“O SABER EXPLICITAR”: SISTEMA DE NUMERAÇÃO DECIMAL Maria Emília Melo Tamanini Zanquetta PCM/UEM/SEED [email protected] Clélia Maria Ignatius Nogueira PCM/UEM [email protected] Resumo: Neste artigo, fragmento de nossa pesquisa de doutorado, que investiga as possibilidades didáticas do cálculo mental com alunos surdos, destacando a dinâmica instaurada nas primeiras sessões, com o objetivo de identificar se as crianças possuem o Sistema de Numeração Decimal (SND) consolidado, isto é, se compreendem suas regularidades e as aplicam ―ad infinitum‖. A pesquisa se sustenta teoricamente na teoria dos campos conceituais, em pesquisas realizadas sobre cálculo mental com educandos ouvintes e em estudiosos sobre a construção do Sistema de Numeração Decimal. A engenharia didática foi nossa opção metodológica. Os resultados indicam que: 1) ao compartilharem o que estavam pensando sobre os números, os sujeitos investigados foram percebendo as regularidades existentes nos Sistema de Numeração Decimal; 2) o professor precisa ter um conhecimento aprofundado das noções a ensinar, não apenas para poder elaborar questões apropriadas, como para perceber quais são efetivamente as dificuldades das crianças e as possíveis hipóteses que elas elaboram ; 3) a noção de números alto ou baixo está relacionada não apenas à extensão da sequência numérica já construída, mas, principalmente, à consolidação das regras deste sistema ; 4) que os sujeitos surdos, ao representarem algarismo por algarismo em Libras de números que compreendia a classe do milhar com zeros intercalados, não estabelecem diferenciação entre a numeração em Libras e a sua representação algarismo por algarismo em Libras. Palavras-chave: Cálculo mental. Sistema de numeração decimal. Alunos Surdos. Apresentação do problema De acordo com pesquisas realizadas por Nogueira e Machado (1996) e por Zanquetta (2006), a educação oferecida aos surdos, independente da abordagem adotada (oralismo ou bilinguismo), não favorece o desenvolvimento das estruturas lógico- XII EPREM – Encontro Paranaense de Educação Matemática Campo Mourão, 04 a 06 de setembro de 2014 ISSN 2175 - 2044 formais. Assim, mais de 50 anos depois dos estudos de Furth (1968), para quem o surdo seria ―concret minded‖, isto é, restrito ao período operatório concreto, não em função das condições orgânicas da surdez e sim da sua dificuldade de interação de comunicação e também como consequência do ensino a ele ofertado, a realidade educacional do surdo não sofreu alterações significativas. De forma análoga, o ensino tradicional de matemática ofertado aos ouvintes não favorece o desenvolvimento das estruturas lógicas elementares, e nem por isso eles são considerados ―concret minded‖. Entretanto, crianças ouvintes não possuem a interação com o meio prejudicada e, assim, avançam em seu desenvolvimento cognitivo, apesar de uma eventual condução pedagógica insatisfatória por parte da escola. Porém, mesmo sem esta dependência do ambiente escolar para o desenvolvimento cognitivo dos ouvintes, diversas pesquisas buscam estratégias didático-pedagógicas que favorecem o pensamento reflexivo. Nesta perspectiva, no ano de 2010, as discussões no GIEPEM (Grupo Interdisciplinar de Estudos em Educação Matemática), sobre a temática cálculo mental, proporcionaram inicialmente reflexões para uma das pesquisadoras, uma vez que não desenvolvia atividades sistematizadas - sobre cálculo mental. Com a possibilidade de cursar o doutorado, esta considerou ser a temática relevante para uma investigação mais aprofundada, a qual foi compartilhada pela outra pesquisadora, como orientadora do trabalho. Nos referenciais teóricos sobre o assunto, foram encontradas diversas pesquisas, todas com sujeitos ouvintes, destacando, principalmente, as possibilidades cognitivas e didático-pedagógicas da metodologia adotada. Da leitura realizada, temos que a expressão cálculo mental possui diferentes significados que dividem opiniões, provocam dúvidas e expectativas. Parra (1996) verificou que a expressão cálculo mental, ―para algumas pessoas, está associada à repetição de memória das tabuadas de multiplicação; para outras, representa uma capacidade admirável que possuem algumas pessoas‖ (p.186). A mesma autora define cálculo mental como ―o conjunto de procedimentos em que, uma vez analisados os dados a serem tratados, estes se articulam, sem recorrer a um algoritmo preestabelecido para obter resultados exatos ou aproximados‖ e complementa que ―os procedimentos de cálculo mental se apoiam nas propriedades do Sistema de Numeração Decimal (SND) e nas propriedades das operações, que colocam em ação diferentes tipos XII EPREM – Encontro Paranaense de Educação Matemática Campo Mourão, 04 a 06 de setembro de 2014 ISSN 2175 - 2044 de escrita numérica, assim como diferentes relações entre os números‖ (PARRA, 2006, p. 195). De acordo com Parra (1996), o cálculo mental tem sido pouco teorizado e há muito a pesquisar em relação a seu papel na construção dos conhecimentos matemáticos. A autora complementa que o trabalho com o cálculo mental deve estar presente no decorrer dos anos, por influenciar na capacidade de resolver problemas, por ampliar o conhecimento numérico e por favorecer o estabelecimento de uma melhor relação do aluno com a Matemática. O trabalho com o cálculo mental deve ser acompanhado de um aumento progressivo do cálculo automático, por ser uma via de acesso para a construção e compreensão do algoritmo (PARRA, 1996). Uma questão surgiu das reflexões: Um trabalho sistematizado com o cálculo mental contribuiria para o desenvolvimento cognitivo do surdo?: Desta questão, outras seguiram, como: Quais as estratégias utilizadas pelos alunos surdos em situações didáticas de cálculo mental? Assim, de forma ampla, a pesquisa propõe-se identificar as possibilidades cognitivas e didático-pedagógicas de um trabalho sistematizado com cálculo mental na educação de surdos e, para o presente artigo, apresenta as discussões de quatro atividades da sequência didática no que se refere à aprendizagem do sistema de numeração decimal, objetivando identificar se as crianças possuem o SND consolidado, isto é, compreendem suas regularidades e as aplicam ―ad infinitum‖. O referencial teórico e metodológico Para a presente pesquisa, adotou-se como suporte a Teoria dos Campos Conceituais de Gerard Vergnaud, em pesquisas realizadas sobre cálculo mental com educandos ouvintes e em estudiosos sobre a construção do Sistema de Numeração Decimal. Um sistema de numeração é um conjunto de símbolos e de regras utilizados para representar os números. O sistema de numeração que utilizamos é o Sistema de Numeração Decimal – SND, de origem indo-arábica, que possui dez símbolos (algarismos), a saber 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 0 e as seguintes regras: 1) O sistema é decimal, isto é, funciona com agrupamentos de dez. Esse número dez é chamado de base do sistema; 2) O sistema é posicional, isto é, o valor de um algarismo é determinado pela posição que ocupa no numeral; XII EPREM – Encontro Paranaense de Educação Matemática Campo Mourão, 04 a 06 de setembro de 2014 ISSN 2175 - 2044 3) O sistema é multiplicativo, isto é, em um numeral cada algarismo representa um número que é múltiplo de uma potência de base. Por exemplo, 543, o algarismo 5 representa o número 5 X 10², que é múltiplo de 10², o algarismo 4 representa 4 X 10, que é múltiplo de 10 e o algarismo 3 representa 3 X 10°, que é múltiplo de 10°. 4) O sistema é aditivo, isto é, o valor do numeral é dado pela soma dos valores individuais de cada símbolo de acordo com a regra anterior. Por exemplo, 543 = 500 + 40 + 3 ( Nogueira, Bellini e Pavanello, 2013, p. 84-85). Conforme Nogueira, Bellini e Pavanello (2013), o processo de construção do Sistema de Numeração Decimal é complexo, apesar do forte apelo social desse conhecimento. Uma construção frágil do SND provoca dificuldades na aprendizagem da aritmética nos anos iniciais. Vergnaud (2009) confere ―à criança e à atividade infantil sobre a realidade papel decisivo no processo educativo‖ (p.15). Ele considera: Os conhecimentos que essa criança adquire devem ser construídos por ela em relação direta com as operações que ela, criança, é capaz de fazer sobre a realidade, com as relações que é capaz de discenir, de compor e de transformar, com os conceitos que ela progressivamente constrói (VERGNAUD, 2009, p.15). E mais: o pesquisador destaca que o papel do professor deve ser o de estimular e utilizar essas atividades da criança e, para isso, ele precisa ter um conhecimento claro das noções a ensinar, pois só assim poderá compreender as dificuldades deparadas pela criança e as etapas pelas quais esta passa (VERGNAUD, 2009). [...] mesmo quando se trabalha numa classe de crianças de oito anos, por exemplo, nessa mesma classe há crianças muito mais rápidas e outras mais lentas e, se não há uma visão de longo prazo da conceitualização acontece que o professor não é capaz de propor a seus alunos a variedade de situação necessária, nem de levar a ajuda necessária a cada um deles. Isso quer dizer que é necessário ter uma visão bastante ampla do processo de conceitualização (VERGNAUD, 1998, p. 25). Vergnaud (1996b, p.13), ainda tratando do contexto escolar, aborda que ―um dos problemas do ensino é desenvolver ao mesmo tempo a forma operatória do conhecimento, isto é, o saber-fazer, e a forma predicativa do conhecimento, isto é, saber XII EPREM – Encontro Paranaense de Educação Matemática Campo Mourão, 04 a 06 de setembro de 2014 ISSN 2175 - 2044 explicitar os objetos e suas propriedades‖ (p.13). Argumenta-se com isso a dificuldade que as pessoas têm em explicar suas ações; simplesmente as fazem. Vergnaud (2003) aborda que a forma como cada sujeito age diante de cada situação depende dos esquemas que ela possui. Uma flagrante complexidade didática deriva do fato que os alunos não se desenvolvem todos da mesma maneira. Há alunos que compreendem bem umas coisas e outras não, o que implica uma individualização da ajuda por parte do professor. Provavelmente, esse é hoje o desafio mais importante ao magistério em todos os países do mundo (VERGNAUD, 2003, p. 50) Vergnaud (1996c, p. 201) define esquema como ―a organização invariante do comportamento para uma determinada classe de situações‖ e considera que a interação social também contribui para a formação dos esquemas. Acontece então a relação sujeito-em-situação, isto é, de perceber a conduta e a organização do sujeito em situação. Isso só é possível, segundo Vergnaud (1996, p.180), porque o esquema comporta quatro elementos indispensáveis: Invariantes operatórios (conceitos-em-ação e teoremas-em-ação); antecipações e predições da meta a atingir; regras de ação do tipo ―se...então...‖ e as inferências (ou raciocínios). Dos quatro elementos mencionados, somente os invariantes operatórios são indispensáveis na articulação entre uma situação que o sujeito enfrenta e o esquema que este possui para poder resolvê-la. Para Guimarães (2009), além do conflito sociocognitivo1 desencadeado, quando o aluno faz uma comparação entre a estratégia empregada por ele e a empregada por outros em situação de cálculo mental, o estado de desequilíbrio provocado pelo problema proposto permite a construção de novos esquemas. Tais esquemas ajudarão o aluno a enfrentar outros desafios e automatizar o cálculo. Contudo essa automatização é o resultado de um processo atingido após várias sessões de estudo, nas quais o aluno é desafiado a estimar valores, testar hipóteses, comparar diferentes procedimentos e descobrir estratégias variadas de cálculo. A autora ressalta que a prática regular com o cálculo mental deveria ser incorporada na prática dos professores. 1 O conceito de conflito sociocognitivo combina o papel motor dos conflitos na aprendizagem, que Piaget desenvolvera, com o de um lugar central das interações sociais, que se encontra igualmente em Wallon e Vygotsky (ASTOLFI, DAROT, GINSBURGER-VOGEL e TOUSSAINT 1997, p.45). XII EPREM – Encontro Paranaense de Educação Matemática Campo Mourão, 04 a 06 de setembro de 2014 ISSN 2175 - 2044 [...], pois favoreceu o conhecimento das concepções numéricas dos alunos e contribui para o desenvolvimento de um ensino mais efetivo. Dessa maneira foi possível insistir naqueles aspectos em que os alunos cometiam erros, antecipando suas respostas e descrevendo estratégias para a correção das mesmas, conduzindo-os a abandonar suas antigas estratégias para adotarem novas, mais eficientes, agregando novos conceitos e significados ao conhecimento matemático (GUIMARÃES, 2009, p. 5). Assim, vemos no calculo mental uma metodologia didático-pedagógica que pode favorecer o pensamento reflexivo. Em consonância com o aporte teórico, a pesquisa configura-se como uma abordagem qualitativa, tendo como princípio a Engenharia Didática. ―Vista como metodologia de investigação, que caracteriza-se antes de mais nada por um esquema experimental baseado em <<realizações didácticas>> na sala de aula, isto é, na concepção, na realização, na observação e na análise de sequências de ensino‖ (ARTIGUE, 1996, p. 196). Engenharia Didática é um termo utilizado nas pesquisas da Didática da Matemática, desde o início dos anos de 1980, com o objetivo de descrever uma forma do trabalho didático. Pode ser comparado ao trabalho de um engenheiro que, para realizar um projeto com precisão, ―se apoia nos conhecimentos científicos do seu domínio, aceita submeter-se a um controle de tipo científico do seu domínio mas, ao mesmo tempo, se encontra obrigado a trabalhar sobre objetos mais complexo‖ (ARTIGUE, 1996, p.193). Quando nos reportamos ao campo educativo, é preciso considerar o professor que tem como pressuposto sistematizar uma sequência de atividades que permita explorar determinado conteúdo em determinado contexto educativo; sendo que o contexto educativo, por sua vez, deve considerar a tríade professor, aluno e o saber. Artigue (1996), uma das precursoras da engenharia didática, descreve quatro fases integrantes do processo experimental da engenharia didática: análises preliminares; concepção e análise ―a priori‖ das situações didáticas; experimentação; análise ―a posteriori‖ e validação. Cada uma dessas fases foi retomada e aprofundada ao longo do trabalho de pesquisa, em função das necessidades emergentes. Por exemplo, a fase das ―análises preliminares‖ não implica que após o início da fase seguinte não se XII EPREM – Encontro Paranaense de Educação Matemática Campo Mourão, 04 a 06 de setembro de 2014 ISSN 2175 - 2044 possa retomá-las; este deve ser um trabalho concomitante com as demais fases da pesquisa. A validação apresenta-se como uma das singularidades dessa metodologia: pode ser feita internamente, sem a necessidade de aplicação de um pré-teste ou de um pósteste. A pesquisa As atividades descritas e analisadas neste artigo fazem parte da nossa tese de doutorado. Iniciou-se no segundo semestre de 2012, com três sujeitos surdos que no começo da pesquisa estavam cursando o 6° ano em uma escola especial para surdos no interior do estado do Paraná. A escolha para realizar o trabalho com alunos do 6° ano foi por considerar que o tema SND e operações já haviam sido abordados em anos anteriores e que no 6° ano ele é retomado. Apoiámo-nos na pesquisa de Guimarães (2009), que desenvolveu pesquisa sobre o cálculo mental com alunos do 4° e 5° ano do ensino fundamental. A opção por este referencial deve-se ao fato de ter sido uma experiência realizada em sala de aula, contemplando três blocos (sistema de numeração decimal, aditivo e o multiplicativo), com diferentes graus de dificuldades. Havia como proposta inicial também comtemplar os três blocos, mas até o presente momento (primeiro semestre de 2014) foram desenvolvidos o bloco do sistema de numeração decimal e o bloco aditivo, visto que foram realizadas algumas complementações. A implantação da pesquisa ocorreu por meio de sessões de estudo de aproximadamente 15 minutos, utilizando inicialmente as estratégias e técnicas de cálculo mental, duas vezes semanais, durante o segundo semestre de 2012, e três vezes semanais, durante o ano de 2013. Para a coleta de dados, seguiram-se também as orientações de Guimarães (2009). A pesquisadora compartilhava com o grupo a questão e um aluno por vez era interrogado sobre o procedimento de cálculo utilizado; os demais acompanhavam e eram interrogados em caso de contestação ou solicitação, para explicarem o procedimento adotado. Com isso, busca-se criar ―em cada sessão um espaço de debate ao redor das estratégias, desencadeando conflitos tanto cognitivo como sócio-cognitivo‖ (p.23). A atenção de todos é cobrada no decorrer da sessão e ―espera-se que durante as XII EPREM – Encontro Paranaense de Educação Matemática Campo Mourão, 04 a 06 de setembro de 2014 ISSN 2175 - 2044 trocas verbais entre os alunos as regularidades dos números e as propriedades das operações sejam percebidas‖ (p.23). Quanto ao registro, foi combinado que somente a pesquisadora/professora iria registrar no quadro quando se fizesse necessário, porém algumas vezes no transcorrer das sessões foi necessário os alunos registrarem também no quadro. Para conhecer quem iríamos investigar, foi realizado um levantamento de dados sobre os alunos fornecidos pela equipe pedagógica da escola, pelos professores do ano anterior e o da disciplina de matemática no ano de 2012, pelas pastas individuais do arquivo da escola, que continham parte da história de cada aluno. Vejamos, então, as especificidades de cada participante da pesquisa. Os sujeitos estão denominados de X, Y e Z X inicia a pesquisa com 11 anos e 5 meses. Está matriculada nesta escola desde 2003 (saiu durante 1 ano quando estava matriculada no 1° ano e saiu novamente no 7° ano – inclusão). Sua surdez é congênita e bilateral, do tipo sensório-neural e grau profundo. Importante destacar que ela é a única participante que possui pais surdos e usuários da língua de sinais. Ela é usuária da língua de sinais, mas também utiliza a oralidade para se comunicar. Esta aluna, no segundo bimestre de 2013, muda de escola, transferindo-se para uma escola da rede pública estadual. Y inicia a pesquisa com 10 anos e 9 meses. Está matriculado nesta escola desde 2003. Sua surdez é congênita e bilateral, do tipo sensório-neural e grau profundo. Usa somente a libras para comunicar-se (não mantém um diálogo prolongado). É diagnosticado TDAH, predominante com transtorno de déficit de atenção (faz uso de medicamento). Z inicia a pesquisa com 10 anos e 9 meses. Está matriculada na escola desde 2008. Sua surdez é congênita bilateral, do tipo sensório-neural e grau moderado. Usuária da libras, mas também recorre à oralidade constantemente para se comunicar. É diagnosticada TDAH, predominante com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (faz uso de medicamento). A Libras foi a língua utilizada para a comunicação entre os sujeitos da pesquisa; para uma aluna, a comunicação oral se fez necessária em alguns momentos e para outra ela utiliza da oralidade como apoio. Os encontros foram filmados com o auxilio de duas câmeras, localizadas em diferentes pontos da sala, para possibilitar a transcrição e XII EPREM – Encontro Paranaense de Educação Matemática Campo Mourão, 04 a 06 de setembro de 2014 ISSN 2175 - 2044 o esclarecimento de qualquer dúvida durante a análise, além dos registros no diário de bordo realizado pela professora pesquisadora. As primeiras atividades do bloco do sistema de numeração decimal: descrição e análise A compreensão das regras e das propriedades do sistema de numeração decimal, o significado e os algoritmos das quatro operações elementares continuam sendo um desafio no contexto escolar ainda no 6° ano. Quanto ao sistema de numeração decimal, Nogueira, Bellini e Pavanello (2013) abordam que os adultos estão tão acostumados a usar o SND que não conseguem perceber quanto ele é complexo. Segundo as autoras as ―[...] pesquisas indicam que a construção do SND ocorre entre o terceiro e o sexto ano (depois da construção do número e da conservação da quantidade)‖ (NOGUEIRA, BELLINI E PAVANELLO, 2013, p. 57). As primeiras atividades propostas envolveram a contagem verbalizada/sinalizada a partir de um determinado número e parar ao sinal da professora. Essas contagens forams sucessivas e regressivas. A escolha dos números obedeceu ao critério de estarem localizados próximos aos ‗nós‘ da escrita numérica que envolviam dezenas, centenas, unidades de milhar e assim sucessivamente; isso permite identificar o nível de conhecimento do sistema de numeração decimal e suas regularidades. Na análise ―a priori‖, estabelecemos as expectativas para cada atividade proposta. Para a atividade que envolveu a contagem progressiva segundo Guimarães (2009, p. 46), dentre as estratégias, a criança poderia proceder da seguinte maneira: [...] uso da sobrecontagem (contagem a partir de um certo número diferente de um), acompanhando de uma pausa quando fosse o momento da troca do 999 para o 1000, para desse modo calcular a soma 999+1, até mesmo organizando o algoritmo mentalmente ou para recordar a sequência numérica e descobrir o número seguinte, pautandose no seguinte teorema em ação: Para descobrir o próximo número da sequencia basta acrescentar mais uma unidade ao último anunciado. Considerando que Vergnaud (1990) aponta ser importante os alunos se familiarizarem com a situação para um melhor envolvimento, proppusemos a repetição, XII EPREM – Encontro Paranaense de Educação Matemática Campo Mourão, 04 a 06 de setembro de 2014 ISSN 2175 - 2044 algumas vezes, com números semelhantes e com a classe das unidades, principalmente nas atividades de contagem regressiva. Se for necessário ao atingir a classe de milhar, poderá ser realizado o registro no quadro pela pesquisadora (como uma escriba). No primeiro encontro, a proposta da atividade era de que realizassem a contagem inicialmente em conjunto. Como ilustração, acompanhe o fragmento a seguir: Pesquisadora (P): Vamos começar do 88. X, Y, Z: 89, 90, 91... (até o 99 em grupo) Z: 100 (parou de contar e esperou os demais) Y: 99, 100, 101 (parava e voltava) X: 101, 102, 103, 104, 105, 106 Pesquisadora (P): Podem parar. Realizamos a contagem em conjunto em mais três sequências e em todas tanto Y como Z paravam e continuavam. Ao conversamos sobre por que estavam parando e Y verbalizou/sinalizou “Não tenho costume de contar”. As sequências numéricas seguintes foram solicitadas para realizarem individualmente, atingindo a ordem da dezena de milhar nos primeiros encontros; os três mostravam-se espantados cada vez em que eram apresentados a números maiores. Ao serem indagados como sabiam qual seria o número seguinte, Z fala “Tá na cabeça” e X sinaliza “Eu pensei”. A pesquisa de Guimarães (2009) aponta que essa contagem pode estar automatizada e Vergnaud (1996b) aborda que não conseguimos explicitar o porquê das coisas, simplesmente fazemos. Em alguns encontros posteriores, X explica que ela sabe que depois do 999 vem o 1.000, com a seguinte explicação: ―99 combina com 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 9; acabou, então vem 1.000”. Podemos inferir que o seguinte teorema-em-ação foi mobilizado por X e que estava previsto na análise ―a priori‖: Para descobrir o próximo número da sequência basta acrescentar mais uma unidade ao último anunciado. Z é surda, com perda auditiva moderada e usa tanto da oralidade como da Libras para comunicar-se. Constatamos a influência da oralidade/fala na construção do sistema decimal, o que podemos verificar em uma das colocações da pesquisadora XII EPREM – Encontro Paranaense de Educação Matemática Campo Mourão, 04 a 06 de setembro de 2014 ISSN 2175 - 2044 quando usou somente da fala ao solicitar para ela continuar a sequência do número 970, ela falou “novecentos e setenta e um‖ e em seguida representou algarismo por algarismos em Libras ―90071.‖ Isso corrobora as pesquisas de Lerner e Sadovsky (1996) que apontam que as crianças não fazem a diferenciação entre a fala e a escrita; a representação de algarismo por algarismo em Libras de Z é como se fosse o registro escrito. Isso ficou reforçado nas atividades seguintes, que envolveram o antecessor e sucessor de um número. Quanto à atividade que envolveu a representação dos números em Libras e a representação do algarismo por algarismo em Libras, constatamos um fato interessantíssimo. Quando P faz 10.000 (um zero ponto zero zero zero) e questiona o próximo número da sequência para Y, este responde: 10.001 (um zero ponto zero zero um). Em muitas situações que envolviam atividades semelhantes, pudemos verificar que Y usava o ponto e mais três casas; como hipótese supomos que este marcava quantas casas decimais P tinha colocado e considerava uma constante. Está explicitado nos estudos de Silva (2010): Esta característica linguística favorece um distanciamento dos erros sintáticos, comuns entre as crianças das séries iniciais do Ensino Fundamental, pois eles não tratam das regras operatórias que sustentam as expressões verbais, compostas por elementos de potência, tampouco das regras operatórias específicas da escrita numérica arábica composta por dígitos e regras de composição multiplicativa e aditiva das diversas unidades. Estas últimas terão sua conceitualização formulada de outra maneira, num outro momento (p.222). Ao utilizar-se somente da representação de algarismo por algarismo em Libras, os resultados corroboram com Silva (2009), mas quando P, em uma outra atividade, usou a representação em Libras ―10 mil e um ” e solicitou para que Y fizesse algarismo por algarismo em Libras, sucedeu o que segue. Y faz: 10.0001 (um zero ponto zero zero zero um). Isso reforça a pesquisa de Lerner e Sadovsky (1996), onde a numeração falada não é condizente com a forma escrita e que muitas crianças escrevem como pronunciam. No trecho acima, Y “escreveu como se pronuncia‖, a numeração sinalizada não é condizente com a forma escrita. Além das dificuldades encontradas na construção do sistema de numeração decimal, como estávamos tratando de contagem, no final do quarto encontro realizamos a seguinte indagação: Pesquisadora(P): Vocês sabem qual o maior número que existe? XII EPREM – Encontro Paranaense de Educação Matemática Campo Mourão, 04 a 06 de setembro de 2014 ISSN 2175 - 2044 Z : 200 mil (falou) Y: 1.003 X: Fez o 1 e o sinal de continuar Pesquisadora(P): X, ele continua ou para? X: Para Não exploramos nesse encontro as respostas e solicitamos que conversassem em casa sobre qual o maior número que conheciam. Intrigadas com as respostas, realizamos uma investigação paralela com 50 crianças ouvintes do 1° ao 5° de escolas públicas e particulares (cinco alunos da educação infantil, dez alunos do 1° ano, dez alunos do 2° ano, dez alunos do 3° ano, dez alunos do 4° ano e cinco alunos 5° ano). Perguntamos qual seria o maior número que eles achavam que existia eles falavam oralmente. Em seguida, solicitávamos como seria este número por escrito, a maioria dos alunos da educação infantil e primeiro ano responderam 1 000, mesmo alguns não sabendo registrar corretamente este número. No entanto, dois alunos do 1° ano falaram ‗infinito além‘; mas ao representar colocaram o número 1 com alguns zeros e outro registrou 100001000001000010000 e continua; seis alunos do 2° ano; oito alunos do 3° ano; dez alunos do 4° ano e os cinco alunos 5° ano responderam infinito e que não caberia o registro no caderno, pois é infinito. Uma aluna do 4° ano usou o símbolo do infinito. Também paralelamente fizemos esta mesma pergunta para todas as crianças surdas dos anos iniciais do ensino fundamental na escola em que a pesquisa está sendo realizada e nenhum aluno respondeu infinito ou que não tinha fim, e dois dos quatro alunos do 3° e 5° apresentavam em suas respostas números da ordem da unidade de milhar. Corroborando com os dados obtidos, tem-se a pesquisa de Barreto (2011): solicitou a 92 crianças de 3.ª série a atividade na qual deveriam pensar em quantidades que consideravam muito altas, a maior que conhecessem; este número deveria ser indicado oralmente e em seguida registrado. A quantidade considerada como muito alta esteve diretamente relacionada com o desempenho apresentado pelos alunos nas outras atividades da pesquisa. Os alunos que apresentaram melhor desempenho em outras atividades da entrevista se referiram a números XII EPREM – Encontro Paranaense de Educação Matemática Campo Mourão, 04 a 06 de setembro de 2014 ISSN 2175 - 2044 superiores a dez mil; os que apresentaram desempenho inferior indicaram quantidades inferiores a dez mil (BARRETO, 2011, p. 76). Como consequência, ela aponta, que os resultados nesta tarefa fazem supor que a noção de números altos ou baixos está relacionada ao seu domínio do SND, quanto maior é a compreensão destes quanto ao sistema de numeração, maiores são os números apontados como grande quantidades (BARRETO, 2011). No encontro seguinte, retomamos o questionamento e somente uma aluna tinha conversado a respeito, os outros dois tinham esquecido. X falou que tinha conversando com sua avó em casa e ela falou que os números não tinham fim. Ao se solicitada para explicar o que seria não ter fim para os outros, ela explicou: “continua, continua, continua, continua...‖. Logo em seguida foi perguntado para os outros dois qual o maior número que eles achavam que existia. Y: 1.003 (um ponto zero zero três) Z: dez mil (falou) Naquele momento, a fala de X ainda não fazia sentido para os demais; eles poderiam ter simplesmente repetido a explicação de X. A pesquisadora registrou no quadro a resposta de Y, Z e foi perguntando se acrescentasse um zero e outro zero e outro zero, que número ficaria. Ia indagando se poderia continuar ou parar por ali. Outras dúvidas foram surgindo na leitura do número, como a retomada do porquê de se separar os algarismos de três em três. Quando novamente questionado, Y: Sinalizou o 1 e fez o sinal, de continua. Isso persistiu nos encontros seguintes; pode-se inferir que o dialogo possibilitou e mobilizou um desequilíbrio e uma ampliação do esquema de Y. Segundo Vergnaud (1990), para a compreensão de um conceito é necessário entender que este envolve outros conceitos e que se faz necessário vivenciar diferentes situações ao longo do tempo. Assim, procuramos, no decorrer da sequência didática, proporcionar uma variedade de situações com este objetivo. Conclusões parciais XII EPREM – Encontro Paranaense de Educação Matemática Campo Mourão, 04 a 06 de setembro de 2014 ISSN 2175 - 2044 Ao iniciarmos um espaço para que os três sujeitos pensassem e compartilhassem suas ideias sobre os números, constatamos que estes foram percebendo regularidades existentes no Sistema de Numeração Decimal e que esta prática de verbalizar não é uma prática presente no contexto escolar desses sujeitos. Averiguamos que em muitos momentos o que estávamos conversando não atingia a todos, sendo necessário proporcionar outras situações. Vale destacar a importância de o professor ter uma boa compreensão do conhecimento a ser tratado, conforme foi confirmado pela própria pesquisadora que sentiu diferença em sua prática após os estudos teóricos realizados sobre o Sistema de Numeração decimal e sobre pesquisas que demonstram como este sistema é construído pelos alunos. Quando solicitamos a representar algarismos por algarismos em Libras de números que compreendiam a classe do milhar com zeros intercalados, os sujeitos investigados cometeram os mesmos equívocos de ouvintes narrados em pesquisas como as de Lerner e Sadovsky (1996). Entretanto, os sujeitos da atual investigação são, pelo menos, quatro anos mais velhos que os sujeitos da referida pesquisa. Outra constatação é que a ordem de grandeza dos números está diretamente relacionada ao domínio quanto ao Sistema de Numeração Decimal. Quanto mais consolidado o SND, ―maior‖ é o ―maior número‖ que as crianças afirmam conhecer. Finalizamos destacando a importância de maiores discussões no contexto escolar de espaços nos quais o saber em jogo seja ―o saber explicitar‖. Referências ARTIGUE, M. Engenharia Didática. In: BRUN, J. (Direção). Didáticas das Matemáticas. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 193 – 217. ASTOLFI, J. [et al]. As Palavras-Chave da Didáctica das Ciências. Editora: Piaget, Lisboa, 1997. BARRETO, D. C. M. Como os alunos de 3ª série do ensino fundamental compreendem o sistema de numeração decimal. Dissertação (Educação) ) — Universidade Estadual de Maringá, Maringá/PR, 2011. 98p GUIMARÃES, S., D. A prática regular de cálculo mental para ampliação e construção de novas estratégias de cálculo por alunos do 4º e 5º ano do ensino fundamental. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Campo Grande/MS. 2009. XII EPREM – Encontro Paranaense de Educação Matemática Campo Mourão, 04 a 06 de setembro de 2014 ISSN 2175 - 2044 LERNER, D. SADOVASKY, P. 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