológicas
se dão em unidades mais ou menos homogêneas quanto às características do
meio e da permuta de energia. Tais unidades compõem-se de dois elementos
inseparáveis: um lugar e um agrupamento de seres vivos, que o ocupam. Ao
primeiro se dá o nome de biótipo, área geográfica com recursos suficientes
para assegurar a conservação da vida; ao segundo se chama biocenose,
constituída de seres vivos (animais, vegetais e micro-organismos) ocupando
aquela mesma área.
Assim, o direito ao meio ambiente depende da prestação positiva do Estado, em
todas as esferas do poder, para sua efetivação, como ocorre com os direitos econômicos,
sociais e culturais. Portanto, há necessidade de efetivação do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado. Ademais, o dever de defendê-lo e preservá-lo também é
imposto à coletividade. Neste ponto, a Constituição abre a possibilidade de concretude
ao princípio de cidadania, apontando a necessidade de um trabalho conjunto do estado
com a sociedade na busca de um meio ambiente saudável e equilibrado. Para Magalhães
(2009), a participação do cidadão na definição, execução e fiscalização de políticas
econômicas e ambientais é essencial para que toda a sociedade possa manifestar seus
interesses perante o poder público. Nessa perspectiva, esclarece:
O estudo da questão ambiental é, acima de tudo, um convite à reflexão sobre o
modelo de desenvolvimento escolhido pelos seres humanos. Tem o ser
humano contemporâneo a sede do desenvolvimento vazio, sem saber para
onde e para quê. Desenvolvimento e progresso na concepção capitalista é
aumento da produção, é aumento dos bens materiais, é aperfeiçoamento
tecnológico. Para quê? (MAGALHÃES, 2009, p. 254).
295
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Reydon (2007) concebe a terra como um meio de produção essencial, na
medida em que é sobre ela que o processo produtivo (agrícola e não-agrícola) se
desenvolve e os assentamentos humanos (urbanos e rurais) se estabelecem. Segundo
acrescenta o mesmo autor, a terra é também a principal fonte de vida, essencialmente,
para a população do espaço rural, cuja estrutura de representação simbólica garante a
continuidade das tradições, costumes e valores. A terra é o ambiente que necessita ser
preservado, para que os seres humanos possam continuar sua própria existência
(REYDON, 2007, p. 228). Para tanto, os recursos naturais devem ser apropriados
racionalmente, de modo que as bases naturais do ecossistema sejam preservadas e os
resultados positivos da produção da terra sejam distribuídos de forma menos desigual e,
obviamente, mais igualitária. Por outro lado, o respeito aos valores, princípios e normas
constitucionais, principalmente no espaço rural, deve ser visto como algo possível.
Considerações finais
O texto trata de uma experiência vivida por um grupo de camponeses dos assentamentos
rurais da reforma agrária que desafia o modelo de produção agrícola em grande escala. Sabe-se
que a agricultura familiar é uma boa aposta para a economia local, mas não em qualquer
condição. Dependendo do tipo de produção, a própria agricultura familiar pode
prejudicar a sustentabilidade econômica e ambiental. O princípio da função social da
propriedade deve ser cumprido em todas as hipóteses de utilização da terra e seus
recursos naturais, e os assentados rurais da reforma agrária, em especial, devem ser
incentivados, educados e capacitados, através, principalmente, dos poderes públicos
(nas três esperas) para a efetivação de normas e princípios constitucionais e
internacionais.
Com a Constituição Federal de 1988 os pressupostos da diversidade, bem como
os da participação, descentralização e empoderamento encontram no espaço rural um
canal comum, e com variadas possibilidades de respostas positivas para as políticas
agrárias e agrícolas voltadas ao fortalecimento e expansão da agroecologia. A
agroecologia, hoje, significa uma promessa de novos rumos para o desenvolvimento
sustentável - garantindo o uso adequado da terra e a sustentabilidade dos recursos
naturais, bem como a erradicação da pobreza no meio rural.
A experiência vivida pelos camponeses da ecovázea recomenda que se faça um
aprofundamento no diálogo local, regional e nacional com os vários setores do poder
296
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
público. O diálogo sobre meio ambiente iniciado na Conferência de Estocolmo, em
1972, só avançará a partir das experiências locais de cada Estado.
Mesmo com muitas críticas à Conferência do Rio de Janeiro, de 2012, por exemplo,
a de que há poucas metas concretas para o alcance da sustentabilidade, dentro do
sistema da Organização das Nações Unidas, o texto final da Rio + 20 apresenta
características positivas. Em uma das decisões arroladas está a de se criar “um fórum
político intergovernamental” para a discussão do desenvolvimento sustentável.
Referencia Bibliográfica
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Direitos Fundamentais e Sustentabilidade: direito à saúde e a questão da qualidade da água
para consumo humano.
Derecho Fundamentales y Sustentabilidad: derecho a la salud y la cuestión de la calidad del agua
para el consumo humano.
Marcos Leite Garcia1
Resumo:
O presente trabalho pretende analisar o direito à saúde como direito fundamental, dentro do
contexto dos direitos sociais e das necessidade humanas básicas. O direito à agua como direito
fundamental no qual serão vistas as questões do direito à água potável e ao saneamento básico e da
qualidade da água para o consumo humano, assim como as conseqüentes doenças relativas ao
consumo de agua contaminada, seja ela poluição química ou biológica. Ademais importante para a
questão da sustentabilidade e do desenvolvimento sustentável é a analise da obra de Nicholas
Georgescu-Roegen, tendo-se em conta elementos transdisciplinares da mesma, estes relativos à
economia, à física e também à necessidade de mudança de paradigma do antropocentrismo para o
geocentrismo.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais; Sustentabilidade; Água.
Resumen:
El presente trabajo pretiende analizar el derecho a la salud como un derecho fundamental en el
contexto de los derechos sociales y de las necesidades básicas. El derecho al agua planteado como
un Derecho social en el cual serán vistas las cuestiones del derecho al agua potable, saneamiento
básico y la cuestión de la calidad del agua para el consumo humano, así como las conseguintes
enfermedades relativas al consumo del agua contaminada, sea por contaminación química o
biológica. Además es importante para la cuestión de la sustentabilidad y del desarrollo sustentable el
análisis de la obra de Nicholas Georgescu-Roegen teniéndose en cuenta elementos transdisciplinares
de la misma, estos relativos a la economía, a la física y también a la necesidad del cambio de
paradigma del antropocentrismo al geocentrismo.
Palabras-clave: Derechos fundamentales; Sustentabilidad; Agua.
SUMÁRIO: Introdução; 1. A saúde como um direito fundamental; 2. Direito à água como direito
fundamental; 3. Reflexões sobre a questão da sustentabilidade a partir das propostas de Nicholas GeorgescuRoegen; Considerações finais. Referências.
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo principal oferecer alguns elementos para que se
possa iniciar uma necessária reflexão sobre a relação que há entre sustentabilidade, direitos
Doutor em Direito; Curso realizado na Universidade Complutense de Madrid – Espanha. Professor do Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica – Cursos de Mestrado e Doutorado – e da graduação em Direito da
Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
1
299
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
fundamentais à saúde e direitos fundamentais à água potável e ao saneamento básico, todas questões
dentro do contexto do direito à agua de qualidade para o consumo humano.
Para sistematizar a reflexão aqui proposta dividiremos em três momentos distintos o presente
estudo: Um primeiro momento sobre o direito à saúde como direito fundamental, dentro do contexto
dos direitos sociais e das necessidade humanas básicas. Um segundo momento sobre o direito à
agua como direito fundamental no qual veremos as questões do direito à água potável e ao
saneamento básico e da qualidade da água para o consumo humano, assim como as conseqüentes
doenças relativas ao consumo de agua contaminada, seja ela poluição química ou biológica. O
terceiro momento será sobre a questão da sustentabilidade e do desenvolvimento sustentável, tendose em conta elementos transdisciplinares como propõe a obra de Nicholas Georgescu-Roegen
relativos à economia, à física e também à necessidade de mudança de paradigma do
antropocentrismo para o geocentrismo.
1. A saúde como um direito fundamental.
Inegável a existência de direitos sociais constitucionalizados como direito humanos
fundamentais como características das democracias ocidentais. A cidadania liberal, a partir da
influência do jusnaturalismo racionalista e da positivação dos direitos de liberdade desde as
revoluções burguesas, irá evoluir para uma cidadania de cunho social a partir da transição do Estado
liberal ao Estado social a partir das reivindicações dos trabalhadores. Como afirma Luigi Ferrajoli
(1999), os direitos fundamentais se originam das reivindicações e lutas dos mais débeis, dos mais
fracos. No antigo regime o direito natural racionalista é cultuado a partir das reivindicações da
classe burguesa, os mais débeis no contexto da relação com os privilegiados estamentos superiores
dos nobres e do alto clero, e após a chegada dos burgueses ao poder, no século XIX as
reivindicações serão dos trabalhados por normas que regulem as relações de trabalho, instituição de
uma proteção e previdência social, educação e saúde publica etc., além de algumas liberdades
fundamentais para sua organização como as liberdades de associação e de reunião (proibidas no
Estado burguês e liberal – por exemplo a Lei Le Chapelier na França vigente de 1791-1885) e da
ampliação da democracia e da cidadania através da universalização do sufrágio.
A construção teórica dos direitos fundamentais parte de pressupostos de uma evolução
histórica que tem como ponto de partida e de chegada alguns critérios que devem ser considerados.
A questão da igualdade é a grande divisora de águas do nascimento da idéia dos direitos
fundamentais. Não por acaso que todas as declarações de direitos fundamentais, as históricas e as
atuais, começam sempre com a declaração de igual de todos perante à lei. A igualdade é um dos
grandes pilares da construção teórica dos direitos, se alguma pretensão moral justificada (ainda um
direito natural) não pode ser garantida para todos, não é um direito fundamental. No antigo regime
300
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
não podemos falar de cidadania e nem de direitos, sim de deveres de obediência do súdito aos
privilégios dos estamentos superiores. A situação dos trabalhadores do século XIX termina sendo
uma situação de extrema desigualdade com relação ao burguês e ao Estado liberal de Direito, com o
advento do sufrágio censitário que tinha como característica a divisão da cidadania em duas: em
primeiro lugar a chamada cidadania ativa – direito de sufrágio relegado somente ao burguês
proprietário – e em segundo lugar a cidadania passiva – que era exercida pelos menos favorecidos
economicamente, os trabalhadores – e a não existência das normas reguladoras das relações de
trabalho e demais direitos sociais como a saúde e educação, assim a impossibilidade de participação
política leva a que os trabalhadores fiquem relegados a uma cidadania de segunda classe, a
cidadania passiva de nada servia.
Diante desse contexto, a discussão interinstitucional sobre o tema da inclusão social –
fundamental para a construção de uma sociedade mais justa – está vinculada aos direitos sociais e a
problemática da igualdade em uma sociedade endemicamente desigual como a brasileira.
O primeiro dos Direitos Humanos, como explicava Hannah Arendt 2, é o direito a ter
direitos, é dizer, ao reconhecimento como pessoa, como membro da comunidade jurídica e política.
Na realidade, se pensamos por um momento, o alcance da tese da universalidade dos Direitos
Fundamentais é precisamente este: o de que todos os seres humanos sejam reconhecidos como
sujeitos – esta é a tese revolucionária, segundo Habermas (2008. p. 87-122 -Especificamente Cap.
2.), do inicial Direito Natural Racionalista -, e por isso se universalize um modelo homogêneo,
senão precisamente desde seu caráter insubstituível, desde sua diferença. Esse é, precisamente o
direito objeto do presente trabalho, o direito substancial à inclusão, no caso à inclusão do direito à
água potável e ao saneamento básico como um direito/reivindicação relacionado diretamente ao
Direito à saúde.
Por isso se vamos tomar os direitos fundamentais em sério, no dizer de Dworkin3,
certamente exige reconhecer que o primeiro que deve ser imposto é a questão da universalidade dos
Direitos Fundamentais, a igualdade perante à lei, que significa a inclusão de todos, também a
inclusão do excluído, do pobre, do miserável, e do outro, cada vez mais visível na sociedade atual
cada vez mais cosmopolita – excluídos de toda monta: por questões econômicas, minorias,
refugiados, imigrantes –. Não deve-se pagar o preço que até agora se havia colocado à
2
A experiência histórica, muito bem narrada em seus livros, certamente levou Hannah Arendt a concluir que a
cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direito dos seres humanos não é um dado. É um
construído da convivência coletiva, que requer o acesso a um espaço público comum. Em resumo, é esse acesso ao
espaço público – o direito de pertencer a uma comunidade política – que permite a construção de um mundo comum
através do processo de asserção dos direitos humanos. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989. p. 235.
3
Como o título de sua obra mais conhecida: DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
301
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
universalidade, isto é, o esvaziamento de toda a identidade diferente em aras do abstrato
reconhecimento de quem somente é pessoa quando se assemelha a este modelo pretendidamente
vago mas elaborado a medida do modelo e dos padrões ocidentais.
Como enfatiza Seyla Benhabib (2005, p. 25) já não se pode seguir sustentando esse
“universalismo de substituição”, que permite ao mesmo tempo apresentar-se como defensor dos
Direitos Fundamentais e negar estes aos que não são considerados pessoas aos padrões ocidentais
“porque não devolvem nossa imagem no espelho, a de varão, maior de idade, ocidental, com uma
formação superior, auto-suficiente ou ao menos trabalhador, etc.”, imagem a que não correspondem
às mulheres, à criança, os que estão fora do âmbito da opulência dos bem nascidos, os que se
identificam com culturas alheias as tradicionais culturas ocidentais, os que não têm trabalho ou
somente conseguem sobreviver na economia informal, os pobres e miseráveis.
A doutrina mais recente sobre o tema vincula os direitos sociais e a questão da igualdade,
todas as questões de direitos fundamentais, às necessidades básicas, que é a questão central da
discussão sobre a inclusão social. A água certamente é uma dessas necessidades básicas. Esta
especial vinculação entre direitos fundamentais e necessidades básicas mostra que é uma falácia
sustentar que somente são autênticos direitos fundamentais os que se encontram com uma suposta
“verdadeira” justificação universal como os direitos civis e políticos. Esta é uma das paradoxas do
liberalismo: a existência de direitos universais sem a a satisfação das necessidades básicas. Quando
deve ser afirmado o contrário: não existem direitos universais sem a satisfação das necessidades
básicas. A seguinte indagação explica a questão: Como se pode falar de direitos civis, sem a
satisfação de direitos sociais ou de um cidadão que não tem suas necessidades básicas atendidas? Se
podemos falar de direitos civis é porque esse cidadão tem antes suas necessidades básica atendidas.
E essas necessidades básicas são os seus direitos sociais atendidos, ou dito de outra forma, significa
que esse cidadão está incluído socialmente. Daí vem que a questão da exclusão social seja
incompatível com o tema dos direitos fundamentais e a mesmo com o tema da democracia. A
democracia deve ser material e não meramente formal, democracia substancial nas palavras de
Ferrajoli4. Friedrich Müller em um fundamental texto sobre a questão na sociedade brasileira se
pergunta até que nível de exclusão social é compatível com a questão da democracia 5. Uma das
características dos direitos fundamentais é que eles são complementários, já que um direito
fundamental complementa o outro. Os direitos fundamentais estão todos vinculados entre si, um
complementa o outro, um grupo de direitos complementa o outro. Como fundamentar as liberdades
de expressão, de opinião ou de informação de um cidadão que não tem atendidas sua necessidade
4
Ver: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2002. e FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2001.
5
Ver: MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático?
Porto Alegre: Unidade Editorial da Secretaria Municipal da Cultura, 2000. 43 p.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
básica de educação e é analfabeto. Sem falar no direito de sufrágio, pergunta-se: que democracia e
que representantes serão eleitos por cidadãos ignorantes, analfabetos ou analfabetos funcionais? Daí
que se afirme que os direitos sociais, econômicos e culturais são fundamentais para a realização
igual e universal dos direitos civis e políticos.
Dito de outra forma, os direitos fundamentais existem para que sejam satisfeitas as
necessidades básicas do cidadão e para que assim seja respeitada a sua dignidade como ser humano.
Com a existência da exclusão social de parte dos cidadãos em uma determinada sociedade,
atentando contra o caráter universal dos direitos fundamentais, não se pode falar de satisfação plena
ou de efetividade das normas de direitos fundamentais em essa determinada sociedade. As
necessidades básicas constituem uma das razões para se reconhecer direitos universais aos seres
humanos. Isto evidentemente não quer dizer que todas as necessidades que possa alegar uma pessoa
nem todos seus interesses proporcionem iguais argumentos para ser reconhecidos como direitos
fundamentais (necessidades básicas). Os direitos fundamentais estão conectados aos valores,
interesses e necessidades que façam minimamente o ser humano se sentir objeto e titular de
dignidade humana.
Os direitos fundamentais são em primeiro lugar pretensões morais justificadas,
fundamentadas sobretudo pela teoria da moral e sustentada em valores como a liberdade, a
igualdade e a dignidade da pessoa humana; em segundo lugar essa pretensão moral justificada para
ser um direito fundamental tem a necessidade de ser positivada como norma constitucional
definidora de direitos e ter a sua respectiva garantia; e por último, e aí entraria a questão da inclusão
social, essa direito fundamental positivado deve estar de acordo com a realidade social, com a
mentalidade social e solidária a favor dos direitos e isso se consegue a partir de vontade política,
políticas públicas voltadas para as questões de direitos fundamentais como a efetivação de uma
educação voltada para os valores da cidadania e do preparo do cidadão para uma mentalidade
favorável aos direitos.
Não cabe dúvida que as necessidades básicas são uma das principais razões para o
reconhecimento dos direitos fundamentais, isto é, são boas razões para proporcionar aos seres
humanos um título que os capacita para exigir seu respeito, proteção e satisfação. Sem dúvida que
nem todas as necessidades constituem em estas boas razões, e por isso é importante o presente
estudo para determinar que necessidades são essas que a sua falta ou violação levam à exclusão
social. Fundamental conceituar e determinar as necessidades básicas que levam à exclusão social.
Da mesma forma que fundamental é determinar quando ocorre a exclusão social de (grupos de seres
humanos) um ser humano ou de um determinado grupo ou seguimento da sociedade.
A justificativa do estudo da inclusão social tem seu fundamento no estudo das necessidades
básicas que tem como parâmetros as seguintes questões que devem ser consideradas: a formação
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
social de nosso entorno; a formação de nosso modelo de modernidade como modernidade tardia; os
direitos fundamentais como direitos de todos; as necessidades como um estado de carência; o
componente sócio-cultural das necessidades; necessidades básicas no âmbito dos direitos;
fundamentos dos direitos sociais; catálogo das necessidades básicas; a inclusão do direito à água e
ao saneamento básico em dito catálogo.
Sem nenhuma dúvida existe a necessidade de elaboração de um catálogo das necessidades
básicas que sirva para a sociedade atual, com tal propósito deve-se considerar as duas questões
elementares dos direitos fundamentais: a igualdade e a dignidade humana. Uma proposta a ser
considerada pode ser feita a partir clássica proposição de Len Doyal e Ian Gough 6, ou pelo menos
que contenha os elementos caracterizadores destas. Na elaboração do catálogo de Doyal e Gough
ditos elementos se resumem a duas questões sobre as necessidades básicas e conseqüentemente
relacionadas à inclusão social são fundamentais: sobrevivência e autonomia. Estes elementos são
fundamentais para saber se estamos ou diante de uma necessidade básica: são os critérios e
indicadores mais importantes que se pode ter em conta para determinar se estamos diante de uma
necessidade básica fundamental ou não.
Os direitos sociais, econômicos e sociais são um subconjunto dentro do conjunto dos
Direitos Fundamentais. Diversos são os argumentos e as teorias que justificam que as pessoas têm
direitos. Estes argumentos nos indicam critérios pelos os que quais existam Direitos Fundamentais e
discussão de qual deve ser seu conteúdo e seus fins é de fundamental importância na doutrina atual.
Para que existam Direitos Fundamentais deve haver critérios e princípios morais válidos –
pretensões morais justificáveis nas palavras de Peces-Barba (1995, p. 111-112) – ou princípios
morais válidos – princípios constitucionais vetores de todo o sistema na teoria contemporânea do
paradigma do neoconstitucionalismo/pós-positivismo – que justifiquem que todos os seres
humanos, enquanto tais, sejam titulares destes direitos.
Nos últimos vinte anos, em quase todos os países do Ocidente, os direitos sociais – desde o
direito à saúde, passando pelo direito à educação, até os direitos à subsistência e à assistência social
– hão sido objeto de ataques e restrições crescentes por parte de políticos considerados “liberais”. A
constitucionalização talvez da conquista mais importante da civilização jurídica e política do século
passado, os direitos sociais foram positivados como se sabe no início do século XX, foram assim
colocadas em discussão e correm o risco de ver-se comprometidas.
Esta debilidade política é também fruto de uma debilidade teórica. Se bem que os direitos
sociais são solenemente proclamados em todas as cartas constitucionais e internacionais do século
XX, uma parte relevante da cultura política, a liberal e conservadora – plasmada sobretudo e
principalmente nas idéias de Friedreich von Hayek 7 –, não considera que se trate propriamente de
6
7
Ver: DOYAL, Len; GOUGH, Ian. Teoría de las necesidades humanas. Barcelona: Icaria, 1994.
Veja-se: HAYEK, Friedrich von. O Caminho da Servidão. 6.ed. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
“direitos” (direitos fundamentais que devem estar constitucionalizados). Os argumentos para
sustentar este singular desconhecimento do direito positivo vigente, não por casualidade articulados
por ditos economistas mais que por juristas, são os mesmos: que a estes direitos lhes correspondem,
antes que proibições de lesão, obrigações de prestação positiva, cuja satisfação não consiste em um
fazer, enquanto tal não formalizável nem universalizável, e cuja violação, pelo contrário, não
consiste em atos ou comportamentos sancionáveis ou anuláveis senão que simples omissões, que
não resultariam coercitíveis nem justiçáveis.
Os argentinos Víctor Abramovich e Christian Courtis 8, assim como o hispano-argentino
Gerardo Pisarello9, os espanhóis Maria José Añón Roig10, José García Añon e Antonio de Cabo 11, os
americanos Len Doyal e Ian Gough 12, bem como também o italiano Luigi Ferrajoli 13, ou seja, as
doutrinas mais atuais sobre o tema, submetem os aludidos argumentos contrários aos direitos sociais
a uma crítica rigorosa, mostrando sua falta de fundamentação empírica e, simultaneamente, o
prejuízo ideológico que é característico a idéia paleo-liberal do Estado mínimo que se apresenta
somente para garantir a ordem pública e a defesa exterior. Estes autores mostram com grande
capacidade de exemplos, em suas respectivas obras, como a diferença entre o caráter de
expectativas negativas dos direitos de liberdade clássicos e aquele de expectativas positivas dos
direitos sociais é uma questão que vem sendo manipulada constantemente pelos autores neoliberais.
Certamente, ainda que os direitos sociais à saúde, à proteção do meio ambiente ou a educação
impõe ao Estado proibições de lesão de bens que constituem seu objeto. E também os clássicos
direitos civis e políticos – desde a liberdade de expressão ao direito ao voto – requerem, por parte,
da esfera pública, não somente proibições de interferência o de impedimentos, senão também
obrigações de prover as numerosas e complexas condições institucionais de seu exercício e de sua
tutela.
Hayek foi prêmio Nobel de Economia de 1974 e o citado livro destaca-se como a principal obra de referência na defesa
do liberalismo econômico É importante dizer que, no prefácio da sua edição original, o autor de maneira sincera admite
que o conteúdo do livro é essencialmente político, e afirma desejar não disfarçá-lo sob o rótulo de filosofia social. O
livro é a obra maior da chamada teoria do neoliberalismo e nega os direitos sociais como direitos fundamentais, tal
reducionismo negador dos direitos fundamentas é destacado pelos professores Gregorio Peces-Barba e Antonio Enrique
Pérez Luño, em suas respectivas obras: PECES-BARBA, Gregorio. Curso de Derechos Fundamentales: teoría
general. Madrid: Universidad Carlos III de Madrid, 1995. p. 61-66; PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos
Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 2.ed. Madrid: Tecnos, 1986. p. 147-156.
8
Ver: ABRAMOVICH, Víctor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. Madrid: Trotta,
2002.
9
Ver: PISARELLO, Gerardo. Los derechos sociales y sus garantías: elementos para uma reconstrucción. Madrid:
Trotta, 2006.
10
Ver: AÑÓN ROIG, Maria José. Necesidades y Derechos. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. 1994.
11
Ver: CABO, Antonio de; PISARELLO, Gerardo. La renta básica como nuevo derecho ciudadano. Madrid: Trotta,
2006.
12
Ver: DOYAL, Len; GOUGH, Ian. Teoría de las necesidades humanas. Barcelona: Icaria, 1994.
13
Ver: FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías: la ley del más débil. Madrid: Trotta, 1999. Título original: Il diritto
come sistema de garanzie.
305
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Desta maneira, sustentam os citados autores, não existe nenhuma diferença de estrutura entre
os distintos tipos (grupos, gerações ou dimensões de acordo com o autor) de direitos fundamentais.
No dizer de Gregorio Peces-Barba e Antonio Pérez Luño 14 não existe hierarquia entre as distintas
gerações de direitos fundamentais, uma vez que o defendido por estes autores conceito integral dos
direitos são originados e reivindicados por distintas ideologias como a liberal, a democrática e a
socialista. O conceito integral dos direitos fundamentais deve assumir suas ideologias e estas são
muito importantes na hora da defesa dos distintos direitos sociais.
Dentro da teoria neoliberal, que nega o fundamento dos direitos sociais como direitos
fundamentais constitucionalizáveis e exigíveis, seus distintos autores querem parcialmente
fundamentar os direitos de liberdade como únicos direitos fundamentais. Se consideramos que não
há nenhuma diferença nem hierarquia entre as gerações de direitos como conseqüência cai por terra
o principal argumento teórico dos neoliberais: a tese da inexigibilidade judicial intrínseca dos
direitos sociais. Os distintos autores citados afirmam ao contrário, que os direitos sociais são
justiciáveis, ou seja, sancionáveis ou ao menos reparáveis, diante dos comportamentos lesivos a tais
direitos: por exemplo a contaminação atmosférica, que viola o direito à saúde; a demissão
injustificada, que viola o direito ao trabalho; ou a discriminação por razões de gênero ou
nacionalidade que viola o direito à educação. Outra discussão que deve ser levada em conta: se
também devem ser objeto de apreciação do judiciário as violações dos direitos sociais realizadas
mediante omissões do poder público. No caso brasileiro as chamadas normas constitucionais
programáticas, que no caso levam a falta de políticas públicas relacionadas com a exclusão social.
A questão da inclusão social, propriamente dita, deve ter um tratamento a partir da
atualíssima discussão da doutrina sobre as necessidades básicas mínimas que a sociedade e o Estado
devem garantir para que a dignidade da pessoa humana não seja violada.
Outra questão que deve ser amplamente discutida no seio de nossa sociedade e de nossa
academia é a questão sobre as garantias judiciais operacionalizadas diante de uma omissão relativa à
direitos sociais (que a forma mais freqüente de violação de um direito social e sobretudo relativas ao
tema da inclusão social), que a doutrina tradicional trata como norma constitucional de
aplicabilidade limitada – normas constitucionais programáticas que dependem de uma
normatividade futura na legislação infraconstitucional – sejam necessariamente menos eficazes que
aquelas previstas como normas constitucionais de aplicabilidade plena ou contida – segundo a
doutrina tradicional. Segundo Ferrajoli (1999, p. 67) dita tese deveria se inverter ou ao menos devese refletir com o argumento platônico de que o está feito está e não se pode desfazer: a violação de
14
Ditas teses estão expostas em: PECES-BARBA, Gregorio. Curso de Derechos Fundamentales: teoría general.
Madrid: Universidad Carlos III de Madrid, 1995; e PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Dimensiones de la igualdad. 2. ed.
Madrid: Dykinson, 2007; PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución.
2.ed. Madrid: Tecnos, 1986.
306
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
um direito de liberdade ou, pior ainda, da integridade física ou do direito à vida pode ser
desrespeitada, mas certamente não pode ser anulada. Pelo contrário, a violação por não observação
de um direito social pode ser reparada com sua execução judicial, ainda que seja tarde. Baixo esta
aspecto, nas palavras do jusfilósofo italiano, as garantias jurisdicionais de um direito social podem
ser ainda mais efetivas que as de um direito de liberdade.
Em suma, uma vez consideradas as características da construção histórica e teórica dos
direitos fundamentais vê-se que para a sua real efetividade devem ser consideradas diversas
questões, principalmente a da inclusão social no que se refere ao direito à saúde.
Direitos fundamentais econômicos, sociais e culturais, como direito à educação, à saúde, à
profissionalização, etc., são complementários aos demais grupos de direitos como os de liberdade.
Quem não tem minimamente garantidos seus direitos sociais não tem condições de desfrutar seus
direitos de liberdade, pois somente a partir da efetivação substancial daqueles é que se pode
desfrutar com igualdade das liberdades.
2. Direito à água como direito fundamental
Em todo os continentes do planeta existem conflitos sociais envolvendo a questão da água.
Para as próximas décadas a tendência é que estes conflitos aumentem 15. Os interesses em jogo são
muitos. Uma questão central a se discutir é no sentido de que a água é ou não um bem humano
fundamental para a existência e sobrevivência da humanidade. Temos duas opções: A água é um
bem, um patrimônio da humanidade 16, assim como o ar; ou será a água um bem patrimonial a ser
comercializado – privatizado – como fazem as grandes empresas do setor. Partimos da premissa de
que a água é um bem comum de toda humanidade – assim como o ar que respiramos – e por isso
um bem básico que não pode ser comercializado.
Uma vez que a água é um bem essencial para a natureza e para a humanidade deveria-se ter
em conta que esse patrimônio da humanidade não pode estar subordinado aos interesses econômicos
como fonte de riqueza dos particulares. Deve ser um considerado um bem público. Nesse sentido as
Constituições do Equador (art. 12) e da Bolívia (arts. 16.I e 20.I e III) determinam:
Constituição do Equador de 2008:
Art. 12.-El derecho humano al agua es fundamental e irrenunciable. El agua
constituye patrimonio nacional estratégico de uso público, inalienable,
imprescriptible, inembargable y esencial para la vida.
Como exemplo de estes conflitos ver: HALL, David (Org.). Por um modelo público de água: triunfos, lutas e
sonhos. São Paulo: Editora Casa Amarela. 2007.
16
Nesse sentido ver a obra de Luigi Ferrajoli com a interessante proposta de considerar a água como um bem
fundamental. FERRAJOLI, Luigi. Por uma carta dos bens fundamentais. In: _______. Por uma teoria dos Direitos e
dos Bens Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011 (Especificamente Parte II. Tradução de Daniela
Cademartori e Sérgio Cademartori). p. 49-88.
15
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Constituição da Bolívia de 2009:
Art. 16. I. Toda persona tiene derecho al agua y a la alimentación.
Art. 20. I. Toda persona tiene derecho al acceso universal y equitativo a los
servicios básicos de agua potable, alcantarillado, electricidad, gas domiciliario,
postal y telecomunicaciones.
III. El acceso al agua y alcantarillado constituyen derechos humanos, no son objeto
de concesión ni privatización y están sujetos a régimen de licencias y registros,
conforme a ley.
Como é consabido os anos da década de 1990 foram os anos da privatizações da água e por
isso é considerada a década perdida com relação ao tema das águas. O século XXI deverá ser a nova
era do direito humano da água. Antes porém o Relatório Brundtland "Nosso Futuro Comum"
(1987), a Conferência Internacional sobre a água e o meio ambiente (Dublin, 1992), o Relatório
Cuidando da Terra de 1991, e a Agenda 21 da Conferência das Nações Unidas sobre o
Desenvolvimento e o Meio Ambiente (Rio-1992), propuseram alterações no modo de percebermos a
água e os ecossistemas.
A proteção e a melhora do meio ambiente, em especial da água doce, dependem dos padrões
de consumo e de produção das populações. Reduzir o esgotamento dos recursos finitos, reduzir a
poluição ambiental significa modificar os padrões insustentáveis de uso e otimizar os desperdícios.
A Terra é uma só, não temos ainda essa consciência. Todos dependemos de uma biosfera para
sustentar nossas vidas. No entanto, cada comunidade, cada país luta pela sua sobrevivência e
prosperidade na busca do chamado desenvolvimento ilimitado e insustentável, dando pouca atenção
ao impacto que tem sobre os outros como alerta o Relatório Brundtland de1987 17.
A Organização das Nações Unidas (ONU), desde 1992, vem enfocando a problemática da
água relacionada à qualidade de vida na Terra. O Dia Mundial da Água, o dia 22 de março de cada
ano simboliza o direito humano à água, elemento indispensável para uma vida saudável e digna. O
dia 22 de março, de cada ano, é destinado a discussão sobre os diversos temas relacionadas a este
importante bem natural. No dia 22 de março de 1992, a ONU também divulgou um importante
documento: a Declaração Universal dos Direitos da Água. Este texto apresenta uma série de
medidas, sugestões e informações que servem para despertar a consciência ecológica da população e
dos governantes para a questão da água. Dita Declaração Universal dos Direitos da Água possui dez
artigos. Eis o texto que vale uma reflexão:
1.- A água faz parte do patrimônio do planeta. Cada continente, cada povo, cada
nação, cada região, cada cidade, cada cidadão, é plenamente responsável aos olhos
de todos.
2.- A água é a seiva de nosso planeta. Ela é condição essencial de vida de todo
Veja-se: Nosso futuro comum/Comissão Mundial sobre o meio ambiente (Relatório Brundland). 2. ed. Rio de Janeiro:
Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1991. p. 27.
17
308
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
vegetal, animal ou ser humano. Sem ela não poderíamos conceber como são a
atmosfera, o clima, a vegetação, a cultura ou a agricultura.
3.- Os recursos naturais de transformação da água em água potável são lentos,
frágeis e muito limitados. Assim sendo, a água deve ser manipulada com
racionalidade, precaução e parcimônia.
4.- O equilíbrio e o futuro de nosso planeta dependem da preservação da água e de
seus ciclos. Estes devem permanecer intactos e funcionando normalmente para
garantir a continuidade da vida sobre a Terra. Este equilíbrio depende em particular,
da preservação dos mares e oceanos, por onde os ciclos começam.
5.- A água não é somente herança de nossos predecessores; ela é, sobretudo, um
empréstimo aos nossos sucessores. Sua proteção constitui uma necessidade vital,
assim como a obrigação moral do homem para com as gerações presentes e futuras.
6.- A água não é uma doação gratuita da natureza; ela tem um valor econômico:
precisa-se saber que ela é, algumas vezes, rara e dispendiosa e que pode muito bem
escassear em qualquer região do mundo.
7.- A água não deve ser desperdiçada, nem poluída, nem envenenada. De maneira
geral, sua utilização deve ser feita com consciência e discernimento para que não se
chegue a uma situação de esgotamento ou de deterioração da qualidade das reservas
atualmente disponíveis.
8.- A utilização da água implica em respeito à lei. Sua proteção constitui uma
obrigação jurídica para todo homem ou grupo social que a utiliza. Esta questão não
deve ser ignorada nem pelo homem nem pelo Estado.
9.- A gestão da água impõe um equilíbrio entre os imperativos de sua proteção e as
necessidades de ordem econômica, sanitária e social.
10.- O planejamento da gestão da água deve levar em conta a solidariedade e o
consenso em razão de sua distribuição desigual sobre a Terra.
No ano de 2003, o dia 22 de março teve como tema "Água para o futuro" objetivando uma
maior conscientização quanto à importância da água doce para a sustentabilidade das necessidades
humanas, preservação dos ecossistemas e desenvolvimento socioeconômico. Além disso, no mesmo
ano também por iniciativa da ONU, a década de 2005-2015 foi adotada como a Década Mundial da
Água. No Brasil, para esse mesmo período, foi decretada a Década Brasileira da Água. A água
potável e o saneamento básico são indispensáveis para manter a qualidade da vida humana, e as
políticas públicas e programas ambientais são ações de grande alcance que propiciam a conquista
dessas condições.
Em 2005 foi discutido o Plano Nacional de Águas no qual foi concluído que apesar do
território da República Federativa do Brasil possuir 13,7% de água potável do planeta, boa parte de
este recurso natural está degradado ou desprotegido. Certamente que agora é o momento de tornar
seu uso racional propondo metas para elaboração do plano visando o uso sustentável da água, a
exemplo da captação e aproveitamento de água da chuva. A água é um recurso natural essencial
para a vida humana. É uma necessidade humana básica e vital.
Ainda que a água seja uma substância abundante na terra, apenas 2,7% da água disponível
no planeta é água doce aproveitável para o consumo humano. Do total da água doce disponível no
planeta quase 77% se encontram em forma de gelo, mais ou menos 22% em águas subterrâneas e
menos de 1% em lagos, pântanos e rios. São fatores alarmantes e preocupantes: o aumento da
população mundial, poluição pela atividades humanas, consumo excessivo pelo desenvolvimento
309
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
econômico ilimitado que aumentou a demanda da agricultura, da pecuária e da industrialização, alto
grau de desperdício etc. Todos esses citados fatores fazem da água doce cada vez mais um bem
finito e escasso. América do Sul dispõe de 23% das reservas de água doce do planeta. Dentro desses
23%, a República Federativa do Brasil possui quase 14% (13,7% como foi visto) das reservas
mundiais de água doce. Brasil e América do Sul são juntos a maior reserva de água doce do
mundo18.
Preservar e conservar a qualidade e a quantidade da água significa proteger o direito à saúde,
direito à vida, proteger a existência digna das pessoas. Não resta dúvida que na questão da água
estão envolvidas outras questões de direitos humanos como o direito à educação, direito à liberdade
de acesso à informação, direito à saúde, todos direitos humanos fundamentais que vêm a comprovar
a interdependência ou complementariedade que é uma das características dos mesmo. Ainda na
questão da água deve-se inserir a discussão das necessidades humanas básicas como a alimentação,
saneamento básico, direito à água potável. Por essa característica dos direito humanos
fundamentais, a interdependência entre os mesmos, deve-se fazer os enlaces necessários entre o
direito à água – direito fundamental difuso de terceira geração, parte integrante do direito ambiental
como direito que todo ser humano tem a viver em meio ambiente saudável – com direitos de
primeira e segunda gerações. Esta é a visão integral dos direitos humanos: um direito humano
complementa o outro. Por exemplo, sem direito à educação não podemos falar de liberdades como a
de acesso à informação ou a de manifestação de pensamento, ou mesmo de direitos políticos. Sem
uma boa proteção do direito à saúde não podemos falar de direito à vida e a uma existência humana
digna.
O direito que todo ser humano tem de viver em meio ambiente saudável, assim como o
direito humano à água, é essencial e complementar a muitos outros direitos humanos como o direito
à saúde, a existência digna, direito à vida. Da mesma forma que o direito humano à água potável
para consumo humano está vinculado com os direitos da mulher e da criança, pois são as crianças as
principais afetadas pelas enfermidades decorrentes de águas contaminadas, assim como as mulheres
que fazem os trabalhos domésticos nas populações mais pobres buscam água que se encontram
longe e muitas vezes em lugares insalubres.
A partir da característica da complementariedade dos direitos humanos fundamentais, de
uma visão integral dos mesmos e da questão da água, no seio da comunidade científica da América
do Sul e da República Federativa do Brasil deveríamos buscar construir uma teoria dos direitos
humanos para o continente, seriam esses direitos humanos substancias como leciona Luigi Ferrajoli
dentro de uma visão integral como preconizava Gregorio Peces-Barba 19. A partir da água, bem
Números apresentados por: BARROS, Wellington Pacheco. A água na visão do Direito. Porto Alegre: Tribunal de
Justiça do Rio Grande Sul, 2005. p. 10.
19
Sobre o tema ver um extrato em: GARCIA, Marcos Leite. Efetividade dos direitos fundamentais: notas a partir da
18
310
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
essencial a todos nós, poderíamos construir uma teoria dos direitos do e para o continente sulamericano. A questão da água poderia servir de elo que uniria a todos os direitos humanos
fundamentais. Não resta dúvida que a visão integral quanto à interdependência entre os direitos
humanos fundamentais faz-se cada vez mais necessária, uma vez que por exemplo nas diferentes
regiões do planeta encontram-se ecossistemas com características próprias que dependem, para
viver, da biodiversidade, do relevo, do clima, da vegetação, das florestas, dos rios, lagos e aqüíferos,
mares e geleiras. Como é consabido a interdependência entre os ecossistemas têm sofrido muitas
interferências humanas as quais estão provocando desequilíbrios nos ciclos vitais. Precisamos
reforçar temas de estudo interdisciplinar como a interligação entre a sociedade e natureza, a
capacidade de suportar do planeta o falacioso desenvolvimento econômico ilimitado, agora dito
sustentável, associado à não proteção dos ecossistemas naturais, de forma especial, dos recursos
hídricos para assim conhecermos o problema e ampliarmos nossa visão de vida coletiva no Planeta.
Na natureza, a água doce, antes de ser considerada como um bem econômico e finito, agora é uma
questão urgente pois, como já foi dito, representa um elemento essencial à vida humana e fonte de
vida na Terra.
Não resta dúvida que o direito à agua potável e o direito ao saneamento básico fazem parte
das necessidades básicas e do arcabouço dos direitos fundamentais, como derivados de outros
direitos sociais fundamentais como o direito à saúde. Sem boas condições de potabilidade da agua e
de saneabilidade dos estruturas de esgoto e não contaminação do meio ambiente certamente que não
há as condições mínimas para se falar de direito à saúde.
O desenvolvimento econômico ilimitado repercute direitamente em um recurso tão frágil
como que é a agua. Necessário remitirmos a teoria das necessidades básicas, aquelas necessidades
mais urgentes do ser humano como direito à alimentação, à saúde, e o direito fundamental à água
potável e ao saneamento básico. Desde Karl Marx, e sua brilhante interpretação em Agnes Heller 20,
passando por autores mais atuais como Doyal e Gough, além de Francisco José Contreras Peláez,
Manfred Max-Neef, entre outros, como disserta Maria José Añon Roig e Octavio Groppa, todos
incluem a água como um direito fundamental, uma necessidade básica 21.
Em contrapartida a contaminação da água doce em nosso planeta e especialmente em nosso
país é um grave problema como todos sabemos. Essa contaminação pode ser química ou biológica.
A contaminação química causada pela indústria, pelo uso de produtos químicos na industria, na
visão integral de Gregorio Peces-Barba. In: MARCELLINO JR. Julio Cesar; VALLE, Juliano Keller do. Reflexões da
pós-modernidade: Estado, Direito e Constituição. Florianópolis: Conceito, 2008. p. 189-209.
20
Veja-se as teses aludidas em: HELLER, Agnes. Teoría de las necesidades en Marx. Barcelona: Ediciones Península,
1978.
21
Ver os estudos sobre o assunto de: DOYAL, Len; GOUGH, Ian. Teoría de las necesidades humanas, 1994. p. 275;
AÑÓN ROIG, Maria José. Necesidades y Derechos. 1994; e GROPPA, Octavio. Las necesidades humanas y su
determinación: Los aportes de Doyal y Gough, Nussbaum y Max-Neef al estudio de la pobreza. Buenos Aires:
Universidad Católica Argentina, 2004.
311
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
agricultura que faz um uso indiscriminado das águas, dos recursos hídricos contaminando rios,
lagos, lençóis freáticos, aqüíferos etc. A falta de cuidado em nome da ganância causada pela
ideologia do desenvolvimento ilimitado a qualquer custo, do tudo vale em nome de interesses
econômicos no qual uma minoria ganha muito dinheiro levando a degradação de nossas reservas de
água.
Da mesma forma temos a contaminação biológica causada sobretudo pela falta de
saneamento básico, o uso e consumo humano de água não potável, o uso indiscriminado dos
recursos hídricos pela pecuária que gasta em excesso e contamina as mesmas, a falta de esgotos
sanitários, a contaminação biológica de rios, lagos, lençóis freáticos etc, o crescimento populacional
descontrolado dos centros urbanos, a falta de educação e políticas públicas para alertar sobre a
magnitude e importância dos problemas causados à saúde das populações, a favelização das
cidades, a falta de condições mínimas de higiene, pouco caso com políticas públicas a favor da
educação, saúde, saneamento básico, falta de vontade política, tudo isso leva a contaminação das
águas.
As doenças relacionadas com a contaminação químicas e biológicas das águas são
muitíssimas. Relacionamos aqui algumas delas, sem a pretensão de ser um estudo aprofundado
sobre as mesmas. Além dos cânceres causados pela contaminação química das águas, sempre de
difícil comprovação a exatidão de sua causa, podemos falar de doenças causadas pela contaminação
biológica, todas interligadas à violação de direitos humanos fundamentais como direito à água
potável e saneamento básico: amebíase, cólera, dengue, doenças diarréicas agudas,
esquistossomose, filariose, febre tifóide, giardíase, hepatite A, leptospirose etc.
Entre as doenças relacionadas com as péssimas condições que se encontram as águas,
destacamos as doenças diarréicas agudas. As grande acumulações humanas, sobretudo nos grandes
centros urbanos que tiveram um crescimento desordenado, que como causa umas péssimas
condições de higiene, falta de sanamento básico e de água potável leva ao desastre das diarreia
bacterianas em grande escala ainda hoje. Desde o florescer da agricultura há mais ou menos 10 mil
anos, o homem deixou de ser nômade e passou a ser sedentário assentando-se nas margens férteis
das fontes de água inicialmente pura, rios e lagos, e começou a sofrer grandes epidemias causadas
por suas próprias bactérias intestinais. Bactérias intestinais que antes eram mais deixadas para trás,
como conseqüência do hábito de vida nômade, mas que agora com a agricultura e a forma
sedentária de vida ficavam essas nas águas consumida pelos habitantes da comunidade e levava ao
problema seríssimo das infecções diarréicas muitas vezes com altíssimo grau de mortalidade,
sobretudo entre as crianças. Assim os riachos, rios, lagos desses assentamentos que se tornariam as
primeiras grandes civilizações humanas recebiam as fezes humanas e passavam a transmitir as
epidemias de diarréias. Não deixa de ser talvez as primeiras das grandes alterações do meio
312
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
ambiente provocada pelas civilizações e com graves conseqüências sofrida pelo humanos.
Até o século XX foram quase 10 mil anos de uma sucessiva história trágica de doenças e
epidemias causadas pelas águas nas populações assentadas perto de rios e lagos, conseqüências do
estilo de vida sedentário. Com a Revolução Industrial e conseqüente crescimento da aglomeração
em grandes centros urbanos o problema se agravou ainda mais (UJVARI, 2004. p. 67-68). Na
literatura brasileira há uma passagem do livro O Abolicionista de Joaquim Nabuco na qual narra a
época em viveu na Inglaterra vitoriana e lá em Londres conheceu o que havia de mais moderno
então, estamos nos anos da década de 1880, bairros operários. Joaquim Nabuco ficou horrorizado
com o que viu. Cloacas a céu aberto, pessoas doentes jogada nas ruas, péssimas situações de saúde e
mortos de todas as idades causados por epidemias e pelos problemas sociais e as péssimas
condições de vida de todos os trabalhadores, motivadas pelas exploração da falta de direitos sociais
e direitos trabalhistas. Ainda diz Nabuco no Jornal do Comércio de 3 de setembro de 1882: “indo de
Westminster para Victoria Station perdi-me num labirinto de ruas em que pulavam uma população
cuja miséria não posso descrever” 22. A luta dos povos desfavorecidos depois da abolição da
escravatura continuaria, concluiria o ilustre escritor pernambucano, mais de 130 anos após a sua
reflexão a luta ainda continua.
O século XX será marcado pela evolução da medicina e o descobrimento das origens das
doenças e assim conseqüente evolução de seu tratamento e prevenção. Dentre essas a evolução
tecnológica que marcará o combate à água não potável. Tudo levaria a crer que no século seguinte
depois dos conhecimentos adquiridos sobre o tema as epidemias e infecções diarréicas estariam
dizimadas. Infelizmente essa ainda não é uma realidade (UJVARI, 2004. p. 68). Nas populações
pobres ainda encontramos números alarmantes das doenças aqui relacionadas, nas enchentes e
inundações as doenças relacionadas com a água contaminada aumentam.
Não resta dúvida que o direito à saúde é um direito fundamental de todos e nele deve ser
observado a qualidade da água para consumo humano e a seríssima questão da falta de saneamento
básico. Obras subterrâneas que não dão a aparência e fama de “fazedor de grande obras” como os
políticos tradicionais e conservadores querem possuir, essa é a megalomania dos donos do poder
que mata muita gente. Água é um direito fundamental de todos. O uso indiscriminado da água pela
industria, pecuária e agricultura, a não regulamentação e controle desses usos, a falta de saneamento
básico leva a contaminação química e biológica que a sua vez leva a uma enorme quantidade de
doenças, sobretudo atinge aos mais débeis: crianças, idosos e os mais pobres. Evidentemente que
todas esses usos abusivos são demandas do modelo de desenvolvimento econômico ilimitado, o
sistema vigente, e assim repercutem em um recurso tão frágil como as aguas doces do planeta.
Ver: NABUCO, Joaquim. Apud: ALONSO, Angela. Joaquim Nabuco: os salões e as ruas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007. p. 155.
22
313
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
3. Reflexões sobre a questão da sustentabilidade a partir das propostas de Nicholas
Georgescu-Roegen
O tema da sustentabilidade suscita muitas dúvidas e muitas perguntas. Trata-se de um tema
banalizado, típico de nossa era, mas que deve ser analisado e estudado. Segundo José Eli da Veiga
(2010. p. 15) como subproduto da banalização a que foi submetido o termo sustentabilidade, temos
o chamado “desenvolvimento sustentável”: agora o substantivo desenvolvimento que passou a ser
seguido pelo adjetivo sustentável como uma tentativa de compatibilizar os principais interesses da
espécie humana, os interesses econômicos de sempre, com a necessidade de conservar os
ecossistemas que viabilizam nosa existência.
O tema do “desenvolvimento sustentável” em muito se assemelha aos temas anteriores dos
“direitos humanos” e “justiça social”, noções que têm em comum a chamada por José Eli da Veiga
(2010, p. 16) como a “maldição do Elefante”: tão difícil de definir quanto de ser visualmente
reconhecido, pois esforços normativos de “conceituá-los” não conseguem superar certas dúvidas.
Podemos facilmente reconhecer na teoria as questões de Direitos Humanos e de
Sustentabilidade, mas a prática requer outra coisa: sobretudo uma mudança de paradigma, uma
mudança de mentalidade que a sociedade humana nem sempre está preparada. Há sim um enorme
abismo entre teoria e práxis. Há uma grande dúvida sobre a qual faz-se necessário refletir uma vez
que estamos diante de um tema tão complexo e interdisciplinar como a questão do
“Desenvolvimento Sustentável”, na era dos especialistas, como proceder?
Esse substantivo “desenvolvimento”, agora seguido do adjetivo “sustentável,” trata-se de
qual desenvolvimento? Do desenvolvimento dos economistas clássicos, dos convencionais, que
pregam um desenvolvimento ilimitado nos moldes do capitalismo ocidental? E agora esse
desenvolvimento ilimitado dos economistas clássicos está chegando aos países emergentes como os
chamados BRIC23, como será sustentável esse modelo desenvolvimentista convencional ocidental?
O link entre desenvolvimento sustentável e direitos humanos e a questão do direito à água
potável e do saneamento básico é evidente. Estamos diante de uma questão urgente? Outra
pergunta: nosso oikos, nossa casa, está em perigo ou será que é a sobrevivência da espécie humana?
De esta forma como afirma José Eli da Veiga (2010, p. 17) somos seres tão arrogantes que falamos
em “Salvar o Planeta”. Esse é o refrão, o slogan, a frase de efeito que mais sucesso fez entre a
23
Em economia, BRIC é uma sigla que se refere a Brasil, Rússia, Índia e China. Países que se destacam no cenário
mundial como países emergentes, nações em desenvolvimento. O acrônimo foi cunhado e proeminentemente usado pelo
economista Jim O'Neill, chefe de pesquisa em economia global do grupo financeiro Goldman Sachs em um estudo de
2001 intitulado "Building Better Global Economic BRICs". A tese proposta por Jim O'Neill destaca que estes países
abrangem mais de 25% de cobertura de terra do planeta e 40% da população do mundo, além de possuírem um PIB
conjunto de 18.486 trilhões de dólares. Em quase todos os aspectos, essa seria a maior entidade no cenário internacional.
Estes quatro países estão entre os mercados emergentes de maior e mais rápido crescimento econômico. O estudo do
Goldman Sachs afirma que o potencial econômico do Brasil, Rússia, Índia e China é tamanho que esses países poderiam
se tornar as quatro economias dominantes do mundo até o ano 2050.
314
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
sociedade humana, isso por pura arrogância. De maneira alguma o Planeta poderá ser salvo, ele um
dia será devorado pelo Sol, queremos mesmo é salvar nossa espécie ou no mínimo fazer possível
que as futuras gerações tenham uma vida digna. Estamos certamente diante de uma questão urgente!
Dentre as teorias que procuram compreender a sustentabilidade há duas correntes claramente
definidas e extremas, por isso absolutamente antagônicas: em primeiro lugar os teóricos que não
vêem dilema entre conservação ambiental e crescimento econômico; e em segundo lugar os teóricos
que de forma fatalista acreditam que conservação ambiental e crescimento econômico são duas
questões inconciliáveis (Veiga, 2010, p. 109-111). Existe ainda um terceira postura que procura abrir
um “caminho do meio”, mas que por enquanto somente faz parte da retórica político-ideológica
(Veiga, 2010, p. 111). A segunda postura considera que a questão do crescimento econômico
ilimitado versus conservação ambiental é de fundamental importância para o futuro da humanidade
e do planeta. Segundo estes o crescimento econômico desenfreado é contrário não somente à
conservação da natureza, mas sim contrário ao futuro da espécie humana. A primeira postura
considera os da segunda postura como caprichosos ou adeptos do modismo do ecologismo e
também adjetivam os mesmos como “ecochatos” etc. Os da suposta terceira postura acabam sempre
aceitando os argumentos da primeira postura. Tudo em nome do desenvolvimento econômico, do
dinheiro, do capital. Além do evidente interesse econômico que move a humanidade, como Karl
Marx já explicava no século XIX a história da humanidade a partir da economia, também é uma
questão de paradigma, de mudança de mentalidade, uma vez que os da suposta terceira postura, e
evidentemente os da primeira, ainda estão no paradigma moderno do antropocentrismo. Os da
segunda postura já pensam no paradigma do biocentrismo ou geocentrismo. O homem inserido no
biocentrismo, como parte do planeta conjuntamente com o seu entorno natural, o meio ambiente. O
homem que ama seu ecossistema, sua casa (oikos em grego, casa), sua terra e seus companheiros de
jornada: os animais. Por isso geocentrismo ou biocentrismo.
Os adeptos da primeira postura acreditam em um crescimento econômico ilimitado e crêem
que a tecnologia atual e supostamente futura tudo resolverá. Nada escapará à solução dos avanços
tecnológicos do ser humano. Para seu consolo e certamente para adiar o problema, é que foi criado
o conceito, definido por nós como paliativo e falacioso, do desenvolvimento sustentável. Entre eles
se enquadram os economistas tradicionais, os conservadores, os neoliberais entre outros cientistas e
leigos que trabalham pelo desenvolvimento capitalista desenfreado.
Os defensores da segunda postura, os que consideram o crescimento econômico ilimitado
absolutamente incompatível com a conservação ambiental, frequentemente são ignorados de modo
que seus argumentos são dificilmente levados em consideração e sequer contestados. Ainda que
seus adeptos são acusados de pessimismo (Carpintero, 2006, p. 177-185), a postura crítica é
seguramente a mais relevante academicamente, porque não existe nenhuma evidência de como as
315
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
questões da conservação ambiental e crescimento econômico poderiam ser conciliadas: predominam
os indicadores que revelam tragédias ambientais atuais e futuras (Veiga, p. 109). Como ensina José
Eli da Veiga (2010, p.109-111) não há propriamente dito um “caminho do meio” dentre as duas
correntes apontadas e sim quando muito desdobramentos menos pessimistas da tese da
impossibilidade do crescimento econômico contínuo, que termina sempre em simples retórica
político-ideológica para justificar ou apaziguar as consciências dos que negociam e vendem a
própria mãe. Negociar e vender a própria mãe no sentido de que somos todos filhos da terra, a terra
é a nossa mãe, a madre terra, la madre tierra ou pachamama dos povos originários dos Andes, não
resta dúvida que uma forma de ver a vida que influenciou o Novo Constitucionalismo Latino
Americano. A valorização da terra como a mãe de todos os seres vivos está dentro da cosmovisão
dos povos indígenas originários das Américas. Além do que para ditos povos, segundo Fernando
Huanacuni Mamani (2010, p.15), em primeiro lugar está a vida como relação de equilíbrio e
harmonia, pelo que o termo viver se aplica somente a quem sabe viver (bien vivir em espanhol).
Então explica Huanacuni que os termos sumak kawsay (no idioma quéchua) ou suma qamaña (no
idioma aymara) significam viver bem (bien vivir utilizado no constitucionalismo equatoriano de
2008 e vivir bien na Constituição da Bolivia de 2009), não somente viver bem um consigo mesmo,
mas viver bem fazendo parte de toda a comunidade: “Es el camino y el horizonte de la comunidad,
alcanzar el suma qamaña o sumak kaysay, que implica primero saber vivir y luego convivir”. Segue
Huanacuni no sentido de que “saber vivir, implica estar en armonía con uno mismo: estar bien o
sumanqaña y luego, saber relacionarse o convivir con todas las formas de existencia” (Huanacuni,
2010, p.15).
A crítica pioneira ao desenvolvimentismo é a do economista romeno Nicholas GeorgescuRoegen (1906-1994), o dissidente mais radical da ciência econômica ocidental e pioneiro do
tratamento transdisciplinar do problema do desenvolvimento sustentável por trazer ao âmbito
jurídico as conseqüências da termodinâmica, leis da física utilizada a partir de elementos de
estatística para combater a economia dos neoclássicos. Desde sua obra The Entropy Law ande
Economics Process, escrita em 1971, que podemos traduzir ao português como: “A lei da entropia e
o processo econômico”24, certamente que ficou demonstrado que a segunda lei da termodinâmica
constitui uma barreira para o crescimento econômico ilimitado.
Para Georgescu-Roegen (1996, p. 177) desde a Revolução Industrial, em nome da economia,
ignora-se o ambiente natural e exageram-se os poderes da ciência, esquecendo os limites
ecológicos, como se não houvesse obstáculos para um desenvolvimento econômico tido como
inevitável, seguro e ilimitado. Assim, conforme o autor romeno a influência de uma abordagem
24
Trabalhamos com a tradução espanhola: GEOERGESCU-ROEGEN, Nicholas. La ley de la entropía y el proceso
económico. Tradução de Luis Gutiérrez Andrés. Madrid: Fundación Argentaria, 1996. Título original: The Entropy Law
ande Economics Proces.
316
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
mecanicista sobre os fundadores da economia neoclássica pode ser vista como um movimento
pendular entre produção e consumo em um sistema perfeito e absolutamente fechado. Os liberais
representam o sistema do processo econômico como um círculo fechado, auto-suficiente,
sustentável e que não conhece qualquer correlação com os processos da natureza. Estes consideram
a primeira lei da termodinâmica, no sentido de que a matéria e a energia não podem ser criadas ou
destruídas, mas apenas transformadas. De esta maneira afirmam que o processo econômico, desde o
ponto de vista da física, absorve e descarta. Este é o ponto de vista mecanicista de acordo com os
economistas tradicionais em que os recursos naturais no processo econômico apenas entram e saem,
gerando produtos, ou seja riquezas, e descartando detritos sem valor, ou seja resíduos.
Para refutar a teoria simplista dos economistas tradicionais, Georgescu (1996, p. 179) se
utiliza da segunda lei da termodinâmica, que é a lei da entropia. A termodinâmica é o ramo da física
que estuda as relações entre o calor trocado e o trabalho realizado em um sistema físico, tendo em
conta a presença de um meio exterior e as variações de pressão, temperatura e volume. A lei da
entropia diz que em um sistema fechado, a desorganização tende a aumentar, e quando maior a
desorganização mais alta a entropia. Segundo Georgescu em termos de termodinâmica o processo
econômico tende a transformar matéria e energia de um estado de baixa entropia para um estado de
alta entropia, que é a medida da energia indisponível em um sistema termodinâmico. O problema é
que para a termodinâmica a energia existe de forma disponível ou livre, que explica a existência de
uma estrutura ordenada e depois de utilizada torna-se energia indisponível ou comprometida, que é
dissipada em desordem. Georgescu cita como exemplo os combustíveis fósseis ainda amplamente
utilizados, ou mesmo a energia nuclear. Os combustíveis fósseis que são recursos livres, estão em
harmonia com a natureza e o montante de resíduos, de energia desordenada e dissipada que são
jogados na natureza é muito maior. O carvão como exemplo, fonte de energia livre, ordenada e
disponível, e o exemplo da energia térmica contida na água como energia comprometida e dissipada
ou despejada na natureza.
Por motivo da segunda lei da termodinâmica, a lei da entropia, afirma Georgescu-Roegen
(1996, p. 180), a quantidade de energia dissipada por um sistema fechado aumenta cada vez mais.
Quanto maior o desenvolvimento, quanto maior o consumo de bens industrializados, maior a
quantidade de resíduos dissipados na natureza, ou seja mais alta a entropia, energia dissipada jogada
na natureza. O planeta tem um limite para essa loucura do consumismo exacerbado e irracional e
para o desenvolvimento ilimitado. A termodinâmica ensina, segundo Georgescu-Roegen, que o
custo de qualquer empreendimento industrial, em termos de entropia - por melhor que seja sua
intenção, como na reciclagem -, é sempre maior que o produto.
Exatamente por ser tão realista ou pessimista e contra os interesses do desenvolvimentismo,
o pensamento de Georgescu-Roegen foi relegado ao esquecimento, em uma época cuja força motriz
317
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
era o crescimento econômico desenfreado, e que a idéia de limitar o progresso era considerado uma
loucura (Cechin, 2010, p. 7-8). Precursor da bioeconomia, posteriormente conhecida economia
ecológica e também precursor da idéia de decrescimento econômico, tem na atualidade a Herman
Daly25 como seu principal discípulo e continuador de suas idéias de economia ecológica e da
necessidade de decrescimento econômico.
A obra de Georgescu-Roegen não teve em sua época a devida atenção merecida. O autor
romeno falecido em 1994 – morreu no ostracismo – devido a um desprezo oficial conveniente, uma
vez que ninguém era capaz ou se capacitou a refutar suas idéias e indagações (Veiga, 2010, p. 113).
As desculpas para esse ostracismo de Georgescu foram muitas, alguns justificavam seu isolamento
acadêmico e até falta de discípulos, devido ao seu gênio difícil e que não estava, ou não gostava de
estar, em um grande centro acadêmico, mas na verdade é que suas idéias eram muito a frente de seu
tempo e sobretudo elas eram muito incômodas para os economistas tradicionais conservadores e
desenvolvimentistas a qualquer preço 26.
Sem se propor e supostamente contra a sua vontade,
Georgescu se tornou um dos ícones do ambientalismo contemporâneo, pois era contra todo e
qualquer tipo de badalação e engajamento político que esse tipo de tema leva hoje em dia, pois na
verdade era um matemático de formação que ainda muito jovem, aos 24 anos, se doutorou em
estatística em Paris na Sorbonne em 1930 e depois de Londres e trabalhar em Havard nos Estados
Unidos resolve após a Guerra voltar ao seu país, mas um dia de 1946 decide com sua esposa fugir
da Romênia com a tomada do poder pelos comunistas e assim exilou-se até sua morte nos Estados
Unidos da América.
De todas as formas o tempo revelou o quão visionário foi o autor romeno, sua obra mais
importante e revolucionária sobre o tema, “A lei da entropia e o processo econômico”, como foi
visto foi escrita em 1971, antes mesmo da hoje alabada Conferência de Estocolmo de 1972.
Visionário e revolucionário no contexto atual, especialmente ao demonstrar que o crescimento
econômico deve ser limitado pela finitude da matéria prima e da energia e pela capacidade do
planeta em processar resíduos.
No momento atual a crise ambiental não pode ser mais ignorada e a obra de Georgescu vem
sendo resgatada em muitos países sem deixar de ser muito incômoda aos defensores do
desenvolvimento ilimitado e aos neoliberais. Além de muitos outros, nomes como Joan Martínez
Alier, José Manuel Naredo, John Gowdy, Mario Giampietro, Herman Daly, por exemplo, muito
recentemente na Espanha será Oscar Carpintero e no Brasil serão principalmente os professores
Ver a interessante obra: DALY, Herman; COBB JR., John B. Para el bien común: reorientando la economía hacía la
comunidad, el ambiente y un futuro sostenible. México: Fondo de Cultura Económico, 1993.
26
No livro de Andrei Cechin ( A natureza como limite da economia, 2010, p. 223-242) há relatos de ex-aluno de
Georgescu-Roegen que revelam seu gênio difícil e sua tendência ao confronto com os demais acadêmicos e exatamente
por isso não era convidado para eventos e ficou grande parte de sua vida como professor de economia na Univesidade
Vanderbilt em Nashville, no Estado americano do Tennesse. Ainda que tenha tido a oportunidade de trabalhar na
Universidade de Havard, opta por por esta universidade mais modesta.
25
318
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
José Eli da Veiga e Andrei Cechin quem resgatam e destacam a importância atual do autor romeno,
que fala da impossibilidade de um crescimento infinito em um planeta finito e a necessidade de
substituir a ciência econômica no seio da biosfera 27.
Para acreditar que um crescimento infinito é possível em um mundo finito – repete Serge
Latouche (2009, p. 3) as palavras de Kenneth Boulding – seria necessário ser um louco ou um
economista, demonstrando assim um pouco de humor negro sobre o tema. Ainda no mesmo sentido
indagava o autor romeno que certamente não sabemos ao certo de quanto tempo o planeta irá
agüentar, as fontes de energia devem durar ainda quanto tempo? Devemos acreditar que a ciência
tudo resolverá? Algo deve ser feito, tudo passa por uma mudança de mentalidade, como nos direitos
fundamentais que são reivindicados historicamente e que foram fruto de uma mudança de
paradigma do teocentrismo da Idade Média para o antropocentrismo da Idade Moderna.
Necessitamos de uma mudança urgente de paradigma. Do antropocentrismo para o geocentrismo ou
biocentrismo.
Para demonstrar o quão atual, visionária e revolucionária é a obra de Nicholas GeorgescuRoegen passamos a expor e comentar os oito pontos “previsões-conselhos” do “programa
bioeconômico mínimo” proposto pelo dissidente romeno em um ensaio de 1972, pronunciado em
um conferencia na Universidade de Yale e publicado em 1975, com o título Energy and Economic
Myths28, como destacam Oscar Carpintero (2006, p. 243) e José Eli da Veiga (2010, p. 162). Dito
programa bioeconômico mínimo tem como objetivo melhorar a relação entre o ser humano e o meio
ambiente. Em negrito as propostas de Georgescu-Roegen (1975. p. 114-118), seguida de nossos
comentários:
1º Ponto: Adoção de uma mentalidade pacifista mundial com o fim guerras e da produção de
todos os instrumentos e artefatos de guerra. Proibição dos armamentos de guerra mediante
um pacto entre as nações. A fabricação de armamentos significa um desperdício. Destacamos o
pacifismo jurídico é proposto por Luigi Ferrajoli na mesma linha propondo que a guerra seja
considerada sempre um crime. Que dizer da economia de nosso vizinho mais ao norte que está
baseada nos artefatos de e na guerra. O cidadão do mundo muito preocupado deve-se perguntar:
Qual será a próxima guerra? Contra qual eixo do mal?
2º Ponto: Inclusão e justiça social de e para todos os membros da sociedade humana com o
fomento de uma existência digna aos habitantes de todos os países, especialmente quanto
Interessantíssimas as obras dos três autores citados sobre Nicholas Georgescu-Roegen: Oscar Carpintero ( La
bioeconomía de Georgescu-Roegen, 2006), Andrei Cechin (A natureza como limite da economia, 2010) e
27
José Eli da Veiga (Desenvolvimento sustentável, 2010).
28
Trabalhamos com a tradução espanhola: GEOERGESCU-ROEGEN, Nicholas. Energía y mitos económicos. Revista
de Economia. Mayo 1975. p. 94-122. Título original: Energy and Economic Mitys.
319
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
àqueles considerados subdesenvolvidos, a partir de uma ajuda internacional sem exportar os
modos de vida dos países ricos que são intoleráveis a escala planetária (...), e ainda propõe algo
que certamente deixou a todos seus inimigos desenvolvimentistas tradicionais e elitista com
escalafrios: a repressão do luxo e do desperdício. Não podemos esquecer que em plena segunda
década do século XXI ainda somos da era do luxo de poucos em detrimento da pobreza extrema de
muitos e a nossa contemporaneidade também se caracteriza por ser a era do desperdício, seja de
energia, de alimentos ou de água enquanto muitos passam fome e não têm água de qualidade para
consumir.
3º Ponto: Controle populacional e alimentação saudável sem o uso de pesticidas com a
diminuição espontânea da população no sentido de fazê-la coincidir com a oferta da
agricultura orgânica. E ainda diminuição do consumo de carne com a adoção do vegetarianismo
por mais pessoas e aliado a diminuição populacional até um nível que a tal agricultura orgânica
bastasse à sua conveniente nutrição. Não resta dúvida que, por exemplo no Brasil, com o uso
indiscriminado de pesticidas na agricultura tradicional e o uso de hormônios na carne e o aumento
desenfreado da produção de carne, leva a uma péssima alimentação e ao aumento das doenças de
todos os tipos assim como a contaminação do entorno natural e a devastação cada vez maior de
nossas matas para dar espaço às lavouras e aos pastos. Destacamos a contaminação das aguas e as
conseqüentes doenças infringidas aos mais débeis.
4º Ponto: Uso racional da energia com o controle de todo o tipo de desperdício e se necessário a
sua estrita regulamentação (tese central da obra de Georgescu-Roegen), com a viabilização a
mais rápida possível da utilização da energia solar e outras fontes limpas de energia, além do
controle da fusão termonuclear. De maneira transdisciplinar, mais ou menos entre a física e a
economia entre outras matérias, Georgescu propõe que o Direito venha a regulamentar o uso da
energia para que o ser humano tenha um futuro longinquo como especie e não ocorra o mesmo com
nossa era o que aconteceu com outros povos, como cita Veiga (2010, p. 15), como os maias e os
habitantes da Ilha de Páscoa.
5º Ponto: Desestímulo do consumismo desenfreado e sem sentido que toma conta da população
mundial com a cura da “sede mórbida dos gadgets extravagantes” para que os fabricantes
parem de fabricar esses tipos de bens industrializados. Os “gadgets extravagantes” na época em
que Georgescu escreveu seriam bens fabricados com pouca utilidade a não ser vender e dar status
social aos seus possuidores. Podemos dizer então que os gadgets têm função social de status (além
da lógica finalidade do bem), quando se tratam de equipamentos ostensivos. Na medida a que se
320
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
referem, em sua maioria, a equipamentos de ponta e por muitas vezes com preços elevados. A
palavra gadgets seria uma gíria norte-americana que pode ser traduzida para o português como
“geringonça”, e que agora com os produtos atuais de ponta de uso pessoal tomou o sentido de como
são comumente chamados os dispositivos eletrônicos portáteis como celulares, I pads, I phones,
smartphones, entre outras "geringonças" eletrônicas. Os oitos pontos aqui revistos foram escritos
em 1972 e Georgescu já vislumbrava o consumismo atual com a produção de geringonças
fabricadas para serem devoradas quase que irracionalmente com a sede mórbida dos consumidores
atuais.
6º Ponto: Incentivo à durabilidade dos produtos industrializados tanto materialmente como de
aceitação social por oposição à cultura da “moda”. Georgescu chega a falar que a moda é uma
doença do espírito humano. Para ele não tem sentido se desfazer de algo que possa ser usado ainda
por muitos anos somente por estar fora de “moda”. A moda pode-se definir como tendência do
consumo em um determinado período, que também tem um forte significado de status e poder.
Quanto mais diferenças sociais se tem um uma determinada sociedade mais importância se dá a
moda, pois faz-se necessário marcar as diferenças, implicitamente está sendo dito que: pela minha
vestimenta e meus bens materiais eu não sou de determinado grupo ou classe social. Vivemos a era
do consumismo, do ter e demonstrar ter ser mais importante que ser. Valoriza-se mais um
milionário, ainda que um mal caráter e criminoso do colarinho branco, do que uma pessoa do bem
ou uma pessoa culta. Esse ponto sexto é completado pelo ponto sétimo.
7º Ponto: Adoção de políticas de incentivo a valorização de mercadorias que possam ser
consertadas e reutilizadas, além de duráveis. O gasto de energia produzido para satisfazer o que
os modismos e a pouca durabilidade dos produtos industrializados do mundo de hoje é certamente
incalculável. Georgescu fala em desperdício de energia. Para fabricar um automóvel, um bem de
consumo doméstico como uma geladeira, por exemplo, é certamente grande o consumo de energia.
E se estes bens não são duráveis, cada vez mais se consome mais e mais energia. Certamente que
atualmente há tecnologia para a fabricação de bens duráveis e econômicos (que gastem pouca
energia), mas não são viáveis, pela lógica do mercado atual. Por exemplo, os automóveis da marca
sueca Volvo além de serem um dos melhores do mundo, sempre foram fabricados para durarem
muitos anos. Recentemente a Volvo quase teve que fechar suas portas por não poder competir com
fábricas que produzem automóveis menos duráveis (para não fechar pediu ajuda, depois foi vendida
para a americana Ford e recentemente para a China, pasmem! 29). Na Suécia as famílias tinham um
Pasmemo-nos com a empresa mais emblemática da socialdemocracia sueca que primava por tratar bem ao seu
trabalhador, trabalhador tratado na Suécia acima de tudo como um cidadão do bem estar social com seus direitos
fundamentais bem protegidos. O que nos vem pela lógica de um mercado irracional: ver a Volvo ter que pedir ajuda
29
321
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Volvo por 20 ou 30 anos. Outro exemplo: as nossas geladeiras mais antigas, as das nossas mães e
avós, duravam até 30 anos. E hoje em dia nossos carros não duram 7 anos assim como nossas
geladeiras. A moda e o consumismo exagerado não nos deixaria não adquirir as novidades do
mercado. Ninguém pensa nem faz a devida reflexão que em nome desse mercado estamos
destruindo o planeta. Georgescu já falava no tema em 1972. Vivemos um consumismo irracional,
somos seduzidos pelas ofertas de um mercado que não se importa com questões éticas, mas agora
está em jogo a sobrevivência da especie humana.
8º Ponto: Adoção de uma mudança de mentalidade na contramão do capitalismo neoliberal
vigente com a redução do tempo de trabalho mundial e redescobrimento do lazer como caráter
fundamental de uma existência digna. O lazer como um direito fundamental do ser humano. O
lazer em nossa Constituição de 1988 é um direito fundamental social (art. 6º), mas infelizmente
cada vez se vê a ideologia neoliberal, que prega uma visão de mundo consumista que leva ao
excesso de trabalho, sendo defendida por nossa mídia formadora de opinião. Trabalhar para viver
e não o contrário, dizia Georgescu e ainda fazia alusão à síndrome da máquina de barbear: nos
barbeamos rápido para ter tempo para trabalhar em uma máquina que faça a barba ainda
mais rapidamente.
Como destaca Oscar Carpintero (2006, p. 240) certamente que o leitor atual talvez ao ler o
“programa bioeconômico mínimo” tenha um sorriso comiserativo em relação à ingenuidade das
sugestões de nosso economista. Segue Carpintero no sentido de que afirma que: “GeorgescuRoegen solía decir, sin embargo, que la tarea de los economistas críticos era siempre triste y difícil
porque tenían que reafirmar continuamente lo evidente”.
Não cabe dúvida que em seu tempo, e certamente no atual, Nicholas Georgescu-Roegen é
considerado como um economista radical, mas irrefutável. Por isso hipocritamente não contestado,
somente colocado de lado em sua época. Importante ressaltar que nosso autor romeno não era um
ativista político, um ambientalista, sua visão era de cientista. Depois de formular os oitos pontos
aqui visto e comentados (impossível resistir a comentá-los), sobre esse seu programa mínimo
bioeconômico, Georgescu-Roegen (1975, p. 118) reconheceu o quanto de utópico eles seriam
reconhecendo que é muito difícil imaginar que as sociedades humanas venham um dia a adotá-los.
E assim laconicamente concluiu que o destino do homem é o de ter uma vida curta, mas fogosa, em
vez de uma existência longa sem grande eventos. Ironicamente determina “deixemos outras
financeira, e finalmente ser vendida em agosto de 2010, a República Popular da China. Logo a China que tem como
principal característica a violação dos direitos humanos e sobretudo por ser uma ditadura ferrenha que maltrata a seus
trabalhadores tratados como escravos. CASAMAYOR, Ramón. En Volvo quieren hablar sueco. El País, Madrid,
13/11/2011, Empresas & Sectores, p. 35.
322
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
espécies, as amebas por exemplo, que não têm ambições espirituais herdar o globo terrestre ainda
abundantemente banhado pela luz solar”. O laconismo e a ironia de Georgescu-Roegen traduzem a
sabedoria popular quando determina que o ser humano somente aprende apanhando ou se dando
mal como se diz coloquialmente.
Considerações finais
A comercialização da água, assim como a privatização dos seus serviços de distribuição, se
insere numa lógica sem saída e desumana
da
extrema supremacia do modelo capitalista
internacional, que enxerga a água como um bem patrimonial, um negócio, semelhante a qualquer
outro bem material. A mercantilização da água constituem uma ameaça a própria existência da
humanidade, em primeiro lugar dos mais débeis – sejam pobres, crianças, idosos etc. –, ao
estabelecer relações desiguais de proprietários e usuários-consumidores que devem pagar pelo
recurso, sem falar que ademais de insumo, a água é um componente vital para a existência e a
manutenção da vida humana.
A questões da qualidade da água para consumo humano e do saneamento básico, certamente
que são de fundamentalíssima importância na manutenção da s aúde dos seres humanos. O pouco
caso das autoridades públicas para com ditos problemas endêmicos geram índices de mortalidade
incalculáveis e que poderiam ser mudados com a adoção de políticas públicas que defendessem
acima de tudo os direitos fundamentais dos cidadãos, entre eles o direito à saúde. É evidente a
relação entre direito à saúde e a qualidade da água para consumo humano, água potável, assim como
o saneamento básico.
A água é um bem fundamental, deve ser legislada como um bem fundamentalíssimo para a
vida de todo ser humano, como preconiza Luigi Ferrajoli, assim como o ar que respiramos. A água
deve ser um bem de domínio público e deve ser legislada como insuscetível de apropriação privada,
como preconizam as recentes Constituições boliviana e equatoriana. A água é um bem de uso
comum do povo, de todos. A contaminação da água, seja biológica pelas péssimas condições de
salubridade ou pela falta de saneamento básico, ou mesmo a contaminação química provada pela
industrialização do desenvolvimentismo desumano e ilimitado, é um atentado a sobrevivência da
espécie humana. A água deve ser usada de acordo com o interesse público da população. O cidadão
comum deve lutar, reivindicar, seu direito fundamental à água. A contaminação da água provocada
pelo egoismo e interesses econômicos de poucos, deveria ser tipificada como um crime de lesa
humanidade.
O reconhecimento da água como um direito fundamental decorre do direito à vida, do direito
à saúde e do princípio da dignidade da pessoa humana. O fato é que não existe vida sem água em
323
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
nenhum aspecto. Os direitos fundamentais poderiam ser fundamentados também pela proteção e
interdependência e complementariedade da questão da água com relação aos demais direitos. A
República Federativa do Brasil deve ter um interesse maior na resolução das questões relativas à
água, uma vez que por ter o privilégio natural de abrigar uma das maiores reservas de água da terra,
poderá ser alvo de disputas e especulações de outras nações.
Sendo um direito fundamental, o direito à água de qualidade e ao saneamento básico são
condições sine qua non para garantir ao ser humano um vida digna. O consumismo exacerbado da
sociedade atual poderá levar a catástrofes cada vez maiores e estas sempre estarão relacionadas com
questões referente à água. O futuro da especie humana passa por uma melhoria na qualidade de vida
da grande maioria da população mundial e de uma conscientização de que somente com uma vida
mais simples poderemos sobreviver. O consumo excessivo de bens industrializados, a cultura da
moda aliada ao status e poder dos bens materiais pode levar a especie humana a degradação de sua
qualidade de vida cada vez mais e por fim, como afirmava na década de setenta Georgescu-Roegen,
ao seu extermínio.
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326
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
GREENWASHING E A PUBLICIDADE ENGANOSA: A ATUAÇÃO DO CONSELHO
NACIONAL DE AUTORREGULAMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA (CONAR)
GREENWASHING AND MISLEADING ADVERTISING: THE PERFORMANCE OF
THE NATIONAL COUNCIL ADVERTISING SELF-REGULATION (CONAR)
Maitê Cecilia Fabbri Moro1
Vanessa Toqueiro Ripari2
Introdução; 1. O novo papel da empresa; 2. Greenwashing: a
publicidade enganosa nas chamadas marcas verdes; 3. Atuação do
CONAR; 4. Conclusão e Referências Bibliográficas.
Resumo: Metas que visam o desenvolvimento sustentável são tidas como prioridades globais
nos últimos anos. É possível observar um esforço mundial dos países e seus governos com
vistas ao alcance da plena sustentabilidade ambiental. As pessoas tornam-se mais preocupadas
com o meio ambiente e a sustentabilidade. As empresas também se transformam, assumindo
um papel mais ativo na sociedade, e passam a investir em políticas de responsabilidade social
e ambiental. Estar alinhado a essas metas e a esse esforço é uma preocupação da sociedade
consciente e constitui uma necessidade global, tendo se tornado um chamariz para a conquista
de consumidores. Ser uma empresa preocupada e responsável é um ideal a ser buscado. O
denominado “marketing verde” transformou-se em algo desejável e almejado pelas empresas,
1
Mestre e Doutora em Direito da Propriedade Intelectual pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela Universidade
Federal do Paraná –UFPR Visiting Scholar da Fordham University – Nova Iorque – EUA. Docente Pesquisadora
da UNINOVE – Universidade Nove de Julho
2
Mestranda em Direito (Área de Concentração: “Justiça, Empresa e Sustentabilidade”) pela UNINOVE.
Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo – FDSBC. Membro do Grupo de
Pesquisa em Empresa, Sustentabilidade e Funcionalização do Direito coordenado pelo Prof. Dr. Vladmir
Oliveira da Silveira e pela Profa. Dra. Samyra Dal Farra Naspolini, vinculado ao CNPQ
327
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
as quais encontraram nessa nova modalidade uma forma de ampliar e fidelizar sua clientela.
Considerando essas premissas, o presente estudo busca refletir acerca de como as empresas,
mediante sua comunicação com o público, propagam a imagem de sustentabilidade e de
responsabilidade social, mas especialmente como, no Brasil, tem sido combatido o mal uso
desse marketing verde para autopromoção. Neste sentido avalia-se a atuação do CONAR.
Palavras-chave: Sustentabilidade; empresa; “greenwashing”; marketing verde; publicidade
enganosa.
Abstract: Goals that aim sustainable development are considered as global priorities in recent
years. It is possible to observe a worldwide effort of countries and their governments in order
to attain full environmental sustainability. People become more concerned about the
environment and sustainability. Companies also are transformed by taking a more active role
in society and are investing in policies of social and environmental responsibilities. Be
aligned to these goals and this effort is a concern of a conscious society and a global need,
having become a decoy for gathering consumers. Being a responsible and concerned company
is an ideal to be pursued. The so-called "green marketing" has become something desirable
and desired by companies, which have found this new way for expanding and retaining their
clientele. Given these assumptions, the present study aims to reflect on how companies,
through their communication with the public, propagate the image of sustainability and social
responsibility, but especially how the bad use of this green marketing for self-promotion has
been fought in Brazil. In this sense the performance of CONAR is evaluated.
Key words: Sustainability; Company; “greenwashing”; green marketing; misleading
advertising.
328
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Introdução
Vivemos na era da informação, da tecnologia, da fluidez 3 e da rapidez. No póssegunda guerra mundial, o tema dos direitos essenciais à natureza humana, voltou
efetivamente à dimensão global, envolvendo agora todos os povos numa perspectiva
universal. A sociedade tem alterado seus valores e, com ampliação da cidadania tutelada para
uma cidadania pluritutelada4, uma nova geração de direitos nasceu nomeada como a terceira
geração de direitos humanos ou direitos de solidariedade voltada para o gênero humano.
Nesta se pode observar maior preocupação com as futuras gerações, tais como: deixar um
ambiente limpo e sadio; garantir água potável para todos; etc, enfim, tem-se a preocupação
em sermos sustentáveis.
Não restam dúvidas de que os consumidores do mundo inteiro andam mais
preocupados com o impacto dos produtos que consomem. O Brasil, por exemplo, chegou a
ficar em segundo lugar no ranking das nações mais preocupadas com consumo consciente em
2009, na pesquisa chamada de Greendex, realizada pela National Geographic Society5
Nesse contexto, o tema da sustentabilidade tem recebido um grande destaque nos
últimos anos. Empresas ecologicamente corretas possuem credibilidade junto a seus
3
Nesse sentido ver Zgmunt Bauman, autor polonês que trata a liquidez desta nova sociedade BAUMAN,
Zygmunt. Modernidade Líquida. Zahar: Rio de Janeiro, 2001.
4
O paradigma dos direitos de solidariedade demanda um Estado “aberto” à cidadania. Assim, esta nova
cidadania pela qual se clama também não pode ser alcançada nos moldes do tradicional Estado nacional
homogeneizante, dominador (imperialista) e negador das diferenças, mas deve caracterizar-se por um conteúdo
mais abrangente e sempre com pluralidade jurídica. Para tanto torna-se imperioso o surgimento de um discurso
internacional – e, portanto, universal e regional – da cidadania compartilhada, que assegure em diferentes partes
do globo o “direito a ter direitos”, na célebre e feliz expressão de Hannah Arendt, impulsionando mudanças que
não se restringirão apenas a uma nação ou outra (cidadania estatal), mas serão implementadas de modo universal
e regional, abarcando todas as nações. SILVEIRA, Vladmir Oliveira da. RIPARI, Vanessa Toqueiro. Cidadania
e sentença internacional: da nacionalidade à universalidade. In: MOSCHEN, Valesca Raizer Borges; JIMENEZ,
Martha Lucia Olivar; LIMA, Marcellus Polastri Lima(org). Desafios do Processo Civil Internacional. Rio de
Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2013, p.05.
5
GREENDEX 2009: Consumer Choice and the Environment – A Worldwide Tracking Survey HIGHLIGHTS
REPORT,
May
2009.
Disponível
em:
http://www.nationalgeographic.com/greendex/assets/Greendex_Highlights_Report_May09.pdf
329
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
clientes/consumidores (que também encontram-se bastante atentos a essa postura) e tem se
preocupado em difundir e propagar sua preocupação e atitudes ao mercado. Entretanto, o
marketing denominado “verde”6 não traz apenas consequências positivas, mas também novas
formas de manipular informação em favor da própria empresa. As empresas têm o poder de
gerar mudanças sociais positivas ou negativas pela forma como se comunicam. O “marketing
verde” é extremamente bem-vindo quando a empresa realmente é socialmente responsável,
mas pode ser altamente nefasto quando essa situação não ocorrer. Este é o caso
do greenwashing, termo ainda não muito conhecido, mas que já possui grande influência e
impacto no mundo publicitário.
É certo que para ganhar a simpatia dos consumidores, muitas empresas estão
divulgando suas ações de responsabilidade socioambiental, mas segundo o relatório Monitor
de Responsabilidade Social Corporativa7, publicado anualmente pelo instituto de pesquisas
Market Analysis, constata que apenas 6% das companhias divulgam os resultados reais de
suas iniciativas sustentáveis. Isso significa que muito mais empresas do que podemos
imaginar andam praticando greenwashing, ou seja, passando uma imagem ecologicamente
responsável que não condiz com a realidade.
Todavia, assim como muitas empresas tem buscado alcançar a sustentabilidade,
contribuindo para um mundo melhor, há também muitas que perceberam a repercussão da
sustentabilidade na era que vivemos - da globalização, do individualismo exacerbado, que
busca incessantemente a solução de todo esse “mal” se preocupando com as próximas
gerações - e se utilizam dessa fragilidade para praticar o greenwashing.
6
Marketing verde é mostrar uma imagem positiva da empresa por sua atuação real em favor do meio
ambiente. Greenwashing já é algo como mostrar que a empresa é sustentável, pois, plantou uma árvore, mas,
omitir que enquanto plantou uma arvore, cortou dez.
7
É a única pesquisa anual sobre percepções, expectativas e atitudes dos consumidores brasileiros sobre
responsabilidade social corporativa. O estudo é realizado todos os anos (desde o ano 2001) no Brasil e em mais
de 20 países, permitindo o acompanhamento de tendências ao longo do tempo e comparações internacionais
exclusivas. Disponível em: <http://www.marketanalysis.com.br/mab/produtos/RSC2010.pdf> Acesso em
11/03/2013.
Além das análises gerais, é possível que as empresas avaliem sua própria atuação frente a seus consumidores e
investiguem quais são suas expectativas. A partir da inserção de perguntas, as empresas podem coletar
informações que atendam as suas próprias demandas para planejamentos estratégicos.
330
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Então, fica a questão, como nos protegermos das publicidades enganosas que fazem
referência à sustentabilidade? Constitui um ato reprimível? Como ele vem sendo abordado no
Brasil? É sob essa perspectiva que este artigo pretende tratar dessa prática chamada
greenwashing.
1. O novo papel da empresa
Há quem entenda que os tempos modernos se foram e hoje encontramo-nos na era
pós-moderna8 o fato é que, independentemente da era, as empresas não só tem crescido cada
dia mais, como podem hoje ser consideradas agentes de mudanças na sociedade. Não há mais
espaço para as empresas que somente visam o lucro. Pode-se dizer hoje que a empresa tem
uma função social e solidária a cumprir. Na era pós-moderna, as empresas deixam de ver
exclusivamente seus interesses, para também observar os interesses da sociedade como um
todo.
Essa transformação das empresas de uma figura fictícia que não opera mudanças no
mundo para o reconhecimento de um agente de mudanças muito eficaz no mundo globalizado
que vivemos, trouxe um novo papel para as empresas, o que resultou em uma necessidade de
não somente buscar a obtenção do lucro como fim, mas também o bem-estar individual e
coletivo.
Em síntese, evidencia-se que a atual atividade comercial, a despeito de seu perfil
individualista, objetivando a obtenção de lucro do comerciante, deve cumprir também uma
função social, de tal sorte que é necessário prestar contas à coletividade quanto ao seu
8
A expressão é polêmica e não gera unanimidades, assim como seu uso não somente é contestado como também
se associa a diversas reações ou a concepções divergentes. Ver nesse sentido: Eduardo Carlos Bianca Bittar. O
direito na pós-modernidade. Para Bauman: “Não é em todo parte, porém, que essas condições parecem estar
prevalecendo; é numa época que Anthony Giddens chama de “modernidade tardia” Ulrich Beck de
“modernidade reflexiva”, Georges Balandier de “supermodernidade”, e que eu tenho preferido (junto com
muitos outros) chamar de “pós-moderna”: o tempo em que vivemos agora, na nossa parte do mundo (BAUMAN,
1998, p. 30) Entende-se que a expressão “pós-modernidade” batiza um contexto socio-historico particular, que se
funda na base de reflexões críticas acerca do esgotamento dos paradigmas instituídos e construídos pela
modernidade, caracterizada a partir da mudança de valores, costumes, hábitos sociais que demonstram a
transição que vive o Estado.
331
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
desenvolvimento, levando em consideração que todos fazem parte de um mesmo mecanismo
social e que estão intimamente interligados.9
A empresa é hoje produto de riqueza, de trabalho e também de qualidade de vida. A
empresa deixa de ser vista como algo intocável para ser algo atingível e passa a dividir
responsabilidades com outros agentes de mudança, como o Estado e a Universidade.
Ao lado da responsabilidade social, o tema da sustentabilidade ganhou espaço no
cenário geral de atuação das empresas10.Estas não são mais vistas como estruturas isoladas,
autônomas e despreocupadas em relação à sociedade como um todo, mas como
influenciadoras desse processo. As empresas não podem mais estar voltadas para si próprias,
gerando impacto ambiental negativo decorrente das atividades produtivas e mercadológicas.
As empresas devem e tem buscado ajudar a alcançar um ambiente ecologicamente equilibrado
assim como aquele disposto no artigo 225 da Constituição Federal. Mas, cabe ressaltar o
alerta feito pelo professor Nalini11:
“Não basta a empresa se autodenominar ecologicamente correta, se
incide e reincide em más práticas ambientais e mostra que a sua opção
ecológica é mero markenting. Verdade, franqueza, transparência, são
valores de que nem as pessoas, nem as entidades formadas para os
mais distintos objetivos podem descuidar.”
A sustentabilidade na empresa deve ser vista como uma forma de atuação em todas as
áreas da empresa, não como um setor ou por meio de ações isoladas. A sustentabilidade está
9
CUNHA, Leandro Reinaldo da e DOMINGOS, Terezinha de Oliveira. A responsabilidade social da empresa
como garantia do desenvolvimento econômico e social. In: SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; MEZZAROBA,
Orides (Coord.); MAILLART, Adriana S.; COUTO, Monica Bonetti Couto et al (org.). Justiça e [o Paradigma
da] Eficiência. Coleção: Justiça, Empresa e Sustentabilidade [vol. 1]. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011,
pp. 144.
10
Nesse sentido que foi fundado em 1997, o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento
Sustentável (CEBDS) que reúne os maiores e mais expressivos grupos empresariais do Brasil, cuja missão é
integrar os princípios e práticas do desenvolvimento sustentável no contexto de negócio, conciliando as
dimensões econômica, social e ambiental. No relatório “Visão Brasil 205” elaborado pelo Conselho, afirma que
há uma transição para uma nova economia, a economia verde(...)Ela será pautada em um modelo de produção e
de
crescimento
responsável,
justo,
eficiente
e
inclusivo.
Disponível
em<
http://www.cebds.org.br/media/uploads/pdf/visao_brasil_2050_-_vfinal.pdf > Acesso em 20/03/2013.
11
NALINI, José Renato. Sustentabilidade e ética empresarial In: SILVEIRA, Vladmir Oliveira da;
MEZZAROBA, Orides (Coord.); MAILLART, Adriana S.; COUTO, Monica Bonetti Couto et al (org.). Justiça
e [o Paradigma da] Eficiência. Coleção: Justiça, Empresa e Sustentabilidade [vol. 1]. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011, p.121.
332
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
ligada a um processo sistêmico, que exige uma atuação da empresa em todos os campos. Ser
sustentável não é apenas reciclar o lixo, se por trás disso há desperdício de água, gás e luz, e
se o faxineiro receber um valor ínfimo no final do mês, não se pode falar em sustentabilidade.
A verdadeira sustentabilidade traz para a empresa eficiência nos usos dos materiais,
redução de custos, sintonia com o consumidor, aumento de credibilidade e, como
consequência, agrega valor à sua marca.12
O público, mesmo sem ser consumidor de um produto ou beneficiário de um serviço,
estabelece os seus conceitos sobre a credibilidade de marcas e de préstimos. Os maus
exemplos não causam prejuízo imediato na cadeia de consumo, porém podem permanecer e
se alojar na consciência de potencial usuário ou no próprio inconsciente coletivo, para arredar
do mercado a marca que não honrou seus compromissos. 13
Às marcas que carregam e propagam valores de sustentabilidade e responsabilidade
social, o mercado tem denominado “marcas verdes”. Mas até que ponto as aludidas “marcas
verdes” são de fato verdes, uma vez que, como explicado por Maitê Cecilia Fabbri Moro 14, o
Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), órgão responsável pelo registro de
marcas, não confere se as qualidades e características inculcadas nas marcas de produtos e
serviços pela publicidade e outras formas de divulgação são corretas e condizem com a
realidade.
Nos últimos anos, os governos de diversos países em parceria com a iniciativa privada,
têm se mobilizado na busca de soluções para o conflito entre desenvolvimento econômico e
preservação ambiental. É preciso repensar a atividade produtiva e mercadológica, a fim de
que se possam encontrar soluções viáveis para o conflito capital e natureza e também
conciliar os interesses de governos, empresas e sociedade nesse processo.
12
Nesse sentido ver: <http://www.amda.org.br>. Acesso em: 15/03/2013.
NALINI, José Renato. Sustentabilidade e ética empresarial In: SILVEIRA, Vladmir Oliveira da;
MEZZAROBA, Orides (Coord.); MAILLART, Adriana S.; COUTO, Monica Bonetti Couto et al (org.). Justiça
e [o Paradigma da] Eficiência. Coleção: Justiça, Empresa e Sustentabilidade [vol. 1]. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011, p.121.
14
MORO, Maite Cecilia Fabbri. Marcas verde – há ou não proteção para elas? (no prelo)
13
333
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
2. Greenwashing
Diante de todas essas transformações sofridas pela empresa e de seu papel na
sociedade, somados à nova geração de direitos humanos preocupados em deixar um ambiente
limpo e sadio para as futuras gerações, originou-se o pensamento “verde”, i.e. ambientalmente
engajado e preocupado, de consumir menos e de forma mais consciente.
Por outro lado, observa-se, também, nas últimas décadas, um enaltecimento e aumento
da publicidade de produtos e serviços, induzindo o consumo. A publicidade ganhou tanta
importância nos dias de hoje que inúmeros serviços, especialmente aqueles prestados e
disponíveis na internet, têm nela sua única fonte de renda.
Tem-se assim um aparente paradoxo: de um lado, consumir menos e de forma
responsável e, de outro, o consumo excessivamente estimulado pela publicidade. A rigor, o
que se pretende em última instância é o consumo, mas valoriza-se o consumo consciente e,
porque não dizer, inteligente. Nessa perspectiva, que nasceu o “marketing verde”, o qual
consiste, portanto, na prática de todas aquelas atividades inerentes ao marketing, porém,
incorporando a preocupação ambiental e contribuindo para a conscientização ambiental por
parte do mercado consumidor.
O termo marketing verde é definido por Philip Kotler15: “(...) um movimento das
empresas para criarem e colocarem no mercado produtos ambientalmente responsáveis em
relação ao meio ambiente”. Polonsky16, autor de várias obras sobre o tema, também propõe
um conceito para o marketing verde:
“Marketing Verde ou Ambiental consiste em todas as atividades
desenvolvidas para gerar e facilitar quaisquer trocas com a intenção de
satisfazer os desejos e necessidades dos consumidores, desde que a
satisfação de tais desejos e necessidades ocorra com o mínimo de
impacto negativo sobre o meio ambiente.”
15
16
KOTLER, Philip. Princípios de Marketing. 7ª ed. Rio de janeiro. Qualytmark,1995, p. 481.
POLONSKY,Michael Jay. A introdução do Marketing Verde. Eletronic GreenJournal, 1994
334
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A essência do marketing consiste em criar e ofertar produtos e serviços capazes de
satisfazer os desejos e necessidades dos consumidores, de maneira rápida e fugaz, muitas
vezes sem se preocupar com o impacto que isso possa causar no meio ambiente, mas nos
últimos anos a sociedade tem voltado os olhos para as empresas denominadas sustentáveis.
Adotar o marketing verde significa, portanto, informar e divulgar ao mercado sobre as
qualidades sustentáveis de seus produtos ou serviços, bem como realçar as vantagens de se
adquirir produtos e serviços ambientalmente responsáveis, com vistas a estimular e despertar
o desejo e o consumo destes produtos e/ou serviços.
Como já tratado, para a empresa isso acarreta enormes ganhos como: a redução de
custos; sintonia com o consumidor e simpatia do mesmo; aumento de credibilidade e valor
agregado à marca. Logo, as empresas devem voltar sua atenção para o desenvolvimento
sustentável.
Mas da mesma forma que essa atitude pode orientar o consumidor ao consumo
consciente e inteligente, se a publicidade for baseada em uma ação enganosa, isso trará
prejuízos das mais variadas ordens. Aí justamente encontra-se a prática do greenwashing,
assim conceituado por Fábio Bazanelli17:
“Greenwashing não inclui apenas informações enganosas, mas
principalmente o ato malicioso de aumentar a importância de fatos
irrelevantes e disfarçar uma fraca atuação ambiental [...] vem sendo
usado por ambientalistas para nomear práticas de „responsabilidade
ambiental‟, promovidas por empresas, que não passam de ações de
marketing não vinculadas à estratégia do negócio. [...] Em um mundo
em que a „Economia Verde‟ e as boas práticas de sustentabilidade
ganham importância na decisão dos consumidores, e em que boa parte
dos ativos das empresas é intangível, parecer „verde‟ é cada vez mais
importante”.
Ou seja, as empresas usam da imagem positiva gerada na mente dos consumidores
com a preocupação com o meio ambiente para se promoverem, não havendo, entretanto, uma
17
BAZANELLI, Fábio. Revista RI, n.º 128. Rio de Janeiro: IMF editora. Dezembro de 2008. Disponível em <
http://blog.maua.br/2010/07/consumidores-brasileiros-em-segundo-lugar-no-indice-verde/>. Acesso em 07 de
março de 2013.
335
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
preocupação genuína, com os danos que a sua atividade mercadológica pode causar ao meio
ambiente, danos estes que poderão ser irreversíveis.
O que se mostra muito perigoso, pois, como já dito, o INPI não avalia, e seria até
impossível, se uma marca é de fato “verde” ou não, ou seja, se a marca realmente está
vinculada a princípios e valores éticos e sustentáveis. Ao INPI cabe avaliar a estrutura da
marca, a distintividade desta em relação aos produtos ou serviços assinalados e se há conflito
com outras marcas ou com direitos anteriores. Estes requisitos estão previstos na Lei n.
9.279/96.
Entretanto, sob uma outra ótica, de divulgação e publicidade da marca tem-se a
atuação do CONAR, Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária, que busca
autoregulamentar as propagandas
fornecidas aos consumidores. O CONAR tem como
objetivo atuar no combate dessa tendência que tem surgido nos últimos anos: da imagem que
não condiz com a realidade 18.
O CONAR é uma entidade da sociedade civil e possui o Código Brasileiro de
Autorregulação Publicitária, adentraremos no próximo tópico nas regras do CONAR, a este
respeito e que tem se mostrado eficazes em relação a esta questão.
3. Atuação do CONAR
A publicidade tem o importante papel de serviço informativo aos consumidores, na
qual origina a obrigação do fornecedor em cumprir a oferta, apresentação ou publicidade
veiculada.
O objetivo da publicidade é aguçar o imaginário do consumidor, a fim de tornar o
produto desejado. A publicidade objetiva atingir o topo da mente do consumidor, fazer com
18
Segundo a pesquisa, realizada pela Market Analysis, mostrou que os produtos brasileiros são os que usam
menos apelos em suas embalagens para dar ao consumidor uma falsa impressão de preocupação ambiental.
Ainda assim, a prática é frequente no país: 90% de todos os produtos nacionais analisados pela pesquisa
possuem algum tipo de apelo ecológico
336
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
que seja o primeiro lembrado. A publicidade enganosa, prevista no parágrafo primeiro do
artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor, acontece quando induz o consumidor em erro.
A publicidade enganosa, quando caracterizada, impõe responsabilidade civil, penal e
administrativa, com contrapropaganda para desfazer os efeitos (artigos 56, XII, e 60).
Carlos Alberto Bittar19 qualifica a publicidade como indomável força do mundo
negocial, passando a ter efetivo controle a partir do Código de Defesa do Consumidor. A
publicidade visada: "pelo regime repressivo não é a inserida em mensagem honesta e
inteligente, mas a que se expressa com falseamento da verdade, ou com a ilaqueação da boafé do destinatário, ou com desrespeito a valores essenciais do relacionamento social".
O referido professor explica os princípios que devem nortear a publicidade:
“Os princípios básicos que norteiam a publicidade, a partir da vigência
do Código, são os seguintes: a) a obrigatoriedade da informação; b) o
da veracidade; c) o da disponibilidade; d) o da transparência, com os
respectivos corolários. Em consonância com o primeiro, toda
informação, que deve ser clara e precisa, obriga o anunciante,
integrando os contratos que celebrar com consumidores; pelo
segundo, deve ser verdadeira a informação ou mensagem publicitária,
cumprindo-lhe apresentar corretamente os elementos básicos do
produto ou do serviço oferecido; pelo terceiro, devem estar
disponíveis, para os interessados, todos os dados sobre a mensagem
publicitária, fáticos, científicos ou técnicos; pelo quarto, deve a
mensagem ser facilmente identificável como tal, não se admitindo,
pois, mascaramento, ou outro expediente, inclusive subliminar,
dissimulatório".
Enganosa é a mensagem falsa ou falseada, que leve a erro o consumidor. Na
linguagem legal, é enganosa a publicidade que: a) seja total ou parcialmente falsa,
compreendidas a informação e a comunicação publicitárias; b) possa, de qualquer modo,
enganar ou induzir a erro o consumidor sobre a natureza, características, quantidade,
qualidade, propriedade, origem, preço e outros dados do produto ou do serviço; c) deixa de
informar o consumidor sobre dado essencial de produto ou de serviço, como, por exemplo, as
que ocultam certa informação essencial ou alguma contra-indicação ou, ainda,
algum
componente de certa fórmula e assim por diante.
19
BITTAR, Carlos Alberto. O controle da publicidade no CDC\ artigo publicado na RT 673/7, p.8-9
337
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
O princípio da veracidade da publicidade encontra abrigo, como dever anexo, no
princípio da boa-fé, como norma de conduta. Mentir ou suprimir informação essencial é agir
de má-fé.
O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR) é uma ONG
encarregada de fazer valer o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária. Constitui
um verdadeiro tribunal ético capaz de assimilar as evoluções da sociedade, refletir-lhe os
avanços, as particularidades, as nuanças locais e já instaurou mais de 7 (sete) mil processos
éticos e promoveu um sem-número de conciliações sobre propagandas enganosas. 20 Os
preceitos básicos que definem a ética publicitária são: (i) todo anúncio deve ser honesto e
verdadeiro e respeitar as leis do país, (ii) deve ser preparado com o devido senso de
responsabilidade social, evitando acentuar diferenciações sociais, (iii) deve ter presente a
responsabilidade da cadeia de produção junto ao consumidor, (iv) deve respeitar o princípio
da leal concorrência e (v) deve respeitar a atividade publicitária e não desmerecer a confiança
do público nos serviços que a publicidade presta.
O CONAR atende a denúncias de consumidores, autoridades, dos seus associados ou
ainda formuladas pela própria diretoria. Feita a denúncia, o Conselho de Ética do CONAR - o
órgão soberano na fiscalização, julgamento e deliberação no que se relaciona à obediência e
cumprimento do disposto no Código - se reúne e a julga, garantindo amplo direito de defesa
ao acusado. Se a denúncia tiver procedência, o CONAR recomenda aos veículos de
comunicação a suspensão da exibição da peça ou sugere correções à propaganda.
A discussão sobre a regulamentação da publicidade verde tomou força após a
suspensão, em abril de 2008, de duas campanhas publicitárias da Petrobrás. Após pedido de
análise de um grupo de instituições governamentais e ONGs, o CONAR suspendeu as
campanhas que ligavam o nome da empresa a ações de responsabilidade ambiental. As
instituições acusavam a estatal de anunciar um comprometimento com o ambiente que não
seria verdadeiro, pois na ocasião a empresa resistia em reduzir o teor de enxofre no diesel,
fator de agravamento da poluição nos centros urbanos. Após a suspensão das peças
20
Disponível em: <http://www.conar.org.br/>Acesso em 10 de março de 2013.
338
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
publicitárias, a empresa aceitou firmar um acordo com o Ministério Público Federal para
reduzir o poluente no combustível21
Com intuito de regularizar os anúncios que contemplam apelo de sustentabilidade
dando atributos "verdes" aos produtos que na verdade não o são e, com intuito de combater
essa prática do greenwashing, no início de junho de 2011, o CONAR anunciou alterações no
Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária. A alteração teve como principal
objetivo reduzir o espaço para usos do tema sustentabilidade que possam confundir o
consumidor ou banalizar o tema. O Código classificou a publicidade com apelo sustentável
em 3 tipos22: publicidade da responsabilidade socioambiental e da sustentabilidade;
publicidade para a responsabilidade social e para a sustentabilidade e publicidade relacionada
a causas. Segundo a nova orientação, o CONAR recomenda ainda que qualquer publicidade
que faça menção à sustentabilidade obedeça aos critérios de : (i) veracidade, (ii) exatidão, (iii)
pertinência e (iv) relevância.
Para combater esses tipos publicitários alterou-se a redação ao art. 36 do Código de
Autorregulamentação Publicitária e houve a inclusão do Anexo U, sobre apelos de
sustentabilidade.
O art. 36, bastante amplo, ficou assim redigido:
“Artigo 36
A publicidade deverá refletir as preocupações de toda a humanidade com os problemas
relacionados com a qualidade de vida e a proteção do meio ambiente; assim, serão
vigorosamente combatidos os anúncios que, direta ou indiretamente, estimulem:
21
Nesse sentido ver: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u393273.shtml> Acesso em 20 de
março de 2013.
22
A definição desses tipos encontra-se no caput do Anexo U do Código Brasileiro de Autorregulamentação
Publicitária que em sua regra geral estabelece: “(1) Para os efeitos deste Anexo, entender-se-á por
„Publicidade da Responsabilidade Socioambiental e da Sustentabilidade‟ toda a publicidade que comunica
práticas responsáveis e sustentáveis de empresas, suas marcas, produtos e serviços.
(2) Para os efeitos deste Anexo, entender-se-á por “Publicidade para a Responsabilidade Socioambiental e para a
Sustentabilidade” toda publicidade que orienta e incentiva a sociedade, a partir de exemplos de práticas
responsáveis e sustentáveis de instituições, empresas, suas marcas, produtos e serviços.
(3) Para os efeitos deste Anexo, entender-se-á por “Publicidade de Marketing relacionado a Causas” aquela que
comunica a legítima associação de instituições, empresas e/ou marcas, produtos e serviços com causas
socioambientais, de iniciativa pública ou particular, e realizada com o propósito de produzir resultados
relevantes, perceptíveis e comprováveis, tanto para o Anunciante como também para a causa socioambiental
apoiada.”
339
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
1. a poluição do ar, das águas, das matas e dos demais recursos naturais;
2. a poluição do meio ambiente urbano;
3. a depredação da fauna, da flora e dos demais recursos naturais;
4. a poluição visual dos campos e das cidades;
5. a poluição sonora;
6. o desperdício de recursos naturais.
Parágrafo único
Considerando a crescente utilização de informações e indicativos ambientais na
publicidade institucional e de produtos e serviços, serão atendidos os seguintes
princípios:
veracidade – as informações ambientais devem ser verdadeiras e passíveis de verificação
e comprovação;
exatidão – as informações ambientais devem ser exatas e precisas, não cabendo
informações genéricas e vagas;
pertinência – as informações ambientais veiculadas devem ter relação com os processos
de produção e comercialização dos produtos e serviços anunciados;
relevância – o benefício ambiental salientado deverá ser significativo em termos do
impacto total do produto e do serviço sobre o meio ambiente, em todo seu ciclo de vida,
ou seja, na sua produção, uso e descarte.”
A amplitude da regulamentação não tem obstado decisões interessantes em relação ao
tema. Em uma delas, julgada em novembro de 2011, o CONAR decidiu pela sustação da
publicidade da Água Mineral Rocha Branca, na qual se afirmava a "garantia de
industrialização sem impacto ao ambiente" por meio de um “selo verde”, sem muito mais
explicações. Neste caso a iniciativa da representação partiu do próprio CONAR e a empresa,
quando soube da mesma, decidiu nem esperar a decisão e sustar a publicidade. Esta decisão
demonstra a credibilidade, eficácia e respeitabilidade do CONAR para atuar e repreender esse
tipo de publicidade enganosa.
CONCLUSÃO
340
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
O destaque do desenvolvimento sustentável no âmbito das prioridades globais foi um
reflexo direto das transformações que impactaram o planeta nos últimos anos. Com esse boom
que o tema sustentabilidade sofreu, as empresas, antes vistas como intocáveis e afastadas dos
acontecimentos sociais, começaram a se conscientizar do seu papel como agente de
transformação na sociedade que atua.
Com a responsabilidade ambiental implementada no mundo empresarial, grandes
empresas têm atuado constantemente na proteção e manutenção do meio ambiente sadio. É
certo que a postura de uma empresa sustentável seduz mentes e cria uma boa imagem ao
consumidor. Nesse contexto, que, muitas vezes, pode ocorrer a propaganda enganosa, onde
empresas que afirmam atuar no combate à destruição do meio ambiente e divulgando suas
marcas como “verdes”, de fato só se valem dessas práticas para criar imagem positiva, um
estereótipo na mente de quem consome.
O fato de anunciar um produto como sendo ecologicamente e ambientalmente
sustentável e, na realidade não se constatar esse fato, é o que se denomina hoje greenwashing.
Essa prática tem tomado força, mas a sociedade, o governo e as empresas, com legítima
preocupação,, se mobilizam a fim de combater o greenwashing.
Empresas têm usado da imagem positiva que o marketing verde pode proporcionar
para se promoverem, usando da fragilidade de uma sociedade fragmentada e fluida, como se
encontra na atualidade. A sociedade acaba por não acreditar que empresas comunicam com
veracidade e honestidade aquilo que fazem no campo socioambiental.
Com vistas a combater estas condutas antiéticas, o CONAR tem se mostrado um
agente importante e eficaz, evitando assim que as empresas divulguem suas marcas como
ecologicamente sustentáveis ou “verdes”, quando, a rigor, não o são.
Bibliografia
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Zahar: Rio de Janeiro, 2001.
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HIGHLIGHTS
REPORT,
May
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f
MORO, Maite Cecilia Fabbri. Marcas verde – há ou não proteção para elas?.Artigo no prelo.
CUNHA, Leandro Reinaldo da e DOMINGOS, Terezinha de Oliveira. A responsabilidade
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Vladmir Oliveira da; MEZZAROBA, Orides (Coord.); MAILLART, Adriana S.; COUTO,
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NALINI, José Renato. Sustentabilidade e ética empresarial In: SILVEIRA, Vladmir Oliveira
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Couto et al (org.). Justiça e [o Paradigma da] Eficiência. Coleção: Justiça, Empresa e
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BITTAR, Carlos Alberto. O controle da publicidade no CDC\ artigo publicado na RT 673/7.
342
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
O ATIVISMO JUDICIAL COMO FERRAMENTA DE IMPLEMENTAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA SUSTENTABILIDADE
JUDICIAL ACTIVISM AS A TOOL FOR THE IMPLEMENTATION OF THE PRINCIPLE
OF SUSTAINABILITY
Luciana Costa Poli
Bruno Ferraz Hazan
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Ativismo judicial e cláusulas gerais; 3 A compatibilidade do
ativismo judicial na estrutura do Poder Judiciário no contexto do Estado Democrático de
Direito; 4 Sustentabilidade: noções gerais; 5 Sustentabilidade e ativismo judicial: a
sustentabilidade como princípio orientador das decisões judiciais; 6 Considerações finais;
Referências.
CONTENTS: 1 Introduction; 2 Judicial activism and general clauses; 3 The compatibility of
judicial activism in the structure of the judiciary in the context of Democratic State of Law; 4
Sustainability: general notions; 5 Sustainability and judicial activism: sustainability as the
guiding principle of judicial decisions; 6 Final considerations; References.
RESUMO
O trabalho examina a atuação do Poder Judiciário, mais precisamente o fenômeno do ativismo
judicial no contexto do Estado Democrático de Direito, abordando a importância da atuação
do juiz para efetivação dos princípios constitucionais. O estudo destaca que essa atuação hoje
se mostra complexa, em razão da grande abertura e mobilidade do sistema jurídico, garantida
por diversos fatores, dentre eles pela presença de cláusulas gerais de conteúdo aberto e fluído
no ordenamento. A presença de cláusulas gerais permite ao magistrado a construção de uma
solução para o caso concreto que absorva todo esse conteúdo principiológico. A partir da
constatação da relevância do ativismo judicial, o trabalho propõe-se a analisar se esse
fenômeno pode contribuir para as metas de sustentabilidade propostas pelo Estado.
Verificando a existência de diversas nuances da sustentabilidade, procurar-se-á demonstrar
que a sustentabilidade não se encerra em um conteúdo destituído de normatividade, ao
contrário, pode ser compreendida como um princípio geral e sistêmico, orientador das
decisões judiciais. Nesse sentido, defender-se-á que a atuação do juiz hoje deve ser politizada
e conectada à satisfação dos objetivos de um Estado comprometido com a implementação do
princípio da sustentabilidade.
PALAVRAS-CHAVE: Ativismo judicial; Cláusulas Gerais; Sustentabilidade; Meio
Ambiente.
ABSTRACT

Luciana Costa Poli. Advogada. Doutora em Direito Privado pela PUC-MINAS. Professora na Escola Superior
Dom Helder Câmara/MG e na Faculdade Estácio de Sá/MG.

Bruno Ferraz Hazan. Advogado. Mestre e Doutorando em Direito Privado pela PUC-MINAS. Professor na
Escola Superior Dom Helder Câmara/MG e na Escola Superior de Advocacia da OAB/MG.
343
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
The paper examines the role of the judiciary, specifically the phenomenon of judicial activism
in the context of the Democratic State of Law, addressing the importance of the role of the
judge for enforcement of constitutional principles. The study notes that this performance
today proves complex, due to the large opening and mobility of the juridical system,
guaranteed by several factors, including the presence of general clauses of open and fluid
content in the legal order. The presence of general clauses allows the magistrate to build a
solution for the case to absorb all this principiological content. From the evidence of the
relevance of judicial activism, the paper proposes to examine if this phenomenon may
contribute to sustainability goals proposed by the State. Checking various nuances of
sustainability, it will seek to demonstrate that sustainability does not end in a content devoid
of normativity, instead, can be understood as a general and systemic principle, guiding the
judgments. In this sense, it will defend that the role of the judge today must be politicized and
connected to the satisfaction of the goals of a State committed to the implementation of the
principle of sustainability.
KEYWORDS: Judicial Activism; General Clauses; Sustainability; Environment.
1 INTRODUÇÃO
A partir da percepção do envolvimento e do posicionamento do Poder Judiciário em
temas controversos e polêmicos que têm, de certa forma, contribuído para moldar o
pensamento jurídico do país, propõe-se estudar o fenômeno do ativismo judicial e sua
importância para efetivação de princípios e valores caros ao Estado contemporâneo. Ao
mesmo tempo, constata-se que a temática da sustentabilidade, na concepção principiológica
que se apresenta neste trabalho, embora presente na ordem do dia, ainda carece de
implementação efetiva.
Com isso, o estudo pretende demonstrar que a participação do Poder Judiciário, por
meio de decisões que imprimam efetividade ao primado principiológico proposto pela
Constituição da República de 1988 – em especial, o princípio da sustentabilidade –, é
legítima, necessária e útil. Para tal fim, o trabalho se propõe inicialmente a analisar o ativismo
judicial, compreendido como uma participação mais ativa e politizada do Poder Judiciário.
Percebe-se que com a inclusão de cláusulas gerais de conteúdo aberto e fluído no
ordenamento jurídico, como ocorre com o Código Civil de 2002, o juiz passou a receber do
próprio legislador instrumentos para que trabalhe a construção de uma decisão mais coerente
com a implementação dos valores e princípios perseguidos pelo Estado Democrático de
Direito.
Partindo dessa visão, procura-se demonstrar que o direito na pós-modernidade
abandonou o modelo positivista, que transformava os juízes em meros executores da lei, e
passou a exigir uma maior participação do Poder Judiciário como corresponsável pela
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
construção de uma sociedade que, de fato, pretenda alcançar os ideais do Estado de Direito.
Sustenta-se que o ativismo judicial é uma ferramenta importante para que se possa extrair o
máximo das potencialidades das linhas diretrizes do texto constitucional, privilegiando a
busca de soluções mais adequadas para cada caso concreto.
A sustentabilidade, segundo a concepção que se apresentará, refere-se à busca do
equilíbrio em qualquer esfera do desenvolvimento, seja ele econômico, político ou social.
Assim, passa a ser vista como uma preocupação para com as gerações futuras, no sentido de
que se relaciona intimamente com a forma de desenvolvimento da sociedade e seus impactos
no entorno. Parte-se, portanto, da noção de que o desenvolvimento sustentável é aquele que
pretende atender às necessidades do presente sem comprometer as possibilidades de gerações
futuras.
Procurar-se-á constatar que o Estado Democrático de Direito não mais permite uma
postura desidiosa e passiva do Judiciário, sendo que o juiz deve concretizar o significado dos
princípios e, por conseguinte, do conteúdo da sustentabilidade, buscando dar-lhe densidade
real e concreta. O juiz, atento às demandas no mundo contemporâneo, não deve, ao julgar o
caso, apenas aplicar o comando da lei, mas, sim, avaliar e sopesar os impactos de sua decisão
na sociedade.
Defender-se-á que a sustentabilidade não pode ser concebida como mera opção. Ao
contrário, deve ser adotada como orientação necessária e irrefutável para a conservação de
mais capital natural para futuras gerações e, portanto, todos os mecanismos para sua
implementação devem ser utilizados.
2 ATIVISMO JUDICIAL E CLÁUSULAS GERAIS
A fim de atingir as metas propostas pelo Estado, torna-se fundamental a tarefa do
julgador de contribuir para a construção de uma sociedade voltada à satisfação dos princípios
e objetivos previstos no ordenamento constitucional. Essa visão pretende romper com o
hermetismo técnico-jurídico da mera subsunção do caso concreto às regras legais e a
compreender o fenômeno jurídico como fenômeno social importante que deve servir como
instrumento, ou um meio (não um fim), para a realização dos próprios valores perseguidos
pelo Estado.
Tem-se denominado ativismo judicial a participação mais abrangente e intensa do
Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, mais especialmente de metas
345
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ambientais e de sustentabilidade, por meio da atuação que, de certa forma, demonstra uma
maior interferência no espaço dos demais Poderes.
Esse instituto, segundo Barroso (2009, p. 75), associa-se à postura ativista do juiz,
que se manifesta por meio de condutas diversas, que incluem:
(i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas
em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a
declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com
base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da
Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público,
notadamente em matéria de políticas públicas.
A atuação do Poder Judiciário ganha, dessa forma, um relevo que passa a ser
compreendido como necessário ao processo de implementação das políticas públicas e dos
valores e princípios pretendidos pela Constituição da República de 1988.
Relaciona Barroso (2009, p. 76)1 que o oposto do ativismo é a denominada autocontenção judicial, conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações
dos outros Poderes. Por essa linha, juízes e tribunais (i) evitam aplicar diretamente a
Constituição a situações que não estejam no seu âmbito de incidência expressa, aguardando o
pronunciamento do legislador ordinário; (ii) utilizam critérios rígidos e conservadores para a
declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos e (iii) abstêm-se de interferir na
definição das políticas públicas.
Partindo dessas noções preliminares, parece claro que, até o advento da Constituição
de 1988, essa era a inequívoca linha de atuação do Poder Judiciário no país.
Em princípio, o ativismo judicial pretende extrair o máximo das potencialidades das
linhas diretrizes do texto constitucional, privilegiando a busca de soluções para o caso
concreto que se coadunem com a principiologia a ser implementada pelo Estado Democrático
de Direito.
1
Segundo o autor, o ativismo teve origem na jurisprudência norte-americana, mas, em um primeiro momento, de
natureza conservadora. Foi na atuação proativa da Suprema Corte que os setores mais reacionários encontraram
amparo para a segregação racial (Dred Scott v. Sanford, 1857) e para a invalidação das leis sociais em geral
(Era Lochner, 1905-1937), culminando no confronto entre o Presidente Roosevelt e a Corte, com a mudança da
orientação jurisprudencial contrária ao intervencionismo estatal (West Coast v. Parrish, 1937). A situação se
inverteu completamente a partir da década de 50, quando a Suprema Corte, sob a presidência de Warren (19531969) e nos primeiros anos da Corte Burger (até 1973), produziu jurisprudência progressista em matéria de
direitos fundamentais, sobretudo envolvendo negros (Brown v. Board of Education, 1954), acusados em
processo criminal (Miranda v. Arizona, 1966) e mulheres (Richardson v. Frontiero, 1973), assim como no
tocante ao direito de privacidade (Griswold v. Connecticut, 1965) e de interrupção da gestação (Roe v. Wade,
1973).
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A auto-contenção parece ensejar a ideia de que, ao limitar a atuação dos juízes,
restringe a própria aplicação imediata e direta da Constituição, já que, no silêncio da lei para a
solução do caso, demandaria o aguardo do pronunciamento do legislador.
Ao que tudo indica, o próprio Poder Legislativo tem dado impulso ao movimento
ativista. Tal prática é perceptível nas próprias diretrizes introduzidas no ordenamento civil,
com o advento do Código Civil de 2002, o qual foi erigido por inúmeras cláusulas gerais.
A cláusula geral apresenta características de generalidade e abstração, permitindo ao
intérprete a construção de uma decisão calcada em princípios considerados relevantes na
solução do caso concreto. Além disso, também é um instrumento pelo qual o Estado, por meio
do Poder Judiciário, aumenta sua interferência na economia e nas relações negociais.
No campo contratual, para ilustrar, o instituto permite ao julgador conformar e
reconfigurar a relação contratual, a fim de que atenda ao conteúdo dos enunciados
principiológicos da Constituição da República de 1988, como a solidariedade, a promoção da
dignidade da pessoa humana e o atendimento à função social. O conteúdo da cláusula geral é
aberto e dinâmico, permitindo a cada magistrado o seu preenchimento. Afirma Martins-Costa
(1999, p. 23):
Do ponto de vista de técnica legislativa, a cláusula geral constitui uma disposição
normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura
intencionalmente “aberta”, fluida ou vaga, caracterizando se pela ampla extensão do
seu campo semântico, a qual é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato
para que, à vista dos casos concretos, crie, complemente ou desenvolva normas
jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar fora do
sistema.
Dessa forma, a atuação do juiz ganha complexidade e importância, passando a
usufruir de grande abertura e mobilidade, permitindo-lhe a construção de uma solução que
absorva o conteúdo principiológico de todo o sistema jurídico, abandonando a aplicação fria e
distante do texto puramente legal ao caso concreto. De acordo com Jorge Junior (2004, p. 10):
Transitando entre a generalidade, a vagueza e os valores, inseridas numa roupagem
de proposição prescritiva escrita, as cláusulas gerais afirmam o objetivo de dotar
o sistema de normas com características de mobilidade, que propiciem abertura ao
ordenamento jurídico, evitando-se a tensão entre preceitos normativos rígidos e
valores em mutação a implicar um indesejável mal-estar decorrente de um embate
sem solução sistêmica. Seria, ademais, o alto teor valorativo nas cláusulas gerais o
elemento caracteristicamente diferenciador destas normas perante o ordenamento
jurídico, o nódulo essencial que faria com que as cláusulas gerais fossem aquilo que
são.
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Submetem-se, assim, os julgados a princípios éticos e solidaristas perseguidos pela
Carta Magna, pois as cláusulas gerais, quando inseridas na lei, refletem esses ideais. Nessa
conformação, o Código Civil estabelece diversas cláusulas gerais, tais como a boa-fé objetiva,
a responsabilidade pelo dano, o enriquecimento ilícito e a função social do contrato, que irão
permitir que a decisão, sobre tais institutos, atenda a valores não apenas econômicos e
individualistas, mas éticos e solidários.
É inegável que a lógica e o perfil do sistema foram invertidos. De um sistema
fechado, no qual se identificava o dogma do Direito-Lei, passa-se a um sistema aberto, de
auto-referência relativa, que reclama novas soluções, uma nova hermenêutica e desafia o
intérprete.
Diferentemente de outras normas, as cláusulas gerais introduzem a ideia de que o
juiz, ao buscar solucionar o caso, seleciona certos fatos ou comportamentos para confrontá-los
com um determinado parâmetro, orientado pela busca de implementação dos objetivos do
Estado. Certo é que a decisão a ser emitida não se conformará a uma solução pré-determinada.
De certa forma, o juiz ganha um poder extraordinariamente amplo. “Não apenas estará
estabelecendo o significado do enunciado normativo, mas acaba criando direito, ao completar
a fattispecie e ao determinar ou graduar as consequências” (MARTINS-COSTA, 1999, p.
130).
Interessante notar que a aplicação de cláusulas abertas revela uma aproximação entre
o sistemas da common law e civil law. Na Argentina, por exemplo, há diversas situações em
que a civil law é aplicada em matéria privada e de legislação infraconstitucional, enquanto que
a common law se aplica em nível constitucional, resultando em um multiculturalismo na
aplicação da lei, conforme ressalta Lorenzetti (1998, p. 62):
O direito foi idealizado para ser aplicado a um Estado cujos habitantes tenham raízes
e ideais em comum, ou seja, uma base cultural homogênea. Na atualidade existem
sociedades multiculturais, na quais resulta difícil afirmar o predomínio de um grupo
de pessoas que pensem do mesmo modo em todos os temas, o que faz com que tanto
a lei, quanto a decisão judicial se concentrem antes nos procedimentos que nas
decisões substantivas.
Na Argentina o problema da diversidade foi exposto desde as suas origens, inclusive
no âmbito jurídico, já que no direito público houve uma forte influência anglosaxônica, enquanto no direito privado obedeceu-se a uma larga construção baseada
na tradição européia. Essa convivência de culturas jurídicas bastante diferentes
transformou-se em um problema global, em vista dos fenômenos da imigração e do
multiculturalismo, passando a expor problemas altamente complexos de interrelação cultural.
348
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A crescente inclusão de cláusulas gerais no ordenamento conduz à conclusão de que
o direito não é originado somente pelo que preceitua o legislador. Mais que isso, é um produto
das experiências, dos fatos e dos costumes da sociedade, de modo que imaginar um direito
pleno, baseado no centralismo jurídico e com todas as condutas-tipo2 previstas, facilmente o
torna obsoleto. Menezes Cordeiro (2001, p. 46), ao abordar a adequação da amplitude
semântica (para o direito acompanhar o fato social), prevê que “ainda quando a lei não reaja, a
ordem jurídica deve fazê-lo”. Nas palavras de Canaris (1996, p. 24), o ideal seria que, para
acompanhar a evolução social, o sistema legal fosse dotado da ideia de incompletude.
Essa noção de incompletude do sistema revela que não se deve esperar do Poder
Legislativo a solução para todas as situações concretas enfrentadas pela sociedade. Ao
contrário, talvez seja o momento de admitir que o Poder Judiciário tem papel decisivo na
implementação de um Estado comprometido com as metas constitucionais. Isso denota
também que, ao acompanhar o caso concreto, o magistrado está mais próximo dos dilemas e
dos problemas sociais e, portanto, mais apto a concretizar as escolhas constitucionais de modo
a coaduná-las com os interesses das partes.
3 A COMPATIBILIDADE DO ATIVISMO JUDICIAL NA ESTRUTURA DO PODER
JUDICIÁRIO NO CONTEXTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A alteração de paradigmas, necessária para o desenvolvimento da ciência jurídica,
pode ser sentida de modo bastante contundente na própria finalidade do Estado
Contemporâneo. O sistema jurídico, que marcava o liberalismo, consagrava como vértice a
proteção a metas individuais de aquisição e acumulação de bens, resguardadas pelas leis
civilistas de proteção à propriedade e ao contrato.
Mas, além das alterações políticas e sociais que culminaram com o fim do modelo
clássico, as incansáveis e prejudiciais interferências do homem no planeta trouxeram
mudanças significativas ao meio ambiente, levando o Estado a repensar os seus próprios fins.
Adverte Canotilho (1995 p. 13) que o Estado passa a assumir o dever de defender a natureza e
o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correto ordenamento territorial.
Tais tarefas, prossegue o autor, enquadradas em ordenamentos jurídicos de vários países
2
É a técnica da fattispecie, comumente usada na época da codificação, que visava reduzir a margem
interpretativa do aplicador de direito, revestindo a norma de imutabilidade, garantindo a segurança jurídica
(IRTI, 1999, p. 20).
349
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como princípios fundamentais, transformam o Estado de direito em Estado democráticoambiental, ao admitir o direito ao ambiente como seu fim (CANOTILHO, 1995, p. 81 e 93).
A teoria clássica da separação de poderes foi concebida para atribuir existência e
limites a cada órgão do Estado, na medida em que no contexto absolutista da época era
necessária uma oposição à autoridade centralizada e arbitrária. O cerne da construção dessa
teoria baseia-se na separação das funções políticas e do direito, o que culminou, de certa
forma, na neutralização da política no exercício da atividade jurisdicional. A divisão do poder
do Estado em duas funções principais – criação e aplicação do direito – correspondia à ideia
da inibição recíproca, a fim de se coibir o exercício do poder de forma ilimitada e absoluta.
Impedia-se, assim, a superposição de um em relação aos outros.
Neste contexto, o Poder Judiciário orientava suas ações observando o princípio da
estrita legalidade, o que transformou a aplicação do direito em subsunção racional-formal dos
fatos às normas, divorciada de quaisquer referências políticas ou valorativas. Essa postura
ideológica de total vinculação do juiz aos ditames legais, não considerava os ideais de justiça
substancial e do próprio direito, gerando a errônea impressão de que o magistrado não podia
ser politizado, sob pena de afastar-se dos postulados da época (PODESTÁ, 2005, p. 163). O
Poder Judiciário tornou-se introspectivo e retroativo, já que se destinava tão somente a
garantir aplicação da lei de modo a reconstituir determinadas situações que não se
coadunavam com as normas pré-estabelecidas.
A ideia de que a prestação jurisdicional deveria corresponder aos ditames já
consagrados pelo ordenamento legal eleva o princípio da segurança jurídica, como dogma, de
forma a não admitir soluções para o caso concreto que não estivessem na lei. A atuação dos
magistrados era confinada aos limites do litígio interindividual, assinalando a ideologia
individualista que marcou o início da era moderna.
O distanciamento entre a prestação jurisdicional e as novas demandas e expectativas
sociais refletia a ausência de oxigenação do sistema jurídico, que arraigado pelo ideal
positivista refletia, ao reproduzir fielmente o direito positivo, uma distorção entre a realidade
e a decisão proferida.
As insuficiências desse modelo logo surgiram com a perda da certeza de que todas as
respostas às demandas estariam na lei. Passa-se a compreender a ciência do direito enquanto
ciência de compreensão hermenêutica (SILVA, 2004, p. 22), abandonando-se o paradigma
dogmático. Nesse sentido, Souza (1993, p. 112) afirma que para regular a contingência e
diversidade do sistema social, faz-se necessário transcender os meros limites da dedução,
reconhecendo que as normas haverão de ceder espaço aos princípios, mais flexíveis,
350
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rompendo a clausura imposta pela era da codificação. A dogmática jurídica há de ser vista
como ciência interpretativa de caráter funcional, na medida em que o juiz passa a operar
pautado em valores (LARENZ, 1997, p. 312) e princípios, voltados à concretização de
determinados fins considerados socialmente relevantes.
A higidez do sistema jurídico e sua contínua evolução dependem da abertura do
sistema jurídico. A ciência do Direito, como toda ciência, depende de mobilidade que se
perfaz por constantes rupturas de paradigmas e pela aceitação de novas ideologias.
O Estado Democrático de Direito requer um abandono da postura distante do Poder
Judiciário, reclamando uma postura ativa e participativa na concretização das políticas sociais
e dos objetivos da República. A atuação do juiz passa a ser fundamental na sedimentação de
uma pauta de princípios e valores que se orientam para a construção de um Estado voltado a
metas de implementação de crescimento sustentável.
Atribuir a implementação dessas metas apenas aos demais poderes é sujeitar-se à
instabilidade temporal típica do momento político, ao conflito de interesses e à malversação
tão inerente ao Poder Legislativo, o que torna de extrema importância a função judicial como
voz ativa na criação do Direito (DEL NERO, 1987, p. 48).
O papel de juiz é vital para que se confira efetividade à carta de princípios do Estado
Democrático, compatibilizando, no caso concreto, os direitos individuais e os fins do Estado,
apregoando não apenas o solidarismo, mas propiciando o desenvolvimento sustentável de
quaisquer políticas públicas. Assim, perfeitamente lícita e eficaz será a intervenção do
Judiciário como forma de conferir o necessário equilíbrio das relações privadas às metas de
sustentabilidade. Adverte-se:
Não no sentido pejorativo do juiz criar o Direito, de decisão extralegal de ditadura
do Poder Judiciário ou qualquer outro epíteto semelhante que se queira atribuir, nem
no sentido da utilização exclusiva da jurisprudência como fonte de direito, mas no
sentido do juiz vivificar no caso concreto, a norma abstrata e estática posta pela lei
(PODESTÁ, 2005, p. 168).
A adoção da principiologia constitucional pressupõe a repolitização do Poder
Judiciário e do Direito, a preocupação com o conteúdo abstrato das normas, a aceitação do
pluralismo jurídico e a legitimação das decisões fundamentadas não apenas na lei (AMARAL,
1997, p. 44-45).
O Estado Democrático de Direito mostra-se como um sistema aberto, que se alimenta
também da atividade jurisdicional criadora, razão pela qual não pode a atuação do juiz ser
trabalhada como mero ato mecânico de aplicação da lei, afinal, o sistema jurídico atual é
351
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dialético (LORENZETTI, 1998, p. 79). Nesse diapasão, a lógica da interpretação jurídica
deve ser argumentativa e não dedutiva (FIÚZA, 2004, p. 33).
Certo é que a solução dada a cada caso não poderá contrariar frontalmente o sistema
vigente. Há limites à argumentação, limites esses que são pautados pelos direitos
fundamentais (LEAL, 2002, p. 148-149). A atividade do magistrado deve ser cautelosa e
responsável, sob pena de desencadear um governo dos juízes, ou implementar juízes
legisladores (CAPELLETTI, 1999, p. 15).
O espaço normativo da interpretação jurídica pressupõe a legitimação da norma
criada. Assim, na lição de Leal (2002, p. 152), a decisão, na democracia juridicamente
institucionalizada, não pode preterir os direitos fundamentais, que funcionam como
verdadeiros limites à atividade interpretativa e não apenas elementos constitucionais de
construção hermenêutica. Para tanto, prossegue o autor, faz-se necessária a transição da
concepção do Estado como entidade, para a concepção de Estado como espaço
processualmente demarcado à discursividade: produção, recriação e aplicação dos direitos
positivados.
Em um sistema aberto-problemático, a construção da norma será a partir da
interpretação do sistema jurídico, de seus princípios, valores e regras, e sua consequente
aplicação à realidade fático-jurídica (SÁ, 2001). A legitimidade do processo jurisdicional
“criativo” se dará na construção argumentativa da aplicação dos princípios. A norma é o
sentido que se pode encontrar em um costume ou em um texto normativo, atribuído por meio
da argumentação jurídica, que não se revela pela discricionariedade do juiz no julgamento do
caso concreto, mas pressupõe a existência de uma comunidade (jurídica) linguisticamente
estruturada, o que significa que este sentido é atribuído por intermédio do discurso e da
universalização (GALUPPO, 1999, p. 208).
Os fundamentos do Estado Democrático de Direito devem ser vistos como princípios
normativos, “meios lógico-jurídicos positivados no instrumento constitucional” (LEAL, 2003,
p. 47), que não podem ser preteridos na atividade jurisdicional, mas que a atividade do juiz
não dever refletir apenas valores ou “ideário de artifícios para decisões prodigiosas” (LEAL,
2003, p. 47). A intervenção estatal não pode ser justificada apenas pelo controle estatal, a
intervenção pode e deve ser promocional.
A interpretação da norma de forma a aproximar-se do princípio por ela fixado não é
opção, mas pressuposto de legitimidade da solução jurídica. Assim, o princípio da
funcionalidade do direito subjetivo é o elemento legitimador da própria regra, de forma que o
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que vem explícito no princípio vem implícito na regra. Assim, o princípio deve ser observado
pelo jurista, pelo juiz e pelo legislador (LORENZETTI, 1998, p. 253).
A implementação de metas de sustentabilidade se dará, no caso concreto, na
vinculação do sistema jurídico a partir do problema (VIEHWEG, 1979, p. 99), considerandose que sempre haverá uma pluralidade de soluções para o litigio. Não se pode olvidar que os
efeitos jurídicos produzidos pela decisão terão direto impacto na realidade fática. Nesse
quadro, não é satisfatório ou suficiente que a decisão seja coerente apenas no âmbito do
sistema jurídico, deve ser adequada em relação às consequências produzidas, ou que irá
produzir, no mundo real (FIÚZA, 2004, p. 55).
O paradigma do Estado Democrático de Direito pressupõe que o Judiciário retrabalhe
construtivamente os princípios e regras do sistema para que possa satisfazer,
cumulativamente, a exigência de reforçar a crença na legalidade entendida como segurança
jurídica e o sentimento de justiça realizada, que se dará pela adequabilidade da decisão às
particularidades do caso concreto (CARVALHO NETTO, 1999).
A intensidade dos problemas planetários na contemporaneidade requer respostas
rápidas e adequadas. Há que se construir uma perspectiva de conformação do direito ajustado
às demandas desses novos tempos. Não basta apenas concebê-lo como instrumento de
pacificação dos conflitos, como sistema ou ordenamento de normas jurídicas estáticas que
objetivam assegurar direitos e exigir o cumprimento dos deveres. Deve-se pensá-lo como um
processo sociocultural de promoção, regulação e garantia das conquistas já obtidas também
para as próximas gerações.
4 SUSTENTABILIDADE: NOÇÕES GERAIS
Todas as ciências são constantemente desafiadas por novas situações que levam a
quebra dos paradigmas, marcando o violento choque entre teorias e ideais. Dessas discussões,
teorias consagradas cedem lugar a ideias nunca antes concebidas e à busca de novos ideais.
Assim é a ciência jurídica, principalmente na pós-modernidade, fase marcada pela renovação,
desconstrução e consequente reconstrução de paradigmas.
A relevância das questões ambientais nos dias atuais é de ordem tal que não poderia
deixar indiferentes o Estado e o Direito. Consequentemente, de forma paralela à juridicidade,
à democracia, à socialidade, à eticidade, a sustentabilidade ambiental surge como uma das
metas dos Estados Democráticos de Direito. Todavia, a sustentabilidade é tema bastante
353
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amplo que não se encerra apenas em uma visão ambiental. Ao contrário, permeia toda a
atividade humana.
A sustentabilidade pode ser compreendida como a busca do equilíbrio em qualquer
esfera do desenvolvimento, seja ele econômico, político ou social. Engles (2009) deixa clara a
correlação entre o aprimoramento da capacidade humana para transformar a natureza e o
desenvolvimento de relações sociais mais complexas. A lógica humana, segundo se extrai do
pensamento desse autor, parece sempre a mesma: utilizar os recursos naturais de maneira que
melhor possa gerar benefícios materiais imediatos, a quem os explorasse, sem qualquer
preocupação com os efeitos das ações humanas sobre o entorno.
O desenvolvimento das teorias e sistemas econômicos deu maior impulso a essa
atitude e o capitalismo, ao apregoar a circulação e acumulação de riquezas, acelerou o
processo de ocupação territorial. O crescimento populacional e as novas demandas
consumistas levaram à contratação em massa e, consequentemente, a utilização e o emprego
dos recursos naturais se elevaram significativamente trazendo impactos sem precedentes para
o meio ambiente (HANSEN, 2012).
A humanidade, dessa maneira, foi criando uma redoma de conveniências e
comodidades, subjugando o ambiente natural e, ao mesmo tempo, tentando empurrá-lo a uma
distância segura, como se de fato pudesse dele se desvincular ou distanciar. Assim, o
desenvolvimento do arado e a domesticação de animais levou o homem do nomadismo às
primeiras experiências espaciais territoriais. Depois, o incremento das técnicas de agricultura,
o aperfeiçoamento da tecnologia do maquinário e a larga utilização da energia aumentaram
sobremaneira a produtividade e conduziram o homem à apropriação cada vez maior dos
espaços, levando-o a lugares até então inacessíveis e confinando espécies de animais e plantas
a territórios determinados e restritos.
A força onipresente da natureza, tão cara ao homem primitivo, tornou-se apenas uma
referência longínqua para o homem da cidade que, na condução de suas máquinas
ultramodernas, parecia ignorar os efeitos de sua existência inconsequente para o planeta.
Talvez, a Conferência de Estocolmo de 1972 tenha sido um marco do despertar
oficial para as necessidades de um planeta devastado pela exploração desmedida. A
voracidade do crescimento descontrolado e a estupidez humana parecem ter colocado a
própria existência em risco. Diante de um quadro de degradação do meio ambiente natural, o
caos perpetrado pela humanidade na ocupação dos espaços acabou por engendrar um novo
354
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
ideal, uma nova força que se converteria num verdadeiro mantra ambientalista:
sustentabilidade ou desenvolvimento sustentável3.
A partir dessa noção, deve-se buscar conciliar as necessidades atuais do homem – e
sua habilidade na exploração dos recursos naturais – com as necessidades das gerações
futuras, o que se entende por responsabilidade intergeracional4. Tal tarefa revela-se, na
prática,
extremamente
complexa,
ainda
que
aparentemente
lógica
e
irrefutável
(CHALIFOUR, 2007, p. 25). Nesse contexto, todos os atores sociais precisam se envolver
conscientemente de modo a cooperar para a implementação de políticas de sustentabilidade.
Sustentabilidade é expressão polissêmica que tanto pode ser compreendida por meio
de um conceito ecológico, a qual visa à capacidade de atender às necessidades de um grupo
social no espaço que ocupa, bem como, um conceito político, na qual a sociedade estabelece
formas de organizar-se, delimitando seu crescimento, tendo em vista a observância das
condições dos recursos naturais, dos meios tecnológicos e do nível efetivo ao bem estar
social.
Esse enfoque, no entanto, é insuficiente, pois a sustentabilidade comporta diversos
outros fatores, com conceitos e características próprias – o que revela sua importância no
contexto socioambiental:
O conceito de sustentabilidade comportaria sete aspectos principais: (i)
sustentabilidade social: melhoria da qualidade de vida da população, equidade na
distribuição de renda e de diminuição das diferenças sociais, com participação e
organização popular; (ii) sustentabilidade econômica: públicos e privados,
regularização do fluxo desses investimento, compatibilidade entre padrões de
produção e consumo, equilíbrio de balanço de pagamento, aceso á ciência e
tecnologia; (iii) sustentabilidade ecológica: o uso dos recursos naturais deve
minimizar danos aos sistemas de sustentação da vida: redução dos resíduos tóxicos e
da poluição, reciclagem de materiais e energia, conservação, tecnologias limpas e de
maior eficiência e regras para uma adequada proteção ambiental; (iv)
sustentabilidade cultural: respeito aos diferentes valores entre os povos e incentivo a
processos de mudança que acolham as especificidades locais; (v) sustentabilidade
espacial: equilíbrio entre o rural e o urbano, equilíbrio de migrações,
desconcentração das metrópoles, adoção de praticas agrícolas mais inteligentes e não
agressivas á saúde e ao ambiente, manejo sustentável das florestas e industrialização
descentralizada; (vi) sustentabilidade política; no caso do Brasil, a evolução da
democracia representativa para sistemas descentralizados e participativos,
construção de espaços públicos comunitários, maior autonomia dos governos locais
e descentralização da gestão de recursos; (vii) sustentabilidade ambiental:
conservação geográfica, equilíbrio de ecossistemas, erradicação da pobreza e da
exclusão, respeito aos direitos humanos e integração social (FARIA, 2011, p. 17).
3
Preocupação tão constante na atualidade que foi o foco da Conferência das Nações Unidas sobre
Desenvolvimento Sustentável, a RIO+20, no mês de junho de 2012, na cidade do Rio de Janeiro/RJ.
4
Segundo Brundtland (1991, p. 46), desenvolvimento sustentável é “aquele que atende as necessidades do
presente sem comprometer as possibilidades de gerações futuras atenderem suas próprias necessidades”. Tratase, basicamente, da igualdade intergeracional.
355
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
A noção de sustentabilidade, de certa forma, revela a expressão da crise cultural,
civilizacional e espiritual que a humanidade atravessa. Capra (1982, p. 19) já vislumbrava, nas
últimas décadas do século XX, essa profunda crise mundial. Uma crise, segundo o autor, que
afetaria todos os aspectos da vida humana – saúde, relações sociais, economia, tecnologia,
direito e política. Uma crise de dimensões espirituais, intelectuais e morais, em tal escala que,
pela primeira vez na história, a humanidade estaria sendo obrigada a se defrontar com a real
ameaça de sua extinção e de toda a vida no planeta.
Esta crise direciona o homem a repensar seu posicionamento perante o planeta,
obrigando-o a discutir sua real dimensão de responsabilidade perante tudo o que existe – e não
apenas o seu entorno próximo – e, ainda, a responsabilizar-se diante daqueles que ainda nem
existem.
Na obra de Jonas (1995), são encontrados caminhos para a formulação de uma ética
da sustentabilidade fundada no princípio da responsabilidade. A responsabilidade, segundo o
autor, está umbilicalmente ligada à sustentabilidade ao referir-se ao futuro longínquo da
humanidade, estendendo-se até descendentes muito afastados no tempo, abarcando um futuro
ilimitado. A responsabilidade para com as gerações vindouras não admite pausas, é contínua e
perpétua.
5 SUSTENTABILIDADE E ATIVISMO JUDICIAL: A SUSTENTABILIDADE COMO
PRINCÍPIO SISTÊMICO ORIENTADOR DAS DECISÕES JUDICIAIS
Com a superação do positivismo, restou clara a insuficiência do modelo de sistema
hermético. O dogma da completude5 caiu por terra e passou-se a admitir que as normas
jurídicas resguardam alguma abertura – as denominadas franjas – a qual, nos casos difíceis,
poderia ser usada pelo magistrado para construir a norma compatível com essas situações
complexas, o que denota, de forma inquestionável, o poder criativo do juiz (CHAMON
JUNIOR, 2003, p. 52).
A era pós-positivista6 resgata a importância dos princípios, que reaparecem
reivindicando uma qualidade normativa de certa forma inovadora (BARROSO, 2001). De
5
“[...] princípio de que o ordenamento jurídico seja completo para fornecer ao juiz, uma solução sem recorrer à
equidade [...]” (BOBBIO, 1999, p. 19).
6
Compreende-se esse período pela superação dialética da antítese entre positivismo e jusnaturalismo, com a
distinção das normas jurídicas em regras e princípios, tendo como conteúdo os valores (CHAMON JUNIOR,
2003, p. 65).
356
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
meras premissas que estampavam enunciados amplos, fluídos e insertos de valores esparsos,
passam a ser tornar diretrizes normativas integrantes do sistema jurídico.
A diferença entre regras e princípios foi proposta por Dworkin (2002, p. 76). O autor
sustenta que princípios possuiriam uma dimensão de peso, sendo sua colisão resolvida
segundo a importância de cada um deles no caso concreto. Já as regras, por sua vez, teriam
estrutura lógica diferenciada dos princípios, sendo aplicadas caso estivessem presentes todos
os seus pressupostos fáticos. Trata-se do que Dworkin intitula de “tudo ou nada” (all or
nothing), ou seja, se houvesse conflito entre regras jurídicas, este seria resolvido no âmbito da
validade.
Já Alexy (1993, p. 83) propõe uma teoria mista de direitos fundamentais, sustentando
que podem se caracterizar por meio de regras ou princípios, mas que a diferença entre as suas
espécies normativas seria qualitativa. Os princípios relevantes para as decisões que envolvem
direitos fundamentais seriam aqueles que poderiam ser utilizados argumentativamente de
forma substancial. Segundo o autor, princípios podem ser compreendidos como:
Normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das
possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de
otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em
diferentes graus, e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das
possibilidades reais, como também das jurídicas (ALEXY, 1993, p. 86-87).
Com a pós-modernidade, a tendência é pensar os princípios cada vez mais como
constituintes lógicos que orientam os processos de comunicação e de argumentação.
Consequentemente, cada vez mais os princípios são empregados como princípios racionais, e
não causais, da realidade. Por isso mesmo a tendência está em se conceber que, no caso dos
princípios práticos, eles decorrem de padrões de escolhas contextualizadas, geralmente
determinadas pelo estágio moral da própria sociedade que se coloca a questão acerca dos
princípios (GALUPPO, 1999, p. 200).
Diante desse panorama, a atividade jurisdicional passa ganhar maior relevo, já que o
juiz não está mais adstrito a raciocínios dedutivos, à lógica dos silogismos, na resolução dos
casos. Ao contrário, o magistrado passa a usufruir de maior liberdade para proferir suas
decisões, que poderão ser fundamentadas nos princípios. Registre-se que os princípios, para
terem validade, não precisam estar positivados de forma expressa na ordem jurídica. Não há
uma enumeração taxativa, o que permite maior maleabilidade ao sistema jurídico que pode
agregá-los a qualquer tempo, sinalizando um movimento jurídico de incorporação de valores e
357
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
que procura refletir os anseios da sociedade. Segundo Freitas (2004, p. 69), o sistema jurídico
contemporâneo consiste em:
[...] uma rede axiológica e hierarquizada de princípios gerais e tópicos, de normas e
de valores jurídicos, cuja função é a de, evitando ou superando antinomias, dar
cumprimento aos princípios e objetivos fundamentais do Estado Democrático de
Direito, assim como se encontram consubstanciados, expressa ou implicitamente, na
lei maior.
Deve-se compreender sustentabilidade como princípio geral e sistêmico, já que a
ausência de previsão normativa explícita não se antepõe como pressuposto insuperável ao seu
reconhecimento. É que a sustentabilidade não surge como realidade tópica, resultado de
referência em dispositivo específico e isolado; ao contrário, nela se aninha um princípio
sistêmico, que se funda e decorre da leitura conjunta e do diálogo multidirecional das normas
que compõem a totalidade do vasto mosaico constitucional (PINTO COELHO; ARAÚJO,
2001). Pontes de Miranda (1972, p. 221-222) já afirmava:
Ninguém deve improvisar princípios jurídicos, como ninguém pode fazer regras
econômicas, políticas ou morais. É com tijolo que se constroem casas, e não com
palavras. É das relações sociais que se tiram os princípios, de modo que entre as leis
e eles pode haver paralelismo e a ineficácia daquelas será proporcional à
discordância entre uns e outros. Na vida, toda a aplicação tenderá para reduzir as leis
aos princípios e a perfectibilidade está em formulá-las o mais próximas deles que for
possível. Todos os princípios têm conteúdo especial (ético, político, econômico,
etc.), ou geral (social), e seria preciso modificar a substância social para modificar,
ou para suprimi-los. É pela indução que, das soluções mostradas nas relações que se
observam, pode tirar-se o princípio; depois, pela dedução, aplicar-se-á aos casos
análogos.
Ademais, a sustentabilidade é decorrente do primado da dignidade humana que se
irradia em diversos outros princípios como: da obrigatoriedade de proteção ambiental; da
prevenção ou precaução; da ampla informação ambiental; da função social dos contratos e da
propriedade; do poluidor-pagador; da compensação; da responsabilidade; da solidariedade, da
educação ambiental. Decorre, o princípio da sustentabilidade, ainda da combinação de outras
normas (princípios e regras) insertas na mesma carta constitucional, em tratados e convenções
por ela recepcionados e, ademais, decorrentes legislação infraconstitucional pertinente.
Os princípios importam em tal a generalidade e abstração que propiciam a asserção
de que sua interpretação deve ser ampla, móvel e evolutiva, o que implica dizer que não
comportam encarceramento, rigidez. Cada caso ao ser julgado deve ser analisado como um
novo caso, irrepetível como os fatos da história, único, que requer a interpretação das normas
de todo o sistema jurídico de forma sistematizada e não apenas de forma isolada e literal,
358
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
também considerando e sopesando princípios e, especialmente, os valores sociais e jurídicos
contemporâneos, para apresentar solução que se apresente como a única adequada e justa que
o caso comporta, e que guarde aceitação racional segundo entendimento do cidadão médio
(OLIVEIRA, 1997).
A sustentabilidade encontra-se habitualmente associada a um conteúdo ambiental,
mas como salientado no tópico anterior, essa é apenas uma caracterização primária, pois o
meio ambiente é apenas um de seus alicerces fundamentais. A sustentabilidade pode ser
compreendida como um comando constitucional abrangente, a orientar as demais normas
jurídicas e as decisões judiciais:
Partindo da Constituição Federal e irradiando-se por todo o ordenamento jurídico
infraconstitucional, a sustentabilidade como princípio constitucional possui uma
estruturação fundamentalmente interdisciplinar e transdisciplinar [...]. Compreender
a sustentabilidade como um princípio constitucional não somente ambiental, mas
também como princípio constitucional interdisciplinar, social, empresarial,
administrativo e econômico, constitui uma importante tarefa da dogmática jurídica
contemporânea, em busca da efetividade das idéias que gravitam no entorno da
solidariedade e da dignidade como balizas do Estado Democrático de Direito. Nesse
sentindo, busca-se evidenciar a sustentabilidade em seu caráter sistêmicoconstitucional, o que implica uma compreensão interdisciplinar desse principio
basilar não somente no viés ambiental, mas também na perspectiva econômicoempresarial e social, numa visão que se quer integrada e integrativa desses âmbitos,
quando alçados ao plano constitucional (PINTO COELHO; ARAÚJO, 2001, p.
263).
Ao se compreender sustentabilidade como princípio, sua importância se evidencia no
ordenamento jurídico, o que justificaria o embasamento e fundamentação de decisões do
Poder Judiciário a fim de dar efetividade ao texto constitucional. Manifesta-se a
sustentabilidade como base fundamental dos direitos, sendo eles constitucionais e
organizacionais, além de guardar estreita relação tutelar com o direito ao meio ambiente e ao
primado da preservação dos bens naturais que possibilitam a sobrevivência digna e
equilibrada dos seres humanos (MILARÉ, 2007).
O princípio da sustentabilidade ambiental é corolário do princípio do não-retrocesso
na seara ambiental. Ora, a sustentabilidade só é possível se guiada por ações permanentes e
responsáveis, seja do Estado, seja dos particulares. Nessa ordem de ideias, a participação do
juiz é fundamental ao atribuir, a cada caso concreto, a possibilidade de efetivação dos ideais
sustentáveis. Busca-se um novo horizonte hermenêutico (CALDEIRA, 2012), que exige do
juiz uma participação efetiva na construção de decisões comprometidas com o crescimento
sustentável.
359
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Ao tratar do meio ambiente, por exemplo, deve-se pensar que não apenas as leis
ambientais têm a função de garantir a sustentabilidade ambiental. A necessária proteção ao
meio ambiente exige atuação mais direta e eficaz, que pode se dar a partir da construção de
uma decisão que exalte o caráter de sustentabilidade a ser observado em todas as relações
jurídicas. Dessa forma, deve-se incitar também a participação do cidadão para a
implementação dessas metas. Nesse sentido: “La participation et l’information du public
permet de garantir un niveau de protection sui sant grâce à un contrôle citoyen permanent”
(PRIEUR, 2011, p. 255).
A reflexão de Ricouer (1991, p. 43) denota a insuficiência da resposta dogmática
clássica e a crise no direito contemporâneo que demanda a busca de novas respostas e
decisões fora do âmbito restrito de aplicação da lei. Trata-se da construção de uma concepção
ética e solidarista que se caracteriza pela subsistência de duas responsabilidades não
excludentes ligadas a sustentabilidade: a responsabilidade do bem – que obriga a preservação
– e a responsabilidade do melhor – que determina o progresso e o aperfeiçoamento qualitativo
da vida humana.
A Constituição da República de 1988 é esclarecedora e não deixa margens para
dúvidas: o modelo político instituído no Brasil tem, como um de seus “objetivos
fundamentais”, o “desenvolvimento nacional” e a erradicação da “pobreza” (artigo 3º, II e
III), norte esse que igualmente informa a necessária cooperação com outras nações, que
observará, entre outros princípios, “o progresso da humanidade” (artigo 4º, IX). Ademais,
dispõe o artigo 225 da CR/88:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público
e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações.
Ao abraçar o “progresso da humanidade” na forma de conceito informador de seu
sistema, o texto constitucional demostra uma aspiração constitucionalizada de melhoria
universal: progresso planetário que inclui seres humanos e todas as bases da vida na terra. A
sobrevivência atual e futura da humanidade depende dessa prosperidade.
Por progresso
haverá de se entender não apenas prosperidade material, pois, ao certo, inclui a ampliação e
fortalecimento permanente do arcabouço de antigos e novos valores intangíveis, muitos deles
coletivos por excelência e subprodutos da ética da solidariedade e da responsabilidade. A
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
prosperidade imaterial coaduna-se com o conteúdo da sustentabilidade que tem caráter etéreo
e impalpável, mas de indiscutível realidade (BENJAMIN, 2004, p. 11).
No paradigma liberal, o isolamento político e social do Judiciário reduziu a sua
atuação e a aferição de sua legitimidade se dava a priori. No entanto, a atividade judicial na
contemporaneidade revela que sua legitimidade é identificada com base na adequação da
conduta judicial aos princípios constitucionais. Este pensamento indica que para resolver o
caso de forma adequada, há que considerar-se não apenas a regra positiva, mas os princípios
jurídicos que devem ser aplicados:
[...] nos limites e nos contornos das circunstâncias fáticas (adequabilidade), o que
não quer dizer que eles sejam propriamente determinados por essas circunstâncias.
Antes, eles funcionam como pressupostos que orientam os processos de aplicação
das regras e dos próprios princípios jurídicos, que transferem correção a esses
processos (GALUPPO, 1999, p. 201).
O Estado Democrático de Direito não aceita mais a postura desidiosa e passiva do
Judiciário. O juiz deve concretizar o significado das declarações constitucionais e, nesse
sentido, não pode executar uma função apenas jurídica, técnica e secundária, mas, ao
contrário, há de comprometer-se a desempenhar um papel ativo. É chamado a contribuir para
a efetivação dos princípios constitucionais buscando dar-lhes densidade real e concreta. O
magistrado, atento às demandas no mundo contemporâneo, deve, ao julgar o caso, não apenas
aplicar o comando da lei, mas avaliar as repercussões sociais, políticas, econômicas,
ambientais e outras que a decisão irá surtir.
É o exercício ativo da atividade jurisdicional, não apenas conformando suas decisões
com as regras legais, mas buscando soluções que se coadunem com os valores condutores do
Estado Democrático de Direito. Na verdade, as atividades política e judicial estão
intimamente ligadas no Estado de direito. Nesse sentido:
Otro aspecto de la politización del juez está en el hecho de que las constituciones
modernas contemplan normas de contenido poroso, a ser complementado por la
práxis. Y el Poder Legislativo derivado, a su vez, en muchas situaciones, no sólo no
se esfuerza para rellenar el vacío, sino prima por seguir la misma técnica de la
legislación abierta, indeterminada. Incapaz de solucionar algunos mega-conflictos
modernos, muchas veces el legislador acaba atribuyendo al Poder Judicial la
responsabilidad de moldar la norma final aplicable. El Poder Judicial no sólo pasó a
solucionar los conflictos intersubjetivos de intereses, según el modelo liberal
individualista, sino también a actuar como órgano calibrador de tensiones sociales,
solucionando conflictos de contenido social, político y jurídico, además de
implementar el contenido promocional del Derecho contenido en las normas
constitucionales y en las leyes que consagran derechos sociales. De cualquier forma,
“esa politización del juez, que es innegable dentro del Estado Constitucional de
Derecho, concebido como fuente y límite del derecho, no puede, sin embargo, llegar
361
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
al extremo de permitirle la sustitución de la racionalidad jurídica por la racionalidad
política. Ese es hoy un problema que ronda la legitimación democrática de la
jurisdicción […]” (FERRAJOLI, 1988, p. 5).
A sustentabilidade pode ser compreendida como uma proposta que pretende a
implementação de um desenvolvimento ético e solidário, e não apenas visando um horizonte
de desenvolvimento técnico dissociado da implementação dos primados constitucionais.
Nesse sentido, o Poder Judiciário não pode se manter silente e distante, já que a participação
do juiz é fundamental para dar efetividade a metas de sustentabilidade. As decisões judiciais
podem ser instrumentos de implementação de práticas sustentáveis por meio, por exemplo, da
revisão dos contratos que não atentam para o desenvolvimento sustentável. A sustentabilidade
assume a condição de um dos mecanismos para a afirmação efetiva de um direito
constitucional inclusivo, solidário e altruísta.
Admitir a sustentabilidade como princípio implica incorporar de modo definitivo ao
horizonte da intervenção transformadora do homem (mundo das necessidades atuais) o
compromisso com a perenização da vida. Propõe-se a adoção da sustentabilidade como
norteadora de todo o agir humano de forma a transformar suas ações em resultados sólidos e
efetivos para garantir o seu verdadeiro objetivo.
A sustentabilidade não pode ser concebida como mera opção, há de ser adotada
como orientação necessária e irrefutável a fim de se conservar mais capital natural para
futuras gerações e, portanto, todos os mecanismos de sua implementação devem ser
envidados, concentrando todas as esferas do Poder para a assunção dessa meta.
Faz-se necessário um giro na perspectiva de compreensão do mundo pelo ser
humano. As relações privadas contemporâneas não podem ser compreendidas apenas como
palco de satisfação de necessidades e desejos imediatos das partes, mas também espaço para
que se alcance o desenvolvimento sustentável.
As exigências da sustentabilidade envolvem a cooperação entre os Estados, entre o
Estado e os cidadãos ou grupos da sociedade civil na promoção de políticas públicas
(econômicas, educativas, de ordenamento), como também o dever de adoção de
comportamentos públicos e privados focados nessa meta, de modo a dar expressão concreta à
assunção de condutas comprometidas com o bem-estar das gerações futuras. Nesse raciocínio,
a atuação jurisdicional é crucial para o fomento de ações sustentáveis, já que pode servir
como limite de promoção à atuação do indivíduo. A autonomia passa então a ser conformada
por metas de sustentabilidade, o que leva a ideia do Estado de Direito do Ambiente, entendido
por Canotilho (1999, p. 45) como:
362
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Estado de direito do ambiente quer dizer indispensabilidade das regras e princípios
do Estado de direito para se enfrentarem os desafios impostos pelos desafios da
sustentabilidade ambiental. [...] Não nos admirará também a inseparabilidade do
Estado de ambiente do princípio democrático. A afirmação desta nova dimensão do
Estado pressupõe o diálogo democrático, exige instrumentos de participação,
postulado princípio da cooperação com a sociedade civil. O Estado de ambiente
constrói-se democraticamente de baixo para cima; não se dita em termos
iluminísticos e autoritários de cima para baixo.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procurou-se demonstrar a crescente importância do ativismo judicial, como uma
atuação consciente, politizada e criativa do juiz no sentido de aplicar, a cada caso concreto,
uma decisão que se coadune com a principiologia pretendida pelo Estado Democrático de
Direito.
A possibilidade de uma atuação mais livre e politizada do magistrado é demonstrada
por meio da inclusão de cláusulas gerais no ordenamento jurídico. A cláusula geral, ao criar
aberturas no ordenamento, reconfigura-o de modo a permitir, na aplicação do direito ao caso
concreto, um conteúdo de dinamicidade social. Essa técnica legislativa permite a conjugação,
pelo magistrado, dos elementos pré-determinados pela lei com elementos ainda não presentes
na legislação.
Demonstrou-se que a ideia de completude do sistema jurídico de regras é obsoleta, já
que poderia propiciar, por ausência de previsão legal, a efetiva tutela dos interesses dos
sujeitos. E mais, sustentou-se que a decisão judicial deve revelar a adoção de práticas de
implementação de princípios e valores pretendidos pela sociedade.
Nesse contexto, a sustentabilidade, na sua multiplicidade conceitual, é compreendida
como um princípio sistêmico a orientar as decisões judiciais e a legitimar a atuação criativa do
juiz, principalmente se considerada a responsabilidade do homem com as gerações futuras.
Assim, a atuação jurisdicional é fundamental para o fomento de ações sustentáveis,
conformando a autonomia, de certa forma, às metas de sustentabilidade.
Como principio jurídico, evidencia-se o conteúdo de generalidade e abstração
assumido pela sustentabilidade no atual sistema, bem como sua importância, a propiciar uma
interpretação ampla, móvel e evolutiva de seu conceito. Defende-se que sua promoção
depende também da atuação do Poder Judiciário, que poderá conferir, sempre que possível, a
cada caso concreto, uma decisão comprometida com a efetivação do princípio da
sustentabilidade.
363
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Incorporar tal conceito como princípio orientador do ordenamento jurídico implica a
aceitação definitiva de que qualquer intervenção transformadora do homem deve ter o
compromisso com a perenização da vida.
As relações privadas, no contexto atual, não podem ser compreendidas tão somente
como espaço de satisfação de necessidades e desejos imediatos dos particulares, mas hão de
ser compreendidas também como palco para que se alcance o desenvolvimento sustentável.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
O CAPITALISMO GLOBAL E REFLEXÕES SOBRE A SOLIDARIEDADE1
RESUMO
As teorias econômicas do capitalismo procuram convencer seus interlocutores de que a ideia
central no que toca ao respectivo surgimento se identifica pelo regime de troca. Entretanto, tem,
historicamente, o capitalismo, razões iniciais bélicas de conquista e subjugação dos povos com
exploração das gentes e das economias locais, numa franca acumulação de riquezas de toda
ordem.
Os países que adotaram a belicidade como razão de acumulação de riquezas ao subjugarem os
povos em regime de escravidão passaram a ser seus senhores; os países subjugados pelos
senhores passaram a ser seus escravos. Dessa dicotomia inicial, onde a raiz econômica do mais
forte fez prevalecer em escravidão o mais fraco, tem-se a estrutura do capitalismo.
No século XIX foi estabelecido novo marco econômico, nessa história que se seguia, no qual a
Revolução Industrial incutiu mudanças na ordem do capitalismo inicial; não foram mais
necessários movimentos bélicos de conquistas, mas, sim, movimentos de avanços econômicos
em massas que se traduziram em dependência econômica dos países escravos aos países
senhores pela via do consumo entre os povos, pela via dos empréstimos financeiros, pela via da
falência econômica dos países em desenvolvimento etc.
No séc. XX, na era da globalização econômica e a planificação dos territórios pelo acesso
proporcionado pelas novas tecnologias em rede, há verificação de acirradas disputas
concorrenciais; quer pelo avanço e domínio econômico entre os países senhores, quer em face
dos países em desenvolvimento, cuja ferramenta de subjugação, além da riqueza, é a tecnologia
da informação.
No séc. XXI, na nossa atual era da tecnologia aplicada a todos os setores das sociedades
espalhadas pelo mundo, não é diferente. A concorrência acirrada se dá de forma qualificada, em
tempo e espaço reais; continua a subjugar povos conduzindo a humanidade em ameaça de
extinção e aos grandes monopólios econômicos, donde países em posição de destaque,
representando agentes de resistência ao sistema imposto, se reúnem para mitigar e impedir a
subjugação dos povos, cuja proteção da dignidade da pessoa humana conduz a um novo ciclo de
pacificação social: o da solidariedade internacional. Não para destruir, impedir ou desapropriar o
capitalismo das suas irrecuperáveis vertentes, mas, para impor ao gigante, um viés social, no
qual, possa garantir aos cidadãos do mundo, vistos de forma igualitária, patrimônio mínimo e
dignidade mediante o estabelecimento de um constitucionalismo internacional que contenha
cláusulas pétreas de solidariedade internacional entre os povos.
PALAVRAS-CHAVE
CAPITALISMO; GLOBALIZAÇÃO; NOVAS TECNOLOGIAS;
INTERVENÇÃO INTERNACIONAL; SOLIDARIEDADE SOCIAL.
CONCORRÊNCIA;
1
PELLIN, Daniela. Advogada. Especialista em Direito Processual Penal e Direito Empresarial pela FMU. Mestre
em Direito na Sociedade da Informação pela FMU. Professora de graduação e pós graduação em Direito
Empresarial na UNINOVE.
368
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THE GLOBAL CAPITALISM AND REFLECTIONS ABOUT THE SOLIDARITY
ABSTRACT
The economical theories of the capitalism try to convince their speakers that the central idea in
what plays to the respective birth identifies for the change regime. However, he/she has,
historically, the capitalism, warlike initial reasons of conquest and subjugation of the people with
the people's exploration and of the local savings, in a frank accumulation of wealth of every
order.
The warlike countries to the they subdue the people in slavery regime passed to be their
gentlemen; the countries subdued by you passed to be their slaves. Of that initial dichotomy,
where the economical root of the more fort made to prevail in slavery the weakest the structure
of the capitalism is had.
In the century XIX new economical mark was established, in that history that was proceeded, in
which the Industrial Revolution infused changes in the order of the initial capitalism; they were
not more necessary warlike movements of conquests, but, yes, movements of economical
progresses in masses that they were translated in economical dependence of the slave countries
to the countries gentlemen for the road of the consumption among the people, for the road of the
financial loans, for the road of the economical bankruptcy of the developing countries etc.
In the century XX, in the era of the economical globalização and the planning of the territories
for the proportionate access for the new technologies in net, there is verification intransigent
disputes concorrenciais, he/she wants for the progress and economical domain among the
countries gentlemen, he/she wants in face of the developing countries, whose subjugation tool,
besides the wealth, is the technology of the information.
In the century XXI, in our current one was of the applied technology the all of the sections of the
dispersed societies for the world, it is not different. The intransigent competition if he/she gives
in a qualified way, in time and space Real; he/she continues to subdue people driving the
humanity in extinction threat and to the great economical monopolies, from where countries in
prominence position, representing resistance agents to the imposed system, they meet to mitigate
and to impede the subjugation of the people, whose protection of the human person's dignity
leads to a new cycle of social pacification: the one of the international solidarity. Not to destroy,
to impede or to dispossess the capitalism of their unrecoverable slopes, but, to impose the giant
of the capitalism, a social inclination, in which, it can guarantee to the citizens of the world, seen
of equalitarian form, minimum patrimony and dignity by the establishment of an international
constitucionalism that it contains constitutional terms of international solidarity among the
people.
KEY-WORDS
CAPITALISM;
GLOBALIZATION;
NEW
TECHNOLOGIES;
INTERNATIONAL INTERVENTION; SOCIAL SOLIDARITY.
COMPETITION;
369
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1. O capitalismo e as novas tecnologias
Para a franca e transparente investigação do tema não se pode olvidar de considerar,
além das teorias econômicas, as teorias históricas, uma vez que ambas não encontram pontos
pacificadores de convergência quanto ao capitalismo e suas origens, mas nos prestam à reflexão
acerca do ponto culminante da pesquisa, que é a solidariedade internacional.
Dizer que o capitalismo se compreende a partir de Adam Smith2;3;4 é simplificar o
instituto que surte efeitos sociais, políticos, econômicos, em cadeia, pelo mundo, uma vez que
atravessa séculos, lentamente, conduzindo o homem por onde quer que pense ou se faça sentir, a
partir da Europa Ocidental.
O capitalismo é definido pelo modo particular de produção de bens; mercadorias, para
consumo das gentes e…
é caracterizado por quatro conjuntos de arranjos institucionais e comportamentais:
produção de mercadorias, orientada para o mercado; propriedade privada dos meios de
produção; um grande segmento da população que não pode existir, a não ser que venda
sua força de trabalho no mercado; e comportamento individualista, aquisitivo,
maximizador, da maioria dos indivíduos dentro do sistema econômico 5.
No surgimento do capitalismo, alguns países adotaram o regime da belicidade para
culminar com a exploração e subjugação de países coloniais – gerou os chamados santuários
“Smith se distingue de todos os economistas que o antecederam, não só por sua formação acadêmica e pela
vastidão de seus conhecimentos, como também porque foi o primeiro a elaborar um modelo abstrato completo e
relativamente coerente da natureza, da estrutura e do funcionamento do sistema capitalista. Notava que havia
importantes ligações entre as principais classes sociais, os vários setores de produção, a distribuição da riqueza e da
renda, o comércio, a circulação da moeda, os processos de formação dos preços e o processo de crescimento
econômico. Baseava muitas de suas recomendações sobre política nas conclusões tiradas de seu modelo. Esses
modelos sistemáticos do capitalismo, considerados no todo ou em parte, caracterizaram as obras da maioria dos
economistas importantes, a partir de Smith. O modelo de Smith é igualmente interessante, quer se examinem suas
coerências lógicas, quer suas contradições. Ele foi o primeiro a exercer influência no moderno pensamento
econômico; a maioria dos economistas dos séculos XIX e XX, cujos pontos de vista são bastantes conflitantes, pode
associar muitas de suas idéias importantes a conceitos formulados sistematicamente, pela primeira vez, por Smith,
em A Riqueza das Nações”. In HUNT, E. K. História do pensamento econômico. 2º ed. Rio de Janeiro: Elsevier,
2005; pág. 37.
3
“Com o iluminismo, a atuação e intervenção estatal na economia começam a ser modificadas. Em 1776, Adam
Smith, em a Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, escreve acerca da não intervenção do
Estado no mercado, pois ele se auto-regularia pelas leis da oferta e da procura, a concorrência, algo que ficou
conhecido como ‘a mão invisível’. In BAGNOLI, Vicente. Direito e poder econômico. Rio de Janeiro, Elsevier:
2009; pág. 43.
4
“Ainda acerca do pensamento de Smith, Amartya Sen escreve que ‘é precisamente o estreitamento, na economia
moderna, da ampla visão smithiana dos seres humanos que pode ser apontado como uma das principais deficiências
da teoria econômica contemporânea. Esse empobrecimento relaciona-se de perto com o distanciamento entre a
economia e a ética”. In BAGNOLI, Vicente. Direito e poder econômico. Rio de Janeiro, Elsevier: 2009; pág. 43.
5
HUNT, E. K. História do pensamento econômico. 2º ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005; pág. 02.
2
370
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econômicos para empresas comerciais européias instalarem-se nesse primeiro momento do
capitalismo com extração das respectivas matérias-primas locais, impondo regime de captura e
escravidão dos povos conquistados e, sobretudo, extração de metais preciosos e exploração das
economias naturais6 locais; causaram o enriquecimento dos países desbravadores, especialmente,
da Europa, possibilitando a monetização de grande parte da economia européia e o investimento
necessário à produção de mercadorias na era da Revolução Industrial que viria, posteriormente.
Vicente Bagnoli menciona esse período como sendo a fase do “capitalismo comercial”
ou fase de “acumulação primitiva” – e que antecede, justamente, aos ideários de Adam Smith.
Ensina que os colonizadores da América (Portugal e Espanha) exploravam o ouro e a prata dos
países colonizados e acumulavam tais riquezas com o fim de comprar em outros reinos tudo o
que necessitavam, a exemplo, da Inglaterra, cujo ouro e prata deixados lá, mais tarde, serviram
para financiar a Revolução Industrial de 17607:
Com o ímpeto da industrialização (substituição da máquina ferramenta pela máquina
vapor no sistema fabril), início do século XIX, e daí por diante, muitos países foram subjugados
tendo em vista a força e o lucro real ou potencial das empresas gigantescas sediadas em seus
territórios, donde advém o Império capitalista - que à época, não tinha qualquer freio sequer, para
equilibrar as relações entre os países senhores e os países subjugados – escravizados, embasados
na teoria do mercado auto-regulável de Smith e a ausência total de intervenção estatal na
realidade econômica.
Vicente Bagnoli, explica os efeitos atinentes a esse período histórico de evolução do
poder econômico:
(...) Desenvolve-se também uma nova política econômica, a política do laissez-faire, ou
liberalismo econômico, que não aceita mais a intervenção do Estado na vida econômica.
Contudo, o resultado dessa liberalização foi o surgimento de grandes sociedades
Na luta imperialista para subjugar as economias naturais (que não são de mercado) havia quatro objetivos: o
primeiro era tomar posse das enormes quantidades de matérias-primas desses países, fosse pela propriedade direta,
fosse pelo barateamento de seu preço; o segundo era destruir os métodos tradicionais de produção, para afastar todo
o trabalhador de qualquer meio de produção, criando assim, operários assalariados economicamente dependentes
que tinham que vender sua força de trabalho para poder viver, o terceiro era transformar a economia natural em uma
economia de mercadorias ou de mercado; o quarto era separar a indústria do comércio e da agricultura que, em
geral, constituíam um todo interligado em uma economia natural”. In idem; pág. 343.
7
BAGNOLI, Vicente. Direito e poder econômico. Rio de Janeiro, Elsevier: 2009; pág. 42.
6
371
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anônimas, grandes conglomerados de empresas (holdings) e acordos internacionais para
dividir mercados e limitar a concorrência (cartéis), superando a fase do capitalismo
liberal e concorrencial. O chamado imperialismo ou neo-colonialismo é acirrado,
principalmente na segunda metade do século XIX. Surgem o proletariado e novas
doutrinas sociais, como o socialismo, o anarquismo e o sindicalismo 8.
No final do século XIX, para se ter noção do que se está a considerar, a Ásia, também,
estava ocupada pelas potências capitalistas européias: os ingleses tomaram o Afeganistão; em
1907, a Pérsia foi dividida entre a Rússia e a Inglaterra; em 1887, todo o território da Indochina
estava ocupado pelo domínio francês. Os ingleses e os alemães tomaram parte da Nova Guiné e
quase todas as ilhas ficaram com os holandeses. Os norte-americanos também participaram da
ocupação e subjugação dos povos, conquistando, na Primeira Guerra Mundial (1914), Samoa,
Ilha de Midway, Porto Rico, Guam, Filipinas, Tutuíla, Cuba, República Dominicana, Haiti,
Nicarágua e a Zona do Canal do Panamá.
No início do século XX, a França tinha conquistado 40% do território africano; a
Inglaterra havia conquistado 30%; a Alemanha, Bélgica, Portugal e Espanha somaram, juntas,
23% sobre o mesmo território.
Para os governos capitalistas da época, as conquistas representavam avanço do
capitalismo e, sobretudo, enriquecimento. Os povos que eram conquistados viviam em
sociedades não-capitalistas, sem lei de mercado, de culturas não-pecuniárias tradicionais,
representando barreiras comerciais e fator de empecilho na instalação dos grandes grupos
econômicos para a exploração sistêmica do capitalismo, por isso, as guerras eram justificadas e
desejáveis.
Não bastasse a imposição bélica, após a ocupação e subjugação do povo de um país,
eram destruídas todas e quaisquer formas de sobrevivência natural, bem como, todos e qualquer
modo de vida tradicional, inclusive, cultural do local, estabelecendo, desde então, à força da
ocupação, a dependência econômica, num processo brutal de intervenção e interferência na
comunidade subjugada, uniformizando e padronizando o mercado de consumo, lentamente,
resultando, destarte, ser, no próprio local subjugado, a questão da troca mais favorável, na
medida em que a mão-de-obra – item de troca para o poder do consumo - era mais conveniente
8
BAGNOLI, Vicente. Direito e poder econômico. Rio de Janeiro, Elsevier: 2009; pág. 46.
372
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do que a do país desbravador, passando, assim, à dominação dos países subdesenvolvidos pelo
Imperialismo econômico.
A este fenômeno de exploração sistêmica, antes de Smith, Marx deu o nome de
“acumulação primitiva”, a qual previa a conjugação de dois itens essenciais à exploração
econômica sistemática: dependência universal de mercado e relações comerciais amplas – a
chamada “economia internacional9”.
É a partir da Revolução Industrial que se constata o início da economia de mercado,
livre comércio e o padrão-ouro; estabelecidos, inicialmente, na Inglaterra, mas, disseminando-se,
rapidamente, no último terço do século XIX (1920), de forma globalizada entre os demais países
espalhados pelo globo, cujos efeitos podem ser assim elencados:
Na economia a Revolução Industrial significou: (i) a revolução nos meios de
comunicação, transportes, agricultura e pecuária; (ii) o desenvolvimento de uma nova
política econômica (liberalismo econômico); (iii) a procura de colônias fornecedoras de
matéria-prima e consumidores de manufaturados (neo-colonialismo)i; (iv) a procura de
zonas de influência econômica e pontos estratégicos; (v) a divisão do mundo em países
adiantados ou produtores industriais e países atrasados ou produtores de matéria-prima;
(vi) o investimento de capitais da Europa industrializada em outros países; (vii) o
interesse inglês no fim do tráfico negreiro e na independência da América Latina; e
(viii) o desenvolvimento intenso do sistema fabril. Socialmente implicou: (a) a
separação do capital e dos meios de produção e do trabalho; (ii) o aumento da população
européia que irá determinar uma corrente migratória principalmente para as Américas e
também África e Índia; (iii) o êxodo rural; (iv) o surgimento das associações operárias
(trade unions, espécie de sindicatos) em razão do crescimento do proletariado e a
9
“Os economistas clássicos nunca voltaram suas investigações teóricas para a questão do imperialismo (e até hoje
não fizeram isso). Isso não nos deve surpreender, pois, para eles toda teoria econômica era apenas uma extensão de
uma elaboração da teoria da troca. Aspectos do imperialismo que não envolviam troca econômica puramente
voluntária eram definidos como ‘não-econômicos’, não tendo qualquer interesse para esses economistas; aspectos
que envolviam troca não eram diferentes de qualquer outra troca – ambas as partes se beneficiavam e havia
harmonia. Na teoria econômica neoclássica, passou a haver um campo de investigação especial chamado
‘economia internacional’. Tratava quase que inteiramente do desenvolvimento das idéias de Smith, Ricardo e Mill,
que mostravam que os ganhos com o comércio internacional eram essencialmente os mesmos que os obtidos com
qualquer forma de especialização e troca. De acordo com a teoria neoclássica, as principais diferenças entre trocas
internacionais e trocas internas em uma mesma nação baseavam-se, primeiramente, no fato de os governos poderem
criar tarifas e outras restrições ao livre-comércio internacional e, em segundo lugar, no fato de que entravam em
jogo diferentes moedas. A economia internacional neoclássica consistia basicamente em provas utilitaristas de que
todas as restrições ao comércio deveriam ser abolidas, para que o livre-comércio beneficiasse a todas as nações, de
maneira comumente e harmoniosa e segundo teorias dedutivas complicadas, visando a mostrar como seriam
determinadas as taxas de câmbio entre diferentes moedas, em condições de concorrência pura e harmonia
internacional”. (g.n.) in HUNT, E. K. História do pensamento econômico. 2º ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005;
pág. 333/334.
373
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
pressão decorrente na burguesia; e (v) o desenvolvimento de novas doutrinas sociais
como o socialismo e o anarquismo10.
Fábio Konder Comparato e Calixto Salomão Filho expõem a respeito desse momento
histórico que no campo econômico, a concentração do poder acentuou-se, sobremaneira, a
partir da revolução industrial, acarretando transformações sociais de que ainda não nos demos
conta, integralmente11.
Tal expansão do capitalismo industrial ocorreu apoiada na criação de estruturas
societárias das empresas, na forma anônima, cujo elemento dinâmico, que põe em marcha o
mecanismo societário e empresarial, é um poder que se exerce indiretamente entre os sócios,
através dos órgãos impostos pela lei: é o controle12.
Vicente Bagnoli menciona que esse poder exercido pela grande empresa se evidencia
pela organização que emprega o capital e mobiliza as aptidões imperativas para a sua atuação
no mercado, sobretudo, para fazer previsões e trabalhar sobre essa perspectiva, tornando esses
dados confidenciais. E mais: que os consumidores passaram a ser objeto de manobras tendo em
vista a produção em massa, a tecnologia de ponta, a racionalização de custos e preços13.
John Kenneth Galbraith observou que no contexto da mudança macro econômica, o
homem passou a figurar como agente sujeto à autoridade do mercado, consoante haver uma
economia planejada, inclusive, que a iniciativa do que se deve produzir não vem mais do
consumidor, mas do próprio mercado que expede instruções do que será consumido,
influenciando crenças e valores sociais14.
Todavia, os estudiosos da economia clássica – neoliberal – sustentaram e sustentam que
o capitalismo seria eterno e que a utilidade, a troca, as rendas, os lucros e os salários eram a mola
propulsora da humanidade, numa cadeia de benefícios infindáveis à espécie humana, a qual teve
sobre seus respectivos países, os efeitos da destruição das culturas tradicionais e das sociedades
não-capitalistas.
BAGNOLI, Vicente. Direito e poder econômico. Rio de Janeiro: Elsevier: 2009; pág. 47.
COMPARATO, Fábio Konder e SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008; pág. XVI.
12
Idem; pág. IX.
13
BAGNOLI, Vicente. Direito e poder econômico. Rio de Janeiro, Elsevier: 2009; pág. 59.
14
GALBRAITH, John Kenneth. O novo estado industrial. 2ºed. São Paulo:Pioneira:1983; pág. 16.
10
11
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A globalização15 trouxe consigo, na esfera econômica, seus significativos avanços
promovendo o acesso de todos a tudo, em tempo e espaço reais pelo acesso às novas tecnologias,
avolumando o poder econômico dos grandes agentes de mercado. É fenômeno que atingiu o
setor das telecomunicações, dos transportes e da informática, mais expressivamente,
possibilitando a planificação das barreiras territoriais. Com a queda do Muro de Berlim – último
país de resistência ao imperialismo – as barreiras econômicas deixaram de existir e a
globalização encontrou seu momento entre os povos e os mercados. O retrocesso é impossível. O
desafio é a busca pelo equilíbrio, o mais perto possível, do respeito à dignidade da pessoa
humana em detrimento do acúmulo de capital excedente.
Roberto Senise Lisboa observa que a invenção do computador levou o mundo a um
novo estágio socioeconômico: surgiu a sociedade da informação ou sociedade pós-industrial,
caracterizada por dois fatores determinantes: a internacionalização e a globalização da
economia; fenômenos oriundos da multiplicação da ciência e do avanço dos meios de transporte
e de comunicação16.
Por sua vez, a sociedade da informação é a expressão utilizada para identificar o
período histórico a partir da preponderância da informação sobre os meios de produção e a
distribuição dos bens na sociedade que se estabeleceu a partir da vulgarização das
programações de dados utilizados nos meios de comunicação existentes e de dados obtidos
sobre uma pessoa e/ou objeto, para a realização de atos e negócios jurídicos17.
Uma nova economia surgiu a partir de então – não deixando o imperialismo capitalista
tal como discorremos quanto a sua ideologia de base – em escala global (porque as principais
atividades produtivas, o consumo e a circulação, assim como seus componentes estão
organizados em escala global); informacional (porque a produção e a competição dependem da
A globalização decorreria, em primeiro lugar, da homogeneização dos mercados discretos, pela padronização da
demanda e pela oferta de produtos cada vez mais compatíveis com características universais. Em segundo lugar, a
globalização resultaria da redução das barreiras ao comércio de bens físicos, após quase meio século de ação do
GATT, mas também pelo abandono das políticas de substituição de importações e pelo desmantelamento dos
mecanismos desenvolvimentistas como conseqüência dos saneamentos financeiros dos países endividados do
terceiro mundo. In BARBOSA, Denis Borges. Uma introdução à propriedade intelectual. 2º ed. Rio de Janeiro.
Lúmen Juris: 2003, p. 160.
16
LISBOA, Roberto Senise. Contratos difusos e coletivos. Revista dos Tribunais. São Paulo; 2007; p. 80/81.
17
LISBOA, Roberto Senise. Direito na Sociedade da Informação. Revista dos Tribunais. Ano 95. Volume 847.
São Paulo; maio de 2006; p. 83.
15
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geração de informação capaz de gerar conhecimento) e em rede (dada a infra-estrutura de
telecomunicação necessária à produção e a concorrência).
O produto de mais-valia do século XXI passa a ser a informação capaz de gerar
conhecimento e a concorrência; é a mola propulsora desse capitalismo imperialista. A
informação precede a qualquer fator de produção, tal como preconiza Manuel Castells:
Os produtos das novas indústrias de tecnologia da informação são dispositivos de
processamento de informações ou o próprio processamento das informações. Ao
transformarem os processos de processamento da informação, as novas tecnologias da
informação agem sobre todos os domínios da atividade humana e possibilitam o
estabelecimento de conexões infinitas entre diferentes domínios, assim como entre os
elementos e agentes de tais atividades. Surge uma economia em rede profundamente
interdependente que se torna cada vez mais capaz de aplicar seu progresso em
tecnologia, conhecimentos e administração na própria tecnologia, conhecimentos e
administração. Um círculo tão virtuoso deve conduzir à maior produtividade e
eficiência, considerando as condições corretas de transformações organizacionais e
institucionais igualmente drásticas18.
Nesse cenário de economia global, sobretudo de grandes empresas detentoras de capital
de investimento em tecnologia da informação e em rede de infra-estruturas, que provoca
economia nos custos da produção e, portanto, mais produtividade e, conseqüentemente, mais
capital excedente, pode-se infirmar que a produtividade gera crescimento econômico e que ela é
uma função da transformação tecnológica equivale a dizer que as características da sociedade
são os fatores cruciais subjacentes ao crescimento econômico, por seu impacto na inovação
tecnológica19.
A produtividade e a concorrência – informacional – é que geram informação e
conhecimento, possibilitando a disputa – de poder econômico e de subjugação - entre grandes
companhias, países e povos.
Há uma concentração extraordinária de ciência e tecnologia num número pequeno de
países – os imperialistas capitalistas20- que ensejam, forçosamente, um distanciamento, ainda
18
CASTELLS, Manuel. Sociedade em rede. 10º ed. São Paulo. Paz e Terra: 2007; pág. 119/120.
Idem; pág. 121.
20
“Em 1993, dez países compunham 84% da P&D (‘o desenvolvimento econômico e o desempenho competitivo não
se baseiam na pesquisa fundamental, mas na ligação entre a pesquisa elementar e a pesquisa aplicada, e sua difusão
entre organizações e indivíduos’; pág. 167) global, e controlavam 95% das patentes estadunidenses das duas décadas
anteriores. Em fins da década de 1990, os 20% da população mundial que vivem nos países de alta renda tinham à
disposição 74% das linhas telefônicas, e representavam 93% dos usuários da Internet. Esse predomínio tecnológico
19
376
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
maior, entre os países – agora, também, pelo fato da exclusão social e digital, a demonstrar
claramente diferenças econômicas e concentração de poder econômico em poucos em desfavor
de muitos, o que representa sinal de alerta ao mundo globalizado.
Pelo que se vê, o cenário é o mesmo: países economicamente fortes são os senhores;
países em desenvolvimento – subjugados pelo processo histórico-econômico – os escravos;
países economicamente fortes exploram as matérias – primas dos países em desenvolvimento –
hoje, recursos naturais de sobrevivência do meio ambiente -; exploram as gentes dos países em
desenvolvimento – cuja mão-de-obra é mais barata; exploram, ainda, a acumulação primitiva,
sempre, a pretexto similar das teorias econômicas neoclássicas, as quais têm como idéia central,
a incitação da pobreza para o avanço do capitalismo como salvador pela relação de
interdependência econômica.
Vicente Bagnoli diz que a soberania, na era da globalização, é relativa; justamente,
tendo em vista, a relativização da soberania no âmbito externo de influências recebidas dos
demais países que ditam as regras econômicas de administração dos países em desenvolvimento,
uma vez que...
...um país soberano, o é, entre outros motivos, quando é independente financeiramente.
Um país que depende dos investimentos e empréstimos de outra nação, de organismos
internacionais, não exerce plenamente sua soberania, pois fica sujeito às determinações
de quem detém poder econômico e viabiliza os investimentos e empréstimos 21.
Ainda...
Essa nova forma de soberania é de tendência expansiva, democrática e inclusiva,
baseada na produtividade. A sociedade é produtiva e cria sinergias produtivas que
resultam na soberania norte-americana. Em sua constante expansão a soberania
contemporânea não anexa nem destrói os poderes que encontra no dominado. Pelo
contrário, mantém tais poderes, incluindo-os na rede, reformando o poder soberano do
dominado, que deve estar alinhado ao poder soberano do dominador22.
ia de encontro à idéia de uma economia global baseada no saber, localizados em um pequeno número de ‘cidades e
regiões globais’ e o resto do mundo, composto de economias tecnologicamente dependentes”. In CASTELLS,
Manuel. Sociedade em rede. 10º ed. São Paulo. Paz e Terra: 2007; pág. 165.
21
BAGNOLI, Vicente. Direito e poder econômico. Rio de Janeiro, Elsevier: 2009; pág. 211.
22
Idem; pág. 211.
377
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
De igual forma, Gustavo Tepedino menciona que o processo de globalização que
gravita em torno da economia mundial se apresenta permeado por duas tendências
contraditórias:
De um lado, o intervencionismo supranacional sobre o direito interno da maior parte dos
países europeus e americanos, a implicar rigoroso planejamento e pouquíssimo espaço
para a soberania nacional, valendo-se os centros de decisão de práticas notadamente
autoritárias, na fixação das metas a serem alcançadas por cada país; e, de outro lado, um
excessivo liberalismo entre a transferência de tecnologia, mão-de-obra e investimentos,
com a derrubada das barreiras alfandegárias nas relações internacionais, como forma de
mercados supranacionais23.
Prevalece, sob essa ótica da globalização, a lógica da maximização dos lucros e
minimização dos custos. Os direitos sociais e a expansação do exercício da cidadania passam a
ser vistos como custo econômico da produção, no panorama da competição internacional, sem
levar em conta as desigualdes sociais de certos países – nos quais – mercê de processo histórico
e político que os exclui do rol dos chamados países desenvolvidos24(...) necessitam de melhor
distribuição de justiça social e preservação da dignidade humana, corolário da solidariedade
entre os povos.
O Império econômico, portanto, nesse momento, é república universal; capaz de
desenvolver-se pela paz – de mercado. Esta paz não significa, como visto até aqui, o equilíbrio
entre os povos em posição de igualdade; mas, sim, sem movimentos bélicos, conflitos, de
natureza hieráquico-econômica, entre senhores e escravos. Traduz-se pela idéia de expansão
libertária, em regime democrático, tal como, pregado pela teoria econômica neoclássica de que o
capitalismo – agora, mais global do que dantes - é a solução da humanidade.
Bagnoli escreveu nesse sentido e vale a pena transcrever:
A dominação imperial reveste-se de anti-imperialismo, afirmando a soberania da
liberdade, algo absolutamente democrático, necessário, para a implementação de um
processo expansionista aberto e contínuo. O movimento de inclusão na rede deve ser
natural, nada forçado, uma vontade democrática do dominado. Todo esse movimento
tem causas e conseqüências culturais, econômicas, políticas, jurídicas e sociais, que
constituem o exercício do poder econômico privado relacionado com o poder público 25.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de janeiro, Renovar: 1999; pág. 68.
Idem; pág. 69
25
Ibidem; pág. 218.
23
24
378
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Vê-se pelo curso da história social, política e econômica do mundo que no período da
Guerra Fria, a soberania estava sob o manto de concepção européia de proteção e delimitação
territorial alicerçada na dicotomia do mundo entre capitalismo e comunismo, com os respectivos
poderes econômicos divididos nesses dois blocos. Com o fim do comunismo no mundo – queda
do Muro de Berlim – os Estados Unidos tomaram o mundo pelo viés econômico, minando os
raios socialistas. A URSS, sem condições de enfrentar o inimigo na alocação de recursos nas
esferas social e militar, desmoronou o Império Soviético e rendeu-se ao capitalismo imposto pelo
Império americano.
A soberania imperial encontra no mercado mundial o local para o exercício do poder e
na globalização o meio hábil para criar o mercado mundial, donde, inclusive, decorrem as
demissões em massa de trabalhadores, eliminação de inúmeros postos de trabalho e a redução
dos salários e benefícios trabalhistas, bem como a exclusão social e digital. O impacto desse
efeito colateral da globalização – econômica – nada mais é do que aumento das desigualdades
sociais com poucas perspectivas de melhoras, aumentando o descontrole emocional e social,
ampliando a sensação do medo nos países subdesenvolvidos e, em desenvlvimento.
Tepedino observa que:
Na democracia capitalista globalizada, de pouca serventia mostram-se os refinados
instrumentos de proteção dos direitos humanos, postos à disposição pelo direito público,
se as políticas públicas e a atividade econômica privada escaparem aos mecanismos de
controle jurídico, incrementando a exclusão social e o desrespeito à dignidade da pessoa
humana26.
Uma das análises mais ricas acerca do imperialismo econômico comentado foi a
elaborada por Rosa Luxemburgo e que muito se aproximou e aproxima das necessidades do
Terceiro Milênio, a exemplo do exercício da solidariedade internacional entre os povos como
forma de mitigar o Imperialismo econômico e aumentar a distribuitividade social.
Rosa Luxemburgo (1870-1919) foi intelectual; da esquerda socialista alemã, defensora
da classe operária alemã contra o imperialismo; líder política, escritora da obra ‘A acumulação
de capital’ (1913) e, posteriormente, ‘A acumulação de capital – uma Anticrítica’.
26
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de janeiro, Renovar: 1999; p.57
379
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 13 - Direito e Sustentabilidade
Em sua obra, a autora critica o capitalismo imperialista. Mostrou que numa economia
onde só houvesse capitalistas e trabalhadores, seria impossível crescimento econômico
equilibrado. Os trabalhadores – identificados como meio de produção, que a própria produção
mantinha – trocavam força de trabalho pelo consumo necessário à sobrevivência; já, os
capitalistas consumiam, de igual forma, só o necessário, deixando para comercializar, investir e
competir com o excedente da produção frente a outros agentes tão capitalistas quanto. Uma vez
que o consumo dentre todos não era tão acelerado quanto a produção dos bens e mercadorias
pelos capitalistas, o excedente capacitava este capitalista ao mundo da concorrência com outros
pares e como conseqüência, se criavam novos mercados – os externos, para poder continuar
avançando e angariando mais excedentes e mais mercados, num ciclo vicioso de riqueza que
jamais poria o trabalhador em posição de igualdade – excluído, por óbvio, desse cenário de
sucesso.
Luxemburgo observou, também, que no plano dos bens excedentes e a conquista de
novos mercados pelos capitalistas, não haveria outra solução que não a destruição das economias
tradicionais dos países não-capitalistas, e, também, a acumulação primitiva27, a exemplo do que
já sustentava Marx, como sendo a própria expansão do domínio econômico e das relações
sociais. Assim dizia ela, valendo mencionar, dada a atualidade do discurso -1913, e de sua obra:
A existência e o desenvolvimento do capitalismo requerem um ambiente de formas de
produção não-capitalista, mas nem todas estas formas atenderão seus fins. O capitalismo
precisa … de um mercado para sua mais-valia…uma fonte de oferta para seus meios de
produção e…um reservatório de força de trabalho para seu sistema salarial. Para todos
estes fins, as formas de produção baseadas em uma economia natural, em que existem
comunidades camponesas primitivas com propriedade comum da terra, um sistema de
vínculos feudais ou qualquer coisa desta natureza, a organização econômica responde
essencialmente à demanda interna; por conseguinte, não há…uma necessidade urgente
de se dispor dos produtos excedentes. O mais importante, porém, é que em qualquer
economia natural, a produção só prossegue porque os meios de produção e a força de
trabalho estão interligados, de uma forma ou de outra. A comunidade camponesa
comunista, não menos do que a corvéia feudal e instituições semelhantes, mantém sua
organização econômica sujeitando a força de trabalho, e o mais importante meio de
produção – a terra – ao domínio da lei e dos costumes. Uma economia natural enfrenta
“Essas novas oportunidades de investimento diminuiriam o excesso de capital doméstico e estimulariam uma
demanda pelas exportações do país imperialistas – quer dizer, de material para construção de portos, estradas,
estradas de ferro e todos os meios físicos necessários de exploração do território conquistado. Com isso, as
exportações recém-estimuladas do país imperialista não seriam compensadas por um volume correspondente de
importações (pois já havia um excesso de bens de consumo no país imperialista); seriam compensadas, isto sim, por
uma apropriação cada vez maior da riqueza do território conquistado pelos capitalistas dos países imperialistas. Em
outras palavras, o imperialismo era, de fato, uma extensão do que Marx descrevera como ‘acumulação primitiva”. In
idem; pág. 342.
27
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as exigências do capitalismo, em todos os aspectos, com barreiras rígidas. O capitalismo
tem, então, sempre em toda parte, que travar uma batalha que aniquile toda forma
histórica de economia natural por ele encontrada, seja ela uma economia escravista,
feudal, baseada no comunismo primitivo ou uma economia camponesa patriarcal. Os
principais métodos empregados nesta luta são a força política (revolução, guerra), a
tributação opressiva pelo Estado e oferta de mercadorias baratas; os métodos são, em
parte, empregados simultaneamente e, em parte, em seqüência e de modo
complementar28.
O aspecto mais cruel do capitalismo apontado por Rosa Luxemburgo – porque
interferido, diretamente, pelo capital e não por fatores históricos, políticos e sociais - é o de que o
avanço capitalista depende da força bélica – inegável - e que o militarismo é o maior detentor do
poder de mais-valia, uma vez que, após a Segunda Guerra Mundial, agigantou-se o complexo
industrial militar e passou a dominar, intensamente, em termos econômicos, as economias
capitalistas; pagos pela tributação indireta dos mais pobres da classe operária, que financiava – e
financia – o militarismo, sem perceber, fortalecendo os países imperialistas em detrimento dos
países em desenvolvimento.
Dizia Luxemburgo acerca do militarismo que,
O sem-número de demandas individuais e insignificantes de toda uma gama de
mercadorias, que se tornarão demanda efetiva em diferentes ocasiões…alsão, agora,
substituídas por uma demanda ampla e homogênea do Estado, e a satisfação dessa
demanda pressupõe de mais-valia e à acumulação. Sob a forma de contratos de governo
para o fornecimento de material bélico, o poder de compra disperso dos consumidores
se concentra em grandes quantidades e, livre das oscilações e flutuações subjetivas do
consumo pessoal, consegue uma regularidade quase que automática e um crescimento
ritmado. O próprio capital, em última instância, controla esse movimento automático e
rítmico da produção militarista através do Legislativo e de um tipo de imprensa cuja
função é moldar a chamada ‘opinião pública’. É por isso que essa área particular da
acumulação capitalista parece, à primeira vista, capaz de expandir indefinidamente.
Todas as outras tentativas de expandir mercados e estabelecer bases operacionais para o
capital dependem, em grande parte, de fatores históricos, sociais e políticos fora do
controle do capital, ao passo que a produção para o militarismo representa uma área cuja
expansão regular e progressiva parece, basicamente, determinada pelo próprio capital.
Assim, o capital transforma a necessidade histórica em uma virtude 29.
O imperialismo sobreviveu e sobrevive da miséria humana onde se instala como forma
de imposição de suas regras e limites de sobrevivência aos países subjugados pela dependência
econômica. Este fato acompanha-nos, a demonstrar o quanto o discurso de Rosa Luxemburgo
pode ser aproveitado para expandir os ideários econômicos de distribuição social em tempos de
28
29
Bis in idem; pág. 343.
HUNT, E. K. História do pensamento econômico. 2º ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005; pág. 346/347.
381
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globalização e de sociedade da informação através da solidariedade internacional, cujo fenômeno
traduz-se pela igualdade de acesso econômico entre os povos, numa verdadeira contradição
histórica de distribuição de justiça social.
(...) Ao mesmo tempo, no entanto, as conseqüências negativas de tais desenvolvimentos
para a realização das expectativas socialistas se revelam sob dois aspectos principais.
Primeiro; a própria expansão imperial – que não está de modo algum confinada ao
passado mais ou menos remoto, mas abrange toda a linha de desenvolvimento que vai
do colonialismo e do imperialismo explícitos até as formas mais mistificadoras da
dominação da ‘periferia’ pelos ‘países metropolitanos’ (formas costumeiramente
chamadas de ‘neocolonialismo’) – fortaleceu muito (e ainda continua a sustentar) o
poder do capital, adiando por um tempo considerável ( na verdade, por tanto tempo
quanto houver escoadouros para a produção no mercado global) a maturação de suas
contradições imanentes.
Segundo; as organizações decisivas da classe trabalhadora – seus partidos de massa e
movimento sindical – se tornaram cada vez mais intimamente vinculadas ao Estado
nacional imperialista, conservando sua vassalagem a este último mesmo em aventuras
extremamente dúbias, como demonstrou de modo clamoroso sua capitulação às forças
mais chauvinistas tanto na irrupção da Primeira Guerra Mundial como
30
subseqüentemente .
Para se ver, Rosa Luxemburgo, concluiu sua obra “A acumulação de capital”
orientando no sentido de que a humanidade adotará novos rumos em respeito à dignidade da
pessoa humana como agente externo de interferência no poder econômico:
Em determinado estágio do desenvolvimento, não haverá outra saída que não a
aplicação de princípios socialistas. O objetivo do socialismo não é a acumulação, mas a
satisfação das necessidades dos que trabalham através do desenvolvimento das forças
produtivas de todo o mundo. Assim, verificamos que o socialismo é, por sua própria
natureza, um sistema econômico harmonioso e universal 31.
O discurso de Luxemburgo não interessava ao capitalismo que estava em franca
expansão pela burguesia, mesmo em período de revolução, a exemplo do que ficou dito por seu
algoz mais ferrenho da época (Eduard Berstein, Alemanha, séc. XIX) na tentativa de desvalorizar
seu discurso e deixá-lo à míngua de, simplesmente, identificá-lo como ideologia política de
esquerda comunista e rebeldia dos trabalhadores.
Rosa Luxemburgo, já enxergava que o tempero para o destempero do capitalismo
global seriam movimentos sociais - externalidades negativas ao próprio capitalismo - de
equilíbrio e freio à subjugação dos povos pelo poder econômico – a exemplo da solidariedade
30
31
ISTVÁN, Mészáros. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004; pág. 368.
Ibidem; pág. 347.
382
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internacional; que de fato, motivava a classe operária e foi o motivo da morte da líder, na
Alemanha, pela classe burguesa de direita, em 1919.
Nessa época foram, terminantemente, impostas raízes da teoria econômica neoclássica
que vige até, hoje, em detrimento do capitalismo social pregado por Luxemburgo, inclusive,
impondo à Humanidade as bases tributárias como razão de desenvolvimento econômico e
igualdade social entre as gentes através da tributação indireta dos pobres.
Contudo, Eduard Bernstein, agente responsável pela mitigação e distorção da força de
seu discurso, apoiando a teoria econômica neoclássica e na tentativa de apresentar solução para a
crise mundial da época, utilizou-se do próprio socialismo pregado pela líder para adaptá-lo,
eficaz e politicamente, ao capitalismo da burguesia - quem detinha a propriedade sobre os meios
de produção -, chamando a teoria de socialdemocracia, a qual protegia o avanço voraz da teoria
neoclássica, pelo que se depreende deste trecho do discurso proferido pelo líder:
A tarefa possível consistia em resgatar os trabalhadores ‘mal-educados’ do ‘autoengano’ e da ‘ideologia falaciosa’ do materialismo marxiano, para que eles adquirissem
‘um alto grau de independência mental e o ‘alto padrão intelectual e moral que a
organização e a existência de uma comunidade socialista pressupõe32.
O socialismo estava e está intimamente ligado com a teoria da solidariedade
internacional e com a democracia desde a época em que Luxemburgo já apontava nesta direção,
mas, foi Berstein quem apresentou a teoria socialdemocrata do capitalismo, absorvida,
mundialmente, como a teoria neoclássica que sobrevive, atualmente.
A história mostra, contudo, a necessidade de um retorno ao discurso de Luxemburgo
porque de lá se extrai a natureza da solidariedade pura que Berstein quis macular e não
conseguiu implementar com sucesso, senão agravar o caos promovido pelo império capitalista.
O grande atrativo da racionalização ideológica apresentada por Bernstein foi que, por
intermédio dela, a tendência do desenvolvimento socioeconômico e político que então
se manifestava – e que, em relação às exigências objetivas da emancipação socialista,
era extremamente problemática e contraprodutiva – podia não só ser apresentada como
uma tendência totalmente livre de suas implicações negativo-destrutivas; pior, ainda,
32
BAGNOLI, Vicente. Direito e poder econômico. Rio de Janeiro, Elsevier: 2009; pág. 375/376.
383
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podia ser até saudada como um grande avanço positivo: a tranqüilizadora prova e a
garantia da obtenção do resultado desejado33.
Berstein misturou as idéias socialistas para acalmar os trabalhadores, sendo que parte
da teoria marxista defendida por Luxemburgo foi utilizada nos discursos de Berstein.
Em movimento de globalização em rede e econômica incita-se a relevância do tema na
medida em que os vários argumentos teóricos de Bernstein, extraídos dos discursos de
Luxemburgo, lhe proporcionou ser a figura representativa do movimento socialdemocrata
alemão e internacional e, aliás, como o marxista favorito de todos os pensadores liberalburgueses, dado seu poder de persuasão e conveniência, desviando o foco das atenções
despendidas a Luxemburgo.
István Mèzáros explica acerca da política adotada por Berstein que derivava dos
discursos de Luxemburgo, pregando um socialismo temperado, o que, de fato, havia por de trás
daquele mote político:
Por que a realização do socialismo dependeria de sua refutação? Simplesmente pela
seguinte razão: porque o esquema dialético parece assim prescrevê-lo; porque uma
coluna ameaça cair caso se admita que o produto social excedente (note-se: não a maisvalia extraída por exploração) é apropriado por um número de possuidores crescente,
em vez de decrescente. Mas somente a teoria especulativa é afetada por esta questão;
ela não afeta de modo algum o movimento real. Nem a luta dos trabalhadores pela
democracia na política nem sua luta pela democracia na indústria são prejudicadas por
ela. As perspectivas desta luta não dependem da teoria da concentração do capital nas
mãos de um número decrescente de magnatas, nem da estrutura dialética da qual este
pressuposto é uma coluna, mas do crescimento da riqueza social e das forças sociais
produtivas, em conjunção com o progresso social geral e, particularmente, em
conjunção com o avanço intelectual e moral das próprias classes trabalhadoras34.
E não foi só. Explicou também, da forma como está a se considerar, que:
Bernstein se revela, apropriadamente, um dos ancestrais intelectuais das teorias recentes
da ‘modernidade’ dissocializada, e neste sentido merece plenamente seu status
representativo. Da mesma maneira que, nos anais recentes da modernidade, também,
sua ‘sociedade moderna’, caracterizada pelo promissor ‘movimento de rendas’, não
deve mais ser considerada uma sociedade capitalista injusta em virtude da pretensão
explicitamente declarada que, nesta sociedade moderna, o crescente ‘produto social
excedente’ é apropriado por um número sempre crescente de ‘possuidores’ que não
pertencem a qualquer classe35.
ISTVÁN, Mészáros. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004; pág. 377 .
Idem; p. 377/378.
35
Ibidem; p. 379/380.
33
34
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A única saída para a busca da igualdade no universo capitalista seria na visão de
Berstein – e que prevalece até a atualidade – que a igualdade se daria – e dá – através da
tributação.
No entanto, apesar de sua substância teórica e da falta de graça da apresentação, nesta
proposição e em seus corolários, Bernstein legou ao ‘movimento real’ um dogma
clássico do pensamento veleitário socialdemocrata, que está conosco desde então. Neste
sentido, mais uma vez, pode ser considerado uma figura representativa, pois identificou
claramente o beco sem saída das medidas capitalistas graduais – entre elas, no alto da
lista das prioridades, a tributação capitalista – como o único método realmente
apropriado de realizar uma mudança social radical em uma ‘sociedade moderna’ 36.
Berstein via na tributação a razão de ser do capitalismo socialdemocrata explicitado
pelos estudos de István:
Primeiro, o fato absolutamente elementar de que o número de pessoas a serem taxadas
pode ser aumentado ou diminuído à vontade pelas autoridades governamentais,
dependendo dos limites determinados pelas circunstâncias socioeconômicas e históricas
específicas, que devem ser explicitados caso se queira atribuir alguma importância às
medidas adotadas. Sem tal especificação, acaba-se por chegar à grotesca conclusão de
que a tributação de todo mundo é ‘prova irrefutável’ da realização da ‘riqueza social e
do progresso social geral’, e a ausência de tributação pessoal, ao contrário, seria a
demonstração mais clara possível de que a sociedade em questão é composta de
indigentes não-tributáveis. Ademais, os administradores do Estado capitalista
compreenderam que há muito que a ‘tributação indireta’, que é imposta a todos – em
oposição à ‘tributação direta’ -, atinge com mais dureza precisamente os setores mais
pobres da população, e que tal tributação indireta pode ser convenientemente associada
à política declarada dos governos, supostamente de redução de carga de impostos que
recai sobre os mais necessitados, embora, na realidade, não faça nada disso.
Segundo, Bernstein e seus seguidores se esqueceram do aspecto da tributação mais
óbvio e, mesmo em termos estatísticos, muito fácil de ser demonstrada. E isso,
evidentemente, não ocorreu por uma negligência acidental. Uma vez abandonada a
perspectiva de uma intervenção estrutural radical no processo histórico, a ânsia de
afirmar que o ‘movimento real’ está caminhando em direção aos objetivos desejados, a
despeito da inversão de direção, acarreta uma cegueira em relação ao fato muito
desagradável de que a carga tributária cai mais pesadamente sobre os ombros do pobr ,
e não do rico, ao contrário do que o pensamento veleitário reformista tem de afirmar
para dar algum sentido a sua estratégia gradualista orientada para o futuro37.
Não obstante a prevalência histórica do capitalismo utilitarista que privilegiava e
privilegia a propriedade dos meios de produção e os excedentes, fatos históricos e sociais
apontam para a formação de instituições organizadas e que representam externalidades negativas
ao império deste capital histórico, aparentando-nos um resgate social, cuja bandeira de liberdade
se identifica pela solidariedade entre os povos.
36
37
Ibidem; pág. 381.
ISTVÁN, Mészáros. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004; p. 382/383.
385
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István Mèzáros, diante desse contexto, preleciona que não é por acaso que noventa
anos de teorização reformista no conjunto da socialdemocracia ocidental não tenham produzido
qualquer avanço significativo em relação às formulações originais de Berstein38.
E continua:
As repetidas declarações de que cada novo compromisso com o adversário de classe é
assumido para manter a estratégia política do movimento ‘atualizada’ e mais adequada à
sua tarefa, alinhada com as novas circunstânicas históricas, na realidade não
representam mais do que a espalhafatosa racionalização e a justificativa das práticas
manipuladoras da ala parlamentarista, separada e alienada da base da classe social que
um dia lhe deu origem39.
Com o avanço da socialdemocracia e o sossego dos trabalhadores, o capitalismo
encontrou a melhor oportunidade de expansão global, levando consigo a forma mais intensa e
impiedosa de exploração que pôde garantir aos países metropolitanos dominantes taxas de
superlucro, as quais possibilitaram a instalação do imperialismo. Desta forma, dando ensejo ao
desenvolvimento defeituoso, donde se
depara com a dependência estrutural e o
subdesenvolvimento crônico dos países subjugados40.
Em decorrência desse avanço houve, em conjunto, a taxa diferencial de exploração, ou
seja, o alto índice de exploração diferenciada entre os países subjugados à exploração
econômica, a exemplo da mão-de-obra mais ou menos barata, o que possibilitou que os
trabalhadores metropolitanos de um país fossem colocados contra os trabalhadores mais
explorados de outros países, donde Rosa Luxemburgo, ao observar tal estratégia socialdemocrata
disse: os dividendos estão subindo, os proletários caindo41.
Nesse panorama global de avanço do imperialismo capitalista, os ideários de
solidariedade entre os povos - motivo que reunia de forma global a classe trabalhadora
revolucionária - encontrou trágico revés, dando lugar à dominação de amplas massas populares
de modo relativamente, tranquilo.
38
Idem; p.417.
Ibidem; p. 417.
40
Ibidem; p. 421.
41
ISTVÁN, Mészáros. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004; p. 425.
39
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Não obstante, passado o tempo de expansão e acúmulo de capital, presencia-se a
instalação da crise sistêmica na estrutura do próprio capital e que representa, a bem da verdade, a
própria crise do sistema da socialdemocracia ocidental, dando lugar à socialdemocracia
reformista com a consolidação do “novo imperialismo”, que se reproduziu de forma alterada
sempre que seu controle político-militar direto sobre os países subjugados se tornou
historicamente obsoleto, fragmentou a base material da solidariedade internacional42.
O mote da socialdemocracia reformista, capitalista por natureza, aduziu a idéia de que
não deveria mais haver o conflito entre capital e trabalho, mas a descoberta de como fazer para o
pobre estabelecer-se, o mais rápido possível
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