Rádios Comunitárias Lílian Bahia1 Resumo Este artigo tem por objetivo mostrar o panorama das rádios comunitárias no Brasil, a partir de uma visão crítica do setor e da sua vinculação com os movimentos sociais. Analisa os principais desafios e dificuldades na rotina de trabalho destas emissoras, sobretudo quando se considera o cenário de grande concentração dos meios de comunicação. Destaca as reivindicações do movimento, a organização de uma força-tarefa pelo governo federal para analisar a situação e propor medidas para apoiar o desenvolvimento destas emissoras. Traz ainda um breve histórico e situação atual de duas emissoras de baixa potência autorizadas a funcionar pelo Ministério das Comunicações. Introdução Uma das questões de maior destaque na discussão sobre a democratização da comunicação no Brasil – antiga reivindicação e motivo de lutas de várias gerações – referese à radiodifusão comunitária. Particularidades históricas marcam o debate, entre as quais a resistência das emissoras comerciais – um setor rico e poderoso que não aceita dividir o espaço radiofônico –, em contraposição à força das reivindicações de comunidades populares, de baixo poder aquisitivo, que buscam um lugar na radiofreqüência como alternativa para expressar suas vivências e necessidades de comunicação. Esta análise, como se vê, deve ser permeada pela discussão sobre a concentração dos meios de comunicação, situação que dificulta ou até mesmo impede a democratização do setor. Sem sinal de arrefecimento, o movimento pelo aperfeiçoamento da legislação e contra o fechamento das rádios comunitárias pressiona o governo com reivindicações, insere o tema em eventos de dimensão internacional, como o V Fórum Social Internacional, realizado neste ano em Porto Alegre, contando inclusive com o apoio de intelectuais e estudiosos da área social, organizações não-governamentais e entidades da sociedade civil. A iniciativa popular reforça estratégias visando alcançar visibilidade e chamar atenção para o papel de tais emissoras no desenvolvimento comunitário e para a consolidação da democracia nas comunicações. O governo, por outro lado, organiza uma força-tarefa por intermédio do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) RadCom para analisar a situação e afirma que vai propor medidas para disseminar este tipo de emissora pelo país. As principais sugestões do GTI foram entregues, em meados de agosto de 2005, ao Ministério das Comunicações. Importante ressaltar que tais sugestões estão sujeitas ainda a alterações. Breve histórico e caracterização As dificuldades que rondam o movimento das rádios comunitárias brasileiras guardam semelhanças com o de outros países da América Latina, região conhecida por suas 1 Lilian Claret Mourão Bahia (SEAPA/MG) ricas experiências na área. Acredita-se que tais similaridades possam estar relacionadas com o passado histórico de ditaduras militares que despertaram nas populações desejo de expressar-se após longos períodos de imposição de silêncio. Além das estratégias utilizadas para se colocar uma emissora no ar e implantar o modelo comunitário de rádio, são comuns também o fato das legislações serem bastante antigas (algumas datam de 30, 40 anos) e não contemplarem a realidade sócio-cultural da sociedade atual, assim como do nível do desenvolvimento tecnológico. No Brasil, as primeiras transmissões de rádios não-comerciais datam das décadas de 70 e 80, a exemplo das rádios Paranóica (ES), Sorocaba (SP) (PERUZZO, 1999b), e a Xilik, esta última na capital paulista, organizada em 1985 por Caio Magri, Arlindo Machado e Marcelo Masagão, autores do primeiro livro sobre o tema no Brasil, Rádios livres – a reforma agrária no ar (1986). Algumas das experiências no Brasil são conhecidas também como rádios livres, porém, independente da denominação, elas refletem, na opinião de pesquisadores, a exemplo de Cicília Peruzzo (1998), as lutas sociais numa realidade de carências e inconformidade com o controle centralizado da mídia e com as desigualdades sociais. Muitas das iniciativas pioneiras se deram a partir de movimentos sociais populares, alguns dos quais com o apoio e a solidariedade da igreja católica, o que talvez explique a relação estabelecida entre o movimento das rádios comunitárias e a educação popular, especialmente a partir das idéias do educador Paulo Freire, já que tais emissoras têm potencial para pensar criticamente a realidade social e romper com a cultura do silêncio. As rádios comunitárias são definidas por Peruzzo (1998, p. 252, 253) como tendo por “finalidade primordial de servir à comunidade”, podendo “contribuir efetivamente para o desenvolvimento social e a construção da cidadania”. São características destas emissoras, segundo a autora, a gestão pública, a programação plural e a falta de fins lucrativos. A programação é definida a partir do foco centrado na realidade comunitária, com preocupação voltada para a cultura local e o compromisso com a cidadania. A interatividade proporcionada por este tipo de emissora se dá na medida do acesso ao microfone, ao telefone e outros meios que possibilitam a interação com as comunidades de ouvintes. É este também o conceito defendido por Denise Cogo (1998, p. 75), segundo a qual uma emissora comunitária tem por objetivo “democratizar a palavra que está concentrada em poucas bocas e em pouquíssimas mãos para que nossa sociedade seja mais democrática”. Já a rádio Netherlands (http//:www.rnw.nl/comunity)2 focaliza os aspectos gestão e financeiro ao definir que a emissora comunitária “caracteriza-se pelo acesso e participação do público na produção e na tomada de decisões e pelo apoio financeiro dos ouvintes”. Concentração de veículos ameaça potencial democrático Este estudo sobre as emissoras radiofônicas comunitárias brasileiras considera a força do rádio não apenas a partir do caráter dialógico, mas também pela importância do seu papel para a democratização da comunicação. Pesquisadores e estudiosos do assunto, entre os quais o jornalista Alberto Dines, na apresentação do livro O rádio na era da informação (2001), de Eduardo Meditsch, asseguram que o rádio consolida aproximações 2 Acesso em setembro de 2003 e, por ser tão próximo do ouvinte, é eficaz na arte de transformar informação em conhecimento. Valdir de Castro Oliveira (2001) figura entre os autores que defendem o papel do rádio no processo de democratização da comunicação e chama atenção para o fato de que o serviço de telecomunicação brasileiro, que tem o Estado como regulador de um sistema de concessão de canais de radiodifusão, privilegia relações clientelistas, configurando o chamado “coronelismo eletrônico”. Sua abordagem nos remete à reflexão do pesquisador cubano José Ignacio López Vigil (2003), segundo o qual a sociedade civil somente terá plena liberdade de expressão quando tiver suas próprias freqüências de rádio e televisão, o que lhes permitirá expressar idéias e postura independente. Este autor entende que a democratização da comunicação tem relação direta com a propriedade dos meios de comunicação e, neste sentido, destaca a concentração das empresas deste setor nas mãos de poucos grupos na América Latina e no Caribe. Este pensamento nos oferece oportunidade para abordar a polêmica questão da concentração dos veículos de comunicação brasileiros nas mãos de poucos grupos, problema que é agravado enormemente quando se sabe que cerca de 30% dos senadores do país têm algum tipo de ligação com as emissoras de TV e rádio em seus estados de origem3. Este aspecto é analisado também por Venício Arthur de Lima, que enfatiza, em artigo publicado no Observatório da Imprensa4, que, apesar da atual Constituição Federal nacional proibir que parlamentares participem de contrato ou exerçam cargos, função ou qualquer atividade remunerada em empresas concessionárias de serviço público, tem-se hoje “indicações de que essas normas legais não têm sido cumpridas e que, na prática, tenha se frustrado o sentimento inicial de avanço democrático”. A ameaçadora concentração dos meios de comunicação traz à luz as reflexões de John Thompson em A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia (1998), especialmente quando ele destaca suas críticas quanto à prática de centralização da produção da comunicação em poucas mãos. A formação de grandes grupos na área da comunicação é apontada por Thompson (1998, p. 208) como ameaça à liberdade de expressão — “ameaças que provêm não do excessivo uso de poder do Estado, mas, antes, do desimpedido crescimento das organizações da mídia e de seus interesses comerciais”. A necessidade de colocar a mídia à disposição da sociedade civil preocupa diferentes segmentos da população e não apenas ao próprio movimento pela consolidação das rádios comunitárias ou aos acadêmicos e pesquisadores. O Jornal da Cidadania, da Radiobrás, expressa tal expectativa em sua edição de 15/10/2004, quando enfatiza que a discussão sobre a democratização da mídia deve se fundamentar não apenas no conteúdo, mas, sobretudo na propriedade dos veículos de comunicação, considerado por ele o principal empecilho da democracia no setor. O também jornalista e acadêmico Hamilton Octávio de Souza (2004), entende que o sistema de comunicação brasileiro deve ser modificado e democratizado. Neste sentido, ele sugere que os veículos de comunicação sejam administrados por entidades representativas da sociedade que possuam “programas voltados para a preservação e o desenvolvimento cultural, a elevação do nível de informação e consciência”. Constata-se que o movimento das rádios comunitárias no Brasil é representado atualmente por diversas entidades com área de abrangência segmentada, nacional e 3 4 Fonte: Observatório da Imprensa de 03.08.2004. Edição n. º 342, de 16.08.2005. internacional, como por exemplo a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (ABRAÇO), o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), a Rede Brasil de Comunicação Cidadã, a Associação Nacional das Rádios Comunitárias Católicas (ANCARC) e a Associação Mundial de Comunicação Comunitária (AMARC). Questionase se tal pulverização de representação contribui para a construção de um projeto unificado que tenha em vista a efetiva consolidação do movimento das rádios comunitárias no país. Desafios constroem a rotina São inúmeros e de naturezas diversas os problemas e desafios vivenciados atualmente pelas emissoras comunitárias brasileiras, a começar pelos embates com fiscais da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), vinculada ao Ministério das Comunicações, e agentes policiais, pressionados pela Associação Brasileira das Emissoras de rádio e Televisão (ABERT), esta última representada por suas filiadas estaduais. Constata-se que, embora não seja uma iniciativa nova e possua trilha ascendente desde as primeiras realizações, o movimento não tem ainda amplo conhecimento sobre suas limitações e potencialidades, visto que são escassos os arquivos documentais e pesquisas sistemáticas sobre o setor. De acordo com o relatório do Grupo de Trabalho Interministerial, dos 5.562 municípios brasileiros, 3.384 ainda não possuem emissoras comunitárias, sendo que 1.177 sequer foram contemplados com qualquer aviso até o ano de 2004. No Aviso de 2004 foram contempladas 1.386 localidades, ficando praticamente 50% desse total sem resposta das associações e fundações. Até 31 de julho de 2005, apenas oito rádios deste aviso obtiveram a outorga de funcionamento. O coordenador de comunicação e cultura da ABRAÇO, José Guilherme Castro, dimensiona o interesse da população pelas transmissões comunitárias a partir da comparação que aponta que, nos 34 anos de rádio FM no Brasil, 3.232 emissoras comerciais receberam autorização para funcionar, ao passo que em seis anos de legislação específica aproximadamente 2.300 rádios comunitárias foram autorizadas a emitir sinais. De acordo com o site5 da Associação Brasileira de Emissoras de Radio e Televisão (ABERT), das 3.232 emissoras de radiodifusão comerciais existentes no país, 2.000 são filiadas a esta entidade. O relatório da pesquisa Direito à Comunicação no Brasil, realizado pelo grupo Intervozes – Projeto de Governança Global/Campanha CRIS (Communication Rights in the Information Society), aponta que existem atualmente (referência a junho/2005) aproximadamente 10 mil pedidos de autorização para funcionamento de emissoras comunitárias aguardando despacho do Ministério das Comunicações, que admitiu condição operacional de expedir apenas 1.500 liberações a cada ano. “Essa situação cria um contingente de rádios que podem passar mais de cinco anos na ilegalidade por culpa do Executivo Federal e provavelmente serão fechadas se forem descobertas pelos órgãos responsáveis pela fiscalização”, reforça o relatório. O diagnóstico do grupo Intervozes chama atenção para a gravidade da situação das rádios comunitárias quando se compara o número de emissoras legalizadas com o de rádios fechadas. Segundo o documento (2005, p. 46), para as “cerca de 2.300 emissoras já autorizadas desde o início do processo de legalização, em 1998. De acordo com a 5 www.abert.org.br Associação Mundial de Radiodifusão Comunitária (Amarc), o número de rádios fechadas pela fiscalização entre o início de 2002 e março de 2004, chegava a 8.747”. José Guilherme Castro enfatiza que, diante da morosidade da tramitação dos processos no Ministério das Comunicações para autorização das emissoras comunitárias, cerca de 15 mil rádios comunitárias funcionam sem autorização do governo no país. Mesmo entre as emissoras autorizadas a funcionar, os desafios são grandes e exigem o apoio de uma rede de solidariedade para superar as dificuldades no dia-a-dia. Em sua grande maioria constituídas por comunidades que dispõem de poucos recursos financeiros, humanos, técnicos e materiais (a minoria é criada por órgãos e entidades que lhes garantem médio nível de infra-estrutura), estas rádios são geralmente instaladas em minúsculos cômodos cedidos pela comunidade, quando não ocupam um pequeno espaço numa casa de família da vila. De uma forma geral, tais emissoras sobrevivem do voluntariado da própria comunidade, pessoas que cedem horas diárias no revezamento do microfone e na mesa de som após terminarem suas rotinas de trabalho assalariado. Em alguns casos, um ou outro apresentador recebe um percentual do apoio cultural que divulgam em seus programas. A falta de capacitação da grande maioria dos locutores e apresentadores não é vista por pesquisadores, a exemplo de Cicília Peruzzo (2003, p. 57), como fator impeditivo para a realização do trabalho nas rádios comunitárias. A autora aponta como importante característica da mídia comunitária a utilização de pessoas da própria comunidade como protagonistas principais. Neste tipo de mídia, a identificação e a proximidade com a comunidade são de grande auxílio, pois “quem produz (cria, fala, redige, edita, transmite etc) as mensagens não é necessariamente um especialista [...], mas o cidadão comum”. A programação é variada e normalmente oferece conteúdo para as faixas etárias dos componentes da família, que acabam tornando-se ouvintes fiéis. Temas como cuidados com a saúde, religião, proteção/direito do cidadão/consumidor, futebol e conscientização contra os perigos das drogas são os mais freqüentes. Reconhece-se que algumas emissoras comunitárias reproduzem o modelo de emissoras comerciais no que se relaciona com conteúdo musical, que se estende por horas seguidas, intercalado com rápidas inserções para recados e diálogos comunitários. Em muitos casos, os próprios coordenadores das rádios admitem esta prática para não perderem a audiência para as emissoras comerciais, sendo obrigados, portanto, a mesclar a programação que, de acordo com o projeto, deveria focalizar questões voltadas para o desenvolvimento sócio-econômico e cultural da sociedade. Oportuno ressalta ainda que entre as dificuldades vivenciadas pelas emissoras comunitárias estão também situações advindas da utilização do rótulo de comunitário para denominar práticas que, na verdade, não têm esse sentido, conforme ressaltado por Peruzzo (2003, p. 245). “Alguns princípios são fundamentais para a consecução de uma comunicação comunitária. Não basta que ela seja de baixo alcance e que se destine a pequenas localidades para ser considerada como tal”. Porém, há emissoras radiofônicas comunitárias que efetivamente contribuem para a reconfiguração da esfera pública das comunidades onde atuam, chegando a interferir nas administrações municipais. A rádio Inter-FM, localizada no município mineiro de Brumadinho, situado a 55 km de Belo Horizonte, teve relevante papel na conscientização sócio-política e cultural da comunidade local e, como rara exceção, participou do processo de cassação do mandato do prefeito municipal. O contato e a participação das comunidades nas emissoras na maioria das vezes se dá pelo telefone, solicitando músicas e fazendo sugestões ou reclamações de serviços públicos. A participação da comunidade na gestão da rádio não é prática comum. A exigência da participação direta da comunidade na gestão da rádio, na percepção do pesquisador Valdir de Castro Oliveira6, reflete a necessidade de se ter um novo olhar sobre a questão e passar a abordá-la sem a visão heróica de tais emissoras como modelo de poder horizontalizado. Ele acredita ser necessário analisar o setor com base na realidade atual e não a partir do modelo teórico definido pela academia e pelo próprio movimento das rádios comunitárias. O autor questiona se a horizontalidade prometida pela ideologia das rádios comerciais é possível, ao indagar: o comunitário como se prega é possível? Será que as rádios comunitárias não são também um espaço de autoritarismo e de hegemonia? É preciso abandonar esta visão heróica e descobrir o que realmente são hoje as rádios comunitárias. Elas trabalham com o desejo de como deve ser uma rádio, mas na prática do diaa-dia não é assim. Oliveira considera importante e válido o discurso das pessoas que lutam pela consolidação das rádios comunitárias como canal de expressão da população menos favorecida, já que elas fazem parte do movimento, razão pela qual seu depoimento deve ser relativizado, mas chama atenção de pesquisadores e estudiosos para a necessidade de um olhar mais realista sobre a situação. “A academia deve refletir sobre isso sem a visão do caráter heróico destas emissoras”. Uma das principais críticas do especialista relaciona-se à gestão das rádios comunitárias que, em sua opinião, não tem, necessariamente, que ser participativa. Ele acredita que, na correria do dia-a-dia não é possível discutir tantas questões administrativas para se tomar decisões. É preciso ter alguém que se responsabilize pela administração. Se o socialismo prometido não mais existe, muitas vezes, não é por malandragem. Outras questões devem ser analisadas, como, por exemplo, a programação, que deve estar voltada para os interesses da população. Nas rádios mais comprometidas com os problemas que envolvem a rotina da comunidade são criadas estratégias para que determinadas informações cheguem às emissoras sem colocar em perigo os seus informantes. Isto é comum, por exemplo, em regiões onde existem tráfico de drogas e ação de grupos violentos. Rádio Favela Uma das emissoras comunitárias de maior visibilidade no país, a Rádio Favela, instalada em Belo Horizonte (MG), funcionou sem autorização entre 1981 e 1996, quando recebeu a outorga como emissora educativa, na freqüência 106,7 FM. A emissora alcançou grande visibilidade em função do seu reconhecimento pela Organização das Nações Unidas (ONU), devido à realização de campanhas preventivas e educativas contra o tráfico e uso de drogas e a violência. Por causa desse reconhecimento e diante da audiência entre os ouvintes, a emissora teve a história contada no filme “Uma onda no ar”. Hoje a Rádio 6 Informações transmitidas em entrevista concedida à autora, por telefone, em 17/07/05. Favela é mantida pelos moradores da Vila Nossa Senhora de Fátima, localizada no Aglomerado da Serra, composto por 11 vilas e favelas e população estimada em cerca de 160 mil habitantes7. De acordo com um dos fundadores da emissora, Nerimar Wanderley Teixeira8, a emissora nasceu do desejo da população local de criar um espaço para divulgar a música e a cultura negras, denunciar a discriminação contra os moradores, dos principais problemas relacionados à violência e às drogas e das dificuldades vivenciadas pela população, como a falta de infra-estrutura, de saneamento urbano. A Rádio Favela pertence hoje à Fundação Educativa Cultural e Comunitária de Belo Horizonte, presidida há mais de 20 anos por Misael Avelino dos Santos, mantenedora da Associação de Comunicação Comunitária da Rádio Favela, que abriga também uma escolinha de reforço para os alunos da comunidade. Quatro professores, pagos pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, se revezam na sede da emissora para darem orientação e ajuda às crianças nos estudos, nos períodos da manhã e tarde. A receita da Rádio Favela, segundo Teixeira, vem exclusivamente de apoio cultural. Atualmente a emissora mobiliza cerca de 50 voluntários em sua rotina de trabalhos, sendo que alguns funcionários recebem uma comissão pela publicidade divulgada. A rádio concentra especial atenção em sua programação para a prevenção de doenças, razão pela qual constantemente promove campanhas próprias preventivas, especialmente contra o câncer de próstata e de mama e vacinação. A rádio Inter-FM A rádio Inter-FM, fundada no final de 1996, tem a preferência de 56% da população de Brumadinho9, município situado a 55 km da capital mineira. Autorizada a funcionar como emissora comunitária desde 2003, ela disputa o espaço radiofônico e a audiência dos 33 mil habitantes com outras três rádios comunitárias locais (não autorizadas), que têm formato semelhante ao das rádios comerciais, com programação principalmente musical. O auge da Inter-FM como canal de ampliação das vozes locais foi a transmissão direta da cassação do prefeito, em janeiro de 1999. A rádio tem boa tradição também na realização de debates com os candidatos a cargos públicos no município. A emissora tem preocupação educativa, mas diante da falta de infra-estrutura e da pressão exercida pelas outras rádios, a Inter-FM viu-se obrigada a mesclar sua programação com conteúdos musicais. Segundo o presidente da Inter-FM, o cantor Leci Strada, a emissora abre mão de uma programação puramente comunitária e educativa para não ceder seu espaço radiofônico às outras rádios e, assim, contribuir para o desenvolvimento sóciocultural dos habitantes de Brumadinho. Por esta razão, a programação da emissora tem conteúdos musicais além do desejado pela sua diretoria, com forma de manter a audiência, misturando com programas de notícias, reportagens, debates e entrevistas, entre outros. A receita da Inter-FM, de acordo com Strada, vem exclusivamente de apoios culturais. Também nesta área constata-se a difícil convivência entre as quatro rádios do 7 Todas as informações foram transmitidas por Nerimar Wanderley Teixeira, em entrevista à autora, em abril de 2004. 8 Coordenador da Rádio Favela e um dos fundadores da emissora. 9 Pesquisa encomendada pela campanha política do PMDB, realizada pela Vox Populi no município, em 2004. município, já que as outras emissoras têm uma tabela muito baixa para inserções publicitárias, além de receberem ajuda financeira por meio de convênios com empresas. Constituída como a Associação Comunitária de Radiodifusão Cultural, Educativa e Artística de Brumadinho (ACRCEAB), a rádio Inter-FM funciona com a ajuda de 23 voluntários, sendo que outros três funcionários recebem ajuda de custo. A rádio já realizou diversas campanhas para ajudar pessoas necessitadas da comunidade, como doação de equipamentos médicos, roupas e alimentos. Numa iniciativa própria, há seis anos ela consegue ajuda de 20 cestas básicas mensais para famílias do município. Pauta de reivindicações A ABRAÇO reivindica em documento encaminhado à Presidência da República providências e modificação na legislação, como por exemplo, o fim da repressão e anistia às pessoas processadas por colocar rádios comunitárias no ar, realização da I Conferência de Radiodifusão Comunitária, desarquivamento de todos os processos, devolução de equipamentos apreendidos, mudança na legislação em geral, sobretudo quanto ao aumento de potência e o número de freqüências. A pauta de reivindicação inclui ainda a permissão para formar rede, a agilização dos processos de outorga no Ministério das Comunicações, reabertura das Delegacias Estaduais do Ministério das Comunicações e revisão dos processos de concessão de outorgas já realizados. Legislação Se a obediência aos preceitos constitucionais não se dá de maneira tão rigorosa, o mesmo não ocorre quanto à legislação que rege o serviço de radiodifusão comunitária no Brasil. O movimento reclama da rigorosa restrição imposta pela Lei n.º 9.612/98, que, ao estipular a potência máxima de 25 Watts, raio de alcance de 1 km e limite de altura da antena com relação ao solo de 30 metros, delimita o já pequeno espaço físico de transmissão de tais emissoras. A atual legislação proíbe que as emissoras comunitárias comercializem espaço publicitário, ou seja, venda de anúncios de empresas/comércio localizado na própria comunidade, permitindo apenas o chamado apoio cultural. Em outras palavras, a legislação restringe a comunidade a um espaço físico correspondente a um bairro, vila ou favela, o que impossibilita maior alcance das transmissões e dificulta o estabelecimento de vínculos entre as comunidades, o que contribuiria para fortalecer o movimento. O próprio diagnóstico elaborado pelo Grupo de Trabalho Interministerial ressalta as exigências da regulamentação específica, na medida em que “as proibições e restrições, como a limitação à obtenção de recursos para sustentabilidade e de operar em rede, também contribuíram para dificultar a disseminação e o pleno desenvolvimento de uma política democrática para o setor”. A limitação da área de abrangência da rádio segundo o critério de espaço físico é criticada por Valdir Oliveira10, que entende que o sentido de comunidade ultrapassa o espaço geográfico, por abrigar instâncias de compartilhamento de vivências, crenças, identidades individuais e coletivas. Ele ressalta ainda que “comunidade não significa homogeneidade. Pelo contrário, compõe-se de diversas pequenas comunidades e grupos 10 Entrevista concedida à autora em setembro/03. que possuem diferentes interesses, opiniões e interpretações de mundo”. Nesta mesma linha, Cicília Peruzzo (2003, p.246) enfatiza que “comunidade pressupõe a existência de uma proximidade – que pode ser geográfica, mas que não se limita a ela – e de elos, profundos entre os membros, como o sentimento de pertença, identidades e comunhão de interesses”. Diante da rígida legislação, as rádios comunitárias reivindicam outro tipo de tratamento e argumentam que não são “piratas”, na medida em que não visam o lucro financeiro, mas a divulgação de temas de interesse da comunidade, assim como dar espaço à população marginalizada pelos veículos comerciais. Evidentemente os posicionamentos quanto à legislação são divergentes, o que dificulta qualquer tentativa de diálogo. Representadas pela ABERT, as emissoras comerciais reclamam da concorrência das rádios comunitárias e argumentam que as clandestinas interferem no controle de vôo dos aeroportos, o que já foi comprovado ser inverídico. Na percepção de alguns coordenadores e agentes das rádios comunitárias, esta entidade possivelmente exerce influência sobre a ação dos fiscais da ANATEL, órgão pertencente ao Ministério das Comunicações. A Polícia Federal é acusada ainda de agir com violência no fechamento e apreensão de equipamentos das emissoras comunitárias e de usar equipamentos da Abert em seu trabalho de fiscalização. O delegado Armando Rodrigues Coelho Neto (2002), presidente da Federação Nacional dos Delegados da Polícia Federal (FENADEPOL), argumenta que, embora o Brasil seja signatário do Pacto de São José, que determina respeito ao exercício da comunicação e da livre expressão, age exatamente em sentido oposto quando o assunto relaciona-se às emissoras comunitárias. Autor do livro Rádio Comunitária não é crime (2002, p. 68), ele entende que justamente por ter uma programação voltada para os interesses da própria comunidade, estas emissoras correspondem “a uma modalidade de transmissão radiofônica diferente, própria de uma nova era, à qual o Direito precisa se adaptar. Assim, não há como se confundir com as grandes emissoras, até porque seu público, diferenciado por si, a qualifica e lhe dá ares próprios”. Coelho Neto (2002, p. 68) acredita que as rádios comunitárias tenham sido criadas para ocupar as “lacunas deixadas pelas emissoras de médio e grande porte que, em geral, não se prestam a servir as pequenas comunidades, como as do interior ou de bairros de grandes cidades”. Ele entende que tais emissoras estão voltadas para um público mais amplo e diversificado, que não é atendido por veículos da grande imprensa, já que estes “não mergulham nas especificidades dos pequenos conglomerados, mas cujas ilhas, quando somadas, representam um universo considerável”. Ao chamar atenção para o fato de que a repressão policial não deu conta de impedir o crescimento e a proliferação das rádios comunitárias, devido ao apoio popular – é comum as comunidades socorrerem as equipes das emissoras invadidas por fiscais e policiais e, numa rapidez surpreendente, reabrem as emissoras –, ele questiona se “pode uma ordem jurídica punir uma conduta que a sociedade não reprova nem condena” (2002, p. 26). É também pelo ângulo jurídico que o juiz Paulo Fernando Silveira (2001) defende a legitimidade das emissoras comunitárias como veículo facilitador do direito à informação. Ele aponta a inconstitucionalidade das lacrações e apreensões realizadas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e Polícia Federal e explica que a Lei n. 9.472/97 (novo Código Brasileiro de Telecomunicações), ao revogar a Lei n. 4. 117/62 (o antigo Código), excepcionou a matéria penal, não tratada no novo Código, e os preceitos relativos à radiodifusão, evidentemente nele especificamente não contemplados, já que também incursionou legislativamente nessa área. Ele entende que a radiodifusão, em geral, ainda deve ser regida pelas disposições antigas e não pelo novo Código de Telecomunicações, além do fato de que as emissoras comunitárias têm legislação própria. O jurista (2001, p. 166) reforça que “a lei não fez remissão ou ressalva a dispositivo algum do antigo Código de Telecomunicação. Logo, as rádios comunitárias a ele não se sujeitam”. Ao destacar o relevante papel da imprensa para a divulgação das notícias e propagação das idéias na formação do perfil da comunidade, o juiz (2001, p. 56) ressalta a dimensão política da imprensa e reforça que se a mídia não for livre da ação governamental, transforma-se, necessariamente, em instrumento de dominação dos mais terríveis, pela adulação para obter os favores dos que estão no poder, em forma de novas concessões [...] para se fechar o círculo da tirania, elitizado e centralizado, do qual o povo, mantido na ignorância pela falta de informação, ou por deturpadas notícias, além de pressionado pelo governo centralizador, não encontra meios de escapar. GTI propõe alteração na legislação Criado em fevereiro de 2005 (suas atividades encerraram-se em 10.08.05), o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) analisou o setor de radiodifusão comunitária no país e sugeriu medidas para facilitar a disseminação das rádios comunitárias como forma de ampliar o acesso da população a esta modalidade de comunicação, além de agilizar os procedimentos de outorga e aperfeiçoar a fiscalização do sistema11. O GTI levou em consideração as sugestões de entidades da sociedade civil, entre elas a ABERT e a ABRAÇO, além de membros dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com vistas à construção de uma nova política pública para a radiodifusão comunitária. Conforme explicado, as recomendações do grupo serão ainda avaliadas pelo presidente da República. Entre as sugestões do GTI destacam-se: a alteração da Lei nº 9.612/98 visando simplificar e agilizar o processo de autorização para o serviço e ainda, possibilitar: publicidade, proteção, inclusão de minorias, aumento da oferta de canais e execução do serviço de radiodifusão comunitária de sons e imagens; anistia aos radiodifusores comunitários cujas emissoras estejam em consonância com a Lei nº 9612/98. O documento entregue ao governo recomenda o “incentivo à produção de conteúdo por meio da atuação dos Ministérios da Educação e da Cultura das emissoras de radiodifusão comunitária, financiar projetos relacionados à disseminação e sustentabilidade de emissoras de radiodifusão comunitária por meio da criação de fundo governamental”. Sugere ainda a permissão à formação de redes pelas emissoras radiofônicas comunitárias e recomenda ainda a realização da I Conferência Nacional de Radiodifusão Comunitária, como forma de reunir o setor, conhecer a realidade e discutir a situação das rádios comunitárias no Brasil. Considerações finais 11 Todas as informações sobre o GTI foram transmitidas pela coordenação do Grupo de Trabalho Interministerial, por entrevista, por e-mail, à autora, em 12.08.2005. Percebe-se que o cenário das rádios comunitárias no Brasil é complexo e dinâmico, com inúmeros e diferentes atores sociais participando e interferindo no setor. Ressalta-se, por um lado, a determinação do movimento, que busca não apenas visibilidade para suas ações e estratégias junto à sociedade civil, como também abre espaço para interlocuções junto ao governo federal. Este, por sua vez, reflete alguma sensibilidade ao reabrir diálogos com representantes do movimento, com vistas à disseminação de tais emissoras pelo país. Diante do dinamismo do setor, não se pode deixar de considerar, contudo, que o movimento pela consolidação das rádios comunitárias no Brasil vive hoje momentos de expectativa e apreensão, sobretudo por exercer forte pressão sobre o governo popular que ajudou a eleger. Referências bibliográficas COELHO NETO, Armando. Rádio comunitária - direito de antena: o espectro eletromagnético como um bem difuso. São Paulo: Ícone, 2002 COGO, Denise Maria. No ar... uma rádio comunitária. São Paulo: Paulinas, 1998. SOUZA, Sérgio Euclides de. Concessões de radiodifusão no Brasil: a lei como instrumento de poder. 1990. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social), Universidade de Brasília. DETONI, Márcia. Radiodifusão comunitária. Baixa potência, grandes mudanças? Estudo do potencial das emissoras comunitárias como instrumento de transformação social. São Paulo: USP, 2004 (Dissertação de Mestrado – Comunicação Social). DOWNING, John D. H. Mídia Radical – rebeldia nas Comunicações e Movimentos Sociais. 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