Como citar este capítulo:
MACHADO, P.F. Pagamento do leite por qualidade. In: BARBOSA, S.B.P., BATISTA, A.M.V., MONARDES, H.
III Congresso Brasileiro de Qualidade do Leite. Recife: CCS Gráfica e Editora, 2008, v.1, p. 183-191.
PAGAMENTO DO LEITE POR QUALIDADE
Paulo Fernando Machado
Professor Titular em Bovinocultura de Leite
Clínica do Leite – Departamento de Zootecnia
ESALQ-USP
O Programa Nacional de Melhoria da Qualidade do Leite – PNQL foi
implementado em 2000 com o objetivo de melhorar a qualidade do leite
produzido no Brasil. Para o sucesso do programa foram planejadas ações em
quatro áreas: a primeira se referia a criação e aparelhamento de uma rede de
laboratórios (RBQL) que viesse a analisar pelo menos uma amostra de leite de
cada propriedade produtora de leite quanto aos parâmetros internacionais de
avaliação da qualidade do leite (gordura, proteína, sólidos não gordurosos,
crioscopia, contagem de células somáticas (CCS), contagem bacteriana total
(CBT) e contaminantes), a segunda, a criação de normas e padrões de
identidade do leite, de acordo com padrões internacionais, a serem atingidos
em data definida (Instrução Normativa - 51 de 20 de setembro de 2002), a
terceira, a implantação de infraestrutura procurando viabilizar os meios
necessários ao atingimento das metas propostas como estradas, energia
elétrica, equipamentos de frio, etc., e a quarta e última, a participação da
indústria através da coleta de amostras diretamente dos tanques das fazendas,
o treinamento dos produtores na obtenção de leite de melhor qualidade e o
estabelecimento de incentivos ou penalizações para tanto.
A RBQL, a IN-51, a coleta de amostras e a verificação por parte do Ministério
da Agricultura Pecuária e Abastecimento – MAPA quanto às não
conformidades aos padrões definidos estão sendo executadas. Estas ações
farão com que haja melhoria substancial no leite brasileiro se acontecer aqui o
que aconteceu em outros países. Um exemplo é a experiência canadense
(Sargeant, et al. 1998). Naquele país, em agosto de 1989, foi implantado um
plano de cinco anos de redução do limite legal de células somáticas, de 800 mil
células por mL para 500 mil por mL, com estágios anuais de redução de 50 mil
células por mL. O gráfico 1 mostra a evolução do processo. Houve no primeiro
ano uma redução de 16 mil céls/mL, no segundo de 36 mil céls/mL e no
terceiro de 36 mil céls/mL. No quarto ano houve um aumento de 22 mil céls/mL
atribuído à um efeito não mais punitivo do programa. No programa era previsto
que houvesse uma punição de $1,00 dólar canadense por hL de leite pela
primeira infração (resultado superior ao limite). Para cada infração posterior à
primeira, dentro de 1 ano, a penalidade aumentaria $1,00/hL até o máximo de
$5,00/hL. Seis penalidades num prazo de 1 ano determinariam a perda da
licença de produzir leite. Como a partir do quarto ano os produtores já estavam
enquadrados nos limites do programa, não mais se sentiam motivados a
continuar reduzindo a sua contagem de células, resultando num aumento como
o que foi observado.
Disponível em: http://www.cbql.com.br/biblioteca.php
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Gráfico 1. Evolução da contagem de células somáticas a partir da implantação
do Programa de Melhoria da Qualidade do leite no Canadá (Sargeant, et al.
1998).
No Brasil devemos esperar comportamento semelhante. Os profissionais do
MAPA começaram a atuar na fiscalização das indústrias com relação à IN-51,
com mais intensidade, em 2008 e, portanto, devemos observar redução na
CCS e na CBT a partir deste ano. Até o momento, apesar da publicação da IN51 em 2002, não se observou nenhum efeito sobre a qualidade do leite (tabela
1). O que foi observado foi um aumento expressivo no número de análises,
como pode ser observado no gráfico 2.
Disponível em: http://www.cbql.com.br/biblioteca.php
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Gráfico 2. Evolução do número de análises realizadas na Clínica do Leite
Tabela 1. Evolução da composição do leite analisado na Clínica do Leite
Parâmetro
Periodo
No. Amostras
Média
Mediana
Média
Desvio
Padrão
Geométrica
Gordura (%)
Proteina (%)
2005-2006
208.118
3,56
3,53
0,63
2006-2007
369.972
3,58
3,55
0,64
2007-2008
266.496
3,56
3,52
0,61
2005-2006
208.118
3,19
3,19
0,17
2006-2007
369.972
3,19
3,18
0,18
2007-2008
266.496
3,18
3,17
0,17
2005-2006
208.118
8,59
8,6
0,34
2006-2007
369.972
8,56
8,58
0,38
2007-2008
266.496
8,61
8,6
0,37
CCS (mil cel/mL) 2005-2006
211.849
501
375
352
473
2006-2007
377.981
502
383
363
455
ESD (%)
2007-2008
267.205
496
377
354
465
CBT (mil ufc/mL) 2005-2006
206.205
448
164
151
641
2006-2007
372.943
609
110
115
1259
2007-2008
262.965
810
115
127
1682
Como a IN-51 prevê limites de CCS de 400 mil céls/mL e de CBT de 100 mil
ufc/mL (que são semelhantes aos europeus) a partir de 2011, somente com as
ações do MAPA já teremos uma melhoria substancial na qualidade do leite
brasileiro. Considerando-se a variabilidade normal dos dados, para que um
produtor tenha 90% de certeza de não ultrapassar os limites da IN-51 previstos
para 2011, sua média de CCS deverá ser ao redor de 250 mil céls/mL e de
CBT de 60 mil ufc/mL, valores bem inferiores às 500 mil céls/mL para CCS e
de 600 mil ufc/mL observados atualmente (tabela 1).
Disponível em: http://www.cbql.com.br/biblioteca.php
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Se os valores previstos no parágrafo anterior acontecerem, apesar da melhoria
na qualidade do leite brasileiro, ainda estaremos longe da qualidade média do
leite europeu que possui menos de 25 mil ufc/mL ou do canadense que possui
menos de 15 mil ufc/mL. Isto sem dúvida reduz substancialmente nosso
diferencial competitivo e é um entrave às nossas exportações.
Por outro lado, para que a cadeia se torne cada vez mais competitiva, é preciso
que a indústria tenha mais eficiência na manufatura dos seus derivados, que os
produtos tenham mais tempo na prateleira e que os consumidores se sintam
mais satisfeitos com os produtos do leite para que prefiram adquirí-los em
detrimento dos produtos concorrentes. Isto tudo será possível através de
melhorias adicionais na matéria prima que chega à indústria (leite crú).
No caso de leite fluído (pasteurizado ou UHT) as células somáticas e as
bactérias contaminantes (mesófilos e psicrófilos) tem grande influência sobre
as características organolépticas e sobre o tempo de prateleira. É possível
aumentar de 7 dias para 90 dias o tempo de prateleira do leite pasteurizado
(desde que refrigerado abaixo de 7oC) se a matéria prima tiver menos de 25 mil
ufc/mL e menos de 100 mil céls/mL (Barbano et al. 2006). Isto representaria
uma revolução para a cadeia do leite.
No caso de derivados, além da redução de células somáticas e de bactérias
que também interferem nas características organolépticas, no tempo de
prateleira e no rendimento dos derivados, o aumento na concentração de
gordura e de proteína verdadeira no leite representaria outra grande revolução
para a cadeia pois haveria redução nos custos de transporte da matéria prima
e aumento na eficiência industrial.
Como reduzir células somáticas e bactérias além dos padrões da IN-51, e
aumentar os níveis de gordura, proteínas e outros sólidos no leite? A resposta
é: através do pagamento do leite em função de sua qualidade!
No Brasil já existem empresas efetuando o pagamento em função da
qualidade. Em levantamento feito pelo Conselho Brasileiro de Qualidade do
Leite – CBQL em 2005, das 15 maiores empresas processadoras de leite, 12
diziam que pagavam por qualidade. Os critérios utilizados eram bastante
variáveis. Cem porcento pagavam em função do volume, 42% em função dos
sólidos, 17 % em função de CBT. O montante pago a mais chegava a mais de
10% para 42% das empresas, de 5,1% a 10% para 17% das empresas e
menos de 5% para 17% das empresas.
A Dairy Partners of America – DPA, maior empresa compradora de leite fluído
no Brasil adota os seguintes critérios: paga-se um preço base e um adicional
por volume, mercado, distância, teor de proteína, teor de gordura e
concentração de células somáticas e de bactérias. No caso de proteína, leite
com teor acima de 3,0% é bonificado e abaixo de 2,9% é penalizado; para
gordura, acima de 3,25% é bonificado e abaixo de 3,05% é penalizado; para
CCS, acima de 500 mil céls/mL é penalizado e abaixo de 400 mil céls/mL é
bonificado; e, para CBT, acima de 450 mil ufc/mL é penalizado e abaixo de 150
Disponível em: http://www.cbql.com.br/biblioteca.php
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mil ufc/mL é bonificado. A bonificação para um leite com 3,6% de gordura,
3,2% de proteína bruta, 250 mil céls/mL e 70 mil ufc/mL seria equivalente a
R$0,03/L.
Não se dispõe de dados publicados pela empresa quanto ao sucesso deste
programa. Com certeza o impacto está sendo grande conhecendo-se a
excelência das operações da Nestlé.
Este seria o programa de pagamento ideal a ser utilizado em nosso país? Para
responder à esta questão seria interessante avaliarmos o que é feito em outros
países.
Nos EUA, a partir de janeiro de 2000 foi implantado o sistema de precificação
por múltiplos componentes (Kenneth, 2000). O produtor recebe pela
quantidade de gordura, proteína e outros sólidos. Dependendo da quantidade
de células somáticas é feito um ajuste para cima ou para baixo no valor a ser
recebido(equivalente a 0,0005 multiplicado pela diferença entre o observado e
um padrão que hoje é de 350 mil céls/mL, arredondado até a segunda casa
decimal). Existem outros ajustes que dependem da região do produtor e do
preço médio do leite de classe III (cujo destino é queijo) chamado de PCP
(Producer Price Diferential) e de alguns descontos como o de transporte,
marketing, etc. O produtor consegue manipular somente a concentração dos
componentes e a contagem de células somáticas. Estes fatores, no entanto,
tem grande impacto no preço final. No gráfico 3 observa-se a distribuição das
fazendas em função do preço do leite pago em 2000 na região nordeste dos
EUA. Observa-se que existem fazendas recebendo até 14 US$ por 100 libras
enquanto que outras recebem 9 US$ por 100 libras.
Gráfico 3. Histograma do número de fazendas em função do valor pago
(US$/100 libras) pelo leite na região nordeste dos EUA (Kenneth, 2000).
A análise da literatura mundial mostra que existe uma tendência de se pagar
em função da concentração de sólidos. A razão básica desta tendência está no
fato de que mais de 60% do leite adquirido é destinado para fins outros que
não o fluído (FAD – Dairy – Outlook Owner, 2003).
Disponível em: http://www.cbql.com.br/biblioteca.php
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Uma proposta de pagamento do leite no Brasil
No Brasil 64,4% do leite é utilizado na forma fluída, o restante é utilizado para a
produção de derivados que dependem inteiramente dos sólidos da matéria
prima (CBCL/CNA/IBGE, 2002). Assim, o pagamento em função da quantidade
de sólidos seria, também, totalmente viável.
Os valores de gordura, proteína e demais sólidos seriam calculados
mensalmente, em cada indústria, dependendo de seu portfólio de produtos, do
rendimento industrial e do custo de manufatura, marketing, margem de lucro e
valor da venda dos derivados. Com isso a indústria saberia exatamente o valor
dos sólidos presentes no leite de seu fornecedor. Se o valor calculado fosse
inferior ao do mercado, a indústria pagaria o valor de mercado e procuraria
reduzir seus custos. Se o inverso ocorresse, ela poderia pagar mais do que o
mercado e teria uma vantagem estratégica. Para fins ilustrativos, atualmente
(julho 2008), nos EUA, na região nordeste, o preço da gordura do leite está em
R$ 2,3668, o de proteína verdadeira R$ 6,4890 e o dos demais sólidos em R$
0,1138 (http://www.fmmaclev.com/).
Quanto aos componentes indesejáveis (CCS e CBT), seriam implementadas
penalizações (as pessoas possuem aversão às perdas – tendência forte de
preferir evitar perdas do que adquirir ganhos - Rabin, 1998) e nenhuma
bonificação. Assim, os níveis de CCS e CBT, a partir de certo patamar seriam
utilizados para penalizar o preço. Este patamar deveria ser tal que 20% a 25%
dos melhores produtores daquela indústria se encontrariam. Os dados anuais
das indústrias para CCS e CBT deveriam ser analisados e divididos em duas
épocas (época de chuvas e de seca no caso da região sudeste). Em cada uma
desta épocas os dados seriam agrupados em quartis; o primeiro quartil conteria
os produtores padrão para CCS e CBT. Os demais quartis (segundo, terceiro e
quarto) conteriam os limites superiores e inferiores para estas variáveis. O valor
de desconto deveria ser, para o quarto quartil, equivalente a 10% do valor que
o produtor receberia pelos sólidos, tanto para CCS como para CBT. Assim, um
produtor que estivesse classificado no quarto quartil para CCS e também para
CBT receberia 20% a menos do que poderia receber.
Este tipo de precificação seria caracterizado pela transparência (o produtor
saberia exatamente o que fazer para melhorar sua rentabilidade e passaria a
participar financeiramente da cadeia como um todo), por sua imparcialidade
(seria justo tanto para a indústria como para o produtor, pagando mais para
quem merece e fazendo com que o produtor participasse do mercado
consumidor com suas vantagens e desvantagens), e por melhoria consistente
da qualidade (o produtor estaria constantemente sendo impelido a melhorar a
qualidade do leite, focando em quantidade de sólidos e redução de CCS e
CBT).
Desta maneira estar-se-ia atendendo o objetivo do programa que seria garantir
que o preço recebido pelo produtor refletisse a quantidade e a qualidade da
matéria prima e o valor dos produtos derivados da mesma.
Disponível em: http://www.cbql.com.br/biblioteca.php
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Bibliografia
Barbano, D.M et al. 2006. Influence of raw milk quality on fluid milk shelf life. J.
Dairy. Sci., 89:E15-E19.
Brasil 2002. Instrução Normativa No 51, de 18 de dezembro de 2002. Publicado
no Diário Oficial da União de 20/09/2002, Seção 1, Página 13.
CBCL/CNA/IBGE, 2002. In: http://www.cnpgl.embrapa.br/
FAD – Dairy – Outlook Owner, 2003. In: http://www.cnpgl.embrapa.br/
Kenneth Bailey, 2000. Milk Components and Quality: New Methods for paying
Pennsylvania Dairy Farmers. The Pennsylvania State University. In:
www.das.psu.edu/user/publications/pdf/ua342.pdf.
Rabin, M. 1998. Psychology and economics. J. Econ. Lit. 36:11-46
Sargeant, J. M. Et al. 1998. Ontario Bulk Milk Somatic Cell Count Reduction
Program: Progress and Outlook. J. Dairy Sci. 81:1545-1554.
Disponível em: http://www.cbql.com.br/biblioteca.php
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