VOCÊ GERARIA UM FILHO PARA SALVAR OUTRO?
A imprensa noticiou que nasceu o primeiro bebê brasileiro selecionado geneticamente
em laboratório, a menina Maria Clara. Trata-se de uma prática que já vem se
desenvolvendo há algum tempo e agora, num salto olímpico, possibilita a seleção de
embriões para evitar doenças genéticas. No caso noticiado, o casal tem uma filha que
sofre de uma doença no sangue (talassemia major), que pode levar à morte. O casal
resolveu ter um novo filho. Para tanto, cedeu material procriativo que foi manipulado
em laboratório, com a finalidade de extirpar a doença genética do embrião e,
posteriormente, com a compatibilidade, realizar o transplante das células-tronco do
cordão umbilical na filha doente e preservar a recém-nascida da futura doença
genética.
Numa explicação mais singela, poderia se imaginar um livro pronto para a impressão
quando o editor descobre um defeito em determinada página e a substitui por outra
correta, nos mesmos moldes das demais, sem qualquer prejuízo para a leitura.
O avanço das pesquisas médicas caminha em passos acelerados e é comum acontecer,
quando da divulgação de um determinado resultado, que a comunidade seja apanhada
despreparada e, após as inquietações que pendem para os lados da perplexidade,
busca retirar as dúvidas que vão se acumulando e mal encontram tempo para
respostas, porque outra construção científica está batendo às portas para iniciar sua
execução. Diante de tão variadas áreas para decifrar o homem em seu compêndio
físico, o Santo Graal, que parecia tão distante, vem se aproximando para elucidar os
mistérios da reprodução humana assistida. Somente agora, à custa de muito estudo, o
homem, proprietário de seu grande latifúndio, consegue ter acesso a informações
privilegiadas a seu respeito.
A decifração do Código Genético é uma das maiores conquistas da humanidade.
Conhecer a função que cada gene exerce no interior do DNA significa ler a informação
genética e descobrir o código da vida. O homem, no entanto, não é apenas resultado
do mapeamento genético, mas também dotado de potencialidade genética que, em
sintonia com o meio onde vive, poderá diferenciá-lo dos demais, formando uma
unidade exclusiva. A ciência inclina-se para desvendar os genes responsáveis por
determinadas moléstias, como alzheimer, síndrome de down, parkinson e outras, com
a intenção de alterar o código genético e possibilitar a erradicação definitiva do mal.
Parte-se, desta forma, salienta Oliveira Júnior, “para uma medicina preventiva,
estruturada no genoma para garantir a saúde das pessoas. Comercialmente é possível
fazer a leitura do DNA, não completa, mas que garimpa informações importantes para
que a pessoa conheça seu código genético e, principalmente, para evitar a ocorrência
1
de doenças de que tenha predisposição genética. É, guardadas as proporções, o
verdadeiro “nosce te ipsum” do pensamento do grego Sócrates, que apregoava o
conhecimento de si mesmo para organizar racionalmente sua vida”.1
O princípio da intocabilidade do embrião, é bom que se diga, já não tem aplicação
plena, em razão dos avanços científicos na seleção dos embriões. Permanece sim a
proibição de selecionar sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro
filho, mas não se questiona a realização do exame para diagnóstico préimplantatório e testes genéticos visando verificar se o embrião é portador de
alterações cromossômicas ou genéticas. Se a constatação for positiva, admite-se o
procedimento corretivo.
A esse respeito, O Conselho Federal de Medicina norteou com Resolução2 o
procedimento e estabeleceu:
As técnicas de RA também podem ser utilizadas na preservação
e tratamento de doenças genéticas ou hereditárias, quando
perfeitamente indicadas e com suficientes garantias de
diagnóstico e terapêutica:
“1 - Toda intervenção sobre embriões "in vitro", com fins
diagnósticos, não poderá ter outra finalidade que não a de
avaliar sua viabilidade ou detectar doenças hereditárias, sendo
obrigatório o consentimento informado do casal.
2 - Toda intervenção com fins terapêuticos sobre embriões "in
vitro" não terá outra finalidade que não a de tratar uma doença
ou impedir sua transmissão, com garantias reais de sucesso,
sendo obrigatório o consentimento informado do casal”.
No mesmo diapasão a Convenção sobre os Direitos do Homem e da Dignidade do
Ser Humano Face às aplicações da Biologia e da Medicina esclarece sobre as
intervenções com o genoma humano, em seu artigo 13º:
“Uma intervenção que tenha por objeto modificar o genoma
humano não pode ser levada a efeito senão por razões
preventivas, de diagnóstico ou terapêuticas e somente se não
1
Oliveira Júnior, Eudes Quintino de. As condutas e responsabilidades médicas em face do princípio da
autonomia do paciente. Tese de Doutorado. Faculdade de Medicina de são José do Rio Preto, 2010, 0.
129.
2
Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1957/2010, item VI.
2
tiver por finalidade introduzir uma modificação no genoma da
descendência”.3
Legalizada a conduta sob o caráter da legalidade, embora a matéria não se
encontra definida em legislação própria, a não ser a Resolução já citada, resta
ingressar nas teias da ética.
Não é o caso de se pensar com base no princípio da proporcionalidade, pelo qual
se escolhe entre dois bens indisponíveis colidentes e concorrentes, qual deles será
sacrificado. O Código Penal resolveu que, em caso de perigo para a saúde da mãe,
prevalece o interesse dela em detrimento do embrião, permitindo-se o aborto
legal. A vida já existente carrega maior chance do que a spes vitae. Em caso de
dois pacientes em situação grave, prevalece o direito daquele que carrega maior
chance de vida, independentemente de idade ou outros fatores.
No caso sub studio não há qualquer escolha preferencial com relação a uma das
vidas, sem qualquer confrontação ética. De um lado, os pais querem extirpar
definitivamente a herança genética que poderá afetar outros membros futuros da
mesma família. É, se assim se pode dizer, uma modalidade de legítima defesa do
próprio patrimônio genético. A proposta parece inusitada porque até o presente o
homem desconhecia esta intervenção médica. Aquele que pretender utilizar a
técnica ora dominada estará proporcionando melhores condições de vida para os
descendentes, erradicando definitivamente o mal e, ao mesmo tempo,
possibilitado melhores condições para o gozo pleno da dignidade humana,
emblema da Constituição Federal. Não se pretende selecionar o sexo, a cor dos
olhos, a altura e outros atributos como a encomenda que se faz dos “designer
babies”. Nem gerar um Steve Jobs.
De outro, não há que se concluir que o segundo filho nasceu para ser o repositor
de órgãos e tecidos ao que já se padece de doença grave. Se assim for, cai por
terra todo propósito de se buscar instrumentos que sejam convenientes e
necessários para que o homem possa desenvolver suas capacidades em busca da
perfeição corporal, ética religiosa e outras. Mesmo que não haja um filho a ser
beneficiado, a conduta do casal em querer eliminar a sombra da doença que afeta
a família, é de fácil aceitação, pois vem revestida de ações preventivas de
diagnósticos e terapias. É mais racional eliminar o mal no seu nascedouro do que,
na idade adulta, viver alimentando-se de medicamentos e entupindo os leitos
hospitalares, com remotas chances de reversibilidade da saúde.
3
Convenção para a proteção do ser humano face às aplicações da biologia e medicina, 2001. Disponível
em
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:XoOpnPPqVMg,
Acessado
em
17/02/2012.
3
Quem não pode afirmar que as doenças dos ascendentes não sinalizaram por
muitos anos a sua ocorrência e canalizaram o final da vida por determinado
caminho já anunciado? O descendente, portador do mesmo mal, poderá censurar
seus pais por não terem agido em sua vida embrionária. Da mesma forma, deverá
ser proibida a implantação de embriões que sabidamente carregam defeitos
congênitos e os pais desejarem compartilhar as anomalias com os filhos já
existentes. Afinal, todo homem quer nascer saudável, viver com a melhor
qualidade e a circunstância da morte, por ser imprevisível, quando surgir, é
porque as células se estiolaram e ocorreu com a mesma dignidade do nascimento,
cumprindo, desta forma, o ciclo natural do ser humano.
Eudes Quintino de Oliveira Júnior, Promotor de Justiça aposentado;
Mestre em Direito Público e Doutor em Ciências da Saúde; Reitor da Unorp.
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