Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva Eduardo Gonçalves Rodrigues1 1 Arquitecto; Advogado Eduardo Gonçalves Rodrigues 1 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva Siglas e abreviaturas ACRRU – Área Crítica de Recuperação e Reconversão Urbanística; LdS – Lei do Solo; MAOTDR – Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano; PDML – Plano Director Municipal de Lisboa; PDMP – Plano Director Municipal do Porto; PPZSMS – Plano de Pormenor da Zona Sul da Mata de Sesimbra; PROT AML – Plano Regional de Ordenamento do Território da Área Metropolitana de Lisboa; PROTAL – Plano Regional de Ordenamento do Território do Algarve; REN – Reserva ecológica nacional; RJIGT – Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial; RJUE – Regime Jurídico da Urbanização e Edificação; RMUE – Regulamento municipal de urbanização e edificação; TJUE –Tribunal de Justiça da União Europeia; TRIU –Taxa pela realização, manutenção e reforço das infra-estruturas urbanísticas. Eduardo Gonçalves Rodrigues 2 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva 1. INTRODUÇÃO A tripla perspectiva adoptada no presente artigo baseia-se num conceito amplo de “compensação urbanística” e pretende apresentar uma análise sucinta em torno das contrapartidas recíprocas prestadas pela Administração e pelos particulares no âmbito da concretização dos instrumentos de gestão territorial. O desenvolvimento de um urbanismo mais operativo e menos regulamentar tem vindo a propiciar o surgimento no contexto nacional de sistemas inovadores de compensação urbanística, que vão ganhando terreno num quadro até hoje ocupado pelas tradicionais compensações devidas na ausência de cedências, por parte dos particulares, de áreas de apoio colectivo2. Os sistemas de compensação urbanística surgem hoje associados à implementação de instrumentos de planeamento inovadores orientados quer para um crescimento ponderado das cidades (“smart growth”3), quer para o mercado propriamente dito, associação essa mais transparente e potencialmente menos exposta ao fenómeno da corrupção4. Assim, paralelamente à associação tradicional entre cedências e compensações, assiste-se hoje a uma tendência da Administração em assumir a iniciativa de atribuir aos particulares compensações urbanísticas como contrapartida pelas condicionantes impostas por via do planeamento, com vista a uma mais eficaz prossecução dos objectivos por si preconizados. A acrescer ao exposto, verifica-se também uma tendência no sentido do alargamento do âmbito subjectivo e material das compensações urbanísticas, por via da implementação do novo modelo de planeamento estratégico dos planos directores municipais de segunda geração, designadamente através do incremento de soluções de conjunto. Na presente exposição pretendem-se caracterizar sucintamente três modalidades de compensações urbanísticas. 2 Utilizando a expressão do Regulamento Municipal de Taxas e Compensações Urbanísticas de Vila Nova de Gaia, publicado através do Aviso n.º 19962/2010, de 8 de Outubro (artigo 55.º). 3 Vd. http://www.smartgrowth.org/ 4 Vd. SOUSA, Luís de, Corrupção. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2011 e MORGADO, Maria José e VEGAR, José, O Inimigo sem Rosto - Fraude e Corrupção em Portugal. Lisboa: Ed. D. Quixote, 2003. Eduardo Gonçalves Rodrigues 3 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva A primeira modalidade concretiza-se usualmente pela atribuição ao particular, pela Administração, de um direito (usualmente de construção) como compensação pela perda ou limitação, por via administrativa, de oportunidades ou da iniciativa do particular relativamente ao desenvolvimento de determinada parcela ou imóvel5. Tal compensação assume contornos variáveis, visando por vezes a prossecução de fins de conservação de valores patrimoniais e naturais ou, outras vezes, a reconversão da malha urbana, ou ainda, a relocalização do aproveitamento urbanístico. Esta modalidade será aqui abreviadamente designada por compensação em espécie (ou não financeira). A segunda modalidade consiste no pagamento à Administração, pelo particular, de um valor pecuniário fixo, devido na ausência de previsão de áreas de apoio comum (destinadas a infra-estruturas, espaços verdes e de utilização colectiva e equipamentos). Tal pagamento é hoje, em regra, devido em operações de loteamento ou outras operações urbanísticas de impacte relevante (ou ainda no caso de edifícios contíguos e funcionalmente ligados entre si que determinem, em termos urbanísticos, impactes semelhantes a uma operação de loteamento) e será aqui designada por compensação financeira6. Finalmente, a terceira modalidade exprime-se nas compensações (financeiras e não financeiras) efectuadas no âmbito da execução sistemática dos planos municipais de ordenamento do território. Tais compensações surgem frequentemente associadas à aplicação de mecanismos de perequação compensatória e serão aqui designadas por compensações sistemáticas. Atendendo à economia da presente exposição, são propositadamente deixadas de lado outras figuras, designadamente as relacionadas com contribuições especiais devidas no âmbito da execução de grandes projectos de interesse público (v.g. Expo 98, Ponte Vasco da Gama etc.)7, os direitos indemnizatórios gerados pela revogação ad hoc de actos constitutivos de direitos ou por via de responsabilidade civil dos 5 Para uma situação em que a compensação em espécie poderá ser prestada ao Município, no âmbito da gestão do domínio municipal, vd. RODRIGUES, Eduardo Gonçalves, «A Execução dos planos de pormenor – Vias Alternativas e Complementares». GONÇALVES Fernando et al. (Coord.), Os Dez Anos da Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo, Lisboa: DGOTDU/AD URBEM, 2008, pp.259 e ss. 6 Embora em algumas situações também possa ser paga em espécie não se confunde com a compensação em espécie prestada pela Administração nos termos acima referidos. 7 Vd. v.g. o Decreto-Lei n.º 27/97, de 23 de Janeiro, o Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, o DecretoLei n.º 51/95, de 20 de Março, ou o Decreto-Lei n.º 54/95, de 22 de Março. Eduardo Gonçalves Rodrigues 4 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva projectistas, o pagamento em espécie, por parte de particulares, de taxas de licenciamento ou de infra-estruturas (v.g. TRIU), e outras. 2. COMPENSAÇÕES EM ESPÉCIE (OU NÃO FINANCEIRAS) 2.1. Sistemas de compensação em espécie A enorme diversidade dos sistemas de compensação em espécie no contexto internacional deriva não só de condicionamentos históricos, urbanísticos e políticos específicos, mas também de diferentes conceitos de direito de propriedade, que, numa perspectiva simplista, podem ser reconduzidos às tipologias de direito de propriedade de natureza composta (presente no modelo anglo-saxónico8) e de matriz unitária (derivado do modelo da civilística romana), matizados de diferentes formas pela respectiva função social9. Em síntese, no modelo anglo-saxónico, de que é exemplo o ordenamento jurídico norte-americano, a discussão jurisprudencial em torno desta matéria centra-se na repercussão que as medidas preconizadas pelos instrumentos de planeamento têm no direito de propriedade, por via da subsunção ao caso concreto de conceitos técnicojurídicos em evolução (v.g. “regulatory takings”). No modelo da civilística romana, de que é exemplo o nosso ordenamento jurídico, a mesma discussão coloca a tónica nas restrições singulares às possibilidades objectivas de aproveitamento do solo, “preexistentes e juridicamente consolidadas”, que comportem uma restrição significativa na sua utilização de efeitos equivalentes a uma expropriação10. Ou seja, enquanto que, no primeiro caso, a discussão em torno das compensações em espécie gravita em torno da relação existente entre determinada medida de planeamento e o direito de propriedade, no segundo caso, a mesma discussão parte geralmente da prévia existência de “direitos adquiridos”11. Tratando-se de um aspecto relacionado com o urbanismo e construção, o tema das compensações em espécie apresenta uma forte ligação com a problemática do jus aedificandi. 8 Frequentemente traduzido pela expressão “bundle of rights”. Vd. OSTROM, Elinor e HESS, Charlotte, «Private and Common Property Rights» 2007. Library. Paper 24. Disponível em: http://surface.syr.edu/sul/24 9 Vd. FILIBECK, Giorgio, Direitos do Homem – de João XXIII a João Paulo II. Cascais: Principia, 2000, pp. 633 e ss. 10 Vd. artigo 143.º do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (“RJIGT”). 11 Por exemplo, derivados do licenciamento de determinada operação urbanística. Eduardo Gonçalves Rodrigues 5 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva Embora no modelo anglo-saxónico subsistam posições distintas acerca da relação existente entre o direito de propriedade e o jus aedificandi, as suas características específicas propiciaram o desenvolvimento de várias técnicas com relevância prática no ordenamento do território e urbanismo actual, traduzidas, por exemplo, no mecanismo de “transferência de aproveitamento urbanístico”12. Em termos genéricos, a aplicação de tais técnicas surge frequentemente associada à invocação do princípio de compensação por actos ablativos do direito de propriedade13, que tem originado acesas discussões na jurisprudência e doutrina jus-urbanística. Neste contexto, registam-se, por um lado, opiniões no sentido da integração do jus aedificandi no direito de propriedade, o que tem por consequência a consideração do mecanismo de “transferência de aproveitamento urbanístico” como uma mera compensação pelos prejuízos causados ao particular14. Por outro lado, registam-se também opiniões em sentido contrário, defendendo-se neste caso a exclusão do jus aedificandi do direito de propriedade, o que terá porventura por consequência a consideração do mesmo mecanismo como uma realidade autónoma ou relativamente independente do referido direito15. Em qualquer caso, atendendo à componente necessariamente valorativa dos sistemas de compensação em espécie, bem como à respectiva relação com a potencialidade edificatória, será difícil numa economia de mercado dissociar a respectiva implementação do direito de propriedade e do respectivo conteúdo16. Independentemente da posição adoptada sobre o assunto, conforme iremos verificar, assiste-se hoje a uma tendência no sentido de alguma convergência dos dois 12 Transferable Development Rights (“TDR”). Vd. GARCÍA-BELLIDO, Javier e ENRÍQUEZ DE SALAMANCA NAVARRO, Luis, «Transferencia del aprovechamiento urbanístico: fundamentación jurídica de una nueva técnica de gestión». Revista de Derecho Urbanístico nº 65, 1979, pp. 39 a 87. 13 Traduzido na Quinta Emenda da Constituição dos EUA “Nor shall private property be taken for public use, without just compensation” (“Compensations for Takings”). Disponível em: http://www.usconstitution.net/const.html#Am5. Vd. CALLIES, David «Regulatory Takings and the Supreme Court: How Perspectives on Property Rights Have Changed From Penn Central to Dolan, and What State and Federal Courts are Doing About It». Stetson Law Review, Vol. 28 (issue 3), 1999, pp. 523-578. 14 Vd., v.g. Suitum v. Tahoe Regional Planning Agency (96-243), 520 U.S. 725 (1997). [Justice Scalia]. Disponível em: http://www.law.cornell.edu/supct/html/96-243.ZC.html . Vd. ainda QUADROS, Fausto de, A Protecção da Propriedade Privada Pelo Direito Internacional Público. Coimbra: Almedina, 1998, pp. 494 e 557. 15 Traduzida, por exemplo, no panorama nacional, na jurisprudência do Tribunal Constitucional e algumas posições doutrinais sobre a matéria (vd. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 544/2001 e n.º 496/2008, e OLIVEIRA, Fernanda Paula, Loteamentos Urbanos e Dinâmica das Normas de Planeamento. Coimbra: Almedina, 2009, p. 126). 16 Quanto à potencialidade edificatória como factor valorativo, vd. v.g., Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 612/2009 e n.º 196/2011. Eduardo Gonçalves Rodrigues 6 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva modelos acima enunciados, traduzida na integração no segundo modelo de sistemas de compensação originários do primeiro. Tal integração materializa-se frequentemente na combinação de três sistemas distintos, a saber; (i) conservação, (ii) reconversão e (iii) relocalização. O primeiro sistema visa essencialmente a conservação de valores culturais ou naturais, designadamente a conservação do património edificado17 ou de valores ecológicos em solo urbano ou rural (ou em ambos). O segundo sistema propicia a reconversão de usos em solo urbano ou rural, surgindo frequentemente associado ao desenvolvimento de operações de reparcelamento em solo urbanizável, com vista a garantir a cedência de áreas de apoio colectivo, a execução de infra-estruturas ou a concretização de expropriações com pagamento em espécie. Finalmente, a terceira tipologia refere-se à relocalização do edificado existente ou à reafectação de direitos de construção juridicamente consolidados, nomeadamente, por via da alteração de licenças referentes a operações de loteamento em solo urbano ou rural (v.g., empreendimentos turísticos). A categorização dos sistemas acima apontados serve o propósito de facilitar a apreensão do tema, sendo frequente, na prática, a combinação de várias tipologias de sistemas de compensação com vista a alcançar os objectivos traçados pelos instrumentos de planeamento. É o que iremos ver de seguida. 2.2. O quadro internacional A enorme diversidade dos sistemas de compensação em espécie no contexto internacional obriga a uma síntese, optando-se na presente exposição por apenas se enunciar três casos exemplificativos, que, de alguma forma, servem para ilustrar, em diferentes contextos, as três tipologias de sistemas de compensação em espécie acima referidos. O primeiro caso, vulgarmente designado como “Grand Central Terminal v. City of New York” assume particular importância, na medida em que se encontra na origem da aplicação de mecanismos de compensação em espécie. Nele é possível encontrar a combinação dos três sistemas acima elencados em solo urbano por via da conservação de um imóvel classificado, da re-localização dos direitos de construção 17 Vd. GARCÍA-BELLIDO, Javier, «Nuevos enfoques sobre el deber de conservación y la ruina urbanística». Revista de Derecho Urbanístico nº 89, 1984, pp. 53 a 125. Eduardo Gonçalves Rodrigues 7 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva subjacentes à respectiva parcela (“emissora” de tais direitos) e da consequente reconversão da área urbana adjacente (“receptora” dos direitos de construção). Este caso, que genericamente opôs a Penn Central Transportation, Co. à Cidade de Nova Iorque, traduz de forma clara a tensão existente entre as legítimas expectativas dos proprietários no sentido do desenvolvimento urbanístico das suas parcelas e a prossecução do interesse público18, neste caso, por via da classificação e conservação de edifícios e zonas com importância histórica ou estética19. Na situação concreta, à pretensão de sobreelevação de um edifício de 55 pisos sobre um terminal ferroviário opunha-se a classificação do mesmo como “landmark” da cidade. Perante a impossibilidade de concretização da pretensão do proprietário do edifício classificado, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América considerou que os prejuízos sofridos pelo mesmo já se encontrariam suficientemente compensados por via da possibilidade de “transferência de aproveitamento urbanístico” de que o imóvel classificado beneficiava. Com efeito, de acordo com as regras aplicáveis ao caso concreto, os proprietários que não haviam desenvolvido os seus imóveis até ao limite máximo permitido pelo zonamento vigente, poderiam optar por “transferir o aproveitamento urbanístico” das suas parcelas para parcelas contíguas ou próximas, desde que observadas determinadas condições. No caso concreto, tomando por referência um conceito abrangente da área do imóvel classificado (“landmark site”), o Supremo Tribunal considerou que as restrições derivadas de tal classificação permitiam um desenvolvimento razoável da mesma área, conferindo ao proprietário a oportunidade tanto de desenvolver a parcela do terminal ferroviário propriamente dita, como de desenvolver outras parcelas, localizadas nas suas proximidades20. Assim, os proprietários da parcela onde se implantava o edifício classificado foram compensados, por via da relocalização do respectivo aproveitamento urbanístico, que originou a reconversão da área próxima. 18 Vd. CLAEYS, Eric R., «The Penn Central Test and Tensions in Liberal Property Theory». Harvard Environmental Law Review, Vol. 30, p. 339, 2006. 19 No dizer da sentença: “reasonable return on their investments and maximum latitude to use their parcels for purposes not inconsistent with the preservation goals”. Disponível em http://www.law.cornell.edu/supct/html/historics/USSC_CR_0438_0104_ZS.html e 20 Segundo a sentença: “The restrictions imposed are substantially related to the promotion of the general welfare and not only permit reasonable beneficial use of the landmark site but also afford appellants opportunities further to enhance not only the Terminal site proper but also other properties”. Eduardo Gonçalves Rodrigues 8 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva Os restantes dois casos a que iremos fazer uma referência sumária, assumem contornos semelhantes ao primeiro e constituem exemplos mais recentes da combinação de sistemas de compensação em espécie no contexto internacional. O segundo caso ilustra a aplicação de sistemas de compensação em espécie numa área urbana de uso agrícola e de enquadramento paisagístico e consiste no caso do Parque Urbano do Palmeiral de Elche (Valência)21. Neste caso, a adopção da compensação em espécie permitiu a conservação dos antigos “Huertos de Palmeras de Elche”, obviando a prossecução de uma política de expropriações prejudicial tanto para a Administração, como para os particulares e permitindo ganhos significativos de parte a parte, com benefício do interesse público. Em resumo, a estratégia adoptada foi a de integrar o Palmeiral em “áreas de apoio colectivo” (sujeitas a cedência obrigatória e gratuita)22, áreas essas, simultaneamente adstritas a novos sectores de solo urbanizável da cidade, para efeitos de “transferência do aproveitamento urbanístico”. Em suma, no âmbito da constituição do Parque Urbano do Palmeiral de Elche, os proprietários das parcelas integradas no Palmeiral (a conservar) foram compensados por via da atribuição de um determinado direito de construção, re-localizado em solo urbanizável que, por sua vez, foi objecto de reconversão, no âmbito da concretização do aproveitamento transferido. Finalmente, o terceiro caso reporta-se à combinação de sistemas de compensação em espécie em solo urbano, com vista à conservação de uma estrutura linear e subsequente reconversão da mesma em parque urbano. Tal caso encontra-se consubstanciado na proposta de zonamento de West Chelsea (Manhattan – Nova Iorque)23. Neste caso, a conservação e reconversão de uma antiga linha ferroviária determinou a definição de um espaço-canal relativamente abrangente, em que a realização de operações urbanísticas se encontra fortemente condicionada. A fixação de restrições associadas ao uso, ocupação e transformação de tal espaço teve por consequência a compensação dos proprietários por elas afectados e a consequente relocalização dos respectivos direitos de construção. Tal compensação concretizou21 Classificado como património mundial pela UNESCO. Vd. GONZÁLEZ-VARAS IBÁÑEZ, Santiago (Coord.), El agente rehabilitador. Notas sobre gestión en suelo urbano consolidado. Navarra: Thomson Aranzadi, 2005, pp. 91 e ss. e 207 e ss. 22 “Red Primaria o Estructural de Dotaciones”. 23 Disponível em: http://www.nyc.gov/html/dcp/html/westchelsea/westchelsea1.shtml Vd ainda: http://www.thehighline.org/ Eduardo Gonçalves Rodrigues 9 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva se por via da previsão da possibilidade de os proprietários transferirem o seu aproveitamento urbanístico para espaços “receptores” previamente definidos em determinadas zonas especiais, desde que observadas determinadas condições, nos termos esquematicamente traduzidos na figura abaixo24. Em síntese, a conservação e reconversão de uma estrutura linear urbana teve por origem a compensação dos proprietários afectados por tais acções, por via da “transferência de aproveitamento urbanístico” (que, por sua vez, deu também origem à reconversão dos espaços “receptores” de tal aproveitamento). Os casos acima mencionados têm em comum o reconhecimento do manifesto desequilíbrio da imputação a um único particular (normalmente o titular do direito de propriedade) dos encargos associados à concretização de políticas urbanísticas que beneficiam todos os cidadãos, e a formulação de soluções que procuram corrigir uma situação indesejável, tanto do ponto de vista social, como do ponto de vista económico e jurídico. Na impossibilidade de compensar financeiramente o proprietário ou de atribuir um aproveitamento urbanístico equilibrado à respectiva parcela ou imóvel, as soluções formuladas passam frequentemente pela “transferência do aproveitamento urbanístico” entre áreas espacialmente descontínuas. Conforme iremos ver de seguida, este tipo de abordagem tem vindo a ser desenvolvida no ordenamento nacional e poderá constituir um ponto de reflexão no âmbito da elaboração da nossa Lei do Solo (LdS). 24 Vd. http://www.nyc.gov/html/dcp/html/westchelsea/westchelsea3b.shtml . Em certos casos, uma das condições para a concretização da transferência do aproveitamento urbanístico consiste na prévia construção de um acesso vertical à estrutura linear, no interior da parcela “emissora” de tal aproveitamento. Eduardo Gonçalves Rodrigues 10 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva 2.3. O contexto nacional As compensações em espécie têm vindo a ser introduzidas nos vários níveis de planeamento presentes no contexto nacional, correspondentes a três escalas e leituras diferenciadas e hierarquizadas que se interligam, a saber: (i) a escala da região, (ii) a escala do local e (iii) a escala do sítio25. No âmbito da escala da região, a compensação em espécie manifesta-se tanto ao nível de servidões administrativas de aplicação a todo o território nacional, como ao nível dos planos regionais de ordenamento do território, de aplicação mais circunscrita, mas não de somenos importância. A ilustrar o primeiro nível mencionado, consideramos o caso da reserva ecológica nacional (REN). A ilustrar o segundo nível, consideramos a revisão do Plano Regional de Ordenamento do Algarve (PROTAL)26. No âmbito da escala do local, a compensação em espécie manifesta-se essencialmente ao nível dos planos directores municipais de segunda geração, sendo referidas neste caso as revisões dos Planos Directores Municipais do Porto e de Lisboa. Finalmente, no âmbito da escala do sítio, a compensação em espécie tem vindo a manifestar-se principalmente no quadro de planos de pormenor e operações de loteamento, sendo exemplo paradigmático de tal quadro o designado “Caso Meco”27 e o Plano de Pormenor da Zona Sul da Mata de Sesimbra (PPZSMS)28. Vejamos. Relativamente à escala da região, iremos em primeiro lugar considerar o caso da REN, que assume particular importância na aplicação de sistemas de compensação em espécie em solo rural. Em resumo, o problema que tem vindo a colocar-se acerca desta servidão administrativa prende-se com a necessidade de compensação dos proprietários afectados pelas restrições a ela associadas ou, pelo menos, com a necessidade de redistribuir os encargos e benefícios inerentes por um grupo mais alargado de sujeitos. Uma primeira resposta dada ao problema, encontra-se vertida na “Informação n.º112/DGS, de 14 de Abril de 2004, da Direcção-Geral do 25 Vd. MORAIS, João Sousa, Metodologia de Projecto em Arquitectura – Organização Espacial na Costa Vicentina. Lisboa: Ed. Estampa, 1995, p. 25. 26 Aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 102/2007, de 3 de Agosto. 27 Vd. CORDEIRO, António Menezes, GARCIA, Maria da Glória Ferreira Pinto Dias, PINHEIRO, Luís de Lima, O Caso Meco. Lisboa: Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território, 2002. 28 Disponível em: http://matadesesimbra.com.pt/ e http://www.cmsesimbra.pt/pt/conteudos/o+concelho/informacao_geografica/Planos/SIG_PP_Mata.htm . Eduardo Gonçalves Rodrigues 11 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano”29. Em termos genéricos, tal informação explicitava, de forma devidamente fundamentada, que as áreas de REN deviam ser contabilizadas para efeitos do cálculo da edificabilidade “assim como relativamente aos mecanismos de perequação dos planos”30. Tal contabilização consubstanciava, na prática, a aplicação de um sistema de compensação em espécie aos proprietários afectados pelos fins de conservação prosseguidos pela servidão em causa, por via da “transferência do aproveitamento urbanístico” da área abrangida pela REN para outras parcelas31, à semelhança do que se verifica em outros casos do contexto internacional32. Posteriormente, embora ainda admita a edificação em REN em certas situações, o legislador veio inflectir a posição consagrada na citada informação, determinando expressamente que “as áreas da REN não são contabilizadas para o cálculo da edificabilidade”33. Neste quadro, o mesmo legislador determinou ainda que “na elaboração dos planos municipais de ordenamento do território, as áreas integradas na REN são consideradas para efeitos de estabelecimento dos mecanismos de perequação compensatória dos benefícios e encargos entre os proprietários na medida em que contribuam para a valorização dos terrenos com capacidade edificatória, sendo obrigatória a sua inclusão nas respectivas unidades de execução ”. Em seguimento do exposto, a Lei n.º 32/2010, de 2 de Setembro, que procedeu à criação do “crime urbanístico”, veio determinar a aplicação de uma pena agravada a funcionário que informe ou decida favoravelmente processo de licenciamento ou de autorização cujo objecto incida sobre terreno da REN, “consciente da desconformidade da sua conduta com as normas urbanísticas”34. No que se refere concretamente à compensação dos particulares, o presente quadro legislativo aparenta estar bastante mais avançado do que a realidade que lhe está 29 “Informação n.º112/DGS, de 14 de Abril de 2004, homologada pelo Director-Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano em 19 de Maio de 2004, sobre a relevância das áreas integradas na REN para efeitos de cálculo de índice de construção”. Vd. NEVES, Maria José Castanheira, OLIVEIRA, Fernanda Paula, e LOPES, Dulce, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação – Comentado. 1.ª Edição. Coimbra: Almedina, 2006, pp. 621 e ss. 30 Vd. ponto 25. da citada informação. 31 Neste sentido, vd. OLIVEIRA, Fernanda Paula, e LOPES, Dulce, Direito do Urbanismo – Casos práticos resolvidos. Coimbra: Almedina, 2005, p. 77. 32 Vd., v.g., o caso do designado “Pinelands Comprehensive Managment Plan” elaborado para a Reserva Nacional com o mesmo nome (New Jersey, Estados Unidos da América). Disponível em: http://www.state.nj.us/pinelands/cmp/CMP.pdf . 33 Vd. artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de Agosto. 34 Vd. artigo 382.º-A do actual Código Penal. Eduardo Gonçalves Rodrigues 12 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva subjacente e levanta algumas questões de natureza prática, que podem ser sintetizadas em três aspectos principais. Em primeiro lugar, as unidades de execução em que é aplicada a perequação compensatória são ainda pouco expressivas do ponto de vista quantitativo, integrando-se, em regra, na execução sistemática de planos municipais de maior pormenorização (ainda em número insuficiente), o que não favorece a compensação dos proprietários afectados pela REN35. Acresce que o estádio incipiente da execução sistemática dos planos municipais por via de unidades de execução (assim como a persistência da execução assistemática) poderão ainda potenciar um novo tipo de manipulação de regras urbanísticas36, tendente a excluir os proprietários afectados pelas restrições da REN do âmbito de qualquer compensação, nomeadamente, no caso de delimitação de unidade de execução não precedida de plano de pormenor. Em segundo lugar, o facto de a perequação se encontrar ainda em desenvolvimento no nosso País, associado à circunstância de a mesma beneficiar, de forma correcta, de um regime relativamente aberto, acarreta uma maior indefinição (e consequente maior insegurança) para a compensação dos proprietários em causa. Em terceiro lugar, a relativa abrangência da nova figura do “crime urbanístico”37, aliada à abertura do regime da perequação, poderá contribuir para potenciar a ocorrência de equívocos interpretativos, tendencialmente prejudiciais à formulação de sistemas de compensação dos particulares em causa38. 35 Note-se que, segundo o disposto no n.º 2 do artigo 136.º do RJIGT, “A aplicação de mecanismos de perequação previstos nesta secção realiza -se no âmbito dos planos de pormenor ou das unidades de execução referidas no artigo 120.º, segundo os critérios adoptados no plano director municipal” (destaque nosso). 36 A propósito do tema da manipulação das regras urbanísticas, vd., v.g., CORREIA, Fernando Alves, Manual de Direito do Urbanismo. Volume II, Coimbra: Almedina, 2010, p. 251. Para uma leitura crítica da figura da REN, vd. PARDAL, Sidónio, «Planeamento do território: para uma teoria crítica». Jornal Arquitecturas, Setembro, 2005, n.º 4, p. 30 e PARDAL, Sidónio, A Apropriação do Território – Crítica aos diplomas da RAN e da REN. Lisboa: Ordem dos Engenheiros, 2006. 37 Acerca dos efeitos nefastos da proliferação de leis no âmbito do combate à corrupção, vd. SOUSA, Luís de, Corrupção…, p. 94 e ss., designadamente “Mais recentemente, em 2010, num contexto de sucessivos escândalos de corrupção envolvendo altas figuras da vida do política nacional e perante os olhares atentos da equipa de avaliadores externos do GRECO no âmbito da terceira fase de avaliação dedicada ao financiamento político, a Assembleia da República lançou-se «oportunamente» em mais uma campanha de moralização da vida pública, criando para o efeito uma Comissão Eventual para o Acompanhamento Político do Fenómeno da Corrupção e para a Análise Integrada de Soluções com Vista ao seu Combate no âmbito dos trabalhos parlamentares. O guião repete-se: adoptam-se novos tipos de crimes, introduzem-se afinações à legislação existente, instituem-se novos mecanismos de controlo, sem qualquer reflexão sobre como serão postos em prática e de que forma se articularão”. 38 Note-se que, parte dos mecanismos de perequação compensatória previstos no RJIGT assentam na consideração de um “direito abstracto de construir”, tendo por referência a “propriedade ou conjunto de propriedades” consideradas no plano, o que poderá contribuir para uma maior complexidade do tema. Eduardo Gonçalves Rodrigues 13 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva Em suma, embora o presente quadro legislativo possa incentivar de alguma forma um ordenamento mais pormenorizado das áreas abrangidas pela REN (em contracorrente com a actual conjuntura económico-financeira), verifica-se hoje que a compensação em espécie dos particulares abrangidos por esta servidão apresenta algumas dificuldades de ordem prática39, que poderiam constituir um tópico de reflexão no âmbito da LdS. Ainda ao nível da escala da região (e também com importantes consequências no ordenamento do solo rural), cabe ainda referir a figura dos “incentivos à requalificação de áreas urbano-turísticas” vulgarmente designada pelo PROTAL por “transferência de camas”40. Este mecanismo, a ser integrado e concretizado nos planos directores municipais dos vários concelhos, possibilita na prática, a “transferência de aproveitamento urbanístico” constante de alvarás de loteamento válidos e eficazes (ou dos “direitos titulados por alvarás”), respeitantes a zonas cuja requalificação urbanística seja desejável, e que se localizem “fora dos perímetros urbanos dos aglomerados tradicionais, isto é, de génese não turística”. Tal transferência é objecto de contratualização e envolve designadamente o compromisso de atribuição de “camas turísticas” em novos empreendimentos turísticos a criar no âmbito das figuras específicas do plano regional, em razão da desistência definitiva de execução de operações urbanísticas validamente existentes e eficazes. Trata-se, assim, de um mecanismo de compensação em espécie que visa a reconversão de espaços de uso turístico, por via da re-localização de direitos de construção juridicamente consolidados, em alguns casos, com a consequente conservação de áreas de valor paisagístico e ambiental. Em suma, ao nível da escala da região, foram já dados passos significativos no sentido da introdução no ordenamento jurídico nacional das compensações em espécie, de que se adivinham desenvolvimentos. No âmbito da escala do local, a combinação de diferentes sistemas de compensação em espécie em solo urbano encontra-se patente nas revisões dos Planos Directores Municipais do Porto e de Lisboa. 39 A este propósito, e para uma visão crítica do actual enquadramento das áreas protegidas privadas, vd. GOMES, Rogério, «Áreas Protegidas Privadas». Território e Ambiente Urbano, n.º 1, Dezembro 2009,disponível em: http://www.urbe-nupi.pt/revista/index.php?&r=1&art=34 . 40 Vd. ponto 2.1.4. do PROTAL. Eduardo Gonçalves Rodrigues 14 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva Em 2006, a revisão do Plano Director Municipal do Porto (PDMP)41, introduziu no ordenamento jus-urbanístico um inovador sistema de compensação42 no âmbito da execução de operações urbanísticas na respectiva “área crítica de recuperação e reconversão urbanística (ACRRU)” abrangidas pelo “sistema de informação multicritério da cidade do Porto” (“SIM-Porto”). Em síntese, este sistema de compensação prevê a atribuição de “direitos concretos de construção transaccionáveis” a operações urbanísticas que propiciem a salvaguarda e a valorização do património edificado, podendo tais direitos ser utilizados em operações urbanísticas de construção de novos edifícios e em ampliações nas áreas de edificação isolada com prevalência de habitação colectiva, dentro e fora da “área crítica de recuperação e reconversão urbanística”, aumentando a edificabilidade previamente estabelecida43. Trata-se, assim, de um sistema de compensação em espécie que propicia a conservação do património edificado da cidade e, simultaneamente, a re-localização de “direitos de construção”, no quadro da reconversão de determinadas áreas. Em 2011, a proposta de revisão do Plano Director Municipal de Lisboa (PDML) apresenta um sistema de compensação em espécie semelhante ao vertido no PDMP, em que se prevê a atribuição de “créditos de construção transaccionáveis” a operações urbanísticas “de interesse municipal”, interesse esse a aferir em função de determinados critérios. Entre os critérios mencionados, conta-se a conservação do património edificado da cidade, designadamente, “a reabilitação de edifícios” e “o restauro dos bens da Carta Municipal do Património”44. Contam-se ainda entre os mesmos critérios a conservação e reconversão de áreas verdes de recreio e de uso agrícola, nomeadamente, por via da “transmissão para o domínio municipal de áreas verdes, integradas em Espaços consolidados e a consolidar verdes de recreio e produção, a título gratuito e como acréscimo às cedências legalmente exigíveis” e ainda da “demolição de edifícios existentes em Espaços consolidados e a consolidar verdes de recreio e produção”. Assim, adopta-se um sistema combinado de compensações em espécie que visa, entre outros aspectos, a conservação de valores 41 Ratificada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 19/2006, de 3 de Fevereiro. Vd. alínea c) do n.º 2 do artigo 80.º do Regulamento do PDMP. 43 Vd. artigo 82.º do Regulamento do PDMP. 44 Vd. alíneas b) e c) do artigo 84.º da proposta de regulamento do PDML sujeita a discussão pública. 42 Eduardo Gonçalves Rodrigues 15 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva culturais e naturais, com a previsão de “créditos de construção” (a concretizar em determinada localização) e a consequente reconversão da cidade. Em resumo, também ao nível da escala do local, foram dados passos importantes no sentido da introdução do mecanismo das compensações em espécie, que irão, sem dúvida, ter um papel importante na reabilitação das nossas cidades. Finalmente, no âmbito da escala do sítio, a implementação de um sistema de compensação em espécie pode ser encontrada no “Caso Meco” e no Plano de Pormenor da Zona Sul da Mata de Sesimbra (PPZSMS). O “Caso Meco” teve a sua origem no licenciamento de uma operação de loteamento em Sesimbra, titulada pelo alvará n.º 5/9945, cuja concretização acarretaria a urbanização de uma área com cerca de 67 hectares, com a implantação de cerca de 2227 fogos em 216 lotes localizados numa zona sensível do ponto de vista ambiental e paisagístico. A impossibilidade de concretização de tal projecto originou, em Março de 2003, o chamado “Acordo do Meco”, celebrado entre o Estado Português, o Município de Sesimbra, a “Aldeia do Meco — Sociedade para o Desenvolvimento Turístico, S. A.” e a “Pelicano — Investimento Imobiliário, S. A.”, tendo-se previsto no mesmo a transferência, para a Mata de Sesimbra, de 315.000 m2 de construção provenientes do alvará n.º 5/99, relativo a um terreno na zona do Meco46. A concretização de tal transferência foi tratada no âmbito da elaboração do PPZSMS, tendo em 2008, o Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional (MAOTDR) entendido “ter fundadas razões para considerar nulos o alvará n.º 5/99 e o Acordo do Meco” o que impediu, na sua opinião, “o reconhecimento de quaisquer direitos de construção no Meco, bem como a transferência desses alegados direitos para a mata de Sesimbra”47. Na opinião do ministério, e entre outros aspectos, a proposta do PPZSMS, que incluía os “alegados direitos de construção” provenientes do Acordo do Meco (315.000 m2, correspondentes a uma capacidade estimada de 8.000 camas), colidiria com as orientações do Plano Regional de Ordenamento do Território da Área Metropolitana de Lisboa (PROTAML) relativas à ocupação do território na península de Setúbal e com os valores ambientais em presença. 45 Na titularidade de Aldeia do Meco – Sociedade para o Desenvolvimento Turístico, Lda. Vd. Despacho do Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional n.º 1381/2008, de 11 de Janeiro. 47 Ibidem. 46 Eduardo Gonçalves Rodrigues 16 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva Neste caso, a re-localização de “direitos de construção” (determinada pela necessidade de conservação de importantes valores ambientais e paisagísticos no Meco) e a consequente reconversão da área de intervenção do PPZSMS acabou por sucumbir parcialmente em face de, entre outros aspectos, as orientações constantes de plano de nível regional (o PROTAML) e da necessidade (também aqui) de conservação de valores ambientais relevantes. Em suma, também ao nível da escala do sítio nos deparamos com casos em que as compensações em espécie assumem um papel relevante, tornando-se a esta escala mais visível a estreita relação existente entre as opções tomadas ao nível do sítio e ao nível regional e as implicações que daí podem derivar, no âmbito do princípio da hierarquia dos planos. 3. COMPENSAÇÕES FINANCEIRAS 3.1. Âmbito material Conforme acima exposto, a segunda modalidade de compensação urbanística tratada na presente análise, designada por compensação financeira, materializa-se, em regra, no pagamento à Administração, pelo particular, de um valor pecuniário fixo, devido na ausência de previsão de áreas destinadas a infra-estruturas, espaços verdes e de utilização colectiva e equipamentos (também designadas por “áreas de apoio comum”). A matéria das compensações financeiras encontra-se frequentemente dispersa pela mais diversa regulamentação municipal (com designações nem sempre uniformes48), o que, para além de dificultar o acesso às regras aplicáveis a cada caso, poderá potenciar a ocorrência de situações de menor transparência na aplicação das mesmas. Assim, salvo algumas excepções49, em geral, não se trata de matéria que se encontre sistematizada e tratada num único diploma, o que não facilita a respectiva análise. Neste contexto, iremos aqui apenas produzir algumas notas acerca do assunto, com base na análise de um conjunto seleccionado de 48 Por exemplo, “regulamento de operações urbanísticas”, “regulamento de taxas e compensações”, “regulamento municipal de urbanização, edificação, taxas e compensações urbanística “, “regulamento de cobrança da compensação urbanística” etc. 49 A este propósito, cabe referir o caso do Código Regulamentar do Município do Porto, que contém uma sistematização integrada das diversas matérias relacionadas com este tema, o que, para além de facilitar o acesso às regras aplicáveis, confere maior transparência à sua aplicação (vd. Regulamento n.º 180/2011, de 11 de Março). Refira-se também o caso do Regulamento Municipal de Compensação do Município de Cascais, que condensa as principais regras relativas a esta matéria (vd. Aviso n.º 2838/2009, de 2 de Fevereiro, alterado pelo Aviso n.º 10523/2009, de 4 de Junho). Eduardo Gonçalves Rodrigues 17 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva regulamentos municipais de urbanização e edificação (RMUE)50 e em alguma experiência prática na matéria. São três os aspectos sucintamente analisados: (i) âmbito material das compensações financeiras; (ii) pagamento em espécie e (iii) principais regimes conexos. Atendendo à importância da matéria no quadro da reabilitação urbana, cujo regime jurídico prevê a possibilidade de criação de um regime especial de cálculo de compensações financeiras51, ao longo da análise produzida serão introduzidos alguns comentários gerais acerca da respectiva articulação com a reabilitação urbana. Vejamos cada um dos aspectos seleccionados. Conforme referido, no actual quadro legal, o âmbito material das compensações financeiras circunscreve-se a operações de loteamento ou outras operações urbanísticas de impacte relevante52 ou ainda a edifícios contíguos e funcionalmente ligados entre si que determinem, em termos urbanísticos, impactes semelhantes a uma operação de loteamento (abreviadamente referidos como “operações de impacte semelhante”)53, na ausência da cedência ou previsão de áreas de apoio comum54. Volvidos três anos desde a introdução da figura de operações urbanísticas de impacte relevante, verifica-se que subsistem ainda regulamentos municipais de urbanização e edificação em que não é feita qualquer referência a esta figura, a par de enquadramentos variados dados à mesma noutros regulamentos, tanto no sentido da sua equiparação à categoria de operações de impacte semelhante, como no sentido da respectiva diferenciação55. Neste quadro, a definição das categorias 50 O citado conjunto de cerca de 50 diplomas foi seleccionado a partir do cruzamento de dois critérios, a saber: (i) a densidade populacional do concelho e (ii) a localização geográfica. No âmbito do primeiro critério, foram apenas considerados os concelhos com densidade populacional superior a 200 habitantes por km2 (dados de 2001). No âmbito do segundo critério, foram apenas considerados os concelhos com frente litoral marítima. 51 Vd. artigo 67.º do regime jurídico da reabilitação urbana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de Outubro, que prevê a possibilidade de criação de um regime especial de cálculo das compensações devidas ao município pela não cedência de áreas de apoio comum 52 A categoria de impacte relevante foi introduzida no RJUE em 2007, com o objectivo de ampliar o conjunto de operações urbanísticas que se encontram sujeitas à cedência de áreas de apoio comum. 53 Vd. artigos 43.º 44.º e 57.º do RJUE. 54 Para mais desenvolvimentos, vd. NEVES, Maria José Castanheira et al, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação…comentários aos artigos 43.º, 44.º e 57.º do RJUE. 55 No sentido equiparação das figuras de impacte relevante e impacte semelhante a um loteamento, vejase, v.g. os casos de Faro ou do Porto - Regulamento n.º 402/2010, de 5 de Maio e Regulamento n.º 180/2011, de 11 de Março, respectivamente, no sentido da sua diferenciação, veja-se, v.g. o caso de Lagos ou de Sines - Edital n.º 24/2011, de 12 de Janeiro e Regulamento n.º 458/2011, de 28 de Julho, Eduardo Gonçalves Rodrigues 18 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva de operações urbanísticas de impacte relevante e de operações de impacte semelhante resulta usualmente da consideração de dois critérios: (i) as características da operação urbanística e (ii) as repercussões que a mesma tem nas infra-estruturas do concelho. Aos critérios acima mencionados correspondem, com alguma frequência, as tipologias de operações urbanísticas de “obras de edificação” (em geral) ou as obras de construção, alteração e ampliação. O tema assume especial interesse, mormente no âmbito da reabilitação urbana56, no que se refere em concreto às obras de ampliação (e obras de construção precedidas de demolição), uma vez que nestes casos nos encontramos perante situações de alteração dos valores da área de construção existente (no sentido do seu acréscimo), o que tem repercussões importantes, tanto na definição do âmbito material das compensações financeiras, como na definição dos respectivos valores. Sendo certo que nada impede que a regulamentação municipal explicite a totalidade da área de construção (existente mais ampliação) como referência para se aferir da existência de uma operação subsumível à categoria de impacte relevante ou de impacte semelhante, já a consideração dessa mesma área para efeitos de cálculo das cedências ou compensações poderá levantar questões relacionadas com a despatrimonialização do direito de propriedade57, a dupla oneração58 ou a inobservância do princípio tempus regit actum. Para obviar tais questões, a prática mais correcta, a nosso ver, tem sido a de considerar como referência para efeitos de cálculo das cedências ou compensações apenas a área da ampliação (ou a área da construção nova respectivamente. Registam-se ainda casos de abandono da figura de impacte semelhante a um loteamento (veja-se, v.g., o caso de Vila Nova de Gaia - Aviso n.º 19962/2010, de 8 de Outubro). 56 Vd. o caso das Caldas da Rainha– RMUE publicado através do Edital n.º 357/2007, de 4 de Maio. Este regulamento, sendo anterior ao RJRU, prevê expressamente um regime especial relativo à articulação entre a reabilitação urbana e as compensações financeiras. 57 Para mais pormenores, vd. RODRIGUES, Eduardo Gonçalves, «Algumas reflexões sobre a figura do reparcelamento», Comunicação apresentada no Encontro Anual da AD URBEM, Lisboa, 2009 (ainda não publicada na data da redacção deste artigo). 58 Partindo-se do pressuposto que as compensações se configuram materialmente como taxas urbanísticas. Vd. NABAIS, Casalta, “Fiscalidade do Urbanismo” in Actas do 1.º Colóquio Internacional – O Sistema Financeiro e Fiscal do Urbanismo (CEDOUA, FDUC, APDU). Coimbra: Almedina, 2002, p. 55, citado por vd. NEVES, Maria José Castanheira et al, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação…p. comentários ao artigo 44.º do RJUE. Eduardo Gonçalves Rodrigues 19 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva subsequente a demolição licenciada)59. Como incentivo à reabilitação urbana, em determinados casos, prevê-se a desconsideração de parte da área da ampliação. Repare-se que, tendo os proprietários das edificações pré-existentes cumprido, na data de emissão da respectiva licença, as obrigações legais exigíveis a propósito de tal licenciamento, seria muito duvidoso que se pudesse vir exigir-lhes a realização de novas cedências ou compensações, em sede de operação superveniente. Com efeito, tanto considerando que o jus aedificandi integra o direito de propriedade como, numa outra perspectiva, que “a outorga ao particular das «faculdades» de utilização do solo (…) passam a integrar a sua esfera patrimonial e, consequentemente a integrar a sua «propriedade» garantida pelo artigo 62.º [da Constituição]60”, a exigência ao mesmo de cedências ou o pagamento de compensações neste contexto sempre consistiria numa autêntica despatrimonialização do seu direito de propriedade. Da mesma forma, embora num cenário mais duvidoso, parece que, mesmo naqueles casos em que o proprietário das edificações pré-existentes opte por demolir e reconstruir as mesmas, sem alteração dos respectivos parâmetros urbanísticos, não lhe será exigível a participação na realização de cedências ou o pagamento de compensações. Já no caso de a demolição e reconstrução acarretar efectivamente um aumento da área de construção pré-existente, tal como poderá suceder, por exemplo, no caso de realização das obras de reconstrução com preservação das fachadas61, parece que será de admitir a integração de tal área no cálculo das cedências ou compensações a efectuar no âmbito da operação pretendida, apenas no que respeita ao excedente de aproveitamento urbanístico concretizável. Por outro lado, o mesmo valerá também, em princípio, para o caso de a parcela edificada não 59 Vd. deliberação, com valor interpretativo, da Câmara Municipal de Lisboa, de 14 de Julho de 2010 [publicada no 2.º Suplemento ao respectivo Boletim Municipal n.º 857, Ano XVII, de 22 de Julho de 2010, pp. 1352 (34) e 1352 (35)] e o caso do Porto - Regulamento n.º 180/2011, de 11 de Março. Vd. ainda o caso de Vila Nova de Gaia - Regulamento Municipal de Taxas e Compensações Urbanísticas, publicado através do Aviso n.º 19962/2010, de 8 de Outubro. No sentido da consideração do aumento de “STP – superfície total de pavimentos” como facto relevante para a definição de IR, vd. o caso de Sesimbra – Regulamento n.º 511/2011, de 26 de Agosto. 60 Vd. OLIVEIRA, Fernanda Paula, Loteamentos Urbanos e Dinâmica das Normas de Planeamento, Almedina, Coimbra, 2009, p. 126. 61 Previstas na alínea n) do artigo 2.º do RJUE. Eduardo Gonçalves Rodrigues 20 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva possuir infra-estruturas viárias adequadas a servir a edificação existente (prevendo-se que venha a ser servida pelas definidas na operação pretendida). Também relevante no âmbito da reabilitação urbana é a regulação da relação entre o novo e o existente, no que se refere concretamente à alteração do uso e nas consequências de tal alteração em matéria de cedências e compensações, aspectos que nem sempre se encontram claros na regulamentação municipal. Para além da definição positiva do âmbito material das compensações financeiras, nos termos acima expostos, é ainda frequente a respectiva definição negativa por via da consagração em regulamento municipal de “isenções e reduções”. Apesar do tratamento dado à matéria variar em função das características do concelho e da estratégia adoptada por cada município, registam-se algumas situações que são dignas de nota. Em primeiro lugar, embora na maior parte dos casos não se registe ainda a criação expressa de um regime especial de cálculo das compensações financeiras no âmbito da reabilitação urbana, verifica-se, em algumas situações, a diferenciação negativa das operações urbanísticas a realizar neste âmbito (em que se incluem, por exemplo, as operações urbanísticas integradas em “área crítica de recuperação e reconversão urbanística” ou “centro histórico”)62. Em segundo lugar, apesar de ainda subsistirem regras em sentido contrário, a prática considerada mais correcta63 tem ido no sentido da existência de áreas de apoio comum de natureza privada ser associada à isenção de compensações (quando não mesmo excluída do seu âmbito de aplicação)64 ou à concessão de reduções significativas (por exemplo, 50%). Em terceiro lugar, regista-se com interesse que, em alguns casos, o facto de as áreas cedidas não se encontrarem total ou parcialmente infra-estruturadas despoleta também a obrigação de pagamento de uma compensação financeira ao município65, o que revela algum grau de pormenor no tratamento da matéria. Em quarto lugar, a regulação de isenções e ou reduções de compensações financeiras é 62 Vd., entre outros, o caso do Porto - Regulamento n.º 180/2011, de 11 de Março, ou de Vila Nova de Gaia Regulamento Municipal de Taxas e Compensações Urbanísticas, publicado através do Aviso n.º 19962/2010, de 8 de Outubro. Vd. ainda o caso de Leiria - Regulamento de Operações Urbanísticas do Município de Leiria, publicado através do Edital n.º 955/2009, 7 de Setembro e o caso de Oeiras – RMUE designado por Regulamento n.º 106/2011, de 10 de Fevereiro. 63 Para mais desenvolvimentos, vd. vd. NEVES, Maria José Castanheira et al, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação…comentários aos artigos 43.º, 44.º e 57.º do RJUE. 64 Vd., v.g., o caso de Vila Real de Santo António - Regulamento n.º 404/2010, de 5 de Maio e o caso de Caldas da Rainha – RMUE publicado através do Edital n.º 357/2007, de 4 de Maio. 65 Vd. o caso de Sesimbra - Regulamento n.º 511/2011, de 26 de Agosto. Eduardo Gonçalves Rodrigues 21 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva frequentemente utilizada no sentido de incentivar a localização (ou a relocalização) de certos usos em determinado local. Finalmente, em quinto lugar, a mesma regulação é também utilizada no sentido de incentivar a regularização de situações preexistentes, designadamente, de áreas de génese urbana ilegal (AUGI)66. Em síntese, a definição do âmbito material das compensações financeiras prendese com os direitos dos particulares, designadamente, com o próprio direito de propriedade, aspecto que poderá constituir um tópico de reflexão na elaboração da LdS. Por outro lado, o mesmo âmbito prende-se também com as opções estratégicas tomadas pelo município para o território do concelho, tanto ao nível da reabilitação urbana, como ao nível das infra-estruturas, dos usos e das situações preexistentes, entre outros aspectos, o que é importante ter presente na regulação municipal. 3.2. Pagamento em espécie No que se refere às formas de pagamento, verifica-se na prática que os municípios oscilam entre a preferência (ou imposição) pelo pagamento em numerário ou em espécie, sendo importante neste caso diferenciar a figura das compensações em espécie prestadas pela Administração aos particulares, do pagamento em espécie de compensações financeiras. Conforme visto acima, as compensações em espécie concretizam-se na atribuição, por parte da Administração, de um direito (usualmente de construção) como compensação pela perda ou limitação, por via administrativa, de oportunidades ou da iniciativa do particular relativamente ao desenvolvimento de determinada parcela ou imóvel. Diversamente, o pagamento em espécie das compensações financeiras realiza-se através da transmissão, por parte do particular, de parcelas ou lotes para o domínio municipal67 ou ainda através da realização de “obras de interesse público municipal” ou “obras externas” 68. 66 Vd. o caso do Porto - Regulamento n.º 180/2011, de 11 de Março, ou o caso de Sesimbra Regulamento n.º 511/2011, de 26 de Agosto. No que se refere às áreas urbanas de génese ilegal (AUGI), o caso de Cascais - Regulamento Municipal de Compensação – publicado por via do Aviso n.º 2838/2009, de 2 de Fevereiro, alterado pelo Aviso n.º 10523/2009, de 4 de Junho. 67 A transmissão de parcelas ou lotes poderá eventualmente no futuro vir a assumir um papel de relevo no âmbito da formação das chamadas “bolsas de terrenos” municipais. 68 Vd. o caso de Oeiras - Regulamento n.º 106/2011, de 10 de Fevereiro ou o caso de Sesimbra Regulamento n.º 511/2011, de 26 de Agosto. Eduardo Gonçalves Rodrigues 22 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva A realização de obras de interesse público municipal como forma de pagamento em espécie de compensações devidas pelos particulares situa-se a meio caminho entre a situação prevista no n.º 4 do artigo 117.º do RJUE e a situação prevista no artigo 25.º do mesmo diploma. Na primeira, veda-se à Administração a exigência de mais-valias não previstas na lei ou de quaisquer contrapartidas, compensações ou donativos conferindo-se ao titular da licença ou comunicação prévia para a realização de operação urbanística, quando dê cumprimento àquelas exigências, o direito a reaver as quantias indevidamente pagas ou, nos casos em que as contrapartidas, compensações ou donativos sejam realizados em espécie, o direito à respectiva devolução e à indemnização a que houver lugar. Na segunda, abre-se a possibilidade de o particular propor à Administração a realização de infraestruturas ou assumir o seu encargo, caso a operação urbanística por ele pretendida tenha sido indeferida, por constituir uma sobrecarga excessiva sobre as infra-estruturas existentes ou implicar a realização de trabalhos não previstos pelo município. No caso da realização de obras de interesse público municipal como pagamento em espécie de compensações financeiras, embora não seja exigível ao particular a realização das mesmas, nem se coloque a questão do indeferimento da operação urbanística, o particular, assume voluntariamente, ao abrigo da sua autonomia contratual, determinados encargos públicos, materializados na realização de infraestruturas, que poderão localizar-se fora da área de intervenção da operação urbanística pretendida69. Sem nos determos na análise da legitimidade que terá o promotor para desenvolver as citadas obras num terreno que se encontrará na titularidade de terceiro, e admitindo que esse terceiro será o município, poderá acrescentar-se que existe aqui alguma relação entre esta situação e os elementos relativos à figura do contrato de empreitada de obras públicas. Assim, sendo evidente o paralelismo existente entre os sujeitos, a onerosidade e o tipo de obras em causa, o facto de se poder considerar que a via normal para a realização de tais obras será a via contratual, designadamente através de um contrato de execução, com forma escrita70, leva-nos a abrir a hipótese de nos encontrarmos nesta 69 Para mais desenvolvimentos, vd. vd. NEVES, Maria José Castanheira et al, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação…comentários ao artigo 117.º do RJUE. 70 Importa ter presente que, mesmo nos casos em que não é formalmente celebrado um contrato escrito, a adesão às condições explicitadas em regulamento municipal é também normalmente efectuada por via da Eduardo Gonçalves Rodrigues 23 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva situação perante um contrato de empreitada de obras públicas, segundo os critérios constantes das directivas europeias em matéria de contratação pública e concorrência. Deixando para outra ocasião uma análise aprofundada do assunto, iremos de seguida produzir apenas um breve apontamento acerca da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) nesta matéria, considerando para o efeito o acórdão La Scala71. O caso “Scala 2001”72 que, em 12 de Julho de 2001, deu origem ao acórdão com o mesmo nome, teve por objecto um pedido dirigido ao TJUE pelo Tribunale amministrativo regionale per la Lombardia, destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre a Ordem dos Arquitectos de Milão e Lodi e a Comuna de Milão (e outros), uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação da Directiva 93/37/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas. Resumindo, na origem do citado acórdão está a impugnação de duas deliberações do Conselho Municipal da Comuna de Milão, uma datada de 1996, e outra de 1998, em conformidade com as quais foi acordado com determinado promotor (a Milano Centrale Servizi SpA - mandatária dos promotores do “Projecto Bicocca”) que este construiria, por empreitada directa e numa área de cedência gratuita do respectivo loteamento uma “obra de equipamento secundário” consubstanciada no Teatro Bicocca (destinado a apoiar o Teatro La Scala, durante a realização de obras de conservação no mesmo). O montante associado a tal construção seria deduzido dos “contributos” para os encargos de equipamento devidos à Comuna de Milão, nos termos da legislação italiana. Por outras palavras, pode-se dizer que se trata de um caso em que foi acordado o pagamento em espécie de uma compensação financeira devida à Administração, através da realização pelo promotor de determinadas obras, consideradas de interesse público. apresentação de um requerimento formal escrito junto da câmara municipal, que é também objecto de resposta escrita, por parte desta última. 71 E ainda dos acórdãos Auroux e Helmut Müller. Vd., a este propósito, MOREIRA, João Ilhão, «Os Contratos Urbanísticos como Actividade Económica e Mercado Público: a Influência da Jurisprudência Comunitária» in OLIVEIRA, Fernanda Paula (Coord.), O Urbanismo, o Ordenamento do Território e os Tribunais, Almedina, Coimbra 2010, p. 553. 72 Em linha: http://curia.europa.eu/jurisp/cgibin/gettext.pl?lang=pt&num=79989287C19980399&doc=T&ouvert=T&seance=ARRET Eduardo Gonçalves Rodrigues 24 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva Simplificando, perante as questões prejudiciais que lhe foram colocadas, o TJUE concluiu que a realização directa de uma “obra de equipamento” nas condições previstas pela legislação italiana em matéria de urbanismo constituía um contrato de empreitada de obras públicas. Partindo de tal conclusão, o TJUE concluiu também que a Administração tinha a obrigação de respeitar os procedimentos previstos pela directiva acima referida no âmbito da celebração de contratos de empreitada de obras públicas. Acrescentou ainda o mesmo Tribunal que tal não significa que, para que a directiva seja respeitada em caso de realização de uma obra de equipamento, a Administração deva, necessariamente, aplicar ela própria os processos de contratação previstos nesta mesma directiva. O seu efeito útil será também conseguido se a legislação nacional permitir à Administração obrigar o titular do loteamento detentor da licença, através dos acordos que com ele celebrar, a realizar as obras acordadas através do recurso aos processos previstos na directiva, e isto para cumprir as obrigações que incumbem à Administração, a este respeito, por força da referida directiva. Em suma, no caso concreto, o TJUE concluiu que “a Directiva 93/37/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas, se opõe a uma legislação nacional em matéria de urbanismo quando esta permita, à margem dos processos previstos por esta directiva, a realização directa, pelo titular da licença de construção ou do projecto de loteamento aprovado, de uma obra de equipamento, contra a dedução total ou parcial da contribuição devida a título de concessão da licença e cujo valor seja igual ou superior ao limiar fixado pela referida directiva”. Conforme aponta João Ilhão MOREIRA, na formulação da respectiva sentença, o TJUE partiu da consideração de seis elementos constitutivos de um contrato de empreitada de obras públicas: a existência de um contrato, o respeito pela forma escrita, a presença de uma entidade adjudicante e de um empreiteiro, o carácter oneroso do contrato e a realização de um certo tipo de trabalhos. Analisando a influência das directivas de contratação pública nos contratos urbanísticos em Portugal, o mesmo Autor verifica a presença de todos os elementos constitutivos da noção de contrato de empreitada de obras públicas na situação prevista no artigo 25.º do RJUE, concluindo ser necessário “para a realização destes contratos (…) realizar-se um procedimento pré-contratual de acordo com as Eduardo Gonçalves Rodrigues 25 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva regras de contratação pública”, embora aceitando, em determinadas situações, que o procedimento de adjudicação possa ser organizado pelo requerente do licenciamento73. Ora, no caso de realização de obras de interesse público municipal como pagamento em espécie de compensações financeiras, conforme acima explanado, existe alguma identidade com a situação prevista no artigo 25.º do RJUE, o que tendencialmente aponta no sentido de a situação em análise se enquadrar também nos elementos constitutivos de um contrato de empreitada de obras públicas, segundo os critérios comunitários. Não cabendo aqui aprofundar a relação existente entre a realização de obras de interesse público municipal como pagamento em espécie de compensações financeiras e a jurisprudência comunitária, conclui-se com uma chamada de atenção para as repercussões importantes que tal realização poderá ter ao nível da aplicação das regras de contratação pública, aspecto que poderá constituir um tópico de reflexão da LdS. 3.3. Principais regimes conexos As compensações financeiras apresentam uma ligação estreita com os planos municipais de ordenamento do território e com os regulamentos municipais de taxas, que integram regras complementares ao regime de compensações constante dos regulamentos municipais de edificação e urbanização. Ressaltam-se três aspectos principais, a reter: em primeiro lugar, são usualmente os planos directores municipais (ou, com menor frequência, os planos de urbanização ou planos de pormenor) que procedem à definição genérica dos parâmetros de dimensionamento dos espaços de apoio comum, nos termos do n.º 2 do artigo 43.º do RJUE, que, por sua vez, condicionam o cálculo das compensações financeiras. Em segundo lugar, as taxas de licenciamento e urbanização prosseguem frequentemente objectivos comuns ou complementares às compensações financeiras, nomeadamente, no que se refere ao incentivo de determinadas actuações urbanísticas, por parte dos particulares, v.g., no âmbito da reabilitação urbana. Finalmente, em terceiro lugar, a estreita relação entre as compensações financeiras e a perequação compensatória, tem levado a que alguns municípios encarem as primeiras, umas vezes, como um autêntico um mecanismo perequativo 73 MOREIRA, João Ilhão, «Os Contratos Urbanísticos como Actividade Económica…», p. 585. Eduardo Gonçalves Rodrigues 26 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva ad hoc que “visa uma justa redistribuição de encargos e benefícios entre os diferentes promotores”74. Outras vezes, as compensações financeiras são encaradas como um mero regime transitório destinado a ser substituído, a médio prazo, pelo disposto em planos municipais de ordenamento do território e outros regulamentos municipais especificamente dirigidos à regulação da perequação e dos fundos de compensação75. Em suma, a complexidade do urbanismo actual confere à regulamentação municipal um importante papel no âmbito do enquadramento das compensações financeiras, que, embora aqui sejam analisadas de forma isolada, não podem ser desligadas do contexto mais vasto em que se integram, que corporiza a estratégia territorial seguida pelo município. 4. COMPENSAÇÕES SISTEMÁTICAS 4.1. Os interessados na execução As compensações sistemáticas assumem natureza variada (financeira e não financeira) e ocorrem no âmbito da execução sistemática dos planos municipais de ordenamento do território, mormente, por via de planos de pormenor e unidades de execução, encontrando-se frequentemente enquadradas por mecanismos contratuais76. Embora não seja fenómeno recente, a contratualização no urbanismo português tem vindo a ganhar expressão por via de figuras variadas, que se encontram necessariamente ligadas à definição dos interessados na execução do plano. A grande abrangência desta figura é facilmente apreensível se considerarmos o âmbito subjectivo dos contratos de planeamento e de execução, a possibilidade de “outras entidades interessadas” participarem na execução do plano, por via de contrato de urbanização ou ainda a abrangência subjectiva dos programas de acção territorial, capazes de enquadrar “a coordenação das actuações das entidades públicas e privadas interessadas na execução dos planos municipais de ordenamento do território”. 74 Vd. o caso de Ílhavo – RMUE publicado por via do Aviso n.º 7427/2011, 24 de Março ou ainda, o caso de Vila Franca de Xira – Regulamento n.º 5-A/2008, de 7 de Janeiro, alterado pelos Regulamento (extracto) n.º 118/2009 de 10 de Março e Regulamento (extracto) n.º 335/2011, de 18 de Maio. 75 Vd. o caso de Loulé –RMUE publicado por via do Aviso n.º 19728/2011, de 3 de Outubro. 76 Vd. CORREIA, Jorge André Alves – Contratos Urbanísticos – concertação, contratação e neocontratualismo no direito do urbanismo. Coimbra: Almedina, 2009. Eduardo Gonçalves Rodrigues 27 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva Importa assim ter presente que a figura dos interessados na execução do plano comporta hoje muito mais do que apenas os proprietários do solo, abrangendo também outros sujeitos que, pela relevância que assumem na elaboração ou execução do planeamento, designadamente no quadro da distribuição dos benefícios e encargos do plano, também compõem o mesmo grupo. Tais sujeitos abrangem não só os particulares, mas também a Administração, tanto no âmbito da manifestação dos interesses públicos diferenciados do Estado77, como no âmbito da gestão do respectivo património78. Em suma, actualmente, para além da Administração e dos proprietários (ou comproprietários) de parcelas localizadas no interior da área em execução, coexistem hoje vários outros sujeitos passíveis de integrar a figura dos interessados na execução dos planos, exemplificados sumariamente de seguida. Em primeiro lugar, os proprietários externos à área em execução que, por força dos instrumentos de gestão territorial aplicáveis ou acordos celebrados (no âmbito, por exemplo, de compensações em espécie ou do pagamento em espécie de compensações financeiras) materializem os seus direitos ou obrigações nessa área. Em segundo lugar, os titulares de direitos reais ou pessoais sobre terrenos integrados na área a planear ou executar (embora com posição menos qualificada do que a dos proprietários). Em terceiro lugar, os promotores (onde se incluem as empresas que actuam no âmbito da simples iniciativa privada e as empresas que actuam ao abrigo de concessão de urbanização)79. Em quarto lugar, os arquitectos urbanistas, enquanto definidores do desenho urbano da cidade, em colaboração com outros profissionais que desenvolvam a sua actividade no 77 A propósito dos interesses públicos diferenciados do Estado, vd., MONTEIRO, Cláudio, «Urbanismo e interesses públicos diferenciados…». Direito Regional e Local, n.º 4, 2008, p. 12-20. Segundo este Autor, «Não existe no quadro urbanístico actual, um interesse público urbanístico uno e indivisível que se possa extrair directamente da lei e contrapor aos interesses privados dos cidadãos. Aquele interesse é o resultado da ponderação de um conjunto díspar de interesses fragmentados, distintos não apenas na sua materialidade como também na sua titularidade». Para um exemplo prático da relevância destes interesses, veja-se o caso dos “contratos de execução” entre o município, os promotores, o Instituto de Turismo de Portugal e as “outras entidades públicas e privadas de relevante interesse para a boa execução dos Núcleos de Desenvolvimento Turístico”, propostos no Plano Regional de Ordenamento do Território do Alentejo, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 53/2010, de 2 de Agosto (ponto 178). A propósito do tema da participação dos interessados no planeamento, vd. PORTAS, Nuno, «Planeamento urbano: morte e transfiguração». Arquitecturas…, 2005, pp.58 e 59. 78 A propósito do papel da Administração proprietária na execução dos planos de pormenor, vd. RODRIGUES, Eduardo Gonçalves, «A Execução dos planos de pormenor …». 79 Refira-se aquelas situações em que determinados promotores obtêm os direitos de comercialização dos prédios ou dos fogos ou adquirem o direito de propriedade ou de superfície de terrenos, em troca da realização das obras de urbanização, consubstanciando verdadeiras «empresas urbanizadoras» (vd. n.º 8 do artigo 131.º do RJIGT). Eduardo Gonçalves Rodrigues 28 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva domínio do urbanismo. Finalmente, em quinto lugar, os representantes de proprietários desconhecidos, de incapazes ou de menores proprietários de terrenos localizados no interior da área a executar e os proprietários de terrenos objecto de litígios judiciais. Assim, enquanto que nas relações subjacentes às compensações em espécie ou nas relações subjacentes às compensações financeiras isoladamente consideradas nos deparamos frequentemente com apenas dois sujeitos, no quadro das compensações sistemáticas verifica-se que nos encontramos perante uma realidade potencialmente mais complexa, que pode abarcar uma importante multiplicidade subjectiva. Atendendo às actuais lacunas da legislação relativamente à matéria da execução dos planos80 e aos respectivos interessados, bem como à diversidade das situações concretas de cada concelho, caberá aos planos municipais e ou aos regulamentos de urbanização e de edificação (ou outros) aprofundar tal matéria81, em função dos modelos de execução adoptados. Não obstante a importância da regulamentação municipal nesta matéria, este aspecto poderia constituir também um ponto de reflexão para a LdS. 4.2. Mecanismos de perequação compensatória Existe, entre nós, uma relação estreita entre as questões da execução dos planos, a perequação compensatória dos benefícios e encargos e a indemnização por danos decorrentes dos planos. De facto, no actual quadro legislativo, a aplicação de mecanismos de perequação realiza-se, em regra, no âmbito dos planos de pormenor ou das unidades de execução82, segundo os critérios adoptados no plano director municipal. Neste quadro, as restrições determinadas pelos instrumentos de gestão territorial vinculativos dos particulares apenas geram um dever de indemnizar quando não seja possível a compensação de tais danos por via da perequação compensatória83. 80 A este propósito, vd., CORREIA, Fernando Alves, Manual de Direito do Urbanismo, Volume II. Coimbra: Almedina, 2010, pp. 66 e ss. 81 Vd., v.g., o caso de Cascais - Regulamento n.º 366/2008, de 9 de Julho. 82 Vd. OLIVEIRA, Fernanda Paula, «As virtualidade das unidades de execução num novo modelo de ocupação do território: Alternativa aos planos de pormenor ou outra via de concertação de interesses no direito do urbanismo?». Direito Regional e Local, n.º 2, Abril/Junho 2008 e LOPES, Dulce, “Planos de Pormenor, unidades de execução e outras figuras de programação urbanística em Portugal”. Direito Regional e Local, n.º 3, Julho/Setembro 2008. 83 Vd. n.º 2 do artigo 136.º e n.º 1 do artigo 143.º do RJIGT. Eduardo Gonçalves Rodrigues 29 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva Conforme se viu a propósito dos temas da compensação em espécie e da compensação financeira, o cenário ideal consagrado na legislação para a execução dos planos não tem ainda total correspondência com a realidade, proliferando situações em que, nuns casos, a prestação de compensações urbanísticas ocorre (ou pode ocorrer) fora da execução sistemática dos planos ou, noutros casos, a mesma se encontra prejudicada por falta de articulação sistemática das regras vigentes. Assim, na actualidade, poderá dizer-se que a matéria das compensações urbanísticas ultrapassa o estrito âmbito da perequação ou, de uma outra perspectiva, que, na prática, a perequação ultrapassou as fronteiras da execução sistemática dos planos. De uma perspectiva estratégica, podem ser referidos três modelos de perequação compensatória, a saber: (i) aplicação genérica da perequação à totalidade do território do concelho, por via directa; (ii) previsão genérica de critérios de perequação aplicáveis ao território municipal, a concretizar pontualmente, por via da elaboração de planos de pormenor ou unidades de execução e (iii) aplicação da perequação apenas a áreas de expansão da cidade. No actual quadro legal aberto, a concretização ou combinação dos modelos acima exemplificados pode ser efectuada, de forma conjunta ou coordenada, designadamente, através dos seguintes mecanismos de perequação: i) estabelecimento de um índice médio de utilização (susceptível de compra e venda) associado à definição de uma área de cedência média; ii) repartição dos custos de urbanização. A aplicação do índice médio de utilização concretiza-se através da fixação, por parte do plano, de “um direito abstracto de construir correspondente a uma edificabilidade média84 que é determinada pela construção admitida para cada propriedade ou conjunto de propriedades, por aplicação dos índices e orientações urbanísticos estabelecidos no plano”. 84 A edificabilidade média será determinada pelo quociente entre a soma das superfícies brutas de todos os pisos acima e abaixo do solo destinados a edificação, independentemente dos usos existentes e admitidos pelo plano e a totalidade da área ou sector abrangido por aquele. Para efeitos de determinação do valor da edificabilidade média, incluem-se, na soma das superfícies brutas dos pisos, as escadas, caixas de elevadores e alpendres e excluem-se os espaços livres de uso público cobertos pelas edificações, zonas de sótãos sem pé -direito regulamentar, terraços descobertos e estacionamentos e serviços técnicos instalados nas caves dos edifícios (vd. n.º 3 e 4 do artigo 139.º do RJIGT). Eduardo Gonçalves Rodrigues 30 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva Para melhor compreender o funcionamento deste mecanismo, cabe abrir aqui um paralelismo com quatro conceitos distintos de aproveitamento urbanístico, a saber: o aproveitamento objectivo, o aproveitamento tipo, o aproveitamento subjectivo e o excedente de aproveitamento85. O primeiro (objectivo), paralelo ao “direito abstracto de construir”, corresponde ao número total de metros quadrados que o planeamento permite construir e destinar a uso privado em determinado sítio. Ou seja, corresponde ao conjunto de metros quadrados edificáveis permitido pelo plano, que, como iremos ver adiante, nem sempre é passível de incorporação plena e equitativa na parcela do proprietário. O segundo (tipo), paralelo à “edificabilidade média”, possibilita que todos os proprietários incluídos no polígono beneficiem do mesmo aproveitamento, independentemente do número total de metros quadrados de área de construção que o plano permita materializar nas respectivas parcelas. Por outras palavras, tanto o proprietário de uma parcela destinada à implantação de um espaço verde non aedificandi, como o proprietário de uma parcela em que é possível construir um edifício com dez pisos terão, na perspectiva deste conceito, o direito ao mesmo aproveitamento, a calcular em proporção da área da sua parcela. O terceiro (subjectivo), paralelo ao direito concreto de construir, corresponde grosso modo ao aproveitamento susceptível de concretização por parte do proprietário, após o cumprimento das obrigações legais a que o mesmo se encontra sujeito, nomeadamente ao nível de cedências, compensações e taxas de licenciamento e urbanização. Finalmente, o quarto (excedente) corresponde à diferença (positiva) entre o aproveitamento objectivo e o aproveitamento subjectivo. Ou seja, à diferença positiva entre o aproveitamento que o planeamento permite construir em determinada parcela e destinar a uso privado e o aproveitamento susceptível de concretização por parte do proprietário de tal parcela. É o excedente de aproveitamento que propicia tanto a compensação do município, nos casos em que tenha de adquirir áreas de apoio comum noutro local, como a compensação dos restantes proprietários, nos casos em que seja devida. É ainda o excedente de 85 Conforme explanados por MUSTAFÁ TOMÁS, Yásser-Harbi, «Régimen de las transferencias y reservas de aprovechamiento urbanístico. En especial, el régimen de la Comunidad Valenciana». Revista de Derecho Urbanístico y Medio Ambiente, n.º 252, Setembro, 2009, pp. 65 e ss. Eduardo Gonçalves Rodrigues 31 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva aproveitamento que propicia a compra e venda do índice médio de utilização86, que constitui um autêntico mecanismo de “transferência de aproveitamento urbanístico” (ou seja, uma compensação em espécie). Tanto num caso como no outro, é fundamental uma correcta avaliação do aproveitamento urbanístico objecto de transferência, tomando em consideração, nomeadamente, os usos, a tipologia e a localização, com vista a estabelecer uma correspondência entre os valores em causa. Neste quadro, quando o aproveitamento subjectivo for inferior ao aproveitamento tipo, o proprietário “deverá, quando pretenda urbanizar, ser compensado de forma adequada, nomeadamente por via de desconto nas taxas que tenha de suportar ou aquisição pelo município, por permuta ou compra, da parte do terreno menos edificável”. Por outro lado, quando o aproveitamento objectivo for superior ao aproveitamento tipo, o proprietário “deverá, aquando da emissão do alvará, ceder para o domínio privado do município uma área com a possibilidade construtiva em excesso” (excedente de aproveitamento). Esta cedência “será contabilizada como cedência para equipamento já que se destina a compensar o município pela área que, para esse fim, por permuta ou compra, terá de adquirir noutro local”87. O mecanismo do índice médio de utilização é normalmente complementado pelo da área de cedência média, em que se aplicam critérios semelhantes aos acima referidos88, pelo que não iremos desenvolver tal mecanismo de cedência nesta exposição. O segundo mecanismo de perequação compensatória enunciado na lei é a repartição dos custos de urbanização. A comparticipação nos custos de urbanização (incluindo-se neste conjunto os relativos às infra -estruturas gerais e locais) poderá ser determinada pelos seguintes critérios, isolada ou conjuntamente: a) O tipo ou a intensidade de aproveitamento urbanístico determinados pelas disposições os planos; b) A superfície do lote ou da parcela. 86 Vd. artigo 140.º do RJIGT. Vd. n.º 8 do artigo 139.º do RJIGT. 88 Vd. artigo 141.º do RJIGT. 87 Eduardo Gonçalves Rodrigues 32 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva O pagamento dos custos de urbanização pode realizar-se, por acordo com os proprietários interessados, mediante a cedência ao município, livre de ónus ou encargos, de lotes ou parcelas com capacidade aedificandi de valor equivalente. Este mecanismo poderá assumir especial interesse na prossecução de soluções de conjunto, quando articulado com a possibilidade de transferência para as outras entidades interessadas na execução do plano dos direitos de comercialização dos prédios ou dos fogos e de obtenção dos respectivos proventos, bem como a aquisição do direito de propriedade ou de superfície89. Não obstante as enormes potencialidades do actual regime, a prática da perequação compensatória suscita algumas questões de ordem prática, das quais se destacam apenas três. Em primeiro lugar, apesar de ser ponto assente que as normas referentes à perequação compensatória constituem normas abertas90, conferindo grande margem de discricionariedade à Administração na adopção, ou não, dos mecanismos mencionados na lei, na prática, verifica-se que são invariavelmente utilizados os mesmos mecanismos que, por frequentemente não se encontrarem adaptados à realidade concreta ou por não se encontrarem suportados por uma estrutura associativa, apresentam problemas na sua aplicação. Em segundo lugar, há ainda muito por fazer no que respeita ao aprofundamento da relação existente entre os mecanismos de perequação, as compensações em espécie, as compensações financeiras e as taxas municipais91, não só com vista a complementar os mecanismos previstos na lei, mas também com vista a evitar situações penalizadoras dos particulares (por exemplo, evitando a dupla oneração dos mesmos com taxas relativas a infra-estruturas e prestações referentes à repartição dos custos de urbanização). Finalmente, em terceiro lugar, seria importante desenvolver a articulação entre os mecanismos de perequação previstos na lei, designadamente, a compra e venda do índice médio de utilização e as regras de registo predial, com vista a agilizar a sua implementação na prática. Em suma, os mecanismos de perequação compensatória apresentam uma relação estreita tanto com as compensações em espécie, como com as compensações financeiras, sendo importante uma maior integração entre ambas, no quadro da 89 Vd. n.º 9 do artigo 131.º do RJIGT. Vd. OLIVEIRA, Fernanda Paula, Sistemas e Instrumentos de Execução dos Planos. Coimbra: Almedina (Cadernos CEDOUA), 2002. 91 Vd. CARVALHO, Jorge, e OLIVEIRA, Fernanda Paula, Perequação Taxas e Cedências. Coimbra: Almedina, 2003. 90 Eduardo Gonçalves Rodrigues 33 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva multiplicidade subjectiva dos interessados na execução dos planos, aspecto que poderá constituir um ponto de reflexão na LdS. 4.3. O fundo de compensação A actual complexidade subjectiva do urbanismo e a tendencial integração dos vários tipos de compensações urbanísticas coloca-nos perante a necessidade de dispor de institutos jurídicos capazes de suportar uma efectiva concretização dos programas de execução dos planos, assim como uma gestão e a desejável concertação dos diversos interesses em presença num dado espaço. A ausência de uma verdadeira tradição associativa em Portugal, porventura aliada à existência de uma certa dependência dos particulares relativamente à Administração e às lacunas do regime de execução dos planos, tem levado a que alguns municípios procurem colmatar as deficiências do nosso sistema de execução por via regulamentar, nomeadamente, através da elaboração de diplomas de designação variada92. Em geral, tais regulamentos visam garantir a prestação das compensações sistemáticas devidas pelos interessados na execução e uma integral execução das infra-estruturas, nos termos definidos em planos de urbanização ou planos de pormenor, no quadro da perequação compensatória. As boas práticas nesta matéria apresentam alguma flexibilidade, deixando grande abertura para a construção de consensos alternativos entre os interessados, ao abrigo da autonomia contratual, sem descurar uma resposta da Administração, nos casos em que tal se revele necessária. Neste contexto, o fundo de compensação previsto no artigo 125.º do RJIGT assume um papel de destaque, na medida em que facilita, entre outros aspectos, (i) a liquidação das compensações devidas pelos particulares e respectivos adicionais; (ii) a cobrança e depósito em instituição bancária das quantias liquidadas e (iii) a liquidação e pagamento das compensações devidas a terceiros. Sendo certo que o fundo de compensação é, em regra, gerido pela câmara municipal com a participação dos interessados, importa ter presente que a gestão do fundo de compensação é algo diverso da gestão do plano ou da unidade de 92 Designadamente, “regulamentos de fundos de compensação”, “regulamentos de compensações de plano de pormenor” ou “regulamentos de perequação compensatória e de fundos de compensação”.Vd. o caso de Lagoa - Regulamento n.º 259/2009, de 25 de Junho, o caso de Chaves - Regulamento n.º 176/2011, de 11 de Março ou o caso de Loulé - Regulamento n.º 875/2010, de 13 de Dezembro, que possui estreita relação com o Plano de Pormenor de Loulé Sul. Eduardo Gonçalves Rodrigues 34 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva execução93. Enquanto que a primeira se dirige essencialmente ao desenvolvimento de acções de liquidação, cobrança e pagamento das compensações devidas no âmbito da execução, a segunda dirige-se à concretização de actuações materiais tendentes à materialização das soluções contidas no plano ou unidade de execução, tanto no que se refere ao edificado, como no que respeita à infraestruturação. Tal distinção não é irrelevante, podendo mesmo, na ausência de plano de pormenor, assumir uma especial importância, no quadro da definição do programa urbanístico (desenhado) de uma unidade de execução94. Com efeito, considerando que os programas urbanísticos (desenhados) que acompanham a delimitação ad hoc de unidades de execução não precedida de plano de pormenor não vinculam o município ou os particulares (mormente os proprietários), a gestão da unidade de execução assume particular importância na criação dos consensos necessários à respectiva concretização material, mormente no que se refere à avaliação dos direitos, obrigações e interesses em causa. Em conclusão, torna-se importante incentivar a implementação de mecanismos capazes de gerar consensos no âmbito da execução sistemática dos planos, designadamente, através da eventual criação de gabinetes orientados para a execução dos planos e ou da associação entre os interessados, aspecto que poderá constituir um ponto de reflexão na LdS. 5. CONCLUSÕES Numa altura em que a execução das medidas consagradas no “Memorando de Entendimento” celebrado entre o Estado Português e as entidades internacionais que prestam assistência financeira à nossa economia ocupam grande parte da agenda nacional, é igualmente importante, a nível local, incentivar a preparação de um quadro capaz de enfrentar os desafios que se avizinham. Se é importante uma reforma do mercado de arrendamento, dos procedimentos administrativos em matéria de reabilitação urbana e da tributação dos bens imóveis, não é menos importante o desenvolvimento de mecanismos capazes de dotar o nosso sistema 93 Algo ainda diverso é a gestão da área de intervenção do plano (designadamente, no que se refere aos espaços de apoio comum), após concluída a respectiva execução. 94 Vd., CORREIA, Fernando Alves, Manual de Direito do Urbanismo, Volume II. Coimbra: Almedina, 2010, p. 65. Eduardo Gonçalves Rodrigues 35 Compensações Urbanísticas: uma tripla perspectiva de gestão territorial de maior eficácia e transparência, com vista a facilitar a operacionalização de tais reformas. Com efeito, todas as reformas acima enunciadas apresentam uma relação estreita com o sector urbanístico, podendo beneficiar enormemente da existência de regras claras quanto às compensações a prestar de forma recíproca entre a Administração e os particulares, entre outros aspectos. Em síntese, um sistema de gestão territorial progressivamente mais eficaz e transparente, mormente no que se refere às compensações urbanísticas, potenciará a atracção de investimento para as nossas cidades num contexto internacional globalizado e extremamente competitivo propiciando, simultaneamente, a valorização do “capital local” existente95. Administração central, local e sociedade civil, todos temos um papel importante a desempenhar neste campo. ***** 95 A propósito do conceito de “capital local”, vd. MASSAPINA, Vasco, «Inversão do Modelo de Ordenamento – Parâmetros de sustentabilidade – Um Novo Paradigma Territorial» paper distribuído no Encontro sobre a Lei de Solos da Associação de Urbanistas Portugueses, Lisboa: 27 de Junho de 2011. Eduardo Gonçalves Rodrigues 36