PATRIMÔNIO CULTURAL DA NAÇÃO: TANGÍVEL E
INTANGÍVEL
Paulo Fernando de Britto Feitoza1
Resumo
A contemporaneidade não dispensa a história pretérita, como forma de entender o
presente e projetar um futuro melhor. Por isso, muito atual que se desvende a cultura, que
sofre transformações à medida que o homem faz o seu percurso terrestre. Igualmente,
oportuno que se identifique o significado da cultura e a sua importância na promoção dos
diferentes valores sociais, observando-se, ademais, que Ocidente e Oriente prestigiam
elementos culturais distintos, o que faz diverso o patrimônio cultural de cada um desses
rincões. Estudando-se a cultura, que caracteriza cada nação, é possível definir seu povo e
constatar a unicidade de grupos sociais, em virtude do cultivo de formas muito próprias de
ser, viver e produzir bens, utilidades e serviços. Assim, abstraindo-se o natural, o
remanescente é cultural, produzido por cada sociedade, como retrato de épocas, valores e
costumes. O direito sensível a estes valores culturais estatuiu normas protetoras da
diversificação cultural nacional, resguardando o patrimônio cultural edificado, tanto quanto o
intangível ou imaterial.
Abstract
Contemporaneity does not dismiss the preterit story, as a way of understanding the
present and projecting a better future. That s why, very recent the unveiling of culture is, it is
always transforming as mankind makes its way on the Earth. The same way, it is convenient
to identify the meaning of culture and its importance in the development of the different
social values, taking into account, moreover, that the Occident and the Orient value distinct
cultural elements, which makes diverse the cultural heritage of these corners of the world. By
studying culture, which characterizes each nation, it is possible to define its folk and verify
1
O autor é Juiz de Direito, Professor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) nos curso de Turismo e Direito, Mestre
em Direito Ambiental (UEA) e Doutorando em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC/SP) e-mail: [email protected].
1
the uniqueness of social groups, due to the development of very innate ways of being, living
and producing goods, utilities and services. Therefore, when the natural is abstracted, the
remaining is cultural, produced by each society, as a portrait of times, values and customs.
Concerned to these cultural values, protective rules have been established for national cultural
diversification, thus sheltering the edified cultural heritage, both the tangible and intangible
ones.
Palavras-chaves: patrimônio
cultural - tangível
intangível
museu coleção.
Key words: heritage cultural tangible- intangible- museum- collection.
1. Os símbolos como precursores das identidades culturais
O patrimônio cultural, enquanto valor constituído pela sociedade, é recente.
Precedentemente, houve a idéia da natureza; depois, uma relação estreita entre a natureza e a
cultura; após, a separação entre natureza e cultura e, por derradeiro, surge a idéia do
patrimônio cultural, que é posterior à constituição de nações. Algo em torno do século XIX.
O patrimônio cultural, ou mesmo histórico-cultural, tem para a sua representação três
características, todas elas indicadas abaixo:
1) conjunto de monumentos, documentos e objetos que constituem a memória
coletiva; 2) as edificações cujo estilo desapareceu e cujos exemplares devem ser
conservados a título de lembrança do passado da coletividade; 3) as instituições
públicas encarregadas de zelar pelo que foi definido como patrimônio da
coletividade: museus, bibliotecas, arquivos, centros de restauro e preservação de
monumentos, documentos, edificações e objetos2.
Krisztoff Pomian, em trabalho desenvolvido a respeito da origem dos objetos
constitutivos do patrimônio cultural, manifesta que as primeiras coisas que originaram este
juízo de patrimônio foram os semióforos (do grego semeion, sinal, e phoros, expor, carregar,
brotar). Conseqüentemente, todos os objetos, lugares e pessoas poderiam ser identificados
como um semióforo, porquanto não seria a coisa em si o dado importante, mas sim a
representação simbólica dela, com a perspectiva de vincular o visível e o invisível, o sagrado
2
CHAUI, Marilena. Natureza, cultura, patrimônio ambiental. In: LANNA, Ana Lúcia Duarte (coord.). Meio ambiente:
patrimônio cultural da USP. São Paulo: Editora de Universidade de São Paulo Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo/Comissão de Patrimônio Cultural, 2003. p. 52.
2
e o profano, o presente e o passado, os vivos e os mortos e destinados exclusivamente à
visibilidade e à contemplação porque é nisso que realiza sua significação e sua existência 3.
Pode-se, conseqüentemente, definir o semióforo como quaisquer dos elementos
existentes na natureza ou mesmo produzidos pelo homem, ou ainda o próprio ser humano,
desde que transcendentais para a coletividade.
Foram eles, os semióforos, segundo explicação atribuída a Pomian, que motivaram o
aparecimento de coleções. Estas identificadas pelas seguintes características: a) um acervo de
coisas naturais ou produzidas pelo homem, apartadas da atividade econômica; b) conservação
em um local adequado e com proteção especial; c) sobre o conjunto de semióforos, há uma
idéia de excepcional valor econômico, muito embora não enseje qualquer significado de troca
ou comercialização; d) o objetivo de tais bens é a contemplação, além de notabilizar o seu
proprietário pela coisa especial que possui4.
Estas coleções estiveram protegidas por algumas entidades, de acordo com a natureza
que tivessem. Veja-se que, na antiguidade, o museu tinha uma outra concepção, posto que
representava uma particular crença, tanto assim que era o templo dedicado às musas, ou
mesmo o lugar onde elas residiam. Sendo assim, era o museu um espaço voltado para os
cultos e oferendas. Estas, destinadas a intermediar a relação dos homens com os deuses, sendo
que as ofertas ficavam ali expostas, tal como se exibe uma coleção ou se apresenta um museu
na atualidade.
Por sua vez, as coleções eram diversificadas, indo desde os tesouros reais até os
objetos funerários, protegidos pelos religiosos da época com reflexo de prestígio a quem
detinha tais acervos.
Os semióforos destacam aqueles que os têm e determinam uma hierarquização sobre
os objetos. Têm menor hierarquia os objetos que são suscetíveis de troca, enquanto os outros
reservados têm caráter superior e asseguram prestígio e majestade. A propriedade de
semióforos realça o poder e a influência de quem os têm, tanto assim que, na antiguidade,
chefes políticos-militares e religiosos foram os primeiros detentores destes bens. A sociedade
moderna os disseminou entre os humanistas, os cientistas e os artistas.
A este grupo elitizado entre os séculos XIX e XX, chegaram os ricos. Estes, com a sua
moeda, ampliaram os semióforos, que passaram a representar também riqueza, além de poder
e prestígio.
3
4
Op. cit. p. 52.
Op. cit. p. 52.
3
2. A constituição de elementos identificados culturalmente
Ao mesmo tempo em que os semióforos se difundem pelas classes política, religiosa e
econômica, estas mesmas categorias passam a disputar tais objetos, estimular a sua produção
e começar a exibi-los.
A religião sugere, por meio dos milagres, a instituição de santos, relíquias e lugares
sagrados; a economia desenvolve as coleções particulares ao tempo em que promove a
aquisição de objetos e os transforma em culturais; o poder público difunde a propaganda de
lugares, pessoas e datas para a propagação do culto cívico. Vê-se, então, que há uma
concorrência onde as classes detentoras dos semióforos procuram, a cada instante, mais
destaque e supremacia.
Nesse ínterim, o Estado-nação cria o patrimônio cultural, representado pelo acervo
artístico, histórico e geográfico da nação como forma de combater o patrimônio cultural
religioso e econômico5.
Uma das razões que levaram o Estado-nação a erigir um patrimônio cultural nacional
foi a pressão da classe média, que, desprovida de riqueza e prestígio, desejava ter acesso aos
símbolos. Conseqüentemente, esta classe social levou o Estado a instituir estruturas sociais
dedicadas ao patrimônio cultural e ambiental.
Uma outra razão para a criação do patrimônio cultural nacional reside na necessidade
de equilibrar as lutas de classe, posto que, se cada coletividade instituísse e personalizasse os
seus símbolos, certamente haveria a impossibilidade de o Estado controlar todas estas ondas
culturais. Perderiam, assim, a classe dominante e o próprio Estado.
Conseqüentemente,
o primeiro semióforo instituído pelo Estado foi a própria idéia de nação, sujeito e
objeto dos cultos cívicos que ela presta a si mesma. A partir da nação, instituem-se
os semióforos nacionais e com eles o patrimônio cultural e ambiental e as
instituições públicas encarregadas de guardá-los, conservá-los e exibi-los6.
3. Delineamentos da história do patrimônio cultural
O valor atribuído ao patrimônio cultural tem origem remota, impulsionado,
certamente, pelo conjunto de idéias que nortearam a Revolução Francesa. Terá sido a partir
5
6
Op. cit. p. 53
Op. cit. p. 53
4
dela que o patrimônio privado, indicativo, portanto, da propriedade individual, sobretudo da
nobreza, estendeu-se para todo o grupo social. Instituiu-se e difundiu-se a idéia do bem
comum, como também se fez progressivo o valor de que alguns bens são representativos da
riqueza material e moral da nação.
Além do mais, no período pós-revolução, difundiu-se a necessidade da preservação de
castelos, obras de arte, prédios e paisagens para a sociedade em geral. A questão patrimonial e
a sua preservação emergem dessa situação histórica e da possível perda das obras de arte e
edificações, ameaçados de destruição e pilhagem.
Segue-se, na voz de Regina Abreu, que em 1832, Victor Hugo escreveu um artigo
sobre a necessidade de proteção ao patrimônio histórico, que enunciava uma espécie de lei
moral que começou a ser formulada sobre o patrimônio a ser salvaguardado, para todos os
membros da comunidade nacional 7.
O certo é que a história, bem como o novo conceito de patrimônio, concorreu para que
se fizesse um juízo de valor a respeito da herança artística indicativa da ancestralidade
daquele Estado que se constituía. Tal juízo valorativo contrapunha-se aos ideais
revolucionários que pretendiam destruir todo o acervo edificado anteriormente, motivo da
manifestação de intelectuais contra o vandalismo, fundados em valores patrióticos.
Nesse embate,
A herança dos nobres era apropriada como herança do povo de cada Estado-nação,
sendo relidas com novos sinais diacríticos. Uma nova história heróica das nações
passou a ser construída, onde não mais os indivíduos
reis, líderes, heróis, eram os
sujeitos. A partir de então, o novo sujeito da história era o povo8.
4. O trânsito entre o monumento histórico material e o patrimônio imaterial
A idéia de monumento e o valor que a ele se atribui é juízo universal e prática usual
em todas as sociedades, entretanto, o monumento histórico é construção tipicamente
ocidental. Os monumentos, em geral, têm uma justificativa política, mesmo assim, a origem
deles faz volver um fato considerado histórico, vinculando o presente a um acontecimento
anterior. Assim ocorreu no Renascimento, época em que os monumentos ligavam-se às
7
ABREU, Regina. A emergência do patrimônio genético e a nova configuração do campo do patrimônio. In: ABREU,
Regina; CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 31.
8
Op. cit. p. 31
5
edificações da antiguidade clássica, propiciando que fosse associada à noção de monumento
histórico à arte e à arquitetura9.
Ainda por volta do século XVIII, os monumentos históricos eram restritos aos
antiquários e estetas, fundamentados nas antiguidades gregas e romanas, com o fim de
confirmação da história e do estudo dos estilos arquitetônicos.
A evolução dá-se no período da Revolução Francesa, quando o conceito de patrimônio
nacional despontou com a finalidade de salvaguardar os imóveis e as obras de arte de
propriedade do clero e da nobreza, transformados em propriedades do Estado. Diga-se,
ademais, que o patrimônio nacional originou-se de um confronto entre o sentimento nacional
e a conveniência econômica.
A partir daí, e notadamente ao longo do século XIX, os países da Europa
desenvolveram sistemas destinados à proteção e conservação dos seus patrimônios nacionais,
que eram compostos
[...] de objetos de arte e edificações estreitamente relacionadas à concepção de
monumento histórico, aos ideais renascentistas de arte e beleza e aos conceitos de
grandeza e excepcionalidade. Esses patrimônios eram, ao mesmo tempo, as
riquezas das nações e a representação do seu gênio e história10.
Por essa época, foram valorizadas a autenticidade e a permanência da obra, cujos
valores concorrem para a prática da preservação, que se dá no Ocidente, com a criação de
instrumentos que resguardem todo o patrimônio histórico. A França é precursora de tais
providências, tanto que instituiu a Inspetoria dos Monumentos Históricos, em 1830, com a
incumbência de registrar e inventariar tais obras.
Mais adiante, por meio da Lei de 31 de dezembro de 1913, criou o classement, que
tem afinidades com o tombamento nacional e a finalidade de declarar determinado bem
patrimônio nacional, além de obstar a sua alteração, mutilação ou destruição. Por essa lei,
buscava-se exatamente a perpetuação da obra e a sua autenticidade, na medida em que eram
afastadas as modificações ou deteriorações.
Como se pode deduzir, o conceito ocidental de patrimônio estava voltado para coisas
físicas, de maneira que a preservação era composta de atos que mantivessem o bem nas suas
condições originais.
9
SANT ANNA, Márcia. A face imperial do patrimônio cultural: os novos instrumentos de reconhecimento e valorização. In:
ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
p.47.
10
Op. cit. p. 48
6
Sucedeu, no entanto, após a Segunda Guerra Mundial, uma mudança no conceito de
patrimônio. Maneiras de se fazer ou práticas culturais, sem que fossem representadas por um
determinado objeto, passaram à condição de bens culturais, livres de quaisquer
representações materiais .
Quadra ressaltar que este valor atribuído às práticas culturais não terá sido fruto de
uma concepção européia ou ocidental de cultura. Decorreu a idéia de um patrimônio
incorpóreo de países asiáticos e de outros do chamado terceiro mundo, que têm nas criações
populares anônimas, independentemente de qualquer materialidade, um grande patrimônio.
Na forma destacada Márcia Sant`Anna, o patrimônio estaria representado ou assim
conceituado pelo fato de serem expressões de conhecimentos, práticas, e processos culturais,
bem como de um modo específico de relacionamento com o meio ambiente
11
.
A questão patrimonial no mundo oriental difere daquilo que comumente ocorre no
Ocidente. Aqui, a história constrói-se pelos monumentos, ao passo que, na cultura oriental, os
objetos não são indispensáveis para a perpetuação da tradição cultural. Dá-se mais valor ao
conhecimento das tradições e a forma de reproduzi-las.
Por conseguinte, são importantes no processo cultural oriental aquelas pessoas que
transmitem as tradições, porquanto fica assegurada a preservação da identidade do povo. Até
porque o que é corporificado, mesmo com toda a preservação, poderá estiolar-se. As
assertivas são procedentes, pois no Japão, ao redor dos anos 50, quando instituída a primeira
legislação de preservação do seu patrimônio cultural, o objetivo maior foi incentivar e apoiar
pessoas e grupos encarregados das tradições daquele país. Conseqüentemente, são conceitos
distintos os que compõem a relação patrimonial no Ocidente e no Oriente.
5. O avanço do conceito de patrimônio intangível
Como se pode deduzir, o conceito ocidental de patrimônio cultural, fundamentado na
conservação e autenticidade do objeto, além da limitação imposta ao direito de propriedade,
não é suficiente para acolher a amplitude do significado do patrimônio cultural. Por este
motivo, a partir de 1970, foram incorporados ao conceito aspectos imateriais. Em 16 de
novembro de 1972, após a aprovação da Convenção do Patrimônio Mundial, Cultural e
Natural da UNESCO, os países do terceiro mundo reivindicaram espaço em instrumentos
protetores das manifestações populares culturais.
11
Op. cit. p. 49
7
Desenhou-se aí uma idéia consolidada em 15 de novembro de 1989, também pela
UNESCO, sob o título de Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e
Popular.
Esta tutela instituía instrumentos que protegessem e preservassem as manifestações
populares que tivessem característica cultural. Quase quinze anos após a vigência da
recomendação a respeito da proteção à cultura tradicional e popular, poucos são os países
ocidentais que instituíram políticas e instrumentos efetivos para a salvaguarda do patrimônio
intangível.
A França surge como um desses países, que, repetindo a experiência dos países
orientais e a proposta da UNESCO, instituiu uma política de incentivo aos mestres de ofícios
tradicionais , estimulando-os a transmitirem suas vivências e saberes aos que irão sucedê-los.
Trata-se de um movimento identificado ou reconhecido como tesouros humanos vivos .
Consta que, essa nova política ganhou o nome de Les Métiers d Art. Implantada em 1994,
até o momento conseguiu beneficiar cerca de quarenta profissionais
12
.
Como a França, que se destaca, o Brasil também muito evoluiu no campo do
patrimônio imaterial, tanto que, por meio do Decreto 3.551, de 04 de agosto de 2000,
implantou o registro do patrimônio imaterial. A trajetória brasileira foi longa e seu início pode
ser determinado nos anos 30, com a atuação sensível de Mário de Andrade, que, àquela época,
entendia cultura como uma produção humana que transcendesse o material.
6. A visão do Decreto 3.551/2000
Os debates que circundam o patrimônio cultural têm novos horizontes com a vigência
do Decreto 3.551, de 04 de agosto de 2000, que concorreu para o reconhecimento do
patrimônio cultural imaterial ou intangível, por meio de registros e inventários.
Desde então, valorizou-se a cultura imaterial, em contraposição à cultura materializada
pelos bens de pedra e cal, tais como igrejas, fortes, pontes, chafarizes, prédios e conjuntos
urbanos representativos de estilos arquitetônicos específicos
13
. Ao mesmo tempo, diga-se
que foi retomado um tema destacado por Mário de Andrade, representado pela valorização do
patrimônio cultural imaterial. O poeta fazia altaneiras as expressões culturais que traduzissem
12
Op. cit. p. 50
ABREU, Regina; CHAGAS, Mário. Introdução. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio:
ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p.11.
13
8
línguas, festas, danças, lendas, mitos e tudo o mais que fosse representativo da cultura
popular.
Por esta razão, doravante haverá um concurso entre dois grupos sociais distintos. São
estes, de um lado, os detentores dos saberes tradicionais e locais e, do outro, os possuidores
dos conhecimentos técnicos, os quais convergem para a formação do conceito atualizado de
patrimônio cultural.
Conseqüentemente, novas metodologias e novas estratégias de ação foram
desenvolvidas para definir a extensão do significado da cultura nacional. Há, por certo, um
confronto entre o patrimônio tangível e o intangível, de tal forma que essa definição passa,
inclusive, pelo campo do biopatrimônio e do patrimônio genético , propondo novos olhares
para a relação entre natureza e cultura e facilitando a compreensão da noção de patrimônio
natural, como uma construção que se faz a partir do intangível
14
.
Tudo, neste momento, realça as mudanças que ocorrem de maneira globalizada. Nos
tempos em que tudo é descartável e os territórios nacionais têm nas suas fronteiras meras
delimitações físicas, nunca se colecionou tanto, como forma provável de preservar a
historicidade de cada agrupamento social. Museus e coleções estão em alta como formas de
manterem a relação passado-presente, além de resguardarem a nacionalidade, tão fragilizada
com a globalização mundial.
Simultaneamente à explícita necessidade de registrar o passado, sucede uma alteração
nos valores. Outrora, fazia-se caso e defendiam-se as grandes narrativas nacionais e épicas
[...] para entrarem em cena novos vetores de uma sociedade cada vez mais polifônica. São as
narrativas urbanas, regionais e locais, nas quais está em jogo a construção de uma identidade
específica
15
.
7. Os fundamentos maiores do Decreto 3.551/2000
A compreensão que se tem de um conjunto de monumentos antigos, aos quais se
impõe a respectiva preservação, representaria o patrimônio histórico e artístico nacional, está
distante da diversificada produção cultural do Brasil, seja ela contemporânea ou pretérita.
Um dos exemplos refere-se à Praça XV no centro do Rio de Janeiro, que é um
símbolo do patrimônio histórico nacional. Ali estão o Paço Imperial e a igreja de Nossa
14
15
Op. cit. p. 12
Op. cit. p. 13
9
Senhora do Carmo, que são representações materiais do poder outrora existente, dividido
entre a monarquia e o clero16.
Mesmo assim, por ali, outros valores deram importância a uma época vivida e que não
são recordados, como, por exemplo, os negros, alforriados, mercadores e outras mais pessoas
que por ali circularam, excluídos do acervo patrimonial. Justifica-se esta falta de lembrança,
porque a cultura nacional, até bem pouco tempo, voltava-se apenas para os bens edificados, de
tal sorte que a memória elogiava sempre as referências européias aqui nacionalizadas, entre
edificações e obras de arte.
Outro exemplo é o do mercado Ver-o-Peso, em Belém do Pará. Ali, identifica-se a
cultura indígena por meio dos produtos trazidos da selva, bem como as orientações de como
usá-las, manifestadas pelos vendedores. São as ervas, os cheiros e tantas outras coisas mais
que identificam o local como um ponto de concentração e reprodução de hábitos coletivas. No
entanto, o que está destacado é a edificação do mercado e sua arquitetura. O saber e o viver
dos índios não têm espaço para o reconhecimento da sua importância17.
Um outro exemplo é o da feira de Caruaru, em Pernambuco: uma referência da cultura
nordestina, que congrega múltiplas influências, não obrigatoriamente originárias do sertão.
Os exemplos mencionados mostraram o valor da diversificada cultura nacional,
inclusive no âmbito imaterial, que, com o advento do Decreto 3.551/2000, passa a ser
realçado e está protegido.
Veja-se que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 216, classifica como
patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se inclui:
I
as formas de expressão; II
os modos de criar, fazer e viver; III
científicas, artísticas e tecnológicas; IV
as criações
as obras, objetos, documentos,
edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V
os
conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico.
Os bens contidos nos incisos IV e V, desde a edição do Decreto-lei nº 25/37 estão sob
proteção legal, porquanto é previsível o tombamento deles.
16
FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural. In:
ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p.
56.
17
Op. cit. p. 58
10
Quanto às criações científicas, artísticas e tecnológicas, as leis que tratam dos direitos
autorais e da propriedade intelectual também lhes dedicam atenção. As manifestações
artísticas eruditas são alvo de certames freqüentes, o que as fazem identificadas, admiradas e
protegidas amplamente.
No entanto, as formas de expressão, bem como os modos de criar, fazer e viver que
tenham referência com os grupos formadores da sociedade brasileira, até recentemente, não
tinham proteção alguma.
Note-se, ademais, que somente eram incluídos na relação do tombamento os bens de
valor excepcional, logo, o popular ou aquilo que tivesse uma identificação modesta não
ensejavam qualquer tutela.
Por isso mesmo, há uma usual relação entre preservação e tombamento, como também
há o entendimento de que a proteção outorgada ao patrimônio cultural tinha a característica
elitista, porque destacava os bens relacionados com a cultura européia, cujo grupo que impôs
dominação ao Brasil.
Com uma certa rejeição ao eurocentrismo, associada às reivindicações de países não
europeus que reclamavam pelo reconhecimento de seus valores na cultura universal, essa
consciência influiu no conceito do patrimônio cultural.
No Brasil, Mário de Andrade, Aloísio Magalhães, as sociedades de folcloristas, os
movimentos negros e de defesa dos direitos dos indígenas e as reivindicações dos grupos
descendentes de imigrantes contribuíram para a publicação do Decreto 3.551/2000, uma vez
que todos estes segmentos estavam excluídos do patrimônio cultural desde 1937. 18
Por tudo isso, há, então, uma nova visão da identidade cultural da nação.
8. Particularização do Decreto 3.551/2000
A maneira encontrada pelo Decreto 3.551/2000 para a proteção do patrimônio cultural
imaterial foi o registro, que não guarda relação com o instituto do tombamento, mas é uma
forma de reconhecer o valor de uma determinada manifestação cultural.
Consiste o registro em identificar a produção que tenha a natureza de bem cultural
imaterial. Seu significado é o de documentar tanto o passado quanto o presente dessas
manifestações, bem como as sucessivas variações que sobrevierem a elas.
18
Op. cit. p. 63
11
Não se trata propriamente de uma proposta preservacionista, uma vez que as
manifestações populares são dinâmicas e mutáveis. A lei deseja que o registro documente a
manifestação, de tal sorte que fique resguardado do esquecimento. Por outro lado, o registro
poderá suscitar ou indicar as ações capazes de dar continuidade àquela prática cultural.
Além do mais, pelo art. 8º do decreto enumerado, foi instituído o Programa Nacional
do Patrimônio Imaterial, com o fim de incentivar o inventário, referência e valorização desse
acervo cultural intangível.
As manifestações culturais, de igual forma como os bens tombados, serão registradas
em quatro livros, identificados pelas alíneas seguintes:
a)
Livro de registro do saberes (para o registro de conhecimentos e
modos de fazer);
b)
Livro
das
celebrações
(para
as
festas,
os
rituais
e
entretenimento);
c)
Livro das formas de expressão (para a inscrição de
manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas);
d)
Livro dos lugares (destinados à inscrição de espaços onde se
concentram e reproduzem práticas culturais coletivas).
Afora o registro, a indicação legal é feita no sentido de que a inscrição inicial seja
revista a cada dez anos, de tal sorte que seja possível avaliar e identificar as modificações
sofridas ou ocorridas naquela manifestação.
9. Conclusão
É correto afirmar que os conceitos primários a respeito do significado da cultura e da
representação do patrimônio cultural estão superados. Cultura não mais representa o
aprimoramento do intelecto, nem o patrimônio cultural significa um acervo de bens edificados
ou produzidos com uma particular habilidade, que sugerem exposição em museu e especial
atenção estatal.
A cultura é muito mais, tanto quanto abrangente é o seu conceito. A evolução do homem,
com toda a técnica que produziu, gerou uma maneira própria de ser e viver, bem como de
12
fabricar coisas, bastante ajustadas a cada momento. Coisas criadas que são resultados das
necessidades que o homem tem de uma vida melhor, de um domínio do espaço que o
circunda, da sua intrepidez frente à força da natureza.
O somatório de séculos de criação e engenhosa produção são resultantes do patrimônio
cultural, que causa natural curiosidade, porque responde a indagação, feita continuamente,
acerca da vida anterior de ancestrais que habitaram o planeta.
Por sua vez, o legado não é apenas material, mas intangível, porque muitas culturas são
fortes nas tradições orais, enquanto outras materializam sua evolução por edificações,
monumentos e utilidades.
Não fosse isso o bastante, a cultura é, por certo, a mais original marca de cada grupo
social disperso pela vastidão da Terra. Dificilmente dois grupos sociais consagram a mesma
cultura e o melhor exemplo é o Brasil, tão rico em cultura, quanto extenso territorialmente. O
viver no sul e diferente do viver no norte, bem como o ser do sul difere do ser do norte, sem
que isto represente qualquer ameaça à integridade nacional. Pelo contrário, um mostra do
patrimônio cultural evidenciará que as peculiaridades de cada região ou comunidade, não
impedem a existência de muitas outras diversificações, contanto que não se queira submeter
uma cultura a outra ou exterminá-la.
Por isso, o direito pátrio intervém para realçar a diversificação cultural nacional, por meio
da valorização do patrimônio, que a representa, seja ele material ou imaterial. Igualmente, a
Constituição Federal impõe ao Estado o dever de proteger as manifestações culturais
populares, indígenas e afro-brasileiras, bem como dos demais grupos que contribuíram para o
processo civilizatório brasileiro.
Tudo feito em louvor à cultura e para enaltecê-la nada melhor que zelar pelo patrimônio
representativo da cultura brasileira, por ser o meio mais apropriado de identificar a
nacionalidade do país Brasil.
REFERÊNCIAS
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ABREU, Regina; CHAGAS, Mário. Introdução. In: ______. Memória e patrimônio: ensaios
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13
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