O PIOR INIMIGO
O inimigo nunca é bom. Mas, a par desta verdade, outra afirmação é
possível: há um inimigo pior. E o pior dos inimigos é aquele oculto,
disfarçado, dissimulado, por vezes até infiltrado. Contrariamente ao que
se dá numa guerra dita “convencional”, quando o exército oponente
possui uniforme e posição identificáveis, o inimigo disfarçado age como
um guerrilheiro: sem farda, sem posto definido e, por vezes, “sem rosto”.
Evidentemente, torna-se muito mais difícil combatê-lo.
Quando se decide enfrentar o racismo no Brasil, já chamado de paraíso
racial e onde, até hoje, ouve-se nos mais variados ambientes que o
racismo não existe, é preciso que se esteja atento. Raros são os casos
de racistas assumidos. Poucos tem a ousadia de revelar o ódio racial em
público. É comum, na luta em prol da igualdade, depararmo-nos com
inimigos ocultos, disfarçados, dissimulados. Encontramos racistas que
se dizem amigos, que convivem com pessoas de raças diferentes das
suas e até são aparentemente contrários à discriminação e ao
preconceito. Estas pessoas, no entanto, revelam sua verdadeira faceta
quando se veem atingidas ou ameaçadas (mesmo supostamente) em
seus interesses, posições ou ideias. Somente aí vem à tona a fúria
racista antes desconhecida. Surgem, então, as manifestações de
intolerância e as agressões de toda ordem, baseadas no preconceito.
Descortina-se o ódio racial, até então oculto. Ao longo de minha carreira
como pesquisador e como Promotor de Justiça, detectei a existência de
um curioso fenômeno em inquéritos policiais e em processos judiciais
(que registrei em meu livro “Crimes de Preconceito e de Discriminação”):
ao ser investigado ou acusado de um crime de “racismo”, muitas vezes o
suspeito ou réu tenta escapar da “condenação” (e, incrivelmente, às
vezes convence o delegado de polícia, o promotor e o juiz) alegando ter
amigos e, por vezes, parentes distantes ou próximos, da raça ofendida.
O raciocínio explicitado é: “se tenho pai negro, como posso ser racista”?
Se tenho uma esposa da umbanda, como posso ser intolerante com
religiões de origem africana? Para se defender, portanto, quem antes
tinha vergonha do fato de ter um bisavô negro, finge orgulho ao resgatar
sua ancestralidade (antes oculta e até amaldiçoada). Diante disso, uma
questão se coloca: é possível a alguém praticar crime de racismo
mesmo tendo amigos e parentes da raça ofendida? Por mais estranho
que isso possa parecer a alguns, a resposta é sim, como também é
possível algo mais complexo: ser racista contra a própria raça e ser
intolerante contra membros de sua própria religião. Uma das explicações
psicológicas para tanto está na dificuldade de o indivíduo aceitar-se com
é. Jean-Paul Sartre tratou com profundidade desta questão em seu livro
“Reflexões sobre o racismo”, no qual abordou a situação de judeus que
mantinham
comportamento
antissemita
para
sentirem-se
confortavelmente aceitos por determinados segmentos sociais. Também
Marie Jahoda, em “Relações raciais e saúde mental”, afirmou existirem
negros racistas e judeus antissemitas porque, por um mecanismo
psíquico de proteção, atribuíam “ao seu grupo as características que não
podiam aceitar em si próprios. Para adquirir um certo respeito por si
mesmos, eles adotam a linguagem dos seus inimigos e ligam-se às suas
normas e valores, rejeitando o seu próprio grupo”. Vale lembrar que no
Brasil colonial, vários índios foram “catequisados” e passaram a
combater a “selvageria” dos membros de suas tribos. Importantíssimos
aos portugueses, conheciam o território, como nele andar e, sobretudo,
os hábitos dos “irmãos” que ajudavam a capturar. Não é sem razão que
perdura o ditado: “o pior feitor é o escravo liberto”. Retomando a questão
das provas nos processos criminais, o raciocínio óbvio é: se um judeu
pode ser antissemita, se um negro pode ter preconceito contra seus
iguais em raça, porque um branco não pode ser racista contra os negros
somente porque tem um parente da categoria racial discriminada?
Evidentemente, isso não é prova de inocência. Como se vê, combater
neonazistas que acreditam pertencer a uma raça ou grupo superior e
assumem suas posições ideológicas pseudorracionais é algo muito
menos trabalhoso que enfrentar as sutilezas do nosso “racismo cordial”;
quanto mais numa sociedade que, em grande parte, insiste em negar a
existência do racismo e que se deixa influenciar pelos próprios
preconceitos. A luta pela igualdade, portanto, exige especial atenção,
pois o racista pode estar disfarçado ao nosso redor e, inclusive, pode
estar escondido dentro de nós. Portanto, parafraseando Sun Tsu, em “A
arte da guerra”, vale lembrar, primeiro reconheça o inimigo, depois parta
para vencê-lo. Eis um grande desafio! Um desafio para todos os dias.
FEVEREIRO de 2014
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O PIOR INIMIGO O inimigo nunca é bom. Mas, a par desta verdade