UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE LITERATURA
AS LENDA S DO SO BRENATUR AL D A
REG IÃO DO ALG ARVE
vol . I
Maria Manuela Neves Casinha Nova
RAMO DE DOUTORAMENTO EM ESTUDOS
DE LITERATURA E DE CULTURA
(LITERATURA ORAL E TRADICIONAL)
2012
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE LITERATURA
AS LENDA S DO SO BRENATUR AL D A
REG IÃO DO ALG ARVE
vol . I
Tese orientada pelo Professor Doutor
João David Pinto -Correia
Maria Manuela Neves Casinha No va
RAMO DE DOUTORAMENTO EM ESTUDOS
DE LITERATURA E DE CULTURA
(LITERATURA ORAL E TRADICIONAL)
2012
1
Dêem-me a vossa opinião,
peço-vos, em breves palavras,
mas, se possível,
na linguagem dos homens.
Porque, pobre filho da terra que sou,
Não sou capaz de entender a linguagem dos
deuses
Que é a linguagem da razão intuitiva
E. Kant
2
ÍNDICE
NOTA PRÉVIA
6
RESUMO
8
RESUMÉ
9
PALAVRAS-CHAVE
10
MOTS-CLEFS
11
INTRODUÇÃO
12
I PARTE – ALGARVE E MISTICISMO
15
1.ALGARVE E MISTICISMO
16
1.1. O PROMONTÓRIO SACRO, AS FINISTERRAS E O RIO LETHES
19
2. LENDA, MITO E LITERATURA ORAL TRADICIONAL
23
2.1.LENDAS, “ENCANTAMENTOS” E APARIÇÕES
28
2.2. A DESIGNAÇÃO “LENDA MÍTICA”
32
3.A RECOLHA DO CORPUS ESTUDADO
34
3.1.APRESENTAÇÃO DO CORPUS
35
3.2. PROVENIÊNCIA DAS VERSÕES
37
3.2. 1.VERSÕES RECOLHIDAS
38
3.2.2. VERSÕES INÉDITAS
39
3.2.3. VERSÕES EDITADAS
40
4. UMA CARACTERÍSTICA PRINCIPAL DAS LENDAS MÍTICAS ALGARVIAS:
A NATUREZA MÍTICA DOS AGENTES-PERSONAGENS
44
4.1. A MOURA ENCANTADA
48
4.1.1. PROBLEMÁTICA DA CLASSIFICAÇÃO DAS LENDAS DE MOURAS
ENCANTADAS
57
4.1.2. ENCANTAMENTO / DESENCANTAMENTO
59
3
4.2. O LOBISOMEM
63
4.3. A SEREIA
70
4.4. A MORTE
81
4.5. OS “MEDOS” OU ALMAS PENADAS
84
4.6. AS BRUXAS OU FEITICEIRAS
92
4.7. O DIABO E AS FORÇAS DO MAL
100
4.8. “AS SANTAS CABEÇAS”
106
4.9. AS “GENS” OU “JENS”
109
4.10. A ZORRA BERRADEIRA
111
5. EXCURSO SOBRE PERSONAGENS SOBRENATURAIS
RELIGIOSAS / CRISTÃS
114
5.1. CICLO DE JESUS CRISTO
118
5.2. CICLO DA VIRGEM MARIA
128
5.3. CICLO DOS “SANTOS”
136
II PARTE – CONTRIBUTO PARA A ANÁLISE E A INTERPRETAÇÃO
DAS LENDAS SOBRENATURAIS ALGARVIAS
145
1. A ACÇÃO E OS AGENTES NARRATIVOS
146
1.1. O NARRADOR
147
1.1.1. A Presença do Narrador
150
1.1.2. A Ciência do Narrador
151
1.2. CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS DA ACÇÃO
152
1.3. AS PERSONAGENS
154
1.3.1. Características das Personagens
154
1.3.2. Funções das Personagens
163
1.3.3. As Relações entre as Personagens
169
4
2. 1.4. O TRATAMENTO DO TEMPO
177
1.4.1. A Localização no Tempo Histórico
177
1.4.2.O Tempo Físico – Localização e Caracterização
180
1.4.3.O Passar do Tempo
181
1.4.4.O Tempo Psicológico
199
1.4.5.Tempo da História / Tempo do Discurso
203
1.4.6.Supervivências ou “ecos” na Época da Recolha
210
1.5.O ESPAÇO
213
1.5.1. A Localização Espacial
214
1.5.2.A Caracterização do Espaço
221
1.5.3.O Espaço Social
225
1.5.4.O Espaço Psicológico
230
2. PRINCIPAIS MOTIVOS E RESPECTIVA INTERPRETAÇÃO
235
2.1. Os Quatro Elementos
236
2.2. Outros Motivos
270
2.3. As Artes Mágicas e os Desencantadores de Tesouros
355
CONCLUSÃO
362
BIBLIOGRAFIA
366
ANEXOS: NUMERAÇÃO DAS LENDAS
379
5
NOTA PRÉVIA
S e j á foi com al gum a apr eensão q ue i ni ci ei o Mest rado
Int e rdi sci pl i nar em Est udos P ort ugues es, na Uni versi dad e Abert a,
com o di sse na “N o t a P révi a” dess a m i nha di ssert aç ão, “p oi s nada
m el hor
para
per ce berm os
quão
pouco
sabem os
do
que
t ent ar
aprende r um pou co m ai s”, não é possí v el descr eve r com o m e sent i
ret i cent e em i ni ci ar o curso de Dout or a m ent o.
P ara m i m , Dout or es t i nham si do os m e us P r ofessor es ao l ongo
de t odo o p ercu rso ( i ni ci ado na Fa cul da de de Let ras e à qu a l vol t ei )
– Li ndl e y C i nt ra, Mari a de Lurdes B e l chi or, Mari a de Lu rdes Fl o r
de Ol i vei ra, El sa Gonçal ves, Luí sa A z uaga, Al z i ra S ei xo, Fát i m a
M orna, Manuel a B et t encourt , Leono r Bues cu (e out ros que não
es queci , m as cuj os nom es não m e ocorrem com a m esm a preci são ) e,
pos t eri orm ent e,
J oão
Davi d
P i nt o -C orrei a,
Mari a
J osé
F erro
Tavar es, Hanna B a t t orëo (e out ros) – com o m e at revi a a t ent ar
s equer al canç ar o t í t ul o dos Grandes Me st res?
P ercebi , ent ret ant o, que o Dout oram e nt o é ap enas m ai s um
degrau ac adém i co e que, t al com o “ o hábi t o não faz o m onge”,
t am bém o Dout oram ent o não é senão m ai s um passo no cam i nho da
aqui si ção de conhe ci m ent o e que, ape nas al i ado a out ras gr andes
qual i dades, pod e co nferi r a m est ri a qu e eu reconh eço nas grandes
fi gur as
que
me
a com panhar am
e
q ue,
fel i z m ent e,
ai nda
me
acom panham – nunc a conse gui i m a gi nar -m e, sequer, a t raba l har com
out ro ori ent ador que não fosse o m eu professor e ori ent ador de há j á
doz e anos, o P ro fessor Dout or J oão Davi d P i nt o -C orrei a, cuj o apoi o
não di spenso e d e quem m e consi de ro j á di scí pul a, a pesar d a
di s t ânci a a que m e e ncont ro do Mest re.
P el as raz ões de a bran gênci a e com pl em ent ari dade ent r e a
Hi s t óri a, a Li t er at ura e a Li n guí st i ca, e pel a at r a cção p es soal pel a
Li t er at ura Or al Tradi ci onal , j á por m i m evocadas ant eri orm ent e
(t al vez , t am bém , por se t rat ar das “forç as” a que o P rofessor P i nt o -
6
C orrei a di z “que po dem os cham ar «m a r gi nal i z adas »” … 1), c ont i nuei
a t rabal har o t em a da m i t ol ogi a popul ar, al ar gando -o a t odos os
t i pos de apari çõ es r egi st ad as no Al garv e.
P or t udo i st o, i ni ci ar est a di ssert aç ão foi um desafi o, p ro duz i l a, um praz er e, con cl uí -l a, um a fel i ci da de.
Devo r efe ri r que, t e ndo com eç ado a esc rever est a t ese h á al guns
anos , usei sem pre a ort ografi a do An t i go Acordo. Um a vez que
ai nda nos encont ra m os num perí odo em que são acei t es, ge ral m ent e
em al t ernat i va, as duas gr afi as, opt ei por não al t era r, c oncl ui ndo
com o m esm o re gi st o.
1
João David Pinto -Correia, Repensar A Nossa Identidade Cultural,
Lisboa, Apenas Livros Lda., 2005, p. 3.
7
RESUMO
Est e t rabal ho pret e nde faz er um l evant am ent o e um a anál i se
cul t ural e l i t er ári a de t odas as l endas do sobrenat ur al ex i st ent es no
Al ga rve, edi t ad as e i nédi t as.
É const i t uí do por duas part es. A pri m ei ra pret end e desc r ever
t odas as person a ge ns das l endas de a pari ções (e des apar i çõ es) no
Al ga rve, d e ori gem m í t i cas ou rel i gi os a , report ando -nos, se m pre que
pos s í vel , ao i ní ci o da sua t radi ç ão e, t am bém , à form a co m o faz em
part e dos cost um es e/ ou ri t uai s dos h abi t ant es dest a re gi ão, poi s
nem sem pre são os m esm os por t odo o paí s, com o sã o os c asos, por
ex em pl o, da brux a e da f ei t i cei ra, ou m esm o da m oura e ncant ada.
P or
est e
m ot i vo,
é
t am bém
ap re sent ada
um a
pro post a
de
cl as s i fi caç ão das l e ndas de m ouras enc ant adas do Al ga rve, vi st o não
poderem ser a grup a das nas cl assi fi c açõ es ex i st ent es, d e J osé Lei t e
de Vascon cel l os e d e C onsi gl i eri P edros o.
Apresent a m os , ai n da o corpus de l endas est ud ado, q ue é
cons t i t uí do, m ai or i tari am ent e , po r l end as edi t adas po r vari adí ssi m os
col ect ores – At aí de de Ol i vei ra, Fe rna nda Fr az ão, Gent i l Marques,
J os é Lei t e de V asco ncel l os, Mar ga ri da Tengarri nh a , de ent r e out ros ;
al gum as l end as i né di t as, recol hi das p or um nosso fam i l i ar que,
ent ret ant o, as t i nh a passado a escri t o, m as não as pu bl i cou; e,
fi nal m ent e, por dez l endas r ecol hi das po r nós em P ort i m ão, C asai s e
Queren ça ( em bora a l gum as se report em a out ras povoa ções) .
Na segund a part e, é anal i sada a est rut ura narr at i va das l endas,
com base nas suas c at e gori as fund am ent ai s, bem com o a si m bol ogi a
dos di versos m ot i vos present es, t ent and o i nt erpret á -l os.
Em anex o, é apre s e nt ada a num e raç ão das l endas ci t ad as n est e
t rabal ho,
cuj os
t ex t os, const i t ui nt es do
corpus
anal i sado,
são
apresent ados t am bé m em anex o, m as num segundo vol um e.
8
RÉSUMÉ
C e t ravai l a l e b ut de recu ei l l i r et de fai r e une ana l ys e
cul t urel l e et l i t t érai re d e t out es l es l é ge nd es du surn at urel e x i st ant es
en Al garve, soi t déj à édi t ées, soi t enco r e i nédi t es.
Il est const i t ué par deux part i es. La pr e m i ère essai e de d éc ri re
t ous l es personna ge s des l é gend es conc ernant des appa ri t i ons (et des
di s pari t i ons) en Al g arve, d ’ori gi ne m yt hi que ou rel i gi euse , en nous
réfé rant , qu and c ’es t possi bl e, au d ébut de sa t radi t i on , a u ssi bi en
q u ’ à l eur fa çon d e f ai re p art i e de s m œurs et / ou de s ri t e s des
habi t ant s de cet t e r égi on, pui sque c el a ne se passe pas d e l a m êm e
m ani ère d ans t out le pa ys, com m e en sont des ex em pl es l a sorci èr e
et l e fét i cheur, ou m êm e l a m aure enc hant ée. P our cet t e r ai son, une
proposi t i on de cl ass i fi cat i on des l é gend es de m aur es en cha nt ées de
l ’Al ga rve est aussi présent é e, pui squ’ el l es ne pe uven t p as êt re
group ées dans l es cl assi fi cat i ons ex i st ant es,
de J osé Lei t e d e
Vas conc el l os e t de C onsi gl i eri P edroso.
Nous présent ons, encore, l e corpus de s l égendes ét udi é es, qui
es t const i t ué pour l a pl upa rt pa r d es l é gend es édi t é e s par de
pl us i eurs col l ect eur s – At aí d e de Ol i ve i ra, Fe rnanda Fr az ão, Gent i l
M arques, J osé Lei t e de Vasconcel l os, Mar gari d a Ten gar ri nha , parm i
d’aut res ;
qual ques
l égendes
i nédi t es ,
recuei l l i es
par
un
not re
fam i l i er qui l es ava i t p assées à l ’éc ri t au fi l du t em ps, m a i s qui ne
l es avai t j am ai s publ i ées; et , fi nal em e nt , dix l égendes re cuei l l i es
par nous -m êm es à P ort i m ão, à C asai s et à Quer ença.
Dans l a s econde pa rt i e, l a st ruct u re n a rrat i ve d es l é gend es est
anal ys ée, basé e sur ses cat é gori es fond am ent al es, aussi bi e n que l a
s ym bol o gi e des di ffér e nt s m ot i fs pr ésent s , en essa yan t de l es
i nt erprét er .
La numérotation des légendes citées dans ce travail est
présentée en anexe, bien que les textes composant le corpus
de légendes anal ysé, mais ceux -ci dans un second volume.
9
PALAVRAS-CHAVE

Mi t o

Lend a

Narr at i va

Tradi ção

Al ga rve

S i m bol ogi a
10
MOTS-CLEFS
 M yt he
 Lé gende
 Narr at i ve
 Tradi t i on
 Al ga rve
 S ym bol o gi e
11
INTRODUÇÃO
C ri ança qu ando o H om em pi sou a Lua e adol esc ent e em 2 5 de
Abri l de 1974, pert enço a um a gera ç ão cuj as pal avr as -c have são
“m udança ”, “t r ansfo rm ação ” e “ evol uçã o”.
J á não assi st i ao ap areci m ent o d a r ádi o, m as vi apa rec erem , nas
vi das das pessoas com uns, a t el evi são, o ví deo, o com put ador, o
t el em óvel , o C D e o DVD. Vi as bobi ne s evol uí rem para ca sset t es e
es t as t ransform a rem -se, assi m com o os di scos em vi ni l , em C Ds e
em DVDs. No m eu pri m ei ro com put ador, apenas bri ncav a c om j ogos
em casset t es ; no segundo, bri ncava com di squet es e j á faz i a os m eus
t rabal hos par a a es col a, ac resc ent ando -l hes depoi s os ac e nt os e as
cedi l has;
com
o
t ercei ro,
t i nha
acesso
a
est es
c aract eres
m em ori z ando “apen as” t rês t ecl as par a cada um del es; o quart o
apresent ava
já
um
“t ecl ado
port uguês ”
e
er a
exp ansí vel
e
compat í vel ; ao qui nt o j á pude “acopl ar” um modem e l i ga r -m e à
Int ernet que, d ei t an do abai x o o Mi ni t el franc ês dur ant e a corri da ,
vi nha real i z ar o vel ho sonho de um gr a nde banco de d ados m undi al ,
a que qual quer pes soa poderi a t er a ce sso, em qual quer part e do
m undo, a qual quer hora, e d e que ape nas se f al ava nos f i l m es de
fi cção ci ent í fi ca.
P assei a pri m ei ra i nfânci a num a al dei a onde ex i st i a um úni co
t el efone, fi x o, part i cul ar , cuj o dono perm i t i a que out ras pessoas o
us as sem em caso de ne cessi dade. N est a al dei a do Ba rl avent o
al garvi o, no V erão , à “t a rdi nha”, d e poi s do j ant ar, as pessoas
l evavam as c adei ras “da t abua” p ara a r ua, e l á part i l havam os seus
probl em as, com ent a vam as cart as dos fam i l i ares em i grado s ou na
gue rra, cont avam h i st óri as – al gum a p art i da que um hom em t i nha
pre gado
a
fant ást i cas:
um
a m i go,
m oura s
vi a gens,
encant ad as,
n egó ci os,
“m edos”,
am or es,
apari çõ es
l obi som ens,
al m as
penadas…
A se gunda i nfânci a, com t odo o p ri m ei r o ci cl o de escol ari d ade
e m et ade do se gun do, foi passada em S . Tom é e P rí nci pe, onde
12
havi a ap enas du as t el evi sões, de p a rt i cul a res qu e, vi v endo na
m ont anha,
l on ge
da
ci dad e,
capt av am
i m a gens
de
em i ssões
es panhol as de Fe rn ão do P ó e de An o Bom , e que, po r t odas as
raz ões evi dent es , nã o eram i ncom odado s por ni nguém . P ara al ém de
adqui ri r o ví ci o d a l ei t ura, pass ear e bri ncar com um a l i be r dade que
i nvej o hoj e par a as m i nhas fi l has, fo r am ci nco anos de hi st óri as:
caç a, pes ca, am ores fel i z es e i nf el i z es, em i grant es d e C ab o Verd e,
t ornados, apa ri ções m i st eri osas, crenç as l ocai s…
A hi st óri a da che gada à Lua, vi st a p or um grupo r est ri t o de
pes s oas, uns m eses depoi s, no ci rcui t o i nt erno de t el evi são da t el e es col a, vei o j unt ar - se às out ras, t ão i ncrí vel com o al gum a s del as,
rodeada de um a aur a de fant asi a que fa ri a i nvej a a qu al que r Guerra
dos
Mundos ,
i gua l m ent e
verosí m i l
e,
ao
m esm o
t em po,
t ão
at ordoant e com o um a m ordedura d e um a cobra am a rel a que só l arga
a presa qu ando ouve t ocar o si no de um a i grej a…
A ci dade, a adol esc ê nci a, o S ot avent o al ga rvi o , o 25 d e Ab ril , o
l i ceu, a pol í t i ca – a m udança dent ro d e m i m , fora de m i m , à m i nha
vol t a. Out ros l ugar es, out ros t em pos, out ras persona gen s, out ras
hi s t óri as. Mas, paral el am ent e, as féri as na al dei a.
O ví ci o da l ei t ura conduz i u -m e à for m ação em Li t erat u r a. O
i nt eresse pel a Li t er at ura Oral Tr adi ci o nal surgi u no m om ent o em
que t om ei conhe ci m ent o da ex i st ênci a dest a ár ea e t ev e or i gem n o
perm anent e cont act o com a t radi ç ão or al . A m udança const a nt e cri ou
em m i m , t al vez , uma cert a nost al gi a m as, cert am ent e, a con sci ênci a
da i m port ânci a de conserva r o pat ri m óni o cul t ural . O praz er que
s i nt o ao ex pl orar e st as hi st óri as l evou -m e a opt ar pel as l endas de
m ouras encant adas com o m at eri al pa ra a m i nha di ssert ação do
M es t rado Int e rdi sci pl i nar em Est udos P ort ugueses. P el as m esm as
raz ões
de
abran gê nci a
e
com pl em en t ari dade
opt o,
a go ra,
por
cont i nuar esse est udo, dando -l he out r a am pl i t ude, en gl ob ando
t odas as l endas
m í t i cas do Al garv e, i st o é, as l en das cuj as
pers ona gens são, pa ra al ém dos al garvi os, t odos os seres i rreai s que
povoam o i m agi n á ri o col ect i vo e p e rt encem , por i sso, a um a
m i t ol ogi a popul ar . S ão t ex t os que nos dão cont a d a “or gani z ação
13
i deol ógi c a” e da “ est rut uraç ão do i m agi n ári o, quer o c ol ect i vo
part i cul ar, p rópri o da com uni dade a q ue as ob ras di z em respei t o,
quer o col ect i vo ge ral , uni versal , si t uá vel naquel a z ona q ue Ed ga r
M ori n desi gnou por «a nt r opo cosm ol ógi c a ». ”
2
P enso que a ex equibi l i dade dest e t raba l ho passa por di vi di -l o
em
duas
p art es.
A
pri m ei ra,
de
c aráct er
m ai s
et no gr áfi c o
e
ant ropol ógi co, est ab el ece a r el aç ão ex i st ent e ent re as t radi ç ões e as
vári as persona gens sobrenat urai s, sobr e t udo as de caráct er m í t i co ,
em boea t am bém as de car áct e r rel i gi os o, t ent ando, quando possí vel ,
conhec er as suas ori gens. Assi m , av ançar em os, nest a part e do
pres ent e est udo, co m um a propost a d e cl assi fi ca ção d as l endas de
m ouras en cant adas do Al garv e que, com o v er em os, ne m sem pre
correspond em às su as con gén eres do r e st o do paí s. Escl ar e ce, ai nd a,
a t erm i nol ogi a usa da – “l endas”, “ epi sódi os l endári os” e “l endas
m í t i cas”. A pres ent a m os, ai nda, o corp us de l endas est ud ado , qu e
com preend e a r eco l ha oral de al gum as hi s t óri as, assi m com o a
apresent ação de out ras, j á escri t as, m a s nunca publ i cadas , e ai nda
t odas as l endas edi t adas que en cont rá m os na nossa pesq ui sa , que
correspond em à m ai or part e do corpus .
A segund a part e , de car áct er di dá ct i co -l i t erári o, pr et en de
cont ri b ui r para a an ál i se de t odas a s l endas apresent a das – a
es t rut ura n arr at i va , com o t am b ém o cont eúdo, a ex pressão, a
s i m bol ogi a d os m ot i vos e a sua i nt erp ret ação .
Para
facilitar
a
consulta
dos
textos,
proponho
uma
numeração das lendas, que apresento como pri meiro anexo, e
que será tida em conta ao longo da dissertação. Assim, não
serão citadas as páginas em que se encontram, mas a referida
numeração, uma vez que, num segundo volume, apresento
todos os textos das lendas que constituem o corpus de lendas
analisado.
2
Idem, p. 5.
14
I
P A R T E
ALGARVE E MISTICISMO
15
1. ALGARVE E MISTICISMO
São as potências do invisível, o mito (“o nada que é tudo”),
a lenda , a chama que desce a iluminar o herói, são essas
potências que, fecundando a realidade tornam a vida digna de ser
vivida, ou, melhor, transfor ma m a existência , mero ve getar, e m
vida,
quer
dizer,
promessa
do
que
não
I mpossível, gra ndeza de alma insatisfe ita.
há,
perseguição
do
3
P or t odo o pl anet a ex i st em pai sagens e horas do di a l i ndas , de
cort ar a respi r aç ão, i nspi radoras que r de poet as que r de m í st i cos,
m as
o
que
é
i negável
des envol vi m ent o
de
habi t ant es,
i sso
para
um
é
que
c ert o
há
l ocai s
m i st i ci sm o
concorr endo
m ai s
por
propí ci os
pa rt e
d et erm i nados
ao
dos
seus
fa ct or es,
nem
s em pre os m esm os e nem sem pre pel os m esm os m ot i vos.
É comum a quase todas as mitologias a existê ncia de certos
locais
da
Terra
integrados
numa
geogrefia
sagrada,
lugares
considerados «umbigo», ou «centro » do mundo, onde, através
deles, se pode estabelecer a ligaçã o entre o mundo dos vivos e o
mundo dos mortos e dos deuses. Já a Bíblia, resultado de muitas
tradições anteriores, ta mbé m me ncio na o loca l e a pedra sobre a
qual Jacob adormeceu e viu, e m sonhos, a e scada que ligava a
Terra ao Céu.
Se
4
ex cl ui rm os
os
c onheci dos
por
“C hacr as
da
T erra ”,
es pal hados por t odo o m undo, de S t onehenge a J erusal ém , passando
por F á t i m a, Lourde s, S ant i ago d e C om po st el a, R om a , J erusal ém e
A ye rs R ock, par a ci t ar apenas os m ai s c onheci dos, que são especi ai s
para t oda a hum ani dade, P o rt ugal i nt ei ro pa re ce est a r voc aci onado
3
Jacinto do Prado Coelho, “Fernando Pessoa Autor da Mensagem”,
Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa , Lisboa, Ed. Verbo, 4ª ed.,
1973.
4
Gabriela Morais, A Genética e a Teoria da Continuidade Paleolítica
aplicadas à Lenda da Fundação de Portugal, Irlanda e Escócia , Lisboa,
Apenas Livros Lda., 2008, p. 33.
16
para est a rel a ção co m o sobrenat ural , h avendo, ai nda assi m , al guns
l ocai s m ai s mági cos do que out ros.
O
sagrado
pertence
como
uma
propriedade
estável
ou
efé mera a certas coisas (os instr ume ntos do c ulto), a certos seres
(o rei, o padre), a certos espaços (o templo, a igreja, os lugares
régios), a certos te mpos (o domingo, o dia de Páscoa, o Natal,
etc.). Não há nada que não possa tornar -se sua sede e revestir
assim aos olhos do indivíduo ou da colectividade um prest ígio
sem
igual.
Nada
há,
igualmente,
que
não
possa
ver -se
desapossado dele. É uma qualidade que as coisas não possuem
por si mesma s: uma gr aça misteriosa ve m -na acrescentar a ela s.
«A ave que voa, explicava a Miss Fletcher um índio dakota, pára
a fim de fazer o seu ninho. O homem que caminha pára onde lhe
agrada. O mesmo sucede com a divindade: o Sol é um lugar onde
ela parou, as árvores e os animais são outros tantos lugare s. É
por isso que se lhes reza, pois atinge -se o sítio onde o sagrado
5
estaciona e obtém-se assim dele a assistência e bênção.»
P ara a prop ensão mí st i ca do Al garve concor rem os se gu i nt es
fact or es: a sua l ocal i z ação geo grá fi ca – “onde a t er ra a cab a e o m ar
com eça ”:
a
prox i m i dade ,
si m ul t aneam ent e,
de
Áfr i ca,
do
M edi t errân eo e do At l ânt i co , l ocal i z ação pri vi l egi ada, don de part i a
a m ai or part e das c aravel as; ai nda a ní vel geo gráfi co, a di versi dade
do rel evo e, conse quent em ent e, da ve get ação e da pai sa gem – a
pres enç a const ant e do m ar e da serr a, em t oda a re gi ã o; a sua
Hi s t óri a (est rei t am e nt e l i gada à si t uaçã o geo gráfi c a) – de s al i ent ar o
fact o de t e r si do a pri m ei ra part e do a ct ual paí s a ser con qui st ada
pel os
rom anos
e
a
úl t i m a
a
ser
abandonada
pel o s
m ouros:
cons equênci as ao ní vel da l í ngua , dos c ost um es e, em part i cul ar, da
rel i gi osi dad e.
A paisagem
sentimentos
é,
humanos,
assim,
um
me io
sentime ntos
que
expressivo,
são
que
evoca
consequência
da
projecção huma na no espaço natural. As forma s da paisa ge m
impõe m-se aos se ntido s, criando e fo me nta ndo sentimentos que
5
Roger Callois, O Homem e o Sagrado, Lisboa, edições 70, 1988, p. 20.
17
une m a s pessoas aos se us e s paços físicos. Este s ga nha m, por isso,
uma “alma” q ue actua sobre os se ntimentos e sobre as ideia s dos
autóctones, que acaba m por revelar na sua própria alma as
qualidades da natureza que os rodeia. 6
Apesar d o qu e Lei t e d e Vascon cel l os af i rm a, com verdad e , que
“a
uni fo rm i dade
da
pai sa gem
do
Al ent ej o
e
d as
c ondi ções
geol ó gi c as f az que no S ul haj a m en os l endas qu e no Nort e e
C ent ro”, porque “o t erreno é const ant e m ent e cort ado de ri bei ros ou
ri os que i nspi ram po esi a, ou por s eu m ar ul ho ou por sua corr ent e, ou
por suas pedr as, arei as e pei x es” 7, o fact o é que a rel at i va
m onot oni a da pai sagem al ent ej ana dá l u ga r às ser ras (do C a l dei rão e
de Monchi que ), ao Ba rroc al e às p rai as, fr equent em ent e cort adas
pel a foz de um ri o, al t ernando -s e a f al ési a e as dun as, ri b ei r os ou
ri os e ri as (Form os a e de Al vor), a ar gi l a e a a rei a, o pi nhei ro e o
cardo - rol ador, o eu cal i pt o e o na rci so - das -ar ei as. E est a v ari edad e
ex ci t a a i m agi naçã o e, em épocas de f ormação de personal i dade
col ect i va , m ai s vul nerávei s porque ai n da de const ru ção do própri o
paí s , de defi ni ção d e front ei r as, em que o m edo dos i ni m i gos vári os
e dos confront os da s bat al has dá l uga r à eufori a das vi t óri as ou ao
pâni co das de rrot a s, não é di fí ci l perceb er um a rel i gi osi dade
i m pregn ada
de
va l ores
fl ut uant es,
onde
há
l u ga r
pa ra
ser es
fant ást i cos, i nvoca ç ões, esconj uros, vi s ões, sej am apr esent ados pel o
cl ero,
sej am
amál gama
de
pel o s
sent i dos,
cre nças ,
porque
m i st urando -se,
per m eável
a
resul t and o
t oda
e
num a
qual quer
m ani fest aç ão do sobrenat ur al , di vi no ou não, os própri o s concei t os
s obrepondo -se.
Esta ligação com os lugares é mantida através de tradições,
cultos e lendas, per ma necendo ainda vivos imensos ve stígios de
uma inte gração arcaica do ho me m no co smo s, o que co nstitui um
6
Alexandre Parafita, A Mitologia dos Mouros, Canelas, Edições
Gailivro, col. Mitologia e Memória, 2006, p.37.
7
José Leite de Vasconcellos, Signum Salomonis. A figa. A barba em
Portugal. Estudos de etnografia comparativa , Lisboa, Dom Quixote,
1969, p.741.
18
tesouro
inestimável
num
mundo
em
fase
acele rada
de
dessacralização […]. T odavia, o home m é um ser religioso por
natureza ( mesmo os siste mas cha mados ate us tê m os seus ídolos e
as suas mitologias) […]
8
Assi m , al t ernam t am bém rel at os de apari ções de sant os e de
m ouras encant adas, de al m as penada s e da Vi rgem Mari a, de
i ns pi rações di vi nas e di aból i cas, do própri o J esus C ri st o e de
l obi som ens, assi m com o ant es e depoi s de b at al has, com ex érci t os
em cam po abert o e com hora m arcad a, ou aquando de esca ram uças ,
at aques a cast el os, de surpres a, com f ugas a press adas e pri ncesas
del i cadas l i t eral m en t e cai ndo nas m ãos de gu err ei ros fe ros e brut os.
1.1. O PROMONTÓRIO SACRO, AS FINISTERRAS E
O RIO LETHES
T alvez a mais importante finisterra portugue sa, o cabo de
Sagres constitui um dos altos lugares de uma possível mitologia
portuguesa.
[…]
Efectivamente,
o
promo ntório
encontra -se
saturado de refer ências históricas, mítica s e si mbólicas, e é já
referido nas fo ntes da Antiguidade como ca bo sagrado . […] É,
de
facto,
invariavelmente
descrito
como
um
Promontorium
Sacrum, lugar de cultos antigos a Saturno ( sacra Saturni) ou a
Hércules, e marcado ainda por ritos de interdição nocturna, e por
sua vez associado a vestígios pré -históricos nas imediações
( menire s).
9
P arece, poi s, que o mi st i ci smo nas t erra s al ga rvi a s t em ori gens
m ai s rem ot as do que possa pare cer à pri m ei ra vi st a, poi s P aul o
P erei ra cont i nua, ci t ando Est rab ão, P l í ni o (que pre ci sava “ o al canc e
8
Paulo Alexandre Loução, PORTUGAL terra de MISTÉRIOS , Lisboa,
Esquilo edições multimédia, 5ª ed., 2004, p. 20.
9
Paulo Pereira, ENIGMAS – LUGARES MÁGICOS DE PORTUGAL – Cabos do
Mundo e Finisterras, Lisboa, ed. Círculo de Leitores, 2005, p. 142.
19
do aro do cabo S a gr ado, i nt e gr ando La gos e P ort i m ão”) e out ros
aut ores ant i gos, f al ando de cul t os de Hércul es, S at urno (j á ci t ados)
e Ba al Ham m on (d e us fení ci o).
Talvez
porque,
na
10
Península
Ibérica,
seja
a
própria
geografia que está e m concordância co m o mito do eterno
retorno, vida – morte, fim – princípio; talvez porque seja esta a
terra onde se destaca o mito dos rios Lethes, com a entrada para o
Alé m e a saída para o renascime nto. T erra dos Extre mos, o
extre mo sudoeste, de onde os ho me ns desejavam avistar a terra da
sua orige m, cuja le mbr ança conser vava m nos confins da me mória
– no dizer de Fernanda Frazão – e o extremo noroeste, de onde
avista va m a terra para onde queria m ir. O mesmo ele mento
mítico -religioso está presente na tradição do promontório Sacro,
de onde se partiu em busca das Ilhas Afortunadas, e está presente
e m Brigância (ta mbé m antigo no me da Corunha), ou Breganza
(no me referido pelo Lebor Gabala ), onde, d a T orre de Hércules,
Ith, Breogan ou o próprio Gatelo, numa noite de luar, vislumbrou
a Irlanda, espécie de ilha pro metida e paradisíaca, co mo diz a
Lenda da Fundação
11
.
12
A verdade é que as Finisterras, locais onde a terra
acaba
e
crenças,
o
mar
[…],
começa
aparentemente
inspiraram
contraditórias:
sempre
as
de
certas
fim
de
mundo, mas também as do mundo do Além, o Sid, ou os
Campos Elísios dos Gregos. Ou das ilhas, como Avalon, ou
do medieval S. Brandão, tema igualmente glosado aqui na
península;
portugueses
ou
e
empreendimento
as
ilhas
espanhóis,
na
época
Afortunadas,
procuradas
os
primeiros
a
já
recente.
acometer
Tudo,
claro
por
tal
está,
envolto em nevoeiro, como envolto em nevoeiro viria o rei
Artur ou o D. Sebastião.
13
10
V. Paulo Pereira, ob. cit., pp. 143 a 145.
Alusão às várias versões da “Lenda da Fundação de Portugal, Irlanda
e Escócia”, editadas pela mesma autora e citadas na presente obra de
Gabriela Morais.
12
Gabriela Morais, ob. cit., pp. 35 e 36.
13
Gabriela Morais, ob. cit., p. 43.
11
20
Parece-nos
impensável
dissociar
estes
três
elementos,
pois, se é óbvia a ligação do Cabo de S. Vicente a uma
Finisterra, não se pode, no entanto, como é lógico, separá-lo
geograficamente do conjunto da Península Ibérica, onde as
tradições também estão ligadas:
Múltiplos evocativos dessa ideia [de que há locais que
estabelecem a ligação entre o mundo dos vivos e o mundo dos
morto s] são os locais co m no mes se melhantes, conte ndo os
mesmos significados. Lethes, por exe mplo, foi ta mbé m no me de
rio no Algar ve (Ant. Rei, «O Gharb al -Andalus e m dois geógra fos
árabes do século VII/XIII: Yâqût al -Hamâwî e Ibn Sa’îd al Maghribî, p.21, in Medievalista on line, Nº1, 2005 – Instituto de
Estudos Medievais / FCHS – UNL), que passou a r io de Santa
Maria e é actualmente o rio Seco das múltiplas lendas de mouras
encantadas algarvias, e Lethe será raiz do nome do rio Guadalete,
e m E spanha. E mbora, neste caso, não seja segura esta etimologia,
a verdade é que ta mb é m este rio é citado como loc al de outro
mito ibérico correlacionado: L. Mourinho de Azevedo ( op. cit.
[ 14] ) c o n t a q u e , n o t o p o s u l d a P e n í n s u l a , p e l o r i o G u a d a l e t e ,
entrava m a s almas q ue ia m para o Alé m, e nquanto no topo norte,
pelo rio Lima, regressa va m a s almas que rena scia m.
15
J o sé Lei t e de Vas c oncel l os , que se desl ocou pessoal m ent e ao
C abo , em Mar ço de 1894, no sent i do de per cebe r que t r ad i ções l á
corri am ai nda no s eu t em po, escl ar ec e o se gui nt e, sobr e o que,
s upost am ent e, l á se passava ou t i nha pas sado m ui t o t em po at rás:
[…]
O
Promontorio
Vicente-Sagres,
era
nos
Occidental
te mpos
dos
Cynetes,
protohistoricos
hoje
S.
duplame nte
sagrado: ahi corriam lendas populares, e se celebravam certas
cerimonia s ritualisticas; ahi ha via santuários p henic ios. Aquellas
lendas e cerimo nias é na tural suppor que fosse m indi gena s; que m
sabe mesmo se já dataria m dos te mpos prehistoricos?
Os cultos
phenicios são certa me nte mais rece ntes q ue e llas. Ao passo que
14
L. Mourinho de Azevedo, Fundação, Antiguidades e Grandezas de
Lisboa, ed. 1652, apud Gabriela Morais, ob. cit., p.33.
15
Gabriela Morais, ob. cit., pp. 33 e 34.
21
os santuários de Héracles e Kronos se relacionvam com as
grandes
navegações
do
povo
que
os
erigiu,
as
lendas
e
cerimonia s pertencia m provavelme nte ao patrimonio religioso
dos humildes pescadores da costa.
Á dualidade dos santuários ( Héracles
e
Kronos)
corres-
pondem a gora dois nomes e m que do mesmo modo a religião
manifesta o seu cunho: S. Vicente e Sagres (= sacris). E pois
provavel que se o santuario de Saturno ficava ao oriente , em
Sagres,
o
de
Héracles
ficasse
no
extre mo
oposto,
onde
ulterior me nte se e stab eleceu o c ulto de S.Vicente propria mente
dito, pois a noticia que Estrabão dá, de que l á não havia agua, só
a essa extre midade conve m.
16
16
José Leite de Vasconcellos, RELIGIÕES DA LUSITÂNIA na parte que
principalmente se refere a Portugal, vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional,
1913 (reimpressão fac-similada da 1ª ed., Vila da Maia, 1981), p. 214.
22
2.
LENDA, MITO E LITERATURA ORAL
TRADICIONAL
Mística
vem
do
grego:
do
adjectivo
mystikos,
ê,
on
(μυστικός, ή, όν) que, por sua vez, deriva do verbo myeô (μυέω)
que significa, na voz activa, iniciar, instruir (nos mistérios) e,
na voz passiva, ser iniciado, ser instruído (nos mistérios). À
raiz, místico e místic a dize m re speito aos “mistérios” e aos
“mistas” (iniciados). Designa, portanto, a expressão daquilo que
não consente expressão, do oculto, do silencioso, do inefável.
17
A rel a ção ent r e l e nda e mi t o j á foi por dem ai s di scu t i da por
vari adí ssi m os aut or es, fi cando sem pre em abert o a qu est ã o de qua l
nas ceu pri m ei ro.
O
conceito
de
Mito
é,
desde
os
gregos,
um
conceito
alta me nte a mbíguo. O seu significado oscila e ntre os e xtre mo s da
sobrevalorização e do desprezo. Por um lado ele é visto como
profunda expressão da verdade e da realidade da História; p or
outro lado, como oculta me nto e de for mação de verdades e de
v a l o r e s r e l i g i o s o s s u p e r i o r e s . 18
O P adre Manuel Ant unes adopt a, na sua Sebent a da C ul t ura
C l ás si ca (1970 ) , a “l i nha de sol ução” do “agrupam ent o da m at éri a
do fenóm eno m í t i co” apres ent ada por G . van R i et , em “M yt he et
Véri t é” 19, “em bor a l i vrem ent e”. Nós ad o p t arem os as duas “t e ori as”
que nos par ece m el hor i rem ao encont r o dos t ex t os encont rados, a
“t eori a al e góri ca ” e a “t eori a si m ból i ca ” :
O mito é uma alegoria . […] A alegoria traduz uma ideia sob
a for ma de uma ima ge m . […] A teoria alegó rica, cuja essência
reside no desnível entre a expressão patente e a verdade latente,
17
Padre Manuel Antunes, Obra Completa , Lisboa, ed. Sebenta, Tomo I,
Vol.II-Cultura Clássica, Parte I, ed. crítica, 1970, p. 85.
18
Idem, p. 62.
19
Idem, p. 64 (cf. Problèmes d’ Épistémologie , Nauwelaerts, Paris,
1960, pp. 345-422.).
23
domina grande parte d o pensa mento da Antiguidade clá ssica e,
nas épocas posteriores, tenderá a impor -se na quelas que poderão
ser designadas de “ép ocas meta físicas”. U ma for ma alegórica
especifica -se pelo seu objecto. […]
Está [a teoria simbólica] próxima da teoria alegórica. T ão
próxima que, por vezes, é difícil distingui -las. O mito é um
símbolo . […] Símbolo é pois sinal, isto é, uma realidade que,
conhecida, le va ao co nhecimento de outra. Símbolo distingue -se
de alegoria por ser, ta mbé m, à raiz, um sina l natural, ao passo
que alegoria é, só, sinal artificial. Sinal natural, o símbolo é a
reunião de significa nte e significado, d e maneira indissolúvel e
insubstituível, num objecto concreto, no e através do qual traduz
uma realidade. Por isso, enqua nto a alegoria, mais do que
descobrir , i mpõe um sentido, o símbolo, mais do que impor,
descobre um sentido.
20
Mas, dent ro dest a “t eori a si m ból i ca”, ai nda encont r am os um
serve : é o “si m bol i sm o
t i po de si m boli smo que t am bém nos
ps i col ogi st a” d e J ung , qu e o P adr e M anuel Ant unes t ão bem nos
ex pl i ca:
“T oda a concepção que explica a expressão simbólica co mo
uma a nalogia ou descrição condensad a de uma coisa conhecida é
se miótica . U ma conce pção que explica a expressão simbólica
como
a
melhor
formulação
de
uma
coisa
relativamente
desconhecida, que não é possível apresentar ne m de modo mais
claro ne m de modo mais significativo é simbólica . T oda a
concepção
que
circunlocução
explica
a
intencionada
expressão
ou
simbólica
transposição
de
como
uma
uma
coisa
conhecida é alegórica” (Psichologische Typen , p. 675). T emos
portanto que, para Jung, símbolo se opõe a signo, por um lado, a
alegoria,
por
outro.
E
opõe-se,
porque
o
símbolo,
parente
próximo do sonho e d a imago , é extre ma me nte co mp lexo. Essa
comple xidade deriva de dois ele me ntos principais: da relação
polivalente
e
ambígua
do
significante
ao
significado
e,
sobretudo, da realidade psíquica profunda d e que o símbolo é
expressão.
20
21
21
Idem, pp. 64 a 69.
Idem, p.70.
24
O que nos rem et e, i m edi at am ent e, par a o caráct er uni versal do
m i t o, em bora sem pr e revest i do de aspec t os di ferent es:
As histórias de carácter mitológico são, ou parecem ser,
arbitrárias, se m significado, absurdas, mas ap es ar de tudo dir -seia que reaparecem um pouco por toda a parte. Uma criação
“fantasiosa”
da
mente
num
deter minado
lugar
seria
obrigatoriame nte única – não se esperaria e ncontrar a me sma
criação num lugar co mpleta mente diferente.
22
Mas o “t e ci do” qu e resul t a d a l i gaç ão dest es “r et al hos” , n um a
det erm i nada re gi ão, t al com o o resul t a nt e em t odas as r e gi ões, est á
l i gado à Hi st óri a do Hom em e não pode t er um a l ei t ur a i nd i vi dual ,
ai nda que o seu est udo o sej a.
[…] é impossível co mpreender o mito co mo uma sequê nc ia
contínua. Esta é a raz ão por que deve mos e star consc iente s de
que se te ntar mo s ler o mito da mesma ma ne ira que le mo s uma
novela ou um artigo de jornal, ou seja linha por linha, da
esquerda para a direita, não poderemos che ga r a entender o mito,
porque te mos de o apreender co mo uma totalidade e descobrir que
o
verdadeiro significado
básico do
mito
não
está
ligado
à
sequênc ia de acontecimentos, ma s antes, se assim se pode dizer, a
grupos de acontecime ntos, ainda que tais acontecime ntos ocorram
e m mo me ntos difere ntes da História. Portanto, te mos de ler o
mito mais ou me nos c omo lería mos uma par titura musical […]
T emos de perceber que cada página é uma totalidade. E só
considerando o mito como se fosse uma p artitura orquestral,
escrita frase por frase, é que o podemos entender co mo uma
totalidade, e extrair o seu significado.
23
E Lévi -S t rauss cont i nua a su a com pa ra ção d a m i t ol ogi a co m a
m ús i ca e com a l i ngua gem , de m odo a ex pl i car m el hor co m o deve
s er fei t a a sua l ei t ur a:
22
Claude Lévi-Strauss, Mito e Significado, Lisboa, edições 70, col.
Perspectivas do Homem, 1978, p. 23.
23
Idem, pp. 67 e 68.
25
[…] na mitologia não há fo ne ma s; os ele mentos básicos são
as palavras. Assim, se se to mar a linguage m c omo um paradigma,
é constituído por, e m p rimei ro lugar, fone mas; e m segundo lu gar,
palavras;
em
terceiro
lugar,
frases.
[…]
No
mito
há
um
equivalente às palavras, um equivalente às fras es, mas não há
equivale nte para os fone ma s. […] enqua nto a mitologia sublinha
o aspecto do sentido, o aspecto do significado, que també m está
profundamente presente na linguagem.
24
Os t i pos de t ex t os que const i t uem o obj ect o do nosso estudo
i ncl uem -se no conj u nt o de prát i cas l i nguí st i co -di scursi vas “ac ei t es e
t ransm i t i das ao l on go dos t em pos, pat r i m óni o cul t ural , col ect i vo e
anóni m o, que cham a rí am os l i t erat ura oral e t radi ci onal ”.
25
[…] se a transmissão mítica s e configura e m lenda, ta mbé m
a realidade – ou a tradição literária a que chama mo s “realista” –
pode
inserir-se
“literaturiza”.
em
estruturas
míticas,
graças
às
quais
se
26
Ora, com o Gabri el J aner Mani l a di z , “as coi sas que não som os
capaz es de nom ear são com o se não exi st i ssem ”, e, i ncl usivam ent e,
“por m ei o das p al av ras, at revem o -nos a i m agi nar out ros m u ndos”, e,
“at é os nom ea rm os, não sabí am os que ex i st i am ”.
Oralidade
convivem nas
e
escrita
sociedades
são
duas
realidades
modernas e
que
em contínua
27
se
excluem,
inter -relação.
mas
que
[…]
A
literatura oral é, e m pr imeiros lugar, um veíc ulo de e moções imediatas, aberta
a uma multiplic idade de matize s que se per fila m ao ritmo de uma voz. No
princípio era a palavra. E entender aquelas emoções é dar hospitalidade àquela
24
Idem, p. 75.
João David Pinto-Correia, in Revista Internacional da Língua
Portuguesa, Nº 9, Julho de 1993, p.63.
26
José Jesus de Bustos Tovar, “Presentación”, in La légende –
Anthropologie, Histoire, Littérature (Actes du Colloque tenu à la Casa
de Velázquez, Madrid, Casa de Velázquez/Universidad Complutense,
1989, p.15 (tradução nossa).
27
Gabriel Janer Manila, Literatura Oral e Ecologia do Imaginário ,
Lisboa, Apenas Livros Lda., 2007, p. 19.
25
26
voz.
A
hospitalidade
que
acolhe
balbuciante, que vem do outro.
a
palavra
impre vista,
ja mais
ouvida,
28
Mari a Te resa M ei rel es part i l ha um a opi n i ão sem el hant e:
E m ter mo s tradicionais, conto que se ouve e não se repete é
conto que morre, conto que fica para trás, esquecido.
A repetição e a recordação são antídotos do esquecime nto.
Repetimos e recordamo s para não esquecer. Repetir significa tornar
presente, actualizar, le mbrar.
29
Nem t odos os t ex tos de t ransm i ssão oral são al vo do nosso
i nt eresse nest e t rab al ho. C onvém di st ingui r a l enda do c ont o , que
t am bém ex i st e na nossa re gi ão, com o é nat ural , e t am bé m , m ui t as
vez es,
cont endo
e l em ent os
do
dom í ni o
do
m aravi l hos o
e
do
fant ást i co.
[ … ] e s t a s n a r r a t i v a s o u «r u m o r e s » s ã o , a f i n a l , r e l a t o s d e
aparições sobrenaturais e têm uma religiosida de, uma sacralidade
que não se encontra no conto, eminentemente profano. Para além
disso, ao contrário do conto, todas elas são localizadas ou,
melhor dito, referentes a um sítio específico da terra das gentes
que as conta m, q uer seja um poço, uma gr uta, um penh asco ou
uma fonte.
30
P el as m esm as raz ões, orações , romances , f ábul as , anedotas e
pr agas , faz endo em bora part e do p at ri m óni o oral al ga rvi o , não são
obj ect o da nossa an ál i se.
28
Idem, p. 9.
Maria Teresa Meireles, Quem isto ouvir e contar, em pedra se há -de
tornar – Sobre o conto e o reconto , Lisboa, Apenas Livros Lda., 2ª ed.,
2005, p. 16.
30
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, Portugal, Mundo dos Mortos e
das Mouras Encantadas, vol. I, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2 009, p.
25.
29
27
2 .1 . LENDAS, ENCANTAMENTOS E
APARIÇÕES
S i nóni m o de apareci ment o , a ct o ou ef ei t o d e apar ec er , a
pal avra apari ção p ode si gni fi c ar ori g em, com eço , em bora surj a
quas e sem pr e com o sent i do , t am bém frequent e, de “m ani fest aç ão
s úbi t a de vi são; f ant asm a”. 31 O Di ci o nári o Houai ss ap re sent a a
s egui nt e d efi ni ção:
“manife stação, aparecime nto súbit o e sobrenatural de um
ser; espectro, fantasma . […] aparecimento repentino e de carácter
divino de figura bíblica, esp. de santo ou do próprio Cristo, ou da
Virgem Maria ou de Deus. […] por ext.art.plást. a representação
destas aparições, esp. as que dizem respeito a Cristo ressuscitado
[…]”
32
C om o j á ant eri orm ent e di ssem os nout ro t rabal ho, a di st i nção
fei t a por At aí de de Ol i vei ra , ai nda qu e com al gum a di fi cul dade,
cons i dera
l endas
t odas
as
narr at i vas
que,
segundo
ap urám os,
apresent am um a hi st óri a que com e ça o u acab a com o enc a nt am ent o
ou o desenca nt am en t o da persona gem m í t i ca .
Encant ament os cha m a aquel e aut or à ocorrên ci a de fenó m enos
m ai s ou m enos po nt uai s, epi sódi cos, que se aprox i m am m ai s de
apar i ções de enca nt ados , sej am el es mouras ou mourinhos , ou
m es m o cobras ou o ut ros ani m ai s, que a t radi çã o at ri buí a a “m ouras
encant ad as sob a form a de di versos ani m ai s” 33, narrat i vas es sa s em
q u e,
pel a
sua
nat urez a,
t ant o
o
encant am ent o
com o
o
des encant am ent o est ão ausent es.
31
José Pedro Machado, in Dicionárioda Língua Portuguesa, vol. I,
Porto, Ed. Livraria Figueirinhas, 1989, p. 222.
32
AA.VV., Dicionário Houaiss, tomo I, p. 321.
33
Ataíde Oliveira, As Mouras Encantadas e os Encantamentos do
Algarve, Loulé, Edição “Notícias de Loulé”, 2ª reedição, 1996, pp. 43 e
44.
28
Fern anda
Fraz ão
e
Gabri el a
Mor ai s
faz em
u ma
di st inçã o
s em el hant e:
A s u a o r a l i d a d e [ d a s “ l e n d a s d e t r a d i ç ã o p o p u l a r ” 34] é
visível, ainda nos nossos dias, nas recolhas que se faze m, e o s
seus contadores a fir ma m -na s co mo histórias transmitidas pelos
seus próprios avós e avós dos seus avós.
35
Por tudo isso têm um
carácter fragme ntário, apesar de muitas vez es «a apresentação
escrita de uma lenda costuma[r] estruturá -las, dar-lhes um fio e
contribui[r] para dar a aparência de que as lendas são discursos
completo s ».
36
Na maioria das vezes, che ga m a ter a for ma do que
podemos c ha mar «r umores»: diz-se que alé m, naquela gruta…
naquela rocha… naquela fonte… há um tesouro… está uma moura
encantada…
apareceu
a
Senhora…
etc.
Ou,
ainda,
de
uma
possível historieta – por certo, já perdida – resta apenas o nome
d o l u g a r , [ … ] 37
Est as i nvest i gador as ex pl i cam a ori gem dos “rum ores”:
[…] Esse poder de ima ginar e de criar saberes [por parte do
ho me m
primitivo
ao
observar
a
natureza]
ma nté m -se
nesta
tradição oral, popular, fragme ntada pelo desgaste do te mpo e à
qual, fazendo a correspondência com a arqueologia, gostamos de
cha mar «cacos». Cacos de História e cacos de Mito.
E se, de acordo com a s ciê ncias co gnitivas, o mito foi um
factor essencial para a sobrevivência do Homo sapiens, estes
«c acos» não são só histórias d essa sobrevivênc ia, co mo são,
34
“Ora as lendas consideradas de tradição popular destacam -se, em
primeiro lugar, pelo facto de serem de criação oral, colectiva –
anónimas, portanto –, e de serem sempre localizadas. E, sobretudo, por
reflectirem um mergulho num tempo perdido e muito antig o.” –
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 6.
35
Cfr. Oliveira, Francisvo Xavier d’ Ataíde de, As Mouras Encantadas
e os Encantamentos no Algarve, Loulé, Notícias de Loulé, 1994, apud
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 51.
36
Honório M. Velasco, «Le yendas e vinculaciones », in La Leyenda.
Antropologia, Historia, Literatura. Actas del coloquio celebrado en la
Casa de Velázquez. La légende. Anthropologie. Histoire, Littérature.
Actes du coloque tenu à la Casa de Velázquez. 10/11 -XI-1986. Madrid,
Casa de Velázquez / Universidade Complutense, 1989, p. 124, apud
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 51.
37
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 7.
29
ta mbé m, histórias da sobrevivê ncia do próprio mito que lhe[ s]
está subjacente.
38
E propõem m esm o um a di vi são:
[…] talvez a maneira adequada de dividir o lendário seja,
por um lado, as histórias de base e, por outro, as hist órias
reconstruídas, ou reco nvertidas. A história de base será, assim,
aquela
que,
nascida
do
povo
anónimo,
bem
distante
da
alfabetização e do tempo histórico da hierarquização, contém, de
modo mais visíve l, o núcleo primordial, mític o -religioso, a for ma
de conhecimento próprio das sociedades mais antiga s. Glosado,
imitado, decalcado, este núcleo – já racionalizado – acaba por
servir de modelo aos eruditos medievais, que o transmitem
meta mor foseado, graça s ta mbé m à s novas práticas mor fológicas e
lexicais,
inerentes
à
escrita.
Tornam-se,
então,
«histórias
reconvertidas », c uja sacralidade e religiosidade de origem é
travestida, para passar a servir outros contextos históricos. […]
Por estas razões, optámo s por cha mar narrativas míticas , e
n ã o l e n d a s , à s h i s t ó r i a s d e b a s e , o s «c a c o s » s o b r e o s q u a i s a q u i
nos debruça mo s. Nestas inc luímos, claro e stá, aquilo a que
cha ma mos «rumores ».
39
E t am bém a pres ent a m a sua j ust i fi cação :
Ora é precisa mente p ela sua simplic idade que, por entre
estes
restos
do
mito ,
consider a mos
serem
os
«r u m o r e s »
a
f o r n e c e r - n o s a i n d i c a ç ã o d e s s a m a i s c l a r a a n t i g u i d a d e . «T u d o s e
reduz a referê ncias va gas de mo uras enca ntad as e e nca nta mentos
circunscritos
a
certos
lugares
da
f r e g u e s i a » 40.
Sendo,
como
disse mo s, esses lugare s a mbie nte s pré -históricos por excelênc ia,
a referência apena s à aparição de um e nte mítico le va -nos a
pensar que a ima ginaç ão popular o transforma numa espécie de
guardião do que esse lugar representa na sua me mória, o u seja, o
seu próprio passado. T anto mais que a esse lugar e a esse ser
38
Idem, p. 10.
Idem, pp. 12 e 13.
40
Ataíde Oliveira, ob. cit. p. 171, referência a Moncarapacho, no
Algarve, apud Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 52.
39
30
m í t i c o s e a s s o c i a , n o r m a l m e n t e , u m t e s o u r o «e n c a n t a d o » , d e
simbolismo óbvio. […]
Qua nto às narrativas, mais co mpletas, pe nsa mo s ser visível,
na ma ioria dos casos, que elas sofrera m a lterações e acrescentos,
a reflectire m já uma gr ande diacron ia. Co mo uma rede de pesca,
estes «caco s» fora m ar rastando consigo os ele mentos do minante s
de
cada
época,
transfor ma ndo -se.
contextualizando -se,
Nestas
narrativas
enriquecendo-se
estão,
assim,
e
todos
os
ingredie ntes próprios do ima ginário popular que o to rna m qua se
numa e spécie de saga nacional, re flectindo a ca minhada deste s
povos, de norte a sul do País, através de toda a sua história.
41
Na m esm a l i nha d e pensam ent o, Al ex andre P ar afi t a apr esen t a a
s egui nt e d efi ni ção d e l enda :
[…] é corrente me nte a ceite que se trata de um relato transmitido
por tradição oral de factos ou acontecime ntos encarados co mo
tendo um fundo de verdade, pelo que são objecto de crença pelas
comunidades a que respeita m. É “uma história não atestada pela
História” (Jolles, 1976:60). Está localizada numa área geográfica
ou
numa
“apareçam
deter minada
época,
transfigurados
pela
embora
os
ima ginação
factos
históricos
popular”
(Reis
e
Lopes, 1990:216).
Não
rara mente,
a
existência
de
uma
lenda
é
uma
consequência da fragilidade da história, ou dos documentos que a
funda menta m. Por isso, muitas vezes nasce num espaço nebulo so
da história, procurando comple me ntá -la, ou justificá -la, num
quadro de representações do ima ginário.
42
Nest e est udo, consi deram os l enda t odo e qual quer rel at o de
apar i ção de um a en t i dade m í t i ca ou rel i gi osa , ou de qual qu er ef ei t o
cons i derado
sobren at ural
(i n cl usi vam ent e,
um
d esapar eci ment o
i nex pl i cável e, de al gum a form a, rel a ci onado com al gum a en t i dade) ,
caus ado por um a a pari ção , ou at ri buí do a um a pessoa ou a um
obj ect o (por ex em pl o, um mi l agre ), q ue apr esent e um a est rut ura
41
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., pp. 14 e 15.
Alexandre Parafita, A Mitologia dos Mouros, Canelas,
Gailivro, col. Mitologia e Memória, 2006, p. 61.
42
Edições
31
narrat i va com pl et a , e epi sódi o l endári o , aos v est í gi os de hi s t óri as, a
que At aí de Ol i vei r a cham ou encant a ment os e Fe rnanda Fraz ão e
Gabri el a Mor ai s c ham aram
rumores e cacos de hi st ór i a (que
apresent am , nat ural m ent e, as m esm as c aract erí st i cas d e rel aç ão com
ent i dades sobren at urai s ).
2.2. A DESIGNAÇÃO “LENDA MÍTICA”
Na sua propost a d e cl assi fi ca ção dos gén eros da Li t e ra t ura
Oral , o P rof. Dout or P i nt o -C orrei a si t ua o m i t o e a l end a (t al com o a
fábul a e o apól o go) nas “com posi çõ es ex pl i cat i vo -ex em pl ares”,
pert enc ent es ao gén ero narr at i vo ou narrat i vo -dram át i co. R efer e -se,
s obret udo, à possi bi l i dade de as hi st óri as serem “m ai s ou m enos
ex t ensas”, de t erem com o obj ect o “vul t os hi st óri cos” ou “l ugares
m ui t o concret os”, ao seu car áct e r co m frequênci a “fr an cam ent e
et i ol ógi co” e ao fac t o de serem “i núm e ras” e poder em “t er al canc e
naci onal ou si gni fi c ado m ui t o regi on al ” .
43
Os di ferent es i nves t i gador es/ col ect or es subdi vi dem as l endas
de aco rdo com cri t é ri os pessoa i s, cl assi fi cando - as, cont udo, se gundo
o s eu t em a dom i na nt e: J osé Lei t e de Vasconc el l os consi derou s ei s
“ci cl os” – “ Lendas R el i gi osas ”, “ Len das de Ent i dade s Mí t i cas”,
“ Lendas Hi st óri cas ”, “ Lendas de M ouras e Mouros”,
“ Lend as
Et i ol ógi cas” e “ Le ndas de P ovo a ções Desap are ci das” ; F ernand a
Fraz ão or gani z ou as L endas Port uguesas , separando - as de acordo
com as re gi ões ond e eram cont adas e, m ai s rec ent em ent e, di vi di u -as
em L endas da T erra e L endas do Mar (com o t am bém J osé J orge
Let ri a); Gent i l Marques cri ou ci nco v ol um es aprox i m ando -se da
cl as s i fi caç ão de J osé Lei t e de V asconc e l l os – “Lendas dos Nom es de
43
João David Pinto-Correia, “Os Géneros da Literatura Oral Tradicional:
Contributo para a sua classificação”, in RILP – Revista Internacional da
Língua Portuguesa, Nº 9, Julho de 1993, p. 67.
32
Terras ”, “ Lend as He rói cas”, “ Le ndas de Mouras e Mouros”, “ Lendas
R el i gi o sas” e “ Len das de Am or”; At aí de Ol i vei ra i nt er essou -se
part i cul arm ent e p el as l endas de m oura s encant adas, que s eparou de
out ras l endas publ i cadas n as vá ri as Monogr afi as qu e e l aborou,
edi t ando -as à pa rt e (t al com o os C ontos Popul ares do Algarve ) e
faz endo,
com o
já
referi m os,
a
di st i nção
ent re
“l e ndas”
e
“enc ant am ent os”.
À part i da, dada a p rox i m i da de ex ist ente ent re os con cei t o s de
l enda
e
de
mi t o ,
a
d esi gn aç ão
“l enda
m í t i ca ”
pode
par ece r
paradox al . C ont udo, dado t am bém o ri go r com que al guns es t udi osos
apresent am
os
di ferent es
con cei t os
de
l enda ,
mi t o ,
sí mbol o ,
al egori a , hi st óri a mí t i ca , narrat i va mí t i ca, mi t ol ogi a , ocul t o e
mi s t i ci smo , e dada a i nex i st ênci a de um a cl assi fi ca ção rí gi da, qu e
s ej a se gui da po r t od os os i nvest i gado res e col e ct ores, opt á m os pel a
des i gna ção “l enda m í t i ca”, en gl obando , com o j á refe ri m os, t oda e
qual quer hi st óri a onde ex i st a a presença, m ai s ou m enos evi dent e,
daqui l o a que t odo s, unani m em ent e, d e um a fo rm a ou d e out ra,
cons i deram os o sobrenat ur al , m as com ori gem num mi t o , para
di s t i nção do sobrena t ural associ ado à rel i gi ão ( cat ól i ca).
33
3. A RECOLHA DO CORPUS ESTUDADO
Mai s um a vez , ao c ont rári o do qu e se veri fi ca nout ras re gi ões
do paí s, t orna -se m ui t o di fí ci l , no Al ga r ve, a r ecol ha o ral , e fect uad a
em “t rab al ho de ca m po ” (j á At aí de Ol i vei ra se quei x ou da m esm a
s i t uação) .
No que di z respei t o às m ouras enc ant ada s, p or ex em pl o, é quase
i m possí vel – t oda a gent e com m ai s de quarent a anos se l em bra de
t er ouvi do cont ar, em cri ança, m as ni nguém consegu e j á re produz i r,
ex cept uando rarí ssi m as ex cepções, de
epi sódi os ou fenóm enos
pont uai s, com o é , por ex em pl o, o caso da “ Le nda d a P edr a
M ouri nha ”, em P ort i m ão.
As pessoas abo rdad as l em bravam -se de i m ensas hi st óri as, m as
m ui t o poucas apr es ent avam as ca ract er í st i cas por nós des ej adas –
cont os, fábul as, or a ções, quadr as…
Nas bi bl i ot ecas dos vári os m uni cí pi os, ex i st e, de fact o, al gum
m at eri al , m as, a t ít ul o de ex em pl o das di fi cul dades enc ont radas,
devem os re feri r n ã o t er encont r ado o vol um e de J osé Lei t e d e
Vas conc el l os dedi ca do aos cont os e às l endas.
A bi bl i ot eca da Uni versi dade d e Li sbo a foi i m port ant e, m as foi
s obret udo
no
C en t ro
de
T radi çõ es
P opul ares
M anue l
Vi e gas
Fern andes qu e en co nt rám os um a pa rt e si gni fi cat i va da bi b l i ogra fi a
necessá ri a.
Tam bém devem os m enci onar a bi bl i ot eca da Escol a S ecund ári a
M anuel Tei x ei ra Gom es, que agradav e l m ent e nos surpree ndeu com
um a quant i dade c on si derável de edi ções que nos foram m ui t o út ei s.
Al guns l i vros e ram nossos, j á ant i gos ou adqui ri dos re ce nt em ent e
para f aci l i t ar o noss o t rabal ho.
34
3.1. A P R E S E N T A Ç Ã O D O C O R P U S
C om o j á referi m os no pri ncí pi o dest e t rabal ho, foram obj ect o
des t e est udo l enda s que apr esent am u m a narr at i va com pl et a, com
um a est rut ura passí vel de esquem a act a nci al , bem com o hi st óri as de
cará ct er
epi sódi co ,
aquel as
a
qu e
At aí de
Ol i vei ra
cham a
“enc ant am ent os”, e Gabri el a Mo rai s , “r um ores” ou “ cacos ”.
Não
faz em
part e
da
nossa
anál i se
al guns
dos
rom ances
ex i s t ent es, por duas raz ões: a pri m ei ra é que, nas obras r i gorosas,
f i ávei s (nom eadam e nt e de Id ál i a Fa ri nho C ust ódi o, Mari a Al i et e
Fari nho Gal hoz e Is abel C a rdi gos ), são apr esent ad as a s vári as
vers ões co rrent es n a t radi ção d e di vers as re gi ões al ga rvi as , m as as
hi s t óri as são, na su a m ai ori a, acont eci m ent os que não se passaram
no Al garv e (po r ex em pl o, o nasci m ent o de J esus e epi sódi os da su a
vi da, quando de ca r áct er rel i gi oso) – a s poucas que apr ese nt am um
cará ct er mí t i co , se assi m pod em os di z er (“ A devot a c al uni ada”, por
ex em pl o) , não são l ocal i z adas ( aprox i mando -se, po r i sso, m ai s dos
cont os); a segund a raz ão prende -se co m o fact o de, no Romancei ro
de At aí de Ol i vei r a, as com posi ções q ue poderi am est a r present es
nes t e t rabal ho (no m eada m ent e “ A Moura do C ast el o de Tavi ra” )
t erem si do r eprodu z i das do Romacei ro de Est á ci o da Vei ga. Or a,
nes t e úl t i m o, pese em bora o devi do rec onheci m ent o por um t rabal ho
i m enso e i nt enso do seu aut or, e que m ui t o i m port ant e foi , sem
dúvi da, na sua ép oca, a ve rd ade é que, com o r ef ere J .J .Di as
M arques, n ão t em o s garant i as de qu e as l endas que p ret e ndí am os
anal i sar t enham si d o rec ol hi das do pov o t al com o s ão apre sent adas,
pel o cont rári o, o q ue com prom et e ri a, à part i da, a nossa anál i se.
Apesar
de
al guns
aut ores
cu j as
l e ndas
t rabal h ám os
as
t erem
r evest i do de um a l i t erari edad e t ot al m ent e al hei a à sua recol ha
(com o G ent i l Marqu es), a mat ri z da hi st óri a não foi al t erad a, o qu e
parec e não t e r a cont eci do com os rom an ces de Est á ci o da V ei ga.
35
Seja feita desde já uma adve rtê ncia: o R omanceiro do
Algarve, bem mais que fiel reflexo da tradição oral algarvia, é
uma obra daquele que se apresenta co mo se u simples colector,
Estácio da Veiga. De facto, a presente colecção não obedece aos
critérios que, já na época em que foi publ icada (e mais ainda
hoje), se considerava devere m orientar obras que, como esta,
pretendem ser a publicação de textos recolhidos da oralidade: o
respeito pela letra desses textos e, por consequência, a sua
publicação sem alterações por parte do organizador da obra. […]
Face a este estado de coisas, a presente edição fa csimilada
visa dois objectivos: […] Por outro lado, o estudo introdutório
que
aco mpanha
esta
edição
pretende
ajudar
a
esclarecer
o
processo de for mação d o Romanceiro do Algarve , evidenc iando o
modo
co mo
as
versões
recolhidas
da
tradição
oral
foram
alteradas por Estácio da Veiga e apontando os textos que, ao
contrário
do
que
o
autor
afirma,
não
foram recolhidos
oralidade mas sim p ura e simplesme nte escrito s por ele.
da
44
Doi s dos rom ances que poderi am t er cabi m ent o nest e es t udo
(“A Moi r a En cant ad a” e “ A S enhor a do s Mart yres ”) s ão ap ont ados
por est e aut or com o sendo “pe rfei t am en t e fal sos e nun ca e x i st i ram
na t radi ção or al , t en do si do escri t os pel o própri o Vei ga ou por out ro
aut or cul t o e depoi s fal sam ent e at ri buí dos à oral i dade. ”
45
.
Faz em part e do cor pus que const i t ui o obj ect o de est udo dest a
di s s ert ação t r ês gr upos di st i nt os de t ex t os: t odas as lendas j á
edi t adas, de qu e t e m os conheci m ent o, após pesqui sa ex au st i va em
Bi bl i ot ecas Muni ci pai s e ou t ras; um conj unt o de l endas i nédi t as,
recol hi das por um i nform ant e que as ouvi u
i n l oco , na sua
j uvent ude, passand o -as a escri t o m ai s t arde; e al gum a s l endas
recol hi das por nós da oral i dade, t ransc ri t as t al com o as ouvi m os e
com o se en cont ram gr avadas nas t r ês v ersões ent re gues em suport e
di gi t al .
P erfaz em um t ot al de t r ez ent as e no ve l endas, de t odo o
Al ga rve: duz ent as e oi t ent a e t rês j á pu bl i cadas (i ncl ui ndo vári as
44
J.J.Dias Marques, “ESTUDO INTRODUTÓRIO”, in Estácio da Veiga,
Romanceiro do Algarve, Faro, Universidade do Algarve, 2005, pp. 5 e 7.
45
Idem, p. 6.
36
vers ões de al gum as l endas, na m ai or part e dos casos com al gum as
di feren ças, ai nda q ue l i ge i ras, geral m ent e), d ez i nédi t as (nunca
edi t adas) e d ez asse i s recol hi das da o r al i dade d e propósi t o par a
es t e t rabal ho (p el o que t am bém i nédi t as ).
3.2. PROVENIÊNCIA DAS VERSÕES
Apesar d e t odas a s di fi cul dades en c ont radas, cons e gui m os,
ai nda assi m , grav a r dez assei s l endas e epi sódi os l endári os de
i nform ant es que se di sponi bi l iz aram para r eproduz i rem al gum as
hi s t óri as que t i nha m ouvi do desde s e m pre: a o ri gem do nom e do
povoado de Odel ou ca (que, d e a cordo com a l enda, t e ri a dado,
pos t eri orm ent e,
o
nom e
à
ri bei r a,
em bora
t enha
a cont eci do,
provavel m ent e, o c ont rári o, um a vez que “ode ” er a a pal a vra par a
“ri o”, em á rab e), a Lenda d a C ost urei ri nha , a Le nda d a P edra
M ouri nha , a Lenda das t rês rochas da p rai a dos Três Irm ão s , assi m
com o a Ap ari ç ão de S t o. Ant óni o, a Ap a ri ção dos Doi s C o el hi nhos
Bran cos, os t rês cas os de bruxari a , t rês caso s de al mas pe nadas , as
l endas urbanas de Ol hão e de La gos e a desc ri ção de u m f ei t i ço
dei x ado num a encru z i l hada. .
As Lendas da C ost urei ri nha , d a P ed ra Mouri nha , de Odel o uca e
dos Três Irm ãos e ra m m ui t o conheci das em P ort im ão, ai nda não há
m ui t os anos. Mesm o assi m , hoj e, s ão rarí ssi m os os j oven s que j á
ouvi ram fal ar d el as ; a Apari ç ão de S t o. Ant óni o fo i reco l hi da em
C as ai s; as rest ant es , no C ent ro de Idos os de P ort i m ão, à ex cepção
da l end a urb ana d e La gos, dos doi s rel at os rel a ci onad os com o
cem i t éri o de Bur gau e da descri ção do s rest os de um fei t i ço dei x ado
num a encruz i l hada , que nos fo r am rev el ada s pel o nosso i nf orm ant e
das L endas Inédi t as .
As Bi bl i ot ecas Muni ci pai s consul t ada s foram as de La gos,
P ort i m ão, Faro e T a vi ra.
37
3.2.1. VERSÕES RECOLHIDAS
A nossa informante de Casais, que nos contou a “Aparição
de Sto. António em Casais”, é a D. Maria de Jesus Duarte,
mais conhecida por “ti Bia”, que mora na Rua da Sra. d e
Fátima, Nº 34, em Casais. Tem a 4ª classe, lê e escreve muito
bem, pois, contou-nos, o pai deu instrução a todos os filhos e
filhas, sem distinção. Passámos juntas a tarde do dia 4 de
Fevereiro de 2007, em sua casa, quando tinha quase 92 anos.
No Centro de Idosos de Portimão, foram duas as pessoas
que, em 14 de Abril de 2007, se lembravam de casos de
carácter mítico (de entre outros, naturalmente). O Sr. Filipe
Marques, que esperava fazer 93 anos em 15 de Setembro
seguinte, tem a 4ª classe, é de Monchique, mas estava em
Portimão havia trinta e cinco anos: lembrava-se da “Aparição
dos dois Coelhinhos Brancos”. A D. Maria Patrocínio Castilho
dos Santos, mais conhecida por D. Bibi, nasceu a 2 de Janeiro
de 1934 (tinha, portanto, 73 anos), também tem a 4ª classe e é
de Albufeira, embora esteja em Portimão – contou-nos os três
casos de bruxaria passados com ela e com o irmão (causa do
falecimento deste), em Olhão, uma história de almas penadas,
com ela e com a sua mãe (que não acreditava “nestas coisas”)
e o “boato” da casa assombrada de Olhão, assim como do
cinema, e ainda esclareceu sobre o modo como os espíritos
agem, quer por iniciativa própria, quer invocados por bruxas
ou feiticeiras.
As três lendas de Portimão, a “Lenda da Pedra Mourinha”,
a “Lenda das três rochas da praia dos Três Irmãos”, a “Lenda
da Costureirinha” (apesar de esta última correr também nos
concelhos de Monchique, de Silves e de Albufeira), bem como
a explicação para o nome da povoação de Odelouca foram
reproduzidas por Ana Paula Santana, de 50 anos, licenciada
38
em
Economia
e
professora,
presentemente,
na
Escola
Secundária Poeta António Aleixo.
A casa assombrada de Lagos , os dois casos de almas
penadas (fogos fátuos e campainhas) e a descrição dos restos
do
feitiço
foram-nos
contados
pelo
nosso
informante
das
L endas I nédi t as .
3.2.2. VERSÕES INÉDITAS
J osé C oncei ção C asi nha Nova nasc eu a 5 de J unho de 1934,
l i cenci ou -se em Fi l ol ogi a R om âni c a e f oi professor d e P ort uguês do
ens i no secun dári o. Após a sua aposent ação, em 1998, ded i cou -se a
es crev er as suas m e m óri as e a passa r à escri t a as hi st óri as que ouvi u
a quem j urava t ê - l as vi vi do, assi m com o out ras, de cará ct er
di ferent e, qu e pr ese nci ou, em Bu r gau, sua al dei a n at al , on de vi veu
t oda a sua i nfânci a (fre gu esi a de B u dens, concel ho de Vi l a do
Bi s po, em t rês qua rt os da al dei a, con cel ho de La gos no úl t i mo
quart o). Foi com i m enso praz er que a s cedeu para i nt e gr arem est e
es t udo, e é com t od o o cari nho q u e as reproduz i m os e ana l i sam os.
C ons t i t uem
conj unt os
de
hi st óri as
cuj as
persona gens
não
se
encont ram em m ui t as edi ções (nom e adam en t e o l obi somem e a
mor t e).
S ão dez hi st óri as: q uat ro de medos/ al m as penadas , sendo q ue os
doi s pri m ei ros medo s não são i dent i fi ca dos, enquant o qu e o s out ros
doi s são, m ani fest a m ent e, al mas penadas ; duas de l obi somens ; e
quat ro da mort e , en t i dade que n ão en c ont rám os em qual q uer out ra
recol ha (em bo ra n a l enda “ O C onvi t e da Mi rra ”, d e Fern anda
Fraz ão, a pe rsona gem sej a um esqu el et o com não m ui t o boas
i nt enções, é, na v er dade, “ um mort o ” e não a mort e ).
39
P ensam os que as pri m ei ras set e pe r t encem ao grupo dos
“epi sódi os
l endári os”,
enquant o
as
úl t i m as
t rês
podem
ser
cons i derad as “na rrat i vas com pl et as”.
3.2.3. VERSÕES EDITADAS
Est es duz ent os e oi t ent a e t rês t ex t os est ão publ i cado s em
edi ções a cessí vei s em Bi bl i ot ecas Mu ni ci pai s e out ras, nos m ai s
vari ados t i pos d e c ol ecções, de Mono grafi as a Gui as Tu rí st i cos, e
pel os m ai s vari ados aut ores:
Assi m , foi t rabal ha do um t ot al de ce nt o e qua rent a e d uas
l endas (“nar rat i vas com pl et as”) e c ent o e quarent a e um “e pi sódi os
l endári os” d e t odo o Al garve ( Ba rl ave nt o e S ot ave nt o), r epart i do s
pel os
segui nt es
“ col ect ores ”:
t rês
t ex t os
de
Ant óni o
Mi guel
As censão Nunes ( e m Al cout i m – C api t al do N ordest e Al garvi o
(Subsí di os
para
Fern andes
V az
u ma
(e m
Monograf i a );
Al garve
–
t am bém
R ef l exos
t rês,
de
Et nográf i cos
Adéri t o
de
uma
Regi ão ); quat ro de C ri st óvão Guerrei ro Nort e ( em Al mansi l –
Monograf i a e Memóri as ); onz e de Mari a J osé Guerrei ro P i nhei ro
(doi s , em C i dade d e Mi l T esouros e n ove, em L oul é C i da de de Mi l
Encant os ); vi nt e e oi t o de Mar gari da Tengarri nh a ( em Da Memóri a
do Povo: re c ol ha da l i t erat ura popul ar de t radi ção oral do concel ho
de Port i mão ); t rês de P aul o P erei ra (em Eni gmas – L ugares Mági cos
de Port ugal – C abos do Mundo e Fi ni st erras ); doz e, da edi ção
L endas de Port uga l , de G ent i l Marq ues; dez asset e , d as L endas
Por t uguesas , de Fer nanda Fr az ão , assi m com o quat ro, dos Passi nhos
de N ossa Senhora e t rês, das Vi ag ens do Di abo em Port u gal (num
t ot al de vi nt e e quat ro) ; t rês, or gani z ad os por Fe rnando C al apez
C orrei a , no L i vro d as Vi si t ações da Or dem de Sant ’Iago n a Igrej a
Mat r i z de Al j ezur ; quat ro d e S i l va C arri ço (em Memó ri a das
C oi s as ); doi s, de J . Mi m oso Barret o (em O Al garve ); doi s, de
40
Es t anco Louro (em O L i vro d e Al po rt el – Monograf i a de uma
Fr eguesi a Rural – C oncel ho ); t rês, de Gl óri a Marrei ros (em Um
Al garve Out ro ); t re z e , de J osé Lei t e d e Vasconc el l os, em C ont os
Popul ares e L endas e dez , em R el i gi õe s da Lusi t âni a (num t ot al de
vi nt e e t rês ) ; de A t aí de Ol i vei ra: qu a t ro , da Monograf i a de São
Bar t ol omeu de Mes si nes , um a, da Mo nograf i a da L uz de T avi ra ,
onz e, de A Monogra f i a de A l vor , s et e, d a Monograf i a de Est ombar –
C oncel ho de L agoa , ci nco, da Mon ograf i a do Agoz , doi s, da
Monograf i a do C oncel ho de L oul é , set e da Monograf i a do C oncel ho
de Ol hão , um , da Monograf i a do C oncel ho de Vi l a Real de Sant o
Ant óni o ,
e cent o e onz e ex cert os
da sua edi ção
As
Mouras
Encant adas e os E ncant ament os no Al garve (o t ot al é d e cent o e
quarent a e nov e hi st óri as ); de aut ores vári os, t em os ai nda um t ex t o
de T avi ra do N eol ít i co ao sécul o XX, II Jornadas de Hi st óri a –
Act as e oi t o de Vi l as e Al dei as do Al garve Rural .
3.2.3.1. ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES
Na l enda “O C i nt o da Moura” ( L M 13 e LM 31 ), nã o há
qual quer re fer ênci a espaci al . Opt ám os, no ent ant o, por i ncl uí -l a
nes t e corpus , vi st o apa rec er n a edi çã o de Fe rnanda Fra z ão com o
pert enc ent e ao Al ga rve, ap es ar de J osé Lei t e d e Vas concel l os a t er
recol hi do em El i as – Bai ão (Douro l i t or al ).
“O P ego Escu ro”, d e At aí de Ol i vei ra, é o t í t ul o at ri buí do nos
C ont os T radi ci onais do Al garve ,
de st e aut or,
à l end a que
é
publ i cada sem t í t ul o na Monograf i a de São Bart ol om eu de Messi nes
( LM 59 ) e denom i na da “A Font e do Arro i o” ( L M 58 ), n a Mo nograf i a
da L uz de T avi ra ), por i sso o escol hem os . Usám os o m esm o cri t éri o
41
para d esi gn ar “O P ego da C ar ri ça ” ( LM 60) e “ O Enc ant am ent o”
( LM 61 ).
Quant o à ex i st ênci a de t esouros ocul t os (assi nal ada em C ont os
e L endas , de J osé Lei t e de Vascon c el l os), C ast ro Mari nho é a
des i gna ção ar cai c a de C ast ro M ari m ; m as é possí vel que ha j a vári os
“Val es de Boi s ” no paí s, pel o que não podem os t er a cert ez a de se
t rat ar da povo ação do concel ho de Vi l a d o Bi spo, ent ra Bur gau e
Budens – i ncl uí m os essa “l enda ” por e x i st i r est a possi bi l idade (at é
pel o nom e “Val ”, e m vez de “Val e”, sem a vogal fi nal , própri a do
fal ar al garvi o, em bo ra se t rat e, n est e c a so, m ui t o provavel m ent e, de
um a vogal fi nal m uda em t odas
as out ras regi ões, m as que
di fi ci l m ent e não ser i a escri t a).
Opt ám os por i ncl ui r a “ Lend a de P ovoação Des apar ec i da”,
Lam ei ra (t am bém d e J osé Lei t e d e Vas concel l os, C ont os e L endas ),
pel o car áct e r m í t i co da “ pri m ei r a ci dade do Mundo”.
Tal com o encont r á m os “ L endas de C ast i gos Di vi nos” ( LC D),
t am bém i ncl uí m os duas l endas de m i l agres di vi nos, em bora a
t radi ção as di st i nga e um a sej a at ri buí da a D eus (c ri st ão) e a out ra a
Al l ah (m uçul m ano).
P el as m esm as raz õe s de “sobren at ural ”, i nex pl i cável ,
A hi st óri a “A C asad a com o Di abo” ( LD 1) aprox i m a -se, t al vez ,
m ai s do cont o, embora s e possa cons i derar que ap resent a al guns
pont os de cont act o com a l enda – i nser i m o -l a, sobret udo , por est ar
l ocal i z ada.
C onsi derám os “epi sódi os l endári os” das S ant as C abeça s os
depoi m ent os, em
dat as di fe rent es,
dos doi s cl éri gos
que dão
t es t em unho das suas vi rt udes, afi rm and o t er presenci ado por vári as
vez es esse fenóm en o.
In cl uí m os, ai nda, a s t rês “ Lend as Urb a nas” (t od as r ecol hi das) ,
por t rat ar em de c as as assom bradas, l o go, al mas penadas , que faz em
part e das ent i dades do nosso est udo.
“A Font e do C anal ” e “O Abi sm o dos Encant ados” t êm u m a
gr ande pa rt e em co m um , que i ncl ui um a façanh a só possí vel por
42
um qual quer t i po d e m i l agre ou pel o uso de m a gi a po r p art e do
pret endent e à m ão da m oura – po r i ss o, i ncl uí m os “A Fo nt e do
C anal ”. Todavi a, o fi nal não é com um , poi s nest a l e nda os
nam orados não são encant ados, c om o na out ra. P are ce -nos que se
t rat a da m esm a l end a que, em v ersões di ferent es, “pe rdeu” o fi nal ,
ao l ongo dos t em pos. C onsi derám os, ai nda assi m , duas l endas
di ferent es, poi s “O Abi sm o dos Encant ados” ap resent a doi s act os
m ági cos, enquant o q ue a pri m ei r a l enda refe re ap enas um .
43
4.
UMA
CARACTERÍSTICA
PRINCIPAL
DAS
LENDAS MÍTICAS ALGARVIAS: A NATUREZA
MÍTICA DOS AGENTES-PERSONAGENS
É do sagrado, com efeito, que o crente espera todo o socorro
e todo o êxito. O respeito que ele lhe testemunha é feito
simulta nea me nte de terror e de confiança. As cala midades que o
a meaça m, de que ele é vítima, as prosperidades que ele deseja ou
lhe calham por sorte são por ele relacionadas com determinado
princípio que se esforça por vergar à sua vontade ou coagir.
Pouco importa o modo como ele ima gina esta orige m supre ma da
graça
ou
das
provações:
deus
universal
e
omnipotente
das
religiões mo noteístas, divindades protectoras das cidades, alma s
dos mortos, força difusa e indeter minada que dá a cada objecto a
sua excelência na respectiva função, que torna a canoa rápida, a
ar ma mortífera, o alimento nutritivo. Por muito evoluída ou
muito
grosseira
que
a
concebamos,
a
religião
implica
o
reconhecimento desta força co m a qual o home m de ve co ntar.
Tudo o que se lhe afigure receptáculo dela surge a seus olhos
como sa grado, te mível, precioso.
46
Em bora os “m ouro s m í t i cos”, com o l hes cham a Al ex an dre
P arafi t a , sej am as p ersona gens p repond erant es d a m i t ol ogi a popul ar
al garvi a e, t al vez m esm o, port uguesa, out ras fi gur as há que, com
bas t ant e rel evo, pov oam o i m agi ná ri o popul ar dest a r e gi ão.
E m Alte fala -se das mo uras da Igrejinha dos Soidos , das
mo uras de B ena fim, d os mouros e ncerrados nos grandes serros
que
circundam
aquela
povoação;
em
Boliqueime
ouve -se
constantemente tratar das bruxas de Alfontes, das bruxas da
Parreira Ladeira, e dos lóbis-homens de Estelle Montes.
46
47
47
Roger Caillois, ob. cit., p. 22.
Ataíde Oliveira, ob. cit., p. 136.
44
Assi m , ai nda que em m enor núm ero, e ncont ram os rel at os que
fal am de ser e i as, de l obi som ens, de al mas penadas , da m ort e e, com
m ai or i nci dênci a, de ent i dades l i gad as à m i t ol ogi a cri st ã, m ai s
propri am ent e cat ól i ca, com o a Vi r gem Mari a, J esus C ri st o, al guns
s ant os e, obvi am ent e, o d i abo e as fo rç a s do m al .
A cada uma das qua tro raízes ou ele me ntos e m que os
Gregos dividiram a matéria, correspondeu depois um espírito. Na
obra de Paracelso, alquimista e médico suíço do século XVI,
figura m q uatro espíritos ele mentare s: os Gno mos da terra, as
Ninfas da á gua, a s Sala mandras do fogo, e os Silfos ou Sílfides
do ar. […] Os Silfos ocupam um lugar intermédio entre os seres
materiais e os imateriais.
48
S egui ndo est a di vi são, podem os t am bém encont rar fi guras
m í t i cas m ovendo -se nos quat ro el em ent os. Mas enq uant o a s serei as
s ó vi vem na água, o s l obi som ens na t erra e as al m as penada s no ar,
encont ram os, por ex em pl o, apari ções de cobras t ant o em t er ra com o
na á gua, e as m our as encant adas povo am t odos os el em ent os, t al
com o as ent i dades c ri st ãs.
O inconsciente colectivo – a grande “descoberta” de Jung –
“engloba
herança
tudo
das
aquilo
que
possibilidades
é
inconsciente,
de
sobretudo
representação
que
toda
não
a
são
individ uais, mas co muns a toda a huma nidade”. A prova da
existência do inconsciente colectivo enco ntra-a Jung no facto de
existirem mitos análogos em povos diferentes pela raça, pela
história,
pela cultura e sem comunicação uns para os outros. Do
inconsciente colectivo derivam os arquétipos ou “possibilidades
funcio nais da Psique” que aflora m à consci ência sob a for ma de
“ima gens arcaicas”, de “símbolos” ou de “mitos”, sob o impacte
de uma realidade exte rior. Por exemplo: a Sereia, a Ninfa, as
Três Graças, Helena, Vénus, a Atlântida, etc. Em síntese: o mito
48
Jorge Luís Borges, O Livro dos Seres Imaginários, Lisboa, Editorial
Teorema, ed. outras estórias, 1989, p.185.
45
é a projecção de uma força psíquica que se ag arra a um
objecto real, transfigurando -o na representação.
49
Ora, num paí s ond e, t radi ci onal m ent e, apesar d e se t r at a r d e
um a soci edad e pat ri arcal , em que o ho m em é o “ chef e da fam í l i a”,
m as quando não est á ausent e de cas a, a t rabal ha r fo ra (no m ar, por
ex em pl o), est á ause nt e nas b at al has, na s nave gações (e, m a i s t arde,
em i gr a), é a m ul h er que ac aba por ser o “pi l ar” da f am í l i a, a
res ponsável p el a e ducaç ão dos fi l hos e o am p aro d a ve l hi ce dos
pai s .
E é nest e uni verso predom i nant em ent e fem i ni no que surge m a s
ent i dades
m í t i cas,
t am bém
el as
m ai ori t ari am ent e
f em i ni nas,
ves t í gi os de cul t os a ncest rai s da T err a - Mãe.
Qua ndo fala mos de fadas, mo uras, bruxa s e feiticeiras,
fala mo s de um universo fe minino, aparente me nte dicotómico, ma s
passível
de
situações
permutáve is.
Fala mo s
do
universo
do
possível, do imprová vel, do desejável, do te mível; fala mo s,
sobretudo, de desejos e receios, de castigos e reco mpensas, de
figuras fe minina s maternais e de mo níacas.
Fadas, moura s, bruxas e feiticeiras ( mas ta mbé m sereias,
jãs, velhas e velhinhas, me ninas, meias -ir mã s, madrastas, a vós,
sogras,
tias,
rainhas,
princesas,
raparigas,
madrinhas,
etc.)
repetem o fe minino na sua diver sidade e comp letude.
Fadas, moura s, bruxas e feiticeiras: qualquer um deste s
entes
sobrenaturais
geralme nte
com
se
todos
relaci ona
eles,
e
com
por
os
isso
quatro
se
ele mentos,
tornam
figuras
poderosas e m ter mos de ima ginário tradicional. Muita s delas
surgem em ambientes onde existe água (rios, riachos, fontes,
nascentes), relacionam -se com o fogo e / ou o Sol, possuem a
capacidade do voo (com ou se m ajuda de objectos má gicos) e
sur ge m de a mbie nte s te lúricos ou ser ve m -se da terra para as suas
artes.
50
49
Padre Manuel Antunes, ob. cit., p. 71.
Maria Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras , Lisboa,
Apenas Livros Lda., 1ª ed., 2006, p. 3.
50
46
As ent i dades m í t i cas m ascul i nas (o l obi som em , o m ouro, o
brux o), t al com o as rel i gi osas (J esus e os sant os), sã o m ai s raras e
m enos acessí vei s. A s suas apari ções sã o pouco frequent es e o t rat o
m enos fam i l i ar , m ai s form al .
No
roma nceiro
europeu
proliferam
as
fadas,
os
encanta me ntos, os a nões e os duendes, os elfos e os gno mo s, as
ninfas e as sereias, que directa ou indirectamente se relacionam
com e ste co mplexo simbólico [seres ance str ais e ele me ntais /
fadas / mo uras enca nta das / povos vencidos obrigados a povoar o
interior da terra, onde se encontra m as riquezas]. T al como
acontece co m Melusina (a fada), que a tra dição representa como
meia mulher, me ia serpente, […]
51
Não é, po r i sso, de est ranhar, que, n est as l endas que const i t uem
o nosso corpus , t am bém apar eçam m ai s fi gur as fem i ni nas, s obret udo
mí t i cas,
e
at é
as
persona gens
hum anas
i nt erveni ent es
seri am
m ari ori t ari am ent e m ul heres, não s e desse o c aso de a s mouras
encant adas (t am bé m em m ai ori a em rel aç ão aos mouros ) faz erem
val er os seus at ri but os de bel ez a fem i n i na para t ent arem s eduz i r os
s eus fut uros desen cant adores . E at é a Mort e , sendo em bora um
es quel et o (q u e se desi gna, no Al garv e, por “um a m i rra” ), é um a
fi gur a fem i ni na.
São os lobisome ns, c apazes de transportarem as pessoa s
sem
destino.
São
as
bruxas
nas
encruzilhadas
dançando,
dançando até dare m um estoiro… São «as coisas ruins » de
feitiçaria para este home m se ligar a esta mulher o u aquela
mulher se esq uecer deste ho me m. São invejas, são ma ldades. São
doenças e padecime ntos. É a louc ura. São «o s ataque s » e «as
sinto mas »…
52
51
Aurélio Lopes, B. I. das Mouras Encantadas, Lisboa, Apenas Livros
Lda., 2ª ed., 2004, p.4.
52
Glória Marreiros, UM ALGARVE OUTRO contado de boca em boca ,
Lisboa, Livros Horizonte, 1991, p. 97.
47
4 .1 . A MOURA ENCANTADA
Est a é a persona gem m ai s com um e, t al vez , a m ai s pol ém i ca d as
que fi gu ram nas n ar rat i vas al garvi as.
Ex pressão que desi gna, h abi t ual m ent e, os mouros mí t i cos
53
(que são r apaz es, m eni nos e, m ai ori t ari am ent e, rapa ri gas), a moura
encant ada é consi d erada po r Ga rret t u m dos doi s m i t os “nasci dos”
em P ort ugal (o s e gu ndo é o de D. S ebast i ão).
Ini ci al m ent e l i gada às hi st óri as de co nqui st as e reconqui st as ,
num t erri t óri o i gu a l m ent e di spu t ado por port ugu eses do Nort e e
árabes, foi sem p re ent endi da com o um a fi gura fi cci on ada dos
m ouros hi st óri cos ex i st ent es na época e que prot a goni z am um
el evado núm ero d e l endas hi st óri cas e re l i gi osas.
C om o j á afi rm ám os nout ro t rabal ho, a si t uação m ai s fr equ ent e
era o encant am ent o das fi l has pel os pai s, na preci pi t ação da fuga,
ant es de r econt ros e bat al h as, pa ra qu e não c aí ssem nas m ãos dos
s ol dados
(em bora
haj a
out ras
r az ões,
nom eadam ent e,
o
encant am ent o com o cast i go por n ão que rerem c asar com quem o pai
queri a i m por, por es t arem apai x onadas p or out ro).
No ent ant o, a gr and e evol uç ão t e cnol ógi ca das úl t i m as déc adas
vei o perm i t i r novos est udos e novas descobert as ci ent í fi cas no
âm bi t o da arqueol o gi a, pondo em caus a, pel o m enos, a i d ei a pré concebi da e com um m ent e ac ei t e de que os mouros e ncant ados
t i nham um a rel aç ão í nt i m a com os mouros hi st óri cos .
O problema é este: onde acaba a mitolo gia e com eça a
História? […] A Mitologia é estática: enco ntra mos os me smo s
ele me ntos mitoló gicos co mbinados de infinitas ma neiras, mas
num
sistema
fechado,
contrapond o-se
à
História,
que,
evidente me nte, é um siste ma aberto.
53
Designação usada por Alexandre Parafita , e que nos ajuda a distinguir
as personagens reais, as das lendas históricas, das personagens míticas
que, supostamente, teriam a mesma origem étnica.
48
O
carácter
aberto
da
História
está
asseg urado
pelas
inúmeras mane iras de compor e recompor as células mitológica s.
Isto de monstra -nos q ue, usando o mesmo material [ …] uma
pessoa pode todavia conseguir elaborar um relato original […].
Qua ndo faze mos H istória científica, faze mos porventura
algo cie ntífico ou adopta mos ta mbé m a nossa própria mitologia
nessa tentativa de fazer História pura? […]
Não ando longe de pensar que, nas nossas sociedades, a
História substitui a M itologia e dese mpe nha a mesma função, já
que para as sociedades sem escrita e s em arquivos a Mitologia
tem por finalidade assegurar, com um alto grau de certeza – a
certeza
co mpleta
é
o bvia me nte
impossíve l
perma necerá fie l ao presente e ao passado.
–,
que
o
futuro
54
J osé Lei t e de V asc oncel l os j á t i nha c ham ado a at en ção para
um a p ossí vel rel aç ã o ent re a mo ura en c ant ada e a pré -hi st óri a:
1) Assim como os Romanos substituíam pelas Ninfas,
lares, genii, fatae as divindades típicas da Lusitânia,
assim com o andar do tempo essas denominações latinas
foram substituídas pela Virgem e pelas santas (influência
cristã) e pelas moiras, bruxas, etc. Dos tempos antigos só
ficou a palavra fadas. [...]
3) Vestígios de paganismo: cabelos de oiro das
moiras como o das Ninfas clássicas: citação bibliográfica
e m M o d . l a n g . n o t . , X X I I I , p . 2 4 ( 1 9 0 8 ) . 55
Acres cent ando, ai nda:
Assim como no nosso país os monumentos pré históricos (dólmenes) são habitados pelos Mouros, na
Baixa Bretanha, por ex., são habitados pelos Nains
(Anões).
As Mouras dos montes e penedos é provável que não
sejam o mesmo que as das fontes. Ainda que as águas
saiam também das rochas e das montanhas, o culto das
pedras acha-se muito bem estabelecido na crença popular
para que o possamos confundir com outro. As Mouras têm
54
Claude Lévi-Strauss, ob. cit., pp. 58 a 63.
José Leite de Vasconcellos, Etnografia Portuguesa, Lisboa, ed.
Imprensa Nacio nal-Casa da Moeda, vol. VII da reimpressão fac-similada
da edição de 1980, 1982, p. 474.
55
49
uma significação mais vasta do que à primeira vista pode
p a r e c e r . 56
Do mesmo modo, João David Pinto -Correia faz a seguinte
advertência:
[…] Por seu turno, a “mo ura e nca ntada”, vulto que o a utor
[Alexandre
Parafita]
considera
bondosa
e
suplicante,
é,
no
entanto, perigosa me nte sedutora, re mete mitic a mente para o culto
das águas, inscrevendo -se deste modo em crenças antigas de
natureza pagã, se bem que a designação – de características
sincrética s, cre mos nós – remeta para um período histórico ainda
de certo modo próximo de nós.
57
Ora, se gundo Fe rna nda Fr az ão e G abri e l a Morai s, par a al é m da
m i t i fi cação dos mo uros hi st óri cos , fei t a pel o povo, “fa ci l m ent e
confundí vei s
com
out ros
seres
m í t i cos”,
por
descon hecer
“o
s i gni fi cado e a fun ç ão ori gi n ai s de ce rt os vest í gi os arqu eol ógi cos e
perant e, m ui t as vez es, a sua m onum ent al i dade, com o por e x em pl o,
os m egal i t os” 58, ex ist e, act ual m ent e, um a t eori a hi st óri ca que,
afas t ando -s e dest a ori gem árab e da mo ura encant ada , vem refor çar
as hi pót eses avent a das da sua l i gaç ão a cul t os pri m i t i vos pagãos
que Gabri el a Morai s ex pl i ca do segui nt e m odo:
Para Alinei e Benozzo [
60
] está també m co mp leta me nte fora
de questão confundire m-se esta s lenda s co m o povo mouro. E
recorrem mais uma vez às possíveis raíze s etimo lógica s que
justificam esta sua hipótese, pois reconhecem existir a palavra
céltica
*M RVOS
para
designar,
tanto
‘morto ’,
co mo
‘ser
56
José Leite de Vasconcellos, Tradições Populares de Portugal ,
Lisboa, ed. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2ª ed., 1986, Nota 4,
págs. 131 e 132.
57
João David Pinto-Correia, “Prefácio”, in Alexandre Parafita, O
Maravilhoso Popular, Lisboa, Plátano Editora, 2000, p.12.
58
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., pp. 17 e 18.
59
V. Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 18.
60
Mario Alinei e Francesco Beno zzo, investigadores que, de entre
outros, defendem a “Teoria da Continuidade Paleolít ica das Origens
Indo-Europeias” (v. Mário Alinei, A Teoria da Continuidade Paleolítica
das Origens Indo-Europeias: Uma Introdução, Lisboa, Apenas Livros
Lda., 2008).
50
59
,
sobrenatural’.
Ora,
c omo
se
verifica,
esses
são
elementos
fundamentais neste tipo de lendas.
Por outro lado, le mbra m que o ter mo mais vulgar para
designar os monumentos funerários megalíticos, em galego e em
portuguê s, é mamoa e não dólmen – o termo utilizado noutras
língua s. Na realidade, a anta que conhece mo s é apenas o «miolo »,
escondido sob um mo nte de terra, agora desaparecido, que tinha
essa for ma sugestiva de ma ma, o u de ve ntre grávido de mulher.
Assim, o ter mo *M RV OS, tal co mo o ter mo ma moa mostra m ser
aqui que reside o fundo originário deste lendário. Um fundo pré histórico céltico, fruto de uma longa tradição oral, e não tardio,
como o séc. VIII.
61
Mas para al ém da possi bi l i dade col ocada pel a l i nguí s t i ca
hi s t óri ca da et i m ol ogi a d a pal avr a “m ou ro”, est a t eo ri a apoi a -se em
t es t es m odernos l e vados a cabo po r arqueol ó gi cos, r ece nt em ent e,
apresent ando, por i s so, um a base ci ent í f i ca:
Afinal, a genética parece confirmar que até há cerca de 17,
16 mil a no s o s nosso s directos a ntepassado s fizera m parte do
« R e f ú g i o I b é r i c o », a p a r t i r d o q u a l s e r e p o v o o u g r a n d e p a r t e d a
Europa, uma E uropa quase despovoada pela glaciação. E també m
nos diz que a maioria do nosso ADN (de um modo geral, co mum
ao Ocidente europeu) é autóctone, – ou seja, na linha dos
prime iros Homo sapiens sapiens , aqui estabelecidos, desde há
cerca de 40 000 anos.
Afinal,
a
arqueologia
ta mbé m
confirma
que
já
aqui
estávamos, Homo sapiens sapiens, desde essa data – veja-se a
ocupação da gruta do Esc oural ou do Almonda – e que há
evidências
de
continuidade
na
ocupação
do
território,
atravessando as várias épocas pré -históricas, proto-históricas e
históricas. E a arqueologia desmente – pois não há quaisquer
vestígios
co mprovativos
–
umas
pseudo
invasões
europeias,
consideradas pelos historiadores tradicionais a fonte bendita dos
actuais europeus, que teriam substituído integralmente os povos
preexistentes.
61
62
62
Gabriela Morais, ob. cit., pp. 30 e 31.
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., pp. 4 e 5.
51
Tam bém
confusão
a
Igr ej a
est abel e c i da,
C at ól i ca
e
t eve
escol hem os
um
papel
i m port ant e
apres ent ar
as
na
s egui nt es
ex posi ções, de Ad al bert o A l ves, Al e x andre P arafi t a e Fern anda
Fraz ão
e
Gab ri el a
Morai s,
respec t i vam ent e,
que
pensam os
com pl em ent arem -se:
T ão imposta foi a todas as consciência s essa manipulada luz
da história, que, ainda hoje, às crianç as se ensina seram eles [os
mo uros] os ho me ns se m rosto, se m no me, se mpre os “outros”,
aqueles a quem D. Afonso Henriques, invariavelmente, vence a
golpes de monta nte.
63
A a usê ncia de outras versões que não as “o fic iais” per mitiu
construir no imaginário c olectivo a ideia dos mo uros infiéis,
bárbaros sarracenos, gente perversa, criminosa, usurpadora, que
só a fé e a heroicidade dos cristãos p ud era m co mbater. A
instituição educativa, até aos anos 70 do século XX, conservou
nos ma nuais e e m outr as obras autor izadas muitos te xtos de teor
fundamentalista,
faccioso,
para
tentar
relatar
alguns
principais episódios relativos ao conflito cristão -islâmico.
dos
64
[…] Convirá acrescentar ter sido talvez por não poder
extirpar co mpleta me nte as cre nças anteriores, que a Igreja, não
só as diabolizou, co mo poderá ter fo me ntado a confusão entre os
ter mos mouro e pagão, sendo essa ta mbé m uma das razões na
base do actual equívoco entre as mo uras encantadas e a etnia
muçulmana. E a contaminação estende-se à atribuição popular da
autoria de constr uções pré ou proto -históricas ditas co mo obras
de mo uros, numa clara confusão entre o grupo étnico que aqui
esteve na época medieval e os seres mítico s da tradição.
65
Já Martins Sar me nto d efendia «q ue nas nossa s tradições de
mo uros e nca ntados o nome de mo uros veio substituir o de pagãos
e que tais tradições existiam muitos séculos antes da invasão
árabe […] os mo uros d a nossa le nda são os mo uros dos castros,
das fontes e das ma mo as, isto é, os misteriosos construtores de
63
Adalberto Alves, O Meu Coração É Árabe , Lisboa, col. Documenta
Poetica, Nº 7, ed. Assírio & Alvim, 2ª ed., 1991.
64
Alexandre Parafita, A Mitologia dos Mouros, p. 89.
65
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 17.
52
tudo isto, os pa gãos, enfim, co mo os cristãos lhes cha ma va m ao
p r i n c í p i o ».
Est a
66
fi gura,
s em el hança
dos
que,
deuses
com o
afi rm ám os
pa gãos,
nout ro
a present a -s e
t r abal ho,
com
t odas
à
as
cara ct erí st i cas consi deradas boas e m e nos boas encont rad as no ser
hum ano, prot a goni z a um núm ero el eva dí ssi m o de rel at os. Mas, “a
m ai ori a das v ez es, as m ouras são fi gur as que um fado nefast o
m ort i fi ca e faz sofr er; fi gu ras que ped em aj uda aos hum a nos e que
del es nec essi t am para [ as] poderem d esencant ar [ …] ”
67
e , dum a
form a geral , “a “m oura e n cant ad a” p a rt i ci pa no co nj unt o de ent es
que não nos são ant i pát i cos ou, at é p el o cont rári o, s e i nsi nua m com o
s i m pát i cos ou i nt eressant es [ …] ”
68
C om o t am bém j á t ivem os ocasi ão de assi nal ar nout ro t r abal ho,
rel aci onam -se com os qua t ro el em ent os (t al com o a serpen t e, com o
verem os adi ant e ) , p oi s aparec em j unt o de font es, de ri os, de pe gos,
de poços, de ci st ern as – á gua –, m as t a m bém de est rad as n o cam po,
de rochas – t err a – , sobre as m ural h as de cast el os – a r – e t em os
m es m o um a m oura e ncant ada no fo go (n as l abar edas de um forno de
cal ).
[…] a partir das pinturas ou das insculturas rupestres, dos
vestígios
encontrados
em
escavações,
fomo s
encontrando
constantes desde a Pré -História até aos nossos dias que, apesar
de tudo, o tempo não conseguiu apagar. E ver ificá mo s que se terá
traçado um verdadeiro «ca minho da serpente», prolongado, não
só na iconogra fia e na simbologia da Se nhor a da Conceição, a
que m D. João IV consa grou o País, co mo e m muitos outros
ele me ntos c ulturais, visivelme nte persistente s ao longo d e toda a
66
Martins Francisco Sarmento, “Materiais para a Arqueologia do
Concelho de Guimarães”, pp. 172 -173, in Revista de Guimarães, 1 4),
Out.-Dez, 1884, Guimarães, Casa de Sarmento, pp. 161 a 18 9, apud
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 17.
67
Maria Teresa Meireles, ob. cit., p. 18.
68
João David Pinto -Correia, “Prefácio”, in Alexandre Parafita, O
Maravilhoso Popular, Lisboa, Plátano Editora, 2000, p.12.
53
nossa história. O estudo de lendas e de tradições populares é
ta mbé m um claro sinal desse «ca minho » […]
69
E Fern anda Fr az ão e Gabri el a Mo rai s ac rescent am :
Verifica mo s, a ssim, q ue este corpus [as le ndas de mo uras
encantada s] se insere exacta me nte nesse mesmo «ca minho da
serpente » a que nos referimos a ntes, o ca minho traçado pela
história dos povos deste território, no período começado há cerca
de 40 000 anos e que se prolonga até hoje.
70
P or vez es, são fi gu ras f em i ni nas de ra ra bel ez a, di áf anas, que
apare cem pent e and o os cabel os l ouros com pent es de ouro, m as
out ras vez es t ransf orm am -se em cobr as, que podem ou não ser
provi das de cabel o , conform e sej am t ot al m ent e cobr as o u apenas
m et ade, com a cab eça hum an a . Tam bé m podem oferec er f i gos aos
pas s ant es, m as os fi gos t r ansform am -s e em ouro e, m ai s t ar de, frut o
da curi osi dade e, so bret udo, da am bi ç ão , em carv ão.
As mo uras, relacionadas co m a luz e o aspecto solar através
dos cabelos loiros que penteiam, da altura do ano em que
aparecem (solstício de Ve rão, S. João) e do ouro que oferecem,
vê[e]m este aspecto solar contrabalançado pelo seu meio corpo de
cobra, ligada à terra na sua representação nocturna, bem como ao
f a d o q u e s o f r e m e a o c a r v ã o , e n q u a n t o r e p r e s e n t a ç ã o d a s t r e v a s . 71
Aurél i o Lopes ap res ent a as suas sem el hanças com as f adas :
Heranças
de
um
te mpo
mítico,
manifestações
de
um
maravilhoso que radica no mais fundo do lendário colectivo das
culturas mediterrâneas, as Fadas e as Mouras Encantadas surgem nos co mo entidades te lúricas associadas a lu gare s recônditos e
misteriosos,
aos
quais
as
ligam
antigos
e
lendários
encantamentos!
69
70
71
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 3.
Idem, p. 18.
Maria Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras , p. 22.
54
São personagens de um te mpo prodigioso que ne m pela
ausê ncia de co mple ta d ime nsão histórica é tid o como me nos real
no
imaginário
popular.
T empo
primo rdial,
esse,
cuja
reactualização ritual d á corpo a muitos dos nossos cerimo niais
mágicos e religiosos.
Seres elementais,
entendida
co mo
uma
residuais de
autêntica
memória
idade
do
de
uma
ouro,
as
época
Mouras
Encantadas têm a particularidade de se tornarem invisíveis aos
olhos huma nos ou de apenas deixar vislumbrar uma image m
difusa e em desaparecimento: o doirado do seu cabelo refulgindo
ao sol, o reflexo parcial da sua ima ge m na á gua. São fia ndeiras
sublimes; fiam o linho e o destino! […]
As
mo uras
encantadas
(à
se melha nça
d as
fadas,
que
controla m o destino, o «fado », e que deste mo do o podem a lterar)
s u r g e m m u i t a s v e z e s d e i m p r e v i s t o a o s v i a n d a n t e s [ … ] 72
E ex pl i ca, t am bém , a sua rel ação com o s Mouros :
Inserem-se
na
mitologia
dos
encantados
que,
numa
perspectiva histórico -l endária, transfor ma o s povos antigos e
vencidos
em
arquétipos
de
mar gina is
e
clandestinos,
logo,
ocultos e má gicos, muitas vezes habitantes do sub mundo. São
eles os detentores da verdadeira sabedoria, poder e riqueza,
obrigados a descer às entranhas da terr a e a esconderem-se, mas,
ta mbé m por isso, a imergir na s e nergia s telúricas aí persistentes
e impregnar -se de um p oder mágico e uma força sobre -huma nos.
T udo se processa como, se e sgotado o poder material,
restasse aos povos ve ncidos, re metidos para o limb o existe ncial,
a recorrência às forças má gicas e sobrenatura is prime vas que da
terra ema na m e no seu interior se conser va m pote ncialmente
actuantes. Ao poder cabalístico de transmudar em ouro todo o
mineral ( mesmo o me nos nobre, como o carvão), junta -se o
acesso às riqueza s do interior da terra; donde vê m o s meta is, as
pedras preciosas e o ouro, que fazem ricos os povos.
73
Ora, na su a rel ação com os hum anos, se rvem -se de est rat a ge m as
di ferent es p ar a os a bordar, f requ ent em e nt e com o m esm o o bj ect i vo:
72
73
Aurélio Lopes, ob. cit., pp.3 e 4.
Ibidem.
55
s erem d es enc ant ada s. E est as aborda ge ns ex i gem , ger al m e nt e, um a
perí ci a e qual i dad es com o a di sc ri ção, a paci ên ci a, a persi st ênci a e a
cora gem , v al ores co m que os desencant adores são post os à prova, e
cuj a
ausênci a
pode
ser
fat al
pa r a
am bas
as
–
part es
os
encant a m ent os são d obrados e os t esouro s perdi dos.
Seja qualquer for o contacto, sub mete m se mpr e os visados a
uma prova, explícita o u imp lícita, co mo co ndição necessária (e a
maior parte das vezes suficiente) para vir a obter um tesouro de
inimaginável riqueza.
Por todo o País abund a m histórias, aprese ntadas co mo de
veracidade inquestionável, em que tesouros fabulosos são obtidos
por
bem
fadados,
e
«explica m»
assim
enriquecimentos
inexplicá veis ou, o que acontece vulgar me nte, ou e m que a s
hipóteses
de
insatisfação
enrique cime nto
de
uma
qualquer
acabam
por
condição
gorar-se
prévia
face
à
requerida.
A
corage m suficie nte, a a mb ição desmedida e muito frequente me nte
a indiscrição e a imp aciência são factores que ocasiona m, no
último minuto, a fuga p or entre os dedos do amb icionado tesouro.
São portanto os valores e m q ue assenta a é tica e a moral
local tradicionais que serve m, freque nte me nte, de critério mítico
de referência.
U ma
evidente
função
pedagógica
transperece
destes
episódios que, apesar de lendários, são encara dos como reais e
imbuídos,
implicita me nte,
no
uma
inequívoca
e
pragmática
74
moralidade.
S ão,
de
ent ant o,
narrat i vas
de
di fe rent es
t i pol ogi as,
que
i m port a, t al vez , “ar rum ar”, um a vez qu e, at é ao m om ent o, nenhum a
cl as s i fi caç ão ex i st ent e serve ao corpus de l endas do Al ga rv e.
74
Idem, pp.4 e 5.
56
4 .1 .1 .
P R O B LE M Á TI C A D A C LA S S I F I C AÇ Ã O
D A S LE N D AS D E M O UR AS E N C A N T AD AS
C om o j á veri fi cám os ant eri orm ent e, ex i st em doi s t i pos de
l endas de mouros m í t i cos (m ouras, m ouros ou m ouri nhos) : aquel a s a
que At aí de Ol i vei r a cham ou en cant a me nt os , “que s e l i m i t am a
re gi st ar
ocorr ênci a s
epi s ódi cos”
75
de
fenóm enos
m ai s
ou
m enos
pont uai s,
; e as que “obedec em a um a coerênci a na rrat i va,
es t abel ec endo rel a ç ões de t em poral i da de e de causal i dade ent re as
acçõ es ocor ri das, form ando sequ ênci as nar rat i va s, por sua vez
rel aci onad as
ent re
si ,
e
conduce nt es
a
um
d es fecho” 76.
Acres cent arí am os, a i nda, que nel as ex i st em um ou m ai s confl i t os,
cons t i t ui ndo
um a i nt ri ga,
ou
sej a,
perm i t em -nos
des e nhar
um
es quem a act an ci al c om os prot agoni st as e os respect i vos obj ect i vos,
adj uvant es e oponen t es.
E, com o t am b ém pr ovám os nesse m esm o est udo, nenhum a das
cl as s i fi caçõ es ex i st ent es (de C onsi gl i er i P edroso e de J osé Lei t e d e
Vas conc el l os 77), cri ad as, provav el m ent e, com a i nt enç ão d e a bran ger
t odo o t i po de l endas ex i st ent es n o país, se pode apl i car à s l endas
al garvi as , n as quai s não encont ram os m ouras que produzem eco (os
gri t os e/ ou choros são ouvi dos sobret udo à noi t e, m as não são o
m es m o que “eco ”), nem const rut oras de monument os , e ap enas
ex i s t em as Gens co m o vest í gi os de fi a ndei ras e a Z orra B erradei ra
(s obre cuj a nat ur ez a não há consenso ) com o vest í gi o de géni os
75
M. Manuela N. Casinha Nova, Dissertação de Mestrado As Lendas de
Mouras Encantadas do Algarve, Universidade Aberta, Lisboa, 2002, p.
58.
76
Ibidem.
77
Divisão de José Leite de Vasconcellos: a) mouras encantadas com
tesouros (em águas, pedras, montes); b) mouras que produzem eco; c)
mouras fiandeiras. Divisão de Consiglieri Pedroso (em “ciclos”): 1º)
como divindades ou génios femininos das águas (fontes, rios, ribeiros,
poços, etc.); 2º) como guardadoras de tesouros encantados; 3º) como
fiandeiras e construtoras de monumentos; 4º) como génios maléficos
que perseguem o homem, ocas ionando-lhe diversas doenças.
57
mal éf i cos – e am bo s est es c asos pe rt en cem à cat e gori a do s rel at os
de car áct e r epi sódi c o.
As ocorrên ci as “de narrat i va com pl et a”, com i nt ri ga, t êm t odas,
com o el em ent o ful cral , o encant am en t o da m oura, ex plí ci t o ou
i m pl í ci t o,
de
cuj a
nat urez a
dec orre
a
possi bi l i dade
ou
i m possi bi l i dade da sua própri a anul aç ão – o desencant am ent o, fact or
que det erm i na rá a m odal i dade da com posi ção.
Assi m , são “fechad as” as narrat i vas e m que o encant ament o
s urge com o o desenl ace i rr eve rsí vel da hi st óri a, aquel as em que, por
i népci a do desen ca nt ador (e, l o gi c am e nt e, do encant ado , que não
es col heu um d esenc ant ador adequado, daí as cons equênci a s serem ,
frequent em ent e, n ef ast as par a am bos – r ecorde -se o dobra r d o t em po
i ni ci al do encant am ent o ), são anul ad as t odas as possi bi l i dades de
des encant am ent o , t al com o t odas aquel a s cuj o desfecho con si st e na
cons um ação do d esencant ament o . S ão narrat i vas “ab ert as ” t odas as
out ras, em que, co m m ai or ou m enor probabi l i dade, pe r m anece a
pos s i bi l i dade do desencant am ent o.
Tendo em consi der ação est es “nú cl eo s narrat i vos”, pode m os
propor a se gui nt e cl assi fi caç ão par a as l endas al garvi as, a part i r da
s ua m odal i dade e não das funções ex erci das pel os encant ados na
hi s t óri a:
1 . Lend as cuj o el em ent o cent ral é o encant ament o
1.1.
encant ament o sem p ossi bi l i dade de dese ncant ament o
1.2.
encant ament o com p ossi bi l i dade de dese ncant ament o
2 . Lend as cuj o el em ent o cent ral é o d esen c ant ament o
2.1.
desencant am ent o co m fi nal fel i z
2.2.
t ent at i va fal had a de desencant am ent o
2 . 2 . 1 . t ent at i va fal h ada d e desen cant ament o provocad a po r i né pci a
d o desencant ador
2 . 2 . 2 . t ent at i va fal had a de desencant am ent o pr ovocada por m edo d o
desencant ador , que não che ga a t ent a r
58
2.3.
desencant am ent o
com
fi nal
desconc ert ant e,
fel i z
par a
o
d esencant ado e i nfel i z para o desencant ador , apesar da sua
“com pet ên ci a”
4 . 1 .2 . EN C A N T AM E N T O / D ES E N C AN T AM EN T O
O encant ament o pode dar -se em pres e nça ou à di st ânci a ( A
Moura de Sal i r e A Moura do Ar co do R epouso são doi s ex em pl os de
encant am ent os “à di st ânci a”), po r pr ecau ção, m edo ou rai va do
encant ador .
Ind ependent em ent e das condi ções e ci rcunst ân ci as em que
ocorre o encant am e nt o , o desencant am ent o deve obed ece r a re gr as
m ui t o preci sas, que provarão o m ere ci m ent o (ou não) do i ndi ví duo
que o l evar á a c ab o.
Parece, pois, que as no ções de puro e de impuro não fora m
a princípio bem separadas dos múltiplos sentimentos suscitados,
nas suas difere ntes ma nifestações, pelas força s co mple me ntares e
antitéticas cuja concordia discors organiza o universo. A sua
oposição é restringida tardia mente a co nsider ações de higie ne o u
de
moral.
É
possível
apreender
um
estado
em
que
ela
se
har mo niza indissoluve lme nte co m outros antagonismo s que se
conjugam e interpenetram mais do que se deixam ordenar ou
distinguir. A pureza é então simultaneamente a saúde, o vigor, a
bravura,
a
sorte,
a
longevidade,
a
destreza,
a
riqueza,
a
felicidade, a sa ntidade; a imp ureza reúne e m si a doença, a
fraqueza, a cobardia, a imperícia, a enfermidade, o azar , a
miséria, o infortúnio, a danação. N ão é ainda possível aperceber
uma
aspiração
moral.
U ma
tara
censurados da
me sma
ma neira
considerados
co mo
indícios
física
que
ou
ou
uma
um
fracasso
vontade
são
perversa
consequências
e
desta.
59
Reciproca mente, a habilidade ou o êxito ma nifesta m o favor dos
deuses e parece m uma garantia de virtude.
78
Não ser á, ent ão, po r ac aso, que, em quase t odos os rel at os de
t ent at i vas
fal h adas
de
d esencant am e nt o ,
o
er ro
a cont e ce
por
i nt erfer ênci a d e um a m ul her .
Na verdade, a ordem natural continua a ordem social e
reflecte -a. Estão amba s ligadas: o que perturba uma desordena a
outra. U m crime de lesa -majestade é equivalente a um acto
contranatural e prejudica da me sma ma neira o bom funcio na me nto
do univer so. De igual modo, qualquer mistura é uma operação
perigosa que t e nde a trazer confusão e desordem, que se arrisca
e m especial a baralhar qualidades que convé m ma nter separadas,
se se quiser que elas conservem as suas virtudes próprias. […]
Estas [ misturas] são te midas qua ndo tende m, por exe mplo, a
aproximar coisa s que, seja a que título for, p or contágio o u por
natureza, parecem pertencer a um e ao outro sexo. […] É que a
mistura não é considerada pelo pensa mento r eligioso co mo uma
espécie de operação química de consequências definidas e, em
todo o caso, purame nte mater iais. Ela a fecta a própria essência
dos corpos. Perturba -a, altera -a, introduz nela uma mác ula, quer
dizer, um foco contagioso de infecção que é urgente destruir,
eliminar ou isolar.
As qualidades das coisas são contagiosas: elas permutam -se,
interverte m-se, co mbina m-se e corrompe m-se, se uma e xcessiva
proximidade lhes per mite reagir entre si. A orde m do mundo
encontra-se
ofendida
na
mesma
proporção.
Assim,
para
a
preservar, é preciso, teoricame nte, impedir qualquer mistura
capaz de a comprome ter ou, na nec essidade de proceder a esta
delicada
ma nobra,
não
a
efectuar
sem tomar
indispensáveis para atenuar o seu efeito.
as precauções
79
Mas t am bém os hom ens fal ham , por v ez es, as suas t ent at i vas,
em bora, “est at i st i ca m ent e”, pare çam m a i s apt os ( “As Mouras do R i o
S eco 2 ”, “O P e go Escuro ”, “ O Al m ocr ev e de Est ói ”, por ex e m pl o ).
78
79
Roger Caillois, ob. cit., p. 56.
Roger Caillois, idem, pp. 26 e 27.
60
O medo é um dos sentime ntos que, desde se mpre, liga os
huma nos ao sobrenatural. No caso das mouras, os sentimentos
variam
ao
longo
do
te m[p]o:
co meça
por
haver
uma
certa
curiosidade, por vezes forte atracção, desejos e vontades de
várias q ualidades e intensidades e por fim, ge ralmente, é o medo
que ve nce os huma no s, e a mo ura que m vê o seu e ncanto
d o b r a d o . 80
Um a
das
part i cu l ari dades
m ai s
i m port ant es
que r
do
encant ament o quer do desencant ament o consi st e no val or at ri buí do
à pal avra: é com “ gest os ca bal í st i cos” e “uns di z eres” ou “um as
orações ” qu e os p a i s encant am as fi l h as; são ess es gest o s e ess as
pal avras qu e é n ec essári o rep et i r, p or ve z es, para des enc ant á -l as ( “ O
C i nt o da Moura ”, “As Mouras do R i os S eco 2 ”, “ A F ont e de
Es pi che ”, po r ex em pl o ); out ras v ez es , é at r avés da p al avr a que a
moura cri a (ou t ent a cri a r) um “pa ct o” com o fut uro desen cant ador
(“ Lend a do Bol o Bran co”, “ Le nda d e Al goz ”, “ O Al m ocreve d e
Es t ói ”).
As mo uras enca ntadas e nsin a m, àqueles a q ue m pedem actos
de coragem, o que dizer e fazer de modo a desenca ntá -las […] O
conhecime nto ou o de sconhec ime nto da pala vra certa define o
herói que se torna, deste modo, aquele capaz de ecoar a palavra
81
certa.
Out ra
part i cul a ri d ade
não
m e nos
i m port ant e,
m as
do
des encant am ent o é o “opost o” da pal av ra – o si l ênci o / se gredo :
Em
relação
às
mour as,
o
silêncio/segredo
é
uma
das
obrigações dos mortais para com ela s […] Nos contos, a mudez é
se mpre
um
narrativo,
estado
uma
inter médio,
suspensão
do
uma
ser
espécie
que
de
parênteses
corresponde
a
uma
80
Maria Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras , p. 22.
Maria Teresa Meireles, A Palavra e os seus ecos, Lisboa, Apenas
Livros Lda., 2006, p. 26.
81
61
prova/provação e que conduz, a maioria das vezes, a um assumir
pontual da palavra e da acção por uma outra personage m.
82
É fundam ent al gu ar dar se gredo, enqu an t o dura o processo que
l evará ao d esen cant ament o ( “A C obri nh a do Ba rran co”, “ A Lend a do
Bol o B ranco ”, “ A Lend a de Al goz ”, “ O Al m ocrev e de Est ói ”, “A
M oura C ássi m a”). E m ui t as vez es, de fact o, essa “m udez ” provoca a
curi osi dade ou a d esconfi an ça de out r as persona gens, qu e ac abam
por agi r e rrad am ent e, i nt erferi ndo ness e processo e com pr om et endo
o s eu resul t ado (“ Lenda do Bol o Br an co”, “ Lend a de Al goz ”, “A
M oura C ássi m a”).
Trat a -s e, port ant o, de um pa ct o , um a t roca , um cont rat o , um a
pr omessa , e, com o t al , deve se r r espei t a do por am bas as p ar t es (“A
t roca, acom p anhada ou não de pal avra s, conduz a acção e, de um
m odo ger al , redi r ec ci ona -a.
83
). S e um a del as fal ha, f al ha a t roca ,
fal t a-se à prom essa , desfaz -se o cont rat o , quebra -se o pa ct o … e o
el em ent o caus ador dest a m udança d e p l anos deverá est ar prepar a do
para pa ga r pel a sua i ndeci são ou i népci a, sofrendo um a part e das
cons equênci as
que
são
sem pre
nefast as
par a
a m bos
os
i nt erveni ent es.
82
Idem, pp. 27 e 28.
Maria Teresa Meireles, A Troca, Lisboa, Apenas Livros Lda., 200 5,
p. 12.
83
62
4 .2 . O LOBIS OMEM
Co mo a própria designação sugere, trata -se de um ser
híbrido
de
lobo
e
home m.
Existe
na
mitol ogia
popular
da
generalidade dos países e perdem -se na penumbra dos te mpos as
referências que lhe são feitas. Não há, por isso, unanimidade
relativamente à origem desta superstição, situando -se as mais
re motas alusões ao lobiso me m e m antiquíssimas tradiçõe s da
Ger mânia, da Índia antiga e da Grécia.
84
S endo a Gré ci a o n osso “ber ço cul t ura l ”, não podem os d e i x ar
de
al udi r
a
ce rt a s
cren ças
e
prát i cas,
qu e
m ai s
fa ci l m ent e
as s oci arí am os a out ras soci ed ades di t a s “m enos ci vi l i z adas”, m as
que poderão est a r t am bém na ori gem dest a cren ça na l i c ant ropi a ,
que se m ant ém a ct ual :
On rapporte qu’à la fête de Zeus Dieu -Loup, que l’on
célébrait tous les neuf ans sur la montagne aux Loups, en
Arcadie, un homme goûtait aux entrailles d’une victime humaine
mélangées
à
des
entrailles
d ’anima ux;
il
était
ainsi
méta morp hosé en loup et restait loup penda nt neuf a ns; si, dura nt
tout ce laps de te mp s, il n’ava it pas mangé d e chair humaine, il
redevenait alors homme. Cette tradition nous révèle l’existence
d’une société de canibales adorateurs du loup, dont un ou
plusie urs me mbre s personnifiaient, o u passa ient pour incarner,
l’animal
sacré
pendant
des
périodes
de
neuf
années
c o n s é c u t i v e s . 85
84
Alexandre Parafita, O Maravilhoso Popular, p.35.
James George Frazer, Le Rameau d’Or, Paris, Éditions Robert
Laffont, S. A., 1983, pp. 70 e 71: “Conta-se que na festa de Zeus Deus Lobo, que se celebrava de nove em nove anos na montanha dos Lobos,
na Arcádia, um homem saboreava as vísceras de uma vítima humana
misturadas com vísceras de animais; era, então, metamorfoseado em
lobo e ficava lobo durante nove anos; se, durante esse lapso de tempo,
não tivesse comido carne humana, tornaria à forma de homem. Esta
tradição revela-nos a existência de uma sociedade de canibais
adoradores do lobo, animal sagrado, que um ou vários membros
personificavam, ou fingiam encarnar, durante períodos de nove anos
consecutivos.” (Tradução nossa).
85
63
C om o vem os, e st a crença é ant i ga, apes ar de al gum as vari a nt es,
em bora não nos f osse possí vel ap urar se as di fer ença s est ão
rel aci onad as com o t em po ou com o espaço, poi s é pos sí vel que
am bos os fact or es i nt erfi ram .
Na Europa, se gundo a crença popular, o lobiso me m é
ho me m de dia e transforma -se e m lobo à noite (particular mente
quando está lua cheia) , atacando aqueles que se atravessam no
seu caminho.
[…]
O
lobiso me m é
uma
criatura
que
muito
dificilme nte se deixa a bater, e a sua morte po derá eventualmente
ser provocada através de um se m -número de métodos arcanos,
tais co mo a utilização de uma bala de prata o u da ar ma sa grada
da capela de São Huberto.
86
No cent ro do p aí s e na Id ade M édi a, a credi t av a -se qu e o
parent es co espi ri t u al cont raí do ent re com padres “e ra co nsi derado
pel a Igr ej a i m pedi t i vo de m at ri m óni o, c ri ando um cl i m a d e m al di ção
para as rel açõ es am orosas ent re com pad re e com adr e, provi ndo del as
os l obi som ens segu ndo a t radi ção popu l ar desse t em po [ re i nado de
D. Afonso IV] ”.
87
As ca usas da lica ntropia (transfor mar -se e m lobiso me m) são
várias,
entre
as
quais,
ser -se
possuído
pelo
demónio,
ser
infectado por outro lobiso me m ou usar um cinto de pele de lobo.
[…] A crença nos lobisome ns e voluiu na E uropa, durante a Idade
Média, […] Populosos e muito te midos, os lobisome ns era m um
símbolo de terror e de maldade, bem co mo da dimensão animal no
ser humano.
88
Em pl eno sécul o X X, no B arl av ent o A l garv i o , “pa ra qu em cr ê
em l obi som ens, é f at al a c renç a de qu e, quando al gu ém t em set e
86
Clare Gibson, Sinais e Símbolos, trad. Teresa Lopes Leal, ed. h.f.
ullmann, 2008, p. 130.
87
Victor Mendanha, História Misteriosa de Portugal, Lisb o a, E dito r a
Pergaminho, 3ª ed., 1997, p. 132.
88
Clare Gibson, ob. cit., p. 130.
64
fi l hos segui dos, t odos varões, o sét i m o fi l ho deverá c ham ar -se
Adão, poi s, caso co nt rári o, vi rá a s er l o bi som em ”.
89
S egundo a m esm a c rença, c aso não se segui sse est a t radi ç ão e
um a vez per ant e o fact o consum ado, s eri a pr eci so qu ei m a r -l he as
roupas durant e um a das suas saí das no ct urnas, pa ra dei x a r de ser
l obi som em .
A atracção pelo lado feminino encenada pela lua e a
ferocidade inerente à deusa Diana [uma das deusas da lua]
re mete m para um a mbiente florestal e a nimalesco e para um
contexto de caça. […]
Ao níve l das características co mporta mentais verifica mo s
que o lobisome m «à portuguesa » é perspectivado como um ser
noctíva go, consta nte me nte marcado pela simb ologia numérica do
sete, conotado com a figura do burro e não necessariamente com
a do lobo.
90
Tam bém At aí de Ol i vei ra re gi st ou um a crença quas e i dênt i ca:
“S e um a m ul her t i ve r set e fi l hos a ei t o, um será l obi shom em , [ …] ” 91
Falando do lobisho me m diz [“o ignorante ca mp onês”]:
«Se um casal te m sete filhos, um será lobishome m, e este
tem de cumprir o seu fadario. Levanta-se todas as noites, vae a
uma e ncr usilhada e espoja -se, transfor ma ndo -se e m jumento , e
assim tra nsfor mado a nda e m correrias, fa z endo mal a que m
encontra. Toda a vez que ouvirmos can tar um galo fóra das horas
costumadas annuncia a ndar p roximo um lobishome m».
92
Ao cont rá ri o do q ue suced e nout ros pont os do paí s
93
(e,
event ual m ent e, nou t ros paí ses), na t ra di ção al garvi a não ex i st em
l obi somens f êmeas e, de acordo com a m esm a crença, se um casal
89
José Conceição Casinha Nova , colector das “lendas inéditas” que
apresentamos.
90
Alexandre Matos, B. I. do Lobisomem, Lisboa, Apenas Livros Lda., 3ª
ed., 2009, p.9.
91
Ataíde Oliveira, Monografia do Algoz, Faro, Algarve em Foco
Editora, s/ data, p. 204.
92
Idem, p. 205.
93
V. Alexandre Matos, B. I. do Lobisomem, pp. 4 e 5.
65
t i ver set e fi l has segui d as, a úl t i m a é “m ul her de vi rt udes ou
fei t i cei ra ” (com o v e rem os adi ant e).
Di ver gi ndo da c ren ça re col hi da por At aí de Ol i vei ra em Al goz ,
m ai s para o l ado de L a gos e S a gr es acredi t a -s e que o l ob i som em
s ofre a sua m et am or fose ent re as 23h30 e a m ei a -noi t e, nas noi t es de
l ua chei a, i ndepend ent em ent e do di a d a sem an a, e t od as a s sex t as fei ras, i ndep endent e m ent e da fas e em qu e a l ua se encont r a .
94
Em cert as z onas do S ot avent o, a crenç a é sem el hant e, m as c om
um porm enor di f er ent e, que t am bém encont r ám os asso ci ado às
br uxas e às cobras (a cap aci dad e de en t rar nas c asas pel a f echadur a
das port as) :
O lobisome m não se transfor ma va e m lobo mas e m burro e
entrava nas casas de habitação pela fechadura das portas. A
transfor mação surgia a pós se espojar no pó das estradas duma
encruzilhada. Este condão també m podia acabar se mpre que fosse
espreitado
e
lhe
queimasse m
as
roupas,
enquanto
andava
trannsformado e errante. Se isto a contecesse, nunca mais poderia
ser lobiso me m.
95
O “l obi som e” é, m ui t as vez es, no Al garve, se gundo t e rm o ou
obj ect o i m agi n ári o de com par açõ es, em conversas: ex pressões com o
“fei o com o um l obi som em ”, “pel udo co m o um m acaco ou c om o um
l obi som em ”, “ui vava com o um l obo ou com o um l obi som em ” e
“barba, dent es ou m ãos de l obi som em ” foram po r nós ou vi das com
frequên ci a.
C ont udo, cont rari a m ent e ao qu e se poderi a esper ar, a penas
encont rám os ci n co hi st óri as rel aci on adas com est a p er sonagem ,
t odas do Ba rl avent o, t rês r ecol hi das e publ i cad as por Mar gari da
Tengarri nh a, e du a s recol hi d as d a or al i dade por um i n form ant e
94
T ambé m co nsiderado “dia de bruxas”, tal como a terça -feira – não deixa
de ser curiosa esta associação, pois numa das narrativas recolhidas por
Margarida Tengarrinha, um rapaz que dizem que é lobisomem é acusado de
provocar doenças a outras pessoas, usando o livro de São Cipriano, acusação
habitualmente f e i t a a b r u x a s e /o u f e it ic e ir a s .
95
Adérito Fernandes Vaz, in ALGARVE – Reflexos Etnográficos de uma
Região, Faro, 1994, p.51.
66
nos s o
fam i l i ar,
ai nda
i nédi t a s
(em b ora
dest as,
um a
se
refi r a
di rect am ent e ao fa ct o de se pensa r que um rapaz era l obi so m em , e a
out ra ap enas r el at e um a m et am orfos e d e um burro em hom em , o que
pres supõe o cont r ári o) .
A associ a ção ent r e a fi gura do l obi somem e a f eroci dad e
i nt eri or repri m i da é evi dent e: o aspect o, pel udo e fei o (com o pode
s er f ei o o nosso l ad o escuro , dom i nado pel o i nconsci ent e ), os act os
conden áv ei s , a t ra nsform ação do ho m em em l obo – o ani m al
s el vagem e f eroz m ai s próx i m o do hom em , na Eu ropa , e m ai s
pareci do ao cão, i no fensi vo, dom est i cad o, dóci l .
96
[…] poderemos afir ma r que o ima ginário que envolve o
lobiso me m e m Portuga l reme te para uma vora cidade interior não
totalme nte expressa, p ois estes relatos da nossa tradição oral
mo stra m um lobiso me m inferiorizado, mais vítima que ac usador,
m a i s «d i g n o d e c o m i s e r a ç ã o q u e d e ó d i o », c o n f o r m e p a l a v r a s d e
Consiglieri Pedroso. Le mbra o Diabo… ta mbé m não t ão mau
como o pintara m. Na tradição popular portugue sa, sobrevive -se
ao ataque, convive -se com o inimigo. Em contrapartida, noutras
culturas, a aparição do lobiso me m implica uma c hacina bestial,
onde não há sobrevive ntes dessa raiva interior, besta primord ial
encarcerada como uma bomba -relógio pronta a explodir numa
noite
de
lua
cheia
e
no
ma gnetismo
desse
luar.
Talvez
a
ferocidade lupina permaneça no humano mais do que no lobo;
afinal, o maior predador receia, não os animais selvagens, mas a
besta escondida em si.
97
Tal com o no rest o d o paí s, o l obi some m al garvi o n ão p are ce ser
m ui t o feroz nem co m et er grand es at ro c i dades, t al com o é refe r i do
p o r Al ex andre P ar af i t a:
Sendo e mbora uma criatura medonha, co m a qual ningué m
ousa enco ntrar -se, o lobisome m é co nsiderado por muitos co mo
96
Alguns cães e alguns lobos são tão parec idos que podem ser
confundidos: estarão estas semelhanças na base da ideia de falsidade –
pensa-se que é um cão, mas é um lobo / pensa -se que é um homem, mas
afinal é um lobisomem?
97
Alexandre Matos, ob. cit., p.16.
67
um ser bom e ino fensivo, que apenas cumpre um fadário com o
seu próprio tormento.
98
Tal vez por est as raz ões, em P ort ugal (cuj os habi t ant es são
conheci dos pel os seus “brandos cost u m es”), apa reç a o l obi somem
t am bém t ransfo rm a do em bur ro, ani m al que, s e po r um l ado é
dom est i cado e aj uda o hom em nas suas t aref as, por out ro, dá coi ces
e é cor rent e (p el o m enos no barl avent o al ga rvi o) que t am bém não
devem os aprox i m ar -nos da cabeç a, poi s quando agarr a al gu m a coi sa
com os dent es nun ca m ai s a l a r ga, fi cando p reso ao obj ect o ou à
pes s oa que t ri ncou. No ent ant o, não é u m ani m al feroz , com o o l obo,
há nel e um a cert a m ansi dão e, at é m esm o, subm i ssão.
O burro, «a sno o u jumento » é uma criatura d e simbolismo
contrastante, que inclui o perigo, a po breza, a obstinação, a
estupidez, a loucura e a preguiça, e, por outro lado, a virilidade,
a paciência, a corage m, a brandura e a ge ntile za. […] Os cristãos
considera m o burro um símbolo do mundo pagão, […] U ma vez
q u e e r a u m a n i m a l d e s a c r i f í c i o , o b u r r o p o d e s i g n i f i c a r a mo r t e ;
uma vez que carrega pe sos, pode representar os pobres.
99
É, t al vez , de sal i entar, o fact o de t rês d as ci nco l endas em que
s e dão m et am orfos e s, est as serem em b urros , ai nda por ci m a porque,
at é há ce rc a de q uarent a anos, ai nda havi a l obos nas m at as do
Al ga rve (nom ead am ent e na m at a de B a rão de S . J oão, próx i m a da
l ocal i dade onde fora m recol hi das duas d est as l endas).
O lobo é, de todos os animais, o que mais se te m prestado à
incessante a valiação do huma no e ao seu confro nto com o ou tro
animal; ele não é tanto um estranho vindo do exterior para
a meaçar o nosso alime nto ne m a nossa integr idade humana ou a
nossa humanidade intrínseca, mas um outro interior, que coabita
connosco, nos nossos e spaços do mésticos, rondando a capoeira ou
o átrio, vive ndo mais na orla da floresta do que nas suas
profundezas, e que também coexiste com cada um de nós, partilha
98
99
Alexandra Parafita, O Maravilhoso Popular, p. 36.
Clare Gibson, ob. cit., p. 104.
68
da nossa natureza íntima mais indo má vel, c onstituindo uma das
figuras mais regulare s dos mais primitivos sedimento s da nossa
identidade.
É igualmente deste convívio com o lobo interior que a
tradição popular fala, para que esteja mos se mpre cientes do livre
trânsito que existe no reino animal, e que as cercas dos currais,
as vedações das ho rtas e os muros das quintas existem para ser
transpostos
mantenha.
no
nosso
imaginário
para
que
a
circulação
se
100
No ent ant o, M ari a Ter esa M ei rel es a fi rm a, bas eada t am bém
num cont o apresent ado por J osé Lei t e de Vasconc el l os (“ Os Fi l hos
do C arvoei ro” ), q ue, nout ras r e gi õe s do paí s, o l obi somem é
confundi do c om o gi gant e e com o ol harapo/ ci cl ope , sobret udo
porque “com e m eni nos”, m as t am bém porque “bebe vi nho at é fi ca r
mei o t ont o”. C oncl ui que o Ol harapo é “perm ut áv el co m out ros
ent es com o sej am a Brux a, o Lobi som em e o Al i córni o ”, por
apreci arem
ca rne
hum ana
e
poss uí rem
for ça
e/ ou
t am anho
s uperi ores, pel a s ua “brut al i dade e voz medonha ”, assust ando
“herói s e n ão -he rói s”.
101
Trat a -s e, pel os vi st os, de casos pont ua i s de cont os t al vez m ai s
ant i gos e de r e gi ões supost am ent e m ai s agrest es, onde t am anha
feroci d ade t er á subsi st i do por m ai s t em po. C om o j á di ssem os, nas
l endas do Al garv e n ão ex i st em est as “de sm esuras”.
100
Ana Paiva Morais, B. I. do Lobo, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2ª ed.,
2005, p. 23.
101
Maria Teresa Meireles, Gigantes, Olharapos e Outras Desmesuras ,
Lisboa, Apenas Livros Lda., 2005, pp. 33 a 35.
69
4 .3 . A S EREIA
Monstros do mar, co m a cabeça e peito de mulher e o resto
do corpo igual ao de um pássaro ou, segundo as lendas mais
tardias e de origem nórdica, ao de um peixe. As sereias seduziam
os na vegadores pela be leza do seu rosto e pela melodia dos se us
cantos, atraindo -os par a o mar e devorando -os. […]
Fez-se delas a image m dos perigos da navega ção marítima ;
depois,
a
própria
imagem
da
morte.
[…]
na
ima ginação
tradicional, aquilo que prevaleceu das sereia s foi o simbolismo
da sedução mortal.
102
Tam bém C arl os Gar cí a Gual nos dá um a defi ni ção s em el ha nt e,
acres cent ando que n ão t êm “nom es i ndivi duai s” e que “pert encem à
cat e gori a m í t i ca d e daí mones fem i ni nos que causam p rofun do t em or
por est ar em próx i m os do m undo da m ort e . C om o as Es fi nges, as
Erí ni as, as Ke res e as Harpi as. ”.
103
No ent ant o, a sua o ri gem é, no m í ni m o, confusa, por ex i st irem
di versas versõ es que a t ent am ex pl i car:
Na mitologia grega são filha s da musa Me lpome ne e do
deus-rio Aqueloo, ou de Aqueloo e de Estérope, ou de Portáon e
de Êurite, ou de Aqueloo e de Terpsícore, ou de Fórcis, o deus
marinho, ou de Aquelo o e da musa Calíope. […] Segundo Libâ nio
(ainda outra versão), as sereias nasceram do sangue de Aqueloo
quando este foi ferido por Hércules.
104
J orge Luí s Bor ges d i z -nos o segui nt e:
102
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, trad.
Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Lisboa, Editorial Teorema, 1994, p.
594.
103
Carlos Garcia Gual, Dicionário de Mitos, trad. Anselmo Borges e
José Ribeiro Ferreira, Cruz Quebrada, Casa das Letras/Editorial
Notícias, 1ª ed., 2005, p. 229.
104
Ana Maria Freitas, B. I. da Sereia, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2ª
ed., 2005, p. 15.
70
Ao longo do te mpo, a s Sereia s muda m de forma. O se u
prime iro historiador, o rapsodo do décimo segundo livro da
Odisseia , não nos diz como era m; par a Ovídio, são aves de
pluma ge m a ver melhad a e cara de virge m; para Apolónio de
Rodes, de metade do corpo para cima são mulheres e para baixo
aves
marinhas;
para
o
mestre
Tirso
de
Molina
heráldica), são «metade mulheres e metade peixes ».
Assi m ,
as
serei as
não
for am
sem p re
(e
para
a
105
donz el as
l i nda s
e
s i m pát i cas, com bu st o de m ul her , cau da de p ei x e e voz canor a,
i m agem i m ort al i z ad a por H ans C hri st i an Ande rson na fi gur a da
“pequen a serei a ”, re cent em ent e r ecupe ra da e propa gada pel a Di sne y
(e que s e ap rox i ma d e Mel usi na ) . Es t a i m agem m ai s re cent e d a
s erei a par ec e t er si do o resul t ado de um a evol ução em que se
m i s t uraram vári os m i t os ant i gos.
Não me nos discutíve l é o seu género; o dicionário clássico
de Le mprière ente nde que são ninfas, o de Quicherat diz que são
mo nstros e o de Grimal que são demó nios.
106
Ei s al gum as sem el hanças j á re gi st adas por out ros est udi osos:
As Sereias têm uma voz sedutora. Mas o seu encanto reside,
mais do que no seu to m musica l, na infor ma ção muito atrae nte
que oferecem ao navegante para torná-lo sábio. Nisso parecem-se
com as Musas, porque sabem tudo o que aconteceu e cantam -no,
mas os seus contactos não são com o mundo celeste, mas com o
mundo dos mortos. Nã o sabe mos se para atra ir cada viajante lhe
oferece m um cha mariz diferente e pessoal, ma s o odisseico
parece estabelecido de modo especial para o curioso Ulisses,
ávido de ouvir as suas próprias façanhas e notícias sobre os seus
compa nhe iros de Tróia.
107
Mas as parecen ças c om as Musas cont i nuam , t am bém pel o fact o
de usarem a sua voz sedut ora com o at r a cção:
105
106
107
Jorge Luís Borges, ob. cit., p.181.
Ib i d e m .
Carlos Garcia Gual, ob. cit., p. 230.
71
Mas enqua nto as Musa s e mite m um ca nto festivo e dança m
alegres ao serviço de Apolo, as Sereias estão relacionadas com a
Morte, e de modo especial co m a deusa Perséfo ne. E m muitas
tumba s erigia -se a e fígie de uma Sereia – ou e ntão de uma
Esfinge – para que fo sse guardiã do morto, protegendo o se u
último lar.
108
Não é de est ranh ar e st a pare cenç a com a Esfi nge:
Sob influê ncia do Egipto, que representava a alma dos
defuntos sob a for ma d e um pássaro co m cabe ça humana, a sereia
foi considerada a alma do morto que não cump riu o seu destino e
se transfor mo u num va mpiro devorador. Entretanto, de gé nios
perversos
e
de
divindades
infernais,
tra nsfor mara m -se
em
divindades do alé m que enca ntava m, co m a har monia da sua
música,
os
Bem-Aventurados
que
tinham
atingido
as
Ilhas
Afortunadas; é sob este aspecto que são representadas nalguns
sarcófagos (GRID, 425).
109
No ent ant o, pare cem t er est ado desde se m pre l i gad as aos m ares,
quer t enh a si do por i nfl uênci a d a Odi sse i a , quer est a obr a t e nha si d o
j á i nfl uenci ada po r out ras l endas, ev ent ual m ent e, m ai s ant i gas.
O no me de Sereias, seirenes, pôs-se e m relaç ão etimoló gica
c o m s e i r i o s , « a r d e n t e » , «c á l i d o » , o q u e a p o n t a r i a p a r a q u e s ã o ,
na sua orige m, co mo uns de mó nios do calor meridia no; e co m
s e i r á , « c o r d a » , « a t a d u r a », p o r q u e c o m o s s e u s f e i t i ç o s e n c a d e i a m
os seus ouvintes.
110
O idioma inglês di stingue a Sereia clá ssica ( siren) das que
têm
cauda
de
peixe
(mermaids).
Na
formação
desta
última
ima ge m teria m influíd o por analogia os T ritões, divindades d o
cortejo de Posídon.
108
109
110
111
111
Id e m , p . 2 2 9 .
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 594.
Carlos Garcia Gual, ob. cit., pp. 231.
Jorge Luís Borges, ob. cit., p.182.
72
Na opi ni ão d e C arl o s Gar ci a G rual , “as Nerei das são o que m ai s
s e par ec e com as n ossas ser ei as [ …] em bora sem caud a d e pei x e”,
poi s , ai nda se gundo o m esm o aut or, as “Ner ei das vão e v êm pel os
es paços m ari nhos, descem aos fundos, on de habi t am no pal áci o de
s eu pai [ Nereu] , e por vez es saem a bri ncar ent re as o ndas e a
di vert i r -se [ …] saem a saudar os nave gant es, nad ador as ágei s,
brancas e espum osas ”.
112
A passa gem d e av e s para s em i -pei x es t am bém é ex pl i cada por
vári os aut ores:
[…] As Sereia s seria m as co mpa nheira s de Perséfone (e m
latim Proserpina) meta morfoseadas pela sua dor em mulheres ave, lutuosas e lamuriosas, depois do rapto de Perséfone por
Hades.
113
E de di versas form a s:
Mas o mitógra fo Higino (na sua fábula 141) atribui à d eusa
De méter a conversão das ninfas e m Sereias c omo um ca stigo por
não terem velado bem pela sua filha [Perséfone]. Pausânias
acrescenta um apontamento, ao referir (em IX, 34.3) que num
certa me disputara m as Musa s e as Sereias. As prime iras ve ncera m
e com as plumas das suas rivais fizeram coroas. Tristes Sereias
desplumadas!
114
Mas se gundo Mari a Teres a Mei r el es, a ser ei a t am bém j á foi
repres ent ada com m et ade do corpo de serp ent e, o qu e , na sua
opi ni ão, a aprox i ma da moura encant ada , e am bas da mel usi na –
“um a vari ant e de es peci al prest í gi o fol cl óri co é a da S erei a que se
enam ora d e um hum ano e por m om en t os é m ul her, com o a fada
M el usi na”
115
A sereia, o mais híbrido dos entes femininos (inicialmente
muitas vezes representado com a sua metade animal de serpen te e
112
113
114
115
Carlos Garcia Gual, ob. cit., p. 179.
Idem, pp. 231.
Idem, p. 232.
Ibidem.
73
não de peixe), aproxima -se, por sua vez, da figura da moura
encantada mas, ao contrário desta, vive e sobrevive na água
salgada, geralmente local de nascime nto de seres mais maléficos
e masc ulinos.
Ana
Mari a
116
Frei t as
t am bém
refe re
e st a
prox i m i dade
c om
Mel usi na :
Melusina, a mulher ser pente, entra ne sta cate goria, pois «La
queue de poisson est a nalogue à la que ue de se rpent».
117
P ara L. Har f - La nc ner, há doi s t i pos de fadas, as d e t i po
«m organi en » e as de t i po «mel usi en »:
118
No caso das fadas e dos con tos de tipo «melusien», há um
encontro entre a fada e o mortal, um pacto que se estabelece
entre a mbos e a violaç ão desse pacto por parte do huma no, o que
leva
ao
desaparecimento
conve niente linha ge m.
da
fada,
não
sem
antes
deixar
119
E Mari a Te resa M ei rel es a cres cent a , ci t ando J ai m e C ort esão:
Jaime Cortesão, no seu Romance das Ilhas Encantadas ,
repete a ideia e noção de fada -sereia melusina, capaz de dar
origem a linhagens e elites locais”.
120
E cont a a “ Lend a dos Mari nhos”, que se re fer e à o ri ge m da
fun dação d a Il ha d a Madei ra, cham an do -l hes mul here s m ari nhas e
ondi nas .
Mulher lendária dos romance s de cavalaria, d e uma grande
beleza,
mas por
vezes transfor mada
em serpente.
Génio
da
116
Maria Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras , p. 20.
Jean Markale, Mélusine, Paris, Éditions Albin Michel, 1993, p. 117,
apud Ana Maria Freitas, ob. cit., p. 8.
118
L. Harf-Lancner, Les fées au moyen age, Morgane et Mélusine, la
naissance dês fées , Librairie Honoré Cha mpio n, Paris, 1984, a p u d M a r i a
Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras, p. 15.
119
Maria Teresa Meireles, ob. cit., p. 15.
120
Ibidem.
117
74
família dos Lusignan, ela aparecia na torre do castelo e lançava
gritos lúgubres, de ca da vez que um Lusignan ia morrer. U m
roma nce do século XV popularizou a lenda […].
121
Desde t em pos i m em orávei s que as ser ei as povoam o i m agi n ári o
col ect i vo dos povos que habi t am j unt o a o m ar.
Ao contrário do que seria de esperar, a sereia t em uma
presença quase nula nos nossos contos e, mesmo nas lendas,
sur ge de uma for ma quase envergonhada.
122
Não dei x a de ser curi oso, est ranho, at é, que no Al garv e, t err a
de pesc ador es, vi ve ndo a m ai ori a da po pul ação à b ei ra -m a r , haj a t ão
poucas hi st óri as pro t agoni z adas por est e s seres,
[…] o certo é que estas figuras sobrenaturais da água, com
tanto peso nas mitologias das diferentes áreas do globo terrestre,
se apaga m um pouco no ima ginário representado pelos contos.
Sobram
marinhas
as
mouras
puxadas
encantadas,
ninfas
para
pela
terra
de
poços
estranha
e
ribeiras,
tendência
do
ima ginário português, já referida por Leite de Vasconcello s, de
virar as costas ao mar.
123
E a ex pl i cação pode ser, preci sam ent e , que a moura encant ada
acabou por, de al gu m a form a, si nt et i z ar t odas as fi gur as fem i ni nas
m ai s ou m enos peri gosas, m ai s ou m en os sedut oras, m ai s ou m enos
capaz es de s e m et a m orfosear em , ocupa ndo os l ocai s i naces sí vei s aos
121
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 448: “uma fada de
uma beleza maravilhosa promete a Raimondin fazer dele a primeira
personagem do reino, se ele aceitar desposá -la e nunca a ver aos
sábados. O casamento realiza -se, a fortuna e os filhos coroam a sua
união. Mas o ciúme apodera -se de Raimondin, a quem fazem acreditar
que sua mulher o enganava, e este espreita, por um buraco na parede,
Melusina que, um sábado, se retirara para o seu quarto. Ela está a tomar
um banho e ele descobre que ela é metade mulher e metade serpente,
como as sereias eram metade peixe ou metade pássaro. Raimondin fica
cheio de dor, Melusina traída voa, não sem deixar de clamar a sua pena
com gritos horríveis, na torre do castelo.”.
122
Maria Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras, p. 20.
123
Ana Maria Freitas, ob. cit., p. 7.
75
hum anos – cov as, grut as, roch as, ci st e r nas, ri os, pe gos –, m ovendo s e nos quat ro el em e nt os.
A moira, à se melha nça da sereia e com ela se confundindo
por vezes, é uma representação fragme ntária do fe minino e co mo
tal inco mpleta e incor rendo nos perigos de qualquer for ma de
hibridez.
Na
realidade,
a
ima ginação
humana
deliciou -se
multi-
plicando uma image m dividida de mulher que prima va por uma
insistência absoluta no corte entre a parte superior e a inferior,
sendo a primeira gera lme nte humana, e nqua nto que a segunda
podia assumir a for ma de diversos anima is: serpente, cabra e
peixe são os mais comuns. Essa divisão não foi certamente
ingé nua, visto a parte superior do corpo ser considerada mais
espiritual, por se e nco ntrar ma is alta, ma is «livre » do peso da
gravidade, enquanto a outra parte, conotada com a parte sexuada
do corpo, se tornava a mais baixa a vários níveis, aquela que se
encontra mais próxima do chão e da sua simbólica.
124
S e a m et am orfose da part e de bai x o do corpo em pei x e (serei a )
e em se rpent e (mo ura encant ada ) n ã o dei x a de t er co not ações
s ex uai s, a m et am orfose em cabra (dam a pé -de-cabra e Me l usi nas )
perm i t e conot ações dem oní acas (com o verem os) , pel o que t odas
s i m bol iz am a t ent a ção , o que n ão e nt ra de m odo al gu m (pel o
cont rári o) em cont r adi ção n em com a s i m bol ogi a l i gada à nat urez a,
nem com os própri os ri t uai s em
honra da fe cundi da de e da
fert i l i dade.
Tal
com o
a
l í ngu a,
t am bém
as
t ra di ções
at r avessa ra m
o
At l ânt i co e cruz a ra m -se com as j á ex i stent es no cont i nent e am eri cano ,
e es t a ent i dade, ori gi nal m ent e eu ropei a e fem i ni na, vai enc ont rar, na
Iar a e no Bot o d os í ndi os brasi l ei r os, os seus m ai s próx i m os
equi val ent es , sobret udo da Am az óni a:
No Brasil, […] a Iara [ou Uiara] exerce um enor me poder
de sedução sobre os home ns, se melha nte ao do Boto sobre as
124
Maria Teresa Meireles, Elementos e Entes Sobrenaturais nos Contos
e nas Lendas, Lisboa, Vega, 1998, p.48.
76
mulheres, razão pela qual também costuma ser chamada de BotoFê mea.
Espécie de dom-joão da região amazónica, o Boto é um
sedutor irresistível, co mo a Iara dos Índios Brasileiros , entidade
do folclore de certo modo correspondente à Sereia da tradição
europeia. Confor me rez a m várias le ndas, e m noites de lua cheia,
o Boto emerge das á gu as dos rios e ve m a terra, adquirindo a
for ma huma na, e m gera l masc ulina. Assim tra nsfigurado, o jove m
desconhecido frequenta bailes e festejos populares, seduzindo as
moça s e, por vezes, engravidando -as.
125
Est a am bi gui dad e d e géneros d eve -s e, provavel m en t e, ao f act o
de a Iara t er si do, i ni ci al m ent e, um a fi gur a m ascul i na:
Segundo re gistos dos p rimeiros cronistas do Brasil (séc ulos
XVI e XVII), a princípio a Iara era ma sculina e c ha mava -se
Igpupiara
ou
Ipupiara,
uma
espécie
de
ho me m -peixe
que
devorava pescadores e os levava para o fundo do rio. Ypú-piara,
o que reside ou jaz na fonte, «o que habita o fundo das águas »,
e r a u m m o n s t r o a «q u e o s í n d i o s d a v a m c o m o h o m e m m a r i n h o ,
inimigo dos pescadores e das lavadeiras» (Sa mpaio, 1928). […]
Originalmente, Ipupia r a era, portanto, uma entidade ma sc ulina, o
Senhor das Águas. No século XVIII, decerto devido ao contato
das lendas dos povos indígenas com os mitos da tradição greco roma na e do folclore europeu trazido pelos Portugueses, Ipupiara
tornou-se a sedutora Iar a ou Uiara, que, por vezes, co mo o Boto,
assume inte ira me nte a for ma huma na e sa i das águas, e m busca
de vítima s.
126
Vej am os
as
r az õe s
pel as
quai s
Ma ri a
de
Lu rdes
S o ares
es t abel ec e a corr esp ondênci a ent r e a Iara e a Serei a :
O ter mo uiara ou y-yara, confo r me o Dicionário Tupi Guarani, significa: y, água, rio, e yara, senhora. Portanto, Iara é
125
Maria de Lurdes Soares, B.I. da Iara, do Boto e de Iemanjá, Lisboa,
Apenas Livros Lda., 2008, p. 3.
126
Idem, p. 5.
77
a Senhora ou Da ma das Águas, ou ainda, aquela que mora nas
águas. […]
127
Confor me narra m as lendas (sobretudo dos indíge nas da
região a mazónica), a Iara apresenta -se na figura de uma mulher
extre ma me nte
bela,
dotada
de
um
canto
mara vilhoso,
que
costuma banhar -se nas cachoeiras, rios, igarapés e igapós, ou
pentear seus longos cabelos sobre as pedras das enseadas.
Ela tem corpo de mulher da cintura para cima e corpo de
peixe da cintura para baixo. Os cabelos são de diversas cores, de
acordo com as várias versões, inclusive louros e verdes, mas, em
geral, são ne gros e liso s, co mo os dos povos indíge nas q ue dera m
origem a essa lenda.
128
[…] Acredita -se que ninguém consegue es capar à visão e,
sobretudo, ao melodioso canto da Uiara, tal c omo que m o uvia o
canto da sereia de tradição europeia.
129
Mas Ana Mari a F rei t as est abel e ce out ra s anal ogi as:
Lâmias e Nixes gostam de pentear os cabelos com pentes de
ouro. Aliás, esse hábito é comum à maioria das sereias.
130
Mas há out ras sem el hanças ent re as S er e i as e as L âmi as :
Seres fabulosos de que os Gregos se serviam para assustar
as criancinhas. […]
O no me de Lâ mia s foi dado a mo nstros fe minino s que
procuravam os jovens para lhe sugarem o sangue. Semelhante ao
papão e ao va mpiro.
131
127
Ibidem.
Idem, p. 8.
129
Idem, p. 25.
130
Ana Maria Freitas, ob. cit., p.20.
131
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 398: « De uma grande
beleza, Lâmia terá sido amada por Zeus; mas a esposa do deus, H era,
perseguiu-a por ciúmes e matou todo os os seus filhos. Lâmia refugiou se numa caverna e, com inveja das outras mães, perseguia os seus filhos
para os raptar e devorar […].»
128
78
Quant o às N i xe, a úni ca refer ênci a qu e encont rám os é de
C onsi gl i eri P edroso e est á t am bém i n t i m am ent e l i gada à moura
encant ada :
[...]
as
mo uras
encantadas
eram
divindades
ou
génios
femininos das águas, análo gas às nixen germânicas, às lac-ladies
inglesas,
às
rusalki
russas,
às
vilas
sérvias,
às
elfen
escandinava s, às naiadas grega s, etc. Era m ta mbé m, alé m disso,
os génios que guardavam os tesouros escondidos no centro da
Terra, crença que é comum a todos os p ovos, que conservaram
vestígios desta e ntidad e mítica, que parece se r indo -e uropeia ou
pelo menos e uropeia, por isso que se encontra, quase se m
excepção em todos os grupos áricos da Europa. Apenas da
mitologia portuguesa desapareceu a feição maléfica que e stas
entidades por vezes revestem em outras mitologias, por ex. na
russa; a não ser que queira mos ver um derradeiro reflexo desta
concepção nalgumas superstições ainda hoje em vigor no nosso
p a í s e q u e s e e x e c u t a m j u n t o à s f o n t e s . 132
Tudo l eva a cre r q ue e st am os p er ant e um a daqu el as si t u ações
s obre as quai s C l a ude Lévi -S t rauss af i rm a que “não se espera ri a
encont ra r a m esm a cri aç ão num l ugar c om pl et am ent e di fer ent e.”
133
(com o j á ci t ám os na pági n a 2 5 dest e t r a bal ho.):
Iara, a Ondina ou Ninfa das Águas brasile ira, portanto,
possui as principais características físicas e atributos da Sereia
europeia (no meada me nte, a dos relatos da Antiguidade Clá ssica).
Acredita -se que essa coincidência ou paralelo cultural constitui
um universal da cultur a, uma vez que, a princ ípio, até onde se
sabe, antes da chegada dos Portugueses, não houve contacto entre
as lendas e crenças dos Índios e a mitologia europeia (Brandão,
1998).”
Mas
134
ex i st em
out ras
sem el han ças
c om
a
serei a
e,
por
cons e gui nt e, t am bé m com a moura enc ant ada :
132
Consiglieri Pedroso, Contribuições para uma Mitologia Popular
Portuguesa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1988, p p. 217 e 218.
133
Claude Lévi-Strauss, ob. cit., p. 23.
134
Maria de Lurdes Soares, ob. cit., p. 8.
79
A Iara costuma ser representada a pentear -se com um pente
de
ouro
e,
por
vezes,
segura
na
outra
mão
um
espelho,
instr umento s que contr ibue m para e mbelezá -la, tornando -a ainda
mais sedutora.
O pente e o espelho são conhecidos objectos que, na
trajectória do mi to e ur opeu, fora m incorporados à representação
simbólica da Sereia. […]
O simbolismo do pente ultrapassa o seu se ntido vulgar, de
simple s instr umento utilitário ou decorativo . «Os pêlos e os
cabelos se mpre e stive ra m associados à se xualidade e indica m
atributos de natureza sexual. […] Curiosamente, na palavra
francesa séran, do século XIII, que designa um pente para
dese mbaraçar a fibra de cânha mo ou de linho, percebe -se um eco
da palavra sirene (sere ia e m francê s). Ora, «a lé m disso, o pente
é, simbolica ment e, uma representação do sexo fe minino. As
palavras kteis em grego, pecten em latim e pettigone em italiano
designa m, aliás, ao mesmo te mpo, o pente e o púbis» (Brase y,
2002, 24).
135
Tam bém Iemanj á ap resent a al gum as se m el hanças com a Ia ra e,
cons equent em ent e, c om a Serei a:
[…] é possível encontrar alguns traços comuns entre a Iara
indígena, a Sereia européia e a figura de Iemanjá, divindade das
religiões nativas dos Africanos.
136
E m sua s diversas representações, Ie ma njá […] se gura na s
mãos um abebé (espécie de leque) de metal pr ateado, se melhante
a um espelho. Às veze s, ta mbé m é representada segura ndo uma
espada pequena e um abebé.
O abebé apresenta no centro um recorte, com o desenho de
uma sereia. E m outros modelos, aparece uma lua e uma estr ela. E
ta mbé m u m peixe.
137
No ent ant o, I emanj á est á, pel o m en os depoi s da col oni z ação
port ugues a, m ui t o m ai s próx im a da fi gura d a Vi rgem M ari a , ou
m el hor di z endo, da N ossa Senhora , com o verem os adi ant e.
135
136
137
Idem, pp. 13 e 14.
Idem, p. 3.
Idem, p. 15.
80
4.4. A MORTE
Desde se mpre a ideia da morte, ou o mistér io insondáve l
que a envolve, constitui para o ho me m a sua maior obsessão. Por
se tratar de um mo me nto único, um mo mento em que todos os
anseios e ilusões terminam e todas as luzes se apagam para
se mpre – um mo me nto que escolheu o ho me m, entre todos os
seres vivos, para se r o único a ter consciência desse final e a
aguardá -lo como que m e spera a vinda, irre mediável, de um
pavoroso fantasma –, não ad mira que a morte tenha ta mbé m um
lugar personificado na mitologia popular .
138
No i m a gi nári o do povo al garvi o, a p ersona gem al e gó ri c a da
mor t e aprox i m a -se do conheci do “ cei f ador”, em bo ra sej a sem pre
refe ri da com o um a persona gem f em i ni na: é um esquel e t o ( uma
mi r r a ) com um m ant o pret o com cap uz , dei x ando ver pouco ou
quas e nada da c avei ra que cobr e, e se gu rando um a gadanha, sí m bol o
d a cei fa, porqu e an da cei f ando as vi d as . Num dos nosso s t ex t os,
apare ce com o “ um a vel ha m ui t o vel ha, vest i da de l ut o e com um a
val ent e gad anha na m ão” ( LM O 3).
Enquanto
símbolo,
a
morte
é
o
aspecto
perecível
e
destruidor da existência. Indica o que desapare ce na inelutável
evolução das coisas: está ligada à simbologia da terra. Mas é
ta mbé m a introdutora nos mundos desconhecidos dos Infernos o u
dos Paraísos; o que mo stra a s ua a mb ivalê ncia, assim co mo a d a
terra, e a aproxima, de qualquer modo, dos rituais d e passage m.
Ela é revelação e introdução. […]
Isso
não
impede
que
o
mistério
da
morte
seja
tradicionalme nte se ntido como angustia nte e representado com
traços assustadores. É, levada ao má ximo, mais a resistê ncia à
mudança e a uma forma de existência desconhecida, do que o
medo duma reabsorção no nada.
138
139
139
Alexandre Parafita, O Maravilhosos Popular, p.38.
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 460.
81
E é assi m que é represent ada e en ca rada nas hi st óri as que
conhec em os: t em i da e i nex orável , apes a r de h aver, por v ez e s, quem
pens e
que
pode
e
t ent e
enganá -l a.
Trat a -se
de
um a
at i t ude
cont radi t óri a po r p art e d e qu em a t em e, goz ando -a, ch am ando -l he
“com adr e m ort e” ( ou “D. Mort e”, co m i roni a) , aparent a ndo um
parent es co
com
el a,
cri ando,
assi m ,
prox i m i dade,
par a
t ent ar
convenc er -se d e que , agr adando -l h e, pode “suborná -l a”, fi c ando por
cá m ai s al gum t em p o, e/ ou p ara i l udi r o t error d e que se é i nvadi do
quando el a, fi nal m ent e, ap are ce (nas hi st óri as recol hi das , só um
i ndi ví duo se di spõe a esper á -l a, conv e nci do d a i nut i l i dade de um a
t ent at i va de fu ga ) .
Ao procurar os princípios da vida, as energias puras do
sagrado, que a suste nta m misturando -se, o ser (coisa, organismo,
consciê ncia ou sociedade) aproxima -se me nos dela do que se
afasta. […] Retendo na existê ncia o ser que morre de não morrer,
esta gravidade aparece co mo a réplica exa cta do ascende nte
exercido
pelo
sagrado
sobre
o
profano,
se mpre
tentado
a
renunciar à sua parte de duração em troca de um sobressalto de
glória efémera e dissipadora.
O sagrado é aquilo que dá a vida e que a rouba, é a fonte
donde ela corre, o estuário onde ela se perde. Mas é igualmente
aquilo que em caso algum se poderia possuir plenamente ao
mesmo tempo que ela. A vida é desgaste e perda. Ela obstina -se
em vão em perseverar no seu ser e em recusar -se a qualquer
dispêndio, a fim de me lhor se conservar. A mo rte espreita -a.
Não há artifício que valha. Todos os viventes o sabem ou o
pressentem. Conhecem a escolha que lhes é deixada. Receiam
dar-se, sacrificar-se, conscientes de dilapidarem assim o seu
próprio ser. Mas reter os seus dons, as suas energias e os seus
bens,
usá -los prudente ment e
co m fins tota lme nte
práticos e
interessados, por conseguinte profanos, não salva seja quem for,
no fim, da decrepitude e do túmulo. T udo o que se não conso me,
apodrece. É por esta razão que a verdade permanente do sagrado
reside simultaneamente na fascin ação da chama e no horror da
putrefacção.
140
140
Roger Caillois, ob. cit., pp. 134 e 135.
82
P ara al ém dest a i m a gem d a mort e , há t oda um a sé ri a de si nai s
que a anun ci am :
Quando esta ave nocturna [os solitários] chegava junto dos
mo nte s (habitações) ha via grande agoiro, porque os se us ca ntos
trazia m o a núncio da morte. Era o pássaro azarento de grande
respeito pelo ma u pre ssá gio que deixa va a s fa mília s triste s a
esperar a morte dalgum e nte. Se para mais azar ha via algué m
doente, todos pensava m nesse, e mbora não o dissesse m.
141
Tal com o o pi ar des t a ave, t am b ém o ui var dos c ães sem p re foi
t em i do com o a goi ro ; sobret udo se um c ão ui vasse um a noi t e i nt ei ra,
t oda a gent e di z i a que, em breve, m orreri a al guém da cas a para a
qual el e est i vesse vi rado enquant o ui vav a.
O mau ol hado de quebrant o e os bruxedos , em ca sos ex t remos,
ou si m pl esm ent e dei x ando -os avançar sem os cont rari ar, era m
t am bém consi derad os causa de m ort e. Daí a preo cupa ção ex i st ent e
em
se
prot e ger em ,
usando
os
am ul et os
t radi ci onai s,
de
qu e
fal ar em os a seu t em po.
141
Adérito Fernandes Vaz, in ALGARVE – Reflexos Etnográficos de uma
Região, Faro, 1994, p.52.
83
4 .5 . OS MEDOS OU ALMAS PENADAS
T eme m-se […] acima d e tudo, a decomposição do cadáver, a
ima ge m mais sugestiva da dissolução suprema e inevitável , do
triunfo das e nergia s de destruição que mina m tão perigosa me nte a
existê ncia biológica como a sa úde do mundo e da sociedade. O
próprio morto é um errante, uma alma p enada , enquanto a
sepultura e as exéquias não tiverem feito entrar na sociedade dos
defuntos aq uele que o falecime nto separou da dos vivos. Só passa
a ser potência benéfica uma vez agre gado a uma nova coesão.
142
C onsequênci a do m edo da m ort e, a ssi st i m os , aqui , a um
fenóm eno psi co -l i n guí st i co curi oso, de si gnando -s e a apa ri ção pel a
em oção
causad a
no
espe ct ador,
um
processo
par eci d o
ao
da
hi pál age, revel ador do pavor sent i do por quem vi veu sem el hant e
ex peri ênci a.
Em bora al guns a ut o res di st i ngam medos de espí ri t os (com o é o
cas o n’ O L i vro de Al port el ) e, de fact o, ex i st am al guns fenóm enos
as s ust adores s em q ual quer r el aç ão ap a rent e com as al mas penadas
(com o o gat o pr et o, at i rado da fal ési a , em Bur gau, ou o c ã o gr ande
pret o que ap a re ce e m S . Br ás de Al por t el , ou m esm o, ai n da nest a
re gi ão, a j oei ra de f ogo “em corri d a ver t i gi nosa e gr ande su ssurro” ),
a ver dade é qu e os doi s “con cei t os” e st ão associ ados, t al vez por
ex i s t i r a crença de que, de al gum m odo, aquel es fenóm e nos que
fi cam p or ex pl i car se devem t am bém à s al m as do out ro m undo. Ora,
com o as al m as qu e “andam pe nando”, s egundo a c ren ça po pul ar, são
as que ai nda não ent rar am no P araí s o, as do P urgat óri o, ex i st e
qual quer coi sa d e, s e não dem oní aco, p e l o m enos pouco di vi no, m au
e as s ust ador, ent re e l es.
S obre est es en cont r os com espí ri t os , e i s a cr ença qu e At aí de
Ol i vei ra r e gi st ou e m Al vor, assi m com o o pro cedi m ent o d e vi do, por
part e da p essoa abo r dada:
142
Roger Caillois, ob. cit., pp. 55 e 56.
84
É crença geral que as almas vêem do outro mundo, e
apparecem
a
certas
pessoas,
pedindo-lhes
que
cumpram
promessas, que ella s não cumprira m, qua ndo no mundo vivia m.
Sobre este ponto não há duas opiniões diversas; e contam -se
milhares de acontecimentos, de alma s apparecidas e que, depois
de cumpridas as pro me ssas, desaparece m. É neces sário – dize m –
que o individuo a que m a alma appareceu, requeira , dizendo:
– Em no me de Deus dize o que de mim queres.
143
A ori gem dest a cr ença nas al m as do s defunt os, m ovendo -se
num a “re al i dade pa r al el a”, r em ont a, pel o m enos , aos C el t as :
A maior das suas festas [dos Celtas], Samain, que tinha
lugar na véspera do nosso 31 de Outubro, celebrava a criação do
mundo, quando o Ca os se apagou perante a Orde m. Período
aterrorizador,
quando
os
espíritos
dos
mortos
voltam
para
asso mbrar a T erra, a meno s que se l he s ofe reça m sacrifíc ios, e
que a religião cristã simp lesme nte deslocou um dia para celebrar,
a 2 de Novembro, o Dia de Finados. Os Celtas acreditavam assim
nos espíritos dos morto s, isto é, na sobrevivência da alma.
144
Quando e st es enco nt ros ocorr em à n oi t e (t em os rel at os de
apari çõ es dest e t i po m esm o durant e o di a, em bora s ej am si t uações
m ai s raras) , é sem pr e ent r e as 23h30 e a m ei a-noi t e, e quase sem pre
em cruz am ent os ou ent roncam ent os, o u sej a, encruzi l hadas , o que
prova a i nfl uên ci a, ai nda, dos Lusi t an os:
Acredita ndo na vida alé m -túmulo, [os Lusitanos] crema va m
os corpos guardando as cinzas religiosamente, presumindo que
“nas noites longas e tristes, em que as aves agourentas piavam
nos bosques sagrados, as alma s dos se us a nte passados va guea va m
pelas
encruzilhadas
dos
ca minhos
abertos
no
mato,
na
confluência dos rios, nas florestas, onde o choro das árvores, o
cântico
majestoso
da
folhagem,
a
presença
misteriosa
dos
143
Ataíde Oliveira, A Monografia de Alvor, Faro, Algarve em Foco
Editora, 3ª ed., 1993, p. 213.
144
Gerald Messadié, História do Diabo, da Antiguidade à Época
Contemporânea, Mem-Martins, Publicações Europa-América, 2001,
Biblioteca das Ideias – estudos e documentos, p.148.
85
espíritos infundia m respeito e, às vezes, terror”, como nos diz
Veiga Ferreira.
145
E nov am ent e o pr om ont óri o S acro aparec e, com o l ocal de
com uni caç ão com o m undo dos m ort os, por ex cel ênci a:
E r e c o r d e m o s , c o m o B a l l e s t e r , n o a r t i g o c i t a d o [ 146] , a
correspondência da geografia com crenças e mitos das religiões
antigas e essa mitologia sobre os co nfins do Ocidente, as finis
terræ, as terras onde o Sol se põe e a sua conotação com o reino
dos mortos. Reino mítico para onde partia m para a eternidade os
antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais
atribuíam a sua própria existência.
147
E, m ai s um a vez , a própri a t radi ção n ão nos dei x a i gnor a r as
novas
descobert as
que
nos
obri gam
a
l i gar,
por
ex em pl o,
prom ont óri o S acro a os cul t os ant i gos da s pedras :
E Estrabão, levando -nos de novo para o me smo universo
mítico [do rio do esquecimento], ac rescenta que, neste ponto
extre mo do Ocide nte, «não é per mitido ofere cer sacrifício s ne m
aí pernoitar, pois dizem que os deuses os ocupam àquelas horas.
Os que o vão visitar pernoita m numa aldeia próxima, e depois, de
dia, entra m ali leva ndo água, já que o lugar nã o o tem». Se guindo
Arte midoro, autor anterior a Estrabão meio século, diz ainda
«q ue não se vê ne nhum santuário de Hérc ule s […] ne m altar, ou
dele ou de algum outro deus, mas que em muitos sítios há grupos
de três e quatro pedras, que são pelos vi sitantes voltadas, em
virtude de um costume tradicional, e deslocadas, depois de eles
fazere m libações ».
148
145
Victor Mendanha, História Misteriosa de Portugal, Lisboa, Editora
Pergaminho, 3ª ed., 1997, p. 32.
146
X. Ballester, “Sobre el etnónimo de los gálatas (y de los celtas)”,
artigo citado por Gabriela Morais anteriormente, na obra em estudo.
147
Gabriela Morais, ob. cit., p. 36.
148
Idem, p. 37.
86
o
Ora, o própri o J osé Lei t e d e Vascon ce l l os rel at a, após a sua
des l ocaç ão a S a gr e s, onde r ecol heu du as si t uações l i gadas a est es
m ont í cul os de pedra s :
[…] No extre mo do Ca bo, perto do pharol e das rui na s do
conve nto de S. Vicente , ha varios monti culos de pequenas pedras,
que o povo cha ma mole dros, e melédros, i. é, «moledos », dizendo
m e s m o « u m m o l e d r o d e p e d r a s ». [ … ] 149
Não podem os, nest e cont ex t o, de ix ar de ci t ar O L i vro de
Al port el , quando Est anco Louro, depoi s de descrever os vár i os t i pos
de mêdos que apoqu ent am os nat urai s d est a z ona, e de n arr ar al guns
epi s ódi os at est ados por t est em unhas, co ncl ui o segui nt e:
Co mo se vê, os mêdos alportelenses, po uco ou nada difere m
dos
deuses
habitavam
maus
dos
também,
te mpos
em
montes
pagãos,
e
que,
fontes,
como
nas
os
árvores,
bons,
nos
ca minhos, nos regatos, nas cearas, etc., uns com mais no meada
que outros.
150
Mas t am bém à cr e nça nas al m as dos m ort os est á l i g ad o o
i ns uspei t ado e, ap ar ent em ent e, i noc ent e cost um e de p edi r u m desej o
ao ver um a est rel a c adent e:
Une superstition três répandue, dont il a déjà été donné
quelques e xe mp les, associe les météor es ou les étoiles fila ntes
aux âmes des morts. On les prend souvent pour les esprits d es
défunts e n route pour l’autre mo nde.
[…]
Dans
l’Antiquité
classique
régnait
la
cro ya nce
populaire que tout être humain avait son étoile dans le ciel: elle
brillait d’un vif ou d’un furtif éclat suivant sa bonne ou sa
149
José Leite de Vasconcellos, RELIGIÕES DA LUSITÂNIA na parte que
principalmente se refere a Portugal , Lisboa, Imprensa Nacional, 1913
(reimpressão fac-similada da 1ª ed., Vila da Maia, 1981) , vol. II, p.
205.
150
Estanco Louro, O Livro de Alportel – Monografia de uma Freguesia
Rural – Concelho, São Brás de Alportel, reedição da obra original pela
Câmara Municipal de S. Brás de Alpportel, 1986, p. 377.
87
mauvaise fortune, et tombait sous for me de météore quand il
mo urait.
On
rencontre
communément,
aujourd´hui
encore,
des
superstitions de ce genre en Europe. […] A son apparition, on
doit, dit-on, faire le signe de la croix et prier; ou bien, si l’on
formule un vœu pendant la chute de l’étoile, on peut être sûr
qu’il sera exaucé.
151
Al ex andre P ara fi t a recol heu, em Tr ás -o s -Mont es, um a ve rt ent e
da cren ça, s em el han t e à que co rre t am bé m no Al ga rve:
O povo rural, na sua perma nente inquietaç ão perante o
mistério da morte, acredita que a alma dos que morre m, após uma
existência arredia das convenções divinas, tem assegurado um de
dois lugares no “o utro mundo”, escolhidos co nsoante a dime nsão
da sua culpa: o Infe rno ou o Purgatório. E se o primeiro
representa um “castigo ete rno” e “se m re médio”, o segundo pode
constituir -se co mo lugar transitório, sendo permitido que as
almas, após um período de purgação das suas falta s, acabe m por
obter també m um luga r no Céu. Se gundo a tradição popular, as
almas nesta s circunstâ ncias volta m a este mundo a penar, e m
busca de auxílios para a resolução dos male s que causara m e m
vida.
152
No ent ant o, ex i st e t am bém , em bora não haj a re gi st o s no
Al ga rve, o caso da dama pé -cabra, que (pel o m enos na versão de
Al ex andre He rcul a no) não é um a al m a à espe r a de c um pri r o
purgat óri o, m as do própri o i nferno, d aí t al vez o form at o dos pés,
i guai s ao da i m a ge m t radi ci onal do pr ópri o Di abo , com o verem os
adi ant e. P el o aspe ct o hum ano (pel o m e nos em part e do cor po), pel a
151
James George Frazer, ob. cit., pp. 60 e 61: “Uma superstição muito
espalhada, de que já foram dados vários exemplos, associa os meteoros
ou meteoritos incandescentes às almas dos mortos. São tomados,
frequentemente, pelos espíritos dos defuntos a caminho do outro mundo.
[…] Na Antiguidade clássica reinava a crença popular de que todo o ser
humano tinha a sua estrela no céu; ela tinha um brilho vivo ou furtivo
de acordo com a sua boa ou má sorte, e caía sob a forma de meteoro
quando ele morria. Encontram-se comummente, hoje ainda, superstições
deste género na Europa. À sua a parição, diz-se que se deve fazer o Sinal
da Cruz e rezar; ou então, se formularmos um voto durante a queda da
estrela, podemos ter a certeza de que será atendido.” (Tradução nossa).
152
Aleandre Parafita, O Maravilhoso Popular, p. 18.
88
bel ez a e p el a at i t ude sedut ora, pel o p ac t o co m o hum ano, t a m bém se
aprox i m a da moura encant ada , da ser ei a e de Mel usi na , com o j á
refe ri m os.
A form a m ai s e fi c az e, por i sso, m ai s usual para esconj urar
es t as cri at uras e ra rez ando o “cr edo e m cruz ” ( com o a co nt ece em
E LAP / M
7 ),
que
consi st i a
em
r ez ar
o
“C r edo”,
faz endo
cons t ant em ent e o “S i nal da C ruz ”, at é ac abar a o ra ção.
Um caso fl a grant e de al m a que and a penando é, na r egi ão
al garvi a , nos con ce l hos de La go a , d e S i l ves e de Mon chi que , m ai s
concret am ent e na z o na de Odel ouc a, o d e duas das ve rsões da Z o rra
Ber r adei ra , que di z em t er si do um a m ulher m ui t o m á, em vida, um a,
e a out ra, um homem que t ent ou roubar um a porç ão de t erreno a
out ro (a t e rcei r a v ersão r el aci on a est a ent i dade com um a m oura
encant ad a, com o adi ant e ver em os).
Di z G l ó r i a M a r r e i r o s :
Ana Maria Baiona Carvalho, de Monchique, senhora que
se m medo, exerceu o magistério primário em Posto de Ensino,
pela serra dentro, fala -nos do receio que os alunos adultos que
frequentavam a
escola
à
noite,
manifestavam dos
« m e d o s »,
recusando -se a ficar mai s te mpo na s aula s para evitar a passage m
e m certas encr uzilhadas perto da meia -noite.
Daquilo que nos contou, no seu falar sereno e doce, concluímos:
«O s medos» sur ge m como no me ge nérico que designa tudo o
que «aparece », seja impre ssio nando a visã o, a audi ção ou a
sensibilidade
cutânea,
produzindo
no
indivíduo
atingido
a
sensação de fenó me no extraordinário.
« A s a l m a s d o o u t r o m u n d o » s ã o c o n s i d e r a d a s «o s m e d o s »
mais
inofensivos.
Ligadas
ao
mistério
da
morte,
provocam
arrepios, cabelos em pé, medo afinal, e m funç ão do desconhecido
e d o «r e s p e i t o » e n ã o p r o p r i a m e n t e d o r e c e i o d o m a l q u e d e l a s
advenha. Pelo contrário, é sabido que «as alma s do outro mundo »
«parece m»
sob
vários
aspectos
e
for ma s
para
pediremo
paga me nto de prome ssa s ou a reposição da verdade sobre os mais
variados assuntos. Encontram-se em situação de fragilidade,
necessitam ainda do auxílio dos vivos para o seu sossego final.
89
Os outros «medos » sã o mais te midos, porque bruxedos ou
feitiçarias.
153
Di z , ai nda, Al ex andre P ara fi t a, que na “re gi ão t r ans m ont an a é
m ui t o fort e a c ren ça d e qu e as al m as daqu el es qu e m orreram
dei x ando com prom isso (sobret udo dí vidas) por cum pri r, vol t am a
es t e m undo a ap el ar a al gum fam i l i ar o u am i go p ara qu e l h es dêem
cum pri m ent o”.
154
Ac abám os de v er qu e n o m esm o se a cre di t a na
re gi ão al garvi a, m a s acr esc ent arí am os que n ão é obri gat óri o que
peçam aj uda, por vez es, são as própri as al m as que vê m acaba r
t rabal hos dei x ados a m ei o, com o é o c aso da l enda que re col hem os
em P ort i m ão, m as q ue t am bém corr e em Monchi que, d esde há c erc a
d e oi t ent a anos, se m el hant e à que ex ist e e é conh eci da e m Li sboa
(ao que p are ce, co r re pel o paí s i nt ei ro ), j á re col hi da e p assada a
es cri t o, m as num a v ersão l i gei ram ent e d i ferent e: a cost urei r i nha .
Quando a r ecol hem os, di sseram -nos qu e, de t al m odo o ba rul ho
ouvi do suge ri a a m áqui na de cost ura , que pesso as habi t ual m ent e
cépt i cas, qu e não acredi t am em absol ut am ent e m ai s nad a “dest as
coi s as”, a fi rm am t er ouvi do a cost ur ei ri nha . Ao que p arec e, há
al guns pou cos anos que a cost urei ri nha dei x ou de ser ouvi da nest es
doi s concel hos, di z endo as pessoas qu e el a j á a cabou o t rab al ho que
t i nha vi ndo t erm i nar .
Gl óri a Marr ei ros si n t et i z a:
Luzes,
suspiros,
sopros,
música,
vultos
brancos
são
«medos » identificados com «almas do outro mundo ».
Estrondos, uivos, patadas, murros,
labaredas, guinchos,
vultos negros, sapos de olhos cosidos, «mirras», «rafolhões de
c a b e l o s », s ã o s i n a i s d e b r u x e d o o u f e i t i ç a r i a .
P ara al ém dos enc ont ros com est es s eres nas encruz i l ha das,
recol hem os
153
154
al gum as
“l endas
u rban as”,
nom ead am ent e,
cas as
Glória Marreiros, ob. cit., pp. 96 e 97.
Ibidem.
90
as s ombr adas , ou ca sos de pessoas que afi rm am t e r sofri d o c om o
s eu cont act o.
S egundo A d é r i t o F e r n a n d e s V a z :
Os medos ia m mais pa ra o aparecimento de a lmas pe nadas,
que nas próprias casas à meia noite faziam barulhos e faziam
dançar as coisas sem atacarem as pess oas. Casa por alugar num
povo marítimo que tivesse fa ma de medos ningué m a aluga va e
fica va abandonada. Dizia m que estava asso mbr ada.
155
Veri fi c am os, assi m , que as desi gna çõe s não são cons ensuai s,
m as t am bém não a ndam m ui t o l onge um as das out ras: a l mas do
out r o
mundo ,
bruxedos
ou
f ei t i çari as ,
medos
é
t udo
o
que,
i nex pl i cavel m ent e, provoca o m edo.
155
Adérito Fernandes Vaz, ob. cit., p.51.
91
4 .6 . AS BRUXAS OU FEITICEIRAS
A diferença entre bruxas e feiticeiras não é pacífica e,
sobretudo, não é unive rsal. Aq uilo a que uns cha ma m «b ruxa »,
cha ma m
outros
sobreposição
«feiticeira »
de
características da
e
há
características
outra.
No
uma
de
entanto,
indefinição
ou
uma
em
e
um modo
de
uma
relação
às
geral,
concebe -se a figura da bruxa co mo superior à feiticeira na sua
malvadez,
nos
conhe c ime ntos
privilegiada com o Diabo.
que
possui
e
na
sua
relação
156
Tal vez por i sso, na l i ngua gem popul a r , se cham e bru xa e não
f ei t i cei ra a um a m ul her consi de rad a m ui t o m á, m as a verd ad e é qu e,
um pouco ao cont r ári o do qu e suc ede nout ras r e gi ões do paí s, o
al garvi o pare ce não faz er gr ande di st i nção , pel o m enos na re gi ão j á
ci t ada, ent re La gos e S agres, e t am bé m na regi ão de P o rt i m ão e
Al vor ( se gundo a s recol ha s de Mar gari da Ten gar ri nha e de At aí de
Ol i vei ra ), a pl i cando as duas desi gn açõe s ao m esm o t i po de m ul h er:
com ou sem o dom de adi vi nhaç ão, m as com a “a rt e” (con c ei t o que
i ncl ui o conheci m en t o e a c apaci d ade) p ara f az er f ei t i ços vá ri os – de
encant am ent os a po ções m á gi cas – e o poder de vo ar ( ge ral m ent e
num a vassoura ).
No ent ant o, At aí de Ol i vei ra re col heu e s sa di st i nção em Al goz :
Falando da s bruxas, diz o ignorante ca mpo nez:
«As bruxas entram nas casas pelo buraco da fechadura, em
noite alta, e sugam o sangue das crianças, reduzindo -as a
esqueletos. Pelas noite s so mbria s re u ne m-se nas e ncr usilhadas e
depois de prestar o preito da homena ge m ao bode preto, poem-se
a gritar sinistramente; outras vezes entreteem -se a desnortear o
aldeão que anda toda a noite perdido.»
156
Maria Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras , p. 23.
92
Falando da feiticeira o aldeão distingue -a da bruxa: aquella
apenas está iniciada nas praticas dos quebrantos, no deitar
cartas, e nas benzeduras.
157
E t am bém Gl óri a M arrei ros di z o se gui nt e:
As bruxas actuaria m a partir de si mesmas c om «arte s» da
sua própria natureza ou fado, podendo nada lucrar com os actos
praticados.
A feitiçaria, pelo contrá rio, tem carga mercenária e por isso
mesmo ainda ma is te mida. Usa esconjuros e substâncias do corpo
da vítima ou que transportadas por ela são susceptíveis de alterar
comporta mentos e acontecime ntos consigo rela cionados.
A feitiçaria pode ser praticada por qualquer pessoa ma l
for mada que mo vida por ódio ou ma us instinto s queira prejudicar
algué m, servindo -se d e «coisa s ruins». Essa s pessoas faze m o
mal mas não altera m a parente me nte o se u viver quotidiano, por
tal motivo são difíceis de identificar…
158
Al gun s el em ent os sã o -l he associ ados: o cal dei rão, a v assour a, o
gat o p ret o e/ ou o s a po e/ ou o corvo – p or um l ado; o ri so f renét i co,
o ol har profundo e um a at i t ude di fere nt e da de out ras m ul heres –
por out ro.
O
cal d ei rão,
sí m b ol o
fem i ni no
asso ci ado
ao
vent r e
e
a
vas s oura, sí m bol o fál i co – am bos rel a ci onados com os ri t ua i s de
fert i l i dade. O gat o pret o par ece (pel o m enos em al guns ca sos ou em
al gum as re gi ões) re sul t ar de um possí vel pact o com o Di abo (assi m
com o qual quer out r o ani m al pret o, com o é o caso do corvo , e ai nda
o s apo ):
As bruxas têm […] numa segunda etapa, pacto com o Diabo
(e m consequê ncia do qual passa m a «adoptar » sapos e ga tos,
muitas vezes e ncarnaç ões do Diabo e a receber a «marca do
D i a b o », g e r a l m e n t e n o o l h o o u o m b r o e s q u e r d o ) . E s s e p a c t o q u e ,
como q ualquer pacto, pressupões obrigações, te m ta mbé m direitos
157
158
Ataíde Oliveira, Monografia do Algoz, p. 205.
Glória Marreiros, ob. cit., p. 97.
93
e regalias, entre eles os de se poderem transformar no que
quiserem, o de poderem voar, ou o terem acesso a poderes e
conhecimentos superiores.
As bruxa s são, muitas vezes, assimiladas a animai s pretos
tais co mo gatos pretos, galos pretos, burros escuros, carochas
(aliás, os chapéus que as bruxas usa va m obrigatoria me nte, na
época da Inquisição cha ma va m -se precisa me nte «carochos » ou
«c arochas ») e mosca s […].
159
O ri so frenét i co e as gar gal hadas c onst i t uem um com port am ent o
pouco re com endáv e l num a senhora, a o m esm o t em po que t êm
ex pl í ci t a um a provocaç ão a quem as mar gi nal i z a e, i m pl í ci t a, um a
aut om ar gi nal i z ação. O ol ha r pro fundo, ou si m pl esm ent e d i ferent e,
capaz de “ at i rar ” ou “t i rar” mau ol hado e d e adi vi nha ções.
As feiticeiras tê m, como se pode ver, poderes te míveis e
justa me nte te midos: junta m e a fasta m a ma ntes, torna m um ho me m
impotente,
de sma nc ha m
ca sa me ntos,
fazem
definhar
o
mais
robusto, tornam estéreis as mulheres, secam o leite ao gado e
fazem com que as vacas deit em sangue.
É sabido que o que uma feiticeira faz, só uma fe iticeira
pode
desfazer,
e
esse
jogo
de
forças
e
poderes
f e i t i c e i r a s e m f e i t i c e i r a s « d o b e m » e «d o m a l » .
divide
as
160
Não de vem se r , po r conse gui nt e , confu ndi das , poi s est e o ut ro
t i po de m ul heres, “ vi rt uosa”, com m ai s ou m enos vi rt udes, cap az es
de t i rar dor es m usc ul ares ou ósseas, ap l i cando ungu ent os e faz endo
benz eduras, ou si m pl esm ent e conhe ced oras da r ez a cont ra o “m au
ol hado” e out ras, t am bém se gundo M a rgari da Ten ga rri nha , na sua
recol ha , s ão consi de radas bruxas boas :
Não só de bruxas malévolas me fa lara m, mas ta mbé m de
bruxas benévolas, que curam gente e animais, conhecem boas
ervas, mez inhas, be nze duras e ta mbé m sabe m relacionar as fa ses
da lua com mo me ntos propícios pa ra decisões importa ntes na vida
das pessoas, para os trabalhos agrícolas, e a sua influência sobre
159
160
Maria Teresa Meireles, ob. cit., p. 30.
Idem, p. 44.
94
animais e plantas, ensinamentos que vêm de muito longe no
te mpo e que, aliás, no caso da lua, são do conhecimento geral dos
ca mponese s.
161
Quase o m esm o di z At aí de Ol i vei ra sobr e o povo de Al vor:
[…] Para elles há bruxas boas, (e estas curam muitas
doenças,) e bruxas más, que sugam de noite o sangue ás crianças,
e causa m gra ndes ma les á humanidade.
162
Gl óri a Marr ei ros f az a se gui nt e di st i nçã o:
As curandeiras ou curandeiros, que são agentes de magia
positiva, suscita m «re speito » mas não origina m medo porque
utilizam palavras benéficas ao reequilíbrio do que foi desviado
da nor malidade por forças ne gativas atravé s de más palavras o u
acções, quer se trate de res tituir o marido à mulher, o cordão de
oiro roubado, a saúde ao doente, a água à nascente, sem, em
contrapartida, exercer vinga nça ou castigo no causador do mal.
163
Di z o nosso i nform ant e (e forne ced or das nossas “l endas
i nédi t as) , proveni en t e do con cel ho d e Vi l a do Bi spo, qu e , “se os
s et e descend ent es segui dos de cad a cas al forem rapari gas, a sét i m a
deverá cham a r -se E va, poi s, caso cont r ári o, vi rá a se r «m ul her de
vi rt udes », i st o é, f ei t i cei ra”.
De a cordo com o q ue cont ar am a At aí de Ol i vei ra em Al goz ,
“[ S e um a m ul her t i ver set e fi l hos a ei t o, um será l obi shom em ] , se
fi l has, um a será br ux a, e para que est a não sej a brux a, deverá sua
i rm ã m ai s vel ha ser sua m adri nha do bat i sm o.”
164
161
Margarida Tengarrinha, Da Memória do Povo: recolha da literatura
popular de tradição oral do concelho de Portimão , Lisboa, ed. Colibri,
1999, pp. 23 e 24.
162
Ataíde Oliveira, A Monografia de Alvor, Faro, Algarve em Foco
Editora, 3ª ed., 1993, p. 212.
163
Glória Marreiros, ob. cit., p. 97.
164
Ataíde Oliveira, Monografia do Algoz, pp. 204 e 205.
95
Tam bém Mar ga ri da Tengarri nha (d o concel ho de P ort i m ão)
corrobo r a est as i nfo rm aç ões, ao re feri r - se ao fa ct o, t am bém por nós
veri fi cado, d a quase t ot al ausênci a de br uxos :
Benévolas ou malévolas, são as mulheres e não os homens
que aparecem nos relatos que recolhi, com os poderes e a
sabedoria para curar ou provocar doenças, deitar ma u olhado ou
libertar dele, adivinhar o passado ou augurar o futuro.
Só num caso é que me falara m num bruxo e são poucas as
histórias de lobiso me ns. […] Mas e m geral o s ho me ns aparece m
com funções menos mágicas e mais concreta s e práticas, co mo
ou
curandeiros
“endireitas”.
Entretanto,
não
é
excluída
a
existê ncia de bruxos, segundo a crença de que, se a uma mãe
nascerem
sete
filhos
seguidos
o
último
está
sujeito
a
ser
lobiso me m ou bruxo, e no caso de sete filhas seguidas a última
terá poderes de bruxa ou vide nte.
165
Est as cap aci dad es não são for çosam e nt e i nat as, pod em ser
“pas sadas ”, m as qu ando são “he redi t ár i as”, passam sem pr e de m ãe
para fi l ha, um hom e m não pode t ransm i t i -l as:
Note-se que não é o pai que m deter mina este s poderes, mas
sim
a
mãe,
sendo
portanto
transmitidas
por
descendência
materna, o que re mete tal crença para épocas matriarcais.
166
As cri anças, pel a sua fra gi l i dade, est ão m ai s suj ei t as a doenças
e out ros m al es e, t al vez por serem i ndef esas, m as t am bém por serem
um a form a fáci l de at i ngi r os seus progeni t ores, na t radi ção
apare cem com o ví t i m as prefe ren ci ai s de brux as (e de cobr as ).
E m vários relatos que recolhi as crianças aparecem co mo
principais
vítimas
das
bruxas,
confirmando
uma
velha
superstição, muito espalhada, que aliás leva a protegê -las com
a muletos vários.
165
166
167
167
Margarida Tengarrinha, ob. cit., p.22.
Ibidem.
Idem, p. 23.
96
Ai nda hoj e, no Al ga rve, quando um a cri ança n asce, é com u m a
ofert a dos pad ri nhos ser um conj unt o d e am ul et os em ouro , de qu e
faz em part e um de do a faz e r um a f i g a , um a m ei a -l ua e m quart o
cr es cent e , um pent a grama , um corno e um coração .
As bruxas ou f ei t i ce i ras encont ram -se, ai nda, em al t ur as c e rt as
do m ês, no m ei o dos cam pos, ge ral m ent e em z onas de encruz i l hadas,
para os seus bai l es noct urnos, em que cant am , danç am e r i em e de
que ni ngu ém ousa a prox i m ar -se.
Dos bailes de bruxas nas encruzilhadas recolhi relatos na
parte
rural
do
concelho
de
Portimão.
As
narrativas,
se
demo nstra m algum te mor, ma ntê m ao mesmo te mpo a veia jocosa
que caracteriza a personalidade do camponê s algarvio.
168
Di z -se que esses encont ros se dão aos sábados e em noi t es de
l ua chei a ou l ua nov a.
Segundo
Mircea
Eliade,
“As
correspondências
e
as
identificações descobertas entre os diferentes planos cósmicos
sub metidos aos ritmo s lunares – chuva, vegetação, fec undidade
animal e lunar, espíritos dos mortos
– estão presentes nas
religiões mais arcaicas”. De facto, os maiores especialistas na
matéria considera m que o culto da lua é muito anterior ao do sol.
Segundo aquele a utor, e m alguma s religiões p rimitivas “ a
festa da lua nova era exclusivamente reservada às mu lheres, dado
que a lua é, ao mesmo te mpo, mãe pro missora da fertilidade dos
animais e das plantas, da criação periódica, da vida inesgotável
e, ao mesmo te mpo, asilo dos fantasma s”.
169
Em t odo o Al garv e (provavel m ent e, em t odo o paí s), era
t radi ção, no di a da espi ga, “i r ao c am po l evar o farn el e p assar l á a
t arde t raz endo um ram o de ci n co espi gas d e t ri go, rom a nz ei ra e
168
Ibidem.
Mircea Eliade, Tratado de História das Religiões, Porto, 1992, apud
Margarida Tengarrinha, ob. cit., p. 24.
169
97
s i l vas. As espi gas, para t e r pão t odo o ano, a rom anz ei r a, para t e r
di nhei ro, e as si l vas , para a fu gent a r as b rux as.”
170
S obre os pode res d as bruxas e os seu s bruxedos , di z i a -s e o
s egui nt e:
A bruxa ta mbé m metia respeito ao mo nta nheiro, quando
andava nas noites escuras nas alfarrobeiras bastante ramudas,
onde só os mochos e os solitários (aves) canta va m. […]
As bruxas, além do mal que podia m fazer, tinham poderes
sobrenaturais que conduziam as famílias para o bem ou para o
mal. Pessoa que a ndasse e mbruxada não gover nava vida, era uma
pessoa
doente.
O
bruxedo
era
uma
espécie
de
contágio
transmitido por um simp les objecto. Bastava a bruxa faze r as
sua s rezas do mal sobre uma peça de vestuá rio, deitar sobre o
telhado da casa um tr apo ou baraço queima do. Para todo esse
poder
desaparecer
tinha
que
haver
certas
práticas
bastante
difíceis, […].
As bruxas, além de andarem nas alfarrobeiras escuras, o nde
deixava m almo fadas com a lfinete s ou sapos com cabeça s picadas,
ta mbé m a ndava m errantes pelos cruzeiros, lugare s assinalados
com uma cruz de pedra, onde tinha morrido algué m.
No campo para os ma les da bruxa ou os ma us olhados de
quebranto não entrarem n os a nima is fazia m uma cruz de cal
branca nas paredes.
171
E t al vez não sej a d escabi do r efe ri r qu e, em al guns cont o s de
M i randa, as b rux as t êm a c apaci dad e de se m et am orf osearem ,
em bora r aram ent e, e m serpent e.
172
Encontrar rolos de cabelos de mulher nas encr uzilhadas não
é «um medo » poré m sendo sina l de fe itiços «mal que algué m
fez »,
gera
horror
pela
ligação
em triângulo
feitiço -mulher-
170
Adérito Fernandes Vaz, ob. cit., p.52 (Este ramo era pendurado atrás
da porta da rua e era trocado por outro novo, todos os anos.).
171
Idem, p.51.
172
António Bárbolo Alves, Cuntas de bruxas – Contos de bruxas,
Lisboa, Apenas Livros Lda., 2ª ed., 2004, p. 28.
98
cabelo, simboliza ndo este, a corda com a qual se amarra que m
não deseja ser amarrado.
173
Nem sem pre é pre ci so evi dênci a dos s eus poderes: qual quer
m ul her que vi va so z i nha, vi úva ou nã o, à saí da de um povoado,
l evant a, pel o m eno s, a suspei t a (“di z em que é um a bruxa ”); se,
ai nda por ci m a, t i ver um gat o, d e pre f erênci a, pr et o, é c e rt o que é
um a fei t i cei ra di ssi m ul ada.
[…] Para o c amponês a característica da bruxa era a mulher
bastante autoritária, de barba e bigode, com olhar felino.
Sendo o homem o ser forte, tinha a mulher através do
personage m da bruxa o seu poderio, marca ndo desde se mpre uma
luta pela igualdade.
174
Num a soci eda d e e m que o conhe ci m e nt o não era ac essí vel a
t odos e, m ui t o m enos, às m ul heres
175
, não havi a m ui t as al t ern at i vas:
ou s e vi vi a de acor do com a m ai ori a, a com odando -se à con di ção de
es posa e m ã e de fa m í l i a e em t udo obedec endo , pri m ei ro ao pai ,
depoi s ao m ari d o
176
, ou, por qual quer raz ão (que podi a i r da
orfandad e pre coc e à vi uvez , ou m esm o por opção) adopt ava -se um
com port am ent o di f erent e, qu e podi a ser ap enas
a pr ocura d o
conheci m ent o do po der cu rat i vo das pl a nt as, e assum i a -s e u m cert o
di s t anci am ent o do rest o da com uni da de, que, de a cord o com a
at i t ude escol hi da, r esul t ava em resp ei t o ou em m edo , ou, em casos
ex t rem os, em gal hofa e p erse gui ções v ári as, cuj o ex em pl o m áx i m o
foi dado pel a Inqui s i ção.
173
Glória Marreiros, ob. cit., p. 97.
Adérito Fernandes Vaz, ob. cit., p.51.
175
Recorde-se, a este respeito, que, no século XVIII, um autor francês
afirmava que “a mulher já era suficientemente inteligente quando sabia
distinguir entre o colete e a casaca do marido”.
176
Recorde-se, também, que, já em pleno século XX, uma mulher casada
só podia viajar para fora do país com uma autorização escrita do
marido.
174
99
4 .7 .O DIABO E AS FORÇAS DO MAL
Paralelame nte, no outro pó lo do sagrado, o demo níaco, a
quem couberam em sorte os aspectos terríveis e perigosos,
suscita por sua vez sentimentos opostos de recuo e de interesse,
a mbos igualme nte irra cionados. O Diabo, por exe mplo, não é
apenas aquele que castiga cruelmente os cond enados do Inferno,
é ta mbé m aque le c uja voz te ntadora oferec e ao anacoreta as
doçuras dos bens da terra. Claro que é apenas a fim de o perder, e
o pacto com o de mónio nunca asse gura senão uma fe licidade
passageira, mas co mp reender -se -á que não pode ser de outra
mane ira. Não é meno s notável q ue o torciná rio se apresente ao
mesmo te mpo co mo o sedutor, se preciso for como o consolador:
o roma ntismo, ao exaltar Satanás e Lúcifer, ao parame ntá -lo de
todos os atractivos, não fez mais que dese nvolver se gundo a
lógica própria do sagrado certos ger me s que pertencia m de
direito a estas figuras.
177
Assi st i m os, assi m , a m ai s um dos m ui t os casos em q ue a
rel i gi ão cri st ã se i m pôs às i nfl uênci a s ant eri or es, poi s o s C el t as,
cuj a
pr esenç a
foi
t ão
i m port ant e
nest e
t erri t óri o ,
em bor a
acredi t ass em em d em óni os, com o j á vi m os, não possuí am est a
pers oni fi ca ção do M al .
Assim, não existe Diabo entre os Celtas. […]
Resta saber co mo é que a religião, entre os Celtas, nunca
atingiu esse estádio que se viu entre os Iranianos, onde hab ita
naturalmente
o
Diabo.
A
origem
é
contudo
comum
[indo -
europeia] e quando eles che gara m à E uropa, no terceiro milé nio,
trazia m se m d úvida na sua baga ge m ele me ntos da mesma essência
de pensa me nto que iria servir aos Irania nos para fabricar o seu
Arimânio.
178
No Y açana , o m ai s ant i go l i vro da re l i gi ão pers a, Zoro a st ro
apresent a “doi s espí ri t os gém eos”, o Es pí ri t o do Bem e o E spí ri t o do
177
178
Roger Caillois, ob. cit., p. 38.
Gerald Messadié, ob. cit., p. 155.
100
M al . E no Vendi da d , out ro dos l i vros sagrados d a m esm a rel i gi ão,
Ari m âni o rep resent a um pap el t ão i m p ort ant e com o o de Ai r y a naVaédj a, num a p assa gem qu e t em afi ni da des com o Gén esi s hebreu.
Não repugna, pois, aceitar a hipótese de que as relações dos
Persas com os Hebreus influíssem para avivar nestes a crença no
grande
poder
do
espírito
mau;
todavia,
o
que
parece
mais
confor me co m o papel que o Diabo representa nos livros bíblicos
é a suposição que já fize mos e ne nhum livro contradiz; isto é,
que
na
religião
oficial
o
génio
mau
era
completa mente
subordinado ao do bem, mas na religião popular, muito diferente
da outra porque é acomodada a um nível intelectual inferior, e
por consequênc ia mais imbuída de superstiç ões, nessa vivia a
tradição
do
dualismo
espírito
bom.
E
era,
primitivo,
modificad o
pela
diga mo -lo
assim,
impressiva
tão
vitória
do
esta
tradição, que passou para o cris tianismo, e ainda hoje vive
exacta mente nas me smas condições, isto é, forma ndo parte das
crenças populares, sem a consagração da religião oficial.
179
Mas est a fi gu ra t a m bém evol ui u, em di ferent es esp aços e ao
l ongo dos t em pos e, sobret udo, pel a i nfl uênci a da Igrej a C at ól i ca:
Debido al relato del Paraíso, Satanás se convertió en
ele me nto inte grante de todas las historias sob re la Creació n y el
Mundo, y con motivo del descenso de Cristo a los Infiernos pasó
a for mar parte de las representacione s del Nuevo Testamento ,
especialme nte en los a utos de las se mana s de Pasíon y la Se ma na
Santa. La solida creencia que se tenía en la victoria de Dios y del
Cristianismo hizo que se le adjudicara en tales representaciones
el esteriotipado papel del vencido, con un aire esencialmente
cómico; el má s bello de los angele s se transformó en una figura
fea y de aspecto animal, bajo la que se escondía el burlado e
degradado.
180
179
Delfim de Almeida, “Apontamentos para a vida do Diabo – I”, in O
Ocidente, Lisboa, vol. 4º, 1881 e vol. 7º , 1884, in Fernanda Frazão,
Viagens do Diabo em Portugal , Lisboa, Apenas Livros Lda., 2000, p.
171.
180
Elisabeth Frenzel, Diccionario de Argumentos de la Literatura
Universal, versión espagñola de Carmen Schad de Caneda, Madrid,
101
De f act o, o seu v er dadei ro p apel , i nde pendent em ent e da fi gur a
com que se apr esen t e, é o d e t ent ar a hum ani dade, “re co rrendo a
t odos os ex pedi ent es para conqui st a r as al m as”:
Satanás não vive já apenas no Inferno; aparece na terra para
tentar os mortais, revestindo todas as for mas, desde as ma is
repulsivas
às
mais
atraentes.
Entra
nas
celas
das
freiras,
dissimula-se no hábito de um frade. É o infatigável propagador
do pecado, empenhad o na sua luta for mid ável co m os Cé us,
recorrendo a todos os expedientes para conquistar as alma s.
181
C ont udo, ao cont rár i o do que suced e n out ras re gi ões do p aí s,
es t a di vi ndade , sem pre m al é fi ca, nunc a se apres ent a com as suas
facet as de um a cri at ura t osc a, i m pert i ne nt e e at é en gr açad a (com o é
o caso do t rasgo ou do maf arri co , nom eadam ent e, em Trás -os M ont es), m as sem pre enc arnando o m al m ai or (por vez e s m esm o,
t ransform ado em bo de).
182
Com os seus olhos vesgos, o pé de cabra, o nariz adunco, a
barbicha ruiva, a cauda lanzuda, […]
Sem a nobreza trágica de Satanás, o anjo taciturno e
rebelde, príncipe tenebroso do mal e da hierarquia divina, o
Editorial Gredos, 1976, p. 424: “Devido ao relato do Paraíso, Satanás
converteu-se num elemento integrante de to das as histórias sobre a
Criação e o Mundo, e com o motivo da descida de Cristo aos Infernos
passou a formar parte das representações do Novo Testamento,
especialmente nos autos das semanas da Paixão e na Semana Santa. A
sólida crença que se tinha na vitór ia de Deus e do Cristianismo fez com
que se lhe atribuísse em tais representações o esteriotipado papel do
vencido, com um ar essencialmente cómico; o mais belo dos anjos
transformou-se numa figura feia e de aspecto animal, debaixo da qual se
escondia o enganado e o degradado.” (Tradução nossa) .
181
Fernanda Frazão, Viagens do Diabo em Portugal, Lisb o a , AP E N A S
Livros Lda., 2000, p. 15.
182
O que não impediu uma tradição muito antiga, pelo menos no
Barlavento, que consiste em dar uns nós num fio, quando algum a coisa
anda desaparecida por casa, dizendo que “se está a atar os testículos do
Diabo”, até que o objecto perdido apareça. Outras tradições semelhantes
verificam-se no Sotavento: “Quando uma família desconfiava que
andava enfegada ou embruxada ia prender o diabo e só o soltava quando
se sentisse bem, com o espírito liberto. Igualmente prendi a o diabo
quando perdia um objecto e conservava -no preso até o encontrar. Este
diabo constava duma cruz de cana com os braços iguais e um rab o de
trapo que iam esconder em lugar de segredo e com uma pedra bem
pesada a esmagá-lo.” – Adérito Fernandes Vaz, ob. cit., p.52.
102
Diabo das velhas lendas é um Diabo do país das diabruras,
fa mo so pelas suas pa rtidas hilaria ntes e p elas suas faça nha s
maliciosa s, herói có mico criado em represália ao terror teológico
do Inferno, verdadeira caricatura de Lúcifer, tornado inofensivo
183
pelo ridículo.
J ack Tresi dder apre sent a u m a ex pl i cação para “ as ori gens da
cabra di aból i ca”:
Muito do ambíguo simbolismo da cabra esclarece -se num
contexto sexual: virilidade, luxúria, astúcia e destruição no
macho; fec undidade e zelo com o alimento na fê mea. […]
A virilidade do bode impre ssio n ou o mundo antigo, co mo
demo nstra a sua a ssociação a diversos deuse s sumero -se míticos e
gregos. Forneceria muitas das características físicas de Pã e dos
sátiros. Os bodes são particular me nte activos no Inver no (quando
a fêmea procura o calor), o que pode explicar as imagens de
cabras de palha usadas nos festivais de cereais escandinavos,
realizados
na
quadra
natalícia
–
uma
época
por
vezes
personificada pela cabra. Contudo, a virilidade do bode era
considerada
obscena
pelos
Hebreus.
No
século
V
a.
C.,
o
historiador grego Heródoto registou práticas sexuais bestiais no
culto me ndesia no da cabra, entre os Egípcios. T al facto pode ter
influe nciado o simbolismo cristão da cabra como personificação
da imp ureza e da desprezível luxúria – daí as características
física s caprinas do Diabo medieval, associação reforçada pela
reputação da cabra no sentido da destrutibilidade malic iosa.
[ … ] 184
Os rel at os descrev e m -no com a i m age m t radi ci onal , de pés de
cabra e chi fres (por vez es, com um t ri dent e, com o qual , é sabi do,
em purra as al m as q ue querem fu gi r, pa ra dent ro do gr ande cal dei rão
do i nferno, onde e st ão penando), em b ora r aram ent e se d ei x e ver,
as s um i ndo -se quase sem pre com o a fo rça qu e oper a por det rás de
out ras persona gens que el e m ani pul a, com o um l obi somem , um a
183
Fernanda Frazão, ob. cit., p. 13.
Jack Tresidder, Os Símbolos e o seu significado, Lisboa,
Editorial Estampa, 2000, p. 60.
184
103
al m a penad a, um a m oura en cant ad a , um a brux a ou um a s erp ent e (ou
um a dam a pé -d e- cab ra, nout ras r e gi ões d o paí s).
En
Europa,
Satanás
fue
asimilando
poco
a
poco
las
características de los dioses pagano s destrona dos, y de la mezcla
de ele mentos diversos surgió
el Diablo de la Edad Media. El
argume nto de Sata nás imp licaba no sólo el mo tivo más a mplio del
Diablo o del grupo de Diablos co mo encarnación del mal, sino
que ademá s se refería tambié n al destino del ángel que en el
comienzo de los tie mp os fue degradado y que a partir de este
acontecimiento, llevaba rasgos individuales.
185
O que não impede a sua aproximação do homem comum,
pelo contrário, uma vez que se encontra, embora “disfarçado”,
no meio deles. Pelo que, também com esta figura encontramos
o pacto, a troca, (embora mais frequente nos contos).
Quando
lemos
contos
tradicionais,
muitas
vezes
esquecemo-nos de que estão inseridos numa determinada
cultura, a cultura popular, e que reflectem uma forma de
entender e de enfrentar o mundo que não corresponde à d a
cultura oficial ou dominante. Um dos aspectos que numa
primeira leitura dalgumas das versões resulta mais curioso
é o do jogo (e utilizamos esta palavra muito consciente mente) dos heróis com o Bem e o Mal para conseguirem
sobreviver. Este jogo é impensá vel na óptica da Igreja
Cristã, que propugna como pecado toda aproximação ao
Mal
de
eterna.
que
há
que
redimir-se
para
alcançar
a
vida
186
185
Elisabeth Frenzel, ob. cit., p. 424: “Na Europa, Satanás foi
assimilando pouco a pouco as características dos deuses pagãos
destronados, e da mescla de elementos diversos surgiu o Diabo da Idade
Média. O argumento de Satanás implicava não apenas o motivo mais
amplo do Diabo ou do grupo de Diabos como encarnação do mal, mas
para além disso referia -se também ao destino do anjo que no começo dos
tempos foi degradado e que a partir deste acontecimento tomava
iniciativas individuais.” (Tradução nossa).
186
Laura Badescu e Marta Negro Romero, O conto dos enganos ao
Diabo nos limites da romanidade, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2007, p.
17.
104
Também a associação do Mal com a serpente é bastante
antiga:
A
serpente
antiquíssimo
como
animal
antagonismo
entre
maligno
o
Bem
e
resulta
o
Mal.
do
Já
o
encontramos no mundo oriental e persa muito antes do
mundo cristão. O cristianismo
como
uma
personalidade
seres
diabólicos,
como
maior,
a
herdou o mito do Diabo
e
bruxa,
dele
a
surgiram
serpente
e
outros
outros
animais fantásticos que também são fonte de lendas.
O cristianismo perpetuará, através da identificação da
serpente com o Mal, este tipo de lendas, contribuindo para
difundir o medo da serpente na cultura popular.
187
187
António Bárbolo Alves, ob. cit., p. 28.
105
4 .8 . AS “ SANTAS CA BEÇAS”
Ex i st e , em Al j ez ur , um a l enda (cuj a ve r aci dade é at est ad a, por
es cri t o, pel o P adre Bene fi ci ado F ranci s co Di as C anel l as, em 1713, e
pel o P ri or Encom endado, J oão P edro Dini z Land ei ro, em 1846), que
at ri bui poderes sob renat ur ai s, capaz es de cur ar doen ças, a du as
cavei r as que pe rt e nceram a doi s ho m ens que t am bém em vi da
curavam v ári as m al e i t as a quem del es se aprox i m ava.
Não const a que os hom ens, pai e fi l ho, fossem i nst ruí dos em
ervas m edi ci n ai s, nem em art es m á gi c a s; segundo o P adr e C anel l as,
ant es vi vi am t ão v i rt uos am ent e e t ão de com um a cordo com a
vont ade de Deus, q ue l he t eri am si do concedi dos est es do ns, sendo
i gual m ent e prot e gi d os de t odo o m al , a o pont o de dei x are m de se r
vi s t os quando os el em ent os do S ant o Ofíci o se aprox i m avam para os
l evar, após t e re m si do denunci ados.
Não podem os, assi m , a grupá -l os com os brux os ou fei t i c ei ros
de que j á fal ám os. E t am bém , em bora t al vez se aprox i m assem m ai s
des t es, não pod em os i ncl uí -l os no gru po dos sant os, poi s não são
reconhe ci dos com o t al pel a Igr ej a C at ól i ca.
No ent ant o, a ven e ração das cav ei ras não se afast a m ui t o do
ant i go e conheci d o “cul t o d e c abe ç as”, d e cuj a ori gem cel t a
Gabri el a Mo rai s t am bém nos fal a:
[…] culto das cabeças, no meado igualmente como celta, por
Alinei e Benozzo. Sabe -se, historicamente, que um dos costumes
mais correntes, e ntre os Celtas, era a decapitação. Há exemplos
de decoração arquitectónica celta com incorporação de crânios
nas paredes. Porquê? Talvez por considerarem que era na cabeça
que se situa va a força vital e, ta mbé m, a s qua lida des de corage m
e honra, temas que, aliás, estão bem presentes nos romances de
cavalaria medie val, no meada me nte e ntre os Cavaleiros da Távola
Redonda.
E é ine vitá vel recordarmo s os crâ nios mesolíticos, expostos
no
Museu
Geológico,
em
Lisboa,
a
demonstrar
si nais
de
106
trepanação, mas a que estaria ligado certamente um ritual: e m
redor do orifício, desenha -se um pequeno Sol.
[…]
Este ritual [decapitação] foi, de resto, um costume muito
comum aos povos indo -europeus, já que as cabeças tinham, entre
outros,
o
poder
da
profecia.
Na
tradição
celta
das
ilhas
Britânicas, o deus Bran […] tem igualmente outra lenda onde se
conta que a sua cabeça, sobrevivente 80 anos à decapitação, para
alé m de proteger contra o inimigo, tinha esse dom.
188
A m esm a aut ora dá -nos vári os ex e m pl os dest e cul t o, em
P ort ugal , sendo o m ai s fam oso o da c ab eça d e S . R om ão.
Por outro lado, em Portugal existem, não só esculturas de
crânios, co mo sinais r ituais fúnebres e m que as cabeças era m
propositada mente
separadas
do
resto
do
corpo.
[Gruta
do
Escoural]
[…] No Alentejo, são exe mplares as histórias da cabeça de
S. Romão, depositada na Igreja de São Pedro de Panóias – o
corpo deste santo está na Er mida de S. Ro mã o, mandada edificar
propositada mente para esse mesmo e feito – e a de S. Fabião, e m
Caével.
E s t a s c a b e ç a s , c h a m a d a s « c a b e ç a s d e s a u d a d o r e s », e r a m
nor malme nte enca stoadas e m o uro ou e m pr ata e servia m para
benzer
pessoas
ou
animais,
fazer
adivinhações
e
praticar
mezinha s. A cabeça de S. Ro mão, por exemp lo, era levada, por
leigos, a locais profanos para, através dela, se benzer o gado,
ritual que se manteve até ao séc. XVII.
189
Não cab e nest e t r ab al ho um a anál i se ex aust i va dest e cul t o, m as
não podem os d ei x ar de ref eri r a pol ém i ca ex i st ent e à vol t a do cul t o
da cabe ça d e S . J oão Bapt i st a, supost am ent e prat i cad o pel os
Tem pl ári os, que del e foram a cusados pe l a Inqui si ç ão, at ri bu i ndo -s el hes um a i m ensa l i st a de pr át i cas, con fi rm adas ou não, cons i derada s
188
Gabriela Morais, A Genética e a Teoria da Continuidade Paleolítica ,
p. 42.
189
Idem, pp. 42 e 43.
107
herét i cas pel a Igrej a, i ndependent em en t e da i nt enção com que eram
efect u adas.
Ora, est e é o “nosso ” S . J oão Bapt i st a d o sol st í ci o de Verão , e,
as s i m , encont ram os m ai s um a rel ação obscura ent re as ent i dades
s obre as quai s nos d ebruçam os.
108
4.9. AS GENS OU JENS OU J ÃS OU J ANS
Tecedeiras do fado individual, apresentam -se [as fadas]
como arqué tipo das fiandeiras, num conte xto modelar que entre
nós vulgarizou e sublimo u a expressão: «mão s de fada! »
190
As f adas não são obj ect o do nosso estudo, por não fi gura rem
nas “l end as” n em n os “epi sódi os l endá ri os” de que nos oc upam os;
s ão pe rsona gens do s cont os fant ást i cos, t am bém dos al gar vi os, por
i s s o faz em t am bém part e do i m agi ná ri o col ect i vo al garvi o, porém
s ão
encar adas
co m o
personagens
f i ct í ci as,
enquant o
que
as
pers ona gens l endá ri as, pel o s eu c ará ct e r mí st i co e mí t i co , s ão vi st as
com o seres r eai s, po r i sso são adm i radas ou t em i das.
[…] A crença na sua singular capacidade de fiar (que lhe
advirá,
eventualmente,
da
relação
que
o
ima ginário
local
estabelece com as fadas) existe um pouco por todo o país, do
Minho ao Algarve. O linho fiado por elas constitui, no género,
arquétipo de perfeição; fino, se m nós, be m c omo qualquer outra
deficiência.
191
No ent ant o, com o vi m os , as f adas poderão est ar na ori gem das
mouras t eced ei ras , “seres ex t raordi nári os” (com o l hes cha m a At aí de
Ol i vei ra)
192
, cuj o s vest í gi os se encont r am ent re nós em “ cacos”,
epi s ódi os l endári os, cuj as prot agoni st a s eram “fam osas t e cedei r as,
às
quai s
benfaz ej o”
o
193
povo
l i gava
grandes
s i m pat i as
pel o
seu
cará ct e r
, caí das em esqueci m ent o , no Al garve, t al vez por se
190
Aurélio Lopes, ob. cit., p.11.
Idem, p.15.
192
Ataíde Oliveira, As Mouras Encantadas e os Encantamentos do
Algarve, pp. 237 e 238.
193
Idem, p. 238.
191
109
t rat ar de um a t radi ç ão apen as conhe ci da no Barl avent o, t ant o quant o
apurám os (t al com o a Zo rra B err adei ra, com o a se gui r ve re m os).
O
imaginário
popular
consubstanciou
até
pretensos
mecanismos de cooperação entre as mo uras e as populações das
nossa s aldeias. Acreditava -se, nalguma s zonas do País, que,
deixando
na
lareira
linho
aco mpa nhado
de
dádivas
correspondentes (pão e vinho), estas, de noite, fiá -lo-iam!
N o A l g a r v e , o n d e s e l h e s c h a m a «j ã s » o u « j a n s », q u e m
deixasse à noite no borralho, um pouco de linho e um bolo co mo
o f e r e n d a r i t u a l e n c o n t r á - l o - i a d e m a n h ã f i a d o , «t ã o f i n o c o m o
cabelo »!
194
Est a “coop era ção ” e nt re as m ouras e as popul ações t em par a l el o
no que di z respei t o às mouras const rutoras , m as dessas parece n ão
haver vest í gi os no Al ga rve.
No ent ant o, é de re gi st ar qu e não há con senso quant o à nat ur ez a
das Gens , poi s, co m o At aí de Ol i vei ra ex pl i ca, uns crêem que são
mouras encant adas , out ros, que são f ada s , out ros, ai nda, due ndes .
É
preci so
não
esquecer,
cont udo,
que,
paral el am ent e
ao
“car áct e r ben faz ej o ”, apr esent av am um car áct e r vi n gat i vo, poi s se
os pret endent es ao “fi ado” “ eram esc assos na oferend a do bol o ,
s om i t i cos, o l i nho ou est opa era reduz i do a ci nz as e os bol os fei t os
em m i gal has, m i st uradas est as com as ci nz as para que ni n guém as
pudesse aprov ei t ar”.
194
195
195
Aurélio Lopes, ob. cit., pp.15 e 16.
Ataíde Oliveira, ob. cit., p. 238.
110
4.10. A ZORRA BERRADEIRA
Est a ent i dade (qu e repres ent a p reci s am ent e o opost o das G ens )
–
“m á
e
odi ada
por
t odos”
e
que
“só
anunci a
des gr aças
e
m al dades” 196 –, a Z orra Berradei ra , q ue t am bém só ex i st e no
Barl avent o, m ai s propri am ent e nos co ncel hos de La go a, S i l ves e
M onchi que,
e
em
part i cul ar
na
z ona
de
Od el ouca ,
com o
já
m enci onám os, ex i ste em t rês versões, d uas das quai s consi deram -n a
um a al ma penada .
Tant o é at ri buí da a um a m our a en cant ada qu e se t er á reb el ado
cont ra Al l ah (cont ra os “efei t os do encant am ent o”, t endo si do com o
que proscri t a, t orna da “obj ect o de ódi o ent re m ouros e ch ri st ãos”.
197
), com o à al m a de um a m ul her m ui t o má e de “vi da escand al osa”,
à al m a de um hom e m que roub ava t er re no a out ros, ou m es m o à d e
um a m ul her que t am bém roubava fai x as de t erreno; do m esm o m odo,
t ant o é um ser arrepi ant e, com o um a som bra que persegu e os
pas s ant es, ou m esm o um choro que t am bém perse gue qu em passa ou
s e aprox i m a de cert o sí t i o; t ant o m at a, com o com ove.
P arece -nos que um dos t ex t os (ZB 6 ) t erá, t al vez a chav e do
probl em a, ao di z er que se t rat a d e “duas z orras” (um a “t em
apel aç ão”, a out ra não), em bor a em a m bos o ser sej a um a al ma
penada – fi ca, ass i m , em abert o, a hi pót ese de hav er vári as
z orras…
Mas
a
est ranh ez a
não
fi ca
po r
est as
hi pót eses,
poi s
i ndependent em ent e da ori gem que l h e a t ri buem , al gum as d e scri ções
coi nci dem , afi rm and o t rat ar -se de um se r que, ao l onge, t em a form a
de um a z orra, m as que se d esl oca a um a vel oci dad e esp ant osa, pel o
que t em de t er asas, para al ém de que, ao pert o, se assem el ha a um
pás s aro que ex al a um “vapor i m undo e noj ent o”
196
197
198
198
. At aí de Ol i vei ra
Idem, p. 235.
Ibidem.
Ibidem.
111
afi rm a m esm o que “é o ve rdadei ro r et rat o das arpi as d e out ras
eras ” 199.
Génios maus,
cabeça
de
mo nstros alados, com corpo de pássaro,
mulher,
de
garras
afiadas,
odor
infecto,
elas
atorme nta m as almas c om perversidades incessante s. O seu no me
significa rapaces. Em geral, são em número de três : Borrasca,
Voa-depressa, Obscura, palavras que evoca m as nuve ns so mbria s
e rápidas de uma te mp estade. Só o filho de Bóreas, o vento, as
pode exterminar ( GRI D, 175). São as partes diabólicas das
energia s cósmicas; as provedoras do inferno através das morte s
repentinas.
[…] Podem co mparar -se às Erínias; mas esta s representa m
mais
o
castigo,
enquanto
que
as
Harpias
representam
a
inquietação dos vício s e as provo cações da maldade. O único
vento que consegue expulsá -las é o sopro do espírito.
200
Da sua rel aç ão com as serei as j á nos ocupám os ant eri orm e nt e,
m as a gora sur ge out ra l i gaç ão – é que o própri o At aí d e Ol i v ei ra di z ,
no
m esm o
t ex t o:
“A
z orra
b err a dei ra
é
verd adei r am ent e
a
t ransform a ção das f úri as dos ant i gos. É t ão m á com o est a s e com o
es t as i gual m ent e t e m i da.”
201
Ora, as F úr i as são preci sam ent e as
Er í ni as , que acabám os de ver, a p ropósi t o das Harpi as :
No me gre go das Fúrias [Erínias], de mónio s ctoniano s, co mo
as Harpias (Górgo nas), que to ma va m a fo r ma de cães e de
serpentes
[ e v o l t a m o s à s e r p e n t e …] . S ã o o s i n s t r u m e n t o s d a
vinga nça divina, na seq uência da s faltas co me tidas pelos ho me ns,
que elas perse guia m, se mea ndo o pavor no seu coração. Na
Antiguidade,
Interiorizadas,
199
200
201
eram
já
identificadas
simbolizam
o
com
re morso,
o
a
consciência.
sentime nto
de
Idem, p. 235.
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 362.
Ataíde Oliveira, ob. cit., pág. 235.
112
culpabilidade, a auto -destruição daquele que se abandona ao
sentimento de uma falta considerada inexpiável.
Tal
como
as
Moiras
(o
destino),
ta mbé m
elas
eram
originalmente guardiãs das leis da natureza e da ordem das
coisas (física e moral), o que fazia com que castigassem todos os
que ultrapassassem os seus direitos à custa dos outros, tanto
entre os deuses como entre os homens . Só mais tarde é que elas
se tornarão, esp ecificamente, as divindades vingadoras do crime
(LAVD, 391 e Paul Mazon, HOMI III, p. 74, nº 1).
202
S e consi derarm os as Jens o seu op ost o, ent ão podere m os,
event ual m ent e, est ar perant e v est í gi os d as Euméni das :
Figuras
lendárias,
siste matica me nte
opostas
às
Erínias:
estas representam o espírito vingativo, o gosto pela tortura e pelo
torme nto,
que
castigam
toda
a
o
espírito
de
compreensão,
significam
ultrapassagem
e
de
sublimação.
violação
Estas
da
ordem;
de
ima gens
aquelas
perdão,
opostas
de
e
correlativas representa m a s d uas tendê ncias da alma pecadora,
que hesita entre o re mo rso e o arrependime nto. […]
As Erínias são imp iedosas, as Euménidas são benevolentes.
Na antiguidade, era m os mesmos e spíritos, protectores da ordem
social
e
principalme nte
da
fa mília,
vingadores
dos
crimes,
inimigos da anarquia; e chamavam -se Erínias ou Fúrias, quando a
sua cólera se desencadeava, e Euménidas, quando se pretendia
apaziguá -las, implorando a sua bene volênc ia . Mas esta última
atitude pressupunha uma conversão interior, qu e, e m si me sma,
era já um regresso à ordem.
203
Assi m , t al vez est e sej a, de fact o, o úni co caso de “géni os
m al éfi cos
doenças”
204
que
per segu em
o
hom em ,
ocasi onando -l he
di versas
, de que n os fal a C onsi gl i eri P edroso.
202
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 288.
Idem, p. 311.
204
Consiglieri Pedroso, ob. cit., p. 218.
203
113
5 . EXCURSO SOBRE PERSONAGENS
SOBRENATURA IS RELIGIOSAS /
CRISTÃ S
Na Idade Média, assistimo s a um sobressa lto do pensa me nto
mítico.
Todas
as
classes
sociais
se
reclamam
de
tradições
mitológicas próprias. Os cavaleiros, os artesãos, os clérigos e os
ca mponese s adoptam um «mito de orige m» da sua condição ou da
sua vocação e esforçam -se por imitar um modelo exemplar. A
origem destas mitologias é variada. O ciclo arturiano e o tema do
Graal integram, sob uma capa cristã, inúmeras crenças célticas,
sobretudo
em
relação
com
o
Outro
Mundo.
Os
cavaleiros
pretendem rivalizar com Lancelot ou Parsifal. Os trovadores
elaboram toda uma mitologia da Mulher e do Amor utiliza ndo
ele me ntos
cristãos,
mas
ultrapassando
ou
contrariando
as
doutrinas da Igreja.
Certos movime ntos históricos da Idade Média ilustra m, de
uma for ma particular mente significativa, as manife stações mais
típicas do pensa mento mítico. Esta mos a pensar na s exaltações
milenaristas e nos mitos escatológicos que surgem nas Cruzadas,
nos mo vimento s de um T anquelmo e de um Eudes de L’Étoile, na
elevação de Frederico II à categoria de Messias, e em tantos
outros
fe nó me nos
revolucionários […].
colectivos
messiânicos,
utó picos
e
pré-
205
P aral el am ent e às f i guras de í ndol e pagã, m ai s ou m e nos
i m port adas de out r a s cul t uras, en cont ra m os t odas as person agen s do
“m aravi l hoso cri st ã o”, m ai s propri am ent e cat ól i co, por ser est a a
rel i gi ão dom i nant e e dom i nadora, du rant e t ant os sécul o s, nest e
t erri t óri o. As pres enças do j udaí sm o e do i sl am i sm o, que não
i ncl uem out ras pers onagens al ém do “D eus úni co”, não se p rest avam
t ão fa ci l m ent e à c ri ação de hi st óri as de apa ri ções, ci n gi ndo -se m ai s
aos “m i l agr es” do própri o Deus, não se ndo de ex cl ui r, no ent ant o, a
205
Mircea Eliade, Aspectos do Mito, edições 70, col. Perspectivas do
Homem, s/ data, pp. 146 e 147.
114
i nfl uênci a
c el t a,
cuj a
rel i gi ão ,
segundo
G eral d
Messadi é,
apresent ava um pan t eão de qu at rocent o s deuses, a G rand e Deusa,
al guns d em óni os e nenhum Di abo.
206
A sua religião desaparecia sem se ter reorganizado, cedendo
ao Cristianismo alguns ritos e lendas. A sua influência cultural
desapareceu até ao século XIX, quando ressurgiu em nostalgias
literárias, sobretudo anglo -saxónicas, em prol dos cultos do
individ ualismo e do heroísmo.
207
Ora, com o di z R oge r C ai l l oi s:
[…] Toda a força que o encarne [o sagrado] tende a
dissociar -se : a sua primeira a mbiguidade resolve -se e m ele me ntos
antagónicos
e
co mple mentare s
aos
quais
se
refere,
respectivamente os sentimentos de respeito e de aversão, de
desejo e de pavor que a sua natureza essencialme nte eq uívoca
inspirava. Mas logo esses pólos nascem da distensão desta,
provocam cada um por seu lado, precisa mente na medida e m que
possue m o carácter do sagrado, as mesmas reacções a mbivalentes
que os tinham feito isolar um do outro.
A cisão do sagrado produz os bons e os ma us espíritos, o
padre e o feiticeiro, Ormazd e Arimâ ncio, Deus e o Diabo, ma s a
atitude dos fiéis para com cada uma destas especializações do
sagrado revela a mesma a mbivalê ncia q ue o seu co mporta mento
relativamente às suas manifestações indivisas. […]
Contudo, se se orientar a análise da religião na perspectiva
dos limite s e xtre mo s e anta gónicos represe ntados, sob as su a s
diversas formas, pela santidade e pela danação, o essencial da
sua função aparece logo determinado por um duplo mo vimento: a
aquisição da pureza, a eliminação da mácula.
208
S em quererm os ne m poderm os aprofu ndar a r el ação ent re o
cri s t i ani sm o e o pen sa m ent o m í t i co, não podem os, porém , d ei x ar de
ci t ar Mi rce a El i ade, quando apres ent a a “t ese” do cri s t i ani smo
206
207
208
Gerald Messadié, ob. cit., p.141.
Idem, p. 158.
Roger Caillois, ob. cit., pp. 37 e 38.
115
cós mi co , ao r efe ri r - se à pol í t i ca [ da Igrej a] de assi mi l ação de um
«pagani smo» que não era possí vel el i mi nar :
Os ca mpone ses da E uropa entendia m o c ristianismo co mo
uma liturgia cósmica. O mistério cristológico englobava ta mbé m
o destino do Cosmo s. «T oda a Natureza susp ira, na expectativa
da Ressurreição »: é um mo tivo ce ntral ta nto da liturgia pasca l
como
do
folclore
religioso
da
cristandade
oriental.
A
solidariedade mística com os ritmos cósmicos, violentamente
atacados pelos Profetas do Antigo T estame nto e a custo tolerada
pela Igreja, é o cerne da vida religiosa das populações rurais,
sobretudo
do
Sudeste
da
Europa.
Para
todo
este
sector
da
c r i s t a n d a d e , a «N a t u r e z a » n ã o é o m u n d o d o p e c a d o , m a s a o b r a
de Deus. Depois da encarnação, o Mundo foi restabelecido na sua
glória
primitiva ;
é
por
isso
que
Cristo
carregados de tantos símbolos cósmicos.
e
a
Igreja
foram
209
E, em segui da, ao a nal i sar a ac ei t aç ã o do cri st i ani sm o por part e
das soci edades ru rai s da Europa, ex põe as l i nhas f undamentai s de st a
«t eol ogi a popul ar» (o cri st i ani smo cósmi co ), ex pl i ca ndo o t i po de
pens am ent o subj ace nt e , e com o não se t rat ou de um processo de
«pagani zação» do cri st i ani smo , m as ant es de uma «cri st i ani zação»
da r el i gi ão dos seus ant epassados :
[…] por um lado, não há contradição entre a ima ge m de
Cristo dos Evangelhos e da Igreja e a do folclore religioso : a
Natividade, os ensinamentos de Jesus e os seus milagres, a
crucificaçã o e a Ressurreição constitue m os te mas essencia is
deste cristianismo popular. Por outro lado, é um espírito cristão
e n ã o «p a g ã o » q u e i m p r e g n a t o d a s e s t a s c r i a ç õ e s f o l c l ó r i c a s : t u d o
gira e m torno da Salvação do ho me m por Cristo; da fé, da
e s p e r a n ç a e d a c a r i d a d e ; d e u m m u n d o q u e é «b o m » , p o r q u e f o i
criado
pelo
Deus
Pai
e
foi
resgatado
pelo
Filho;
de
uma
existência humana que não se repetirá e que não é desprovida de
significado; o ho me m é livre de escolher o bem ou o mal, mas
não será julgado unicamente em função desta escolha.
209
Mircea Eliade, ob. cit., pp. 144 e 145.
116
[…] é necessário constatar que o cristianismo cósmico das
populações rurais está dominado pela nostalgia de uma Natureza
santificada pela presença de Jesus . Nostalgia do Paraíso, desejo
de reencontrar uma Natureza transfigurada e invu lnerável, livre
dos cataclismos provocados pel[a]s guerras, pelas devastações e
pelas
conquistas.
É
ta mbé m
a
expressão
do
«i d e a l »
das
sociedades agrícolas, constantemente aterrorizadas por hordas
guerreiras alógenas e exploradas pelas diferentes classes de
«se nhores » mais ou meno s autóctones. É uma revolta passiva
contra a tragédia e a injustiça da História, em última análise,
contra o facto de o ma l não se re velar unica mente co mo decisão
individ ual, ma s sobretudo como uma e strutura transpessoal do
mundo histórico.
210
O obj ect o do nosso est udo é preci sam e nt e a m i t ol ogi a popul ar
de um a soci edade essenci al m ent e ru ra l , europei a, e é f á ci l rever ,
nes t e cri st i ani smo c ósmi co , o pensam en t o e a at i t ude d e per sonagens
das l endas anal i sad as, quer per ant e a Nat urez a, com c el e brações do
s ol s t í ci o
de
Verã o,
quer
perant e
a
rel i gi ão,
i ncl ui ndo
est as
pers ona gens m í t i cas no seu quot i di ano, quase m ant endo os m esm os
ri t os ant i gos e subst i t ui ndo um as di vi ndades por out r as.
[…] vis-à-vis de l’Europe – rurale, essentielle me nt, […]
celle [l’attitude] que le christia nisme européen a l ongte mps e u à
l ’ é g a r d d e s s u r v i v a n c e s «p a ï e n n e s » : d e v e n u e s a p p a r e m m e n t v i d e s
de contenu, elle s é taie nt non se ule ment acce ptables, mais mê me
intégrables à la religiosité officielle.
211
210
Idem, pp. 145 e 146.
Michel Izard, “Introduction”, in James George Frazer, Le Rameau
d’Or, Paris, Éditions Robert Laffont, S. A., 1983, p.9: “ […] em relação
à Europa – rural, essencialmente –, […] aquela [atitude] que o
cristianismo europeu teve durante muito tempo para com os vestígios
«pagãos »: tornados aparentemente vazios de conteúdo, eram não apenas
aceitáveis, como integráveis mesmo na religiosidade oficial.” (Tradução
nossa).
211
117
5 .1 . CICLO DE JESU S CRISTO
A une période primitiv e de son développeme nt intellectuel,
l’ho mme se croit par nature immortel; […] Parmi les multiples
influences qui se coalisèrent pour le forcer à accepter, à son
corps défendant, la né cessité de la mort, il faut co mpter cel le,
toujours croissante, de la religion qui, en démasquant la vanité
de
la
ma gie
échafaudées
et
sur
de
elle,
toutes
a
les
prétentions
graduelle me nt
extravagantes
modifié
l’attitude
orgueilleuse et méprisante de l’homme envers la nature, et lui a
inculqué la cro yance qu’il y a dans l’univers d es mystère s que sa
faible intellige nce ne réussira ja mais à percer , et de s forces q ue
ses mains débiles ne sauront ja mais do mpter. De plus e n plus, il
apprit ainsi à s’incliner devant l’inévitable, et à se consoler de l a
brièveté et des tristesses de la vi e, ici-bas, par l’espérance d’une
éternité de bonheur, au -delà.
212
Mas a i dei a d a su a própri a condi ç ão m ort al , apes ar d a c rença
num a vi da par a al ém da m ort e, n ão dei x ava ao hom em gr andes
es peran ças num a vi d a di fí ci l , se m a aj ud a de ser es superi or e s.
[…] Mais s’il reconnaissait, à contre -cœur il est vrai,
l’existences d’êtres à la fois surhumains et surnaturels, il était
loin encore de se douter de la profondeur et de la largueur de
l’abîme qui le séparait d’eux. Il adme ttait bien que les dieux,
dont à présent son imagination peuplait les ténèbres de l’inconnu,
lui fussent supérieurs par le savoir et par la puissance, par
212
James George Frazer, ob. cit., p.23: “Num período primitivo do seu
desenvolvimento intelectual, o homem acreditou que era, por natureza,
imortal. [..] De entre as múltiplas influências que se coligaram para o
forçar a aceitar, contra a sua vontade, a necessidade da morte, é preciso
contar com a da religião, sempre crescente, que, desm ascarando a
vaidade da magia e de todas as pretensões extravagantes entabuladas
por ela, modificou gradualmente a atitude orgulhosa e depreciativa do
homem para com a natureza, e inculcou -lhe a crença de que há no
universo mistérios que a sua fraca intelig ência não conseguirá nunca
penetrar, e forças que as suas mãos débeis não saberão nunca domar.
Ele aprendeu, assim, cada vez mais, a inclinar -se perante o inevitável, e
a consolar-se com a brevidade e as tristezas da vida, aqui em baixo, na
esperança de uma eternidade de felicidade, lá em cima, para além da
morte.” (Tradução nossa).
118
l’heureuse splendeur et la durée de leur ex istente; mais, et à son
insu, ce s créature s ma gnifiq ues et terribles étaient uniq ue ment,
comme le spectre du Broken, l’ima ge ré fléc hie de sa propre et
chétive personne que l’éloignement, les brumes et les nuées de
l’ignorance avaient grandie de façon gigantesque. L’homme a, en
effe t, créé les dieux à son ima ge: é tant lui-mê me mortel, il a
n a t u r e l l e m e n t g r a t i f i é s e s c r é a t u r e s d e l a m ê m e t r i s t e c o n d i t i o n . 213
Ora, a r el i gi ão cri st ã const rui u -se, c om o sabem os, com um a
gr ande
i nfl uênci a
j udai ca,
que,
por
sua
vez ,
por
força
das
ci rcunst ânci as que const i t uem a hi st óri a do povo j udeu, sofreu,
forçosam ent e, i nfl uê nci as e gí pci as, b abi l óni cas e out ras.
Les grands dieux de l’Égipte n’échappaient pas à la loi
commune. Eux a ussi vieillissa ient et mo uraie nt. T out co mme les
ho mmes, ils se co mposaient d’un corps et d’une â me, et co mme
eux, ils étaient sujets à toutes les passions et à toutes les
infir mités de la chair. Le ur corps, il e st vrai, était fait d ’une
substa nce plus é thérée que le nôtre et durait p lus longte mp s, mais
il ne pouvait résister éternellement aux assauts du temps . L’âge
transfor mait le urs os e m arge nt, leur c hair en or, et les boucles
azures
en
lapis -lazuli.
Quand
leur
temps
était
révolu,
ils
quittaie nt le mo nde joye ux des ho mme s pour aller régner, en
qualité
de
dieux
morts,
sur
les
o mbres,
dans
le
monde
mélancolique des trépassés. Leur âme même, tout comme celle
des humains, ne pouva it persister après leur mort qu’a uta nt que
leur corps subsistait; aussi était -il indispensable de conserver le
corps des dieux comme celui du plus commun des mortels, de
peur
qu’avec
le
corps
divin,
l’âme
aussi
ne
trouvât
213
Ibidem: “Mas se ele reconhecia, é verdade que contra -vontade, a
existência de seres ao mesmo tempo sobre -humanos e sobrenaturais,
estava longe ainda de desconfiar da profund idade e da largura do
abismo que o separava deles. Admitia perfeitamente que os deuses, com
os quais a sua imaginação povoava, presentemente, as trevas do
desconhecido, fossem superiores a ele, pelo saber e pelo poder, pelo
feliz esplendor e pela duração d a sua existência; mas, e sem que ele
soubesse, estas criaturas magníficas e terríveis eram unicamente, como
o espectro do Brocken, a imagem reflectida da sua própria e fraca
pessoa, que o afastamento, as brumas e as nuvens espessas da
ignorância tinham feito crescer de forma gigantesca. O homem criou, de
facto, os deuses à sua imagem: sendo ele próprio mortal, gratificou,
naturalmente, as suas criaturas com a mesma triste condição.”
(Tradução nossa).
119
prématuré ment sa fin. […] Les grands die ux de Babylone a ussi,
bien qu’ils n’apparussent à leurs adorateurs qu’en rêves et en
visio ns, éta ient conç us sous une for me corporelle humaine; le urs
passions et leur destin étai ent ceux des hommes; comme eux ils
venaie nt a u mo nde, aimaient, co mbattaie nt et mo uraie nt.
214
Ao apr esent ar a rel a ção ent re cri st i ani sm o e pensam ent o m í t i co,
M i rcea El i ad e di st i ngue t r ês probl em a s fundam ent ai s. O pri m ei ro
prende -s e com o si gni fi c ado do t erm o «m i t o » e a hi st ori ci dade d e
J es us:
[…] Os primeiros teólogos crist ãos to mava m este vocábulo no
sentido que se tinha impo sto há vários séculos no mundo greco roma no:
«fábula,
ficcção,
me ntira ».
Consequentemente,
r e c u s a v a m - s e a v e r n a p e s s o a d e J e s u s u m «p e r s o n a g e m » m í t i c a ,
e no dra ma cristológico um «mito ». A partir do século II, a
teologia cristã foi levada a defender a historicidade de Jesus,
simultaneamente contra os docéticos e os gnósticos e contra os
filósofos pagãos.
215
O segundo di z resp ei t o ao val or at ri buí do aos docum ent os em
que se fund e a hi st ori ci dade de J esus :
214
Idem, pp. 24 e 25: “Os grandes deuses do Egipto não e scapavam à lei
comum. Também eles envelheciam e morriam. Tal como os homens,
eram compostos por um corpo e uma alma, e como eles, estavam sujeitos
a todas as paixões e a todas as enfermidades da carne. É verdade que o
seu corpo era feito de uma substância mais etérea do que o nosso e
durava mais tempo, mas não podia resistir eternamente aos assaltos do
tempo. A idade transformava os seus ossos em prata, a sua carne em
ouro e os seus caracóis azulados em lápis -lazúli. Quando o seu tempo
era volvido, deixavam o mundo alegre dos homens para ir reinar, na
qualidade de deuses mortos, sobre as sombras, no mundo melancólico
dos falecidos. Até a sua alma, tal como a dos humanos, não podia
perdurar depois da sua morte senão enquanto o corpo subsistisse; assim,
era indispensável conservar o corpo dos deuses como o do mais comum
dos mortais, para que, com o corpo divino, a alma também não
encontrasse prematuramente o seu fim. […] Também os grandes deuses
de Babilónia, embora não aparecessem aos seus adoradores senão em
sonhos e visões, eram concebidos sob uma forma corporal humana; as
suas paixões e o seu destino eram os dos homens; como eles vinham ao
mundo, amavam, combatiam e morriam.” (Tradução nossa).
215
Mircea Eliade, ob. cit., p. 137.
120
[…] Hoje em dia, um Rudolf Bultmann afirma que não se
pode saber nada ne m da vida ne m da pessoa de Jesus, e mbora não
duvide da sua existê ncia histórica. Esta posição metodológica
pressupõe que os Eva ngelho s e os outros teste munhos primitivos
e s t ã o i m b u í d o s d e «e l e m e n t o s m i t o l ó g i c o s » ( e n t e n d e n d o - s e o
ter mo no se ntido de «aq uilo que não pode existir »). De que
abunda m «ele me ntos mitológico s» nos Eva ngelhos, não resta m
dúvidas. Alé m diss o, símbolos, figuras e rituais de orige m judia
cedo foram assimilados pelo cristianismo. […] o vasto número de
símbolos e ele me ntos que o cristianismo partilha co m o s c ultos
solares e as religiões de Mistérios encorajou alguns eruditos a
rejeitar a historicidade de Jesus, refutando a posição de um
Bultma nn, por exe mplo. Em vez de postular e m a existê ncia, no
início do cristianismo, de uma persona ge m histórica sobre a qual
nada se pode saber devido à «mitologia » que rapidame nte a
envolveu, esses especialistas
postulara m, pelo contrário, um
«mito » que foi imper feita me nte «historicizado » pelas primeiras
gerações de cristãos.
216
O t erc ei ro probl em a resul t a da ex i st ênci a de doi s t i pos de m i t o:
o “myt hos d essac ral i z ado da époc a hel e ní st i ca” vs “o mi t o vi vo , t al
com o el e foi conh eci do nas soci edad es ar cai c as e t radi ci onai s” ,
afi rm ando est e aut o r que “o c ri st i ani sm o, t al com o foi ent e ndi do e
vi vi do durant e qua se doi s m i l éni os da sua hi st óri a, não pode
s er
com pl et am ent e
di ssoci ado
do
pensam ent o
m í t i co .”
217
e
acres cent ando m ai s t arde, após t er dado vári os ex em pl os, que
“convém subl i nhar a cont i nui dade ent re as concep ções es cat ol ógi cas
m edi evai s e as di fe rent es «f i l osofi as da hi st óri a » do Il um i ni sm o e
do s écul o X IX. ”
218
S e at ent arm os n a hi st óri a de J esus, cont ada n a vers ão dos
Evangel hos consi de rados l e gí t i m os pel as vári as i gr ej as c ri st ãs, que
s ão, supost am ent e, a vers ão esc ri t a dos rel at os or ai s que ci rcul ar am
durant e bast ant es a nos (pel o m enos a t é à dat a da su a r ecol ha) ,
216
217
218
Idem, pp. 137 e 138.
Idem, p. 138.
Idem, p. 150.
121
aperc ebem o -nos do s “pont os de cont a ct o” ex i st ent es ent re a sua
m at ri z e out ras, com uns a vári as soci eda des.
[…]
dans
le
contexte
du
lent
c he mine me nt
qui
mène
l’huma nité de l’âge ma gique à l’â ge religie ux, et du roi ma gicie n
au roi divin, ils [les hommes] associent à la souveranité les
attributs de la divinité, et par un retour des dieux sur la terre,
conçoivent les rois divins comme les dieux du ciel, donc leur
assigne nt co mme destin de mourir un jour.
219
Num a époc a de ocu pação e de opressã o por part e do Im p éri o
R om ano, J esus foi consi derado, por a l guns dos seus se gui dores,
com o o Messi as, o descendent e de D av i d que vi ri a l i bert a r o povo
de Isra el do j u go rom ano ( à sem el hança do que f ez Moi sés,
l i bert ando -o do j ugo egí pci o). No seu des es pero e na sua esperan ça,
acredi t a ram que vi r i a a ser o “R ei dos J udeus” , desi gna çã o e fam a
que vi eram a s er -l h e fat ai s.
[…] c’est bien cette double corporéité, dont l’un des deux
ele me nts est ha ute me nt corruptible , quand l’a utre n e sa urait être
donné po ur tel […] Le roi ne peut pas ne pas mo urir, mais il faut
que le royaume vive, qu’il se perpétue sans être atteint dans sa
«c hair » sociale par les altérations que ne peut ma nquer de subir
le corps du souverain. Pour q ue la mise e n phase associant l a vie
du roi à ce lle du ro ya ume n’entraîne pas la mort du corps social,
il faut et il suffit que le roi meure ava nt qu’il risque d’entraîner
une per ma ne nte prospérité.
220
219
Michel Izard, “Introduction”, in James George Frazer, ob. cit., p.
11: “No contexto do lento caminho que a humanidade percorre d esde a
idade mágica até à idade religiosa, e do rei mágico ao rei divino, os
homens associam à soberania os atributos da divindade, e por um
retorno dos deuses à terra, concebem os reis divinos como os deuses do
céu, pelo que lhes é atribuído como destino morrer um dia.” (Tradução
nossa).
220
Idem, pp. 11 e 12: “[…] é precisamente esta dupla co rporeidade, de
que um dos dois elementos é altamente corruptível, quando o outro não
poderia ser dado como tal […] O rei não pode não morrer, mas é preciso
que o reino viva, que se perpetue sem ser atingido na sua «carne» social
pelas alterações que o corp o do soberano não pode deixar de sofrer.
Para que o processo de associação da vida do rei à do reino não arraste
a morte do corpo social, é preciso e é suficiente que o rei morra antes
122
Mas a m al dade e a i nj ust i ça dum povo q ue, pouco t em po ant es,
apl audi ra J esus, para depoi s escol he r Bar rabás p ara s er l i bert ado,
condenando - o a um a m ort e vi ol e nt a, pode t er r aí z es ancest r a i s:
[…] Si le dieu-ho mme meurt de ce que nous appelons une
mort naturelle, cela veut dire, d’ après le sauva ge, soit que son
â me a volo ntaire me nt quitté son corps et refuse d’y reve nir; soit,
plus comunément, qu’elle lui a été dérobée ou qu’elle a été
retenue dans se s vo ya ges par un dé mo n ou un sorcier. Dans l’un
comme dans l’autre cas, l’âme du dieu-homme est perdue pour
ses
adorateurs;
avec
elle
dispar aît
leur
prospérité
et
leur
existence se trouve de ce fait en péril. […] Tandis qu’en tuant le
dieu-homme ses adorateurs pourraient, en premier lieu, avoir la
certitude de capturer son â me q uand elle s’é chapperait
et de la
transmettre à un successeur convenable; en second lieu, en le
metta nt à mort ava nt que sa force naturelle f ût diminuée, ils
auraient la garantie que le mo nde ne déclinerait pas a vec la sa nté
du
dieu-homme.
Toutes
les
conditions
se
trouvaient
donc
re mplies et tous les da nger s écartés si l’on tuait le dieu -ho mme
et si l’on faisait ainsi passer dans un successeur vigoureux son
â me encore toute vigoureuse.
221
A i dei a de que a i dade do corpo corresp onderi a à i dade da a l m a
e, por conse gui nt e, est a est ari a suj ei t a a um a de gen era ção, t al com o
que se arrisque a arrastar uma prosperidade permanente.” (Tradução
nossa).
221
James George Frazer, ob. cit., p. 27: “Se o deus-homem morre
daquilo a que chamamos uma morte natural, isso quer dizer, do ponto de
vista do selvagem, quer que a sua alma deixou voluntariamente o corpo
e se recusa a voltar a ele; quer, mais comumm ente, que ela lhe foi
subtraída ou que ficou retida, nas suas viagens, por um demónio ou um
feiticeiro. Tanto num caso como no outro, a alma do deus -homem está
perdida para os seus adoradores; com ela desaparece a sua prosperidade
e a sua existência encont ra-se, deste modo, em perigo. […] Enquanto
que ao matar o deus-homem os seus adoradores podiam, em primeiro
lugar, ter a certeza de capturar a sua alma quando ela se escapasse e de
a transmitir a um sucessor conveniente; em segundo lugar, matando -o
antes que a sua força natural diminuísse, teriam a garantia de que o
mundo não declinaria com a saúde do deus -homem. Todas as condições
se encontrariam, por conseguinte , preenchidas e todos os perigos
afastados se se matasse o deus -homem e se se fizesse, assim, p assar
para um sucessor vigoroso, a sua alma, enquanto esta ainda estivesse
também vigorosa. “ (Tradução nossa)
123
o corpo, l evou al gu ns povos a m at ar em os seus “r ei s di vi nos” num a
al t ura da vi da em que est i vessem l i vres de qual quer corr upção. A
m ort e de J esus, aos t ri nt a e t rês anos, faz -nos pensar em c om o est a
i dade é, d e fa ct o, o apo geu das fa c ul dades hum anas, fí si cas e
i nt el ect uai s, j á que é opi ni ão corrent e ent re psi cól ogos e m édi cos
que a de cad ênci a hu m ana com e ça a faz e r -se sent i r, ai nda qu e depoi s
decorr a gradu al m ent e , aos t ri nt a e ci nco anos.
[…] les sujets per mettent a u roi ou prêtre divin [e m ca sos
contados anterior me nte ] de conserver ses fonc tions jusqu’au jour
où quelque symptô me vis ible, quelque tare physique, révé lant que
ses forces décroissent ou qu’il prend de l’âge, les avertit qu’il
n’e st plus à mê me de s’acq uitter de ses devo irs sacrés; mais o n
ne le met pas à mort avant q ue c es symptô mes n’apparaissent.
Certains peuples, cepe n dant, ne se mb lent pas avoir une sécurité
suffisa nte da ns ce systè me qui leur co mmandait un signe de
déclin, si léger soit -il; ils ont préféré tuer le roi alors qu’il
jouissait e ncore de sa pleine vigue ur. Ils ont donc déter miné une
durée au-delà de laquelle le souverain n’avait pas le droit de
régner et à l’e xpiration de laquelle il devait mourir; le laps de
te mps ainsi fixé était assez bref pour que toute probabilité de
dégénérescence physique en cours de règne fût exclue.
222
A ressur rei ç ão apar ece, assi m , com o u m a re gener aç ão, ap ós a
des ci da aos i nferno s, de t al m odo um a puri fi caç ão, que ne m m esm o
M ari a Mad al ena t er á podi do t ocar -l he para n ão conspur ca r o seu
“novo corpo” com o i m puro cont act o hum ano. E é com est e “novo
corpo”, não hum an o, l i vre de qual que r hi pót ese de cont a m i nação
222
Idem, pp. 49 e 50: “Os indivíduos permitiam ao rei ou ao padre
divino [em casos contados anteriormente] conservar as suas funções até
ao dia em que algum sintoma visível, alguma imperfeição física,
reveladores da diminuição das suas forças ou da sua idade avançando,
os advertisse de que ele já não estava capaz de lidar directamente com
os seus deveres sagrados; mas não o matavam antes que os sin tomas
aparecessem. Alguns povos, no entanto, não parecem ter encontrado
segurança suficiente neste sistema que os obrigava a esperar um sinal
de declínio, por mais ligeiro que fosse; preferiram matar o rei enquanto
ele gozasse ainda do seu pleno vigor. Det erminaram, por conseguinte,
uma duração para além da qual ele devia morrer; o lapso de tempo assim
fixado era bastante breve para que qualquer probabilidade de
degenerescência física durante o reinado fosse excluída.” (Tradução
nossa).
124
não di vi na, e l i vr e d e qual que r hi pót es e de de gener aç ão e m ort e, que
i rá cont i nuar a “r ei nar”, no m undo do es pí ri t o, et ernem ent e.
Est a re gener aç ão não and a l on ge d e si m bol i z ar a p r ópri a
re gene ra ção d a nat u rez a, sobret udo s e r ecor da rm os que s e deu por
vol t a do i ní ci o da P ri m avera, al t ura t a m bém em que é co m em orada
t odos os anos. A Páscoa dos c ri st ãos é, port ant o, um a fe st i vi dade
que cel eb ra a r essurrei ç ão de C ri st o, e m que est á i m pl í ci t a a su a
re gene ra ção e t rans m ut ação, na époc a e m que oco rri am as ant i gas
fes t i vi dades
a com panhadas
de
ri t uai s
de
fe rt i l i dade.
Est am os,
t al vez , perant e m ai s “um a com posi ção de si ncret i sm o que revel a
vári as proc edên ci as ”, com o di z J oão Davi d P i nt o -C orrei a:
[…] Adónis (do se mítico “Adon”, isto é, “se nhor ”), antes
de ser o deus grego, foi o babilónico Tamuz, o jovem amante de
Ishtar (deusa mãe -terra), o qual foi morto por um javali, quando
caçava na s montanhas, tendo do seu sangue nascido a ané mo na
ver melha. A perda foi tão grande que, pera nte a fúria da d eusa do
a mor, os deuses maior es aquie scera m e m que ele ressusc itasse,
vivendo meio ano na terra, e o outro meio ano no mundo
subterrâneo. Adónis torna -se assim o símbolo da morte sazonal e
do reaparecime nto fulgurante da vege tação. A história de Adónis,
em diferentes versões, vai ser contada desde a Ásia e regiões
mediterrânicas
até
às
Ilhas
Britânicas,
atravessando
toda
a
Europa, sobretudo a do Sul. Mas esta história, como reconhece m
os historiadores da Mitologia, te m co mo primeira manife stação
uma versão siro-fenícia, relacionada com Mirra (ou Esmir na),
filha de T eias, rei da Assíria . Este mito funda me ntal para a s
culturas do Mediterrâneo prende -se co m o te ma e respectivos
mo tivo s da morte e re ssurreição, co m simbo lismo s variados da
fertilidade e da vegeta ção, relaciona-se com as histórias de Átis
(da Frígia), Osíris (do Egipto), Dionísios -Zagreus (da Trácia e de
Creta),
Balder
(da
Escandinávia),
John
Barle ycorn
(da
Inglaterra), e naturalmente co m a história e o simboloismo de
Jesus (dos Hebreus e dos Crsit ãos).
223
223
João David Pinto-Correia, “A Literatura Oral / Escrita Tradicional e
o Espaço Mediterrânico: História, Assuntos, Poéticas”, O Mediterrâneo
Ocidental: Identidades e fronteira , Lisboa, Edições Colibri, 2002, pp.
194 e 195.
125
C om o a Igrej a C at ó l i ca deu s em pre esp eci al at enção à i m a gem
do C ri st o cruci fi cado (por raz ões que se prendem , obvi am e nt e , com
a acei t aç ão do sofri m ent o) , é nat ural que sej a nest a condi ção que
prot agoni z a a m ai or i a das narr at i vas .
P ossui dor do pode r m áx im o, à sem el hança do P ai , raram ent e
apare ce e i nt e rvém ge ral m ent e em si t uações gr aves, de gr andes
afl i ções, p rot e gendo o col e ct i vo de m ai ores ou m enores cat ást rofes,
com o é o caso da a pari ção c rí st i ca da bat al ha de Ouri que ou, m ai s
recent em ent e, do m i l agre do Bom J esus de Al vor , aq uando do
t erram ot o de 1755 .
S obre
as
“d esl oc ações
no ct urnas” 224,
Al ex andre
P ara f i ta
apresent a a sua opi ni ão que, sendo a propósi t o das i m agens sagradas
des cobert as em Trá s -os -Mont es, se apl i ca pe rfei t am ent e a doi s dos
nos s os casos (o do Bom J esus de Al vor e o da Nossa S enhora do
Verde ) :
Entretanto,
na
escolha
do
lugar
para
a
construção
do
santuário, é frequente haver um conflito de vizinhanças, com as
constantes trasladações da imagem para diferentes locais em
função
das
conveniências
do minantes
nas
comunidades.
E,
perante questões terrenas desta orde m, imp orta que haja uma
resposta do Céu. Daí que será a própria image m a solucionar os
diferendos, utiliza ndo os mé todos sobrenaturais apropriados, que
passa m, geralmente, pelo “m ila gre” da deslocação nocturna, à
revelia da mão huma na, para o lugar exacto em que “pretende”
ficar instalada.
Nas
nossas
225
duas
hi st óri as,
encont ram os
os
ani m ai s
a
obedec erem à vont ade di vi na, recus an do -se a avan çar ad ent ro do
t erri t óri o da f re gu esi a nã o des ej ada .
C orroborando
a
t ese de
Al ex andre P arafi t a, um dos i nform ant es de Mar gari da T en ga rri nha
afi rm a m esm o que depoi s que o S enhor J esus de Al vor com eçou a
224
Um dos milagres atribuídos ao Bom Jesus de Alvor é precisamente a
escolha de Alvor como local de permanência, por parte da imagem.
225
Alexandre Parafita, A Mitologia dos Mouros, p. 74.
126
faz er m ui t os m i l agres, “passou a ser m ui t o cobi çad o pel o povo de
P ort i m ão que o foi buscar num a car ret a de boi s”
226
226
.
Margarida Tengarrinha, ob. cit., p.65.
127
5 .2 . CICLO D A VIRGEM MARIA
É dito que Portuga l é um país mariano, p rofunda me nte
ligado à Virgem Maria, Mãe de Deus. D. João IV consagrou a
Nação à Senhora da Conceição, como toda a gente sabe, ma s já
Afonso Henriq ues ficar a a dever o mo vimento das suas perninhas
de me nino de tenra idade a Nossa Senhora do Cárquere, cuja
ima ge m apareceu propositada me nte para curar o nosso primeiro
infante.
227
N ossa Senhora , a m ãe d e J esus, a quem são at ri buí dos pod eres
es peci ai s, en carn a o pri ncí pi o fem i ni no ausent e da t ri nda de cri st ã
(pel o m enos com o foi vei cul ada na E uropa) , e é, po r ve z es, um a
“deusa das pequ ena s coi sas” i ndi vi duai s , i nvocada const an t em ent e,
em rez as quot i di anas, sej a para desfaz e r os nós dum a dobada de fi o
que se em p eçou, s e j a para encont r ar u m obj ect o que se p erdeu, e
apare ce, às vez es, à s cri anças e out ros i nocent es, ap arent em ent e sem
qual quer obj ect i vo especí fi co, ou pel o m enos, sem um padrão
recor rent e de i nt en ç ão , m as t am b ém , po r vez es, qu ando i nv ocada e m
afl i ções de m edo ou de dúvi da, t raz endo “apenas” uma b oa hora ,
t ranqui l i dade ou um a sol ução a qu em a pedi u.
Facilme nte podemo s verificar, ainda, que muitas crença s e m
santos, ou em nossas senhoras e nas suas respectivas capacidades
interventivas
nas
dores
e
alegrias
das
populações
são
transposições fiéis dessas crença s primitiva s: os no mes mudara m,
mas o funda me ntal manteve -se. Co mo diz o abade de Baçal,
apesar dos propósitos da Igreja Católica, o povo, indiferente aos
no me s e às imposições, prossegue se mpre co m a cultura que lhe é
própria.
228
227
Fernanda Frazão, Passinhos de Nossa Senhora , Lisboa, Apenas Livros
Lda., 1ª ed., 2006, p.11.
228
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., pp. 16 e 17.
128
Mas t am bém pod e ser, e t al vez na m ai or pa rt e d as vez e s, a
“cri s t i ani z ação” d a Grande M ãe.
O símbolo da Virgem, Mãe divina enquanto Theotokos,
designa a alma na q ual Deus se recebe a si mesmo, gera ndo -se a
si me smo e m si me smo, pois só ele é. A Virge m Maria representa
a alma perfe ita me nte unificada, e m que Deus se torna fec undo.
Ela é se mpre vir ge m, p ois perma nece se mpre intacta e m relação a
uma nova fec undidade.
229
De fa ct o , e com o v eri fi cou Fern anda F raz ão, “nenh um a l e nda
de ori gem popul ar f al a da Vi rgem Mari a, m as sem pre e só de Nossa
S enhora ou, si m pl esm ent e, da S enho ra. A Vi r gem Ma ri a fi ca
re gi st ada apen as na l i ngua gem e rudi t a do cl ero cat ól i co que, no
pas s ado, fez as gr an des recol h as”
230
.
[…] Será por acaso que, e m Portugal, raramente se me ncione
Nossa
Senhora
co mo
a
Virgem
Maria?
Nossa
Senhora,
ou
simple sme nte a Senhor a, é a denominação comum popular, e tal
facto parece ser reflexo dessa crença primitiva [a Terra -Mãe],
[…] As aparições d a Se nhora de Fátima são ma is outras aparições
de moura s encantadas, num co ntexto moderno. São inúmeros os
e x e m p l o s d e «r u m o r e s » q u e t a n t o s e r e f e r e m a o a p a r e c i m e n t o d e
uma moura, co mo de N ossa Senhora. […]
231
S em quererm os faz e r l i gaçõ es que não p oderí am os ex pl i car, não
podem os , cont udo, dei x ar de assi nal ar a coi nci dênci a dos espaços
em que se dão as ap ari ções vá ri as, quer da Senhora , quer de mouras
encant adas : “D e f ac t o, são dez enas as i m agens ap are ci das [ de Nossa
S enhora] em t ronc os de árvo res, j unt o a font es, n as pe nhas das
s erras. H á sem pr e u m m i l agre qu e se l h es associ a.”
229
230
231
232
232
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 698.
Fernanda Frazão, ob. cit., p.11
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., pp. 17 e 18.
Fernanda Frazão, ob. cit., p.11
129
[…]
As
mo uras
e
Nossa
Senhora
são
igualmente
confundidas quando, por vezes, se diz que esta levava uma pedra
à cabeça, enquanto faz meia, tal co mo se diz que aquelas fia m,
enqua nto transporta m o ta mpo de uma anta (Pala da Moura, T rás os-Monte s), ou a «Pe dra Formosa » de um castro (Briteiros,
Guimarães). Por outro lado, o tipo de local – gruta, árvore (como
é exe mplo a azinheira), penhasco, poço, mina, ca minho, fo nte,
etc. –, a descrição da aparição – uma se nhora resplandecente,
muito
branca
–
importante
e
bela
como
–
e
um,
aparecer
ou
a
outro
pastores
ponto,
não
ou
jovens
a
menos
das
populações rurais, o segredo a ma nter, etc. – são outros ta ntos
ele me ntos que se repete m ne stes dois géneros de aparições.
233
E t am bém Al ex andre P arafi t a, a prop ós i t o da descobert a de
i m agens s a grad as, f enóm eno, pel os vi st os, de m ai or i nci dê nci a em
Trás -os -Mont es, e , que nós sai bam os, sem ocorr ênci a no Al ga rve
(pel o
m enos
di gna
de
not a),
rel aci o na
a
Vi rgem
Mari a
com
pers ona gens de out ras l endas e ch am a a at en ção p ara a f i gura do
“des cobri dor ”
das
i m agens
que,
na s
l endas,
t em
paral el o
na
pers ona gem a quem a Senhora ap are ce:
[…] Vulgar me nte designado por culto mariano , há nele uma
forte co mponente ico nológica. Antes do período da Reconquista,
as ima ge ns da Vir ge m era m pratica me nte inexiste nte s e o seu
aparecime nto
em
locais
muito
específicos
acontece
sempre
acompa nhado de lendas que apresenta m um fundo co mum no seu
conjunto.
Desse fundo co mum é de realçar a figura do “descobridor” :
geralme nte um pastor ou um la vrador, pessoa se m um status
relevante e me nos ainda no quadro da instituição religiosa. E não
é despicienda tal condição. Como não é e m vã o que ela é també m
comum à ge neralidade das aparições marianas (que conte mpla m
sobretudo crianças de famílias pobres e de escassa instrução). A
circunstância
de
socialme nte,
inibe
haverem
planeado
se
à
tratar
de
partida
uma
acção
pessoas
toda
e
simp les,
qualquer
estratégica
cultural
presunção
visando
um
e
de
culto
iconológico cristão. Por isso, quanto mais a lenda acentue a
233
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 19.
130
humildade social e cultural do “descobridor”, ma is convincente
resultará o se u te ste munho, e a leitura a fazer do fe nó me no
parecerá deixar claro que a iniciativa da “descoberta” não partiu
do “descobridor”, mas da própria ima ge m, impulsionada por uma
força sobrenatural num universo de códigos co municativos só
interpretáveis no do mínio do sagrado.
234
Mas é i m possí vel di s soci ar a Senhora da i m agem da serp e nt e,
poi s a própri a Nos sa S enhora da C on cei ção, a quem D. J oão IV
con s a grou a Na ção , apar ece rep resent ada com aquel e an i m al . S ó
que, di z Fernanda Fraz ão, a Senhora , “segundo a Igr ej a , pi sa a
cabe ça da se rpent e ” , enquant o que “na gr ande m ai ori a d as i m agens,
i s s o não acont ece: a serpent e enrosc a - s e-l he nos pés, abr açando o
gl obo t er rest re, vi v a , bel a e, ap arent em e nt e, pací fi c a”.
235
Ora, na opi ni ão de st a aut ora, o nosso t erri t óri o, a Terr a de
Ofi úsa, «T e rr a da S erpent e », dev e est a desi gna ção ao fa ct o de “aqui
t erem
encont rado,
m ui t o
vi vo,
um
cul t o
cuj a
di vi ndade
e ra
pers oni fi ca d a pel a s erpent e. E ess a di vi ndade e ra a G rande Mãe, a
deus a da fecundi d ad e, a deus a dos ani m ai s, a deusa dos el e m ent os, a
deus a de t udo e d a m ort e t am bém : a S e nhora .”.
236
E, sendo assi m , o cul t o de N ossa Senhora pode rem ont ar a
épocas pr é -hi st óri ca s, t ai s com o out ros a que j á nos r efe ri m os.
Ainda que não seja conhecida senão uma pequena imagem
feminina do paleolítico português, do nosso neolítico, são bem
conhecidas as muita s image ns da Senhora – «a deusa dos olhos de
sol», co mo lhe c ha mo u um arqueólogo – gravadas e m placas de
xisto.
Associadas
à
serpente,
sur ge m,
no
nosso
território,
ima gens co mo espirais, labirintos, serpentifor mes. Pertence m já
ao período da agricultura, e muitas veze s estão inscrita s nas
bases enterradas dos menires, ligadas a cultos su bterrâneos de
morte e rena scime nto, de vida, enfim.
234
Alexandre Parafita, Mitologia dos Mouros, p. 73.
Fernanda Frazão, ob. cit., p.11 : a autora faz, ainda, referência a
imagens populares de Estremoz, em que a serpente se enrola “nas p ernas
de Nossa Senhora, pousando a cabeça na região púbica”.
236
Fernanda Frazão, ob. cit., p. 12.
235
131
A Nossa Senhora cristã incorporou, de resto, todas as
características das divindades fe mininas da H uma nidade. […] E,
n ã o b a s t a n d o a s i n v o c a ç õ e s , v e j a m - s e o s l o c a i s d e «a p a r i ç ã o » d a s
diversas imagens: font es, barrocais, árvores, grutas. Lembram
histórias de mo uras e nc antadas…
237
O que nos rem et e, n ovam ent e, par a a s er pent e:
E cá voltamo s à nossa Senhora / Serpente, numa ima ge m de
órobo (a serpente q ue morde a ca uda), de infinito, de eterno
r e t o r n o , a n o s s a « p e s c a d i n h a d e r a b o n a b o c a ». C r e i o p o d e r
dizer-se que a repetitividade das temáticas do lendário de Nossa
Senhora demo nstra à saciedade que lhes está subjacente um mito
conte mporâneo do nasc ime nto da Huma nidade, que engloba todo
o País e, na verdade, tod o o mundo.
238
E os desenhos de s e rpent es, i nscul pi dos em ped ras, t r az em - nos
de vol t a a N ossa Se nhora :
Convém realçar aqui um outro desenho insculpido nas
rochas,
muito
abundante,
em
Portugal:
os
podomorfos.
Encontram-se, na maioria das vezes, associados a os desenhos
referidos atrás [insculturas e pinturas na própria decoração de
mo numento s: e spirais,
círculos,
ziguezagues,
antropomor fas,
cabeças
serpente s ou dese nhos serpentifor me s,
labirintos,
de
bovídeo
mac ha dos,
e
outros],
us,
figuras
sobretudo
às
serpentes o u aos dese nhos serpentifor mes, símbolos da fertilidade
e da regeneração sazonal. Aparecem de Vila Real, a Tondela, de
Eiró ao vale do Tejo, do Alto ao Baixo Alentejo e ao Algarve.
São, aliás, referência constante em lendas medievais portuguesas
deno minadas, às vezes, por pegadas da burra que Nossa Senhora
mo nta va.
239
237
Ibidem.
Idem, pp. 15 e 16.
239
Gabriela Morais, Lenda da Fundação de Portugal, Irlanda e Escócia ,
Lisboa, Apenas Livros Lda., 2ª ed., 2006, p. 34.
238
132
Mas t am bém n ão é possí vel di ssoci ar N ossa Senhora do m ês
d e Mai o, das fl o res e de t oda a bel ez a ex uber ant e da nat urez a na
P ri m avera.
Plasmando todas as a ctividades, a influê nc ia prima veril
impregna
assim,
formal
ou
infor malme nte,
organizada
ou
espontanea me nte, co mo ele me nto central o u c omple me ntar, todas
as
acções
festivas
(hoje
predominante mente
maria nas)
acontecidas nesta a ltur a do ano, especialme nte as localizadas no
te mpo primordia l e fertilizante das cale ndas de Maio.
240
E as t r adi ções l i ga das às “c al endas d e Mai o” n ão são po ucas
por t odo o paí s, do Mi nho ao Al garv e – das “m arafon as” de t rapo à
apanha do “di a d a espi ga ”. N est a noss a re gi ão, t am bém é cost um e
faz er uns bol o s pr ópri o s , fei t os de m i ol o de am êndo a, que s e
cham am “rol has de Mai o” , que os al gar vi os com em , acom panhados
de vi nho doce, ger al m ent e em pi queni ques, ao ar l i vre, t radi ção a
que dão o nom e de “ desarrol ha r o Mai o” .
E t odas est as fest as se d est i nam a dar as boas -vi n d as à
P ri m avera. N ão ser á, t al vez , por a caso , que N ossa Senhor a apar ece
em Fát i m a, em Mai o …
O que se pode dizer, sim, é que coexiste m naturalme nte,
aqui, múltiplas influê ncias, que se funde m num co mp lexo mítico
de que aspectos cultura is e históricos part icipam e m simb iose.
São, por um lado, as festa s das maia s, sobrevive ndo nas
marafonas que se constroe m para o efeito e se manip ula m
durante todo o percurso, bem ainda co mo na s danças e cantos que
tão característicos são das calendas de Maio.
São,
por
outro,
as
festas
das
cruzes,
persistindo
na
te mporalidade, na denominação (e mbora em d esuso) e na relação
eventual com o culto mariano de Nossa Senhora do Pé da Cruz,
hoje em dia transferida para Nossa Senhora do Castelo, […]
240
Aurélio Lopes, Personagens Florais
Lisboa, Apenas Livros Lda., 2007, p.3.
241
Idem, p.18.
e
Espíritos
da
241
Vegetação ,
133
Mas não é só com a serpent e e o m ês d e Mai o qu e a fi gu ra de
N os s a Senhora se rel aci ona: sí m bol o da vi da e da f ert i l i dade por
ex cel ênci a, a á gua n ão podi a fal t ar nest e cont ex t o. Mari a, segundo o
P adre Ant óni o Vi ei r a, si gni fi c a “ Domi n a Mari s , senhora do m ar”
242
e é prot a goni st a de al gum as l endas l i ga das ao m a r, nom ead am ent e a
d e “Nossa S enho ra e o Li n guado ” ( LC NS 4) .
Est a soberani a da s águ as
t am bém f az de Iemanj á a sua
repres ent ant e no s t e rri t óri o s afri c ano e brasi l ei ro :
De acordo com a mito logia ioruba, Iema njá é um orixá
243
fe minino, consi derada «a se nhora das grandes água s , mãe dos
deuses, dos homens e dos peixes, aquela que rege o equilíbrio
e mocional e a louc ura », […] No Brasil, sa udada como a rainha
d o m a r , I e m a n j á é «t a l v e z o o r i x á m a i s c o n h e c i d o » ( P r a n d i ,
2001), […]
No período da escr avidão, como os Negros não podiam
cultuar livre me nte os seus orixá s e era m pressionados pelos
padres catequista s a se convertere m ao catolicismo, procurara m
utilizar os sa ntos da I greja Católica co mo disfarce dos deuse s
africanos e, assim, poder reverenciá -los em seus cultos. Nas
senzalas
244
, por necessidade de adaptação às condições a que
estavam submetidos, erguiam pejis
mas atrás delas, colocavam otás
245
com imagens de santos,
246
, elementos que representavam
os orixás. No sincretismo religioso que resultou dessa prática,
242
Padre António Vieira, Sermão de Santo António , ed. Preparada por
Manuel dos Santos Alves, Lisboa, Livraria Popular de Francisco Franco,
1976, p. 27.
243
“O r i x á : s e g u n d o « o s i o r u b á s t r a d i c i o n a i s e s e g u i d o r e s d e s u a r e l i g i ã o
nas Américas, os orixás são deuses que receberam de Olodumare ou
Olorum, também chamado de Olodim em Cuba, o Ser Supremo, a
incumbência de governar o mundo, ficando cada um deles responsável
por alguns aspectos da natureza e certas dimensões da vida da sociedade
e da condição humana» (Prandi, 2001, 20)”, in Maria de Lurdes Soares,
B.I. da Iara, do Boto e de Iemanjá, Lisboa, Apenas Livros Lda.,
2008, nota 3, p. 42.
244
“Senzala: alojamento destinado à moradia dos escravos nos engenhos
de açúcar e nas fazendas do Brasil”, in Maria de Lurdes Soares, ob. cit.,
nota 5, p. 42.
245
“Peji ou quarto de santo: altar onde são colocados os assentamentos
dos orixás”, in Maria de Lurdes Soares, ob. cit., nota 6, p. 42.
246
“Ot á s : t a m b é m c h a m a d a d e i t á o u O t á - d o - s a n t o : p e d r a - f e t i c h e s o b r e a
qual o axé (a força sagrada) de um orixá é fixado por meio de ritos
consagratórios, e que constitui o seu símbolo principal”, in Ma r i a d e
Lurdes Soares, ob. cit., nota 7, p. 42.
134
Ie manjá corresponde, na religião católica, a Nossa se nhora da
Conceição, a mba s ide ntificadas co m a cor azul clara, e ta mbé m a
Nossa Senhora dos Navegantes (Rio Grande do Sul), Nossa
Senhora da Glória (Rio de Janeiro), Nossa Senhora das Cande ias,
Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora da Piedade.
247
E t am bém a associ ação com os ri t m os l unares a ap rox i ma de
N os s a Senhora :
O simbolismo do abebé ou espelho liga -se e m especial à
principal característica de Iema njá: a mater nidade. Como mãe da
criação, mãe de todos os filhos, Ie ma njá é o espelho do mundo. É
ela que orienta, q ue educa os se us filho s, mostra ndo -lhes o u
abrindo-lhes os caminhos. Não faz distinção entre eles, por isso
é aquela q ue reflecte todas as diferenças . O espelho é um
símbolo d as águas e m geral. A for ma arr edondada do abebé
representa a fecundidade e lembra ta mbé m a lua cheia, conhecido
símbolo do fe minino. Outros símbolos de Iemanjá são o quarto
minguante, as ondas e os peixes.
Nas
representações
significativa
a
essencialmente
presença
pela
de
Iema njá,
do
portanto,
simbolismo
mudança.
A
lunar,
poderosa
é
bastant e
caracterizado
deusa
rege
o
mo vime nto rítmico da vida, co m se us ciclos q ue se alterna m e se
sucede m, do nascime nto à morte, como as fa ses da Lua. A ideia
de
mudança
e
de
movime nto
encontra -se
també m e m outro
símbolo de Ie manjá, as ondas, associadas ao mo vime nto do mar,
ao incessa nte ritmo das marés.
248
247
Maria de Lurdes Soares, B.I. da Ia ra , d o Bo to e d e Iema n já ,
Lisboa, Apenas Livr os Lda., 2008, p. 4.
248
Idem, pp. 15 e 16.
135
5 .3 .CICLO D OS SANTOS
Equi parados a di vi ndades m enores, m en os poderosas, m as nem
por i sso m enos út ei s no process o de i nt ercessão, const i t uem um a
gal eri a num e rosa. T êm quase sem pr e f unções espe cí fi cas, com o é,
por ex em pl o, o caso de S ant o Ant óni o, o casam ent ei ro. As própri as
fogu ei ras ac endi das em sua honra são , de al gum a fo rm a, c anai s do
s eu poder, poi s não há m ui t o s anos ai nda se acr edi t ava nas sort es de
St o. Ant óni o .
249
Apare cem , po r vez es, par a p rot e ger em al guém num a si t uação
es pecí fi c a, quando i nvocados por um a p essoa que nel es t em um a fé
i nabal ável . Em a gr adeci m ent o por ess es sal vam ent os, o prot egi do
m anda e r guer um a c apel a ou, se n ão t e m posses par a t ant o , const rói
um
ni cho,
ger al m ent e
revest i do
a
az ul ej os,
al usi vo
ao
acont eci m ent o.
249
manifestações
divinas,
do
santo,
através
de
práticas
mágicas
(adivinhatórias) em objectos com os quais se saltava a fogueira três
vezes, esperando -se depois toda a noite para, de manhã, encontrar a
resposta do “oráculo” para o futuro amoroso da rapariga; faziam -se com
favas, com chumbo derretido em água e com água simples; nas que
envolviam água, saltava -se a fogueira ao mesmo tempo que se segurava
uma vasilha com essa água, que depois era usada para a adivinhação –
poderemos
fazer
uma
associação
com
o
Graal,
à
luz
da
relação
estabelecida por Gabriela Morais, em Lenda da Fundação de Portugal,
Irlanda e Escócia? Diz esta historiadora (p.45): “O cálice do Graal faz
parte do contexto da ritualização e do cerimonial do caldeirão, símbolo
do
acto
essencial e regenerador do
alimento.
Este,
tornado social,
começou por ser, certamente, celebrado à volta da fogueira e adquiriu
estatuto à volta da mesa dos banquetes […]”. Ou será “simplesmente” o
vaso, conotado com o útero materno, uma vez que todas estas sortes se
relacionavam com o casamento – a profissão do futuro marido, condição
sócio-financeira, nome e, até, o próp rio indivíduo (que seria natural que
fosse um rapaz da aldeia)?
136
Não i nt eressa a su a ori gem nem o seu passado, o sant o foi
al gu ém que, a part i r de um m om ent o preci so, passou a i nt egr ar o
s agrado:
[…] se na hagiografia cristã os maiores pecadores se
tornam
os
ma iores
santos,
isso
não
acontece
apenas
para
edificação dos fiéis quanto à omnipotência da graça divina, mas
ta mbé m por efeito de uma muda nça de sinal, se mpre possível na
ordem das bê nçãos, do s recursos e xcepcionais ma nifestados pela
enor midade das falta s.
250
Mui t o provavel m ent e, t erá m esm o si do a Igrej a C at ól i ca que,
vol unt ari a ou i nvol unt ari am ent e, aj udo u a propa gar al gum as l endas,
com o crê em t am bém Fern anda Fraz ão e Gabri el a Mo rai s:
Não ignora mos que, na Idade Média, muita le nda nasce u a
partir do objectivo de divulgar a vida de santos – as hagiografias
–, divulgação essa q ue era feita, precisa mente, através da leitura
pública. E, se atender mo s ao a fã siste mático da Igreja Católica
para
extirpar
quaisquer
compree ndere mos
aproveita me nto
a
razão
claro
do
vestígios
de
que
ser
das
anteriores
desse
vinha
de
crenças,
nascimento.
trás
e
que
Num
sabia
profundamente arreigado nas crenças das camadas populacionais
que pretendia catequiz ar, apropriou -se dos ele mentos esse nciais
contidos nas tradições de cariz popular para os desviar, adaptar,
recriar
e
assim
os
devolver
com
outras
roupagens,
mais
consentânea s co m as cr enças que desejava imp or. Já o insuspeito
abade
de
Baçal afirmava
que:
«[…]
o
c atolicis mo
teve
de
adaptar -se, transigir, copiar mesmo as fór mulas, indume ntária e
técnica linguística»
251
D este modo, a Igreja Católica apropriou -se
deste tipo de histórias orais para as devolver reconvertidas,
e s c r i t a s , d e e l a b o r a ç ã o e r u d i t a m a s a o j e i t o p o p u l a r , p o i s «o
s u p o r t e d e u m a c r e n ç a é o u t r a c r e n ç a » 252.
250
Roger Caillois, ob. cit., p. 47.
Francisco Manuel Alves, abade de Baçal, Memórias Arqueológico Históricas do Distrito de Bragança , tomo IX, Bragança, Tipografia
Académica, 1982, p. 174, apud Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob.
cit., p. 52.
252
Honório M. Velasco, op. cit., p. 119, apud Fernanda Frazão e
Gabriela Morais, ob. cit., p. 11.
251
137
Ora, ai nda s e gund o as m esm as i nvest i gador as, t am bém os
s ant os, em part i cul ar os conheci dos p or “sant os popul are s”, est ão
rel aci onados com o ut ras apa ri ções, qu e j á apr esent ám os, t odas el as
apont ando na m esm a di rec ção – os ant i gos cul t os de fert i l i dade.
Os
santos
populares,
uma
óbvia
cristianização
das
celebrações solsticiais mile nares be m co mo as fe sta s das Maia s
ou
da
espiga,
estão
estreita me nte
relacionados
com
os
mo vime ntos cíclicos d a natureza, de seca e de chuva, co m as
se me nteiras e a s colheitas e, portanto, ta l co mo as mo uras
encantada s, encerra m e m si, ta mbé m, os mite mas característicos
dos primitivos c ultos d e fertilidade.
253
E os cul t os de f ert i l i dade po r oc asi ão do sol st í ci o de V erão
rem ont am t am bé m , com o sabem os, aos cel t as:
A importâ ncia sacrofe stiva dos a ntigos cerimo niais ce lto bretões
de
«b e l t a n e »
e
a
forte
intensidade
flamejante
e
fecundante do solstício de Verão tornara m o e spaço te mporal por
eles delimitado,
podemos
no
chamar
o
mo me nto
grande
por
ciclo
excelência
festivo
daquil o
da
a que
exaltação
da
Prima vera.
Datas cronologica me nte datáveis era m vista s como ocasiõe s
reguladoras de um cosmo e ntendido co mo e ntrópico e renovável.
Numa visão cósmica da existê ncia e m que o ho me m constitui,
apenas, parte de um todo maior de que participa como que e m
simbiose, e stes são te mpo s tão sa grados qua nto a fertilidade e a
vida, aí exaltados, o podem ser.
Eivados
simple sme nte
marcantes
de
funções
catalisadoras,
divinatórias,
da
gestação
e
apresentam-se
crescime nto
propiciatórias
co mo
de
uma
ou
ele mentos
natureza
periodicame nte grávid a de vida. De uma mãe -terra que gera,
incessantemente,
novas formas de
vida arrancando -as à sua
própria substância. Que fecundadas pelo sémen celeste (que a
253
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 33.
138
chuva
corporiza)
existências.
explode,
ciclica mente,
numa
sinfonia
de
254
A rel a ção ent re S . J oão e as mouras e ncant adas é por d e m ai s
evi dent e nas l enda s recol hi das, e At aí de Ol i vei ra av an ça um a
pos s í vel ex pl i cação para est e fa ct o:
As noites de S. João no Algarve simboliza m uma verdadeira
religião tradicional, cuja crença se conserva de séculos arreigada
no coração algarvio . Convenço-me de que de longa data tem sido
festejada a
noite consagrada ao santo
glo rioso. Os mo uros
iguaa lme nte festeja m o mesmo Sa nto, se gund o se vê nos livros
antigos. Por isso talvez a ma ior parte das lendas de mouros tê m o
seu enlace ou desenlace naquelas noites.
255
Mas não podem os e squecer a dat a da s ua com em ora ção e a sua
as s oci aç ão com o so l st í ci o de Verão.
Mas recordemos ta mbé m os rituais da água q ue se recolhe
para beber ou para libações, na véspera de S. João, em busca dos
seus
milagres
curativos
e
fecundadores.
Água
retirada
das
mesmas fo ntes o nde se diz que estão as mo uras e nca ntadas.
Águas, fertilidade e re generação, a cobra e as moura s enca nt adas,
todos são mite mas d o mesmo co njunto. E os exe mplo s das
aparições neste conte xto são, evidente me nte, à s cente nas.
256
C i t ando ai nda as m esm as aut oras, na Al em anha, as fo gu e i ras
t radi ci onai s “de pi nhei ro for am pri m i t i vam ent e em honr a de Fr ei a,
deus a-m ã e da fe rt i l i dade” que, d e a cord o com C onsi gl i e ri P edroso,
t erá si do “subst i t uída por S . J oão, no C oncí l i o de Agda, no sécul o
V I”.
257
O que col oc a S . J oão, t al com o a Senhora , no j á ci t ado
«c a m i nho da serp ent e »:
254
Aurélio Lopes, ob. cit., p.3.
Ataíde Oliveira, As Mouras Encantadas e os Encantamentos
Algarve, pp. 220 e 221.
256
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 34.
257
Ibidem.
255
do
139
É nossa convicção que, para alé m de sere m «cac os» de
mitos
da
nossa
mais
longínqua
pré -história,
deles
[dos
«r umores»] depende m muita s crença s (ou uma s e outras tê m
subjacente o(s) me smo(s) mito(s)), co mo a crença em bruxas,
fantasmas e a lma s -pena das, o entreaberto, os trasgos, fadas, etc.,
e, até, muitas das cha madas «le ndas urbana s» actuais, co mo a
história da costureira que faz ouvir a sua eterna máquina de
costura, cujo paralelismo co m a mo ura tecedeira nos parece claro,
ou a do fantasma de uma mulher que pede boleia numa estrada.
Pensa mos que este corpus está també m intima mente associado a
muitas práticas de religiosidade popular, como as já mencio nadas
interpretações ao vivo, as festas dos santos popula res, em que se
destaca S. João, e tantas outras. T odas estas ma nifestações são
reflexos do que r e sta do mito, contê m mite mas de uma me sma
concepção do mundo de fundo pré -histórico. Analisadas e m
muitos dos seus elementos constitutivos, desde as razões de tais
festejos até à gastro no mia, pode mos verificar que todo este
conjunto faz parte de um só «ca m inho da serpente » e m Portugal,
desde a Pré-História até hoje.
Aos
Sant os
Popul ares
258
est á
associ ad a,
obri gat ori am ent e ,
a
“fes t a ”, que, ai nda que ap arent e o cont rári o, apres ent a um a r el ação
es t rei t a com o sa gra do:
[…] as festa s proporciona m, e m co mparação com os dias
úteis, à distinção entr e o sagrado e o profano. Elas opõem, na
verdade, uma e xplosão inter mite nte a uma baç a continuidade, um
frene si exalta nte à repetição quotidiana das me sma s preocupações
materiais, o corpo poderoso da efervescênc ia comum a os calmo s
trabalhos
em
que
cada
qual
se
afadiga
isolada me nte,
a
concentração da sociedade à sua dispersão, a febre dos seus
instantes culminantes ao tranquilo labor das fases átonas da
existê ncia. De mais, a s cerimónias religiosa s de que elas são
ocasião tr anstorna m a alma dos fiéis. Se a festa é o te mpo da
alegria, é ta mbé m o te mpo da a ngústia. O jejum, o silê ncio, são
obrigatórios antes da expansão final. Os interditos habituais são
reforçados,
258
certas
proibições
novas
são
impostas.
Os
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., pp. 25 e 26.
140
transborda mento s e os excessos de toda a espécie, a solenidade
dos
ritos,
a
severidade
prévia
das
restrições,
concorrem
igua lme nte para fazer da ambivalê ncia da festa um mundo de
excepção.
Na realidade, a festa é freque nte me nte tida pelo próprio
reino do sagrado. O dia de fest a, o simp les d omingo, é a ntes de
mais um te mpo consa grado ao divino, e m que o trabalho é
interdito, em que se deve repousar, gozar e louvar a Deus. […]
259
E não será, t al vez , por acaso, qu e, e m bora o di a de S . J oão
es t ej a m ai s próx i mo do própri o di a do sol st í ci o de Verão , os di as
dos t rês Sant os apa recem s e gui dos e m ui t o próx i m os, ocupando as
res pect i vas fest as pr at i cam ent e t odo o m ês de J unho (de 12 a 29) .
O excesso não se limita então a aco mpanhar a festa de
for ma co nsta nte. Ele não é um simples epife nó m e no da agitação
que ela desenvolve. É necessário ao suce sso das cerimónia s
celebradas, participa da sua virtude santa e contribui co mo elas
para renovar a natureza ou a sociedade. Realme nte parece não
haver d úvida de que esta é a finalidade das fe stas. O t e mpo
esgota, exte nua. Ele é aquilo que faz e nvelhe cer, o que caminha
para a morte, o que desgasta : é o próprio sentido da raiz donde
são extraídas em grego e em iraniano as palavras que o designam.
T odos os anos a vegetação se renova e a vida social, do me smo
modo que a natureza, inaugura um no vo ciclo. T udo o que existe
deve então ser rejuvenescido. É preciso recomeçar a criação do
mundo.
260
E não é, obvi am ent e, di fí ci l , rel aci onar est as fest as dos Sant os
Popul ares com os ant i gos ri t uai s pagão s, cul t os de fert i l i dade, quer
pel a époc a, que r pel as m ani fest a ções (fo guei r as, sal t os por c i m a das
fogu ei ras e sort es ), quer pel a i nt enção dest as m ani fest açõ es , que r
pel os seus própri os l ocai s de cul t o e ve neraç ão .
[…] as festa s dos santos populares estão estreita me nte
ligadas
259
260
às
mouras
encantadas,
não
só
por
serem
a
época
Roger Caillois, ob. cit., p. 97.
Idem, p. 99.
141
preferencial para a sua aparição, como pelos aspectos do mito
subjacentes a a mbos os fenó menos. Por outro lado, elucidativa é
ta mbé m a prática gera l de cristianização da grande maioria dos
locais o nde é voz corrente este s ente s mítico s se ma nifestare m:
neles colocou-se uma imagem de Nossa Senhora ou de um santo,
ergueu-se um cruzeiro, ou uma capela, etc.
261
Mas há out ros sant os e sant as i gu al m ent e “ ant i go s ”. Gab ri el a
M orai s ex pl i ca a ori gem cel t a de S ant a Ana e de S ant a B rí gi da:
(É interessa nte verific ar, por outro lado, que ta mbé m faz
parte do panteão celta irlandês o nome da deusa Brigantina, com
grandes semelhanças com uma outra, a deusa Brígida ou Brigite,
que os mitógrafos consideram identifica r-se com a principal
deusa dos Celtas, Dana ou Ana. Ora esta deusa bem conhecida da
religião primitiva portugue sa, está presente no no me do rio
Guadiana o u, até, e m Santa Co mba Dão (Dão ou Don, no me
ta mbé m de um rio da Europa Central, que se rá a ma sc uliniz ação
de Dana), para além de se encontrar em tantos outros topónimos
de vilas e aldeias portuguesas. Sofrendo depois a cristianização
para Santa Ana ou Santa Brígida, vale a pena acrescentar que esta
última aparece conside rada como ir mã de S. Brissos (santo dos
primórdios do cristianismo), no me igualme nte de, pelo menos,
duas povoações e igrejas no Alentejo. No processo de evolução
da religião primitiva matriarcal para a religião patriarcal, uma
deusa
passou,
masculino.)
nor ma lme nte,
a
ter
o
seu
correspondente
262
E são v ári os os s an t os que se rel a ci ona m com a s erpe nt e , sej a
qual for o m ot i vo apresent ado com o pret ex t o. “ S ão J orge ou S ão
M i guel e o dr a gão, que os art i st as re present ar am m ui t as vez es a
com bat er, i l ust ram a l ut a perp ét ua do m al cont ra o bem ”
263
,
confundi ndo -se, po r vez es, o dr a gão e a serp ent e , p resum i vel m ent e
por
serem
am bos
guardi ã es
“seve ros”
de
t esouros,
pel as
s em el hanças d e am bos com a serpent e -pássa ro Quet z al c oal t , com
261
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 19.
Gabriela Morais, Lenda da Fundação de Portugal, Irlanda e Escócia ,
p. 18.
263
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 274.
262
142
out ras “bi chas” co m cabeça de m ul he r, com Apófi s – a serpent e dra gão que at ac a a b arca sol ar de R á.
Realmente, o dragão como símbolo de moníaco identifica -se
com a serpe nte: Oríge nes confir ma esta identidade a propósito do
Salmo 74 (ver Levia tã). As cabeças de dra[g] ões quebradas e as
serpentes destruídas sã o a vitória de Cristo sobre o mal. Alé m
das imagens bem conhecidas de São Miguel ou de São Jorge, o
próprio Cristo é por vezes representado calcando aos pés um
dragão.
264
Nest e cont ex t o de vi t óri a do bem sobre o m al , da i co nogr afi a
cri s t ã, “ em t odos os cená ri os de T en t a ção”, M ari a T er esa Mei rel es
acres cent a que “S . P at rí ci o, S . P aul o, S . Fi l i pe, S . Ben edi t o, S . J oão
M oi sés e A arão sã o al gum as das fi gu ras m ascul i nas que com el a
[ s erpent e] , de al gum m odo, se rel aci on a m .”
265
R el aci onando -se t a m bém com um anim al , m as apare nt e m ent e
m ui t o di ferent e – u m a ave, o corvo – t em os S . Vi cent e. E di z em os
“apar ent em ent e ”, p orque, com o j á vi m os, bast a s er um a a ve pr et a
para se r i m edi at a m ent e conot ada co m “as forç as do Mal ”. No
ent ant o, não par ec e que est es corvos qu e acom panh aram o f ér et ro d e
S . Vi cent e fossem de al gum m odo m al éfi cos , pel o cont rá ri o, poi s
i m pedi ram a dest rui ção do corpo do sant o. É que, nest e caso, a cor
pret a não est á di rect am ent e rel a ci onada com o Di ab o e, por
cons e gui nt e, com b rux as ou out ras fi guras suas subordi na da s, m as
com o ant i go cul t o de S at urno, com o adi ant e ve rem os. E o corvo ,
habi t ual m ent e assoc i ado às brux as, na nossa época, era con si derado
um a “ave ora cul ar” , em t em pos t ão rem ot os com o a pré -hi st óri a,
at es t ada no l oc al pe l a ex i s t ênci a de m en i res e out ros v est í gi os.
Assim, na ma ior parte das crenças a se u respeito, o corvo
aparece
como
um
herói
solar,
muitas
vezes
de miur go
ou
mensa geiro divino, e m todo o caso guia, e, até, guia das alma s na
264
Idem. p. 272.
Maria Teresa Meireles, B. I. da Serpente, Lisboa, Apenas Livros
Lda., 3ª ed., 2006, pp. 26 e 27.
265
143
sua última via ge m, pois, sendo psicopompo, ele penetra, se m se
perder, o segredo das trevas. Parece que o seu aspecto positivo
está
ligado
pescadores,
às
crenças
tornando -se
dos
negativo
desenvolvimento da agricultura.
266
povos
nómadas,
com a
caçadores
sedentarização
e
e
o
266
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 235.
144
I I
P A R T E
CONTRIBUTO PARA A ANÁLISE
E A INTERPRETAÇÃO DAS LENDAS
SOBRENATURAIS ALGARVIAS
145
1. A ACÇÃO E OS AGENTES NARRATIVOS
C om o afi rm ám os nout ro t rabal ho, s e é verdade qu e, em m u i t os
cas os, há um a se m el hança ent re as car act e rí st i cas do s vári os
m om ent os em que s e pode di vi di r a a cç ão, não é m enos ver dade que ,
em m ui t os out ros, t am bém , t udo suce de de form a i nesp erada. É
m ui t o di fí ci l e arri scado, at é, t ent ar a pont ar um a est rut ura com o
s endo t í pi ca dest as l endas. E est a i rre gul ari d ade é v eri fi c a da quer
nas “nar rat i vas com pl et as” quer nos “ep i sódi os l endári os”.
No ent ant o, em gera l , t ant o nas nar rat i v as com o nos epi sódi os,
o narr ador é pr ed om i nant em ent e het erodi e gét i co, ocor r endo, por
vez es, al gum hom odi egét i co. C om o excepç ão, t em os os casos de
b rux ari a cont ados pel os própri os pr ej udi cados ou seus parent es ,
pel o
que,
nest e
cont ex t o,
surge m
narrador es
aut odi egét i cos
(nom eadam ent e na r ecol ha de M ar ga ri da Tengarri nh a e na n ossa).
As persona gens são quase sem pr e adul t a s, raras v ez es apa re cem
cri anç as , nas l end as, e m esm o os moi ri nhos são poucos. Nos
epi s ódi os são bast an t e m ai s frequent es.
O encad eam ent o p redom i na em t odos os t i pos de t ext os,
havendo ap enas doi s encai x es em du as l endas, com o v er e m os. S ão
m ui t o poucas as na rrat i vas abert as, ent re as l en das, e os e pi sódi os
cons i st em
t odos
em
narrat i vas
fechad as
(consi derando
as
pers ona gens hum an as, se ex cept uarm os o fact o de não sab erm os o
que acont e ce à cobr a, à al m a p enada ou ao cão pr et o…).
O
t em po
ani s ocroni a s,
das
com o
“ narrat i vas
anal epses,
com pl et as”
el i p ses,
pod e
ap rese nt ar
prol epses,
d escri çõ es,
res um os, m as o dos “epi sódi os l endár i os” é quase s em pr e l i near,
res pei t ando a ord em cronol ógi ca dos ac ont eci m ent os (ex ce pt uam -se
al gum as al usõ es a acont eci m ent os a nt eri ores, com o no caso da
cos t urei ri nha, ou a ex i st ênci a de um cem i t éri o, ant i ga m ent e, em
Bur gau. ).
146
O espaço é t al vez a cat ego ri a da narr at i va m ai s com pl ex a nos
epi s ódi os, apresent ando um a va ri edad e ai nda m ai or do q ue a d as
l endas – em qu al qu er sí t i o pode o corr er um a si t ua ção d e car áct e r
s obrenat ural . A di f i cul dade prende -se com a quant i dade de l ocai s
apont ada.
1.1. O NARRADOR
Mediante as palavras, quando estas florescem nos seus
lábios incontaminados, o narrador cria espaços de ficção, novas
realidades que só se desva nece m no mo me nto e m qu e o relato se
conclui e a história contada ter mina. O narrador é o eixo –
escreve M. Vargas Llosa –, a coluna vertebral, o alfa e o ómega
de qualquer ficção.
267
Neste espaço aberto pode acontecer o
inesperado. […] A voz que narra é uma voz criadora, u ma voz
que desperta a imaginação e nos abre uma janela através da qual
poderemos entre ver outros universos.
Em
qual quer
dos
casos
268
(l endas
edi t adas,
i nédi t as
ou
recol hi das), o “ cont ador” é j á, evi d ent e m ent e, um “recont a dor” . As
hi s t óri a s
que
t rabal ham os
são
as
úl t i m a s
dum a
sucessão
de
r epr oduções , em qu e , de um m odo ger al , a responsabi l i da de pel a
veraci d ade dos aco nt eci m ent os se pe rd eu no t em po. Ist o a pl i ca -se,
nat ural m ent e, a t odas, m as m ai s às que j á est ão publ i cadas, poi s o
edi t or, de cert a for m a, apenas rep rod u z o que l he cont ara m ( em bora
el e s ej a, t am bém , obvi am ent e, um “cont ador”), em i t i ndo, por vez es,
j uí z os de val or sobre o que cont a q ue ouvi u (com o é o caso
fl agrant e d e At aí de Ol i vei ra).
Mari a T eres a M ei rel es afi rm a qu e “o co nt ador pode, at r avés das
pal avras qu e escol he, dram at i z ar ou desdram at i z ar um a si t uação;
acent ua r um act o, refor çar c ert a hero i ci dade ou, pel o c ont rári o,
267
Mario Vargas Llosa, «La mentira de las verdades», EL PAÍS , 31 -X1999, p.16, apud Gabriel Janer Manila, Literatura Oral e Ecologia do
Imaginário, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2007, p. 2 7, nota 30.
268
Gabriel Janer Manila, ob. cit., p. 23.
147
ret i rar a fo rça devi da ao h erói / heroí n a. ”
269
E acr esc ent a q ue “não
s ão apenas as perso nagens que a gem , m as t am bém o cont ador que
as s i m t ransform a o seu cont ar si m ul t ane am ent e em voz e em eco.” 270
A m esm a aut ora e x pl i ca est a t ransfo rm ação, a p ropósi t o do
cont o, m as que cons i deram os que se apl i ca i gual m ent e à l en da:
Quem conta, transforma o conto ( Quem conta um conto
acrescenta um ponto). Que m o uve, ta mbé m transfor ma o conto
(Quem faz o conto é o ouvinte , escreveu Italo Calvino), e todo
aquele
que
ouve
um
conto
transforma -se
desde
logo
num
potencial contador.
O conto, por seu lado, transfor ma -no s – o conto possui, de
algum modo, o dom d a meta mor fose. Ante s e d epois do conto não
so mos os me smo s e, pelo meio, enq uanto e scuta mo s, passa mos
por uma e spécie de petrificação , de não -mo vime nto, da atenção
que o próprio conto exige de nós.
271
Um a at i t ude de des responsbi l i z ação ou, pel o cont rári o, de
cum pl i ci dade, t am b ém se v eri fi ca nas l endas r ecol hi das, o u sej a, n a
nos s a recol ha vi v em os, provavel m ent e, si t uações sem el hant es às dos
out ros col ect ores.
O contador pode estabelecer, com o ouvinte ou ouvintes,
uma forte c ump licidade, e por isso se se n te à vontade para
come ntar e sublinhar fa ctos do próprio conto […]
Muitas vezes, o contador explica e contextualiza o que
conta, sobretudo quando refere localidades específicas ou quando
usa
uma
palavra
anacronismo […]
que
pensa
ser
um
regionalismo
ou
um
272
Ai nda assi m , d e t o das, são as l endas i nédi t as (e al gum as das
recol hi das) as que “corr eram m enos m undo”, poi s não devem t er
269
Maria Teresa Meireles, A Palavra e os seus ecos, p. 7.
Idem, p. 11.
271
Maria Teresa Meireles, Quem isto ouvir e contar, em pedra se há -de
tornar – Sobre o conto e o reconto, 2ª ed., Lisboa, Apenas Livros Lda.,
2005, p. 18.
272
Maria Teresa Meireles, A Palavra e os seus ecos, p. 9.
270
148
s i do m ui t o propagad as for a daqu el a z ona (no m áx i m o, ent re S agr es e
La gos ),
nem
rep et i das
m ui t as
vez es ,
nem
por
m ui t o
t em po,
s obret u do as de l o bi somens e as de medos , poi s, supost am ent e,
pas s aram -s e com pessoas que vi vi am em Burgau; j á as da mort e são
t al vez m ai s conhe c i das, pel o m enos p erdura ram po r m ai s t em po,
poi s ouvi m o -l as vári as vez es durant e al guns anos.
Apont am os ex em pl os das e x pressões m ai s ut i l i z adas pel os
narrado res nas di v er sas si t uações:
a) m om ent os de desresponsabi l i zação : “Di z a l enda que…”; “Di z -se
que…”; “Ouvi a -s e cont ar que …”; “ D i z e m
os
que
se
julgam
versados nas tradições que…”; “Conta-se que…”;
b) m om ent os de cu mp l i ci dade : “Daí a t é hoj e t em a pobr e m oura
es perado qu e a r ed i m am do seu cat i ve i ro, e ai nda l á se conserva
nes s a doc e espe ranç a e se conserv ará po r t odos os sécul os.” ( L M 6 );
“Ora é ex act am ent e nest e pl ano ocup ado act ual m ent e pel o R i o Seco ,
onde se acham en c ant ados m ui t os m ouros, que al i ai nda ex i st em ,
prefe ri ndo a vi da s ubt errân ea à vi da s obre o nosso pl anet a.” ( L M
1 1); “E assi m , o al garvi o de Espi che foi m orre r ao P ort o.” ( LM O 3);
“com pra -se i st e, na há ni ngu ém que pe gue na gent e !” (E LF e B 1);
c) m om ent os de i ncapaci dade para ref ut ar provas por demai s
evi dent es : “Mui t as pessoas, desde a m ai s rem ot a ant i gui d ade at é
hoj e, t êm t ransm i t i do num a t radi ção s e m pre const ant e as suas vi sões
de Fát i m a, a m oura encant ad a, encost ad a ao ga r gal o do poç o. Todos
os rel at os concorda m em que essas vi sões se passaram ou ao m ei o di a em pont o ou à m ei a -noi t e em pi no.” ( L M 53 ); “Ai nda não há 10
anos que por al i ni nguém pass ava, porq ue à hora fat al , à m ei a noi t e,
apare ci a a m oura v est i da de branco c om os seus cabel os de ouro
s ol t os aos vent os. [ ...] J á t em si do vi st a em c ert as o casi ões, sem pre
de noi t e, a convers ar com um m eni no de gor ro enc arnado e ol hos
gr andes. Est e m eni n o t em apare ci do a m ui t a gent e d e Ol hão.” ( L M
149
14); “cont a e fi ca m ani fest am ent e z an ga do quando pom os em dúvi da
aqui l o que di z que vi u bem vi st o com os ol hos que a t erra há -d e
com er” ( E LAP / M 9); “A verd ade é qu e, 15 di as depoi s, foi -se o
m i údo e, 15 di as depoi s, l á se foi a pob re da m ã e.” ( LM O 1 );
d ) m o m e n t o s d e n a t u r e z a m í s t i c a p r ó p r i a d o A l g a r v e : “Ver ão
pl eno. C a l or i nt enso. Al i , no Al ga rve, o m ês de A gost o é m ui t o
quent e e t em noi t e s cál i das de um l uar l um i noso com o obra de
m agi a. Tudo, nat ur e z a e povo, parece ba nhado por essa l uz prat ead a.
Um ar de m i st éri o envol ve a t er ra q uando as horas ava nçam no
s i l ênci o da noi t e. E a i m a gi naç ão fe rvi l ha nas m al has do so nho. E a
l enda t e ce -s e na t ra m a de fi os de ansi e dade e de l uar. ” ( L M 37 ); “ A
pres enç a da j ov em m oura t i nha al go de sort i l égi o. A su a b el ez a er a
gém ea da su a al t i ve z . E am bas pareci a m fi l has do sonho e da poesi a
des s e fi m de t arde nost ál gi co.” ( LM 3 9 ); “Era j á noi t e e, dei t ado,
ol hava o céu obse r vando as est rel as m ui t o vi vas, com o cost um am
s er no céu al garvi o” ( E LAP / M 6).
1.1.1.
A PRESENÇA DO NARRAD OR
Na sua m ai or pa rt e , “os epi sódi os l endári os” for am cont ados
p o r pessoas i nt e rve ni ent es nesses aco nt eci m ent os , conhe ci das ou
m es m o
fam i l i ares
aut odi egét i cos
ou
desses
i nt e rveni ent es
hom odi egét i cos) ,
ao
(po rt ant o,
cont rári o
narrado res
d as
l endas
propri am ent e di t as (sal vo ra ras ex cepç ões, com o L M 21 ), em que o
narrado r é sem pr e het erodi e gét i co, a t é pel o t em po que deco rreu
ent re os a cont eci m e nt os e a sua (úl t i m a) narra ção.
No caso das “ Lend a s In édi t as”, as l end as da mort e apres en t am
t odas narr ador het er odi egét i co, assi m co m o E LAP / M 2 , e E LLO 1, e
quas e t odos os os out ros epi sódi os l endári os são cont ados por
narrado r hom odi e gé t i co.
A nar rat i va encai x a da de L M 21 e as anal epses o corri d as em
150
LM 3 5, LM 37, e L M 21 são cont adas pel as própri as pers onagens.
Em LM 35 , Zul ei m a reco rda a vi da no pal áci o de seu p ai , ant es de
t er s i do encant ada, e em L M 37 ( e LM 1 4), Fl ori pes rel at a as fu gas
do pai e do n am ora do, o naufr á gi o des t e úl t i m o, a que as si st i u de
l onge,
m as
qu e
a
i m pedi u
de
s er
l i bert ada
e
o
d ecorr ent e
encant am ent o – nar radores aut odi e gét i cos, assi m com o e m L M 21 ,
em que a m o ur a na rra t am bém as ci rc unst ânci as em que ocorreu o
s eu enc ant am ent o e, at é, as v ári as t ent at i vas l evadas a c abo para s er
des encant ada. Nest a úl t i m a, com o j á ref eri m os , ex i st e ai nda um
out ro narrado r, o do encai x e, o rapaz que afi rm a t er vi st o a m oura e
fal ado com el a, e q ue rel at a o encont r o ao am i go , r eprod uz i ndo a
hi s t óri a da m oura – narrado r hom odi e gé t i co.
1.1.2. A CIÊNCIA DO NARRADOR
Quant o ao sabe r, o narr ador m ai s fr eq uent e é o om ni sci e nt e,
em bora nem s em pr e est a si t uaç ão se j a i ndi scut í vel . Adopt ando
di versas fo cal i z açõ es i nt ernas, nas l e ndas, o n arr ador n ão dei x a
m argem para dúvi d as acer ca do seu c onheci m ent o gl obal , em bora
por vez es, devi do, t al vez , a i nt rusões do edi t or , faça af i rm ações
des conce rt ant es,
re correndo
ao
“Di z - se que … ” e
ao
“Não
se
s abe…” , que dei x am o l ei t or na dúvi da s obre essa o m ni sci ên ci a.
Nos
epi sódi os
l endári os,
é
m ai s
frequent e
a
foc al i z ação
ex t erna, em bor a por vez es se adopt e a v i são de um a pe rsona gem em
part i cul ar. T am bém , por vez es, o narr a dor sabe t udo: “S e el e não
t i v es se dei t ado for a os fi gos, t r ansfo rm avam -se em dobrões de
ouro.”
Nas “ Lend as In édi t a s”, o narrador adopt a focal i z ações i nt er nas
do prot agoni st a do “i nci dent e”, nos ep i sódi os l endári os de medos ,
focal i z ações
ex t er nas
nos
doi s
“ca sos”
de
l obi some ns ,
e
o m ni sci ent e nas hi st óri as da mort e .
151
é
1.2. CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS DA ACÇÃO
Um a sequên ci a n ar rat i va é, por de fi n i ção, um conj unt o de
acçõ es, l i gad as ent r e si por rel ações de t em poral i dade e c au sal i dade,
ocorrendo num m es m o espaço e num a m esm a sequênci a t e m po ral .
Em am bos os t i po s de t ex t os, o pro cesso m ai s com um d e
art i cul aç ão das sequ ênci as na rrat i vas é o encad eam ent o . N a s l endas
de mouras encant a das , a al t ernân ci a não ex i st e e encont ram os
apenas um c aso de e ncai x e.
273
LM 21 é um a d aque l as si t uações pouco frequent es, a que, al i ás,
j á fi z em os ref erên ci a , em que a n arr at i va pri nci pal é en cai x ada na
s ecundári a – o enco nt ro do rap az com a m oura const i t ui um encai x e
num a hi st óri a de um passei o de doi s am i gos, que cont i n ua após o
encont ro, quando o rapaz que est ava a dorm i r acord a e a m oura
des apar ec e. “[ V] endo o seu am i go ví t i ma de um a horrí vel sugest ão ”,
o rapaz qu e dorm i ra durant e o en cont ro “envi dou t odos os esforços
em convencê -l o do seu erro” – e segue -se um a out ra sequênci a
narrat i va que de cor re, n ão da pri m ei r a, m as da na rrat i va e ncai x ada
(o que é ai nd a m eno s frequent e ).
C om o j á ex pl i cám os na pri m ei ra part e dest e t rabal ho, quando
apresent ám os a nossa propost a de cl assi fi caç ão dest as l enda s, a sua
t em át i ca c ent ral é o “enc ant am ent o”, que pode est ar ex pl í ci t o ou
apenas i m pl í ci t o, del e decor rendo o desencant am ent o, ou não – a
pos s i bi l i dade ou i m possi bi l i dade da anu l ação do en cant am e nt o é qu e
é o fact o r que det er m i nará a m odal i dad e da com posi ção.
P odem os, assi m , consi derar “ fe chadas ” as narr at i vas em q ue o
encant a m ent o sur ge com o o desenl a ce i rreversí v el da hi st óri a ( L M
4 1, LM 49 , LM 54 , LM 10 e LM 16 ) , aquel as em que, por um a
qual quer i ncap aci d ade do
desen cant a dor , são “ani qui l a das” as
pos s i bi l i dades de de sencant am ent o ( L M 33 , LM 34 , LM 35, LM 36 ,
273
Nossa Dissertação de Mestrado , As Lendas de Mouras Encantadas do
Algarve.
152
LM 40 , LM 50 e LM 3) e ai nda, nat ural m ent e, aqu el as cuj o
des enl ac e co nsi st e na consum a ção do d esencant am ent o ( L M 37 , LM
4 2, LM 43 , LM 44 , LM 45 , LM 47, LM 11 , LM 2 4, LM 25 , LM 26 ,
LM 27 , LM 28 e LM 31 ).
“Abert as ” s ão t od as as out ras, em que, h avendo ou não
t ent at i vas de d ese ncant am ent o, a su a possi bi l i dade perm anec e,
cons ervando -se os encant ados “n essa doce espe ranç a”, ai nda que
s ej a por “m i l e um a nos”.
Os
epi sódi os
l endári os,
pel a
sua
própri a
nat u rez a
(acont e ci m ent os pont uai s) , s ão quase t odos narrat i vas fechad as
(em bora não s e sai b a o que a cont ec eu à m oura que ofe rec eu os fi gos
e depoi s desap are ce u, nem t ão pouco às al m as p enadas qu e ent rar am
pel a rocha ), ex cep ção fei t a aos “en cant am ent os” em t ouros e
carnei ros
(e
acont eci m ent os
al gum as
( ex cept o,
cobras),
t am bém ,
q ue
o
quase
t ouro
que
nunc a
só
rel at am
at acav a
a
det erm i nadas horas e o out ro t ouro que cai u dent ro da font e),
l i m i t ando -se a r e gi st ar a ex i st ênci a d esses f enóm enos e um a ou
out ra apa ri ção.
Tem os , ai nda, as l e ndas de brux as, l obi som ens, al m as pena das,
s erei as e m o rt e, q ue são quase t odas fechad as (não s ab em os se
Bern ardi no cont i nu a ou não a “ corr er o seu f adári o” ) , e m bora os
m i s t éri os persi st am …
E LMO1 é ab ert a, p oi s fi cam os sem sa ber se a m o rt e l ev ou o
vel ho.
As l endas de car áct er rel i gi oso são i gu al m ent e fech ada s, p oi s
rel at am a cons ecu çã o de m i l a gr es – s al vam ent os, cast i gos ou fa ct os
que est i veram na o r i gem da const rução de capel as, ger al m ent e; há,
ai nda, a i m a gem do S enhor J esus que s uava san gu e e cri av a barb a,
m as est es fenóm eno s t am bém j á não se r egi st am .
153
1.3. AS PERSONAGENS
J á anal i sám os as c aract erí st i cas fund a m ent ai s, assi m com o as
ori gens, d as fi gura s mí t i cas e rel i gi osas que prot a goni z am est as
narrat i vas. V am os, ago ra, deb ruça r -nos sobre el as com o per sonagens
das l endas e epi sód i os l endári os que c onst i t uem o nosso corpus de
es t udo e sobre o uni verso das pe rsona ge ns humanas que as p ovoam .
1.3.1.
CARACTERÍSTICAS DAS PERSONAGENS
Os prot a goni st as , qu er das l endas , quer dos epi sódi os l endár i os,
s ão s em pre i ndi ví duos. As massas são persona gens s ecundá r i as , com
al gum peso no de senrol ar dos a cont eci m ent os, ou si m pl esm ent e
fi gur ant es – as t rop as e o povo.
Ex i st e, no ent ant o, um a ex cepç ão – a s bruxas são as ún i cas
pers ona gens pe rt en cent es ao uni verso m i t ol ógi co que agem em
grupo.
Os núcl eos f am i l i ar es, est rut u ras col ec t i vas por nat urez a, são
apresent ados com a sua ve rdadei r a pro bl emát i ca conf l i t ual , i st o é,
com os seus el em ent os perf ei t am ent e i nd i vi dual i z ados, cada um com
um a função e um l uga r na hi st óri a.
1.3.1.1. OS ENCANTADADOS
H om ens, m ul heres ou cri an ças são ger al m ent e educ a dos,
capaz es de com p ai xão, generosos e nu nca for çam ni ngu é m a faz er
s ej a o que for cont ra a sua vont ade (a grande ex cepç ão é a m oura de
Al goz , m as At aí de Ol i vei ra al ude t am b ém ao car áct e r ant i pát i co de
Fát i m a, a m oura en cant ada no P oço do Vaz Varel a, ch am ando -l he
“arroj ada, r ebel de e vi ngat i va ” 274).
274
Ataíde Oliveira, ob. cit., p. 193.
154
Assi st e -se a um a superl at i vaç ão das qual i dades da j o vem
m ul her m oura (que faz l em brar a da s cant i gas da noss a poesi a
t rovadoresc a), qu e r esul t a num a di vi ni zação fem i ni na que, por si só,
não surpreen d e, m as cuj a bel ez a, m ui t as vez es angel i cal , cont rast a,
ao m esm o t em po, c om a sedução qu e ex erce (vol unt ari am ent e ou
não) e com um a obsessão pel a ne ga ç ão do cri st i ani sm o, de que
decorr e um a c ert a c onot ação m al é fi ca.
Não é fá ci l ret rat a r a moura encant ad a. Di rem os m esm o que
não é possí vel cri a r um t i po .
O
que
m ai s
di fi cul t a
a
defi ni ção
dest a
fi gu ra
é
a
sua
cara ct eri z aç ão (psi col ógi c a, cl aro), c uj os t raços, n ão s ó não se
podem gen er al i z ar (quando m ui t o, agru par), com o fo rm am um l eque
que abran ge um a en orm e m ul t i pl i ci dade de car act e res.
De aco rdo com o no sso est udo ant eri or, apurám os al guns d ados
es t at í st i cos, em função do corpus est ud ado, que en gl obav a t odas as
l endas de mouras e ncant adas , j á publ i cadas, qu e nos foi possí vel
encont ra r. A c oncl u são , em núm er os ar redondados , foi a s egui nt e :
50% de m oi ri nhos bons e 50% d e m oi ri nhos maus ; 50% d e m ouros
b o n s e 50% de m ouros maus ; 50% de m ouras boas , 20% de m ouras
mai s boas do que m ás ; 15% de m ouras mai s más do qu e bo as e 15 %
de m ouras más – o u, se qui serm os, si m p l esm ent e 70% bo as e 30 %
más .
Os pre cei t os dos de sencant am ent os v ari am , m ant endo, cont udo,
al gum as ex i gênci as com uns a al guns del es: m ant er se gr edo, por
ex em pl o, é fundam e nt al em quase t odos os casos; a queb ra de um a
prom essa (que pod e ser a de gua rda r se gredo ) ar rast a consi go,
ge ral m ent e, um c a st i go; a não cons e cução do des enc an t am ent o,
frequent em ent e
i nt erveni ent es
ac arret a
–
para
um
o
dupl o
cast i go,
desen c ant ador ,
pa ra
pel a
a m bos
os
i ncapa ci dade
m ani fest ada de con cl ui r as provas a que foi subm et i do, par a o
encant ado , pel a m á escol ha do pri m ei ro. O que, m ui t as vez es, não
nos perm i t e p erc ebe r se s e t r at a d e car á ct er vi n gat i vo do en cant ado,
155
s e de az ar, obr a do dest i no ou cont i ngê nci a i ner ent e ao pró pri o act o
de desencant ar .
As mouras encant adas apare cem a q ual quer um – o seu
obj ect i vo
é
serem
aj udadas,
é
ser em
desencant adas.
A
sua
cara ct erí st i ca m ai s r el evant e é o e goí sm o, o “não ol har a m ei os para
at i ngi r os fi ns”. P ri si onei ras de um d est i no fat í di co, qua ndo em
des espero de c aus a, est ão di spost as a t udo em
t roca da sua
l i bert ação – são apa rent adas dos hum anos. De cert a form a, C ássi m a
e a m our a d’ “O B ol o Bran co” s ão m a i s cruéi s do que a m oura de
Al goz , poi s a vi nga nça não pode rá dev ol ver -l hes a esp er an ça, m as o
m ot i vo de am bas é a não acei t a ção de um a vi da d est roçada,
provocada p el a i né pci a de out rem – há sem pre um argum ent o
humano capaz de at enuar a su a m al dad e .
Apesar d e se r fei t a a apol o gi a de el ev a dos val ores m or ai s com o
a honest i dade, a honra, a obedi ênci a, a fi del i dade, a coerê nci a e a
s ol i dari edade, e d e cara ct erí st i cas com o a ast úci a, a det e rm i nação e
a cora gem , e de ser em cri t i cados os seus opost os e t odos os t i pos de
fraquez a , com o a curi osi dade, a des c onfi ança, a i n genu i d ade, a
i ns egur anç a e a cob ardi a (com o j á m en ci onám os) , a ve rda de é que
es t ão m ui t o presen t es o egoí sm o e a vi ngan ça, sai ndo vi t ori osa,
m ui t as vez es, a am bi ção.
É com o se o povo p ort uguês (con cret am ent e, o al ga rvi o), n um a
época que não é c aract eri z ada, propri am ent e, pel o “eas y l i vi ng”,
com
os
t esouros
ocul t os
e
os
proc essos
de
d ese n can t am ent o
apel ando a um r efo rço das cap aci dad es e da co ra gem , a u m cert o
heroí sm o, at é, par a vencer as di fi cul da des, t i vesse encont r ado um a
form a de nunc a per der a esp eran ça na possi bi l i dade de “t r ocar ess a
vi da de t rabal hos e m i séri a pel a de soss ego e r i quez a” ( LM 48 ) (que
pode ser, si m bol i ca m ent e, o conhe ci m e nt o espi ri t ual e a pa z ).
275
275
Nossa Dissertação de Mestrado , As Lendas de Mouras Encantadas do
Algarve.
156
1 . 3 .1. 2. NAS LEN D AS DE MOURAS EN C AN T ADAS
Nest as hi st óri as, de sf i l am vari adí ssi m os “t i pos” soci ai s, a par
de al gum as persona gens qu e se dest ac a m pel as suas cara ct erí st i cas
própri as.
Os hom ens port ugue ses são, habi t ual m ent e, coraj osos, honr ados
e
am bi ci osos.
As
m ul heres,
m ai s
i nsegur as,
m as
nã o
m enos
coraj osas, e i gu al m ent e honr adas e am bi ci osas. A curi osi dade é
com um
a
am bos
os
sex os,
t endo,
no
ent ant o,
conse quênci as
di fere nt es, i st o é, se um hom em age m ovi do por curi osidade, em
ge ral , a caba po r en cont rar um t esouro, m as quando é um a m ul her
que l he n ão r esi st e, norm al m ent e a c aba po r est r a gar u m pl ano
qual quer do m a ri do, que l hes pe rm i t i ri a m el horar de v i da. As
m ul heres
são
i nt erferi r em
f r e quent em ent e
i ndevi dam ent e
c ausa doras
(quando
um
de
i nfort ún i os,
hom em ,
por
perant e
as
evi dênci as, i nt e rfe r e, as consequ ênci as ne gat i vas, s e as há , rec aem
ge ral m ent e sob re a m ul her , com o em “ O P al áci o sem P ort a s” ), o que
t am bém rem et e par a a m ent al i dade co m um da época m edi eval , a
i dei a da m ul her com o veí cul o da t ent açã o dem oní aca. Todos querem
enri quec er, m ul here s e hom ens, j ovens e m enos j ovens, pobres e
m enos pobres. E t o dos são fi éi s aos s a gr ados pri ncí pi os c r i st ãos do
bapt i sm o.
S ão
m ui t o
pouc os
os
el em ent os
forne ci dos
pa ra
a
cara ct eri z aç ão fí si c a dos port u gu eses. P ara al ém da j uvent ude e da
vel hi ce ( e nem sem pre), m ui t o ra ram en t e se re fer e a b el ez a (só em
LM 34 e em LM 36 ) e nunca out ros el e m ent os que perm i t am com por
qual quer r et rat o, po r m ai s va go que sej a .
O m esm o não sucede em rel aç ão aos m ouros que, se forem
hom ens, quando j ov ens, são sem pre bel os, e, s e m ul her es, l oi ras ou
m orenas,
m as
sem pre
j ovens
e
sed ut oras,
de
um a
f orm osura
i ndescri t í vel . Os val ores m orai s não di ferem dos dos port ugues es,
m as os hom ens m ai s vel hos são vul garm ent e m ai s avaros e possuem
157
conheci m ent os de ar t es m ági c as.
P ai s i gual m ent e ex t rem osos e severos, t ant o encant am as fi l has
para as sal v arem do s port ugues es, na i m possi bi l i dade absol ut a de as
l evarem consi go, c om o por c ast i go, p or deci di r em el as c asar com
quem el es não quer em (ou vi ce -v ersa), m as faz em -no sem pre po r
am or.
S e a fi gu ra do p ai é preponde rant e , a da m ãe é
qu ase
com p l et am ent e i nex i st ent e, sendo as duas versões d’ “A Moura de
S al i r” as úni c as r efe rênci a s a um a m ãe ( j á m ort a).
276
Enquant o a j ov em m oura ap ar ece nas t r ê s fases – ant es, dura nt e
e depoi s do encant am ent o (às vez es, na m esm a l enda) –, o j ovem
m ouro apare ce j á encant ado (só e m L M 41 e LM 16 é que
encont ram os um j ovem t rovador ant es do encant am ent o), nada se
s abendo sobre o s eu passado, nem sobre as suas rel a ções f a m i l i ares.
As cri a nças port u gues as são sem pr e “os fi l hos” do c asal
envol vi do na hi st ór i a do desen cant am e nt o (apen as em L M 34 , LM
4 2, LM 43 , LM 2 4 e LM 27 ), nunc a sã o meni nos nem meni nas , e só
em L2 assum em i m port ânci a, po r ser o pri m ogéni t o (o ú ni co cuj o
s ex o é di fer enci ado ) o obj ect o de i nt e r esse da m oura. As cri anç as
m ouras são i nex i st ent es (t al com o as m ães) , e qu ando apar ecem , j á
encant ad as, são se m pre m eni nos – não há moi ri nhas (quand o o
t erm o é usado, é com o di m i nuti vo revel ador de cari nho ). A úni ca
ex cepção é o i rm ã oz i nho da “Moura de F aro ” ou “do Arco d o
R epouso”, que aco m panha a i rm ã ant es do encant am ent o , fi cando
am bos encant ados , e m segui da.
Assi m , a vi da fa m i l i ar ex post a é apena s a d as f am í l i as
port ugues as e nunc a a das árabes. Qua ndo é revel ado o i nt eri or de
um a casa d e m ouro s (com o em “Di no r ah” ou em “O Abi sm o dos
Encant ados” ),
nunca
é
abord ada
a
probl em át i ca
fam i l i ar
276
Nossa Dissertação de Mestrado , As Lendas de Mouras Encantadas do
Algarve.
158
propri am ent e di t a, a penas a r el aç ão da m oura com o pai .
S ão m enci onados al guns rei s port u gues es, raram ent e, o que não
é de est ranh ar, po i s vi vi am à part e, nos pal áci os das capi t ai s;
quando apar eci am , era pa ra conqui st a r em cast el os aos m ouros e,
m es m o assi m , D. P ai o P eres C orrei a ass um e m ai or prot agon i sm o do
que qua l que r r ei . O s gov ernado res m ou ros vi v i am nos c ast el os das
povoações, j unt o da popul ação; o c am p onês e o pes cador a l garvi os
nunca t i nham vi st o, segur am ent e, o rei port uguês, m as co nheci am ,
m ui t o provavel m ent e, o govern ador do cast el o m ai s próx i mo – não
s erá,
cert am ent e,
por ac aso, que o
carpi nt ei ro
d’
“ A Moura
C ás s i m a” re conhec e o ex -gov ernado r d e Loul é em duas v ersões e
que est e r econhe ce o art i st a, nas t rês.
1 . 3 . 1.3. NOS EP IS Ó D IOS LENDÁR IOS DE
MOURAS EN C AN T ADAS
Nest es “ cacos ”, as persona gens são em m enor núm ero . Em
ge ral , doi s hom ens, duas m ul heres ou m ãe e fi l ho pass am por um a
meni na que, com ou sem est ei ra, o fere ce fi gos, com ou sem
recom end ação.
A fal t a de at enç ão ou o desr espei t o po r al gum a recom enda ção
t ransform am (na m ai ori a das vez es) o s dobrões d e ouro, em que ,
ent ret ant o , se t i nha m convert i do os fi gos , em carvão , par a desi l usão
dos cont em pl ados q ue, norm al m ent e, t ent am a sort e s e gu nda vez ,
nunca sendo b em sucedi dos.
Tam bém nest es epi sódi os, a m oura , por vez es, est á pent ea ndo
os s eus l i nd os cabe l os dourados e t am bém , por vez es, ao vol t ar em
ao l ocal do encont r o, é um a s erpent e q ue as p essoas en con t ram , em
vez da meni na que t i nha ofer eci do os fi gos.
159
1 . 3 .1 .4. NAS LEN D AS E NOS EP IS ÓD IOS LEND ÁR IOS D E
L OBISOMEN S
Est as l endas envol v em quas e sem pr e o l obi somem , a fam í l i a e
os vi z i nhos. A ex cepção é o epi sódi o e m que os doi s am i gos t ent am
l evar o bu rro qu e depoi s se t rans for m a em hum ano, po i s não há
rel aç ão ent r e el es e o ani m al e, com o se passa no m ei o do c am po, de
noi t e (ou ao anoi t ec er) , t am bém m ai s ni nguém i nt erv ém .
É de sal i ent a r a cor a gem rev el ada p el a m ul her que, cont ra t o dos
os peri gos, conse gu e cum pri r à ri sca a s i nst ruções do seu m ari do
l obi somem , l i bert an do -o, assi m , do seu fadári o.
Tam bém é de re feri r o l obi some m de LLO 2, qu e é a c usad o de
brux ari a, pel o que, em vez de i nspi rar al gum a pi ed ade, co m o vi m os
ant eri orm ent e qu e é a si t uação m ai s co m um , despert a nos vi z i nhos a
rai va, po r vez es i nc ont i da, sendo m esm o al vo de act os vi ol ent os de
vi ngan ça, por p art e daquel es.
1 . 3 .1.5 .NA LEN DA DE SEREIAS
Na “ Le nda da P r ai a da R ocha ”, não há p ersona gens hum anas : o
pes cador a qu e se fa z refer ênci a, em br e ve é i dent i fi c ado co m o m ar,
as s i m com o o serrano acaba por se re vel ar com o sendo a própri a
S erra de Mon chi que .
A serei a , com o é h a bi t ual , é sedut ora, a o pont o de ser desej ada
por am bos, o que ori gi na um a “ guer ra” ent re a m ont anha e o m ar, de
que nenhum sai vi t ori oso.
Na i m possi bi l i dade de escol her um d os doi s e s eduz i da, el a
própri a,
pel a
r e gi ão
e
pel o
am or
de
am bos,
dei x a -se
fi car,
t ransform ando -se t a m bém , em arei a.
160
1 .3. 1.6 .NAS LEN D AS E NOS EP IS ÓD IOS LEND ÁR IOS
DE MEDOS E / O U AL MAS PEN ADAS
Tem os , vul garm ent e, d uas pe rs ona gen s – o i ndi ví duo que é
“ví t i m a” da i ncom p reensão dos out ros, poi s foi t est em unh a de um a
vi s ão que n ão pode com prov ar, e a ent i dade prop ri am ent e di t a que,
ge ral m ent e , assum e aspect o hum ano, m as que pode apar ecer sob
out ras form a s, nom e adam ent e de ani m ai s , com o é o caso do gat o que
foi at i rado da fal ési a , dos vári os casos de cã es pret os , d a c abri nha e
dos doi s coel hi nho s da Ladei r a do Al t o , ou at é d a rod a d e fo go à
vol t a do hom em (em S . Brás de Al port el ).
Em E LAP / M 9, há um a persona gem col ect i va, o grupo de
ga rot os que assi st e ao fenóm eno, que c onsi st e num a apari ç ão de um
cas al , o qu e não é fr equent e, poi s est as apa ri çõe s ac ont ecem ,
ge ral m ent e, a i ndi ví duos i sol ados, event ual m ent e a duas p es soas.
Out ro caso de perso nagem col ect i va qu e presen ci a o fenóm eno
i ns ól i t o é o grupo de m ul he res “faz endo ba raci nha ” e cosendo
em prei t a, em E LAP / M 15, que se r efu gi am em casa dum a del a s,
as s ust adas pel o “h om em que bat i a no chão”, vendo -o, depoi s,
des apar ec er “i nst ant aneam ent e”.
Al guns fenóm enos, no ent ant o, i ncom od am t oda um a povoa ção,
com o é o caso d a a l m a penada do pai da rap ari ga qu e fu gi u com o
nam orado, dando no m e ao l ugar de Odel o uca (E LAP / M 3).
1 . 3 .1.7 .NAS LEN D AS E NOS EP IS ÓD IOS LEND ÁR IOS
DA MORT E
Est as l endas , do pont o de vi st a das per sonagens, são t al ve z as
m ai s l i neares d e t o das: um ou doi s i ndi ví duos e a mort e . Apenas a
l enda em que o m eni no é avi sado de que el a vi r á buscar t o da a sua
161
fam í l i a envol ve m ai s al gum as p ersona ge ns do que as out ras.
A escol ha , por pa rt e da mort e , rec ai nas t rês di fere nt es
s i t uações fam i l i ar es : pessoa soz i nha , casal sem fi l hos e “fam í l i a
com pl et a” .
Todos t êm m edo de l a e, sendo possí ve l , t ent am fu gi r -l he das
m ai s vari adas m an ei ras, sem sucesso. H á, ai nda, os que p en sam que
podem enganá -l a (E LM O 1 , LM O 2 e LM O 3). Não sabem o s o que
acont ec eu à pe rsona gem de E LM O 1, ap enas pod em os deduz i r que a
m ort e
não
l he
l e vou
o
fei x e
de
l enha
par a
cas a
e
qu e,
provavel m ent e, n ão m orreu daquel a vez , ou esse fact o se ri a narrad o
na l enda.
1 . 3 .1 .8. NAS LEN D AS E NOS EP IS ÓD IOS LEND ÁR IOS D E
BRUXAS OU F EIT IC EIRAS
S ão, m ai s um a vez , os hom ens e as m ul heres do povo, co m os
s eus m edos e os seu s act os de cor a gem , na et ern a l ut a do be m cont ra
o m al . S ão os probl em as ent re vi z i nhos, ent re fam i l i ares, ent re
fal s os am i gos. E , e m geral , um a ct o d e am or der rot a a p e rsona gem
m al éfi ca e, m ai s um a vez , o bem preval ece.
Mas t am bém são os preconc ei t os, a m ar gi nal i z ação dos qu e são
“di fer ent es”,
a
di scri m i nação
da
m ul her
que
não
t em
um
com port am ent o i gu a l ao das out ras.
É, ai nda, a “ guer ra dos sex os”, poi s as brux as, apesar dos seus
poderes, s ão hum an as, e os hom ens ap arec em , nest e cont e x t o, em
des vant a ge m ,
send o
a
úni ca
possi bi l i dade
de
um a
m ul her
se
encont ra r num a posi ção de al gum a ( rel at i va ) superi ori dade . C om o
di z Mari a Teres a M ei rel es, “subv ert em t odo o uni verso ord enado e
l i near, ger al m ent e m ascul i no”.
277
C om o j á di ssem os at rás, as brux as , ou fei t i cei ras, encont ra m -se
277
Maria Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras , p. 53.
162
nas encruz i l hadas e dançam , cant am e r i em em conj unt o, t al vez por
i s s o sej am m ai s t em i das, porque t êm al i ados(as), n ão est ão sós.
E, com o t am b ém j á refe ri m os, não deve m ser confundi das c om
as mul heres de vi rt udes , curandei r as e/ ou part ei r as procur a das pel o
p o v o – essas são as bruxas ou f ei t i cei ras boas, que, par a al ém das
vi r t udes que possu am , t êm , por vez es , o pode r de “d esm anchar ”
m es m o ou, pel o m enos, at enuar, o m al f e i t o pel as out ras.
Mas
t am bém
predom i nant em ent e
há
raros
fem i ni no,
hom ens
e
nest e
t am bém
uni verso
podem
s er
q ue
é
bons ,
cur andei ros , ou ma us , f ei t i cei ros ou bruxos . Nest e caso, p art i ci pam
das “or gi as” das en c ruz i l hadas.
1.3.2.FUNÇÕES DAS PERSONAG ENS
Todas as l endas e e pi sódi os l endári os t êm , com o p rot a goni st a,
obvi am ent e, a fi gur a m í t i ca ou rel i gi osa que l he deu ori gem . Do
pont o de vi st a da anál i se narr at i va, porém , esse prot a go ni sm o é
repart i do com as out ras person a gens hum anas qu e com el as s e
rel aci onam .
1 . 3 . 2.1. NAS LEN D AS DE MOURAS EN C AN T ADAS
Quando est am os per ant e l end as em qu e há um en cant ado e um
des encant ador (ou um encant ado e um encant ador ), est es s erão, em
pri ncí pi o, as person agens pri nci p ai s . C om o nem t udo é t ã o l i near,
podem os cri ar os s e gui nt es grupos:
1)
situações em que a função das personagens é clara: L M
38, LM 39, LM 42, LM 44, LM 48, LM 51, LM 52, LM 53, LM
60, LM 6, LM 7, LM 8, LM 11, LM 13, LM 15, LM 24, LM 25
e LM 28;
163
2)
histórias em que, não havendo dúvidas sobre quais são
as
personagens
principais,
há,
todavia,
personagens
secundárias cuja maior ou menor interferência na acção altera
por completo o rumo dos acontecimentos: L M 33, LM 34, LM
35, LM 36, LM 37, LM 40, LM 41, LM 43, LM 49, LM 54, LM
59, LM 61, LM 58, LM 9, LM 14, LM 21, LM 27 e LM 32;
3)
textos constituídos por dois momentos distintos, em q ue
uma personagem, cuja importância era quase nula no primeiro
momento, assume o protagonismo no segundo: L M 45, LM 46,
LM 47, LM 10, LM 11, LM 26 e LM 31;
4)
LM 50 e LM 3 são narrativas mais complexas do que a
maioria.
Aparentemente
compostas
por
cinco
gra ndes
momentos (grosso modo: 1º) em Loulé; 2º) em Tânger; 3º)
novamente em Loulé; 4º) novamente em Tânger; 5º) outra vez
em Loulé.), a sua complexidade não reside, no entanto, nem
na
quantidade
desses
momentos,
nem
na
alternância
dos
espaços (ambas se verificam noutras lendas, nomeadamente,
em L8), mas na alternância de funções das personagens. Até
ao terceiro momento, o sujeito é o (ex -)governador de Loulé,
que passa a ter como objectivo desencantar as suas filhas, e
que vai ser ajudado pelo carpinteiro na consecução do seu
plano (situação comum a LM 40). No quarto momento, o
carpinteiro é novamente transportado pelos ares para Tânger,
mas esta mudança de tempo e de espaço implica outras, mais
importantes: a) o ex-governador já atingiu o seu objectivo
(dentro do que foi possível) e já nada pretende do carpinteiro
(nem a vingança, embora reaja impulsivamente, ao princípio);
b) também não foi ele que o chamou lá (para cumprir a sua
promessa de recompensá-lo) – tudo, no texto, leva a crer que
foi Cássima o agente desta deslocação, para que o seu pai a
164
vingasse (já que ela não o conseguira, à primeira tentativa);
c) por seu lado, o carpinteiro tem, agora, um objectivo –
voltar para casa – e só o ex-governador pode ajudá-lo (ou
não), o que se concretiza no quinto m omento. Uma vez que
não restam dúvidas de que se trata de uma mesma história,
tanto pelo encadeamento das acções, como pelas personagens,
podemos, então, concluir que estamos perante não cinco, mas
três grandes partes (com as suas subdivisões, logicamente) ,
cujo factor determinante é a mudança de sujeito (e respectivo
objecto): 1ª) o ex-governador, que pretende desencantar as
filhas; 2ª) Cássima, que pretende vingar-se; 3ª) o carpinteiro,
que pretende regressar a casa (curiosamente, só este consegue
alcançar,
cabalmente
–
e
excedendo,
até,
as
expectativas
iniciais –, o seu objectivo). O carpinteiro passa, assim, de
adjuvante a objecto, e de objecto a sujeito; o governador, de
sujeito a oponente, e de oponente a adjuvante; Cássima, de
objecto a sujeito (o único que não consegue atingir, nem
parcialmente, os seus fins), e não está presente nesta última
sequência,
desaparecendo
de
cena
e
reaparecendo
apenas
pontualmente para chorar “tristemente o seu encantamento nas
encantadas terras de um Al -Faghar perdido” (LM 50).
O padre é um a pe rsonagem que, a o i nt e rferi r, r ar am ent e (só em
LM 21 e LM 28 ), n ão t em , ap ar ent em e nt e, m ui t o peso n o desenrol a r
dos acont e ci m ent os, m as que ac aba p or est ar pres ent e e m vári as
l endas, por se r o agent e da at ri bui ção dos ól eos sa grados do
bapt i sm o ( LM 5 2, L M 60 , LM 8 e LM 2 1 – em doi s epi sódi os).
Encont ram os em duas l endas ( L M 21 e LM 28 ) a fi gu ra do
padr e com o i nt erm e di ári o, m as nem se m pre favor ável à co nsecução
do proj ect o, com o p ressupõem Di e go P . P acheco e F ran ci sc o M. V.
P ardo:
En cuanto a los tesoros, obedecería a la imagen,
puesta de evidencia por Foster, del “bien limitado”; sólo
165
es posible enriquecerse o mermando las posibilidades de
los iguales, o, si es en el outro segmento cultural, com el
favor de un ayudante humano o sobrehumano que facilite
los medios extraordinarios de mejoramiento social. En
este esquema, el clérigo es el intermediario. Y así se
explican también otros instrumentos, como el Libro de San
C i p r i a n o y o t r o s l i b r o s d e t e s o r o s . 278
O padre , pároco , cl éri go ou pri or só é adj uvant e qua ndo
part i ci pa
do
pro c esso
i nvol unt ari a m ent e,
desconh ece dor
dos
obj ect i vos do seu paroqui ano (com o em L M 28 ), e é cl aram ent e
oponent e quando s abe que o proc edi m ent o i m pl i ca a perda dos
“s ant os ól eos do ba pt i sm o”, ai nda que recupe rá v ei s (com o em L M
2 1, em que é r espon sável pel a de ci são d e J oão Bent o).
1 . 3 . 2 . 1.1.
NOS EP IS ÓD IOS LENDÁR IOS DE
MOURAS E N C AN T ADAS
Nest es rel at os, com o j á observám os, as persona gens apa re cem
em núm ero m ai s reduz i do. A moura e o cont em pl ado part i l ham o
pro t agoni sm o, enqu ant o as out r as pe rso nagens, que são, ger al m ent e,
os acom panhant es, o u são adj uvant es ou são m eros fi gur ant e s.
Nos
cabri nhas
rel at os
e
das
out ros
apari çõ es
ani m ai s
em
de
c arn ei ros,
que
encant ados, é fr e q uent e ex i st i r o
os
t ouros,
m ouros
encant ado
cob ras,
poss a m
est ar
e al gué m que é
as s ust ado, norm al m ent e um a person a ge m i ndi vi dual .
278
Diego Peral Pacheco y Francisco M. Vázquez Pardo, “Leyendas
Naturalistas y Etiológicas”, in La Casa Encantada–estudios sobre
cuentos, mitos e leyendas de España y Portugal –Seminario
Interuniversitario de Estudios sobre la tradición , coords. Eloy
Martos Núñez (UEX) e Víctor M. de Sousa Trindade (U. ÉVORA),
Serie Estudios Portugueses, Nº 3, Mérida, Editora Regional de
Extremadura, 1997, pág. 113: “Quanto aos tesouros, obedeceria à
imagem, evidenciada por Foster, do “bem limitado”; só é possível
enriquecer ou dimuindo as qualidades dos iguais, ou, se noutro
segmento cultural, com o favor de um ajudante humano que facilite
os meios extraordinários de melhoramento social. Neste esquema, o
clérigo é o intermediário. E assim se explicam também outros
instrumentos, como o Livro de São Cipriano e outros livr os de
tesouros.”
166
1 . 3 . 2.2.
NAS LEN DAS E N OS EP IS ÓD IOS LE NDÁR IOS DE
L OBISOMEN S
Nest as
hi st óri as,
o
l obi somem
é
s e m pre
o
he rói
ou,
se
qui s erm os, o ant i -he rói . No ent ant o, ex c ept ua -se o epi sódi o l end ári o
em
que os doi s hom ens encont ram
um
burro que depoi s se
t ransform a em hom em e na qual , ou c onsi deram os que s ã o os t rês
pers ona gens
pri n ci pai s,
ou
t erem os
de
consi derar
o
supost o
l obi somem com o sec undári a (ou o cont rá ri o…) .
Há, ai nda, o c aso d o l obi somem a cusado de b rux ari a, q ue é
i ndubi t avel m ent e a persona gem pri nci p al da l enda, em bora sej a “o
m au da fi t a”, po r i sso m esm o o verdadei ro ant i -herói .
Na nar rat i va em que a m ul her cons e gue l i bert ar o m ari do, s e ndo
am bos prot a goni st as, é el a, de fact o, a v erdadei ra he roí na.
1 . 3 . 2 .3.
NA LENDA DE SER EIAS
Na “ Lenda da P rai a da R ocha ”, enco nt ram os novam ent e um a
s i t uação em que a fi gur a cent r al é a serei a , m as t ant o o m ar com o a
m ont anha, sendo oponent es ent re si , são os “const rut ores” da
hi s t óri a , enquant o a s erei a t em um a act uação passi va. P oder -s e -i a
cons i derar fi gur ant e , não fosse el a, de fact o, a raz ão daquel a gue rra
de poder , sedu ção e conqui st a.
Um esquem a a ct an ci al dest a hi st óri a seri a um a i nt e res sant e
confusão: t r ês pe rs onagens pri n ci pai s t ent ando, cad a um a, al can çar
um obj ect i vo e i m pedi r que os out ros d oi s at i nj am os seus – porque
a s erei a n ão est á i nocent e n est a “ gu e rra ”: el a apenas pa rou par a
des cansa r, m as,
s e não
t em
cul p a
de qu e
am bos s e t enham
apai x onado por el a, não dei x a de ser cu l pada por n ão p ôr fi m a um a
l ut a em que qu ase se dest roem m ut ua m ent e. Que m ai s n ão fosse,
podi a t er se gui do o seu cam i nho, em vez de se t er sedent a ri z ado, o
que nos l ev a a pens ar que, de al gum m odo, l he a gradou a si t uação
de s er co rt ej ada po r duas forç as da nat u r ez a ao m esm o t em po.
167
1 . 3 . 2 .4.
NAS LE NDAS E NOS EP IS ÓD IOS LEN DÁR IOS DE
MEDOS OU AL MAS PEN ADAS
Nest es “c asos”, o prot a goni st a é s em pre, sem som br a de
dúvi da, o i ndi ví duo que “sofre ” a vi sã o i nsól i t a. Mas a verdade é
que t am bém não se pode ret i ra r prot a go ni sm o à ent i dade em c ausa.
At é aqui , é t udo nor m al , duas person a ge ns pri nci pai s, ou t rê s é
um fenóm eno l i t erá ri o que su r ge com al gum a fr equên ci a . Mas os
medo s nem sem pr e t êm fi gu ra hum an a, e o qu e faz e r co m aquel e
gat o que vol t ou a a parec er , j á depoi s d e m ort o , j unt o do hom em que
o at i rou da fal ési a ? P arec e -nos di fí ci l não consi der á -l o t a m bém um
dos prot agoni st as da hi st óri a. Mas p i or, ai nda, é o caso da roda de
fogo.
Ora, o qu e a cont ec e , com o j á vi m os, é que est á s em pre o D i abo
ou um a al ma pena da (ou m esm o um a bruxa ) po r det r á s dest es
fenóm enos, ou ani m ai s, pel o que, a nosso ver, t erão de ser
cons i derados peron a gens, ai nd a que não chegu em a ser i ent i fi cadas
na hi st óri a. A sua f unção n ão pode red uz i r -se a fi gu rant e, um a vez
que é o m ot i vo da narrat i va, pel o que, de acordo com a si t uação,
s erá se cundári a ou t am bém pri nci pal .
1 . 3 . 2 .5.
NAS LEN DAS E N O EP IS ÓD IO LEND ÁR IO
DA MORT E
S endo a mort e um dos i negávei s prot agoni st as, as out ras
pers ona gens a cab a m por sê -l o t am bém , poi s são as suas ví t i m as,
l ogo, t am bém os seu s oposi t ores, t endo i gual p eso na na rrat i va.
Na l enda em que o m eni no é avi sado de que el a vi rá bu scar
t oda
a
sua
fam í l i a,
a
si t uação
é
m ai s
com pl ex a ,
poi s,
ou
cons i deram os t odas as persona gens co m o pri nci pai s, ou t erem os de
es col her ent r e o fi l ho e o supost o pai , vi st o que não f i cam dúvi das
168
de que a m ã e e o car t ei ro são secund ári a s.
Nas out ras na rrat i va s, a si t uação é l i ne a r.
1 . 3 . 2.6.
NAS LEN DAS E NOS EP IS ÓD IOS LEN DÁR IOS DE
BRUXAS OU FE IT IC EIRAS
S ej a persona gem i ndi vi dual , sej a um grupo de bruxas , e st as
ri val i z am sem pre em prot agoni sm o , quer com as suas ví t im as, quer
com os que t ent am v i ngar -se del as, dest r ui ndo -as at é, se pos sí vel .
Assi m , t em os em ge ral si t ua ções l i n eares de duas ou m ai s
pers ona gens pri nci p ai s (a b rux a e o m a ri do que t ro cou as pal avras,
por ex em pl o), ou são el as as pro t a goni st as e os out ros m eros
obs ervador es.
Tam bém nos casos de vi rt uosas e cur andei ros, a person a gem
necessi t ada p art i l ha a i m port ânci a na hi s t óri a com o “cu rado r”.
1.3.3. AS RELAÇÕES ENTRE AS PERSONAGENS
Encont ram os t odos os t i pos de rel ações que ex i st em na vi da
real : rei s port ugu ese s e governado res m ouros; t ropas e povo; pat rões
e em pre ga dos; fam í l i as pequenas e f am í l i as num erosas; fam í l i as
fel i z es ou, pel o m enos, vi vendo em harm oni a e fam í l i as desavi ndas;
pai s e fi l hos; m ães e fi l has; i rm ãos; i ndi ví duos soz i nhos, hom ens ou
m ul heres; pares d e nam orados; apai x onados não cor res pondi dos;
am i gos; col e gas de t rabal ho; vi z i nhos; desconheci dos; p árocos e
paroqui anos.
1.3.3.1. NAS LEN DA S DE MOURAS EN C AN T ADAS
O ex érci t o port u guê s é com and ado por o fi ci ai s e, pont ual m e nt e,
pel o rei ( D. Afon so III). As fo rças m i l i t ares dos ár a bes são
chefi ad as pel os al c ai des dos cast el os e, ocasi onal m ent e, por rei s
169
m ouros. É m ani fest a a sua coesão, bem com o a aut ori dade ex erci da
em am bos os l ados e a obedi ên ci a dos hom ens, que t êm noção d e
que se t rat a de um a gu err a cuj o obj ec t i vo ul t rapassa a posse das
t erras.
As pessoas do po vo est ão l i gadas por l aços nas ci dos de
s ol i dari edade e en t reaj uda, r espei t o e cum pl i ci dade, q uer ent re
cri s t ãos, quer ent re m uçul m anos. Tudo l eva a cr er q ue, em é pocas d e
paz , uns e out ros co abi t avam paci fi cam ent e, e qu e est a h ar m oni a só
era queb rada p el as bat al has da r econqu i st a e, m esm o assi m , só ent re
com bat ent es.
S ão est es m esm os l a ços que vam os en co nt rar ent r e os fo gue i ros
d’ “O Fo rno d a C al ” ( L M 26 ), e qu e o s faz con corda r em uní ssono
com as condi ções i m post as pel o caval e i ro m ouro que o co m prou.
No ent ant o, apes ar dest a apa rent e co ncordânci a, h á sem pre,
s ubj acent e, a p rese r vação d e um a ce rt a i nt i m i dade, não se r evel ando
nunca a t er cei ros as i nt enções d os act os, quando se t rat a de
precei t os a respei t ar num proc esso cuj a fi nal i dade é en ri que cer, par a
evi t ar sej a i nvej as, sej a i nt erf er ênci as d e qual que r ord em , e a prov a
acab ada é L M 3 2, em que, devi do a desconfi an ças do “ povo”, a
vel ha Barb aç as não só é es panc ada p el o m ari do, com o nun ca m ai s vê
“a m eni na ”.
Apenas um a p ersona gem po rt ugu esa n ão se rel a ci ona nunc a c om
m ouros, provavel m e nt e por raz ões óbvi as – o padre. Nunca apare ce
na “épo ca m ouri sc a” e nunca é al vo das apari çõ es dos encan t ados .
Há narr at i va s em que um a das perso nagens pri nci pai s vi ve
s oz i nha (hom em ou m ul her), por raz ão desconh eci da (“ O Tacho do
Tes ouro”, L M 44 e LM 25 , e “A Font e de Espi che”, L M 28 ). A sua
rel aç ão com o r est o do povo só é m enc i onada depoi s de en ri quece r,
vi s t o est a al t e raç ã o de est at ut o i m pl i car fo rçosam ent e um aum ent o
do respei t o, ou sej a, a subi da na esca l a soci al , poi s ai nda que os
m éri t os se r esum am à aqui si ç ão de for t una, i ndependent e m ent e do
processo ut i l i z ado, é sem pre m ot i vo de subi da na consi der ação dos
170
out ros, “poi s que o di nhei ro foi sem pre um pergam i nho de nobrez a
que nunca d ebot a” ( L M 24 ).
Grupos de am i gos são ra ros, só em “ A Moura da S e rra de
M onchi que” ( L M 35 ) e em “A Mou ra do Arco do R epouso” ( L M 49 e
LM 9 ) e, em am ba s as si t uações, i nt e rvêm aj udando (ou t ent a ndo
aj udar) o am i go i sol ado, em peri go, arri scando -se ao seu d e sagrado,
m as
seguros
da
necessi dad e
e
ur gênci a
da
sua
i nt ervenç ão,
j us t i fi cada pel o sent i m ent o que os une. Am i z ade ent re duas pessoas,
s ó em “A Moura Fl ori pes” (na v ersão de Gent i l Marques, L M 37 ) e
em LM 21 , gerand o um a confi ança m út ua que, a cert a al t ura, é
ques t i onada, m as acab a por venc er, na pri m ei ra, re fo rçando a
com preens ão ent r e os doi s hom ens e , na se gund a, n ão che ga a
res ol ver -s e com pl et am ent e a si t uaç ão, m as não p are ce que venha a
afect ar, fut ur am ent e , as suas rel a ções.
Em bora em si t uações com pl et am ent e d i ferent es e, cl aram e nt e,
m ovi da por s ent i m ent os e ne cessi dad es di st i nt os, encont ra m os doi s
cas os de cum pl i ci dade ent re es crav os e senhores. Foi ass i m que o
“j ovem guer rei ro ” e a fi l ha do gove rna dor do c ast el o de F aro “po r
al gum t em po n am or aram por i nt erm édi o de um es cravo da m oura que
i a e vi nha com r ec a dos.” ( L M 49 ). E fo i com o m esm o est a t ut o que
o carpi nt ei ro d e Loul é foi cont a ct ado pel o ex -gov ernado r par a a
m i s s ão
(event ual m ent e
per i gos a)
de
re gr essar
ao
Al ga rve
e
des encant ar as t r ês f i l has (em L M 40 , L M 50 e LM 3 ).
P ares de nam orado s são frequent es e encont ram os t odos os
gén eros de desfe ch os: J ul i ão e Ani nhas (“A Moura Fl ori p es”) ( L M
3 7), am bos cri st ãos, cuj o am or é i m pedi t i vo da co ncret i z ação do
s onho da m oura qu e , por sua v ez , t i nha assi st i do ao naufr á gi o do seu
pri m ei ro nam or ado, quando t ent ava s al vá -l a, fact o que l h e val eu o
encant am ent o post e ri or; os nam oros c ont rari ados, em qu e o am or
vence sem pr e, i nde pendent em ent e do f i nal , b em ao gost o popul ar,
t am bém não fal t am – os ap ai x onados d’ “O Abi sm o dos Enc ant ados ”
( LM 41 e LM 1 6 ) ( a m bos m ouros, cont r ari ados p el o pai d a rapari ga)
171
e “Di nor ah” ( L M 5 4 ) (a rap ari ga é m oura e o s eu am ado é cri st ão ,
cont rari ados por Al á); enquant o o gu err e i ro port ugu ês (que nam orou
a m oura do Arco do R epouso) “nunca m ai s ri u” e, “t erm i nado o
cerco, pedi u ao R ei di spensa do exérci t o e recol heu -s e a um
convent o, onde p ro fessou m udando de nom e” ( L M 49 ), C ont udo,
nem sem pre Al á se opõe aos am ores e nt re m ouros e cri st ãos que,
s uperando os obst ácul os i nt erpost os, po r vez es, acabam m esm o por
cas ar e se r fel i z es – é o que acont ece e m “O C i nt o da Moura” ( L M
4 5 e LM 3 1 ).
As rel a ções f am i l i ares são as pri vi l egi adas, em am bos os
cont ex t os. As rel aç ões ent re m ari do e m ul her (port u gues es ) rev el am
um a com pre ensão m út ua que pass a pel a s desconfi an ças e, a t é, pel o
ci úm e, quando as at enções di m i nuem ou sofrem qual quer l i gei r a
al t eraç ão;
cont udo,
são i nex i st ent es ent re os m ouros, ou por
des conheci m ent o, o u pel a t radi ção bí gam a, que i m pede os cri st ãos
de os i m agi narem na i nt i m i dade do l ar. Os pai s m ouros ex ercem ,
as s i m , supost am ent e , um dupl o papel mat ernant e e est rut urant e
(envol vem c ari nhos am ent e, ao m esm o t em po que i m põem a l ei ). As
m ães (e/ ou esposas ) não ent ram nunca e m cena (só em LM 45 e LM
3 1 s e faz al usão a “t oda a fam í l i a”, m as sem di st i ngui r os seus
el em ent os, e se ref e rem “os pa rent es ”, s em os i ndi vi dual i z ar). O que
não di fere nunc a, é o am or m ani fest o ent re pai s e f i l hos (no sent i do
de parent s e enf ant s , poi s a rel aç ão en t re o pai e o j ove m mouro é,
t am bém , i nex i st ent e), em bora ent re os cri st ãos sej a a m ãe quem se
s ent e “ fer a no d eser t o ao not ar a cri a e m peri go” e, ent re o s m ouros,
o pai , a fi gura pro e m i nent e, “av arent o da com panhi a da fi l ha” ( L M
4 1), ou quem “al i se c onservou a chora r at é às horas da m ei a -noi t e”
(e LM 17 ), “p el a fi l ha que en cant ar a po r m i l e um anos” ( L M 53 ).
172
1.3.3.1.1. NOS EP IS Ó D IOS LENDÁR IOS DE
MOURAS EN C AN T ADAS
Na sua m ai or p art e , as rel a ções ent r e as persona gens de st es
epi s ódi os n ão são re l evant es.
Um a m ãe e um fi l ho que vão passan do, duas vi z i nhas, doi s
am i gos, t udo é oc asi onal , i nesperado e n at ural , ao m esm o t e m po.
Acabam po r se r m a i s i m port ant es (e i nt eressant es ) as rel ações
ex i s t ent es ent re os encant ados : doi s nam orados que sae m ao l uar;
doi s pri m os que não qui seram casar u m com o out ro e são et ernos
am i gos; um a t i a que fi ca encant ada ap enas para f az er co m panhi a à
s obri nha; um a m ãe com um fi l hi nho que, por v ez es, é repr esent ado
por um ade reço no cabel o; um a cri an ça ab andonad a nu m berço à
es pera
que
ve nha m
busca -l a;
duas
i rm ãs;
out ras
doz e
i rm ãs
“es pal had as por Fa r o e Loul é ”; i núm era s “ gent i s m ouras ” a gua rdando
hom ens sufi ci ent em ent e cor aj osos para superar em as prov as do seu
des encant am ent o …
1 . 3 . 3.2. NAS LEN D AS E NOS EP IS ÓD IOS LEND ÁR IOS
DE L OBISO MEN S
Aqui , a fam í l i a j á t em um a i m port ânc i a especi al , at é po r que
com eça por s er a c ausadora do “fad ári o” do pobr e l obi so mem , qu e
não t eve cul p a de t e r s i do o sé t i m o fi l ho (e de n ão l he t er e m dado o
nom e de Adão ) ou fr ut o de rel açõ es m at r i m oni ai s ent re com p adres.
Nas hi st óri as que encont rám os, há u m l obi somem que vi ve
s oz i nho, não se sab e porquê, e que , t al vez por i sso, por nã o t er um a
es t rut ura f am i l i ar q ue o apoi e, é al vo d a m al dade d e um vi z i nho que
o acusa de brux ari a , nã o se sabe com que fundam ent o; do i s del es
l evam um a vi da f a m i l i ar em t udo “norm al ”, com m ul her e fi l hos,
s urgi ndo os probl e m as apenas nas al t u ras das t ransform a ç ões – num
dos casos é a m ã e que, m ui t o prov avel m ent e, l he res ol veu o
probl em a, quei m and o -l he as roup as (“n ão se sab e”, m as t u do l eva a
173
crer qu e si m ), e, no out ro caso, é m esm o a m ul her que, a p edi do do
própri o, conse gu e t er a for ça n ecess ár i a para enf rent a r a “fe ra” e
res gat á-l a.
O l obi somem nasc e, assi m , dum núcl eo fam i l i ar de al gum m odo
di s funci ona l , i ndo c ri ar out ro núcl eo fa m i l i ar (quando casa , cl aro )
que i rá sof rer as co nsequênci as, t endo, cont udo, a possi bi l i dade de
anul ar a m al di ç ão.
Em qual quer dos c asos, o equi l í bri o é conqui st ado quando se
vence a fe ra.
P ensam os que nest as hi st óri as (assi m c om o em al gum as l endas
de m ouras encant ad as), m ai s do que na s out ras, est á m ui t o present e
a t em át i ca do “pe ca do ori gi nal ”, a i dei a de que os fi l hos sofrem as
cons equênci as dos act os dos pai s, i sto é, de que um a m al di ção
l ançada aos pai s pel o seu com port am en t o (por ex em pl o, as rel açõ es
ent re com padr es, ou a desobedi ênci a à l ei / t radi ção d e cham ar
“Adão” ao sét i m o fi l ho consecut i vo) é s ofri da com m ai s i nt ensi dade
pel os fi l hos, m as que est es t êm sem pre a possi bi l i dade de anul ar
es s a m al di ç ão, se f orem m er ec edore s, se conse gui rem “ en frent ar a
fera ”, super ar as d i fi cul dades ex i gi da s pel o processo (s ej a para
acab ar com o “fad ári o” de l obi som em , sej a para proc e der a um
des encant am ent o).
1.3.3.3. NA LENDA DE SEREIAS
Na Lenda d a P rai a da R ocha, não ex i st e qual quer grau de
parent es co ent r e as persona gens . P odem os consi der ar qu e o m ar e a
m ont anha er am vi z i nhos, m as não se rel aci on avam , ap e sar dessa
prox i m i dade, e a serei a era d esconhe ci d a de am bos.
É, durant e t odo o desenvol vi m ent o da hi st óri a, o j ogo de
s edução e conqui st a e x erci do p el os d oi s ri vai s que d i s put am o
m es m o obj ect o de a m or, que assi st e, de l ei t ando -se com as at enções
de que é al vo.
174
1 . 3 . 3 .4.
NAS
LEND AS
E
NOS
EP IS ÓD IOS
LEND ÁR IOS
DE
MEDOS OU AL MAS PEN ADAS
Tam bém nest es epi sódi os não são i m por t ant es as r el açõ es e nt re
as pers ona gens, poi s o el em ent o ful cral é a apa ri ção em si e o fact o
de al guém a t e r pres enci ado.
Há, no ent ant o, ge r al m ent e, al usões às rea cçõ es de fam i l i ares,
am i gos ou vi z i nhos, um as vez es sol i dar i z ando -se, out ras de screndo
e goz ando, p rovocan do a revol t a do e sp e ct ador do f enóm eno.
Ex i st e, no ent ant o, o caso cu ri oso do casal de i dosos qu e s e
pas s ei a, ao ent a rde cer, na pr ai a de B urgau, par a vol t ar aos seus
apos ent os no m ei o da roch a; o pai que, depoi s de m orto, ai nda
gri t av a, ch am ando pel a fi l ha “ Est ás l ouca! Vo l t a, l o uca!”; e,
s obret udo, a r el ação de cord i al i dad e que se est abel e ce ent re o rapaz
e a mi rra (a consel h o do sábi o pároco ).
1 . 3 . 3 .5.
NAS LEN DAS DA MORT E
Nest as narr at i vas , consi deram os que o m ai s i m port ant e é a
rel aç ão com a própr i a mort e , e, at é dest e pont o de vi st a, não dei x a
de s er si nt om át i ca a reac ção d e c ada um dos esposos , na lenda em
que a mort e v em buscar um dos el em ent os do casal .
Dest acam -s e, assi m , os doi s hom ens que t ent am en gana r a
m ort e, de m anei r as di ferent es.
S al i ent a -se, poi s , o m edo com o fact o r d et erm i nant e – que l eva
a fu gi r ou a l udi bri ar, nunc a a a cei t á -l a com o um fenóm en o que f az
part e da vi da.
Apenas num caso, u m hom em , “ em dese spe ro, prep arou -se para
a i dei a de m or rer t am bém ” ( LMO 1) , o que a cabou por nã o
acont ec er.
175
1 . 3 . 3 .6.
NAS
LEND AS
E
NOS
E P IS ÓD IOS
LEND ÁR IOS
DE
BRUXAS OU FE IT IC EIRAS
O cont ex t o soci al das hi st óri as de br uxas ou f ei t i cei ras é a
vi z i nhança, na povo ação, e a f am í l i a .
A vi z i nhança, que s e une cont r a a bruxa que é o i ni m i go
com um ; a f am í l i a, que sofr e, em conj unt o e por consequ ên ci a d a
prox i m i dade dos l aços, os m al es que reca em sobre um d os seus
el em ent os.
As bruxas , quando em grupo, di vert em -s e cant ando e danç an do ,
e, por vez es , à cus t a de al gum i ncaut o que passou por p ert o, ou
pre gando
part i das
a
al gum
curi oso
que
resol veu
espre i t á-l as,
prot ege ndo -s e um as às out ras . Al gum a s enganam os m ari dos, que
des conhec em as “ar t es” das suas esposas, sai ndo de noi t e quando
el es est ão dorm i ndo , e re gr essando ant e s de el es a corda rem .
No ent ant o, quand o se fal a de bru x edos que pr ej udi ca ram
gr avem ent e al guém , l evando m esm o à m ort e, é de pe r sonagens
i ndi vi duai s que se f al a, não const a que el as aj am em conj un t o nest as
ci rcunst ânci as.
É, t al vez , de sal i e nt ar, a pres enç a d a ne cessi dade de p edi r
perdão, ocor ri das e m LF eB 1 e LF eB 3, por part e de que m p edi u a
al gum ( a) brux o(a) que fi z esse o m al , assi m com o a capaci dade de
perdoar d e D. Bi bi , em ci rcunst ân ci as, n o m í ni m o, desagr ad ávei s.
176
3.
1.4. O TRATAMENTO DO TEMPO
Qual quer ac ção oco rre sem pre, fo rçosa m ent e, num det erm i nado
pont o em que t em po e espaço s e cruz am . É um fact o.
Em separa r est as d uas real i dad es di st i nt as é que r esi de, por
vez es, a di fi cul dad e. De a cordo com os parâm et ros de anál i se
l i t erári a, v am os, a ssi m , di ssoci ar est as duas cat e gori as, para as
t rabal har s epar adam ent e.
Envo l vendo t udo – espaço, acç ão, pe rs onagens e n arr ador – o
t em po é o fact or qu e faz evol ui r t odos est es i nt erveni ent es . É, com
frequên ci a, o p ri nci pal a gent e t ransfor m ador, na Hi st óri a com o nas
hi s t óri as, o “grande escul t or” por ex cel ê nci a.
1.4.1. A LOCALIZAÇÃO NO TEMPO HISTÓRICO
Na t radi ção or al , a l ocal i z ação t em pora l pode ser i ndefi ni da –
com o é h ábi t o nos c ont os – ou, pel o con t rári o, pe rfei t am ent e si t uada
na
Hi st óri a
–
o
que
é
fr equent e
nas
l endas.
Nest e
corpus ,
encont ram os t am bé m al gum as si t uaçõ es i n t ermédi as .
S e, por um l ado, al gum as l endas n ecessi t am dessa p reci são para
provarem ce rt os fe nóm enos, por out r o l ado, em p art i c ul ar nos
epi s ódi os l endári os, o m om ent o em que os fact os ocorr er am acaba
por
não
s er
i m port ant e,
pe rant e
o
i nsól i t o
dos
própri os
acont eci m ent os.
1 . 4 . 1 . 1 . NAS LEN DAS DE MOURAS EN C AN T ADAS
Há l endas cuj a a cç ão se passa num t em po post eri or ao dos
encant am ent os, e o ut ras em que quas e “pres enci am os” o s si nai s
cabal í st i cos ex ecut a dos pel o pai desespe rado.
177
“Di norah, fi l ha de Agar, er a um a das m ai s bel as m ouras de t odo
o Al ga rve m uçul m a no.” ( L M 54 ). Est a é a úni ca ex pressão que nos
rem et e par a um a ép oca de ocupa ção á ra be, ant eri or à r econ qui st a e,
port ant o, um perí od o de paz e prospe ri dade.
Al gum as
ac ções
o correm
cl a ram ent e
durant e
a
época
da
ex pul s ão dos m ouros do Al garv e: “A t er ra al garvi a er a j á qu ase t oda
t erra port u gu esa. F al t ava Loul é e pou co m ai s. Tavi ra a c abara d e
cai r.” ( LM 39 ); “Mi l duz ent os e quaren t a e nove. [ ...] Os m el hores
gue rrei ros m ouros de ent ão co rrem a j unt ar -se sob as o r dens dos
s eus chef es.” ( L M 4 0 ); “na époc a m ouri sca” ( L M 41 ); “ No t em po da
conqui st a do Al ga r ve. [ ...] di as depoi s da t om ada d e Fa ro.” ( L M
4 6); “No t em po do dom í ni o dos m ouros no Al garve [ ...] em 23 de
Feve rei ro d e 1249. ” ( L M 49 ); “Du as noi t es ant es da ent rada dos
cri s t ãos em Loul é ” ( L M 50 ); “ No t e m po em que o r e i no dos
Al ga rves p ert enci a aos m ouros” ( L M 51 ); “Depoi s d os duros
com bat es feri dos e m frent e do cast el o, reconhe ceu [ o gove rnador do
cas t el o de Loul é] que a vi l a seri a brevem ent e i nvad i da pel os
s ol dados de D . P ai o. Na penúl t i m a noi te [ ...] ” (L M 3); “Na noi t e em
que o consel ho form ado pel os sarr acenos resol veu d esam par ar
preci pi t adam ent e o cast el o [ de S al i r] ” ( L M 6 ); “Em t e m po dos
árabes nest a proví nci a” ( L M 16 ); “[ ...] al guns di as de poi s da
ex pul são dos aga re n os dest a bel a proví n ci a.” ( L M 26 ).
Out ras ap resent am ref erên ci as t em po rai s hi st óri cas, em bora
com m enor preci são , si t uando a acção – quase sem pre um a t ent at i va
fal hada
de
des en cant am ent o
–
nu m a
época
post eri or
à
da
reconqui st a: “Em pl eno sécul o X IV e a pó s a conqui st a do Al ga rve
[ ...] El -rei D. Afons o IV anda a gor a em gu err a com Espanh a.” ( L M
35 ); “no i ní ci o do sécul o XV III” ( L M 44 ); “Há uns d uz ent os e
ci nquent a anos” ( L M 48 ); “no pri ncí p i o do sécul o passa do” ( L M
6 1); “nos pri ncí pi o s do sécul o passad o” ( L M 59); “Em 1 865 [ ...] ”
( LM 21 ). “C ert a vez , um rapaz observou por acaso um m ouro est ar a
ent err ar vi va a fi l ha. C om o i a pa rt i r p ara a Moi ram a e nã o a podi a
178
l evar, est av a a enca nt á -l a debai x o da t e rra.” ( L M 45 );
Um caso ori gi nal é o da “ Lend a de Al goz ”, em que est e t i po
de l ocal i z aç ão é fei t o por um a person a gem , di ri gi ndo -se a o m ari do:
“Nunca t e vi cans ad o, nem dur ant e a co nqui st a dest as t e rra s, que t e
foram doad as pel os t eus m éri t os de gu er rei ro [ ...] ” ( L M 34 ).
Na “ Lenda do Fal s o J uram ent o” ( L M 36 ) há um a refer ên ci a
i m preci sa: “N esse t em po, a ci dade [ F a ro] não t i nha a i m port ânci a
que hoj e t em , sobr e puj ando -a S i l ves e Tavi ra.” Não se per cebe se
foi durant e o apoge u da época mouri sca ou durant e o t empo que se
s egui u e em que Fa ro foi m enos i m port ant e do que as out ras duas
ci dades.
Out ras, ai nda, apr esent am as vari ant es possí vei s de um a
i ndefi ni ção da épo ca em qu e se d er am os acont e ci m en t os m ai s
recent es (os enc ant a m ent os ocorrer am durant e a épo ca mou ri sca , de
form a ex pl í ci t a ou i m pl í ci t a, com o, de rest o, é ó bvi o): “H á m ui t os
anos ” ( LM 33 e LM 7 ); “Um di a” ( L M 38 ); “em t em pos i dos” ( L M
4 2 e LM 24 ); “ em t em pos” ( L M 43 ); “ um a vez ” ( LM 3 2 e LM 31 );
“Em cert a noi t e ” ( L M 60 ); “Em cert a o casi ão, há m ui t os a nos” ( L M
8); “ant i gam ent e ” ( L M 1 4); “ em t em pos di st ant es” ( L M 27 ); “em
t em pos recuados ” ( L M 5 2); “em t em pos, que j á l á vão ” ( L M 28 ).
Fi nal m ent e, há um a m i nori a de l endas que não si t uam a acção,
cons i derando -a, ev e nt ual m ent e, m ai s i m port ant e do que a a l t ura em
que se de ram t ai s acont e ci m ent os , um pouco à sem el hanç a do s
cont os t rdi ci onai s. ( LM 37 5 e LM 25 ).
1.4.1.2. EM TODAS AS OUTR AS LE ND AS E EP IS ÓD IO S
LEN DÁR IOS
C om o faci l m ent e se com preende, t odas as out ras narrat i va s se
di vi dem em t rês gr upos: as que n ão t êm ref er ênci as hi st óri cas de
qual quer espéci e, s i t uando -se num t em po i ndefi ni do ( t al com o os
cont os), por n ão s er i m port ant e a ép oca em qu e se de ram t ai s
179
acont eci m ent os, co m o é o cas o da “ Lenda da P rai a da R ocha”; as
que se report am a um t em po recent e – fi ns do sécul o X IX e
pri ncí pi os do sécul o XX, no caso d as recol has d e At aí de Ol i vei ra,
J os é Lei t e de V asc oncel l os e out ros, e m eados do sécul o XX, para
al gum as re col has de Fe rnanda F raz ão, G ent i l Marques , J osé C asi nha
Nova e out ros, i ncl ui ndo a nossa –, vi st o se t erem passado com
pes s oas que di z em ter ouvi do cont ar ou m e sm o t er presenci ado t ai s
fact os; fi nal m ent e, aquel as qu e co rrem na t radi ção ex pl i ci t am ent e
com o t endo o corri d o “al gum t em po de poi s da ex pul são do s m ouros
des t a proví nci a ”.
1.4.2. O TEMPO FÍSICO – LOCALIZAÇÃO E
CARACTERIZAÇÃO
Às m anhãs de P ri m a vera s u cedem -s e as noi t es de Ver ão e, t ant o
um as com o out ras, são descri t as un ani m em ent e pel os di versos
aut ores com o m om e nt os apraz í vei s. As noi t es são i nva ri a vel m ent e
de l uar e, as m anh ã s, de sol . O cal or é perm anent e. A “m ei a -noi t e
em pont o” e o “pi n o do m ei o -di a” são as horas, por ex cel ê nci a, de
encant am ent os, apar i ções e des encant am ent os.
Tam bém
o
ent ard ecer
t em
o
s eu
l ugar,
com o
m om ent o
prepar at óri o, e ap a rece em si nt oni a com o est ado de espí ri t o das
pers ona gens (“ A t a rde c aí a num ci nz ent o de chum bo.” – L2; “A
t arde com e çar a a ca i r, e com el a o cal or [ ...] ” – L3; “ Num a t arde de
pri m avera, com eç av am as am endoei ras a fl ori r [ ...] ” – L22).
A sensaç ão t áct i l d o cal or do Ve rão, q uando não é t r ansm i t i da
di rect am ent e (“Noi t e cál i da de V erão ” – L1, “A t ard e co m eçar a a
cai r e com el a o cal or que ab rasa ra o di a. A t er ra con t i nuav a quent e
e a á gua m orna. ” – L3), é-o de form a i ndi rect a: “a t e rra, m u i t o seca,
res val av a debai x o dos pés.” ( L4).
180
As noi t es são quase sem pre de l ua ch ei a, o que confer e um a
cert a m a gi a ao am bi e nt e (“Noi t e l u arent a” – L1; “noi t e de l ua chei a ”
– L2; “um l u ar for m osí ssi m o banhava t oda a prop ri edad e” – L9;
“nes se m om ent o su bi a a l u a no ho ri z ont e” – L35), cont ra st a com a
cl ari dade do di a, ap esar d e t udo n ão m e nos poét i ca (“ a l uz doi rad a
do s ol ” – L2 ; “a m anhã est ava cl a ra, s erena ” – L4; “m anh ã boni t a,
chei a de sol , i rr adi a ndo perfum e ” – L8).
Est as noi t es de l ua chei a, com o j á vi m os, são com uns a t odas as
apari çõ es de ent i dades m í t i cas (ou quase t odas, poi s a mort e parec e
não t er pre fer ênci as ), assi m com o às t ransform açõ es em l o bi somens
ou aos encont ros e nt re bruxas ou f ei t i cei ras . As al mas penadas ,
com o a mort e , apare cem em qual quer al t ura (do di a ou da noi t e) e os
out ros medos , pre fer enci al m ent e à n oi t e, com ou sem l ua che i a.
P el o cont rári o, as e nt i d ades rel i gi osas parec em pr efe ri r a l uz do
di a para f az erem as suas apari çõ es, em bora al guns mi l agre s sej am
operados dur ant e a noi t e, com o são o s casos das desl o ca ções das
vári as i m a gens de Nossa S enhora e d o S enhor J esus de A l vor, e
quando o S enhor sai da cruz .
1.4.3. O PASSAR DO TEMPO
S e o t em po “não pode vol t ar at rás”, a s persona gens pode m , a
s eu bel praz er, desl ocar -s e no t em po, em qual quer sent i do – é o
efei t o de doi s f enó m enos psí qui cos a que cham am os “m e m óri a” e
“i m agi n ação ”.
E
o
narr ador
t am bé m
pode,
por
con veni ênci a,
el i m i nar se gm ent os t em porai s sem i nt eresse p ara a econ om i a da
narrat i va.
As an al epses , que, com o é nat ur al , são m ui t o m ai s freque nt es
nas l endas de mou ras encant adas do que nas out ras l e ndas ou
181
m es m o nos epi sódios l endári os, t ent am sem pre e x pl i car qual quer
s i t uação do present e do t ex t o cuj a ori gem r em ont a a um passado
m ai s ou m enos re cent e e d e cuj o c onheci m ent o dep en de a sua
com preens ão (m ui t o frequent em ent e, na rram o en cant am ent o) :
LM 34 : “ Di as an tes [ ...] C om o i sso ai nd a h á p ou co temp o l he er a
gr at o! A go ra, po ré m [ ...] ” – l ocuçõe s adverbi ai s de t e m po que
i nt roduz em a reco rdação, car act e ri z ando a rel a ção de Ant óni o
Navar ro com a fam í l i a, m ost rando a sua fel i ci dad e, par a real ç ar o
cont rast e com a an si edade do m om ent o; em di ál o go, na fal a d e
J oana: “ Nu n ca t e vi cans ado, n e m d u ra n te a conqui st a d est as t er ras
[ ...] ” – novam ent e o cont rast e ent re c aract erí st i cas da p e rsona gem
(Ant óni o), ac ent uan do a di fer ença ent re o passado e o pr es ent e.
LM 35: “Ant óni o, j ovem pesc ador q ue sof rera um n a ufrá gi o e
f i cara al gum t em p o em t erra a r eco m por -se, subi a nu m vaga r
am ol eci do.” – a ant eri ori dade é c onfe ri da pel o pret éri t o m ai s -queperfei t o, ex pl i cando a pres enç a do pescador em t er ra, a sua
di s poni bi l i dade e at i t ude (“va gar am ol e ci do”); “M eu p ai ti n h a um
pal áci o
lá
em
ba i x o...
Fazí amos
f est as
t ão
l i ndas!
Vi n h am
t rovadores cant a r... e eu... t am bém t ocava l i ra...” – o aspect o
durat i vo do pret éri t o i m perfei t o do i ndi cat i vo, em conj unto com a
enum era ção, p roduz um a si m ul t anei dad e de acçõ es que, m ai s um a
vez , pel o cont rast e, real ç a a i nf el i ci dade da si t uação pr esent e.
LM 37 : “S or ri i nt i m am ent e, e r ecor d a , en q u an to cami nha, o
di ál ogo havi do ent r e el e e o com padr e Zé ” – e se gu e -se o refe ri do
di ál ogo, que n ão só j ust i fi ca a presen ç a de J ul i ão no cená ri o, com o
t orna pr evi sí vel a apari ç ão da m oura; durant e o encont r o ent re
J uli ão e Fl ori pes, est a cont a -l he c om o ocorreu o se u t rági co
encant am ent o, prov ocando um cres cen do da pi edade qu e o rapaz
s ent e
por
el a,
a um ent ando,
conse quent em ent e,
a
d ensi dade
dram át i ca, um a vez que est a pi ed ade, al i ada à b el ez a da m oura e à
s ua “t ri st e” e “h arm oni osa” voz , são fa ct ores que s e conj u gam p ara
182
que J ul i ão vaci l e, i n t ensi fi cando, no fi nal (do en cont ro), o am or que
es t e sent e por Ani nhas, e que sai vi t ori o so.
LM 49 e LM 10 : “C on tou -l h e q u e ti nham ten tad o ent ra r n o cast el o
[ ...] ”  são, proposi t adam ent e, om i t i dos acont eci m ent os, r evel ados
pos t eri orm ent e
por
out ra
persona ge m ,
m ant endo
a
coerên ci a
narrat i va do pont o de vi st a do j ovem guer rei ro; pouc o depoi s,
repet e -se pro cesso, m as porque est es acont e ci m ent os são m ai s
i m port ant es par a el e , o di scurso i ndi rect o é subst i t uí do pel o di ál ogo
com o i rm ão da j ove m m oura.
LM 50 : “ Par ec e q u e al gu n s cri stãos vi ram o hom em sai r do
cas t el o com as fi l has, em di recção à font e. Depoi s ou vi ra m uns
cânt i cos e quando vi ra m o gov ernado r v ol t ar, vi nha soz i nho.” – est e
r ecuo (em que o carpi nt ei ro t em o cui dado de não afi rm ar nada
cat e gori c am ent e,
e scudando -se
com
os
que
t est em unharam
o
epi s ódi o e narrando apenas o que podi a t er si do vi st o e ouvido) vem
el uci dar
o
gove rn ador
sobre
o
con heci m ent o
gene ral i z ado
do
encant am ent o de suas fi l has, perm i t i ndo -l he i dent i fi car -s e e faz er o
l oul et ano com preen der a sua at i t ude . “Nessa al tu ra , o carpi nt ei ro
d eu -se con ta d e q u e a m ul her que l h e acen ara na P ra ça de Loul é
era a m ou r a C assi m a, que assi m procu r ava vi n ga r -se pel a segund a
vez !” (Em L M 3: “S ó en tão o carpi nt ei r o se re cord ou das f ei ções de
C ás s i m a e con h ece u ser el a q u e l h e acen ara na pr aç a!” ) – est a
record aç ão
t em
um a
part i cul ari dad e
ori gi nal :
é
um a
si t uação
pres ent e (es t á a se r l evado à pres enç a do gov ernado r pel a se gunda
vez , depoi s de t er cr uz ado os ares t am bé m pel a segund a vez ) que faz
l uz s obre um a si t uação passad a (re conh ece a m ul her que l h e acenou )
que, por sua vez , l h e perm i t e com pr een der a si t uaç ão pres e nt e.
LM 2 1: Tam bém nest a l enda, um t ri st e encant am ent o é narr a do, com
a ori gi nal i dad e de est arem i ncl uí das n o rel at o as vári as t ent at i vas
em preendi das pel a m oura pa ra conse gui r o seu desen can t am ent o,
pondo, dest e m odo, o seu r ec ept or a p ar dos pr ec ei t os ex i gi dos e
res pect i vas consequ ênci as. Est a an al eps e est á pres ent e na n arrat i va
183
encai x ada,
que
co rresponde
a
m ai s
um a
das
suas
frust radas
t ent at i vas.
Ao cont rári o das a nal epses , as prol epses apare cem com i gual
frequên ci a
nout ras
narrat i vas,
pri nci pal m ent e
nas
l endas
cuj a
pers ona gem m í t i ca é a mort e .
Nas l end as de mour as encant adas , a m ai or pa rt e d as prol e pses
encont rad as assum e um ca rá ct er “pro fé t i co”, ou d e prom es sa – t al
com o nas l endas da mort e –, ai nda que m ui t as se re sum am a
previ sões depend ent es, nat ural m ent e, da acei t aç ão ou da re cusa em
s ubm et er -se à prova ex i gi da.
LM 33 : “E em t ro ca do bol o, recebe rás um a fort una p ara o resto d a
tu a vi d a .”; “  Nem à t ua m ul her. E será el a que m m ai s t e
provocar á.”; “ Ver -n os -em os a man h ã à m ei a -noi t e, no cast e l o.”;
LM 34 : “ Al a gar ei a t ua casa, as t uas terras e t oda a t ua fam í l i a!”;
“Tent ar ei ai nda est a mad ru gad a ...”; “  Hei -de de fend ê -l o s! Hei -de
defende r
os
m eus
fi l hos!...”;
“  De us
os
prot eger á! ”;
“Ou
os
encont ro... ou n ão mai s vol ta rei !”;
LM 3 5: “Mas tu h á s -d e vi r aq u i mai s ve zes e ent ão... f ar-te -ei a
vont ade.”; “  S ob est a pedra ex i st e um caudal de á gua que f ará cur as
m aravi l hosas! S e m e t roux eres a t erra, di rás à t ua m ãe que venha
aqui banha r -se na águ a qu e vi r corr er .”; “  S e ent rar es... serás o
h ome m mai s p od er oso d estas red on d ezas !”;
LM 36 : “ S e qui seres, n ão p reci sará s mai s de l avar. P agarás a
out rem para t r at ar d o que é t eu [ ...] ”; “  Vi rás, si m. ”; “El a querer á
acom panha r -t e a ma n h ã [ ...] ”; “ A man h ã est arás aqui à m esm a
hora.”;
LM 37 e LM 1 4: “ O hom em que m e a braça r e m e f e ri r t e m de m e
acom panha r at é Áf ri ca [ ...]  Por tod a a vi d a [ ...] ”; “ Não mai s
184
vol tará aos seus!”; L5 (só): “E t u é que poderás en cont rar out ro
hom em que quei ra s egui r -t e.”; “Ter ei de acom panh ar aqu el e que m e
am a e não ser acom panhada pel o qu e eu am o. P aci ê nci a! Cu mp ri r ei
o meu d esti n o .”; “A gor a nós e el e ser em os fel i z es!”;
LM 38 , LM 48 e LM 1 3: “Em pri m e i ro l uga r, se rás t r ê s vez es
engol i do
e
t rês
vez es
vom i t ado
por
m eu
i rm ão,
q ue
est á
t ransform ado n est e l eão. Depoi s, t rês v ez es serás t am bém abraç ado
por m i nha i rm ã, que est á t ransfo rm ada n est a serp ent e, e qu e dei x ará
o t eu co rpo em ch a ga nos pont os em q ue t e t o car... E po r fi m eu
bei j ar -t e- ei na f ront e, para t e t i rar os s ant os ól eos que re c ebest e no
bapt i sm o...”; “Ama n h ã , ant es de o sol nascer, sent a -t e à s o l ei ra da
t ua port a, porque n o m om ent o do nascer do sol os t eus ol hos darão
doi s est al os com o duas am êndoas dur as e ent ão com eçar ás a ver.
Pri mei ro avi starás a casa do padre J osé Di as, d ep oi s os canári os
que el e t em na gai o l a e, p or f i m, v erá s as casas d a p ovoa ção e os
cam pos em vol t a.”;
LM 40 : “Q u an d o a al vorad a romp e r vão t ent ar o assal t o... Mas não
nos acharão desp re veni dos, com o j ul gam !”; “ Na vésp era d e S .
João, à mei a -n oi te, i rás j unt o daqu el a font e que fi c a a nas cent e d a
vi l a, l ogo à ent rada , e at i ra rás est es pã es para dent ro da f ont e, um
de cada vez ... E de cada vez di rás o nom e de um a del as... P ri m ei ro,
Za ra... Depoi s, Lí di a... E, fi nal m ent e, C assi m a!... Quando acab ares,
part i rás l ogo pa ra t ua casa... Daí em d i an te , acr edi t a , serás o
hom em
m ai s
ri co
de
Loul é! ”;
“S e
conse gui r es
f az er
i sso,
i med i ata men te ch e garás a Loul é. Mas se t ocar es na á gu a, m orrerás
afo gado...”;
LM 41 : “[ ...] n u nca o esq u ec er ei ... J uro por Al á qu e n ão o
es q u ecerei !...”; “ Le m brai -vos que sem Abdal á n ão sab erei vi ver !”;
LM 47 e LM 12 : “ Aqui f i carás encant ada até q u e duas pe ssoas de
s ex o di ferent e am assem f i l hozes com a águ a dest e ri o, na véspera d e
S ão J oão, e aqui as venham com er d ep oi s de m ut uam ent e se t erem
at i rado à c ar a com a s m esm as f i l hozes .”;
185
LM 49 : “ Est a noi t e espero ent ra r no ca st el o pel a port a do nascent e.
S e eu n ão vol tar d ep oi s d e al gu m te mp o , é porque caí num a ci l ada,
por i sso pe ço -vos q ue, quando o c ast el o for t om ado, poupe i s a fi l ha
do gove rnador. N ão a m al t rat ei s, porqu e em caso de t r ai çã o el a não
t erá t i do nada c om i sso.”;
LM 50 : “N a véspe ra de S ão J oão, à m ei a -noi t e, vai at é à fo nt e onde
el as est ão e abei r a - t e. Dei t a -os [ os pães com os nom es das fi l has]
ent ão um a um l á para d ent ro, di z endo al t o o nom e de c ada um a
del as: Zar a, Lí di a e C assi m a. Depoi s vol t a p ara cas a e e squece o
as s unt o!”;
“S e l he passares por ci m a de um
pul o,
ver-t e-á s
i med i ata men te à po rt a da vi l a; se não c onsegui r es, cai s a fo gado no
m ar...”; “[ ...] se desencant a res as m i nha s fi l has serás re com pensado
de m ui t as m anei ras .”; “  S ou eu, C assi m a, con denad a a es t a font e
p or sécu l os e sécu l os .”; “El a vai t er um fi l ho em b reve . Nessa
al tu ra ci nge -a com el e.”; “[ ...] só a m i nha pequena C as si m a al i ,
para sem pr e, ete rn amen te num a font e ! Fel i z m ent e que não fi car á
s ó!!”; “  E n q u an to exi sti r Al - Fagh ar nel e pal p i t ar á um m undo de
coraçõ es sar rac enos. ..”;
LM 6 1: “ Aj ud ar -t e -ei d u ran te ci n co a n os , e n o f i m l ego - t e t odos
os m eus t esouros.”; “  Morres e eu aqui fi co p or mu i tos an os .”;
LM 59 : “ Ahi t ens a t ua vacca pej ada. D’aq u i a p ou co temp o pari rá
doi s bez erri nhos: um est rel ado e o out ro moi rat o . No fim d e u m
an n o j unge -os ao ar ado e t ral -os a est e pego. É pr eci so que ni nguem
vej a o l ei t e da v acc a e mq u an to cri ar os bez erri nhos.”;
LM 7 : “ Dou -t e ri q uez as de m ui t o m ai s val or se m e prest ares um
pequeno se rvi ço.”; “S e n os d esenc an t ares, dou -t e di nhe i ro para
com prar es m ui t os pent es.”; “  A man h ã , ant es do sol nado, vem aqui
e encont ra rás doi s t ouros boni t os e belos. [ ...] S e t e di st rai res não
ganh as o que t e p ro m et i e r edobr as o nosso encant am ent o. ”.
LM O 1 : “Daq u i a 15 d i as , l evo -t e a t i , 15 d i as d ep oi s , l evo a t ua
m ãe e, 15 d i as d ep oi s , l evarei o t eu pai . ” ;
186
LM O 3: “D aqui a u m m ês, t enho um e ncont ro m ar cado co nt i go, a
es t a hora, p ara t e l e var!”.
Out ras
l i m i t am -se
a
ant e ci pações
(de
m ai or
ou
m enor
am pl i t ude), dúvi das ou quase cert ezas sobre o que i r á pass ar -se em
s egui da:
LM 33 : “Vi nha de l onge e se gui a par a casa, ond e d ec erto a mu l h e r
o agu ard ava j á c om i m paci ênci a.”; “Eu est ar ei à t ua espera. ”;
“A man h ã j á poderei cont ar -t e t udo. ”;
LM 35 : “N ão foi o m edo que o fez par a r. Ant es o r ec ei o de que a
s ua presenç a pusesse em fuga a l i nda a pari ção. ”; “E para q ue o t eu
encant o d esapa reç a ter ei eu d e p erd er a mi n h a al ma . ”; “  Não
poderei
dei x ar
a
m i nha
m ãe
que
é
doent e!”;
“ Nós
te
acom panha rem os aman h ã e t rarem os a t ua m ãe. S e a ág ua curar,
farem os daq ui um as t erm as par a al í vi o dos doent es!”;
LM 36 : “T eri a d e l a var nessa m anhã as peças d e roupa qu e a m ãe l he
ent re ga ra e estar d e vol ta a casa an t es d e o sol es tar a p i n o .”;
“ A man h ã não vi re i ao ri o. ”; “M as vo l t o l á a man h ã .”; “ A man h ã
vai s ao ri o soz i nha. Mas l evas est a cru z . Q u and o el e te p ed i r par a
cas ar es com el e [ ...] ”; “  Vou faz er assi m com o diz !”; “[ ...] não
cas ar á com i go.”;
LM 37 : “S e el a nã o apare cer, dou -t e a Herdad e das R el vas com o
pres ent e d e noi vado ! [ ...]  Não t e dou nada quando casa re s com a
Ani nhas.”; “  El a en cont rar á out ro noi vo.”;
LM 38 , LM 48 e L M 13 : “[ ...] e part i u par a c asa, di spos t o a não
cont ar n ada a ni n guém , nem m esm o à m ul her. ”; “O a l m ocreve
j ul gou -se s al vo. S al vo p ara se mp re , e ai nda por ci m a poss ui dor de
d u as barr as de ouro ...”; “[ ...] escondeu as duas bar ras de o uro ond e
a m ul her n u n ca pudesse encont ra r [ ...] convenc endo -se i nt i m am ent e
a n u n ca mai s t o rnar ao pal áci o subt er râ neo e enc ant ado da m oura de
187
Es t ói .”; “[ ...] vendê -l as, por ex em pl o, num a fei r a grande , onde l he
dari am d ece rto bom di nhei ro por el as.”;
LM 39 : “[ ...] ol hava at óni t o para o ex érci t o fort e e di sci pl i nado que
s e es prai ava pel a pl aní ci e em frent e e q ue el e sab i a d e an temão não
poder venc er.”; “  P arec e bem grand e a p rovação q u e n os esp era ,
m i n ha fi l ha!”; “ Lá nos encont r arem os d ep oi s .”; “ Den tro e m b rev e
os m eus com p anhei ros est a rão aqui !... E pode rão pensa r que eu
fi quei encant ado di a nt e de vós!”;
LM 40 : “ Fal ta m já p ou cos mi n u tos para que os ast ros e st ej am na
conj unção propí ci a.. .”; “No seu í nt i m o pensa na m ul her, no s fi l hos,
nos am i gos... Que e norm e surpr esa! Nã o, não pode fal h ar! ” ; “[ ...] j á
i nebri ado pel o t ri unfo e p el a p ersp ecti va d a f ortu n a p rometi d a .
[ ...] certo d e q u e t udo se vai passar co m o ant eri orm ent e... ”;
LM 41 e LM 15 : “[ ...] egoí st a e re ceos o do dot e que t eri a de da r l he, se casass e!”; “ Vou m anda r que t e abram a port a. Al i n a r eceou o
pi or.”; “  P oi s vere m os se el e t e m er e ce...”; “E n a noi t e desse di a
dei t ou -se descans ad o n a certeza d e q u e não seri a despe rt ad o do seu
s ono.”;
LM 43 e LM 27 : “[ ...] podi a ser que, com um pouco de sort e, l hes
vi es s e a c aber al gum a coi sa do t eso uro que o m ouro devi a t er
es condi do [ ...] ”; “[ ...] e pode s er qu e t u l he pr est es al gum servi ço,
do qual r esul t e a no ssa fel i ci dad e.”; “[ ...] e d ep oi s i a ser a cha co t a
da vi z i nhança [ ...] ”;
LM 45 : “[ ...] um a broa que só deve ri a part i r em pres ença da m ul her
e um bel o ci nt o de ouro para enfei t ar a ci nt a da m ou ra.”; “D e
repent e, l em brou -se de pôr o ci nt o no t ronco p ara ve r o ef ei to q u e
f ari a na m ul her.”; “E subi t am ent e d es at ou a ri r, um pouc o nervoso
m as di vert i do, i magi n an d o a cara dos m ouros q u an do vi sse m
apare ce r um a c arval ha em vez da fi l ha q ue esper avam .”;
LM 47 : “O ho rt el ão part i u d al i co m o p rop ósi to d e f i ni d o de
cum pri r os pre cei t os de desenc ant am ent o .”;
188
LM 50 : “[ ...] o gov e rnador, reconh ec end o que e m b r eve a vi l a cai ri a
nas m ãos dos cava l ei ros de D. P ai o [ ...] ”; “[ ...] os cri stãos que
m oravam fora d a m ural ha e que de cer t o m odo come mora vam já a
conqui st a que D. P a i o vi ri a a cons e gui r. ”; “P art i am na esper ança d e
e m b reve vol t are m com gent e sufi ci ent e para r et om a r Loul é ”;
“ Andar ei
mu i to te mp o
pel o ar?
– Já vai s sab ê -l o . ”; “[ ...]
i magi n ou que devi am ence rra r um a f ort una qual quer qu e o seu
hom em l he escond er i a.”; “[ ...] i nqui et o com a des gr aç a – m as qual?
– que ad i vin h ava e não podi a socorrer. ” ; “[ ...] esp eran d o cont udo a
p rometi d a p aga pel o servi ço que p rest a ra ao vel ho m ouro. ” ;
LM 53 (e LM 17 ): “O govern ador, p r e ven d o um at aque de ci si vo de
D. P ai o P eres, orde nara e p rep ara ra a f uga d as gent es e das ri quez as
por doi s cam i nhos [ ...] ”; “[ ...] o governador, t e men d o q u e el a
caí s s e nas m ãos dos perros i nfi éi s, resol veu enc ant á -l a p or mi l e u m
an os .”;
LM 3: “Depoi s dos duros com bat es feri dos em frent e do cast el o,
reconhe ceu [ o gove rnador do cast el o de Loul é] que a vi l a seri a
b reve men t e i nvadi da pel os sol dados de D. P ai o.”; “[ ...] e foram
t odos em barc ar em Quart ei r a pa ra Tâ nge r, n a d oce esp e ran ça de
que
vol t ari am
brevem ent e,
acom p a nhados
de
grand e s
forças
arm adas, a ret om a r o cast el o e a vi l a. ”;
LM 10 : “[ ...] comb i n an d o -se q u e o m ouro i nt erm edi ári o l he abri sse,
al t a noi t e, a port a, h oj e da S enhora do R epouso.”;
LM 21 : “[ ...] d ep ois d e r eceb e r as ri quez as nada m ai s t i nha que
faz er sen ão i r à i gr ej a e pedi r ao s eu p ri or que l he t orn ass e a un gi r
com os ól eos do bap t i sm o que eu l hos ar ranca ra com o bei j o.”; “[ ...]
n ão ti n h a recei o de com bat er o t ouro [ ...] .”; “  P ort ant o há ent re o
pego e a sua resi dênci a um a com uni cação ocul t a.[ ...] Verem o s
aman h ã i sso.”; “  Mas, p od e su ced er q u e não encont re m os essa
com uni caç ão [ ...] ”; “  Lanço à c i st er na um dos m eus podengos .
Q u ero ver se el e encont ra a t al c om uni cação subt er r ânea: se
mo rre r, p erd i u m cão .”; “Tu fi c as aq ui , m et es o cão na ci st erna e
189
faz um t i ro com a t ua espi nga rda, eu vou col ocar -m e l á em bai xo
j unt o do pego [ ...] ”.
E LAP / M 6: “ Iri a m i j ar em ci m a dos fi go s? ” – pensou el e.”;
E LAP / M 8 : “ -Que sort e! – pensou. Ia pesca r, sert am ent e, o m ai or
pei x e da sua vi da!” .
E LLO 1: “-Ol ha, j á t em os t ransport e! – di z um .” .
LM O 1: “O hom e m , em desespero, preparou -se par a a i dei a de
m orrer t am bém . ” ;
LM O 2: “Qu e seri a da m i nha vi da sem o t eu am or? ”; “E de m i m , que
s eri a de m i m sem t i? Quem m e rem e ndari a a roup a e q uem m e
cos eri a os p eú gos e m e fari a a com i da? ” ;
LM O 3: “t eve um a i dei a e, j ul gando - se m ui t o espert al hão, um a
s em ana aant es foi passea r p ara b em l onge da t er ra e m que se
encont ra ra com D. Mort e.”.
Out ras, ai nda, ap ar ecem com o sonhos premoni t óri os (ou, pel o
m enos, com essa i nt enção):
LM 38 , LM 48 e L M 13 : “S on h ava qu e era en gol i do e vom i t ado
pel o l eão, abr aç ado pel a serp ent e e b ei j ado pel a m our a.”;
LM 44 : “[ ...] i a pel a est rada qu e vai d ar ao sí t i o da R ocha, quando
em det e rm i nado l oc al , ao pé d e um a al farrob ei ra, vi u ent e rrado um
t acho chei o de our o, guard ado por um m ouro encant ado que dari a
t ão grand e t esouro a quem , ao pi no da m ei a -noi t e, al i fosse e
cons ent i sse que l he desse um bei j o.”.
Ant eci pações f ei t as pel o narrador, i st o é, m om ent os em que o
narrado r, om ni sci en t e, rev el a o conh eci m ent o de acont e ci m ent os que
ai nda não se d eram no present e do t ex t o:
190
LM 44 : “[ ...] o que acabou por l he ac a rret ar a el a o resu l t ado de
um a pequena vi n gan ça, co mo v er e mos .” ;
LM 46 : “[ ...] possi bi l i t ando a sua ut i l i z ação pl ena p el os m ouros da
re gi ão, que, l o gi c a m ent e, o usar am para os s eus enc ant am ent os,
co mo va mos ve r .”;
LM 54 : “P or i sso d e ci d i u [ Al á] , l ogo al i, aquel es doi s cast i gar.”;
P ara al ém dest es doi s t i pos de anacroni a, veri fi cam -s e el i pses ,
s um ári os e pau sas (que serão anal i sado s a seu t em po ), ani s ocroni as
que acont ec em co m al gum a fr equênc i a em t ex t os de t ransm i ssão
oral , dada a t endên ci a nat ural par a r et er o fundam ent al da hi st óri a,
dei x ando t am bém ao cont ador a l i berdade d e preen ch er al guns
vaz i os com a sua pr ópri a cri at i vi dad e.
Tem os, ai nda, i nform ações fo rneci d as t am bém por advérb i os e
l ocuções adv erbi ai s de t em po, conj uga ções peri f rást i cas, ge rún di os
e out ros el em ent os m orfossi nt áct i cos, dando cont a da duração, da
frequên ci a, da si m ul t anei dade e de out ra s rel açõ es de t em po ral i dade
ent re os vári os s e gm ent os narrat i vos:
a) du ração / con t i n u i dade : LM 33 : “so rri ndo sem pre ”; “Es pi ava o
m ovi m ent o apare nt e do S ol no horiz onte, i ndi cando a cam i nhada do
di a.”; LM 34 : “l en t am ent e t am bém , o gado desci a”; “[ ...] l evast e
t rês di as e t rês noi t es a fi o a ca var e a sem e ar.”; “Ol hou
dem oradam ent e o hom em ”; “Ant óni o ergui a -s e deva ga ri nho ”; “águ a
com abundânci a, qu e fi cou correndo at é form ar um a l ago a.” ; L M 35 :
“s ubi a num va gar a m ol eci do”; “A j ove m m oura fi cou uns m om ent os
s i l enci osa.”; LM 3 9 : “As nossas sen t i nel as t êm est ado sem pre
al ert a! ”; L M 40 : “M ant ém -se al i durant e cert o t em po”; “P or fi m , ao
cabo
de
l on ga
e
ár dua
ex pect at i va,
um a
e x pressão”;
“C aut el osam ent e [ ...] vão t ranspondo a port a ar rom bada.”; L M 41 :
191
“De m ansi nho, a j anel a abri u -s e.”; LM 42 : “Toda a sua vi da se
res um i a, desde a al ba at é à noi t i nha, nos cui dados c om o seu
rebanho”; “di a a di a, i a cont ando o t em po do j ej um ”; L M 43 :
“Durant e m ui t o t e m po a m ul her ocul t ou”; “Dur ant e l a r gos m eses
s obrevi veu a pob re ”; L M 49 : “P or al gum t em po nam orara m ”; L M
5 0: “E dur ant e m ui t as sem anas m an t eve -se sosse gado”; LM 6 :
“C onservava -se vol t ada p ara o Ori ent e horas esquec i d as”; LM 10 :
“Naquel a fai na t r a bal hou horas e ho ras sem i nt errup çã o, di a e
noi t e.”; LM 14 : “– P or t oda a vi da, resp ondeu a m our a”; L M 21 : “E
as s i m vi vo, se i st o é vi ver, há quase oi t o sécul os.”; L M 24 : “ durant e
t rês m eses, o t em p o que ca re ço par a che gar à m our am a [ ...] ”; LM
2 7: “Ocul t ou a m ul her, enqu ant o pôde ”; “al i se achav a e ncant ado,
havi a l ongos anos ”. E LAP / M 6 : “est ava um rapaz que t rabal hava no
cam po t om ando co nt a de um a seca de fi gos ”; “ol hava o céu
obs ervando as est r el as”; “ao fi m de m ui t o correr a t r ás do gat arr ão”;
E LAP / M 8 : “dei x ou -se por l á est ar a t é m ui t o t arde”; ELAP / M 9 :
“quando se en cont r ava com um grupo de out ros garot os a m i gos a
bri ncar n a arei a ”; “C am i nhavam l ado a l ado, m ui t o l en t am ent e”;
LLO 1: “l evando um a vi da em t udo norm al ”; E L LO 1: “se gui am doi s
pes cador es no v al e de Bu r gau a c am i nho de Bar ão de S . Mi guel ”;
LM O 1: “o pobre do hom em en ganav a -s e na cont a gem do di nhei ro”;
LM O 2 : “E assi m cont i nuaram , am bos i nvent ando descul pa s que os
i m pedi ssem de se d esl ocar em à port a. ”; LM O 3: “Enquan t o o t em po
pas s ava e o hom em m at ut ava em com o se h avi a d e l i vra r daquel a
s i t uação”.
b) fr equ ên ci a : L1 : “aprovei t ando sem p re os c am i nhos m ai s curt os”;
LM 35 : “ Às vez es. .. quando est ou t ri ste...”; “S ubi a t odas a s t ardes,
com o S ol a pi no, a serra de Monchi que ”; LM 36 : “J á t e di sse que t e
vej o sem pre que v ens aqui ao ri o.”; “E não fal h as nunca a t ua
canç ão predi l e ct a.”; L M 37 : “ P orque andas sem pr e pi n ga do!”; L M
4 0: “de v ez em qu ando vai m i r ar e r em i rar”; L M 41 : “ Todas a s
noi t es que o t em po perm i t i a, l á i am , c aval o e cav al ei ro”; L M 42 :
192
“P or vári os di as se repet i u a cena, sem pre à m esm a hora”; L M 43 :
“a m ul her não podi a di ri gi r -s e à nora que não l he apar ec esse um
m ouro”; “const ant e m ent e perse gui da ”; L M 44 : “por t r ê s noi t es
s egui das t eve as m esm as vi sões.”; L M 48 : “ A fr equê nci a dest e
s onho era t al que s e habi t uaram am bos ao ri t ual noct urno ”; L M 50 :
“Todos os dom i ngos o carpi nt ei ro se di r i gi a à font e.”; L M 5 3 : “cada
vez que por aí pas sa al guém pre ga -l h e um a part i da ”; L M 54 : “e
t odos os anos, pel a P ri m avera, Al á
m anda -l hes as fl ores de
am endoei ra ”; LM 6 1 : “Ti nha el l e por cost um e sai r t odas as m anhãs
para o seu cam po”; L M 14 : “H avi a u m suj ei t o que se em bri agava
m ui t as vez es”; LM 32 : “A vel ha B arba ças i a t odos os di as l evar o
j ant ar ao m ari do. ”; “P ara i sso devi a t ra z er-l he um a gal i nha t odos os
di as , poi s el a l he dari a t odos os di as 500 réi s par a a c om prar.”;
E LAP / M 6 : “ com o cost um am ser no cé u al garvi o”; E LAP / M 7: “um
cruz am ent o, norm al m ent e l ocal i ndi cad o para brux edos”; E LAP / M
8: “nos di as em que o m ar não e st ava c ap az de pe scar em
em barc ação, gost av a de i r pes car par a a Toc a do R ab o”; E LAP / M 9:
“nunca m ai s se at r e veram a and ar por l á depoi s do ent arde cer”; L LO
1: “t odas as sex t as -fei ras, ent r e as onz e horas e a m ei a -noi t e,
quando a m ãe i a ao seu quart o, encont r ava sem pre v az i a a cam a d o
Bern ardi no e só vol t ava a v ê -l o na cam a por al t as horas d a noi t e.”;
“l evando um a vi da em t udo norm al ”; E LM O 1: “fa rt o de apanhar
gr avet os p ara a l ar ei ra”; “ – Est ou fa rt o dest a vi d a que e u l evo!” ;
LM O 2 : “quando fal avam sobre um a poss í vel m ort e próx i m a,
di s cut i am qual del es l evari a pri m ei ro D. Mort e.” .
c ) s i m ul t an ei dade : LM 33 : “Di o go suspi rava. Andav a de um l ado
para o out ro. Espi a va o m ovi m ent o ap arent e do S ol no h ori z ont e,
i ndi cando a c am i nhada do di a. N ão fal ava. Não com i a. P areci a
doent e.”; L M 34 : “Ent ão J oana, s ai ndo por d et rás do r ochedo e
em punhando a c ruz , gri t ou”; L M 35 : “ Meu pai t i nha um p al áci o l á
em bai x o... Faz í am o s fest as t ão l i ndas! Vi nham t rovador es cant ar...
e eu... t am bém t oca va l i ra...”; L M 38 : “P re gou -l he o co rpo , a voz e
193
o pensam ent o.”; L M 40 : “dom i nando -se e t ent ando do m i nar a
em oção
d as
fi l ha s”;
“B enz endo -se
e
r ez ando,
o
c arpi nt ei ro
com preend e t udo”; “el a cons e gue a garr ar -se ao gar gal o da font e, e
m os t rar a sua bel ez a, e chora r a sua dor”; L M 43 : “El a f ugi a a o
i nqui et ant e convi t e, m as o m ouro vá de se gui -l a at é c asa”; L M
4 9: ”no m om ent o em que o ent re abri a p a ra que o caval ei ro s aí sse, os
bat ent es fo ram i m p el i dos de fo ra com fúri a ”; L M 50 : “ A o m esm o
t em po que t i rav a d e um a cai x a t rês p ães, o m ouro i a re vel ando”;
“Enquant o i st o se p assava em T ân ger, o ca rpi nt ei ro at rave ssava os
m ares com o um a á gui a e pousav a às port as de Loul é”; L M 54 :
“nes t e gest o, vi u -se t ransform a r em fon t e e o s eu t rov ador m udar -se
em l ago. ”; LM 58 : “o l avrador p roí bi u que al gu em t rat asse da vaca ,
em quant o am am ent a sse os bez erri nhos.”; L M 6 : “e enqu an t o t odos
s aí am dal i [ ...] a fi l ha do gov ernado r f a z i a oração no m ai s a l t o m uro
do cast el o.”; LM 10 : “encant ou -nos aqui no m om ent o em que
t ranspunhas a port a ”; E LAP / M 6: “ol hava o céu obse r vando as
es t rel as”; E LAP / M 7 : “Ent ret ant o, m i nha avó ouvi u um a voz que l he
di z i a”; E LAP / M 8: “Ao m esm o t em po, ouvi u um a sonora gar gal had a
por det rás d e si .”; “ sent i u m esm o que a m ão esquerd a de al guém s e
apoi ava no seu om br o di rei t o enquant o sent i a a can a ser pux ada p ar a
a á gu a e ouvi a a t a l sonora gar gal h ada .”; “A rrepi ado, sent i u -se ao
m em so t em po com m edo e ví t i m a da goz ação de al guém ”; E LLO 1 :
“ol hando para el es com ar de desafi o, raspando o chão co m a pat a
di ant ei ra e t odo aos pi not es.”; LM O 2: “bat endo à port a, di z ”; LM O
3: “Enquant o o t e m po passava e o h om em m at ut ava em com o se
hav i a de l i vra r daqu el a si t uação ”.
d) progr essão : LM 33 : “P or fi m , à t ard e dessa sex t a-fei ra, o cansaço
parec eu dom i ná -l o. ”; LM 34 : “e l ogo em segui da fum o e fogo
precedi am a m ul her”; L M 37 : “J ul i ão e Ani nhas casara m pouco
depoi s.”; LM 38 : “P assaram uns m i nutos. Dal i a pouco aparec er am
as pri m ei ras l um i nosi dades”; L M 41 : “i nst ant es depoi s , com o se
t i ves se acord ado de um sonho”; L M 58 : “Um ano depoi s o l avrador
194
j ungi u os b ez erri nh os ao arado ”; L M 1 2 : “Na próx i m a vés pera de S .
J oão, o hort el ão e sua m ul her”; L M 1 3 : “Em breve, poré m , sai u
des t e pasm o quand o vi u a corr ent ados ”; “P assados al gun s anos,
com eçou J osé C oi m bra”; L M 21 : “Doi s ou t rês di as d epoi s c om bi nou
com el e”; L M 24 : “di a a di a i a cont a ndo o seu j ej um ”; L M 31 :
“P as sado t em po foi à Moi ram a v er a f am í l i a da m ul her.”; E LAP / M
6: “Ao fi m de m ui t o corr er at rás do gat arrão, m at ou -o ”; E LA P / M 7 :
“Ent ão não é que, ao t ercei ro cr edo e m cruz , o o di abo da burra
com eça a andar t oda l i gei ra? ” ; E LAP / M 8: “Mas, and ado s al guns
m et ros, ouvi u de no vo um a sonora ga r gal hada”; E LAP / M 9 : “J á ao
l onge, ol har am para t rás e vi ram -nos desapar ec er”; LLO 1 : “a um a
cert a di st ânci a, de i x ou de vê -l o e, em seu l u ga r, sur gi u -l he a
i m agem de um burro ”; E LLO 1: “Depoi s , parou e pôs -se a ol har para
el es ”; “ Depoi s de t ent arem em vão m ont ar o ani m al , ac ab aram po r
des i s t i r”; “J á t i nham passado um sí t i o [ …] , quando ouvem z urrar.”;
LM O 1 : “qui nz e di a s depoi s, foi -se o m i údo e, 15 di as depo i s, l á se
foi a pobre da m ãe. [ …] P assados 15 di as [ …] ”; LM O 2: “ E assi m
cont i nuaram , am bos i nvent ando descul p as” .
e ) progressi vi dade : LM 33 : “C ad a vez m ai s surpreendi da ”; L M 34 :
“com eç ara m a ch am ar a esse l ocal Al a gôs e m ai s t arde A l goz .”; ”;
LM 38 : “passou a t er pesadel os vi o l ent os”; “E aos poucos, os
pes adel os
for am
di m i nui ndo
e
aca baram
por
des ap arec er. ”;
“com eçou a arrui n a r -se, a em pobr ec er e fi cou na m i séri a. ” ; L M 39 :
“ Lá fora, a voz ea ri a aum ent ava a cada m om ent o. E a cada m om ent o
t am bém , m ai s port ugues es ent ravam no cast el o”; L M 40 : “P orém ,
com o passar dos di as, a m ul her do car pi nt ei ro com eça a d esconfi a r
de qual quer coi sa. ”; L M 48 : “O seu ne góci o foi dec ai ndo e a fom e
com eçou a bat er -l he à port a do est ôm ago. ”; “à m edi da que i a
acal ent ando
est a
i dei a,
ia
dei x ando
de
ver,
at é
que
fi cou
com pl et am ent e c e go .”; L M 50 : “ a árvo re desat av a a subi r, a subi r
at é desap are ce r no ar.”; L M 51 : “um a m el opei a t ri st e e m í st i ca que
s e foi el ev ando at é t om ar propor ções an gust i osí ssi m as.”; L M 13 : “À
195
m edi da que J osé C oi m bra acari ci ava a i dei a de vender as b arras, i a
s ent i ndo ofuscar -s e- l he a vi st a, com eça ndo por sent i r apen as um as
névoas nos ol hos, e a brev e t recho est av a com pl et am ent e ce go.”; L M
3 2: “A vel ha pri nci pi ou a com prar gal i nhas e a l evar -l has at é que o
povo desconfi ado c om eçou a m urm ur a r ”; E LAP / M 7: “c om eça a
rez ar os t rês cr ed os em cruz ”; E LA P / M 9: “os mi údos fi caram
boqui abert os e, ch ei os de m edo, d es at aram a co rre r pe l a prai a
fora. ”.
f ) s u c ess ão : LM 34 : “E, faz endo -os s ai r da cam a, em brul ho u -os num
m ant o e foi escondê -l os”; LM 38 : “Dep oi s dos pesadel os vieram os
m aus negóci os. ”; L M 39 : “C om a m ão di rei t a t raçou no espaço [ ...] .
Depoi s di sse um as pal avras m i st eri osa s – e t udo se cons um ou no
m es m o i nst ant e...”; LM 40 : “preci pi t a - se para l á, abr aç a e bei j a a
m ul her e os fi l hos [ ...] . Depoi s corre a escond er os t rês pães [ ...] .
Torna a d esce r pa ra abraç ar ”; L M 41 : “o j ovem desm ont ava sob um a
j anel a fl ori da, em punhava um al aúd e e c ant ava t rovas d e am or”; LM
4 8: “P ri m ei ro avi st arás a casa do p adre J osé Di as, d epoi s os
canári os que el e t em na gai ol a e, por fi m , verás as casas d a
p o v o ação e os c am pos em vol t a.”; LM 59 : “a vacc a despr endeu -se
da m angedoura, sai u, e vol t ou horas depoi s m ui t o fart a.”; L M 60 :
“O r apaz vi u ent ão um porco a dan çar, na sua p resen ça, ao som da
gui t ar ra; e l o go a s egui r, vi u um t ouro , faz endo o m esm o, e m ai s
l ogo um a serpent e que se poz t am bem a dançar.”; L M 26 : “De
m anhã m ui t o c edo r eal i z ou a com pr a d e um a c el ha; foi ao m ar [ ...]
encheu - a de á gua s al gada, e espe rou q ue anoi t ec esse es co ndi do em
um a furna. À noi t i nha conse gui u apanh ar uns pei x es [ ...] m et eu -os
na cel ha e vol t ou para o fo rno, quan do veri fi cou que p odi a faz e r
es t e passei o sem test em unhas [ ...] Apanhou os pei x es da cel ha ,
preparou -os, coz eu - os e devorou -os ”; LM 31 : “dei x ou o rapaz i r o
m oi ro, che gou ao pé da cova, di sse as pal avras, d esenc ant ou -a e
cas ou com el a.”; E LAP / M 6: “m at ou -o com um a val ent e paul ada no
t out i ço, aga rrou nel e e foi at i rá -l o de u m a fal ési a ab ai x o.” ; E LAP / M
196
8: Enrol ou o fi o na cana, pe gou no bal d e chei o de pei x e e di spôs -se
a faz er cam i nho di r ei t o a cas a.”; LLO 1: “dei x ou de vê -l o e, em seu
l u gar, sur gi u -l he a i m agem d e um bu rr o que des apar ec eu em l ouca
corre ri a. ”; E LM O 1 : “pousou no chão o j á pesado fei x e de l enha,
l i m pou o suor do rost o e desaba fou”; LM O 1: “C ont ou o m i údo t udo
o que se passou à mãe, m as el a não acr edi t ou. No ent ant o, cont ou o
que o fi l hot e l he co nt ara ao m ari do, qu e at é s e ri u. ”; LM O 2: “Ent ão
a M ort e, i rri t ad a, i nvest i u pel o post i go e, p e gando os d oi s pel a
i l harga, l evou os do i s vel hos consi go.” .
g) r ei t eração : LM 3 3 : “e que res i r j á t r abal har out r a vez ? ”; L M 34 :
“Aqui est ou de novo!”; “Ouvi u -se o m esm o est am pi do”; “e era
cont ada e r econt ad a em vol t a da l arei r a .”; L M 35 : “vol t ou a ol har a
l i nda m oura.”; LM 3 6 : “Fez -se, ent ão, novo si l ênci o ent re a s duas.”;
LM 37 : “J ul i ão t orna a t ropeç ar.”; L M 38 : “Um a vez . Duas vez es.
Três v ez es.”; L M 4 0 : “rep et e o pai , c om o um eco. ”; “d e vez em
quando vai m i rar e rem i rar ”; “Do m esm o m odo, out ra f i gura di áfana
s e er gue da font e, a scende no ar e som e -se no hori z ont e.”; L M 42 :
“não sem vol t ar re pet i das vez es a cabeça ”; L M 53 : “E, cont udo,
Di norah chor ava. [ ...] E Di norah cho rava [ ...] Di norah chorava
afi nal [ ...] e cho r ava -se ”; LM 58 : “R epet i u -se êst e c aso, e o
gua rdador pr eveni u o pat r ão.”; L M 13 : “ser t rês v ez es en gol i do e
t rês vez es vom i t ad o pel o m eu i rm ão : t rês vez es se rás depoi s
abraç ado por m i nha i rm ã”; L M 24 : “R epet i u -se a m esm a cena nos
di as segui nt es e à m esm a hora”; L M 25 : “sonhou el a novam e nt e com
o t es ouro, e i st o por t rês noi t es segui d as .”; L M 26 : “o m our o t ornou
a apare ce r ”; E LAP / M 6 : “m as o di abo do ani m al andava à roda do
al m anx ar
sem
i nt enção
de
sai r.”;
E LAP / M
8:
“A
verdade,
verdadi nha – di z i a el e, é que i st o se passou um as duas ou t rê s
vez es”; “ouvi u d e n ovo um a sonor a gar gal h ada”; LLO 1: “ t odas as
s ex t as -fei ras, ent re as onz e horas e a m ei a -noi t e”; D epoi s de
t ent arem em v ão m ont ar o ani m al , a caba ram por desi st i r”; E LM O 1 :
“fart o de ap anhar grav et os para a l arei ra ”; LM O 2: “E assi m
197
con t i nuaram , am bos i nvent ando descul p as que os i m pedi sse m de se
des l ocar em à port a ” .
h) i n st an t an ei dade : LM 33 : “em pi no u -se subi t am ent e”; LM 34 :
“Abri ndo num rep e l ão a port a de cas a”; “M al J oana ac abara de
pronunci ar est as pa l avras”; L M 35 : “D e súbi t o, est ac ou”; LM 38 :
“P or um i nst ant e, o al m ocrev e ai nda pensou”; “D e um p ul o, el e
er gueu -s e, gri t ando ”; LM 39 : “e t udo se consum ou no m esm o
i ns t ant e...”; LM 40 : “vol t ar à sua t err a, num i nst ant e, sem quase dar
por i sso.”; L M 44 : “ bei j ar o sapo era ap enas um i nst an t e e pront o.”;
“ Im edi at am ent e, m a l se t oca ram , s al t ou -l he um ol ho d a órb i t a”; L M
4 6: “assi m que asse nt ou os pés no fund o, apar ec eu -l he um a enorm e
s erpent e ”; LM 48 : “quando, de súbi t o, os seus ol hos deram num
cant o do sal ão”; “D e repent e, ouvi u um a voz ”; ELAP / M 6: “quando,
de repent e, vi u ent r ar no al m anx ar um gat o pr et o.”; E LAP / M 7: “ei s
que a m a gana d a bu rri nha est a ca”; E LLO 1: “quando, a ce r t a al t ura,
l hes apar ec eu um enorm e bur ro”; LM O 1: “um di a, D. Mort e
apare ceu a um garo t o”; LM O 2: “Ent ã o a Mort e, i r ri t ada, i nvest i u
pel o post i go”; LM O 3 : “um hom em de Espi che encont rou D. Mort e”.
i ) l ocal i zação (das proposi ções e s eq uênci as narrat i vas ) : LM 33 :
“P or fi m , à t ard e d essa sex t a -fei r a, o c ansaço p are ceu dom i ná -l o.”;
“M as quando a p ri m ei ra b adal ad a da m e i a -n oi t e cort ou o si l ênci o, o
hom em acordou ”; L M 34 : “Ont em à noi t e se gui -t e ”; LM 35 : “ Meu
pai , ant es de ch e ga rem os t eus hom en s, t roux e -m e para aqui e...
encant ou -m e !”; LM 36 : “À hor a da s es t a a m ã e vol t ou a i nt erro gá l a.”; “Mas t odos os m eses, nesse di a e a essa m esm a hor a [ ...] pode
ai nda ouvi r um c av al o corr endo”; L M 37 : “J á m anhã al t a, J ul i ão
che ga a cas a.”; L M 40 : “num a t arde de dom i ngo, quando o
carpi nt ei ro saí ra pa ra rond ar a font e”; L M 41 : “ No di a s egui nt e,
Al i na per gunt ou a o pai ”;
L M 42 :
“P el a noi t e t raz i a o l ei t e
m ungi do”; LM 46 : “Num a noi t e de P ri m avera, depoi s da t om ada de
198
Faro, pass ava um cr i st ão” ; “E quando a águ a do fundo era t ão pouca
que nem dava j á par a enche r um bal de, desceu”; L M 48 : “A o che ga r
a casa, escond eu a s barras d e ouro”; “Am anhã, ant es d e o sol
nas cer, s ent a -t e ”; L M 49 : “À hora m a rc ada, o c aval ei ro p en et rou no
cas t el o”; L M 50 : “ Duas noi t es ant es da ent rad a dos cri s t ãos em
Loul é,
o
gove rna dor”;
“Quando
a
noi t e
che gava
e
cobri a
m ansam ent e a t err a, o hom em vol t ava a casa ”; L M 51 : “O al cai de,
as s i m
que
l he
fo i
dada
a
nov a
de
que
os
cafi r es
[ ...]
se
aprox i m avam , convocou o consel ho”; L M 53 : “no m om ent o da fuga
enfrent ou esp ant ad o a recusa de Fát i m a”; L M 3 : “Na p enúl t i m a
noi t e, quando t odos descansav am , abri u um a das port as”; L M 14 :
“Quan do a m i nha r aça foi ex pul sa da proví nci a, vi u -se m eu pai
forçado
a
sai r”;
LM
16 :
“E
na
noi t e
desse
di a
dei t ou -se
des cansado ”; LM 2 6 : “ant es do rom per da m anhã t i nha o pl ano
form ado”; L M 31 : “à ret i rad a deram -l he um a broa”; “a o che ga r
pert o de c asa, sent ou -se à som br a de um a carv al ha ”; E LAP / M 6 :
“era j á de noi t e”; “De m anh ã, aco rdo u com o sol a bat er -l he no
ros t o”; E LAP / M 7: “t i nha -se desl o cado à ci dad e de La gos [ …] De
re gresso ”; E LAP / M 8: “quando j á an oi t eci a”; E LAP / M 9: “um a
t ardi nha (er a j á ao anoi t ecer )” ; LLO 1: “Um a noi t e de sex ta -fei r a”;
LM O 3: “C e rt o di a , por vol t a do m ei o -di a”; “– Daqui a um m ês,
t enho um encont ro m arcado cont i go, a est a hora ”; “no di a m arcado ” .
1.4.4. O TEMPO PSICOLÓGICO
O m odo com o o p a ssar do t em po é se nt i do e vi vi do por cada
pers on a gem em di f erent es si t ua ções é , sem dúvi da, dos aspect os
m ai s verosí m ei s dest as hi s t óri as popul ares.
O processo do mi nut o que parece um sécul o e do sécul o que
pas s a num mi nut o , c om um núm ero i nfi n i t o de vari ant es pos sí vei s, é
um dos que m ai s cont ri buem pa r a a cara ct eri z aç ão dos est ados
em oci onai s das p ers onagens e, consequ ent em ent e, p ara au m ent ar ou
199
at enuar um a cert a densi dade d ram át i c a. É, por e st e m ot i vo, m ai s
frequent e nas l endas de mouras encant a das .
LM 33 : “ Di ogo susp i rava. And ava de u m l ado para o o ut ro . Espi ava
o m ovi m ent o apare nt e do S ol no hori z ont e, i ndi cando a c am i nhada
do di a. N ão fal ava. Não com i a. P a reci a doent e. P or fi m , à t a rd e
des s a sex t a -fei r a, o cansaço p ar eceu do m i ná -l o.” – Não há aqui um a
refe rênci a di re ct a a quant o t empo l he pa receu d urar esse di a , m as a
enum era ção d as fo rm as verb ai s no pr et éri t o i m perf ei t o do m odo
i ndi cat i vo, as sensações vi suai s e de m ovi m ent o e a l ocução
adverbi al “po r fi m ” t ransm i t em a an gúst i a vi vi da pel a pe rsonagem e
a
form a
com o
o
t em po
cust ou
a
passar ;
“ S ó
d or m i
um
bocadi nho...” / “M as o cert o é que n esse bocadi nho a co nt ecer am
m ui t as coi sas.”  Esse “boc adi nho” foi desde que Di o go ad orm eceu,
“à t arde ”, at é à “ pri m ei ra badal ada da m ei a -noi t e” ! O própri o
narrado r di z que a m ul her de Di ogo “o rou por l argo t em po ”, “t ant o
quant o Di ogo est eve dorm i ndo”;
LM 37 : “Qu em t ent a escut ar o si l ên ci o, conse gue ouvi r m i l ruí dos
es t ranhos. Assi m ac ont ece a J ul i ão. Ouve cam pai nh as ao l on ge. Um a
es péci e de z um bi do acer ca -se del e, de v ez em quando. Mas nada l he
parec e a m our a do m oi nho! [ ...] J á ti nham soado as doz e badal adas
havi a m ei a hora. ” – A enum er aç ão de sensa ções audi t i vas e a
l ocução
adv erbi al
“de
vez
em
qu ando”
su ger em
uma
esper a
dem orada, m as J ul i ão só esperou m e i a hora, poi s “m et era p o r
atalhos para chegar a horas ao síti o do Moinho do Sobrado”, à
meia-noite;
LM 38 : “Houve u m si l ênci o. S i l êncio pesado, enerv ant e, cruel .
S i l ênci o de ex pect at i va e de an gúst i a.” – C om o no pri m ei ro
ex em pl o, a vi vênc i a t em poral
n ão
é re feri d a di re ct a m ent e, é
s uge ri da, nest e c aso , pel a repet i ç ã o e pe l a adj ect i vaç ão (enu m eraç ão
de adj ect i vos e d e s ubst ant i vos com função adj e ct i val );
LM 40 : “Mant ém -s e al i durant e ce rt o t em po, t ent ando rom per a
200
es curi dão com a i n si st ênci a do seu ol har. Todos os seus sent i dos
es t ão em guard a, re gi st ando qual que r p or m enor, por i nsi gn i fi cant e
que pareç a. P or fi m , ao cabo de l onga e árdua ex pect at i va [ ...] ” –
Não sab em os quan t o t em po é o “ce r t o t em po”, m as as form as
verbai s no gerúndi o e as l ocuçõ es adv e rbi ai s “por fi m ” e “ ao cabo
de”,
associ ad as
à
dupl a
adj ect i vaç ão
de
“ex pect at i va”,
são
revel ado ras da di fe rença ent re o t em po fí si co e o psi cológi co; “ O
choque é brut al . A l ut a, san gr ent a. D ura hor as? Dura di as? Dura
s em anas? ...”
–
E st as
i nt erro ga ções
ret óri c as
(cuj a
respost a,
i m pl í ci t a, só poderá ser N em el es sabe m! ) t ent am dar -nos cont a d e
com o as pe rsona ge ns envol vi das no c om bat e perd eram a noção d a
pas s a gem do t em po e c ri am um a i nt e mporal i dade que r e sul t a no
conheci m ent o da s ua vi vênci a i nt eri o r; “Há um a p ausa. O vel ho
gove rnador pro cura ndo ac al m ar as bat i das do cora ç ão ex ci t ado. O
hom em de Loul é a pergunt ar a si própri o qual será o fi m de t ão
es t ranha conv ersa... ” – Não sabem os qual a duração d a “pau sa”, m as
em bora se di ga, em segui da, que “ a sua curi osi dade não t ard a em ser
s at i s fei t a”, est a t en t at i va de i socroni a, d ebruç ando -se sobre c ada
um a das p ersona ge ns, aum ent a a d ensi dade dr am át i ca da si t uação,
faz endo
supor
que,
i nt eri orm ent e,
cada
um a
del as
a
vi veu
i nt ensam ent e, e cri a ndo no própri o l ei t or a ex pect at i va do m om ent o
s egui nt e; “Esper a c om i m paci ênci a a m ei a -noi t e.” – O us o de duas
pal avras, a pr eposi ç ão e o subst ant i vo, que cara ct eri z am a “esper a”,
t orna-se m ai s ex pre ssi vo do que o de um a só, fosse o ad vérbi o de
m odo ou o adj ect i vo correspond ent es ; “Fez -se si l ênci o. S i l ênci o
pes ado, an gust i oso. ” – Tal com o em L6 , s ão a repet i ção e a
adj ect i vaç ão
que
confe rem
dr a m at i ci dade
ao
m om ent o,
des conhec endo -s e a sua duraç ão f í si ca ;
LM 41 : “As h oras p areci a m -l h e d i as .” – A pal avra “hor as” , por ser
a uni dade de t em po m ai s l onga dent ro de “um di a”, su ger e sem pre
gr ande quant i dad e d e t em po (desde que i nferi or ao di a ou à noi t e);
nes t e ex em pl o, a co m paraç ão é evi d ent e ;
LM 43 : “Dur ant e l a rgos mes es sobrevi veu a pobr e à cust a de cal dos
201
e l ei t e, num sofri m ent o at roz .” – É o adj e ct i vo “l a r gos” que,
cara ct eri z ando o t e m po fí si co, no s dá a di m ensão, i ndefi ni da, do
t em po psi col ógi co; est a ex pressão “l a r gos m eses” opõe -s e a out r a,
“al gu m te mp o ”, du rant e o qu al “m ari do e fi l hos chor ar a m a sua
m ort e”, cri ando -se um cont rast e ent re a vi vênci a do pri m ei ro
perí odo e a do s e gu ndo, “t ant o m ai s que est avam ri cos e f e l i z es”;
LM 46 : “Tr abal hou naquel a fai na d i a e n oi te , h oras i n f i nd as , sem
p arar.” – O es forço da pe rsona gem e a consequent e di fi cul dade em
pas s ar o t em po r esu l t am , nest a f rase, d e um a com bi nação de vári os
processos: “di a e n oi t e” si gn i fi c a j á, corrent em ent e, “s e m parar”,
pel o que o uso des t a úl t i m a ex pressão no fi nal da fr ase se t orna
redundant e; o subst ant i vo “horas”, ut i l i z ado com a m esm a i nt enção
(t am bém co rrent e ) d e L9, associ ado ao adj ect i vo “i nfi nd as” que, só
por si , bast ava para dar a di m ensão (ou a fal t a de di m ensão) das
horas, resul t a num paradox o que pret e nde cri ar um a am bi gui dad e:
por um l ado, eram horas sem f i m , porque cust av am a pa ssar; por
out ro, f oram horas sem f i m, porque, som adas, perfi z era m vári os
di as ;
LM 49 : “À hora m a rcada, o c aval ei ro p enet rou no cast el o, onde se
ent ret eve por l a r go s m i nut os conversa ndo com a su a am ada.” –
Aqui , é o pa radox o “l ar gos m i nut os” que, associ ado às form as
verbai s “ent r et eve ” , no pret éri t o per fei t o, e “conve rsa ndo”, no
ge rúndi o,
m ost ra
co m o
o
caval ei ro
se
esqueceu
do
t empo ,
dem orando -s e m ai s do que o previ st o e do que el e própri o pensava
(uns “m i nut os”); os seus am i gos, por o ut ro l ado ( cont rari a m ent e à
s ua descont rac ção
e espe rando
ans i osament e
por el e ), “num a
gri t a ri a de est ont ear cham ava m p el o gue rrei ro qu e j á não es peravam
vol t ar a ver ” – “vi st o a dem ora d el e t er si do m ui t o grande ”;
LM 50 : “sent ou -se encost ado ao m uro, esperando a m e i a -noi t e,
s i l enci oso e sol i t ári o. [ ...] o vel ho m ouro, a essa hor a t ã o ansi oso
com o el e, c ert am ent e.” – S ó i ndi rect am ent e há ref erên ci a a o t em po
ps i col ógi co, at rav é s da ansi edad e qu e, c ara ct eri z ando “o vel ho
m ouro”, t am bém i ndi rect am ent e car act e r i z a o carpi nt ei ro;
202
LM 14 : “ e eu fi quei sóz i nha, esper ando a cad a m om ent o a vi nda de
m eu pai para m e l evar consi go. ” – A form a verbal no ge r úndi o e a
l ocução adve rbi al “a cada m om ent o” , no cont ex t o si t uaci onal ,
denot am a ansi eda de da p ersona gem e, por conse gui n t e,
uma
dur ação psi col ógi ca da esper a;
LM 26 : “Não se sa be o t em po que o t rabal hador l evou ent ret i do na
ri quez a dos baús, n em el e m esm o t al ve z o soubesse di z er, o que é
cert o e const a d a t r adi ção é qu e, qu and o el e qui s a gr ade cer à j ovem
t ão val i osa oferend a, t i nha el a desapa reci do.” – Mai s um a vez , a
f al t a de noção do tem po fí si co, por pa rt e da person a gem , a rem e t e r
para um t em po psi col ógi co que, nest a l enda, é am bí guo, po dendo ser
s uge ri das, na duraç ão do perí odo de t em po que o t rabal hador ol hou
para os baús, t ant o a rapi dez com que a m oura desap are ceu, com o a
l ent i dão com que el e vol t ou a ol har pa r a el a;
LM 27 : “S ofreu a i nfel i z por l argos m eses, sem anas e di as [...] ” – À
s em el hança de L11 , é o adj ect i vo “l a rgos ” que, ca ract er i z ando o
t em po fí si co, i nt en si fi cado, aqui , p el a enum er ação, t ent a confe ri r
um a di m ensão ao t e m po psi col ógi co;
E LAP / M 8 : “C ert a vez , ent ret i do, dei x ou -se por l á est ar a t é m ui t o
t arde, t al v ez por a pesca l he est ar a ser bast ant e f avorá vel .” – o
part i cí pi o passado “ent ret i do”, com fu nção adj e ct i val , re m et e par a
um a act i vi dade a gr adável , que f az o suj ei t o perder a n oção do
t em po, o que é confi rm ado em se gui da.
1.4.5. TEMPO DA HISTÓRIA / TEMPO DO
DISCURSO
A duraç ão do dese nrol ar das l end as de mouras encant ad as é
s em pre, pel o m enos, de al gum as horas ( a úni ca ex cepç ão é L31 , qu e
s erá ex pl i cada se gui dam ent e ). Ex i st em , cont udo, anal epses que
rem ont am a “q u ase oi t o sécul os” ( L46). A sua i ncl usão nos di ál ogos
ent re as pe rsona gen s t em um a i nt enç ão dupl a: rel at a r epi só di os que
203
ocorre ram
durant e
esse
perí odo
de
t em po
ou,
si m pl esm ent e,
l ocal i z á -l os, e, nat u ral m ent e, da r um a i dei a da du raç ão do cat i vei ro,
es t abel ec endo, assi m , um a r el aç ão ent r e o t em po e o sof ri m ent o da
pers ona gem .
Tem os, ent ão, nest e corpus , quat ro grup os de l endas, de aco rdo
com a dura ção da su a hi st óri a:
1) as
que
se
ocupam
dos
encontros
entre
encantados
e
eventuais desencantadores e das decorrentes tentativas de
desencantamento (LM 33, LM 34, LM 36, LM 38, LM 42,
LM 43, LM 44, LM 48, LM 52, LM 59, LM 60, LM 61, LM
58, LM 7, LM 8, LM 13, LM 24, LM 25, LM 27 e LM 32);
2) os relatos cuja acção tem início aquando desse encontro,
mas em cujos diálogos há recuos a um tempo mais ou menos
distante (LM 35, LM 37, LM 14 e LM 21);
3) as narrativas que englobam o momento do encantamento e o
do eventual desencantamento, assim como o que decorre
entre os dois (LM 40, LM 45, LM 46, LM 47, LM 50, LM 3,
LM 11, LM 12, LM 26, LM 28 e LM 31);
4) finalmente, as que se resumem aos encantamentos e às
circunstâncias em que ocorreram (LM 39, LM 41, LM 49,
LM 51, LM 53, LM 54, LM 6, LM 10, LM 16 e LM 17).
Em t odas est as l en das, t ant o no r econ t o oral com o na ed i ção
es cri t a é óbv i a a di feren ça ent r e a duração d a hi st óri a e a do
di s curso, porque m e sm o as m ai s curt as, com o j á foi re feri d o, duram
al gum as ho ras ( ex cept o L M 60 ).
A hi st óri a da l enda “O P ego da C arri ç a” ( L M 60 ), t al vez nem
um a hora t enha du r ado (pr edom i nam os di ál ogos n a n arr aç ão, com o
é c ara ct erí st i co d a t radi ção or al , e os poucos acont eci m ent os
des enrol am -s e l i nea rm ent e), m as há um m om ent o, cuj a du r ação não
é revel ad a com preci são, em que o rapaz t oca gui t ar ra e os
encant ados danç am , que não t em equi val ent e no t em po d o t ex t o,
204
pel o que a sua r epr odução (o ral ou esc ri t a) se rá s em pre de duraç ão
i nferi or à d a hi st óri a.
E são as el i pses e, por v ez es, os s um ári os (que não são
reproduz i dos na í nt egr a, dad a a su a ex t ensão, apresen t ando -se
apenas al guns ex em pl os si gni fi cat i vos), que des em penham um papel
fundam ent al , cont ri bui ndo para encu rt a r sécul os, m eses ou “apen as ”
noi t es i nt ei ras:
LM
33 :
“O rou
po r
l ar go
t em po.
T ant o
quant o
Di ogo
est eve
dorm i ndo.” (sum ári o);
LM 34: “ And ar am a ssi m durant e t al vez hora e m ei a. ” (sum á ri o);
LM 35 : “S ubi a t o das as t ardes, com o S ol a pi no, a serra d e
M onchi que e só vol t ava à noi t e p ara cas a.” (el i pse );
LM 36 : “E J oana r es ol veu -se. C ont ou t udo quant o sabi a.” (s um ári o);
LM 37 : “[ ...] Fl ori pes cor reu p ara o m oi nho, não t ornan do m ai s a
apare ce r naquel a no i t e.” (sum ári o); “J á m anhã al t a, J ul i ão che ga a
cas a.” (el i pse);
LM 40 : “Dur ant e ho ras el e fi c a soz i nho, at é que o t em po at ravessa a
front ei ra d a noi t e e ent ra nos m i st éri os do di a...” (sum ári o);
LM 42 : “T rês m eses cont ados, m ost rou” (el i pse);
LM 43 : “Ao fi m d e al gum t em po de duros sacri fí ci os d e t oda a
fam í l i a” (sum ári o);
LM 44 : “P assados t e m pos vol t ou a sonhar” (el i pse );
LM 45 : “ Tem pos de poi s casou com a ra pari ga e for am vi ve ndo a sua
vi da sem probl em as de m ai or.” ( el i pse s egui d a de r esum o);
LM 48 : “P assar am anos e J osé C oi m bra com eçou a r es sent i r -se”
(el i pse);
LM 50 – “P ass aram - se m ui t as sem anas, poi s que o t em po de S . J oão
ai nda est av a l on ge. ” (el i pse ); “P assad os al guns m eses, e st ava j á
es queci do do assunt o” (el i pse ); “E dura nt e m ui t as sem an as m ant ev e205
s e s osse gado, esper ando cont udo a pro m et i da pa ga pel o se rvi ço qu e
pres t ara ao vel ho m ouro” (sum ári o );
LM 58 : “T em pos depoi s pari u os doi s bez erri nhos”; (el i p se); “Um
ano depoi s o l avrad or j ungi u os bez er ri nhos ao arado ” ( el i pse);
LM 3 : “Enqu ant o, poi s, o govern ador não conse gui a os esforços
des ej ados, passe ava , t ri st e e pensat i vo, pel as prai as de Tânger. ”
(s um ári o); “C he gou afi nal a vésp era d a noi t e de S . J oão” (el i pse);
LM 10 : “C ai u no chão sem sent i dos. P assadas horas t orn ou a si o
ofi ci al ” ( el i pse);
LM 21: “D ei t aram -se [ ...] e... adorm ece ram . Quando um do s rapaz es
acordou vi u o seu com panhei ro ex t rem am ent e pál i do e ass ust ado.”
(el i pse);
LM 28 : “Em pou co t em po com e çar am a apare ce r os pri m ei r os bot ões
da s al sa e a m ani fes t ar -se a sua fl ores cê nci a. Dess e t em po e m di ant e
o hom em nunca mai s desam parou a font e.” (el i pse se gui da de
res um o);
LM 31 : “P assado t em po foi à Moi r am a ver a f am í l i a da m ul her.”
(el i pse); “Todos o t rat ar am m ui t o bem , e à ret i rad a der am -l he um a
broa” (sum á ri o se gu i do de el i pse).
Nas out ra s l end as e epi sódi os l endári o s t am bém se encont ram
el i ps es e su m ári os, que t am bém cont ri buem para en cur t ar não
s écul os, m as m ese s, sem anas, di as o u t am bém “ apen as ” noi t es
i nt ei ras:
E LAP / M 6: “ado rm e ceu rapi d am ent e. D e m anhã, aco rdou” ( e l i pse);
E LAP / M 7 : “com eç a a rez ar os t rês c re dos em cru z . [ …] ao t ercei r o
credo em cruz [ …] ” (el i pse);
E LAP / M 8 : “C ert a vez , ent ret i do, dei x ou -se por l á est ar a t é m ui t o
t arde, t al vez por a pesca l he est ar a ser bast ant e favorável . ”
206
(s um ári o);
E LLO 1: “Depoi s d e t ent ar em em v ão m ont ar o ani m al , a cabar am
por desi st i r” (sum á ri o); “J á t i nham passado um sí t i o c onheci do
com o a C ova da A re i a [ …9, quando ouvem z urrar.” (el i pse);
LM O 1: “A v erdad e é que, 15 di as depo i s, foi -se o m i údo e, 15 di as
depoi s, l á se foi a pobre da m ãe.” (d ua s el i pses sucessi vas); “ O
hom em , em desespe ro, prepa rou -se p ar a a i dei a d e m orre r t am bém .
P as s ados 15 di as [ …] ” (sum ári o);
LM O 2 : “E assi m cont i nuaram , am bos i nvent ando descul pa s que os
i m pedi ssem de se de sl ocarem à po rt a.” ( sum ári o);
LM O 3 : “Enquant o o t em po passava e o hom em m at ut ava em com o
s e havi a d e l i vra r daquel a si t uaç ão, t e ve um a i dei a e, j ul gando -se
m ui t o espert al hão, um a sem ana ant es f oi passear pa ra bem l onge d a
t erra em que se enc ont rara com D. Mort e.” (sum ári o); “Qu al não foi ,
porém , o seu es p ant o, quando, no di a m arcado ” ( el i pse).
Há, t odavi a, m om e nt os de t ent at i vas de i socroni a, com o os
di ál ogos,
os
monól ogos
i nt eri ores
e
al gum as
descri çõ es
(se,
oral m ent e, o cont a dor pode i m i t ar um si l ênci o, por ex empl o, por
es cri t o o edi t or pod e ocupar – e ocup a, ge ral m ent e – esse m om ent o
com a sua descri ç ão, ou m el hor, a do efei t o desse si l ênci o nas
pers ona gens ). Os se gui nt es ex em pl os de pausa nar rat i va são t am bém
os m ai s repres ent at i vos:
LM 35 :
De “A t arde com eç ar a a
cai r” at é “S onhav a coi sas
fant ást i cas e di fus a s.” (des cri ç ão e ex pl i cação que, ret ar dando o
encont ro com a m ou ra, t ent am t r aduz i r o “va ga r am ol e ci do” com que
Ant óni o subi a a serr a);
LM 36 : D e “C o rri a J oana da sua ca si nha” at é “ch e gou ao ri o.”
(des cri ç ão e ex pl i ca ção, ocupando o t e m po l evado p or J oana na sua
corri da, p ara s al i ent ar a r api dez com qu e che gou ao seu dest i no);
207
LM 37 : De “J ul i ão cam i nha n ão m ui t o afoi t o.” at é “O rapa z afroux a
o passo.” (paus a di gr essi va que t em co m o i nt enção est abel ecer u m
par al el o
ent re
o
t em po
do
di scurso
e
o
da
c am i nhada
da
pers ona gem ); d e “ O l uar bat e n as pa redes” at é “ Ol ha o m oi nho,
num a espéci e d e d espedi da.” (pausa descri t i va que t ent a dar a
di m ensão do t em po de esper a);
LM 38 : “Houve u m si l ênci o. S i l êncio pesado, enerv ant e, cruel .
S i l ênci o de ex pect at i va e d e an gúst i a. O al m ocrev e ol hou a m edo
para o l eão e pa ra a serpent e. No seu í nt i m o, qui s rez ar, m as não se
l em brou das o raç õ es. Todo el e t r em i a, por dent ro e p or for a.”
(des cri ç ão
do
ef e i t o
causado
p el o
si l ênci o
na
per sonagem ,
aum ent ando a dra m at i ci dade do m om ent o, ao m esm o t em po que
ret ard a, t am bém na escri t a, a ac ção);
LM 40 : De “ Lo go saem os m ouros” at é “a úni ca que pode deci di r a
vi t óri a.”
(descri çã o
est át i ca
segui d a
de
descri ç ão
di nâm i ca,
aum ent ando a ex pec t at i va do resul t ado do com bat e); “Há u m a pausa.
O vel ho govern ado r procur ando a cal m ar as bat i das do cora ção
ex ci t ado. O hom em de Loul é a pe r gunt a r a si própri o qual s erá o fi m
de t ão est ranha co nversa...” (si t uação sem el hant e à veri f i cada em
LM 38 , aum ent ando t am bém a ex pect at i va);
LM 50 : “R om peu ent ão o sol , m aravi lhoso gl obo de fogo e rosa
l um i noso
sai ndo
da
t er ra
s em
ruí do,
sem
an gúst i a. ”
(paus a
des cri t i va que suge re que a pe rsona ge m se dem orou a ol h ar pa ra o
nas cer do sol enqua nt o esperav a que ab ri ssem as port as da vi l a);
LM 54 : Do i ní ci o at é “per gu nt ou c ant an do com o a poderi a al e gra r.”
(des cri ç ão do pal á ci o cont rast ando c om o est ado em oci onal da
pers ona gem , qu e se al onga re al çando a “ m el ancol i a” de Di no rah);
LM 3: De “[ ...] não sei se che gou a peni t enci ar -s e” at é “das al gem as
do cat i vei ro!...” (di gr essão que, t al co m o em L18, t ent a t raduz i r o
ri t m o do nascer do s ol , at é “que foss em abert as as port as” );
LM 6 : De “Er a a form osa m oura” at é “a sua vi rt uosa fi l ha.”
(des cri ç ão
que
su ge re
a
dem ora
h a bi t ual
da
j ovem
sobre
208
as
m ural has);
LM 26 : De “Ent ão o t r abal hador, i m port ando -se nada ” at é “t i nha el a
des apar eci do.” (des cri ção se gui da d e d i gress ão, t ent ando a prox i m ar
o t em po do di scu rso do que o t r abal had or l evou a ol ha r pa r a os b aús
e, s i m ul t â nea e supost am ent e, do que a m oura l evou a desaparec er);
de “Não di z a l e nda” at é “out ras pai x ões si m il ares.” (pausa
di gressi v a cuj a i nt enção é, cl ar am ent e, ap rox i m ar o t e m po do
di s curso do do t rans port e das ri quez as);
LM 27 : De “A i nfel i z s ent i u l ogo” at é “dedi caç ão pel o s seus.”
(des cri ç ão dos si nt om as e da evol uçã o do est ado d a per sonagem ,
ret ard ando a sua m ort e, dando, assi m , cont a da dura ç ão do seu
s ofri m ent o);
E LAP / M 6 : “Er a j á noi t e e, dei t ado, ol hava o c éu obser vando as
es t rel as
m ui t o
vi vas,
com o
cost um am
ser
no
céu
al ga rvi o,”
(des cri ç ão que asse nt ua o cont rast e e n t re a c al m a que rei nava no
al m anx ar e o deseq ui l í bri o provocado pel o apar eci m ent o s úbi t o do
gat o e do seu com p ort am ent o); E LAP / M 7 : “Mi nha avó desceu da
burri nha, pux ou -l he pel a réd ea, m as, qu a l quê? Nem se m ex ia!...
M i nha avó ent ão t e m um a i dei a: deu m e i a vol t a e pux ou pel o rabo
da burra, m as a m agana cont i nuou i m óvel . P ara grande s m al es,
gr andes r em édi os. Mi nha avó m ont a na burra e com eç a a rez ar os
t rês cr edos em cruz .” (des cri ç ão di nâm i ca, m as po rm enori z ada dos
ges t os da av ó, pret e ndendo m ost rar e ocu par t odo o t em po que l evou
a t ent ar que a bur ri nha andasse; a a náfora “Mi nh a avó ” t am bém
cont ri bui para a i dei a da i nsi st ênci a e, consequ ent em e nt e, da
dem ora);
E LAP / M 8 : “- Qu e sort e! – pensou. Ia pescar, cert am ent e, o m ai or
pei x e da sua vi da!” (m onól ogo i nt e ri or que nos pr epa ra p ar a o fact o
de o hom em t er d eci di do fi c ar ai nda m ai s um bocado ); de “ A
verdade, ve rdadi nh a” at é “ a t al sono ra ga r gal had a.” (fo cal i z ação
i nt erna da person a gem com des cri ção d i nâm i ca do que se est ava a
pas s ar, que p ret end e i gual a r, e m t em po, a real i dad e) ;
E LAP / M 9 : “C am i nhavam l ado a l ado, m ui t o l ent am ent e e t ão
209
l evem ent e que m al pareci a pi sa rem os pés na arei a h úm i da.”
(des cri ç ão em que os advérbi os d e m o do t ent am su geri r a l ent i dão
com que as pe rsona gens cam i nhavam ).
1.4.6. SUPERVIVÊNCIAS OU “ECOS” NA ÉPOCA
DA RECOLHA
“Tradi ç ão” é, por defi ni ção, o que passa “de ger ação em
ge raç ão”. A r ecol ha dest as l endas foi um a t ent at i va conse gui da de
pres erv á -l as, num a época em que a t ran sm i ssão oral , segun do At aí de
Ol i vei ra, com e çava a perd er t er reno, e m favor dos out ros m ei os de
com uni caç ão, m odernos, que, gr adual m ent e, “apa gari am ” grand e
part e da m em ó ri a, i ndi vi dual e col ect i va (ou porque, co m o di z o
m es m o aut or, “hoj e at ravessam os um a é poca m ai s posi t i va” 279).
Mas as di fi cul dad es encont rad as, pa ra al ém das que são
com uns a qual quer t i po de recol ha, pre ndi am -se, j á na épo ca dest e
aut or, com doi s fact ores rel a ci onados com o caráct er e specí fi co
des t as l endas: se al gum as pessoas não se i m port am de dar o seu
t es t em unho dest as e dout ras apari ções, “c ont ra t udo e cont r a t odos”,
out ras são m ai s r el ut ant es em faz ê -l o, t em endo s er conot adas com
crendi c es e supe rst i ções que, h abi t ual m ent e, deni grem um pouco a
s ua i m agem num a s oci edade qu e pr eci s a de “v er p ara cre r” ; out ras,
ai nda,
por
resp ei t o
e/ ou
m edo,
p refe rem
ocul t ar
as
suas
ex peri ênci as, ou m esm o as al hei as, re ceando que a sua r evel aç ão
pos s a t raz er quai sq uer consequ ênci as m enos agrad ávei s, para el as
ou para as ent i dades envol vi das, j á qu e ex i st e a convi cç ão “ de que a
s ua narr ação a pesso as curi osas r e dobra os encant am ent os ”
280
.
Tal vez est e t r abal h o não est i vess e co m pl et o sem o r e gi st o
279
Ataíde Oliveira, ob. cit., p. 155.
Ataíde Oliveira, ob. cit., pág. 133 – nesta página, o autor conta um
episódio, aquando da sua recolha, em que uma “velhinha” se recusa a
dar-lhe informações, quase o insultando, que ilustra bem esta
dificuldade.
280
210
des t es t est em unhos orai s e, m ui t as v ez es convi ct am ent e , vi suai s,
del i ci adam ent e anot ados pel os aut ores dest as edi ções, a p ar de t ão
fant ást i cas hi st óri a s. É, poi s, com o m esm o praz er, que aqui
apont am os os m ai s evi dent es :
1 )C r enças col ect i va s : “E ai nd a h oje se d i z que j unt o do cast el o e
no cam i nho do ri o da vel ha C hel b – hoj e ci dade de S i l ves – cont i nua
ent err ado o t esouro da bel a pri nc esa m oura.” ( L M 33 ); “Ni ngu ém
m ai s o vi u. Ni nguém m ai s ouvi u fal ar del e. Mas t odos os m eses,
nes s e di a e a essa m esm a hora – d i z a cren ça p op u l ar – quem
es t i ver j unt o ao R i o S eco pod e ai nda ouvi r um caval o correndo
des ordenad am ent e a o l ongo d a m ar gem ...” ( L M 36 ); “Ai n d a h oje se
d i z al i , em S ão Br á s de Al port el , em pl eno cor aç ão do Al garve, qu e
t udo i st o acont eceu de verdad e....” ( L M 38 ); . E ai n d a h oje h á q u em
af i rme te r vi sto , à m ei a -noi t e, um be l o par d e j ovens p asseando
abraç ados pel a qui n t a do Mari m .” ( L M 41 ); “Mui t o próx i mo de Faro
ex i s t e o l ei t o de um ri o, o ri o S e co, com o l he ch am am as ge nt es, que
é ti d o e h avi d o como a p ri n ci p al sed e d e mou ros e mou ra s
en can tad as nos arredores daqu el a ci da de. [ ...] Daí em di ant e, até
h oje, f al a -s e do apareci m ent o de um a m oura encant ad a naquel e
l ugar do ri o S eco.” ( LM 46 ); “Di z a lenda que esta mou ra ai n d a
h oje p en a, en can tad a , nos rest os do m uro do vel ho al cáce r e
gua rdada po r um en orm e l eão. E nas no i t es de t em po agres t e ou ve s e mu r mu ra r por ent re as árvor es o som t ri st í ssi m o do l am ent o
i nfi ndável da fi l ha do úl t i m o al cai de m ouro de S al i r.” ( L M 51 ); “um
s í t i o ent re La gos e a P rai a da Luz , con heci do por Quat ro Est radas,
devi do a haver n el e u m cru za men to, n or mal men te l o cal i n d i cad o
p ara b ru xed os ” (ELAP / M 7 ); “com eç a a rez ar os t rês credos em
cruz .” ( E LAP / M 7); “havi a um hom em [ …] que possuí a sete fi l hos
t odos varões e, não segui ndo a t radi çã o de pôr o nom e de Adão ao
s eu sét i m o fi l ho, est e con stava q u e vi era a torn ar -se l ob i some m .
C ham ava -se Be rnar di no, o rapaz , e as p essoas ol h avam p ara el e
ch ei as d e n atu r al cu ri osi d ad e . S eri a verdade o q u e se d i zi a ? E o
q u e se d i zi a era [ .. . ] ” ( LLO 1); “ Con t ava -s e que, um di a, [ …] ali
211
p ara os l ad os d e Bar ão de S . J oão” ( LM O 1 ); “Con ta -s e que um
cas al de i dosos, m ui t o am orosos, al i em Val e de Boi ” ( LM O 2); “É
por i sso que d i ze m que não val e a pen a fugi r d a m ort e.” ( LM O 3);
2) s ent i ment os col ect i vos : “Ai n d a n ão h á 10 an os q u e p or al i
n i n gu ém p assava , porque à hor a f at a l , à m ei a -noi t e, ap areci a a
m oura vest i da de branco com os seus cabel os de ouro sol t os aos
vent os. [ ...] E t odavi a o m eni no e a m oura ap are cem m ui t as vez es, e
tod a a vi l a se sen te est re mec er , quando t em not í ci a de t al
apare ci m ent o.” ( L M 14 ); “ E o p ovo con ti n u a a amar os d oi s
n amorad os, od i an do d e mort e o te meroso vel h o .” ( LM 16 ); “ A
gen te d o p ovo , sem pre que se vê forç ad a a passar próx i m o do forno,
d es cob re -s e r esp ei t osamen te e mu r mu ra u ma p re ce , que m al se
l he esc apa d os l ábi o s.” ( L M 26 ); “ Nu n ca mai s se atr evera m a anda r
por l á depoi s do ent ardec er ” ( E LAP / M 9 );
3) f act os conheci do s : “A l enda não di z se che gou o u não a casar e a
t er fi l hos, o que não dei x a de ser um pouco est ranho [ ...] Mas, e i sto
é f acto i n con testável , a fam a da sua ri quez a est endeu -se p or t odo o
rei no de P ort u gal , t endo a cont eci do ch egar à M ex i l hoei ra gent e de
povoações l on gí nqu as par a pedi r e m pr ést i m os à ri ca z ar o l ha, que,
em boa verdade, nu nca os negava.” ( L M 44 ); “S eus fi l hos, educados
na capi t al , foram t a m bém gr andes s enh ores, poi s que a ri q uez a era
t ant a que o seu desbarat o se t ornou i mpossí vel , e ai nd a hoje ch ega
até n ós a f ama d e gen te t ão ri ca .” ( L M 24 ); “C asou em segui da e
teve mu i tos f i l h os q u e se torn ara m c on h eci d os n a p rovín ci a d o
Al garve e at é n a c orte ond e casa ram com dam as do P aço , que l he s
deram um a descen dênci a num erosa. ” ( L M 28 ); “cont a , e f i ca
man i f esta men t e za n gad o qu and o p om os em d ú vi d a aqui lo que di z
que vi u b em vi sto com os ol h os q u e a terra h á -de co mer ”
(E LAP / M 9 ); “Não se sabe se a m ãe s e gui u a t radi ç ão secu l ar de l he
quei m ar a roupa du rant e um a dessas s aí das par a el e dei x ar de ser
l obi som em , mas o certo é q u e o con h eço casado e com fi l hos,
l evando um a vi da e m t udo norm al .” ( LLO 1 );
212
1.5. O ESPAÇO
Assum i ndo
vári as
vert ent es
e
est a bel ecendo
um a
re l ação
pri vi l egi ad a, de co m pl em ent ari dade, c om a car act e ri z ação de t odos
os a gent es n arr at i vos, o espaço é, i n quest i onavel m ent e, um do s
i nf ormant es m ai s di versi fi cados e com p l ex os.
Historias de la tradición que son, en suma, y en expressión
de A. M. MAT UT E, “volanderas”, y cuyo s únicas se ñas de
identidad son la for ma que adoptan en un deter minado mo me nto y
la comunidad que las recibe, como imá gene s que se “posa n” o
contextualizan
en
un
mo mento/lugar
y
por
unas
causas
determinadas. De e ste modo, reconstr uir el imaginario popular y
relacionarlo com la evolución histórica de esa comunidad y com
su
paisaje,
es
recomponer
el
mosaico
de
lo
que
Leite
de
VASCONCELLOS llamaba “vida psíquica” del pueblo. Así pues,
rescatar la leye nda de este limbo de determinación es una tarea
saludable para percibir de forma má s nítida el perfil de los
cuentos
con
los
que
se
relaciona,
como
si
fueran
carriles
paralelos de una misma auto vía, co m cruces y desviacio nes
ocasionales.
El problema para estudiar las Narraciones Tradicionales y
sistematizar sus Fuentes en España y Portugal es el carácter
liminar
evanescente
que
tienen
los
cuentos,
anécdotas, en el conjunto de la tradición oral.
le ye ndas
o
281
281
P. L. Lorenzo Cadarso y E. Martos Núñez, “La Leyendística en
España y en Portugal”, in La Casa Encantada–estudios sobre cuentos,
mitos e leyendas de España y Portugal–Seminario Interuniversitario de
Estudios sobre la tradición , coords. Eloy Martos Núñez (UEX) e Víctor
M. de Sousa Trindade (U. ÉVORA), Serie Estudios Portugueses, Nº 3,
Mérida, Editora Regional de Extremadura, 1997, pág. 16: “Histórias da
tradição que são, em suma, e na expressão de A. M. MATUTE,
“volantes”, e cujos úni cos indícios de identidade são a forma que
adoptam num determinado momento e a comunidade que as recebe como
imagens que “pousam” ou se contextualizam num momento/lugar e por
umas causas determinadas. Deste modo, reconstruir o imaginário
popular e relacioná-lo com a evolução histórica dessa comunidade e com
a sua paisagem, é recompor o mosaico daquilo a que Leite de
VASCONCELLOS chamava “vida psíquica” do povo. Assim pois,
resgatar a lenda deste limbo de determinação é uma tarefa saudável para
perceber de forma mais nítida o perfil dos contos com que se relaciona,
como se fossem carris paralelos de uma mesma via, com cruzamentos e
213
1.5.1. A LOCALIZAÇÃO ESPACIAL
No que di z respei t o às l endas de mouras encant adas , t em os em
pri m ei ro l u gar um m acroespaço qu e é o Al ga rve, “l ar ” dos m ouros e
cri s t ãos i nt erveni en t es nest as hi st óri as. O segundo é a Mo i ram a
(onde, à ex cep ção de Tân ger, a l o cal i z ação dos mi croes paços é
i ndefi ni da).
As vi agens ent r e os doi s t êm , como pont o de part i da, o
Al ga rve, e as p ers onagens nunc a as em preend em por i ni ci at i va
própri a: em L M 45 , o rapaz vai vi si t ar a fam í l i a da esposa , a pedi do
des t a ( em L53, não é apont ado o m ot i vo pel o qu al o rapaz v ai “ve r a
fam í l i a da m ul her”, m as deduz i m os que se t rat a, pel o m enos , de um a
vi s i t a de cort esi a ); em LM 40 , LM 5 0 e LM 3, o c arpi nt ei ro é
“cat i vo dos m ouros ”; em L M 50 e L M 3, o m esm o ca r pi nt ei ro é
ar r ebat ado por m a gi a, ao sal t ar i nad vert i dam ent e um a val et a; e
quando os m ouros part em , l evam “nos seus al for ges a esper ança de
t ornarem um di a” ( L M 51 ).
C ada um a das l enda s se si t ua num det erm i nado l ocal , sej a um a
povoação, sej a um l ugar m ai s o u m enos erm o, no m ei o do cam po.
Es t a l ocal i z ação é fei t a com m ai or ou m enor ri gor, cons oant e o
edi t or e consoant e, t am bém , os el em ent os que l he foram fo rneci dos
pel os di versos narr a dores da t ra di ção.
Assi m ,
s i gni fi cat i vos,
agrup ar am -se
al guns
ex em pl i fi cando -se
pro ce ssos
ape nas
com
que
as
pare ce r am
l endas
m ai s
repres ent at i vas de um a l ocal i z ação porm enori z ada faz endo part e da
i nt rodução:
1)
si t uação em que, i n cl usi vament e, al gun s deí ct i cos cont ri buem
desvios ocasionais. O problema para estudar as Narrativas Tradicionais
e sistematizar as suas fontes em Espanha e Portugal é o ca rácter liminar
evanecente que têm os contos, lendas ou anedotas, no conjunto da
tradição oral.
214
par a uma aproxi m ação do própri o l ei t or : “Foi em S i l ves e h á
m ui t os anos, que t udo i st o acont eceu. F oi al i , pert o do cast el o ai nda
m aj est oso e sob ranc ei ro, que se der am o s fact os que vam os rel at ar. ”
( LM 33 ); “D e Mex il hoei ra [ Grande] para o sí t i o da Rocha vai um a
es t rada de ca rret ei ra e port ant o m ui to l arga. [ ...] C ert a m ul her
s onhou que nessa e st rada, no sí t i o do Sumagre , onde a m esm a é
m ai s l ar ga, ao pé de um a al far robei r a , ex i st i a um t acho chei o de
di nhei ro em ouro [ ...] ” ( L M 5 );
2)
part i ndo do geral para o part i cul ar : “P róx i m o de La gos, no
cam i nho para Odi áx ere, h ouve em t em p os um a hort a e dent ro dest a
um est ranho prédi o al t o.” ( L M 43 ); “ O poço do Vaz Var el a fi ca à
s aí da de Tavi r a, na vel ha est rad a par a Vi l a R eal de S ant o Ant óni o,
j unt o à cerc a do an t i go convent o dos f rades do C arm o.” ( L M 53 );
“Um a vez na M ex i l hoei ra G rande, n a est rada d e Bo rba, apar eceu -l h e
j unt o dum a al farrob ei ra um a m eni na m u i t o boni t a” ( L M 32 );
3)
evocando at é det al h es do espaço na épo ca dos acont e ci ment os
nar r ados : “A l end a que vou cont a r si t ua -se nos a rredo res de Fa ro.
[ ...] Todavi a, no sí ti o de Fa rão – c om o era ent ão conh eci da – havi a
um a fort al ez a m ou ri sca. A nas cent e er gui a -se um out ei ro, e em
bai x o corri a um ri o hoj e cham ado ri o seco, pel a ci rcunst â nci a da
m aré j á não pen et ra r nel e, com o ant i ga m ent e. É n as m a r ge ns desse
ri o que deco rre a no ss a hi st óri a...” ( L M 36 4);
4 ) em pl eno camp o : “C orrem dent ro dos l i m it es dest a fre guesi a
[ Querença] duas ri bei ras que m ai s ad i ant e se unem e f orm am a
ri bei ra cham ad a d a T ôr , m ui t o caudal osa. Ai nda m ai s a di ant e a
ri bei ra da T ôr perd e o nom e e é deno m i nada a ri bei ra d e Al gi bre ,
j unt o da qual ch e go u D. P ai o P er es C or rei a [ ...] ” ( L M 7 ); “ Gi ões é
s ede de um a fr e gue si a da m esm a denom i nação, si t uada na serra do
Al ga rve e p ert enc e nt e ao concel ho de Al cout i m . Ent re os di versos
s í t i os dest a fregue si a e os l ugares hi s t óri cos que nel a ex i st em ,
des t aca -se o ser ro das R el í qui as, a t rês qui l óm et ros da m esm a
215
povoação. N a part e m ai s el evada dest e serro ex i st em ai nda hoj e as
rui nas de um c ast el o de m ouros, e po r i sso é cham ado o Serro do
C as t el o dos Mouros . P rox i m o das ruinas do cast el o ex i st i u um a
pequena ca pel a, i nt i t ul ada a C apel a da Senhora das Rel í quias .” ( LM
2 1);
5 ) numa po voação : “No sécul o p assa do, em f rent e à re si dênci a
paroqui al da Mex i l hoei ra Gr ande, no Al ga rve, ex i st i a um barran co
por onde t oda a ge nt e t i nha m edo de passar [ ...] vi vi a mesm o em
frent e ao r efe ri do barran co um pobr e cabr ei ro [ ...] ” ( L M 42 ); “O
act ual po ço qu e ex i st e no sí t i o do Arro i o vei o subst i t ui r u m a ant i ga
font e, denom i nada a Font e C obert a . Fi cava a font e j unt o da est rada
vel ha que, ant es da cons t rução da que hoj e ex i st e, li gava Faro a
Tavi ra.” ( L M 58 );
6) s i t uação em que se prova a exi st ên ci a do espaço : “No sí t i o do
Moi nho do Sobrado , nas prox i m i dades de Ol hão, no m esm o l uga r
onde hoj e ex i st e um arm az ém pert enc ent e ao sr. Fonsec a, havi a
ant i gam e nt e um a c asa, a cuj a j anel a apare ci a, al t a noi t e, um a
form osa
m ul her
vest i da
de
branco.”
( LM
14 );
“No
sí t i o
do
Es campadi nho , pro pri edade do s enho r J osé Fl orênci o de S ousa
C as t el o Bran co, a uns 1500 m et ros de Odeax ere, à esq uerda d a
es t rada nov a, que s egu e dest a povo aç ã o para M ex i l hoei ra Grande,
vêem -se as p ared es de um forno de cal , do qual ni nguém s e l em bra
de t er si do ut i l i z ado em t em po al gum . ” ( L M 26 ).
P odem os, ai nda, ap resent ar um re gi st o dos l ocai s especí f i cos
onde se desenrol am os acont eci m ent os i m po rt ant es, os “aspect os da
pai s agem ”, de aco rd o com a t eori a d e H enri From a ge:
[...] je vais attirer l’attention sur l’aspect géographique de
la légende [...]
216
Mon propos est, en effet, de mo ntrer co mme nt le mythe se
saisit d’un secteur micro -géographique et en fait un paysage dont
la structure se développe jusqu’à nos jours.
282
A si m bol ogi a dos m ot i vos i nseri dos nas se gui nt es “p ai sa gens ”
s erá an al i sada pos t eri orm ent e, no po nt o 4. da II I par t e dest a
di s s ert ação.
Local do
Local do
Local do
L
encantamento
encontro entre
desencantamento
(lenda)
(quando se
encantado e
(quando existe a
conhece)
perto de um castelo
33
34
35
36
37, 14
/junto de um rio
?
possibilidade)
(quando existe)
=
=
no campo/junto de
=
uma cova de areia
serra (palácio)
serra, junto de
=
uma pedra
?
margem do rio
perto do mar
junto de um
(o encantador na
moinho
Moirama)
38, 48, 13
desencantador
?
(perto do mar)
no meio do
campo
=
margem de um
rio
= +
palácio
subterrâneo
castelo
39, 51, 6
(o encantador
X
(castelo)
num monte)
282
Henri Fromage, « Légende et paysage », in La Légende –
Anthropologie, Histoire, Littérature, Colloque franco-espagnol, Madrid,
Universidad Complutense, 1989, pág. 133: “[...] vou chamar a atenção
para o aspecto geográfico da lenda [...] O meu objectivo é, com efeito,
mostrar como o mito se apropria de um sector micro -geográfico e faz
dele uma paisagem cuja estrutura se desenvolve até aos nossos dias.”
217
Local do
L
encantamento
(lenda)
(quando se
conhece)
40,50,3
fonte
Local do
Local do
encontro entre desencantamento
encantado e
desencantador (quando existe a
(quando existe)
possibilidade)
=
=
X
X
(perto do castelo)
abismo
(nascente)
41, 15
(o encantador
numa casa
apalaçada)
42, 24
43, 27
?
= +
barranco
?
junto de uma
palácio
subterrâneo
=
nora
estrada entre
dois valados
44, 25
?
junto de uma
árvore
=
no meio do
campo
45, 31
na terra
na terra
X
46, 11
perto de um rio,
junto de uma
X
=
nora
47, 12
junto de um rio
X
49, 10
52, 8
=
castelo
?
X
X
em casa
furna
(no campo)
(no campo)
218
Local do
L
encantamento
(lenda)
(quando se
Local do
Local do
d
e
s
e
ncantamento
encontro entre
(
q
u
a
ndo existe a
encantado e
p
o
s
sibilidade)
desencantador
(quando existe)
conhece)
X
=
X
X
pego?
pego
=
60
?
junto de um pego
=
7
fonte?
junto da fonte
=
cisterna do
junto de um
=
castelo num
pego,
serro
num serro
53, 17
poço
54
palácio
59, 58
21
forno,
no meio do
26
=
X
campo,
mas perto do mar
28
fonte
=
X
estrada,
32
junto de uma
?
= ?
árvore,
no meio do
campo
Il
apparaît
d’abord
que
le
mythe
est
un
processus
d’investisse me nt de l’e space. Par sa démarche , il fait à l’ho mme
discerner, différencier et spécifier des é léments de son espace
vécu quotidie nne me nt. Cette spécificatio n apparaît comme une
projection des préoccupations et des co mporte ments majeurs d u
groupe social, couple et/ou clan. Elle charge les parties du
secteur géographique de significations et de “vert us”. Elle crée
un paysage-théâtre et
essentiel.
Cette
y opère la mise e n scène du dra me
affectation
théâtrale
se
concrétise
par
un
219
marquage, des rituels, une sacralisation, qui dans la plupart des
cas sont proliférants, se développent et s’enrichissent d’e uxmêmes et de leurs propres effets.
Mesm o
os
epi só di os
283
l endári os
de
mouras
encant adas
acont ec em , pr efe ren ci al m ent e, no cam p o, um as vez es j unt o de um
poço, out ras, nos c am i nhos, e h á m es m o um j unt o do pi l ar d e um a
pont e.
Os epi sódi os l endár i os de medos acont ecem em qual qu er s í t i o,
m as m ai s fr equent e m ent e no c am po, e m especi al nas encr uzi l hadas ,
t al com o os encont ros ent re bruxas – no ent ant o, el as vi vem e
act uam nas povoa çõ es ; t em os doi s ocor ri dos num a prai a, a m bos na
m es m a z ona, um a part e da prai a ch e i a de rochas , par a al ém dos
recol hi dos por J osé Lei t e d e Vascon cel l os, que ocorrem e m S agres,
t am bém nas p rai as. Os de l obi somens t am bém se d ão no cam po e ,
pel os vi st os, t am bém em qual quer sí t i o se m orre.
As l endas r ecol hi da s por J osé C asi nha Nova passam -s e t od as no
Barl avent o, m ai s co ncret am ent e nos C oncel hos de La gos e de Vi l a
do Bi spo. A re col ha de Mar gari da T engarri nh a t am bém , m as no
C oncel ho de P ort i m ão, assi m com o a nossa, que ab ranj e ai nda os
C oncel hos de S i l ves, Monchi que e La go a. Os epi sódi os l end á ri os de
mouras encant adas recol hi dos po r At a í de Ol i vei ra repo rt am -se ao
S ot avent o, com espe ci al i nci dênci a no C oncel ho de Loul é.
Mas se no Al garv e podem os faz er um m apa onde é poss í vel
as s i nal ar t odas est a s ocorr ênci as, a Mo uram a, com o di ssem os, é um
es paço i nde fi ni do (à ex cepção de Tân ge r , ci dade r efe ri da ap enas nas
di versas versõ es da «Le nd a da Mour a C ássi m a ») . E Fe rnand a Fr az ão
283
Henri Fromage, ob. cit., pág. 153 : «E m primeiro lugar, parece que o
mito é um processo de investimento do espaço. Pela sua deslocação faz
o homem discernir, diferenciar e especificar elementos do seu espaço
vivido quotidianamente. Esta especificação aparece como uma projecção
das preocupações e dos comportamentos mais importantes do grupo
social, casal e/ou clã. Ela carrega as partes do sector geográfico de
significações e de « virtudes ». Cria uma paisagem/teatro e opera aí a
encenação do drama essencial. Es ta afectação teatral concretiza -se por
uma marcação, rituais, uma sacralização, que na maior parte dos casos
são proliferantes, desenvolvem-se e enriquecem-se de si próprios e dos
seus próprios efeitos.»
220
e Gabri el a Morai s apresent am um a possí vel i nt erpret aç ão dest a
i ndefi ni ção, part i nd o do pri ncí pi o de que est e espa ço , e nt endi do
com o a t erra dos mouros , não é, com o sem pre se p ensou , o Nort e de
Áfri ca, m as a t erra dos mort os , à luz das t eori as j á ex post as
ant eri orm ent e:
É da salientar, no que toca aos rios Lima ou ao actual rio
Seco, e m Faro, e ao Promo ntório Sacro, não ser coincid ência o
facto de esta s regiõe s possuíre m um acervo particular me nte rico
e m narrativas ou r umor es relacionados co m as mo uras e ncantadas
Mas mais importante é o facto de os dois mundos se
interpenetrare m, q uer no Promontório Sacro e no rio Letes, q uer
nas narrativas de mo uras encantadas, se m e squecer a se melha nça
que se conjuga, indiscutivelmente, com o significado já referido
da raiz possível para a palavra moura.
[…] Os locais são muitos e variados, ma s estão se mpre e m
situação de ligação com o mundo subter râneo, o mundo dos
morto s. São grutas, c ovas, poços, mina s, o u são correntes de
água que brotam do mundo subterr âneo, fontes, rios ou cisternas,
ou são árvores cujas raizes mergulham na terra, ou penedos
escarpados que se abrem, cume s de mo ntes e monta nhas q ue se
despenham
no
abismo.
São,
afinal,
a
Mourama
(a
mesma
Mourindade dos Galegos, ou o Sid), que pensa mos ser o no me
aqui assume o País dos mortos, apesar da natural confusão co m a
terra dos Sarracenos.
284
1.5.2. A CARACTERIZAÇÃO DO ESPAÇO
É prat i cam ent e i m p ossí vel faz er um a l ocal i z ação espa ci al sem
cara ct eri z ar m i ni m a m ent e esse esp aço, a m enos que se p roceda à
s i m pl es nom eação do l ocal , com o acont ece com “a Mo i ram a” e
“Tân ge r”, cuj os el em ent os são i nsufi ci ent es para esbo çar um a
284
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, Portugal, Mundo dos Mortos e
das Mouras Encantadas, pp. 46 e 47.
221
cara ct eri z aç ão, que est á t am bém depe ndent e do m ai or o u m enor
recurso a proc essos est i l í st i cos ut i li z ados pel o cont ador .
Mas é sobret udo a cara ct eri z aç ão fei t a dos m i croespa ços em
que oco rrem os en c ont ros , sej a qual fo r a sua n at urez a, qu e pe rm i t e
a es t as aut oras avan çarem a i dent i fi ca çã o da Mourama com o m undo
dos m ort os:
[…]
Mas
as
características
expressas
nestas
narrativas
são
inconfundíveis q uanto aos aspectos do mito sobre os quais aqui
nos te mo s debruçado. Se não, veja mos: a Mourama é se mpre
referida co mo uma e ntrada feita a tra vés de um b uraco na terra,
na árvore ou na pedra, já existente na natureza, ou que se abre
misteriosa me nte à pa ssage m do ente mítico. E a Mourama, tal
como o Alé m, é um sítio mara vilhoso, meta morfoseado, na s
versões mais actualizadas, em palácios de our o, prata e pedras
preciosas, as riquezas do interior do seio da T erra -Mãe ma s que
no ima ginário do ho me m pré -histórico era m tão só a vegetação,
os animais da sua sobrevivê ncia, todos os ser es vivos, co mo ele
próprio, e as pedras para seu abrigo na vida e n a morte.
E dentro da concepção cíclica de vida / morte / vida, esse
mundo do Alé m, dos mortos e dos antepassados, e mbora e m
oposição ao mundo dos vivos, também é a outra face deste.
Portanto, paralelo, subterrâneo, onde a vida decorrerá do mesmo
modo que d o lado de cá,
excepcionais
do
mas que, a través dos mo mento s
entreaberto,
se
podem
cruzar.
É
nesses
mo me ntos, simulta nea mente privile giados e perigosos – a Morte,
tal co mo o Sol, não se pode olhar de frente – que um de sses seres
míticos ve m e m b usca de uma parteira, ou ve m dar de beber aos
seus
cavalos,
ou
anda
a
jogar
os
paus
e
as
bolas
(jogos
tradicionais portugueses), ou vem estender a roupa ou os frutos,
ao Sol, ou está a tecer no seu tear, o que, para além dos
significados simbólicos que possue m, são, o u fora m, actividades
rotineiras e nor mais no dia -a -dia das populações que conta m
estas visõe s. Mas ainda, e acima de tudo, vê m pro meter as
riquezas que desfrutam nesse mundo subterrâneo concebido pela
ima ginação huma na primitiva co mo cheio de dádivas de vi da /
222
morte / vida, de fertilid ade e de regeneração.
285
Apresent a rem os, a gora, ex em pl os em que essa car act e ri z aç ão se
revel a em aspe ct os di st i nt os:
1)
a
i mponênci a
dos
cast el os :
“cast el o
ai nda
m aj est oso
e
s obrancei ro [ de S i l ves] ” ( L M 33 ); “c ast el o i m ponent e d a en t ão vi l a
de C ast al ar” ( L M 39 ) ;
2)
a maj est ade dos pal áci os : “Vi vi a num bel í ssi m o pal áci o de
m i l col unas fi nas de m árm ore ros a e vent anas de fi l i gr ana de
m adei ra, rode ada d e cox i ns de sedas col ori das e m aci as com o um
roçar d e asa d e pom ba.” ( L M 54 );
3)
a ri q ueza dos pal áci os subt errâneos : “E desce ram am bos um a
es cada ri a d e m árm ore, que os l evou a um a sal a eno rm e chei a de
ouro por t odos os l ados. As paredes era m de ouro. E de ouro o bel o
t ect o t am bém .” ( L M 38 ); “num a am pl a sal a de par edes e co l unas de
ouro m ac i ço” ( LM 1 3 );
4 ) o bucol i smo do s campos : “A nas cent e do out ei ro d e S ant o
Ant óni o do Al t o [ “ao nascent e de Far o”] , e l ogo l á em bai x o, há
um a funda pl anura, por onde em épocas rem ot as desl i z ou um ri o,
hoj e denom i nado o Ri o Seco . P or est e r i o ent rava a m a r é q uase at é
Es t oi , e nel e havi a gr andes est ei ros [ ... ] ” ( L M 11 ); “P el os cam pos
do Al ga rve, v ai um verdadei ro fest i m de l uz e cor...” ( L M 4 0 );
5 ) a ari dez da serra : “A t erra cont i nu ava quent e e a á gu a m orna.
Nem a bri sa soprav a. Na serr a, o si l ênci o assen t ara a rrai a i s.” ( LM
3 5);
285
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, Portugal, Mundo dos Mortos e
das Mouras Encantadas, p. 47.
223
6) a t ranqui l i dade das povoaçõ es : “ S eparada do Al ent ej o pel a
ri bei ra do Vas cão, a l i nda e po ét i ca vi l a de S al i r – a ant i ga C ast al ar
– ergu e-se pr e gui ço sam ent e ao l ongo d a ri bei ra que t em nom e i gual
ao s eu.” ( L M 39 ); “É Mex i l hoei r a um a bel a povoaç ão si t uada em
l ugar el evado, qu e s e descobr e do m ar a gr ande di st ânci a.” ( L M 25 );
7) a precari edade das casas dos camponeses : “um a pobre fam í l i a
que nada m ai s t i nha de seu e po r i sso al i habi t ava nuns casebr es ”
( LM 43 ); “um m ai oral de c a bras, cas ado, que t i nha a s ua pobre
choupana m esm o em frent e do r ef eri do b arran co” ( L M 24 );
8) a opul ên ci a das casas dos mouros : “resi dên ci a apal a çada do
vel ho m ouro Az iz ” ( L M 41 ); “ era dono daquel a propri ed ade um ri co
m ouro, que m orava em um prédi o acast el ado quase no c ent ro” ( L M
1 6);
9) a rural i dade : “ Lent am ent e, t am b ém , o gado d esci a das past agen s
para s e abri gar da n oi t e” ( L M 34 ); “foi o gu ardado r em pr ocura d e
um a vacca que se s afár a da al pendur ad a, e vi u que, horas depoi s, a
vacc a ent rar a no est abul o m ui t o fart a.” ( L M 59 ); “es t ava um
hort el ão à espr ei t a das l ebr es e coel hos que vi nham à su a h ort a ro er
nas al fa ces” ( L M 1 2 ); “est ava um rap az que t rabal hav a n o cam po
t om ando cont a de u m a seca d e fi gos nu m al m anx ar.” ( E LA P / M 6);
10) l ocai s mí st i cos, nos campos : “ao passar por um sí t i o ent re La gos
e a P r ai a da Luz , co nheci do por Quat ro est radas, d evi do a h aver n el e
um
cruz am ent o,
norm al m ent e
l ocal
i ndi cado
para
brux edos”
(E LAP / M 7 ); “um s í t i o conheci do com o a C ova da Arei a, onde se
di z i a que apare ci am med os ” ( E LLO 1);
224
11 ) quando a t erra se j unt a ao mar : “Nas du as ex t erm i dades d a
prai a d e Bur gau, ex i st em i núm eros pen hascos que, pel a e r osão, se
des penca ram das a l t as fal ési as sobre a arei a n as m ai s vari ada s
pos i ções. P or essa r az ão, cham am -s e C ant os do Lared o. ” ( E LAP / M
8); “Ao fundo, e ra s ó rocha, só f ra ga… ” ( E LAP / M 9);
12 ) a proxi mi dade do mar : “agarrou nel e e foi at i rá -l o de um a
fal és i a ab ai x o.” ( E LAP / M 6); “ ex i st e um espaço redon do ent re
rochedos, pa reci do com um poço, e, quando a m aré est á chei a e o
m ar a gi t ado, as on das ent ram por bai x o e sobem pel o poço aci m a
produz i ndo um ruí do m edonho.” ( E LAP / M 8 );
13 ) os prazeres da prai a : “É um sí t i o ópt i m o para pesca ri a à can a.”
(E LAP / M 8 ); “nos d i as em que o m ar n ã o est ava c apaz de p escar em
em barc ação, gost av a d e i r pesc ar pa r a a Toc a do R abo, sent ado
s obre um ro chedo o nde só el e m al c abi a.” ( E LAP / M 8 ); “q uando se
encont rav a c om um grupo d e out ros garot os am i gos a br i ncar n a
arei a ” (E LAP / M 9 ).
1.5.3. O ESPAÇO SOCIAL
O val or do cum ent a l dest as l endas de mouras enc ant adas é
i ncal cul ável , se an al i sadas do pont o de vi st a soci al . D os m ai s
pobres aos m ai s ri c os, passando por u m a di versi dade de p rofi ssões,
t odos t êm l ugar n est as hi st óri as.
Observam os, po r e x em pl o, que os po rt ugues es são sem pre
t rabal hador es z el osos ou pobr es hon ra dos, enquant o os m ouros são
ri cos respei t ados. A proveni ênci a da sua ri quez a não é c onheci da,
m as a sua honest i da de t am bém nunca é post a em causa.
Os t esouros que os m ouros, na pressa d a fu ga, es conder am , na
225
es peran ça de recup e rarem m ai s t ard e, c o nt rast am com um a pobrez a
gen eral i z ada
dos
cam poneses
po rt ugueses
que,
n ão
fi cando,
nat ural m ent e, i ndi f erent es a t am a nhas ri quez as, se aven t uram a
quas e t udo par a t ent ar os desen cant am en t os.
P erder “os sa grado s ól eos do bapt i sm o” é a úni c a si t uaç ão
que faz um cri st ão recusa r um pedi do fei t o por um a bel a m ul her,
num a noi t e de l uar, em t roca de um a grande fort un a. S ão rar os os
cas os em que, hom em ou m ul her, não vence o m edo cau sado por
al gum a cobr a gi gan t esca ou out ro ani m al i gual m ent e fan t ást i co, e
apenas em “A Mour a Fl ori pes” ( L M 37 e LM 14 ) encont r a m os um
hom em que não ac om panha um a m our a a Áf ri ca pa ra n ã o vol t ar,
num a das versões, por am or a out ra m ul her ( LM 37 ), n a versão de
At aí de Ol i vei ra ( LM 14 ), por am or à pátri a (com t udo o que i m pl i ca,
t am bém , de re l a ções fam i l i ares e d e am i z ade, nat ural m ent e).
P odem os enum era r os se gui nt es rep resent ant es de gru pos
s oci ai s:
LM 33 : hom em de profi ssão desconhe ci da (“um hom em vol tava do
s eu t rabal ho”)
/ moura encant ada (“P oi s fi ca sabendo que sou
fi l ha do rei m ouro a qui ent errado. ”);
LM
34 :
l avrador
(“depoi s
de
acom odar
o
gado ”)
/
m oura
encant ad a (al t i va, p ossui dora de grand e fort una);
LM 35 : “j ovem pescador que sofrer a um naufrá gi o e fi car a al gum
t em po em t erra a re com por -se” ( am paro da m ãe doent e) / m oura
encant a d a (“S e vi e r es com i go pa ra o m eu pal áci o, se rás po deroso
com o m eu pai e m eu s i rm ãos.”);
LM 36 : j ovem l avad ei ra (“ Teri a d e l ava r nessa m anhã as pe ças de
roupa que a m ãe l he ent regara ”) / m ouro encant ado (“ri co... nobre,
t al vez ”);
LM 37 : um dono de t err as e h erd ad es / m oura enc ant ada de
es t at ut o soci al desc onheci do;
226
LM 38 , LM 48 e L M 13 : “um al m oc re ve” / m our a encant a da (“S e
qui s eres t roc ar es sa vi da ar rast ada que l evas pel a vi da de
opul ênci a e ser possui dor dest e vast í ssim o pal áci o, onde o ouro é
ai nda o que m enos v al or t em , só depend e de t i ”);
LM 39 , LM 51 e L M 6 : “o últ i m o al cai de m ouro de S al i r”, a fi l ha
e “os seus fi éi s soldados” / ex érci t o port uguês ( em part i c ul ar, D.
Gonçal o P er es);
LM 40 , LM 50 e L M 3 : “Os m el hores gue rrei ros m ou ros de ent ão
correm a j u nt ar -se s ob as o rdens dos se us chef es” / “os sol dados
cri s t ãos de D. P ai o P eres C orrei a, qu e s e prepa ram t am bém para a
l ut a gi gant es ca. ”; “ o gov ernado r de Lo ul é” (“x eri f e absol u t o”) e
as fi l has / um port uguês qu e e ra “ carpi nt ei ro em Loul é” e escravo
em Tân ger;
LM 41 e LM 15 : “um ri co m ouro, que m orava em um prédi o
acas t el ado ” ( “ grand e fort una que possu í a”) e a fi l ha / o “ j ovem
Abdal á”, “m ui t o ri co”, que de noi t e “ c ant ava t rovas d e am or que
durant e o di a com pu nha para a sua b em - am ada”;
LM 42 e LM 24 : a espos a de “um pobre cabr ei ro” / m ouri nho
encant ado, possui d or de um “pal á ci o subt errâneo ” onde “vi u
am ont oada em cofr e s de oi ro t ant a ri quez a em di nhei ro e pedras
preci osas, qu e ni ngu ém pode i m a gi ná -l o e m enos desc revê -l o”;
LM 43 e LM 27 : “um a fam í l i a pobre e h onrad a” / m ouro
encant ado que “j un t o a si conservava um a fort una em ouro e
pedras pr eci osas ”;
LM 44 e LM 25 : “m ul her ex t rem am e nt e pobre”, de pro fi ssão
des conheci d a
(que
“não
podi a
d ei x ar
de
aprovei t a r
aquel a
fort una”) / m ouro e ncant ado em sapo, que gua rdav a um t e souro
que a t ornou “ ri quí ssi m a”;
LM 46 e LM 11 : “u m cri st ão” de profi s são desconh eci da, m as que
“t rat ou de sabe r a q uem pert en ci a en gen ho e t e rreno e com prou -os
s em re gat ear ”, “por bom pre ço” / m our a en cant ad a pel o p a i num a
nora (“ond e m andei const r ui r o t eu pal á ci o”);
227
LM 47 e LM 12 : “um hort el ão” / m oura enc ant ada co m “um a
enorm e c ai x a chei a de di nhei ro em ouro ”;
LM 49 e LM 10 : “ part e das for ças qu e at aca ram o C ast el o de
Faro ”, com and adas por “um j ovem gue rrei ro, fo rm oso, ch ei o de
bri o e desej os de re nom e”, enam or ado da “fi l ha do gov ern ador” /
gove rnador do cast e l o “com as suas num erosas fo rças ”;
LM 52 e LM 6 : u m a “l avr ador a” / m oura en cant ad a q ue m ora
dent ro de “um pal ác i o”;
LM 53 e LM 17 : D. P ai o P eres C or rei a e out ros “ cav al ei ros
cri s t ãos” / “o go ver nador de ent ão ” do cast el o de Tavi r a, a s suas
gent es e a fi l ha q ue, “no p al áci o en cant ado, conserv a gr andes
val ores
em
ouro
e
j ói as
preci osas
que
oferec erá
ao
seu
des encant ador”;
LM 54 :
“um
t rov ador”
cri st ão /
D i norah, que “vi vi a
num
bel í s si m o pal áci o”;
LM 59 : “um l avrad or, que possuí a m ui t o gado, e t i nha por i sso
m ui t os creados ao seu servi ço” / um a “voz occul t a” de um
encant ado que t i nha para ofer ec er um a “grande c ai x a, chei a de
di nhei ro em ouro”;
L 2 1 : doi s am i gos de profi ssão d escon heci da / m our a en c ant ada
cuj o “pai era o re i dos m ouros que habi t avam no serro das
Rel í qui as ” e que “e st ava ri cam ent e ves t i da, t raz endo ao pescoço
um grande col ar de ouro, e nos braços bri l havam ó pt i m as
pul s ei ras do m esm o m et al ”;
LM 26 : “o dono e seus t rabal h adores ”, t odos bene fi ci ados pel as
“vant aj osas condi ç ões” em que o fo rno foi com prado / “um
caval ei ro m ont ado em m ul a possant e, com um a dam a na ga rupa,
s egui do de um cri a do que conduz i a ou t ra m ul a car re gad a de doi s
gr andes baús. ”; m oura enc ant ada / “u m dos t rabal hadore s”, que
receb eu, com o “pr é m i o do i m pagável servi ço” que l he pr es t ou, os
doi s baús “a t ran sbordar de m oedas , barras em ouro, j ói as
preci osí ssi m as, di a m ant es de gr ande v al or, esm er al das d e preço
228
i ncal cul ável , rubi s e out ros val ores de s ubi do preço”;
LM 28 : “um pobre hom em ” que, “ao rel ent o, est endi a sob um a
árvore os m em bros canç ados e l assos” / m oura encant ad a que l he
ent re gou “doi s b aús chei os de ouro e de pedras pr eci osas ” (d onde,
depoi s, el e “t i rav a o di nhei ro necess ár i o para pa gar as co m pras
dos gr andes p ré di o s que t odos os di as faz i a com v erd adei ro
es pant o de t oda a ge nt e”).
LM 32 : m ul her de profi ssão desconh ec i da, provavel m ent e dona d e-cas a, espos a de t rabal hador rural (“ i a t odos os di as l e var o
j ant ar ao m ari do” ) / “um a m eni na ” qu e “l he dari a t odos os d i as
500 réi s” par a com prar gal i nhas, “dura nt e 6 m eses”, após o que
fari a a m ul her ri c a.
S i st em at i z ando: os port ugues es t êm profi ssões l i gadas à t er ra
(l avrador,
hort el ão ,
al m ocrev e,
m ol ei ro,
past or,
ca r pi nt ei ro,
res pect i vas espos as) , à água (p esc ador, l a vadei ra ), ao fo go (dono e
t rabal hador es do f orno da cal ) e ao ar (t rovado r). Ou t ros são
s i m pl esm ent e pobres, sem profi ssão. S ó encont r am os quat ro que se
podem consi derar “ m ai s abast ados”: o “com padr e Zé” de L M 37 , o
l avrador d e L M 59 , o “cri st ão ” de L M 4 6 e LM 11 e o dono do forno
de LM 26 . Há, ai n da, os gu err ei ros, e o padre, repr esen t ant e do
cl ero. Os m ouros s ão, quas e sem pr e, repres ent ados p el as cl asses
di ri gent es, govern a dores de cast el os ( e resp ect i vas fi l has ) ri cos e
poderosos
( em bora
sai am
ven ci dos
d os
conf ront os
com
os
port ugues es), e sã o t odos guerr ei ros , ex cept uando -se o “vel ho
m ouro” e o t rovado r de L M 41 e LM 16 , que t am bém são ri c os.
Nas “ Lendas In édi t as”, bast ant e m ai s recent es, que dat a m de
m eados
do
sécul o
XX,
encont ram o s
as
segui nt es
p rofi ssões
repres ent adas:
E LAP / M 6 : “um r a paz que t r abal hav a no cam po t om ando cont a de
229
um a seca d e fi gos n um al m anx ar”;
E LAP / M 7 : m ul her sem profi ssão defi n i da, m as que faz i a “t apet es
m ui t o l i ndos”, “bo rdados em ser api l hei ra” que vendi a, faz endo
depoi s com pras na c i dade, com o di nhei r o da venda;
E LAP / M 8: p escado r que, qu ando “o m a r não est ava cap az d e pesc ar
em em barc aç ão”, go st ava de pes car à ca na;
(E LAP / M 9 : grupo d e garot os a b ri ncar na prai a )
LLO 1: hom em “r es pei t ável , t rab al hado r do cam po, n aqui l o que er a
s eu”, port ant o l avra dor (possi vel m ent e o que se cham ava, n a al t ura,
“l avrado r abast ado ” );
E LLO 1: doi s pes ca dores;
E LM O 1: “um hom e m de i dade avan çad a”, que se d eduz ser pobre,
poi s passa a vi da a apanhar l enha;
LM O 1: um a fam í l i a cuj os m em bros t ê m profi ssões descon heci das e
um cart ei ro;
( LM O 2 : i gnor am os as profi ssões dos do i s i dosos do casal )
LM O 3: t am bém nã o há i nform ação so bre a profi ssão do hom em ,
apenas sab em os que t eve o di nhei ro sufi ci ent e para fu gi r d a m ort e ,
i ndo “passea r” pa ra o P ort o “um a sem an a ant es” .
1.5.4. O ESPAÇO PSICOLÓGICO
R et rat o da i nt eri or i dade das person a gens, est a subcat e gori a
narrat i va é ex pressa, ger al m ent e, at ra vés do m onól ogo i nt eri or,
revel ado r, habi t ual m ent e, de um confl i t o í nt im o, e decorrent e,
forçosam ent e, de u m a focal i z açã o i nt e r na do narr ador.
É, por conse gui nt e , m ui t o m ai s frequent e nas l endas, q uase
i nex i st ent e nos epi sódi os.
230
Em segui da, d ar -s e- ão ex em pl os dos monól ogos i nt eri ores m ai s
repres ent at i vos, cuj o re gi st o se veri fi c a nos t rês t i pos de di scurso
(di rect o, i ndi re c t o e i ndi rect o l i vre):
LM 33 : “ A m ul her de Di o go ol hou o m ari do em si l ênci o. Est ava
pál i do,
de
ol hos
bri l hant es.
C he gou
a
pens ar
qu e
ele
t eri a
enl ouqueci do. Mas não! Os s eus m ovi m ent os eram cert os , os seus
raci ocí ni os pr eci sos . Que t eri a, poi s, su rgi do n a sua vi da? E porque
t eri a fei t o aquel e bol o? Agora com pr eendi a o s eu i nt er esse em
aj udá-l a, em apren der coi sas que só di z em respei t o às m ul heres.
Ti nha l á a sua fi sgad a! Mas po rqu ê? P orquê? ...”
– Di scurso
i ndi rect o l i vre que r evel a as i nt erro gaçõ es da m ul h er de Di o go sobre
as rec ent es at i t udes do m ari do, enquant o o observa;
LM 34 : “A su a c asa est ava à vi st a. A m ul her e os fi l hos es peravam no. Di as ant es, com o l he era gr at o che ga r at é al i , descans ar no seu
l ei t o fofo, ouvi r o t aga rel a r das cri a nças, conve rsa r co m a bel a
J oana que escol hera para m ãe dos seus fi l hos! C om o i sso ai nda há
pouco t em po l he e ra t ão grat o ! A gor a, porém , ent r ar n essa cas a
cons t ruí da pel as suas própri as m ãos era quase um pesa del o.” –
Di s curso
i ndi rect o
Ant óni o
Navarro
l i vre
que
enquant o
corres ponde
se
di ri ge
aos
para
pensam en t os
su a
cas a;
de
“Ol hou
dem oradam ent e o h om em por quem a a dm i ração qu e por e l e sent i a
s e t ransfo rm ara em am or. El e fi ngi a dorm i r. Bem o pre ssent i a.
Ant óni o
est ava
p reocupado
e
que ri a
i sol ar -s e,
fi n gi ndo -s e
adorm eci do . J oana i m i t ou -o. Tam bém i ri a fi ngi r qu e dorm i a. Mas o
s eu pensam ent o gal opava com o bat er do seu cora ção. E s e Ant óni o
t i ves se descobert o
out ra m ul her e
qui sesse abandoná - l a?
Mas
des cobri r out ra m u l her, onde? Vi vi am t ão i sol ados! A povoação
m ai s próx i m a f i cava t ão l on ge! É c ert o que Ant óni o l eva va o di a
t odo fora de cas a. S ó ao c ai r d a t ard e vol t ava p ara j unt o dos seus.
Ah, se el a pudesse l er -l he no pensam en t o! C onhecer a sua vont ade,
des cobri r porqu e a ndava el e a go ra as si m ...” – Di scurso i ndi rect o
l i vre r evel ado r da ansi edade d e J oana, que t ent a encont rar um a
231
ex pl i cação par a a al t eraç ão do com port a m ent o do m ari do;
LM 36 : “J oana fi co u por m om ent os si lenci osa. Não qu eri a fal t ar à
prom essa f ei t a ao s enhor do ri o, m as c om preendi a q ue a m ãe t i nha
raz ão.
Travou -se
l ut a
dent ro
do
seu
espí ri t o.
P er gunt ava,
i nt i m am ent e, o que devi a faz er.” – Di scurso i ndi rect o que, sem
des crev er a “l ut a dent ro do seu espí ri t o”, nos i nform a sobre a
ex i s t ênci a e a nat ure z a desse confl i t o i nt eri or de J oana;
LM 37 : “J ul i ão sorri . Tal vez o com pa dre Zé o est i vesse espi ando
por al i pert o. A Ani nhas fi ca ra r ez ando, pedi ndo a D eus que a m oura
não apa rec esse. O c ul pado er a o com p a dre Zé, que espal ha ra se r a
m oura a m ul her m a i s l i nda que el e vi ra!...” – Di s curso i ndi rect o
l i vre que, t al com o no pri m ei ro ex em pl o de L2, corr esp onde aos
pens am ent os da pe rs onagem enquant o ca m i nha;
LM 39 : “Ab en -F abi l l a cer rou os ol hos. C om forç a. C om ó di o. At é
faz er doer. Não con segui a coord enar as i dei as em desal i nh o. S i m , a
bat al ha est av a p erd i da, ai nda ant es de co m eç ar. Al guns dos seus
hom ens t i nham j á com eçado a deb anda da. Que espe rava el e, ent ão? ”
– Novam ent e um co nfl i t o i nt eri or, r eve l ado pel o di scu rso i ndi rect o
l i vre; “Apen as o j o vem D. Gon çal o fi cou par ado a ol har em sua
vol t a. A ol har e a pensar: – Meu Deus, t eri a eu sonhado? Teri a si do
t udo um a i l usão? Não, m i l vez es não!... Eu fal ei -l he... Eu t oquei l he... El a d eve t er fi cado aqui encan t ada pa ra s em pre !. ..” – O
pens am ent o
da
p ersona gem ,
dest a
vez
na
pri m ei ra
pessoa,
ut i l i z ando -se o di scurso di rect o;
LM 40 : “ P or fi m , ao cabo de l on ga e árdu a ex pect at i va, um a
ex pressão m ai s am ar ga desenh a -se no rost o m acerado d o vel ho
gove rnador. D e si para si conf essa: – J á os pressi nt o... E l es est ão
cerc a d e nós... Quan do a al vorad a rom p e r vão t ent ar o assal t o... Mas
não nos apanh arão d espreveni dos, com o j ul gam !” – Mai s um a vez , o
di s curso di rect o a d ar cont a do m onól ogo i nt eri or; “O vel ho m ouro é
abal ado por i nt ensa em oção. S erá aqu e l e hom em o m ensagei ro que
el e t ant o pedi ra a Al á? P oi s não há que duvi dar! ” – Di scurso
i ndi rec t o
l i vre
qu e
r evel a
os
pens am ent os
e
as
em oções
da
232
pers ona gem ;
“H á
um a
pausa.
O
vel ho
govern ador
pro curando
acal m ar as bat i das do seu coraç ão ex ci t ado. O hom em de Loul é a
per gunt ar a si próp r i o qual será o fi m d e t ão est r anha conv ersa...” –
Di s curso i ndi re ct o q ue desc rev e, al t e rna dam ent e, a i nt eri ori dade d as
duas person a gens; o s pensam ent os do c a rpi nt ei ro de Loul é, ex post os
em di scurso i ndi r ec t o l i vre, nos t r ês e x em pl os segui nt es: “No seu
í nt i m o pensa na mul her, nos fi l hos, nos am i gos... Que enorm e
s urpresa ! Não, n ão pode fal h ar! ”; “P e l o cam i nho, pár a d e vez em
quando e sent a -se a refl ect i r. Qu e i rá a gora suc ede r à pobre
C as s i m a? O que el a não t erá d e sofr er!.. .”; “B enz endo -se e r ez ando,
o ca rpi nt ei ro com preende t udo: C as si m a dera -l he aqu el e ci nt o
apenas p ar a s e vi ngar! S ua m ul her fi ca ri a cort ad a ao m ei o , com o o
carval ho gi gant esco !...”;
LM 42 : “A m ul her, porém , est av a di vi di da ent r e o re cei o an cest ral e
vi s ceral e a curi osi d ade acut i l ant e de sa ber em que poderi a consi st i r
a s ua fort una. P or fi m , convenci d a d e q ue quem n ão s abe u t i l i z ar -se
da s ort e quando el a bat e à port a não p ode quei x ar -se quan do el a s e
vai , encheu -s e de c ora gem e des ceu as escadas at rás do m ouri nho.”
– Di scurso i ndi re ct o que, t al com o em L4, i nform a da ex ist ênci a e
da nat urez a do con fl i t o i nt eri or;
LM 44 : “ao fi m do t ercei ro sonho, deci di u vol t ar ao sí t i o da
al farrob ei ra porqu e , afi nal , era pobr e e não podi a de i x ar de
aprovei t ar aquel a fo rt una. P or out ro l ado, pensava el a, o di abo não é
t ão fei o com o o pi nt am , bei j ar o s ap o era apen as um i ns t ant e e
pront o.” – Di scurs o i ndi rect o, d ando -nos cont a da dec i são da
m ul her, se gui do d e di scurso i ndi re ct o l i vre, dando -nos c ont a dos
s eus pensam ent os;
LM 48 : “E l á do fundo da m em óri a subi u -l he a l em branç a do que
s eus pai s cont avam sobre o l ugar e el e nun ca qui ser a ac red i t ar: que
naquel e pont o ap a reci a um a m ou ra encant ad a a qu em por al i
pas s asse sol i t ári o.”; “P ensou i r à fei ra de Vi l a Vi çosa vendê -l as,
es perando que aí l he dessem po r el a s um m ai s j ust o val or.” –
Di s curso i ndi rect o em am bos os ex em pl os, rev el ando, no pri m ei ro,
233
um a reco rdaç ão e, n o segundo, um a deci são;
LM 3 : “Quando o governador ch e gou à s al t uras do Serro da Pena e
não encont rou ent r e as a garen as a sua fi l ha queri da, t eve a profunda
com preens ão da su a des gra ça: fi c ara sobre os m uros em oraçã o
porque não re ceb era o seu avi so! [ ...] o vel ho di st i ngui u l á ao l onge ,
s obre o cast el o, u m vul t o de m ul her: era a fi l ha! C ham á -l a!, não
ouvi ri a. Ir buscá -l a !, i m possí vel .” – O di scurso i ndi rect o l i vre a
ex pri m i r “a profund a com pre ensão da su a des gra ça ”;
LM 8 : “C onheceu a m ul her pel os t raj es que t i nha na sua presenç a
m ouros e m ouras encant adas, di spost os t odos a roubar -l he os sant os
ól eos por i nt e rm édi o do bei j o fat al .” – Em di scurso i ndi rect o, a
percep ção qu e a pe r sonagem t em do que se est á a p assar à sua vol t a;
LM 13 : “O seu pr i m ei ro m ovi m ent o foi de p rofundo su st o, m as
depoi s
pensou
qu e,
sendo
t udo
o
que
vi a
verd ad ei ram ent e
ex t raordi nári o, dev i a m ant er o seu sossego d e espí ri t o.” – O
pens am ent o do al m o creve em di scurso i ndi rect o;
LM 14 : “O suj ei t o ouvi u at ent am ent e est a respost a e l ogo pensou
que o sac ri fí ci o e ra real m ent e m ui t o superi or à sua boa vo nt ade.” –
A m esm a si t uação d e L41, o pens am ent o da person a gem em di scurso
i ndi rect o;
LM 28 : “ O pobre hom em fi cou por m ui t o t em po a pensar n as
pal avras do m our o. El e conheci a pe rfei t am ent e a sal sa [ ...] m as do
m aná só t i nha o l ev e conhe ci m ent o do que ouvi ra cont ar a sua m ãe
por ocasi ão do p ovo hebreu andar pel o desert o. ”
– S i t uação
s em el hant e às ant e ri ores, de L41 e de L42, o pens am ent o da
pers ona gem em di scurso i ndi rect o ;
E LAP / M 6 : “P el o b arul ho produz i do, devi a ser um bi cho enorm e.
“ Iri a m i j ar em ci m a dos fi gos? ” – pensou el e.” – O pensa m ent o do
rapaz pri m ei ram ent e em di scurso i ndi rect o, se gui do de di scurso
di rect o, com o se est i vesse f al ando m es m o, revel ado r d a pr eocupa ção
que o assal t ou nesse m om ent o;
E LAP / M 8 : “ – Que sort e! – pensou. Ia pescar, ce rt am ent e, o m ai or
234
pei x e da sua vi da! ” – A pri m ei ra i de i a em di scurso di re ct o, e a
ex pect at i va se gui nt e em di scurso i ndi re ct o l i vre; “ – É boa ! – di sse
para consi go – que di abo de coi sa será est a? ” – Novam ent e a dúvi da
da per sona gem ex pressa em di scurso di r ect o;
LM O 3 : “Enquant o o t em po passava e o hom em m at ut ava em com o
s e havi a d e l i vra r daquel a si t uaç ão, t e ve um a i dei a e, j ul gando -se
m ui t o espert al hão, um a sem ana a nt es f oi passear pa ra bem l onge d a
t erra em que se en cont rar a com D. M ort e.” – A pr eocup ação do
hom em , assi m com o a sua deci são, apresent adas em di scurso
i ndi rect o, m esm o re sum i das.
2. PRINCIPAIS MOTIVOS E RESPECTIVA
INTERPRETAÇÃO
Dos quatro elementos aos seres míticos e dos lugares às
fases do dia, do mês ou do ano (que é como quem diz do sol e
da lua), passando pelos objectos utilizados, dados, recebidos
ou
trocados,
e
pelos
vários
seres
vivos,
humanos
e
não
humanos que são, no fundo, todo o material d estas lendas, não
seria possível estudá-las sem fazer uma abordagem simbólica
destes “motivos”.
O símbolo distingue -se essencialmente do signo, por
este
ser
uma
convenção
arbitrária
que
deixa
estranhos
entre si o significante e o significado (objecto ou s ujeito),
enquanto
que
o
símbolo
pressupõe
homogeneidade
do
significante e do significado no sentido de um dinamismo
organizador (DURS,20).
[…]
O símbolo é, pois, muito mais do que um simples
signo:
transporta
interpretação
e,
para
esta,
lá
da
duma
significação,
certa
depende
predisposição.
da
Está
235
carregado de afectividade e de dinamismo. Não só mostra,
de
uma
certa
maneira,
mesmo
quando
dissimula,
como
realiza, também de uma certa maneira, quando desfaz. […]
Com
o
signo,
permanecemos
num
caminho
contínuo
e
seguro: o símbolo pressupõe uma ruptura de plano, uma
descontinuidade,
uma
passagem
a
uma
outra
introduz uma ordem nova de múltiplas dimensões.
S egundo
o
m esm o
aut or,
“os
mi to s
ordem;
286
apresent am -s e
t ransposi ções dram a t úrgi c as” dos arqu ét i pos de J u ng
287
c om o
, “esquem as
e s í m bol os ou de com posi ções de co nj unt o, epopei as, narrat i vas ,
gén eses, cosm ogoni as, t eo goni as, gi ga nt om aqui as, que r e vel am j á
um processo de r aci onal i z ação.”
288
2.1. OS QUATRO ELEMENTOS
P arece -nos l ógi co c om eçar pel o s quat ro el em ent os - água, t erra ,
ar e fo go – que e st ão repres ent ados em t odas est as hi stóri as de
encant am ent os e des encant am ent os, apar i ções e des apar eci m ent o s .
2.1.1. A ÁGUA
As significações simbólicas da água podem reduzir -se a três
te mas do mina nte s: fonte de vida, meio de pur ificação, centro de
regenerescê ncia. [...] Mergulhar nas águas, para delas e mer gir
se m se dissolver totalmente, salvo por uma morte simbólica, é
retornar às fontes, reabastecer-se num imenso reservatório de
energia
e
regressão
dele
e
de
beber
uma
força
desintegração ,
nova:
fase
p assageira
condicionando
progressiva de reintegração e de regenerescência.
uma
de
fase
289
286
J ean Chevalier, « Introdução », in Jean Chevalier e Alain
Gheerbrant, ob. cit., pp. 12 a 14.
287
“Os arquétipos eram, para Jung, como que protótipos de conjuntos
simbólicos,
tão
profundamente
inscritos
no
inconsciente
que
constituiriam como que uma estrutura, os engramas, […]”, idem, p.14.
288
Ibidem.
289
Idem, p. 41.
236
No caso das l end as de mouras encant a das , n a m ai or part e dos
cas os, as m ouras são at i radas para de nt ro de água – font e, poço,
nora, ci st ern a ou ri o – enquant o os pai s pronunci am “or ações” e
“pal avr as i ni nt el i gí vei s” e faz em “si nai s cab al í st i cos” e o “si gn o
s am ão”, e l á fi cam a t é serem des encant a das.
Enquant o dura o seu exí l i o , um as e st ão t ransform ad as em
cobras, out ras n ão, out ras não se sabe e m quê, m as há quas e sem pr e,
pel o m enos um a al t ura do ano, do m ês ou do di a (perí odo de vi nt e e
quat ro hor as), em que podem assum i r um a fo rm a hum an a e, de
al gum m odo, convi ver com al guns pa ssant es, at é pa ra q ue sej a
pos s í vel t ent ar o al m ej ado desenc an t am ent o.
O que acont ec e dep oi s às di t osas que o consegu em , só s e sabe
em al guns casos e deduz i m os que se p ode gen eral i z ar: re gressam à
M oi ram a onde se (re)hum ani z am t ot a l m ent e, prosse gui ndo a sua
vi da norm al .
O
processo
de
encant am ent o/ desen cant am ent o
re v el a -se,
as s i m , “um a m ort e si m ból i ca”, um a v ez que o ser não d ei x ou de
ex i s t i r, m as desi nt egrou -se, passou a o ut ro est ado, a out ra di m ensão
da
qual
“ ren asce ” ,
rei nt e gr ando -se,
l ogo,
re gen erand o -se
( “A
i m ersão é re gene ra dora, provo ca um r enasci m ent o, no se n t i do em
que el a é ao m esm o t em po m ort e e vi d a. A á gua apa ga a hi st óri a,
porque rest a bel ec e o ser num est ado nov o.”
290
).
Na Bíblia, os poços no deserto, as fontes que se oferecem
aos nó mad as são outros tantos lugares de alegr ia e espanto . Junto
das
fontes
e
dos
poços
realizam-se
encontros
essenciais;
enqua nto lugares sa gra dos, os pontos de água dese mpenha m um
papel inco mparável. Junto deles, o a mor nasc e e os casa mentos
começa m. A marcha d os Hebreus e a ca minhada de todo s os
ho me ns durante o se u peregrinar t errestre estão intima mente
290
Idem, p. 43.
237
ligadas ao contacto exterior ou interior com a água, que se torna
um centro de paz e de luz, oásis.
291
2. 1 . 1 .1 . LOC A IS
Mui t as m ouras são encant ad as dent ro d e f ont es ( LM 40 , L M 50
e LM 3 , LM 7 , LM 28 )  “P el as suas águ as sem pr e novas , a font e
s i m bol iz a,
não
a
rej uvenes ci m ent o.”
292
i m ort al i dade,
m as
si m
o
perpét uo
A m oura da S err a de Monchi que er a guardi ã
de um “caud al de á gua qu e fa rá cu ras m aravi l hosas” ( L M 35 ) – “O
s i m bol i sm o da font e ou nascent e é o d a regen eração e o d a
p u ri f i cação .”
293
Al i na e o j ovem Abd al á ( L M 41 e LM 1 6 ) são
encant ados ao c aí re m num “verdad ei ro abi sm o de onde j orrava a
águ a num a i m ponent e cat adupa ” (a ex i gên ci a do vel ho Az i z ti nha
s i do não um a font e qual quer, m as “a f am osa nascent e da Font e do
C anal ”):
O ab ismo i ntervé m e m todas as cosmo gonia s , como gé nese e
ter mo da evolução universal. Este último, tal como os monstros
mitológicos,
devora
os
seres
para
depois
os
vomitar,
transfor mados.
As profundezas abissais evoca m o país d os mortos e,
portanto, o culto da Grande Mãe Ctoniana. É, sem dúvida, sobre
esta antiga base cultural que se apo ia C. G. Jung quando liga o
simbolismo do abismo ao arquétipo ma terna l, ima ge m da mãe
a m a n t e e t e r r í v e l . 294
S ão
not óri as
as
vári as
al usões
( cl aras
ou
i m pl í ci t as)
às
pr of undi dades . Em LM 41 “A á gu a j orr ava de um a cova p ro funda.” e
“o m ouro ol hou o abi sm o donde a águ a j orr ava. ”. Em L M 50 :
291
292
293
294
Idem, p. 42.
Idem, p. 334.
Ibidem.
Idem, p. 34.
238
“Todos os dom i ngo s o carpi nt ei ro se di ri gi a à font e, à t ardi nha,
onde se ent ret i nha p erscrut ando o fundo , na esper ança de vi sl um brar
al gum as d as m ouras que l he habi t avam as profundez as.”. E m L M 53 :
“O govern ador, deb ruçando -s e par a den t ro do poço, di sse, ent ão, o
s egui nt e encant am e nt o”. Em L M 59 : “v i u el l e os bez erros, no fundo
do pe go”. Em L M 3 : o c arpi nt ei ro “al i s e conse rvav a, hor as i nt ei ras,
com os ol hos fix os na á gua da font e, esperando, a cad a m om ent o,
l obri ga r l á no fundo al gum a d as desdi t o sas enc ant adas ”, e q uando a
m ul her cort ou o pão, “debruç ado na fo nt e, ouvi u di st i nt am ent e um
enorm e gri t o saí do do i nt eri or e da part e m ai s funda das águas ”; ao
at i rar o pri m ei ro pã o, “e r gueu -s e i m edi at am ent e do fundo da font e
um gl obo de espum a” e, no fi nal do encont ro com a m oura, “o
carpi nt ei ro a cei t ou a val i osa ofert a, e a i nfel i z C ássi m a desceu ao
fundo da font e”. E em LM 21 : “o cão com eçou a gani r no
perci pí ci o”.
Ao cont rá ri o dos d oi s am ados, a m our a de Al goz , presa n um a
“cova m al di t a” ( L M 34 ), sol t a, por vi ngan ça, “um a á gu a que t udo
al a gou”, form ando um a l a goa. Est am o s, ent ão, pe rant e o aspect o
negat i vo da á gu a:
Os
lagos
são
ta mb é m
considerados
como
p alácios
subterrâneos, de dia ma nte s, de jóias, de cristal, d e onde surge m
as fadas, feiticeiras, ninfas e sereias, mas que atraem também os
huma nos para a morte. Toma m e ntão o significado perigoso de
paraísos
ilusórios.
exaltada; [...]
Simboliza m
as
criações
da
ima ginação
295
Há t rês l endas pass adas j unt o de pegos – o Pego Escuro (L M
5 9), o Pego da C arri ça ( LM 60 ) e o p ego do S erro d as R el í qui as
( LM 21 ). As duas p ri m ei ras t êm um a part i cul ari dad e com u m : ouve s e um a voz , que não é i dent i fi cada com o sendo fem in i na ou
m as cul i na, e sabe -se, no fi nal , que pe rt ence a um ( a? ) mouro(a? )
295
Idem, pág. 397.
239
encant ado (a? ). Na t ercei ra, o pe go com uni ca com o c ast el o por um a
vi a subt err ânea. P or não se ver o i ndi ví duo a quem p ert en c e a voz ,
nas pri m ei ras, e pel a com uni caç ão com o cast el o, na úl t i ma, faz em
record ar um out ro sim bol i sm o de “l ago”  “o ol ho da Terra po r onde
os habi t ant es do m undo subt errâneo podem ver os ho m ens, os
ani m ai s, as pl ant as, et c.”
296
Em “Di norah” ( L M 54 ), a m oura “vi u -se t ransform ar em fo nt e e
o s eu t rovado r m ud ar -se em l a go”. S ó que não é um l a go com um ,
es t át i co, passi vo , poi s “desde ent ão a ndam j unt os a corr er par a o
m ar”. O ra, com o “ a desci da par a o o ce ano é a r euni ão das águas , o
re gresso à i ndi fer en ci ação, o ac esso ao Ni rvan a ”
297
, sabendo que o
agent e dest e en cant am e nt o foi o própri o Al á, não é de est ranhar que
“t odos
os
anos,
p el a
P ri m aver a”,
el e
l hes
m ande
“fl ores
de
am endoei ra p ar a que possam noi var”...
Al gum as m our as sã o encant ad as dent ro de poços ( LM 46 e LM
1 7), ou noras ( LM 46 e LM 11 ; em LM 43 e LM 27 , o m our o
apare ce pert o da no ra, n ão se sabendo qual a rel a ção ex i stent e, s e
el e est á enc ant ado l á ou não ) e a m oura de Gi ões ( L M 21 ) “di z a
l enda que el a resi d e l á em ci m a n a ci st erna”; a nor a e a ci st erna,
s endo di fer ent es, t ê m , por defi ni ção, a nal ogi a com os po ç os, pel o
que são i ncl uí dos no m esm o grupo:
O poço reveste-se de um carácter sagrado em todas as
tradições:
realiza
como
que
uma
síntese
das
três
ordens
cósmicas: céu, terra, infernos; dos três ele me ntos: a água, a terra
e
o
ar;
é
um
meio
vital
de
comunicação.
É
també m
um
microcosmo, ou sínte se cósmica. Faz a comunicação com a
morada dos mortos; o eco cavernoso que sobe dele, os reflexos
fugidios
da
água
remexida,
que
aumentam
mais
do
que
esclarecem o mistério. Visto de baixo para cima, é uma luneta
astrnómica gigante, apontada do fundo das entranhas da terra
296
297
Ibidem.
Idem, pp. 569 e 570.
240
para o pólo celeste. Este complexo faz uma escada de salvação
ligando entre si os três estádios do mundo (CHAS, 152).
O poço é o símbolo da abundância e a fonte d a vida [...] é,
por
outro
lado,
um
símbolo
de
segredo,
de
dissimulação,
princip alme nte d a verdade, que, como se sabe, sai dele n u [ a ] .
298
Em E LAP / M 8, t oda a hi st óri a s e pass a j unt o e por causa de um
poço di fer ent e: “u m espaço r edondo ent re ro chedos, pa r eci do com
um poço e, quando a m aré est á chei a e o m ar agi t ado, as ondas
ent ram por bai x o e sobem poço a ci m a produz i ndo um ruí do
m edonho.” Ve rem os , depoi s, t am bém a s i m bol ogi a buraco e do mar .
Out ras, ai nda, sã o encant ad as em ri os ( LM 47 e LM 12 ). Em
LM 33 e em LM 36 , os en cont ros d ão -s e nas m ar gens dos r i os, não
s e s abendo qual a r el ação ent r e est es m ouros e os resp ect i vos ri os
(em LM 33 , Di ogo vê o t esouro do pai da m oura, de que e l a se di z
gua rdi ã, por um a “p equena abert ur a na m argem do ri o”):
O simbolismo do rio, do fluir das suas águas, é ao mesmo
te mpo o da possibilida de universal e o da flu idez das formas (F.
Schuon) , o da fertilida de, da morte e da re no vação. A corrente é
a da vida e da morte. [...]
Descendo as mo ntanha s, insinuando -se através dos vales,
perdendo -se nos la gos ou nos mar es, o rio simboliza a e xistência
humana
e
o
seu
curso
com
a
sucessão
dos
desejos,
sentimentos, das intenções, e a variedade dos seus desvios.
dos
299
Não é di fí ci l assoc i ar est a i dei a à da t ri st e sort e das m ouras
que, num revés do j ogo da vi da, vi ram a sua sort e m udar d e form a
t ão i nesperad a com o i m previ sí vel será o seu fut uro.
298
299
Idem, pág. 532.
Idem, pp. 569 e 570.
241
Na “ Lenda do F al so J uram ent o” ( L M 36 ) , J oana vê a i m agem do
m ouro encant ado r ef l ect i da nas á guas do ri o, com o num espe l ho:
É verdade que o reflexo da luz ou da realidade não muda a
natureza, mas co mporta um certo aspecto de ilusão ( apanhar a
Lua na água) e de mentira em relação ao Princípio. Existe uma
identidade na diferença, dizem os textos hindus: a luz reflete-se
na água, mas na realidade não a penetra; [...] Por outro lado, o
espelho dá uma imagem invertida da realidade: É como se aquilo
que está em cima estivesse em baixo, diz a Tábua de Esmeralda
her mética, mas e m se ntido inverso. A ma nife stação é o refle xo
invertido do Princípio: [...].
300
Tam bém o fal so j ur am ent o do m ouro ( e o t í t ul o, só po r s i , j á
t raduz um a cont r adi ção) é, d e cert a fo r m a, um a i nv ersão d os seus
val ores m orai s e rel i gi osos, e por i sso é cast i gado.
2.1.1. 2 . TR AVES S IA
Nas t rês ve rsões da l enda da m oura C á ssi m a ( L M 40 , LM 50 e
LM 3 ), o ca rpi nt ei r o de Loul é sal t a, d e cost as, sobr e “um al gui da r
chei o de á gua” e é t ransport ado , m i st eri osam ent e , “po r ares e
vent os”, at rav essan do “os ares com o u m a á gui a”, por ci m a do Mar
M edi t errân ei o . Ora, o “al gui dar com á gu a” é o “vaso”:
O vaso alquímico e o vaso her mético signi fica m se mpre o
local onde as maravilhas se operam; é o seio materno, o útero no
qual se for ma um novo nascimento. Por isso esta crença que o
vaso conté m o segredo das meta mor foses.
O vaso encerra sob formas diferentes o elixir da vida: é um
reservatório de vida. [...]
300
Idem, p. 301.
242
O
facto
de
o
vaso
ser
aberto
receptividade às influências celestes.
em
cima
indica
uma
301
R essal vando, nat ur al m ent e, as di fer en ças ex i st ent es ent re os
doi s obj ect os, é, a i nda assi m , not óri a, a sem el hanç a en t re est e
s i m bol i sm o e a função ex e rci da pel o al gui dar, na l enda.
C ont i nuando com a m oura C ássi m a, em L M 50 e LM 3 , o
m es m o carpi nt ei ro, ao sal t ar m ai s t arde um a “val et a que i a chei a d e
águ a”, vol t a a p assa r por um a ex peri ênc i a sem el hant e, dest a vez “à
vel oci dade d e um t ufão”. Ai nda q ue e m pont o m ui t o pequeno, t al
com o o nom e i ndi ca, um a “val et a” nã o dei x a de ser um “val e” .
Di fere, port ant o, do al gui d ar, n a m edi d a em qu e a su a á gu a est á em
m ovi m ent o, t endo e m com um o fact o d e ser em am bos ab e rt os por
ci m a. Em L M 44 e LM 25 , a est rad a on de est á ent er rado o “t acho do
t es ouro” é l i m i t ada por “doi s val ados ” ( m ai ores do que “as val et as” ,
ai nda que pequ enos são t am bém “val es” ); da m esm a nat ur ez a é “um
re go sem curvas, o m ai s di rei t o que possas” que, em L M 7 , é pedi do
ao rapaz ”:
[…] Primeira me nte, o vale é vazio e aberto e m cima ,
portanto, receptivo às influências celestes ( Tao, 15); o vale é
uma cavidade, um ca na l, para o qual converge m necessaria me nte
as águas vindas das alturas que o rodeiam.
302
S ão, ent ão, com uns a t odos os m ot i vos l i gados à á gu a, o fa ct o
de ser em “ab ert os em ci m a”, po r conse gui nt e, “ rec e pt i vos às
i nfl uênci as cel est es”, e repr esent a rem o út ero m at erno, no sei o do
qual se oper am t ransf ormações mi l agrosas .
R ecorrendo , ai nda, à “Moura C ássi m a” , em am bos os casos o
carpi nt ei ro sal t a , em bora em ci rcuns t ânci as di ferent es, pri m ei ro
s obre o al gui dar, d e poi s sobre a val et a ( em L M 50 e LM 3 ):
301
302
Idem, pp. 677.
Idem, p. 675.
243
Para os celtas, o salto é uma proeza guerreira, e faz parte
dos recursos do herói quer para fugir do seu adversário quer para
o derrotar. [...]
No entanto, noutras tradições, os saltos fazem parte de
alguma s cerimónia s litúrgica s ; são, então, símbolo da a scensão
celeste.
303
Ora, ao sal t ar sobre , o carpi nt ei ro at ravessa, passa para o
out r o l ado , quer do al gui da r, quer d a val et a, e d est as pequenas
t raves si as r esul t am out ras m ui t o m ai ores, de Tân ger p ara Loul é e
vi ce-ve rsa ( “at r ave ssava os m ar es co m o um a á gui a” – LM 50 ;
“at rav essava com o u m a águi a os a res e s al t ava os m ares” – LM 3), o
que t am bém assum e um si gni fi cado próp ri o:
[...] a travessia é a de um obstáculo que separa dois
domínios,
dois
incondicionado,
estados:
o
vinculação. [...]
mundo
o
mundo
fenomenal
dos sentidos e
o
e
estado
o
estado
de
não-
o estado que está para lá do ser e do não -ser
[…] é simbolizado […] ainda pela água corrente sem espum a.
2.1.2.
304
A TERRA
Opondo -se “ao c éu , com o o p ri n cíp io p assi vo se opõe ao
act i vo ;
o
asp ec to
f e mi n i n o
ao
aspect o
m ascul i no
da
m ani fest aç ão” 305, a t e rra é, m ai s um a ve z , um sí m bol o da função
m at ernal :
Ela dá e tira a vida. [...]
Identificada
com
a
mãe,
a
terr a
é
um
símbolo
de
fecundidade e de regeneração. Ela dá à luz todos os seres,
303
304
305
Idem, p. 584.
Idem, p. 570.
Idem, p. 642.
244
alime nta -os, depois recebe deles nova me nte o germe fec undo
(Ésquilo, Coéforas, 127 -128).
306
Tam bém só há um a l enda em que t emos a cert ez a de que a
m oura foi enc ant ad a na t erra , “ent er ra da” – é “O C i nt o da Moura ”
( LM 45 e LM 31 ):
Existe m enterros simbólicos, análogos à imersão ba ptismal,
quer para curar e fortificar, quer para satisfazer ritos iniciáticos.
A ideia é se mpre a me sma: re generar atra vés do contacto co m a s
forças da t erra, morrer para uma for ma de vida para renascer para
outra for ma.
307
Igu al m ent e “ ent er ra do” est á o t a cho de L M 44 , s endo pr e ci so
“es cav ar ” par a enco nt rá -l o. Em LM 61, “havi a um pequeno m ont e de
t erra, qu e pa reci a ser t odos os di a s revol vi da”, e “q uando a l i
che gar am
abri u -se
um a
port a”
que
deu
passagem
para
“um a
ri quí ssi m a sal a, forrada d e sedas bo rdadas a ouro ”. O m esm o
acont ec e em L M 38 , LM 48 e LM 13 – a m oura “bat eu na t er ra. Um a
vez . Duas vez es. Três vez es. E l ogo se abri u um al çapã o”, cuj a
pas s a gem “ os l evou a um a sal a enorm e chei a de ouro por t odos os
l ados”. Tam bém em LM 42 e LM 24 , a cobri nh a, “ com a m ul her
at rás ”, “ ent ra ram a m bas por um a abert ura que havi a n a ba rrei ra d e
t erra ” que, t al com o e m m ui t as out ras lendas , vai dar a um “pal áci o
s ubt errân eo ”, on de ex i st e um “t esouro ent err ado ”, cuj a si m bol ogi a
apresent arem os adi a nt e.
Não se sab e com o f oi encant ad a (ap ena s que vi ve num pal áci o
“debai x o da t e rra ”, sob um a p edr a), m as a m our a d a S erra de
M onchi que ( L M 35 ) pede ao p escado r Ant óni o que l he l eve “um
pedaço d e t er ra ond e est á a t ua c asa. O ut rora e ra aí um a m esqui t a.”
(es t e “peda ço d e t e r ra” pode s er, aqui , sí m bol o d o car áct e r sa gra do
306
307
Idem, p. 642.
Ibidem.
245
do l ugar, ou, po r se t rat ar d e um sí t i o onde t i nha ex i sti do um a
m es qui t a, um a m anei ra de revi ve r o ri t ual sagr ado d a ora ção, que
acont eci a nesse l u gar , com o se a ener gi a, l i bert ada aqu an do desse
ri t ual , se t i vesse ac um ul ado no l ocal , t ornando a t e rra, d e al gum a
form a, sa gr ada, i st o é, port adora d essa ener gi a, ou si m pl es m ent e um
com ponent e de um q ual quer f ei t i ço ).
Li gad o à t e rra , m as opondo -se a el a, t e m os o buraco (que, por
vez es, funci ona com o vi a de com uni ca çã o, passa gem subt er r ânea) :
Símbolo da abertura pa ra o desconhecido: o q ue desemboca
no outro lado [...] O buraco permite que uma linha passe através
de outra linha (coordenadas do plano dimensional )... (VIRI, 44).
No plano do imaginário, o buraco é mais rico de significado que
o simples vazio: é ple na me nte c heio de todas as potencialidades
daquilo que pode preencher ou passar pela sua abertura; é como a
espera ou a repentina revelação de uma prese nça.
[...] aparece como o símbolo de todas as virtualidades.
308
Em LM 46 e LM 1 1 , um a “enorm e se r pent e”, supost am ent e, a
m oura encant ada, ap arec e “vi nda de um buraco que com uni c ava par a
a nora ”; em L M 42 e LM 24 , “ent r ar am am bas por um a abe rt ura que
havi a na b arr ei ra d e t erra ”; em L M 49 e LM 10 , o j ovem gue rrei ro
vê “ a c abeç a d e u m a cri an ça qu e s e assom ava po r um buraco ”
(apesa r de, prov ave l m ent e, se t rat ar de um buraco nas m ur al has do
cas t el o, e n ão dent r o da t err a propr i am e nt e di t a); em LM 21 , os doi s
am i gos descob rem “ um a com uni cação s ubt errân ea do cast el o para o
pego ”; em E LAP / M 8, com o j á referi m o s, a acção passa -se j unt o de
um buraco nas roch as, por onde ent ra a águ a do m ar; e em E LAP / M
9, os garot os vi r a m “sai r de u m a f enda que havi a en t re doi s
penedos” um casal , “um senhor e um a dam a m ui t o i dosos vest i dos
am bos de pret o, de face m a ci l ent a e de ol hos t ão l uz i di os que m ai s
pareci am duas al m as do out ro m undo…”.
308
Idem, p. 132.
246
Fi l ha s da t erra , t e m os as rochas – “ O si m bol i sm o do roched o
com port a di ve rsos aspect os , dos quai s o m ai s evi dent e é o da
i m obi l i dade,
do
i m ut ável .
m ani fest aç ão cósm i ca, [ ...] ”
[ ...]
309
P ri ncí pi o
a ct i vo,
font e
da
 e as pedras – “A pedra brut a é
t am bém consi derad a com o andró gi na, const i t ui ndo a androgi ni a a
perfei ç ão do est ad o pri m ordi al . [ ...] As pedras não sã o m assas
i nert es; ped ras vi v a s caí das do céu, el a s cont i nuam vi vas d epoi s da
queda .”
310
Em LM 34 , “J oana escondeu -s e at rás d e um rochedo”; em L M
3 5, a pedr a sob a q ual vi ve a m oura ap arec e desi gnad a por “pedr a” ,
“rocha ”, “ro chedo ” e “penedo ”; em L M 37 , J ul i ão “sent a -se num a
pedra m ai s al t a”, en quant o espera a ap a ri ção da m oura; em L M 42 ,
“i m edi at am ent e se l evant ou um a gr ande l aj e”; em L M 43 , o m ouro
“l evant ou um a gran de l aj e que havi a no chão”; e em L M 21 , os
am i gos “dei t ar am -s e sobre um a grand e l aj e, qu e ex i st e à bei ra do
pego ” e, a c ert a al t ura, um del es vi u “j á sent ada na bei r a da l aj e
um a l i nda m eni na” ; em LM 39 , ant e s de desapa rec er, a j ovem
t ransform ou -se num a “e st át ua ”, um a “c ast el ã de pedr a ”; t a m bém em
E LM 39 m ã e e fi l ho est ão enc ant ado s em est át u as de p edra que
abrem os ol hos ao mei o -di a e à m ei a -noi t e; e as pedras dos mol edros
s ão t al vez o m el hor ex em pl o de que as pedras cont i nuam vi v as , poi s
des l ocam -se, sendo encant ament os de sol dados; e m ELAP / M 6 , O
gat o, d epoi s de m o rt o, é at i r ado dum a fal ési a; em E LAP / M 8 , o
pes cador est av a “se nt ado sobre um ro c hedo onde só el e m al cabi a”,
num dos cant os do La redo, ch ei o de r ochas “que, p el a er osão, se
des penca ram d as al t as fal ési as ”; e em E LAP / M 9 , no m es m o cant o
d a m esm a pr ai a, vi ram os garot os o c asal sai r “d e um a f enda que
havi a ent re doi s pe nedos”, t endo ve ri f i cado, no di a s e gui nt e, que
não havi a “si nal d e qual quer ent rad a” na re feri d a f enda, que “ ao
fundo, era só roch a , só fraga…”. Al gu ns dest es ex em pl os t êm um a
part i cul ari dad e com um : são roch as (ou pedras) que s e en co nt ram e m
t errenos el evados, c uj a si m bol ogi a ver e m os adi ant e.
309
310
Idem, pp. 570 e 571.
Idem, p. 510.
247
2 . 1 . 2.1. LOC A IS
Os poços, as no ras, os val ados, os b ar rancos e os pe gos são
l ocai s onde, por di f erent es raz ões, se d á (ou d eu) a j unção dos doi s
el ement os, água e t erra , porque sendo covas, bur acos, cont êm á gua,
pel o que o seu si m bol i sm o é dupl o.
Igu al m ent e dupl o é o si m bol i sm o da prai a, e pel as m esm as
raz ões, acr esc ent and o -se o fa ct o de se t r at ar da á gua do m a r.
T udo sai do mar e a ele regress a: lugar de na scime ntos,
transfor mações e re nascime ntos. Água s e m movime nto, o mar
simboliza um e stado transitório e ntre as possibilidades ainda
infor mais
e
as
realidades
for mais,
uma
situação
de
a mbivalê ncia, que é a da incerteza, da dúvida , da indecisão, e
que pode terminar be m ou mal . ”
311
Foi n a p rai a de Bur gau que o corr er am os t rê s epi sódi os ci t ados
at rás ( E LAP / M 6 , E LAP / M 8 e E LAP / M 9). É, t al vez , de sal i ent ar
que, no epi sódi o do “gat arr ão pret o”, est e foi at i rado da fal ési a,
di fi ci l m ent e não cai ndo de nt ro de á gu a.
Al guns m ouros en c ant ados vi vem em covas, grut as, fur nas,
bur acos
de v ári os
t i pos, que t êm
cons i derad a com o desi gna ção
o si m bol i sm o da
gené r i ca
–
“Arquét i po
caverna ,
do út ero
m at erno, a c avern a f i gura nos m i t os de o ri gem , de ren asci m e nt o e de
i ni ci ação de m ui t os povos.”
O
cará ct er
prot e ct or
312
e
ocul t ador
da
caverna
ve ri fi ca -se,
s obret udo, nas se gui nt es si t uações: em L M 34 , J oana, apavorada ,
corre a esconde r os fi l hos “num a grut a próx i m a”; em L M 42 e LM
2 4, a m ul her esconde a sua fort una, dur a nt e os t rês m eses ex i gi dos,
“dent ro de um vaz i o que fi cav a por deb ai x o das m ós de um pequeno
311
312
Idem, p. 439.
Idem, p. 177.
248
m oi nho”; em LM 2 6 , o hom em esper a que anoi t eç a, “ esco ndi do em
um a furna”, pa ra ap anhar uns pei x es vivos; e em L M 28 , “ o pobre
hom em t ransport ou durant e a noi t e t od o s os val ores p ar a o fundo de
um ocul t o barran co” .
A ca verna ta mbé m é considerada como
um
gigantesco
receptáculo de energia , mas d uma e nergia telúrica e não cele ste.
E assim, dese mpe nho u e dese mpenha um pa pel nas operações
mágicas. [...] É propícia às iniciações, ao enterro simulado, às
cerimónias que rodeiam a imposição do ser mágico . [...] Põe em
comunicação o primitivo com as forças ctonianas (divindades
que residem no interior da terra) da morte e da germinação
(AMAG, 150).
313
Em LM 34 , a m oura est á pr esa num a “cova de t err a e ar ei a”;
em LM 35 , a m oura vi ve num pal áci o su bt errân eo, t al com o a m oura
de LM 38 , LM 48 e LM 13 ; em LM 42 e LM 24 , “a cobri nha di ri gi u s e, ent ão, par a o b a rranco ” e “ ent rar am am bas po r um a abe rt ura qu e
havi a na barr ei ra de t erra ” , abri ndo - se um a passagem por onde
apare ceu “um m ouri nho m ui t o engraç ad o”; em L M 59 , ouve -se um a
voz que vem do “ fu ndo do pe go” (cuj as á guas s e t i nham “di vi di do”);
em LM 8 (e LM 52 ), “m et eu -s e a d am a por um a furn a se gui da pel a
l avrador a”, vendo -s e est a “à port a de um pal áci o, e nel e ent rou”,
encont rando -se “ cer cada de di ve rsas pes soas de am bos os sex os, que
s e er gue ram à sua c hegada ” e r econhe c endo “pel os t raj es q ue t i nha
na s ua presen ça m ouros e m ouras enca nt adas”; e em L M 2 1 , “di z a
l enda” que a moura enc ant ada “vi ve n a ci st erna”.
[...] o carácter subterrâneo da caverna é objecto de várias
interpretações secundá rias; abriga os mineiros, os anões, os
guardiães dos tesouros escondidos que são perigosas entidades
313
Idem, p. 178.
249
psíquicas, muitas vezes relacionadas com o as pecto nefasto da
metalurgia.”
314
Em LM 33 , o t esou r o do rei m ouro est á ent err ado e a m our a di z
a Di o go que esprei t e por um a “pequ ena abert ur a na m ar ge m do ri o”;
em LM 38 , LM 48 e LM 13 , “a m oura b at eu com o seu pequ eni no pé
no s ol o por t rês vezes” e, “ao m esm o t em po, abri u -se um a port a pel a
qual am bos ent rara m ”, i ndo dar a um a “am pl a sal a de p aredes e
col unas de ouro m a ci ço”; em L M 42 e LM 24 , o m ouri nho “pedi u à
m ul her que o acom panhasse ao seu pal áci o subt errân eo”, l evando - a
a um a “i m ensa grut a de cri st al de rocha onde vi u am ontoada um a
ri quez a i nfi nda”; em L M 43 e LM 27 , o m ouro “l evant ou um a grand e
l aj e que havi a no c hão”, “pondo a des cobert o um a i m ens a ri quez a
em ouro e j ói as ”; e m L M 44 e LM 25 , com o j á r efe ri m os , o t acho
cont endo o t esouro encont ra -se ent er rad o num det erm i nado l ocal de
um a est rad a l i m i t ada por doi s val ados; em L M 61 , l o go que a m ul her
e o m oi ri nho chega ram ao l uga r “onde apare ci a o t erreno t odos os
di as revol vi do”, “ab ri u -se um a port a” e “foram dar a um a ri quí ssi m a
s al a, forrad a de se da s bordadas a our o”; e em L M 21 , al ude -se a
“grandes e val i osos t esouros” ent er rad os no S erro das R el í qui as,
“ri quez as deposi t ad as na part e subt err â nea do c ast el o”.
[...] O carácter central da caverna faz dela o lugar do
nascime nto e da regeneração; d e iniciação ta mbé m, que é um
novo nascimento, ao qual conduzem as provas do labirinto, que
geralme nte precede a caverna.
315
Há, de f act o, ger al m ent e, um percurso , m ai s ou m enos si nuoso,
m ai s l ongo ou m ai s curt o, com m ai s ou m enos escadari as, ou m ai s
ou m enos mági co , que conduz à cav e rna , especi al m ent e se est a
encer ra um t esouro ou um pal á ci o subt errân eo: em L M 42 (em LM
314
315
Idem, p. 180.
Ibidem.
250
2 4, não é t ão po rm enori z ado) – “Ent r a ram am bos por um a abert ur a
que havi a na bar r ei ra d e t e rra. Im e di at am ent e se l ev a nt ou um a
gr ande l aj e que d ei x ou ver um a m agní fi ca esc ada de al ab ast ro” e,
em se gui da, a m u l her “des ceu as e scadas at rás do m ouri nho.
C hegad a ao fi n al d a es cada ri a, d esem b ocou num a i m ens a grut a de
cri s t al de roch a”; e m L M 44 e LM 25 , a “est rad a que vai d ar ao sí t i o
da R ocha” é o “c a m i nho” que conduz ao t acho ent err ado (t al com o a
“es t rad a
de
Borb a”,
em
LM
32 ,
conduz
à
“m e ni na”
e,
cons equent em ent e, à ri quez a); em L M 46 e LM 11 – “a ssi m que
as s ent ou os pés no fundo, apar ec eu -l he um a enorm e se rpen t e, vi nda
de um bura co qu e c om uni cava pa ra a n ora”; em L M 48 ( em LM 38 e
LM 13 o c am i nho não é t ão l on go) – “ Abri u -se ent ão um a port a pel a
qual ent ra ram , d esc endo em s e gui da u m a esc adari a de m á rm ore qu e
pareci a não t er fi m . E quando chegara m ao fi nal da esca da, J osé
C oi m bra abri u a bo ca de pu ro esp ant o, porque des em boca ra num a
s al a enorm e, de p ar edes e col unas d e ouro m aci ço.”; em L M 61 –
“ Lo go que al i che garam [ ao l u gar ond e apa reci a a t err a r evol vi da
t odos os di as] , abriu -se um a port a e am bos ent raram desc endo por
uns degraus d e fi no j aspe, at é um a sal a , forrad a de seda b ordada a
ouro.”; em LM 59 – “vi ram t am bem que a a gua do pe go se abri ra,
dando assi m f aci l e nt rada á va cca ” e , u m ano depoi s, “a a gua abri u s e, e os ani m aes ent raram ”; em L M 7 , não se che ga a saber o que se
encont ra ri a nos Pal mei ros , m as o rapaz t eri a de t raçar um cami nho
at é l á – “J unge -os ao ar ado e t i ra o r e go d a i gr ej a d e S al i r at é aos
P al m ei ros: um re go sem curvas, o m ai s di rei t o que possas.” ; em L M
8 (e LM 52 ) – “Teri am andado um qui l óm et ro, m et eu -se a dam a por
um a furna s e g ui da pel a l avrado ra. Mo m ent os depoi s vi u -se est a à
port a de um p al áci o , e n el e ent rou i m pe l i da pel a d am a.”; e m L M 21
– os doi s am i gos deduz em , pri m ei ro (“P ort ant o há um a com uni cação
ocul t a”), p ara depoi s concl uí rem qu e “h avi a r eal m ent e com uni cação
do cast e l o par a o pe go”.
251
É a dorm i r sobre a t erra qu e se en cont ra o i ndi ví duo que at i ra o
gat o pel a f al ési a ab ai x o
316
, que depoi s aparec e, no di a segu i nt e, a
s ervi r -l he de t r aves sei ro (em E LAP / M 6). E é da t err a, no S erro de
C anel as, que sa em os doi s m em bros do cas al avi st ado a p a ssear n a
prai a, com roup a gen s ant i gas, vol t ando a ent ra r nel a, d esap arec endo
s em dei x ar si nal (e m E LAP / M 9).
É na t err a, sobret u do nas encruzi l had as , que se dão os maus
encont ros: com bru xas ou f ei t i ceri as , c om medos ou al mas penadas
e at é com l obi some ns . Mas t am bém co m l adrões, que, n ã o sendo
ent i dades m í t i cas, nem por i sso dei x am de povoar o i m agi ná ri o
col ect i vo,
as s ust ador.
repr esen t ando
317
um
peri go
di ferent e
m as
i gual m ent e
E os l obi somens correm “por m ont es e val es” e
“es poj am -se n as enc ruz i l hadas” durant e a m et am orfose.
Lugares epifânicos (lugares de aparições e de revelações)
por excelência, as encruzilhadas são asso mbra das pelos espíritos,
geralme nte a terradores, co m que o ho me m e stá interessado e m
reconciliar-se. Em todas as tradições se ergueram obeliscos,
altares, pedras, capelas e inscrições nas encruzilhadas: são um
lugar que leva m à parage m e à refle xão . São ta mbé m o lugar de
passage m de um mund o para outro, de uma vida para outra, da
vida para a morte.
318
Em E LAP / M 7 , é n um a encruzi l hada q ue a bur ri nha br anc a da
avó do nar rador est aca e se r ecus a a av ançar, at é qu e a do na rez a o
316
Q u a l q u e r falésia está sobre o mar, mas e m Burgau as falésia s são muito
altas, pelo que, se o gato não estivesse já morto, teria morrido aos tombos,
por ela abaixo, ou podia facilmente morrer afogado, a me nos que a maré
estivesse muito vazia, ou nas rochas junto ao mar.
317
Em Burgau, na estrada que liga esta povoação à Estrada Nacional 125,
cha mada “Ra mal de Barão”, com cerca de 2K m de comprimento, existe m
dois locais, a mbos com o aspecto de “barrancos”, e m lados opostos da
estrada, não muito distantes um do outro – a “Cova da Areia” (referida e m
LO2) e a “Cova dos Ladrões” – onde, ainda há poucos anos (antes de terem
sido construídas urbanizações aí perto, e quando ainda havia bastante
vegetação que e ncobria as covas), toda a ge nte tinha medo de passar , pois
era voz corrente que eram albergue de medos e de ladrões.
318
Idem, pp. 283.
252
t ercei ro credo e m c ruz , ouvi ndo, em segui da, um a voz que l he di z
“A t ua fé t e sal vou! ”.
Mas t am bém se dão bo ns encont ros:
Não terá sido por um desígnio de conjuração, de sacrifício
expiatório, de imploração, que o mundo cristão espalhou pelas
encruzilhadas as cruzes, as alminhas, as estátuas da Virgem
Maria e dos santos, os oratórios e as capelas onde, em certos
países, as velas ardem incessantemente? A encruzilhada pode ter,
de facto, um aspecto benéfico: é o lugar onde se reencontra a luz,
onde aparecem também os bons espíritos, as fadas boas, a Virgem
Maria ou os santos.
319
2 . 1 . 2.2. E LEV AÇ ÕES
Encont ram os
vari a dos
graus
de
al t it ude ,
com eçando
pel o
out ei ro :
[ . . . ] a c o l i n a é a p r i m e i r a ma n i f e s t a ç ã o d a c r i a ç ã o d o
mundo: suficientemente saliente para se diferenciar do caos
inicial, não te m a majestos idade da monta nha. Marca o início de
u ma
e mergência
e
da
diferenciação.
As
suas
linhas
doces
har mo niza m-se co m um asp ecto do sagrado que está na medida do
ho me m.
Nas
320
l endas
de
mouras
encant ada s ,
as
el eva ções
t êm ,
frequent em ent e, ob j ect i vos est rat é gi co s, o que n ão é, de m odo
al gum ( at é pel o c ont rári o), i m pedi t i vo da rel a ção que se possa
es t abel ec er com os vári os si m bo l i sm os. É o caso d e L M 40 : os
m ouros, “ gui ados p el o govern ador d e Loul é, t om am a di r ecç ão de
um out ei ro que fi ca sobrancei ro ao sí t i o dos Furadou ros. Do al t o, j á
319
320
Idem, p. 285.
Idem, p. 211.
253
podem ver os sol dados cri st ãos de D. P ai o P eres C orrei a, que se
prepar am t am bém para a l ut a gi gant esca” e, no di a segui nt e, “as
pri m ei ras l um i nosi dades da m anhã b oni t a de P ri m aver a dei x am
des cobri r no out ei r o vi z i nho, um cabeço am pl o e desanu vi ado, os
com panhei ros do fa m oso D. P ai o P eres C orrei a, m est r e da Ordem de
S ant ’ Ia go.”; e o de L M 51 – “ as m ul h eres, ent ret ant o, se gui ram à
frent e, pa ra o ce rro da P ena, onde for a m ont ado um aca m pam ent o
i m provi sado” – e LM 6 : o governador “corr eu por sobre o Serro da
Pena e foi col o car -se no pont o de onde podi a ver os m uros” .
Menos pra gm át i co é o ex em pl o de L M 21 , em que os doi s
am i gos, cum pri ndo um a t radi ção, resol veram “em honr a e l ouvor de
S . J oão, i r t om ar banho em um grande p ego, que ex i st e no serro das
Rel í qui as ”.
P or coi nci dênci a (o u não...), o caso m a i s poét i co é o d e L M 35 :
quando encont rou a m oura, Ant óni o subi a a serra de Monchi que e
“cam i nhav a ao ac as o, esqueci do que t e r i a de vol t ar par a t r á s e que a
noi t e poderi a surpr eendê -l o no cam i nh o. Ia de ol hos per di dos na
l i nha
arredond ada
do
hori z ont e.
Sonhava
coi sas
fan t ást i cas
confusas”.
O simbolismo da mo ntanha é múltiplo: está ligado ao da
altura e d o centro. Na medi da e m q ue e la é alta, vertical,
elevada,
próxima
do
céu,
participa
do
simbolismo
da
transce ndência; na me dida em que é o centro de hierofania s
atmosféricas e de numerosas teofa nias, particip a do simbolismo
da manife stação. Ela é , assim, o encontro do céu
e da terra,
morada dos deuse s e ter mo da ascensão humana. [...]
A mo ntanha e xprime ta mbé m as noções de e stabilidade, de
imutabilidade, por vezes até de pureza.
321
321
Idem, p. 456.
254
e
2 . 1 . 2.3. C ONS TR UÇ ÕES
Mas não é só n a m o nt anha que se procu ram as al t ur as. Tam bém
no cast el o, em L M 39 , “do al t o das a m ei as, o al cai de do cast el o,
Aben - Fabi l l a, ol hav a at óni t o pa ra o ex é rci t o fort e e di sci pl i nado que
s e esprai ava pel a pl aní ci e em frent e ” e, m ai s t arde, “subi u ao pont o
m ai s al t o do m onte onde se refu gi a r a” e, procu rando a fi l ha,
“avi st ou ao l on ge a sua fi gura d el i cad a, bat i da pel os rest os do sol da
t arde, no al t o da t orre do cast el o”; nes se m esm o l ocal , “co m a m ã o
di rei t a t raçou no e spaço o si gno S ai m ão em di re cç ão ao vul t o da
fi l ha. Depoi s di sse um as pal avr as m i st e ri osas – e t udo se c onsum ou
no m esm o i nst ant e...”. Em L M 40 , “que m fi ca de at al ai a n e ssa noi t e
é el e próp ri o, o vel ho gove rnador d e Loul é. Mal conse gue aqui et ar
s uas fi l has, sobe a o pont o m ai s al t o do cast el o. Mant é m -se al i
durant e cert o t em po , t ent ando rom per a escuri d ão com a i n si st ênci a
do s eu ol har. Todo s os seus sent i dos est ão em gua rda, r egi st ando
qual quer porm enor, por i nsi gni fi cant e que pareç a.”. Em L M 51 ,
“t odas as noi t es a m ouri nha de S al i r subi a à m ural ha do al các er,
onde se dem orav a m ui t as horas, vi rada para Me ca, com o que em
êx t ase, i m pl orando ao P ai dos C r ent es m i l bênçãos pa ra o s eu
povo.”; em L M 6 , “ t odas as noi t es subi a nos m uros do cast el o e no
m ai s al t o el evava ao céu os seus form osos ol hos e i m pl o rava de
Al l ah as b ênç ãos p ara o seu povo”. E em L M 21 , “n a p a rt e m ai s
el evada dest e s erro ex i st em ai nda hoj e as rui nas de um c ast el o de
m ouros”.
Símbolo de ascensão e de espiritualização, de assimilação
progressiva àquilo que o céu representa: harmonia n as alturas. A
altura não é só moralizadora , é já também, por assim dizer,
fisicamente moral. A altura é mais que um símbolo. Aquele que a
procura, aquele que a imagina com todas as suas forças da
imaginação, que é o próprio motor do nosso dinamismo psíquic o,
255
reconhece que ela é material, dinâmica e vitalmente moral
( B A C S , 7 5 ) . 322
Os
cast el os
são
sí m bol os
de
prot ecção
e
s e guran ça
por
ex cel ênci a. Aqui , e ssa se guran ça, ex t eri or, é sem pr e am e açad a e
quebrada p el a che ga da dos sol dados port ugueses, e é a prot ecç ão da
“t ransc endênci a do espi ri t ual ” que se m ant ém , o “poder m i s t eri oso e
i nacessí vel ” de um conheci m ent o que nunca che ga a ser re vel ado,
part i ndo para Áf ri ca com os seus det entores, que dei x am at rás de si
a prova vi va de se gredos nunca desven dados. Encont ra m -s e em LM
3 3, LM 39 , LM 40 , LM 49 , LM 50 , LM 51 , LM 53 , LM 3, LM 6 , LM
1 0, LM 16 ( “um pré di o acast el ado ”), L M 17 e LM 21 .
Na realidade, bem como nos contos e nos sonhos, em
geral o castelo situa-se em lugares altos ou na clareira de
uma floresta: é um edifício sólido e de acesso difícil. Dá
uma sensação de segurança, como a casa em geral, mas
uma
segurança
de
um
grau
elevado.
É
um
símbolo
de
protecção.
Mas a sua própria situação isola-o um pouco no meio
dos campos, bosques e colinas. O que ele encerra está
separado do resto do mundo, toma um aspecto longínquo,
tão inacessível quanto desejável. Por isso o castelo figura
e n t r e o s s í m b o l o s d a t r a n s c e n d ê n c i a : [ . . . ] 323
Há r efe rênci as aos muros ou às mural has dos cast el os em L M
5 1 (“subi a à m ural h a do al các er”, “ a fi l ha que dei x ara i nvi sí vel na
m ural ha do al cá cer de S al i r” e “p ena e ncant ada nos r est os do m uro
do vel ho al cá cer ”) e L M 3 (“subi a nos m uros do cast el o”, “fi ca ra
s obre os m uros em oração ” e “no pont o onde podi a ver os m uros”).
E a out ros muros em LM 50 (o carpi nt ei ro “sent ou -se en c ost ado ao
m uro”), em L M 5 3 (“F át i m a, a m oura enc ant ada, enco st ada ao
322
323
Idem, p. 58.
Idem, p. 168.
256
ga r gal o do poço ”) e em L M 3 (“se gu r a pel as m ãos ao ga rgal o da
font e, um a form osí s si m a m ul her”).
A muralha, ou a grande muralha, é tradicionalme nte a
cintura protectora que encerra um mundo e evita que nele
penetrem as influências nefastas de origem inferior. Tem o
inconveniente de limitar o domínio que ela encerra, mas a
vantagem de garantir a sua defesa, deixando, além disso, a via
aberta à recepção da influ ência cele ste.
[...] Chegaría mo s, assim, ao significado mais funda mental
do
muro:
separação
perma necera m;
entre
ir mãos
exilados
e
separação-fronteira-propriedade
aqueles
entre
que
nações,
tribos, indivíduos; separação entre famílias; separação entre
Deus e a criatura; entre o soberano e o povo; separação entre os
o u t r o s e e u . 324
Assi m com o “a casa est á no cent ro do m undo, é a i m agem do
325
uni verso”
e repres ent a um a cert a r el a ção com as suas for ças (“é
t am bém um sí m bolo fem i ni no, no sent i do de refú gi o, de m ãe , d e
prot ecç ão,
de
sei o
m at ernal ” 326),
t am bém
o
pal ác i o
t em
uma
cons t rução “suj ei t a às l ei s d a o ri ent a ção , qu e o i ns crev em num a
ordem
cósm i ca”,
acres cent ando
“ as
m agni fi c ênci a, o t e souro e o segredo”
preci sões
327
que
evocam
a
, i ngredi ent es que est ão
s obej am en t e pres ent es nest as l endas, no s seus abundant es p al áci os ,
quer t érr eos, que r subt errân eos.
O palácio é a morada do soberano, o refúgio das riquezas, o
lugar dos se gredos. Poder, fortuna, ciência, e le simboliza tudo o
que escapa ao co mum dos mortais. [... ] O palácio aparece,
portanto, ao mesmo te mpo co mo produto e fonte da har monia,
har mo nia ma terial, har mo nia individual, har monia social.
324
325
326
327
328
328
Idem, pp. 463 e 464.
Idem, p. 165.
Idem, p. 166.
Idem, p. 501.
Ibidem.
257
S e pensarm os que o cent ro do pal áci o t a m bém é um “ei x o”, que
“reúne
os
t r ês
veri fi cam os
ní vei s:
que
o
subt errâneo,
pal áci o
t errest re
subt errâneo
e
adqui re
cel e st e ”
um a
329
,
dupl a
s i gni fi ca ção.
O ex em pl o que m el hor i l ust ra a m agni f i cênci a e a harm oni a é o
úni co pal áci o t érreo descri t o em porm enor, o de L M 54 que, com o
t odos os pal á ci os m uçul m anos, é rod eado d e j a rdi ns, ev o cando o
Éden: “Vi vi a [ Di norah] num bel í ssi m o pal áci o de m i l col unas fi nas
de m árm or e rosa e vent anas de fi l i gr ana d e m ad ei ra, ro deada de
cox i ns de sedas col ori das e m aci as com o um roçar de as a d e pom ba.
J ardi ns de m aravi l ha, onde bai l avam ex ót i cas danças f l ores de t odo
o m undo, havi am sido pl ant ados para e ncant ar os seus ol ho s negros .
R i achos
t ranspa ren t es
rum orej ar
de
m ú si ca
s al t i t avam
const ant e. ”
de
cal hau
em
cal h au
num
Encont ram os,
ai nd a,
um a
“res i dên ci a ap al aç a da”, em L M 41 , e “ um est ranho p rédi o al t o”, em
LM 43 e LM 27 , a que é confer i do o t í t ul o de “O P aláci o sem
P ort as”.
Ai nda
no
âm bi t o
das
const ruções ,
em bora
não
est ej a
di rect am ent e r el aci onado com o pal áci o, t em os o moi nho , sí m bol o
de t ransfo rm ação e de r eor gani z aç ão , pel a própri a nat urez a da
act i vi dade de qu e é faci l i t ador. A m ou ra Fl ori p es, de L M 37 , est á
encant ad a num m oi nho, e é t am b ém n um m oi nho que a m ul her de
LM 42 e LM 24 esconde, dur ant e t rês m eses, as ri qu ez as que l h e
dera o m ouri nho.
P al áci os
subt errân eos
encont r am -se
em
LM
35 ,
LM
36
(“pal á ci o que há po r debai x o do ri o”), L M 38 , LM 42 , LM 46 (“est a
nora, onde m andei c onst rui r o t eu p al ác i o”), L M 48 , LM 52 , LM 53
(“pal á ci o enc ant ado ”), LM 8 , LM 11 , LM 13 , LM 17 e LM 24 .
Tal vez m ai s pequ en a ou m enos grandi os a, m as t am b ém subt errân ea e
não m en os sum pt uosa, é a sal a ap al açada de LM 6 1 : “um a
ri quí ssi m a sal a, forr ada de sed as bord ad as a ouro”.
329
Idem p. 501
258
O acesso com pre en de, por vez es, um a escadari a (em LM 38 ,
LM 42 , LM 48, LM 61 , LM 13 e LM 24 ) :
A e scadaria é o símb olo da progressão e m direcção ao
saber,
da
ascensão
em
direcção
ao
conhecimento
e
à
transfiguração. [...] quando penetra no subsolo, trata -se do saber
oculto e das profundidades do inconsciente. [...] Participa do
simbolismo do eixo do mundo, da verticalidade e da espiral. [ ...]
Co mo todos os sí mbolos deste tipo, a escadaria també m se
reveste de um aspecto negativo: a descida, a queda, o regresso ao
terra-a-terra
e
até
mesmo
ao
mundo
subterrâneo.
Porque
a
escadaria liga os três mundos cósmicos e presta -se tanto à
regressão co mo à a sce nsão; a escadaria resume todo o dra ma da
verticalidade.
Dos
330
cast el os
aos
pal áci os
subt err âneos,
p assando
pel as
m ural has e pel as esc adari as, r essal t a a i dei a de re ci nt o :
Trata-se
essencialmente
de
um
lugar
fechado
de
uma
maneira qualquer (muro, fosso ou paliçada). [...]
O
recinto
é
o
símb olo
da
reserva
intransponível, excepto para o iniciado.
sagrada,
do
lugar
331
2 . 1 . 2.4. OS TES OUR OS
Nest es pal áci os e n out ros l ocai s subt errâneos j á m enci ona dos,
encont ram -s e escon di dos os t esouros , e é che gad a a a l t ura de
rel aci ona r a sua bu sca com o percurso necessá ri o para al c ançá -l os
(j á i gu al m ent e r efer i dos):
330
331
Idem, p. 292.
Idem, pág. 772.
259
O tesouro oculto [...] é o símbolo da Essênc ia divina não
manife stada. É ta mbé m do conhecime nto esotérico. [...] De uma
for ma geral, est es tesouros são símbolos do c onhecime nto, d a
imortalidade,
dos
depósitos
espirituais,
que
só
uma
busca
perigosa per mite alca nçar . São, por fi m, gua rdados por dragões
ou por monstros, imagens das perigosa s entidades psíquicas , de
quem se
corre
qualificações
o
e
risco
as
de
ser
precauções
vítima,
se
não
necessárias
tiver mos
(CORT,
as
GUER,
MALA).
O tesouro está, geralmente, no fundo das cavernas ou
enterrado
em
dificuldades
subterrâneos.
inerentes
à
Essa
sua
situação
procura,
mas
simboliza
sobretudo
as
a
necessidade de um e sforço huma no. O teso uro nã o é um do m
gratuito do céu; é descoberto no final de longas provações. O que
confir ma que o te souro oculto é de natureza moral e espiritua l e
que
as
provações,
te mpestades,
com
os
os
co mbates
com
salteadores
da
os
mo nstros,
estrada,
são,
com
as
como
os
próprios obstáculos, d e ordem moral e esp iritual. O teso uro
oculto é o símbolo da vida interior e os mo nstros que o guarda m
não são mais do que aspectos de nós mesmos.
332
Todos os t esouros present es n est as l e ndas est ão “o cul t os”. E
t odos ex i gem um a “prova çã o ” que, em ger al , co rres ponde ao
cum pri m ent o dos pr ecei t os ex i gi dos p ar a os d esenc ant am ent os. Nem
t odos est ão, cont udo, em l ocai s subt err âneos, com ou sem águ a, ou
s i m pl esm ent e “ent er rados” ( com o em L M 33 , LM 34 (dedu z -se), LM
3 5, LM 36 , LM 38 , LM 42 , LM 4 3 , LM 44 , LM 48 , LM 53 , LM 59 ,
LM 60 (d eduz -se t a m bém ), LM 61 , LM 13 , LM 17 , LM 21 , LM 24 ,
LM 25 e LM 27 ) – em LM 45 , é a broa que, ao ser p art i da, se
t ransform a em “peç as de ouro”; em L M 47 e LM 12 , a “c ai x a chei a
de di nhei ro” est á no fundo do ri o; em L M 7, não se sabe, ap enas que
“um a gr ande porç ão de dob rões em ou r o” sal t ou d e um a p edra que
rebent ou, m as não e ram est as as “ri que z as de m ui t o m ai s val or [ do
que um pent e de ouro] ” que est avam prom et i das; em L M 26 , os doi s
332
Idem, pp. 643 e 644.
260
baús com as “ri quez as” foram l anç ad os na “fo guei r a”; e, em L M 28 ,
“os doi s baús chei o s de ouro e p edras preci osas” saí r am “ das á guas
da font e”.
S ej a qual fo r a i nt erpret a ção que q ui serm os dar -l h es, os
t es ouros são, i ndi sc ut i vel m ent e e em q ual quer d as si t uaçõ es, um a
r ecompensa . E é po r i sso que se t r aduz em , vul garm ent e, e m ouro e
pedr as preci osas (t r abal hadas – as j ói as – ou não).
No conhecimento secreto , a jóia (bijou), feitas pelas suas
ge ma s de luz e pelo s se us metais – principalmente o ouro
inalterá vel , da matér ia ma is amadurecida no sentido alquímico
do termo, torna-se a expressão da energia primordial, saída do
ventre da terra, ctoniana, portanto, [...] as jóias e as suas pedras
preciosas, que tantos mitos e lendas ligam ao dragão e à serpente
estão, pois, carregadas d e um se gredo de imortalidade , que não é
divino, mas sim, ligad o às entranha s deste mundo, […]
Pelas
sua s pedras, pelo seu metal, pela sua for ma, as jóias simboliza m
o conhecimento esotérico. [...] Tendem a passar do plano do
conhecime nto secreto ao da energia primordial: pois são energia
e luz.
333
Em LM 33 : “ Tant as j ói as! Tant o ou r o! Tant a ri quez a!”; em
LM 34 : “t odo o oi ro que t e prom et i ”; em L M 38 : “um a sal a enorm e
chei a de ouro por t odos os l ados”, “de st e pal áci o e de t od o o ouro
que el e possui ”, “pegou em duas ba rras de ouro e de u -as ao
al m ocreve ”; em LM 45 (e LM 31 ): “pa r t i ram a broa e, est a rreci dos,
vi ram -na desf az er -s e em peças d e our o”; em L M 48 (e LM 13 ):
“pos sui r est e pal áci o, em que o ouro que vês é o que m enos val or
t em ”, “di sse -l he at é que l evasse j á cons i go d uas bar ras de o uro”; em
LM 43 : “um a i m ensa ri quez a em ouro e j ói as”; em L M 53 e LM 17 :
“o ouro, a prat a e a s pedrari as”, “fi gos de ouro qu e ofe re c erá, b em
com o as out ras ri quez as”; em L M 61 ): “m ui t os cofres a t ra nsbordar
de ouro e p edras p reci osas”; em L M 7: “sal t ando par a o ar um a
333
Idem, p. 389.
261
gr ande po rção de dobrões em ou ro ” (ai nd a que est e s t enham
des apar eci do, d evi do à am bi ç ão do r a paz , e não const i t uí s s em o
t es ouro prom et i do); e em L M 28 : “doi s baús chei os de ouro e pedras
preci osas”.
O ouro, c onsiderado na tradi ção co mo o ma is precioso dos
metais, é o meta l perfe ito. [...] T em o brilho da luz; [...] T em o
carácter ígneo, solar e real, e até divino. Nalguns países, a carne
dos deuses é feita de ouro; [...]
Além disso, é preciso recordar, a propósito de perfeição, o
carácter primordial da Idade de ouro tradicional, enqua nto q ue a s
idades seguintes (de prata, bronze e ferro) indicam as etapas
descendentes do ciclo.
Na tradição grega, o ouro evoca o
simbologia :
fecundidade-riqueza-dominação,
Sol e toda a sua
centro
a mor-do m, fo go de luz-conhecime nto -irradiaçã o .
de
calor-
334
Mas, com fr equên ci a, o t esouro ou, pel o m enos, um a pa rt e del e,
cons i st e em di nhei ro : em LM 42 : “um a ri quez a i nfi nda, co m post a de
m oedas e di v ersas peças de ou ro e prat a e b aús de pedra s
preci osas.”; em LM 44 : “o t acho do o uro”, “a cobri r o d i nhei ro”,
“t odo o ouro do t a c ho”; em L M 47 , L M 59 e LM 12 : “u m a grand e
cai x a chei a de di nh ei ro em ouro”; em L M 7 : “S e nos des e ncant ar es,
d o u-t e di nhei ro p ar a com pr ares m ui t os pent es”; em L M 2 1 : “num a
cai x a de m ade i ra, cont endo t rez ent a s barras de ouro, de oi t o
ar r at ei s cada barr a, e um a j oei ra de m oedas do m esm o m et al .”; em
LM 24 : “am ont oada em cofres de oi ro t ant a ri quez a em dinhei ro e
pedras pre ci osas”; em L M 25 : “um tacho chei o de di nhei ro em
ouro”, “o di nhei ro de que o t acho est a va chei o”; em L M 26 : “nos
doi s baús e vi u -os a t ransborda r de m oedas, bar ras de ou ro, j ói as
preci osí ssi m as, di a m ant es de gr ande val or, esm er al das de pre ço
i ncal cul ável , rubi s e out ros v al ores de subi do pre ço.”; em L M 27 :
“um a gr ande po rç ã o de di nhei ro em o uro, e d e j oi as de ex cessi vo
334
Idem, pp. 495 e 496.
262
val or.”; e em L M 32 : “per gunt ou -l he se queri a ser ri ca, [ ...] poi s el a
l he dari a t odos os di as 500 réi s par a as c om prar.”.
Mas o ouro é um teso uro a mbivale nte. Se o ouro -cor e o
ouro-meta l
puro
são
símbolos
solares,
o
ouro-moeda
é
um
símbolo de perversão e de exaltação impura dos desejos (DIES,
172),
uma
materia liz ação
do
espiritual
degradação do imortal e m mortal.
e
do
estético,
uma
335
As moedas , quas e sem pre ref eri das com o sendo d e ouro,
m ant êm , nest e cont e x t o, essenci al m ent e, o si m bol ism o do seu val or
(“É que as m oeda s ant i gas [ ...] era m carr e gadas d e s í m bol os,
part i ndo de i nfl uênc i as espi ri t uai s. Ex i st i a, port ant o, um cont rol o da
aut ori dade
espi ri t ual
sobre
concep ção
pur am e nt e
o
v al or
quant i t at i va”,
das
m oedas,
que
“m ar ca
evi d ênci a o esqueci m ent o do si m bol i sm o”
337
[ ...] ” 336),
co m
t oda
“a
a
, ai nda que m ant endo,
event ual m ent e, o do própri o ouro.
Apenas em duas l en das, “O P oço do Vaz Varel a” ( L M 53 e LM
1 7) e um a versão d’ “A C obri nha do Barr anco ” ( L M 42 ), se fa z
refe rênci a à prat a (“Que nunca à m i nh a fi l ha fal t em os víveres, o
ouro, a prat a e as p edrari as no seu pal áci o enc ant ado.” e “di versas
peças de ou ro e p rat a”, resp ect i vam ent e ) :
T radicionalme nte, co m efeito, por oposição ao ouro, que é o
princípio a ctivo, masculino , solar, diurno, ígneo, a prata é
princípio passivo, feminino , lunar, aquoso, frio. A sua cor é o
branco, sendo o a mare lo a do ouro. [...] O seu no me e m la ti m,
argentum,
deriva
de
um
vocábulo
sânscrito
que
significa va
branco e brilhante. Nã o será por isso de admirar ver este me tal
ligado [à] dignidade real. [...] Segundo os mitos egípcios, os
335
336
337
Idem, p. 496.
Idem, p 454.
Ibidem.
263
ossos dos deuses eram feitos de prata, enquanto que a sua carne
era de ouro (POSD, 21).
338
Opost o aos t esouros , m as di rect am ent e associ ado, est á o c a rvão
– o s fi gos que as m eni nas ofer ecem , t r ansform am -s e em o uro; m as,
em s e gui da, conseq uênci a d a am bi ç ão, da curi osi dad e ou d a i ncúri a ,
podem vol t a r a t r a nsform ar -s e, dest a vez não em com i da , m as em
carvão. S e, por um l ado, no Al garve o carvão é esp eci al m e nt e út i l
para a prep ara ção da al i m ent aç ão, vi st o a orl a cost ei ra t er si do
s em pre habi t ad a po r pesc adores, nest e s epi sódi os, o que real ç a do
carvão é a sua i nut i l i dade par a quem o rec ebe, qu e m ai s não sej a ,
por oposi ção ao ouro que era cobi ç ado, e por repr ese nt ar um
cas t i go.
Símbolo do fogo escondido, da energia oculta ; a força do
Sol roubada pela terra está enterrada no seu seio; reserva de
calor. […] O carvão negro e frio, representa só virtualidades:
precisa de uma ce ntelha, de um contacto co m o fogo, para rev elar
a
sua
verdadeira
natureza.
Realiza,
então,
a
transmutação
alquímica do ne gro e m ver me lho. É uma vida extinta q ue nunca
poderá reacender-se por si mnesma, se continuar negro.
339
2 . 1 . 2.5. T IP OS DE C ONT IN ENTES DOS TES OUR OS
Quase
t odos
est es
val ores
se
en co nt ram ,
com o
t i vem os
oport uni dade de ve r i fi car, dent ro d e arc as , cai xas , baús , cof res :
Símbolo fe minino, inte rpretado como uma rep resentação do
inconsciente e do corpo materna l , a caixa conté m se mpre um
segredo: encerra e separa do mundo o que é precioso, frágil ou
338
339
Idem, p. 541.
Idem, p. 165.
264
te mível. [...] Paul Die l liga e s te símbolo [c aixa de Pandora] à
e x a l t a ç ã o i ma g i n a t i v a q u e e m p r e s t a a o d e s c o n h e c i d o e n c e r r a d o
na caixa todas as riquezas dos nossos desejos e vê nele o poder
ilusório de os realizar: origem de tantas desgraças! [...] Quer a
caixa seja ricame nte orna me ntada ou muito simples, ela só te m
valor simbólico pelo seu conte údo, e abrir uma caixa implica
se mpre correr um risco (LOEF).
340
Em LM 40 , LM 50 e LM 3 , são os t r ês pães (qu e, de c ert a
form a, são m ai s v al i osos que t odos os t e souros) que s e en cont ram ,
pri m ei ro, dent ro de um a “cai x a”, no quart o do ex -gove rn ador (em
LM 40 , “o vel ho a bre um a a rc a, e del a ret i ra um a c ai x a com t rês
pães ”), e d epoi s s ão col oc ados pel o carpi nt ei ro d ent ro de “um a
vel ha ar ca ”; em L M 50 e LM 3 , o carpi nt ei ro “t ant as v ez es” abri u a
cai x a para “observ a r os t rês pã es”, qu e despert ou a curi osi dade da
m ul her que, em LM 40 e LM 3 abre a c ai x a duas vez es (em L M 40 ,
s ó um a, poi s não chega a i nt erp el ar o m ari do), caus ando a desgraç a
de C ássi m a (e quas e a sua).
Tal com o o si m bol i sm o da cai xa , “o si mbol i sm o do cofre ap oi a s e em doi s el em en t os: o fa ct o d e aí se d ep osi tar um T esou ro
m at eri al ou espi ri t u al ; o fact o d e a abe r t ura do co fre se r eq ui val ent e
a um a rev el açã o .”
341
Ora, com o “ a R evel ação di vi na não po de ser
l ev i anam ent e d es ve ndada ”, “o cof re n ão pode se r ab ert o senão à
hora provi den ci al m ent e pret endi d a, e só po r aquel e qu e possui
l egi t i m am ent e a ch ave”
342
. Dest a du al i dade si m ból i ca dão cont a
es t as l endas: os t es ouros m at eri ai s gua rdados e dest i nados apenas
àquel e s que, depoi s de subm et i dos a al gum a p rova, m ost ra ssem ser
m erec edores da re c om pensa, que consi st e na ri quez a, m as t am bém
na r evel aç ão qu e a acom panha, nem qu e est a consi st a “ap enas ” no
fact o de, ao cont act arem com o d esen c ant ado , t om arem i gual m ent e
cons ci ênci a da ex i st ênci a e da v era ci dade dos en cant ame nt os , em
que al guns não ac redi t am , t ornando -s e, assi m , de c ert a form a,
340
341
342
Idem, p. 144.
Idem, p. 209.
Idem, p. 210.
265
t am bém , i ni ci ados , após t erem t om ado part e d e um qual qu er ri t ual
cuj a ori gem i gno ra m , m as de qu e fo r am part i ci pant es, a i nda que
ex t eri or es e d esconh ecedor es das for ças que o envol v em – “ A Arc a é
um s í m bol o do cofre do t esouro, t esour o de conheci m ent o e de vi da.
343
É pri ncí pi o de conservaç ão e de ren asc i m ent o dos seres.”
vez
que
o
conheci m ent o
é
um
processo
. E uma
i rreve rsí vel
e
com
cons equê nci as que nem sem pre v ão ao encont ro dos nossos desej os,
al guns i ni ci ados – os que não “ possuem l egi t i m am ent e a chave ”,
i s t o é, os que prova ram não ser cap az e s, por qual qu er raz ã o, de se
s ubm et erem às prov ações ex i gi das – sã o cast i gados (c om doenças,
m ut i l ações di versas ou at é com a m ort e), por t er em t i do acesso ao
cof r e
e
não
o
t erem
des conheci m ent o
abert o ,
assi m
i ndescul pável
d est a
com o
aquel es
i ncapa ci dade,
que,
por
re vel aram,
i ndevi dament e, o se u cont eúdo (com “ e ncant am ent os r edob rados”).
2.1.3.
O FOGO
O f o g o , n o s r i t o s i n i c i á t i c o s d e mo r t e e r e n a s c i m e n t o ,
associa-se
ao
seu
princípio
antagónico,
purificação pelo fogo é comple me ntar da
no
plano
microcósmico
(ritos
a
Água.
[...]
a
purificação pela água,
iniciáticos)
e
no
plano
macrocósmico [...] .
O fogo é ta mbé m, ne sta perspectiva, na medida em que
queima
e
co nso me,
regenerescência.
um
símbolo
de
purificação
e
de
344
No corpus an al i sa do, aquel e que no s pare ce s er o m e l hor
ex em pl o de puri fi ca ção pel o fo go é o a ct o de quei m a r as r oupas do
l obi somem para ac abar co m o seu “f adári o”. Quant o às m ouras
encant ad as, a úni ca l enda em que um a m oura é en cant ada no fo go
343
344
Idem, p. 81.
Idem, pp. 332 a 333.
266
(“em l abar eda” ) é “O Forno da C al ” ( L M 26 ) e a si m bol ogi a do
“forno” reúne o que foi di t o at rás par a a águ a e p ara o fo go:
O
simbolismo
do
forno
[...]
provém
dos
rituais
da
metalurgia [...].
A fundição, a esmaltage m,
a olaria e a
Grande Obra
alquímica são q uer casa mentos do yin e do yang, da água e do
fogo, da Terra e do Céu, quer retornos ao útero, regressões ao
estado e mbrionário tendo e m vista um no vo nas cime nto. O
fornilho é o cadinho onde se elabora a união, o seio materno,
onde se prepara o ren ascimento . O no me de seio mate rno era
expressamente
europeus.
dado
ao
forno
dos
antigos
esmaltadores
345
Mas o fo go t am bé m pode ser de d e st rui ção, “obs cure c e e
s ufoca com o fum o; quei m a, devor a e d e st rói : o fogo d as pai x ões, do
cas t i go e da guer ra” . 346 Em LM 51 , o fo go ex erce a fun ção de m eio
de com uni caçã o e si m bol iz a, para os m ouros, a dest ruição e a
gue rra:
“as
at al ai a s rec eber am
o al arm e, pel as fo gue i ras das
al m en aras m ai s pró x i m as”. Em L M 46 e LM 11 , o desen cant ador ,
t om ado de “um pâni co sem nom e” ao ve r um a enorm e serp e nt e, foge
“a s et e pés”, sem consum ar o desencan t am ent o cuj o processo t i nha
i ni ci ado, e fi ca s abendo, di as depoi s, “que a cab ana por el e
cons t ruí da fora qu ei m ada i nex pl i cavel m ent e, em cert a noi t e de
l uar”. A m oura de Al goz ( L M 34 ), a úni ca com um cará ct er
t ot al m ent e m al éfi co , surge do fo go e de sapare ce “desf ei t a e m fum o”
e, quer p el a sua e x i gênci a, que r pel o cast i go at roz que prom et e,
quer ai nda pel a fo r m a com o é venci da “pel a C ruz do S enhor”, é
conot ada com o própri o S at anás. Ai nda em L M 26 , após t erem si do
proferi das as pal avr as do encant am ent o, “sai a do forno um a grand e
fum arad a, que po r m ui t o t em po quase sufocou o cu ri oso o bservador
des t a c ena com ove nt e”, e “quando o fum o se di ssi pou, est ava o
345
346
Idem, p. 336.
Idem, p. 333.
267
forno abat i do, apa gad a a l abared a; e m ul as, caval ei ro e cri ado
t i nham desapa reci d o com o se t i vessem si do l evados ou a r rast ados
pel o fum o do forno ” – conform e a si m bol ogi a, “ o fum o é a i m a gem
das rel a ções ent r e a Terra e o C éu”.
347
P orém , para desen c ant ar a m oura en can t ada no fogo é prec i so
“que haj a ou apare ça al gu ém que faç a vi r aqui as água s de m ar
s al gado ” ( L M 26 ): S e o mar , só por si, “é sí m bol o da di nâm i ca da
vi da” (com o j á m eni onám os) , mar sal gado acum u l a o si m bol i sm o do
s al :
[...] um fogo libertado das águas, ao mesmo te mpo quint a essê ncia e oposição. [...] O sal é ao mesmo te mpo conser vador
dos alime ntos e destr uidor p or corrosão. Por isso, o se u símbolo
aplica-se tanto à lei das transmutações física s como à lei das
transmutações
morais
resultante
o
e
e
espirituais
equilíbrio
das
(Devoucoux).
propriedades
[...]
dos
é
a
seus
c o mp o n e n t e s . [ . . . ] s i m b o l i z a t a m b é m a i n c o r r u p t i l i d a d e . [ . . . ]
Entre os Gregos, co mo entre os Hebreus ou os Árabes, o sal
é
o
símbolo
compartilhado,
indestrutível.
da
e
da
amizade,
palavra
da
dada,
hospitalidade,
porque
o
seu
porque
sabor
é
é
348
Encont ram os duas a l usões a l arei ras , obvi am ent e dent ro d e
cas a, em E LM O 1 e em LM O 2, qu e rem et em pa ra a i de i a do
confort o do l ar (e m bora o “hom em j á de i dade avan ça da” d e
E LM O 1 vi vesse so z i nho ), que a m ort e vem dest rui r (ou t ent ar,
poi s não sabem os se t erá l evado o hom e m de E LM O 1).
Símbolo da vida e m comum, da casa, da uniã o do ho me m e
da mulher, da conjugação do fogo e do seu receptácul o. Enquanto
centro solar que aproxima os seres, pelo seu calor e pela sua luz
– que é ta mbé m o lugar onde se cozinha a co mida – é o centro de
347
348
Idem, p. 453.
Idem, p. 582.
268
vida, de vida dada, conser vada e propagada. O lar foi ta mbé m
se mpre honrado e m tod as as sociedades; tornou -se um sa ntuário,
sobre o qual se pede a protecção de Deus, […].
2 . 1 . 4.
349
O AR
S e ex cept uarm os as l endas em qu e se desconhec e o el em e nt o
em que mouros e m ouras foram en cant ados, rest am -nos aq uel as em
que o en cant am ent o se deu dent ro ou f ora de c asa, em rep ouso ou
em m ovi m ent o, mas no el em ent o nat ural , o
ar , “sí mbol o de
es pi ri t ual i z ação”, q ue “repr esent a o m undo s u b ti l i nt erm edi ári o
350
ent re o céu e a t erra ”
. P aradox al , porque i nt erm édi o, “o el em ent o
ar, di z S ão Ma rt i nho, é um sí mb ol o s e n sí vel d a vi d a i n visí vel , um
mób i l u n i versal e um p u rif i cad or [ ...] . O ar é o m ei o própri o da
l uz , do v o o, do perfum e, da cor, das vi brações i nt erpl an et á ri as; é a
vi a de com uni ca ção ent re a t e rra e o c éu .”
351
Mas depoi s de d es encant ad as, as mou ras , quando saem das
águ as, é sem pr e nu m est ad o vol át i l , qu e de hum ano só t em o aspect o
ex t eri or, “evol ando - se” (“ O ser aér eo é l i vre como o ar e, l onge d e
s er evaporado , pa rt i ci pa, pel o cont rári o, das propri edades su b t i s e
puras
do
ar.” 352)
e
desapar ecendo
em
segui da
(r el at a m
as
t es t em unhas, quand o as há).
É est e ar qu e o c arp i nt ei ro de Loul é at r avessa, t r ansform ad o em
águi a, quando sal t a por ci m a do al gui da r com águ a, ao m esm o t em po
que at rav essa o Med i t errâneo.
É t am bém nest e ar que se desl oc a o cas al avi st ado a pass ea r na
prai a de B ur gau ( “t ão l evem e nt e que m al pareci a pi sarem os pés na
arei a húm i da ”) e qu e “ent r a” no S e rro de C anel as, e t am bé m o gat o
que reap ar e ce d ebai x o da cabeça do s eu pre sum í vel assassi n o.
349
350
351
352
Idem,
Idem,
Idem,
Idem,
p. 399.
p. 77.
pp. 77 e 78
p. 78.
269
Mas, sobret udo, é por onde p assam a s bruxas , com ou sem
vas s oura, “po r ci m a dos si l vados”.
E che gam os, m ai s u m a vez , à concl us ã o de que, nat u ral m e nt e,
os
el em ent os
est ã o
t odos
l i gados
e nt re
si ,
ai nda
que
sej am
di ferent es, e que est es seres os pa rt i l ham quase sem pre, du m a form a
ou de out r a (de ent r e as associ a ções po ssí vei s, só não é fre quent e a
rel aç ão ent r e a á gu a e o fo go, por raz õe s óbvi as – m as m esm o assi m ,
encont ram o -l a n’ “O Forno da C al ”).
2.2. OUTROS MOTIVOS
P ara al ém dest es , a s l endas est ão r epl et as de out ros m ot i vos
s i m ból i cos, o que c onst i t ui um a das su as ori gi nal i dades, j á que nos
depara m os com um a si mbi ose de t rad i ções, ou sej a, m ot i vos de
ori gem an cest ral i gu al m ent e usados por cri st ãos e por m uçul m anos e
com si m bol i sm os que podem os consi d erar, no m í ni m o, am bí guos.
Não se conse gue p erceb er, n a m ai ori a das vez es, se s e t rat a da
apr opri açã o de sím bol os i sl âm i cos por part e dos cri st ãos, se de
s í m bol os cri st ãos por part e dos m uçul m a nos. P rovavel m ent e, am bas,
res ul t ado
de
um a
rel i gi osi dad es, de
m út ua
quem
assi m i l açã o
de
cr enças,
rel i gi ões
vi veu sécu l os part i l hando um
e
m esm o
es paço. Ou, ent ão, o ut ras i nfl uênci as ai nda:
A língua, ou os seus dialectos originais, os deuses, bem
como os seus mitos e lendas, as tradições oraois, os motivos
iconográfico s, co mo e spirais, círculos o u cruzes, os se us carros
de rodas, certo tipo de jóias – como os torques e as viria –, ou os
vasos de cerâ mica o u de metal – co mo os caldeirões – são, afinal,
a grande parte dos seus ve stígios e os ele mentos tidos por
célticos pelos historiadores. E é no â mbito dessa descrição
270
cultural que ressalta m mais contradições e que a s explicações
dos autores «tradiciona is» não satisfaze m.
353
Dada a pro fusão d e m ot i vos present e s nest as l end as e a sua
i nt erl i ga ção, de ci di m os agrup á -l os de acordo com as rel açõ es
com uns ex i st ent es ent re si , e t rat ado s, depoi s, i ndi vi dual m ent e,
quando nec e ssári o.
2 . 2 . 1. A LIMENTOS
A úni ca l enda em q ue a água ap are ce c om o al i m ent o é L M 28 ,
com a ori gi nal i dade de ser al i m ent o da sal sa – “at é que haj a quem
nes t e sí t i o sem ei e sal sa r e gada com á gua do m aná, cresç a e
fl oresça ”. Out r a c uri osi dade é qu e não se t rat a de u m a água
qual quer , m as espec i al , “do m aná”:
Este alimento providencial, de que o livro do Êxodo nos
conta que os Israelitas benefic iara m mila grosa mente d urante
quarenta anos no deserto ( 16), foi desde o princípio o suporte
sonhado duma elaboração simbólic a. [...]
Alimento celeste, o maná pode ser o trigo do céu e o pão
dos anjos (Salmos,78, 24 s.).
A
ex pressão
“á gu a
354
do
m an á”
é,
obvi am ent e,
di fí ci l
de
des codi fi ca r e asso ci ada a qual qu er v i rt ude di vi na: “Vi u l ogo o
pobre
que
a
pal avra
m aná
dev eri a
ser
t om ada
em
sent i do
cabal í st i co”, de m odo que “foi à próx i m a i gr ej a e p edi u a o pároco
l he benz esse um a boa vaz i l ha chei a de águ a” (“ A bênção si gni fi ca
um a tran sf erên ci a d e f orças . Aben çoa r quer di z er, na re al i dade,
s ant i fi car, f azer san t o pel a pal avra , i st o é, ap rox i m ar do s ant o , que
353
354
Gabriela Morais, A Genética e a Teoria da Continuidade Paleolítica , p. 13.
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 434.
271
cons t i t ui a m ai s el e vada fo rm a de ene r gi a cósm i ca.”
355
). E f oi com
es t a águ a, “bent a ”, que regou a sal sa que, em breve, fl oresceu,
l i bert ando a j ovem m oura.
Há duas versõ es de um a l enda l i gad a ao ri o S eco ( L M 47 e LM
1 2), em que u m do s prec ei t os para o desencant am ent o é “am assa r
fi l hós com a á gu a d o ri o”. J á vi m os o poder r e gene rador as soci ado à
águ a. Quant o às f i l hós , podem os consi derar qu e são um t i po de bol o
cuj a m assa ob edec e a um proc esso de fabri co s em el hant e ao da do
pão, t a l com o a bro a de LM 45 e LM 3 1 , ou o bol o de LM 33 , ou os
bol i nhos de E LM 5 0, a m enos que co nsi derem os que t an t o bol os
com o pães são al i m ent os, com pro cesso s de ex ecu ção p are c i dos, de
que resul t a um a m assa t am bém p are ci da, dada a com uni dade dos
i ngredi ent e s que a com põem , ent re os quai s o ferm ent o (“ pri ncí pi o
act i vo da pani fi c aç ão – sí m bol o de t ransform aç ão espi ri t ual ”
356
),
que não ent ra na com posi ção de m ai s nenhum coz i nhado (pel o
m enos confe cci onad o em P ort ugal ), n ão t endo, no ent ant o, os bol os,
o cará ct er de “ al i m ent o es senci al ” at ri b uí do ao pão. Em L M 40 , LM
5 0 e LM 3 , é num pão que est á esc ri t o o nom e de cada um a das
fi l has do govern ado r de Loul é e, ao c aí rem dent ro d a á gu a da font e
onde el as se encont ram en cant ad as, ess es pães i rão d ar o r i gem ao
s eu des enc ant am ent o:
Se é verdade que nem só de pão vive o homem, no entanto é
o no me de pão que se dá à sua alimentação e spiritual, be m co mo
ao Cristo eucarístico, o pão da vida. É o pão sagrado da vida
eterna de que fala a liturgia. [...]
Os próprios pães da proposição dos Hebreus não tinham um
significado difere nte . E o pão ázimo – de que se co mpõe a hóstia
actual – representa ao mesmo tempo, diz São Martinho, a aflição
da privação, a preparação para a purificação e a memória das
origens.
355
356
357
357
Idem, p. 119.
Idem, p. 503.
Ibidem.
272
Vol t em os à m oura de LM 26 , poi s fal t am al guns prec e i t os:
“á guas de m ar sal ga do com pei x es vi vos”:
O peixe é, be m e nte ndido, o símbolo do ele me nto Água, no
qual ele vive. [...] é a ssociado ao nasc ime nto ou à resta uração
cíclica. [...]
Além
disso,
fecundidade,
em
o
peixe
virtude
é
da
ainda
sua
símbolo
de
prodigiosa
vida
e
de
faculdade
de
reprodução e do núme ro infinito dos seus ovos. Símbolo que
pode, bem entendido, ser transferido para o plano espiritual. [...]
O I s l ã o a s s o c i a i g u a l m e n t e o p e i x e à i d e i a d e f e r t i l i d a d e . 358
Mas não é só: “pei x es vi vos que apanhe e aqui m esm o sej am
coz i dos e por esse a l guém com i dos”:
Entretanto, na maior i a dos casos, o simbolismo, me smo
perma nece ndo estrita mente cristológico , rec ebe uma dimensão
um pouco diferente: da do que o peixe é tamb é m um alime nto, e
até Cristo ressuscitado o comeu ( Lucas, 24, 42), ele torna-se
símbolo do alime nto e ucarístico, onde ele figura freque nte mente
ao lado do pão.
359
Out ro al i m ent o i m port ant e é o l ei t e (em LM 42 e LM 24 , é dado
l ei t e de cabra a um a cobra, e em L M 59 , são doi s bez erros que são
al i m ent ados com l ei t e da m ãe, que foi p ej ada não se s abe co m o, m as
deduz -se que por art es m ági cas):
[…] Primeira bebida e primeiro alimento e m que todos os
outros existem em estado potencial, o leite é naturalmente
símbolo
de
abundância,
de
fertilidade
e
ta mbé m
de
conhecimento, entendendo-se esta palavra num sentido esotérico,
358
359
Idem, pp. 515 e 516.
Idem, p. 516.
273
e por fim, co mo ca minho de iniciação, símbo lo da imortalidade.
[...]
Acrescentemos
por
fim
que,
co mo
todos
os
ve ctores
simbólicos da Vida e do Conhec ime nto to ma dos como valores
absolutos, o leite é um símbolo lunar, fe minino por excelência, e
ligado à renovação primaveril.
360
E m E LAP / M 6, o r a p a z e s t á “ t o m a n d o c o n t a d e u m a s e c a
de figos num almanxar” e são inúmeros os casos de episódios
lendários em que uma moura encantada oferece figos aos
passantes.
A figueira simboliza a ciência religiosa. No Egipto
tinha
um
sentido
iniciático.
Os
eremitas
gostavam
de
alimentar-se de figos. […]
No norte de África, o figo é o símbolo da fecundidade
proveniente
dos mortos.
O seu nome,
tendo-se
tornado
sinónimo de testículos, já não é utilizado na fala corrente
e foi substituído pelo nome da sua estação, o Khrif, o
Outono.
Neste
ultrapassa
Servier
o
nível
domínio
chega
à
de
da
comparação,
alegoria
interpretação
e
da
quase
não
analogia.
simbólica,
se
Jean
quando
acrescenta: Repletos de inúmeras sementes, os figos são
um símbolo de fecundidade e são, a este título, a oferenda
depositada sobre os rochedos, nas termas e nos santuários
dos génios guardiães e dos Invisíveis: oferenda que pode
ser partilhada pelo viajante necessitado, porque ela é a
dádiva do Invisível (SERP, 38, 143).
361
Num epi sódi o l endári o um m ouri nho oferece fei j ões:
Os
feijões
fecundidade.
360
361
[…]
tinham
eram
igualmente
talismãs
um
simbolismo
populares
no
de
Japão,
Idem, p. 404.
Idem, p. 323.
274
habitualme nte e spalhad os numa casa para a fastar os relâ mpago s e
os espíritos malignos.
2.2.2.
362
CORES
O bol o de L M 33 t i n ha um a part i cul ari d ade di fe rent e dos p ã es e
das fi l hós – er a bra nco . Al i m ent o br anc o, t am bém , é o l ei t e ( L M 42 ,
LM 59 e LM 24 ), cu j o si m bol i sm o j á anal i sám os.
T al como o preto, a sua cor oposta, o branco pode situar -se
nas d uas e xtre midad es da ga ma cro mática. Ab soluto e se m outras
variações que as que vão do fosco ao brilhante s, o branco
significa ora a ausê ncia, ora a soma das cores . Por isso àsveze s
coloca-se ora no início ora no fim da vida diurna e do mundo
manifesto, o que lhe confere um valor ideal, assimp tótico. Mas o
fim da vida [n]o mo mento da morte é ta mbé m um mo mento
transitório, na charneira do visível e do invisível, e por isso um
outro ponto de partida. O branco candidus é a cor do candidato,
isto é, daquele que vai mudar a sua condição [...] É uma cor de
passagem,
no
mesmo
sentido
em
que
se
fala
de
ritos
de
passagem; e é, justamente, a cor privilegiada desses ritos, com os
quais se opera m as mutações do ser, segundo o esque ma clá ssico
de toda qualquer inicia ção: morte e rena scime nto.
363
De branco v êm “ve st i das” al gum as m o uras ( L M 33 , LM 3 5 e
LM 14 ), faz endo -se al usão a um “m ant o branco” em L M 35 e em LM
3 7: a m oura da se rr a de Monchi que est á “t oda vest i da d e branco” ,
quando apar ec e pel a pri m ei ra vez , e “ en vol t a num m ant o branco que
l he pendi a da cabe ç a”, quando os com panhei ros de Ant óni o a vêem ;
a m oura Fl ori pes “t r az um m ant o branco a cobri -l a ”.
Bran cas, ai nda, são as “p ét al as br ancas de noi var ”, as fl ore s de
am endoei ra qu e Al á m anda a Di norah e ao t rovador, em L M 54 , e a
cal do forno d e L M 26 . Os d ent es do d ra gão que gu arda F át i m a no
362
363
Jack Tresidder, ob. cit., p. 85.
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 128.
275
poço do V az Varel a ( L M 53 e LM 17 ) s ão de m a rfi m . E, fi nal m ent e,
é m enci onad a a bur r i nha branc a da avó do narrado r de ME2.
Encont ram os, ai nda , um bran co di f ere nt e: a cor da prat a e,
event ual m ent e, de out ros m et ai s. Nas t rês versões d’ “ O P oço do
Vaz Varel a ” ( L M 5 3 e LM 17 ), Fát i m a é gua rdad a por um “dra gão
de escam as de pr at a ”.
Branca e luminosa, a p rata é ta mbé m símbolo de pureza, de
toda a espécie de pureza. É a luz pura, tal como é recebida e
devolvida pela transparência do cristal, na limpidez da água,
nos reflexos do espelho, no brilho do diamante; parece-se com a
limpidez da consciência, com a pureza de intenção, com a
franqueza, com a rectidão dos actos; remete para a fidelidade
que isto se segue (GEVH).
364
Da m esm a cor s ão, com t oda a ce rt ez a, as escam as dos p ei x es
pes cados que r pel o t rabal hador de LM 26 , quer pel o p es cador d e
E LAP / M 8 . E “[ d ] e prat a ”, t am bém , é o l uar, que i l um i na quase
t odas as noi t es das l endas:
A L u a é u m s í m b o l o d o s r i t mo s b i o l ó g i c o s [ … ] s i m b o l i z a
ta mbé m o te mpo que passa , o tempo vivo, de que ela é a medida,
pelas suas fases sucessivas e regulares. [...] A L ua, astro das
noites, evoca me tafor ica me nte a beleza e ta mbé m a l uz na
ime nsidade tenebrosa. Mas não sendo est a luz mais que um
reflexo da luz do Sol, a Lua é apena s o símbolo do conhecimento
por
reflexo,
racional; [...]
isto
é,
do
conhecime nto
teórico,
conceptual,
365
Quase sem pr e em c ont rast e com as out ras cor es e, sobr et udo,
com o branco, su r ge o pret o (ou ne gro):
364
365
Idem, p. 541.
Idem, pp. 418 e 419.
276
Cor
oposta
ao
branco,
o
preto
é
seu igual em valor
absoluto. Co mo o branco, pode situar -se na s duas extre midades
da ga ma cro mática, co mo limite tanto das cores que ntes co mo das
cores frias; segundo sua opacidade ou seu brilho, torna -se então
a a u s ê n c i a o u a s o m a d a s c o r e s , a s u a n e g a ç ã o o u a s u a s í n t e s e . 366
Em LM 34 : “um a m ul her m ui t o be l a, de l on gos c ab el os
negros”; em L M 4 2 : “um m ouri nho m ui t o en gra çado, de go rro
verm el ho sobre uns cabel os t ão negros com o um a noi t e sem
es t rel as”; em L M 5 4 : “os seus ol hos n egros, ne gros com o um céu
onde a l ua nunca passeou o l uar, er am t ri st es ”; em LM 59 , os
novi l hos t i nham de ser “pr et os e gém eo s”; em LM 26 : “os o l hos de
a[ z] evi che”; em E LAP / M 6: “vi u ent rar no al m anx ar um gat o pret o”;
em E LAP / M 9: “um senhor e um a d am a m ui t o i dosos vest i dos am bos
de pret o ”; em LM O 3 : “f rent e a frent e com um a v el ha m ui t o vel ha,
ves t i da de l ut o e com um a val ent e gad a nha na m ão”. Os cã es pret os
de E LAP / M 13 e E LAP / M 16 . S en hora s de pr et o . F aci l m ent e
rel aci onam os os c a bel os ne gros da m oura d e L M 34 com o aspe ct o
negat i vo que est a co r pode assum i r:
Simbolica mente,
é
visto
com
mais
frequência
no
seu
aspecto frio, negativo. Cor oposta a todas as cores,o preto está
associado às trevas primordiais, à indifere nciação original. [...]
ao passo que o preto se coloca, por sua vez, no Eixo Norte -Sul,
que é o da transcendência absoluta e dos pólos. Conforme os
povos localiza m o seu infer no e a parte de baixo d o mundo no
Norte
ou
no
Sul,
considerada preta.
uma
ou
outra
dessas
direcções
é
então
367
Em LM 54 , a m el a ncol i a e a t ri st ez a dos ol hos de Di nor ah,
as s oci adas à i m pos si bi l i dade de con cr et i z ar o seu sonho de am or
podem evoca r a pe r da i rrem edi ável , o l ut o:
366
367
Idem, p. 541.
Ibidem.
277
[ … ] O preto é, pois, cor de luto, não como o branco, mas
de uma for ma mais opressiva. O luto branco te m qualquer coisa
de me ssiâ nico. Indica uma a usê ncia destinada a ser completada,
uma fa lta provisória. [...] O luto ne gro , por sua vez, é, poder -seia dizer, o luto sem esperança. [...] o luto de preto é a perda
definitiva, a queda sem regresso no Nada: [...]
368
Negros são, obviamente, os pedaços de carvão em que o
ouro (que começou por ser alimento – figos) dos episódios
lendários
de
mouras
encantadas
se
transforma.
Negra,
também, é a noite:
A n o i t e é , n a c o n c e p ç ã o c e l t a d o t e m p o , o c o me ç o d a
jornada, assim co mo o Inver no é o princípio do ano. […]
A noite simboliza o te mpo das gestaçõe s, das ger minações,
das
conspirações,
que
desabrochar ão
em
pleno
dia
co mo
manifestação de vida. É rica em todas as virtualidades da
existê ncia. Porém, entr ar na noite é regressar ao indeterminado,
onde se mistura m pesad elos e monstros, as ideias negras. A noite
é a image m do inconsc iente e, no sono da no ite, o incons cie nte
liberta-se. Co mo qualq uer símbolo, a noite a presenta um duplo
aspecto: o das trevas onde fermenta o futuro, e o da preparação
do dia, donde brotará a luz da vida.
369
Em LM 33 , é de noi t e que Di o go en cont ra a fi l ha do rei m o uro
e é à m ei a -noi t e que deve ent re ga r -l he o bol o. Em LM 34 , é de noi t e
que Ant óni o se enc ont ra com a m our a e que J oana escond e os seu s
fi l hos. Em L M 35 o s encont ros de Ant óni o com a m oura dã o -se a o
fi m da t a rde. Em L M 37 , é à m ei a - noi t e que J ul i ão es pera por
Fl ori pes, que cost um a apar ece r ao co m padre Zé a essa hora; el a
apare ce ce rc a de m ei a hor a d epoi s e, após o di ál o go t rav ado com
J uli ão, “correu pa ra o m oi nho, não t ornando m ai s a aparec er naquel a
noi t e”; em LM 14 , t am bém t udo se passa “al t a noi t e”. Em L M 38 ,
depoi s do en cont ro com a m our a, o al m ocreve “ ent rou em c asa j á de
368
369
Idem, pp. 541 e 542.
Idem, p. 474.
278
noi t e”, t eve um p esadel o, e, “d aí em d i ant e, t odas as noi t es” t i nha
“pes adel os vi ol ent os, al uci nant es ”, que “a caba ram po r des apare ce r ”
(em LM 48 e LM 1 3 , são com uns os p esadel os su cessi vos, durant e
m ui t as noi t es); depo i s de c e gar, “passou a vi ve r num m undo horrí vel
de escu ri dão”, i dei a habi t ual m ent e asso ci ada à noi t e; par a r ecuper ar
a vi s ão, sent a -s e, a consel ho da m oura, à sol ei ra da po rt a, “ ant es do
nas cer do sol ” (nas t rês versões). Em L M 39 , o encant am en t o dá-se
ao fi m da t arde (“a sua fi gur a del i cad a, bat i da pel os rest os do sol da
t arde” ). Em L M 4 0 , o gove rnador d e Loul é fi ca horas soz i nho,
durant e, supost am e nt e, duas noi t es, ant es de encant ar as fi l has e
fugi r (não é cl aro se o encant am ent o ocorreu t am b ém durant e a
noi t e); é n a noi t e de S . J oão que o carpi nt ei ro d eve cu m pri r os
precei t os
do
dese ncant am ent o;
e
é
t am bém
de
noi te
que
o
carpi nt ei ro e a m ul her t êm m edo da v i ngan ça de C assi m a : “Nessa
noi t e não conse gu e m dorm i r [ ...] Mas a m oura não v em . Nem ness a
noi t e, nem nas rest a nt es.”. Em L M 41 e LM 16 , “t odas as no i t es que
o t em po perm i t i a”, o j ovem Abdal á “c ant ava t rov as de a m or” que
Al i na escut ava à j a nel a do seu qua rt o; e foi durant e a n oi t e que
real i z ou a proez a de t raz er, par a a prop r i edade do pai d a s ua am ada,
a nascent e da Fon t e do C anal (em L M 41 , “qu ando e ra quase
m anhã”, e em LM 1 6 “seri a m ei a -noi t e ”); cont i nuam a ser vi st os à
m ei a-noi t e ( em L M 16 , o vel ho m ou ro t am bém ap are ce, m a s só “em
noi t es de t orm ent a” ). Em L M 44 e LM 25 , t udo se passa de noi t e: o
pri m ei ro sonho, a p ri m ei ra t ent at i va, o s t rês sonhos se gui nt es “por
t rês
noi t es
se gui das”,
e
a
s e gunda
e
úl t i m a
t ent at i va
que,
fi nal m ent e, resul t ou : “Des ent e rrou o t ac ho à m ei a -noi t e em pont o” e
es vaz i ou progr essi vam ent e o seu cont e údo, a consel ho do m ouro,
vol t ando “al i t odas as noi t es, à m esm a hora”. Em L M 46 e LM 11 , o
cri s t ão presen ci ou o encant am ent o “num a noi t e de P ri m aver a” (“ era
m ei a noi t e e r ecei ou -se o cri st ão d e al gum a ci l ada ” – LM 11 );
“t rabal hou naqu el a fai na di a e noi t e ”; soube, depoi s, que “ a caban a
por el e const ruí da f ora qu ei m ada i nex pl i cavel m ent e, em c e rt a noi t e
de l uar”. Em LM 49 e LM 10 , é durant e a noi t e que se dá o fat í di co
encont ro ent re o j ovem gu err ei ro po rt uguês e a fi l ha do gov ernador .
279
Em LM 50 , “du as n oi t es ant es d a ent r a da dos c ri st ãos em Loul é, o
gove rnador, [ ...] sai u com as t rês fi l has do cast el o, po r um a pequena
port a. P ensava o m ouro que ni n guém dari a pel a sua surt i da, vi st o
es t ar t oda a vi l a a descansa r da at al ai a const ant e em qu e vi vi a de
di a” (port ant o, nes t a versão, o encan t am ent o ocorreu d urant e a
noi t e); “Na noi t e segui nt e, os m ouros abandonar am secret a e
s i l enci osam ent e a ci dade”; “ No di a se gu i nt e, ao sol -post o, o cri st ão
es t ranhou um a bat i d a na port a do seu c ubí cul o”; foi dur ant e a noi t e
que o ca rpi nt ei ro at raves sou “os m a res com o um a á gu i a (poi s
che gou de m adru ga da); at é che gar o “t em po de S . J oão”, “t odos os
dom i ngos o ca rpi nt ei ro se di ri gi a à fo nt e, à t ardi nha ” e, “quando a
noi t e che gav a e co bri a m ansam ent e a t erra, o hom em v ol t ava a
cas a”; foi num a de st as t ard i nhas que a sua m ul her cort o u o pão,
cort ando a p erna de C assi m a; quando “ che gou fi nal m ent e a noi t e de
S . J oão”, com eça ra m “os fest ej os qu e durari am essa noi t e e t odo o
di a se gui nt e”; “Nes sa noi t e, por ém , o c arpi nt ei ro n ão f est e j ou. Mal
es cure ceu,
p art i u
p ara
a
font e
[ ...]
esper ando
a
m ei a -noi t e”;
“che gada a hora ”, cum pri u as i nst ru ções do m ouro; fi nal m ent e,
“nes sa noi t e, por ordem do ex -governa dor de Loul é, o car pi nt ei ro
em barcou num navi o venez i ano que se f ez à vel a par a F aro ” . Em L M
5 1 e LM 3 , “t odas a s noi t es a m ouri nh a de S al i r subi a à m ural ha do
al các er” e “aí s e en cont rava em or aç ão quando as at al ai as r eceb eram
o al arm e ”; em L M 3 , a fu ga é l oc al i z ada, com pre ci são, “n a noi t e em
que o consel ho form ado pel os sarr acenos resol veu d esam par ar
preci pi t adam en t e
o
cast el o ”.
Em
LM
53 ,
e
LM
17 ,
o
pai
“arr em essou -a ao poço, quando j á n o céu s e vi am a l ua e as
es t rel as”, pe rm ane c endo no l ocal , e “e r a m ei a -noi t e quando o m ouro
s ecou as l á gri m as”. Em L M 54 , o t rov ador passa pert o do “bal c ão”
de Di norah “num a t arde d e P ri m ave ra ”; quando “che gou a noi t e de
m ansi nho”,
“um a
voz
dul cí ssi m a”
ouvi u -se,
“c ant ando
t rovas
vel hi nhas” e “ness a noi t e Di norah dorm i u t ranqui l a e em paz ”.
durant e al guns di as que se se gui ram , “e ram t ão grand es os gem i dos
que el e ouvi a dur a nt e a noi t e e t am a nhos sust os apanhou, que se
deci di u a l ar gar a ca sa” ( L M 61 ). Em L M 59 , é durant e a n oi t e que a
280
vaca
s ai
do
est áb ul o,
vol t ando,
horas
depoi s,
“m ui t o
fart a ”,
repet i ndo -se a c en a m ai s do que uma vez ; é, por consegui nt e,
t am bém durant e a n oi t e, que o l a vrador segue a vac a, pri m ei ro com
o cri ado e, na noi t e se gui nt e, soz i nho, di z endo um a voz que el a
es t ava “pej ad a”; n a pri m ei ra p art e, i n co m pl et a, de L M 58 , “ seri a n a
noi t e de S . J oão que o t esouro seri a de sencant ado ”, pel o que, “l ogo
que se aprox i m ava est a noi t e, afl ui a ao l ocal da font e t oda a gent e
que conhe ci a a l end a”. Em L M 60 , t ud o se passa “em cert a noi t e”.
Em LM 3 , o enca nt am ent o dá -se, co ncret am ent e, “na penúl t i m a
noi t e, quando t odos descans avam ”; t od as as out ras t ardes e noi t es
s ão com uns a L18, p reci sando -s e, t am b ém , que o carpi nt ei ro sal t ou
a val et a “ em um a t arde de chuv a”. Em L M 7 o rap az l eva a cabo a
t ent at i va de d esenc a nt am ent o, por ord e m ex pressa da m our a, “ant es
do s ol nado”. Em L M 12 , o hort el ão presenci ou o enca nt am ent o
“noi t e al t a, poi s qu e a ess e t em po ou vi u as panc adas do si no do
rel ógi o d a ci d ade, a nunci adoras d a m ei a -noi t e” (em L M 47 , apenas
s e pode i m a gi na r q ue o hort el ão esp re i t ava as l eb res e c oel hos à
noi t e, m as não há qual quer refe rênc i a t em poral ). Em L M 21 ,
t om ando part e nos fes t ej os da noi t e de S . J oão, “quando deu m ei a
noi t e l arga ram os doi s rapaz es o bai l e e m archa ram para o pego das
R el i qui as”; o encont ro de um del es com a m oura t er -s e-á dado,
as s i m , durant e a noi t e, enquant o o out ro dorm i a; ao encant ar a
m oura em cobra, o pa i deu -l he, a possi bi l i dade de s e “t r an sform ar
em out ro ani m al , r aci onal ou i rra ci on al , desde a m ei a noi t e da
ves pera de S . J oão at é o out ro di a, ao nascer do sol ”; a pri m ei ra
t ent at i va
de
desen cant am ent o
em pr ee ndi da
pel a
m oura
deu -se,
t am bém , num a noi t e de S . J oão, e o m ol ei ro di sse “que er a m el hor
adi ar o desenc ant o para o di a segui nt e ant es do sol nado”. Em L M
2 6, quase t udo acont ece de noi t e: os m ouros aparec em j unt o do
forno “m ei a - noi t e em pont o”, real i z ando o negóci o l ogo em
s egui da; o t rab al ha dor esc ond e -se e o bserva t udo “ap rov ei t ando -se
do escuro da noi t e ”; “ant es do rom p er da m anh ã t i nha o pl ano
form ado”;
“à
noi t i nha
conse gui u
ap anhar
uns
pei x es
vi vos”,
procedendo, d epoi s, ao rest o dos precei t os. E t am bém em L M 28 a
281
noi t e é pri vi l e gi ad a: “Em um a no i t e dei x ou -se el e ado r m ecer ao
abri go de um as b al sas j unt o daquel a f ont e. S eri a m ei a -no i t e, hora
des t i nada aos s ere s que and am
pel o s ares ou
cam i nh am
por
ex t raordi nári os processos, acordou o pobre hom em ”; “Na pri m ei ra
noi t e em que se m a ni fest ou com pl et a a fl oresc ênci a d a sal sa, ao da r
as doz e horas, apar eceu a m oura ”, e “ o pobre hom em t ransport ou
durant e a noi t e os val ores”. Em E LAP / M 6, o rapaz que t om ava
cont a do al m anx ar “ era j á noi t e e, d ei t a do, ol hava o c éu ob servando
as es t rel as m ui t o vi vas”. Em E LAP / M 7, não se sabe a qu e horas a
avó do narr ador vol t ava pa ra c asa, m as p odem os deduz i r que não er a
cedo, poi s t i nha -se desl ocado a La gos, de burra, t i nha f ei t o al gum as
com pras e j á s e enc ont rava d e r e gresso. Em E LAP / M 8, o p escador ,
“cert a vez , ent ret i d o, d ei x ou -se por l á at é m ui t o t ard e, t al vez por a
pes ca l he est ar a ser bast ant e fav orável . S ó que, q uando j á
anoi t eci a,” d ei x ou -se fi ca r m ai s t em p o, t ent ando pesc ar “o m ai or
pei x e da sua vi da ” e , quando fi nal m ent e j á i a d e c am i nho p ara casa,
“ol hando para t r á s, vi u, est upefact o q ue, na escuri d ão, o vul t o de
al gu ém est ava sent a do a pesca r no l uga r ex act o onde el e e st i vera”.
Em E LAP / M 9, “um a t ardi nha (er a j á ao anoi t ece r), q uando se
encont rav a c om um grupo d e out ros garot os am i gos a br i ncar n a
arei a ” o i rm ão do narrado r “vi u sai r, de um a fenda que ha vi a ent re
doi s penedos do Cant o do Laredo, u m senhor e um a dam a m ui t o
i dos os vest i dos am bos de pret o”. Em LLO 1, di z i a -se que “t odas as
s ex t as -fei ras, ent re as onz e horas e a m ei a -noi t e, quando a m ãe i a ao
s eu quart o , encont r ava sem pre vaz i a a cam a do Berna rdi no e só
vol t ava a vê -l o na c am a por al t as horas da noi t e, resol vendo , ent ão,
“um a noi t e de sex t a -fei ra ”, “ esprei t á -l o na sua saí da d e cas a ”.
Nós
n ão esta mo s lo nge, aqui, do esoterismo tântrico, q ue
faz corresponder à meia-noite o estado de repouso absoluto na
beatitude. É que, co mo nota Gué non, a culminação do
Sol
espiritual tem lugar à meia-noite, por analogia inversa com a do
Sol físico. A iniciação nos mistérios antigos era associada ao Sol
282
da meia-noite. [...] o ponto a partir do qual começa a ascensão da
Revelação solar.
370
Em LM 53 e LM 1 7 , um a das p rát i c as envol ve um a “ gal i nha
pret a”, em L M 59 , os bez erros t êm de ser “n ão pr et os de t odo, um
es t rel ado e o out ro m oi rat o”, e na pri m ei ra part e, i ncom pl e t a, de LM
5 8, os novi l hos são pret os; t am bém o ga t o que foi at i r ado da fal ési a,
em E LAP / M 6, era pret o e “só nel e bri l havam doi s ol hos m ui t o
vi vos”, e o casal de i dosos, em ELA P / M 9 , “vest i dos am bos de
pret o, de f ace t ão m aci l ent a e d e ol hos t ão l uz i di os”.
Ora, com o j á re feri m os ant eri orm ent e, a propósi t o das bruxas ,
os ani m ai s pr et os p arec em est ar l i gado s ao di abo , t am bém at rav és
do pact o com as bru xas .
Devi do à rel a ção ex i st ent e ent re as cor es (“o ne gro bri l han t e e
quent e, saí do do ru bro , rep resent a, por sua ve z , a som a da s cores. ”
371
), se gue -s e o ver mel ho :
Universalmente co mo o símbolo funda me ntal do princípio
de vida, com a sua força, o seu poder e o seu brilho, o vermelho,
cor
de
fogo
e
de
sangue,
possui,
entretanto,
a
me sma
a mbivalê ncia simbólica destes últi mos, se m dúvida, visualme nte
fala ndo, confor me seja claro ou escuro.
372
Em LM 34 , aqu and o da pri m ei ra apari ção (que cor respond e ao
s egundo en cont ro, j á que o pri m ei ro apenas é ref eri do), “ um a l uz
verm el ha i l um i nou o seu hom em ”, vi nda da cova donde surgi u a
m oura, e, da se gun da, “fum o e fo go precedi am a m ul her” ; em L M
3 5, um a das d esi gn a ções da pedr a “po r onde a m our a saí a ” é “ro cha
encarni çada ”; em L M 42 , LM 61 e LM 24 , o en cant ado é um
mouri nho “de gor ro enca rnado” ( “v erm el ho ”, em LM 42 ); em LM
2 1, “O ho m em aco rdou, qui s acende r a l uz , m as i m pedi -l he que
370
371
372
Idem, p. 446.
Idem, p. 542.
Idem, p. 686.
283
feri s se l um e ”; e, e m LM 26 , o fo go d o forno ( “em al a vi va” e “em
l abared a”) ; t al com o o fo go com que se quei m am as ro upas dos
l obi somens , ou das fogu ei ras à vol t a d a s quai s as bruxas dançam e
cant am , dura nt e os seus sabat , ou as foguei ras por ci m a das quai s se
s al t a, durant e as fes t as dos sant os populares .
O
ver melho-claro,
brilhante,
centrífugo,
é
diurno,
masc ulino , tónico, inc itando à acção, lança ndo como um sol o
seu brilhante sobre todas as coisas com um imenso e irredutível
poder (KANC). O vermelho escuro, pelo contrário, é no cturno,
fe minino , secreto e, no limite, centrípeto; ele representa não a
expressão, ma s o misté rio da vida. U m seduz, encoraja, p rovoca,
[...]; o outro alerta, r eté m, incita à vi gilâ ncia e, no limite,
inquieta: [...]
373
Em LM 40 ( LM 50 e LM 3 ) e em LM 5 3 ( LM 17 ), en cont ra m os
refe rênci as di re ct a s ao sangue (cuj a si m bol ogi a ve rem os m ai s
adi ant e), sem m en ç ão da cor, e, em L M 33 , m enci on a -se a co r, m as
não se dá a c ert ez a sobre a nat u r ez a do l í qui do – “com eçou a
es corr er um l í qui do vi scos o, verm el ho -e scuro, com o san gu e! ”.
Este vermelho nocturno e centrípeto é a cor do fogo central
do home m e da terra, o do ventre e do atanor dos alquimista s
onde,
pela
obra
ao
rubro,
se
opera
a
digestão,
o
a madurecime nto, a geração ou a regener ação do home m o u da
obra. [...]
Subjacente à verdura da terra, à negrura do Vaso, este
ver melho e mine nte me nte sagrado e secreto é o mistério vital
escondido no fundo das trevas e dos oceanos primordiais. [...]
Iniciático, este ver me lho esc uro e ce ntrípe to reveste -se
assim de um significado funerário: A cor púrpura, segundo
Artemidorus, tem relação com a morte (Ste. Croix, Mystères do
Paganismo em PORS, 136-137). Pois esta é, com efeito, a
373
Ibidem.
284
a mbivalê ncia de ste vermelh o de sangue profundo: escondido, ele
é a c o n d i ç ã o d a v i d a . E s p a l h a d o , s i g n i f i c a a m o r t e . 374
C ont i nuando com as cores consi de rada s “quent es”, ap ar ec e o
amarel o , cuj a pr ese nça const ant e nest a s l endas est á l i gad a a duas
das suas nuances , a cor do sol e a cor do ouro, am bas dourad as .
Intenso, viole nto, agudo até à estridência, ou a mp lo e
ofuscante co mo um me tal e m fusão, o amarelo é a mais que nte, a
mais e xpansiva, a ma is ardente das cores, difíc il de desva necer, e
que extra vasa se mpre os limites e m que se pretende encerrá-la.
Os raios do Sol, atravessando o azul dos céus, manifestam o
poder das divindades do Alé m. [...]
A
Luz
de
Ouro
torna-se,
por
vezes,
um
ca minho
de
comunicação nos dois sentidos, um mediador entre os ho me ns e
os deuses. [...]
Sendo de essência divina, o a marelo dourado torna -se, na
Terra,
o
atributo
do
poder
dos
príncipes,
dos
reis
e
dos
imperadores, para procla mar a orige m divina d o seu poder. […]
O a marelo é a cor da eternidade, do me smo modo que o
ouro é o metal da eternidade.
375
P ara al é m do ou ro dos t esouros, enc ont ram os os se gui nt es
obj ect os dourados : em LM 40 , o p unhal do gov ernad or, “com
em but i dos em ouro” ; em L M 40 , LM 50 e LM 3 , “um ci nt o bordado
a ouro”; em LM 45 e LM 31 , “um bel o ci nt o de ouro”; em L M 7 , “a
pent ear -se com um pent e de ouro”; e em LM 21 , “t ra z endo ao
pes coço um gr ande col ar de ouro, e nos braços bri l hava m ópt i m as
pul s ei ras do m esm o m et al ”. Há, ai nda, a “cob ri nha côr d e oi ro” de
LM 42 e LM 24 , e os cabel os das m ouras de L M 38 (“l oi r os”), de
LM 14 e d e LM 26 ( “ de ouro”) .
Quant o ao S ol , e m LM 34 : “ E o hom e m sai u corr endo, a gor a
s audado pel a l uz doi rada do S ol .”; em L M 38 (e LM 48 ): “C om os
374
375
Ibidem.
Idem, p. 58.
285
pri m ei ros rai os de l uz , os t eus ol hos da rão doi s est al os, e t u fi ca rás
a ver de novo...”; em L M 39 : “O S ol bri l hava a grand e al t ura,
faz endo reful gi r as cot as de m al ha e os capa cet es dos gue r rei ros no
arrai al .”; em L M 40 : “Manhã de P ri m av era. M anhã boni t a, chei a d e
s ol , i rradi ando perf um e.”; em L M 45 : “e, num a m anhã de sol , l á
part i u com os al for ges chei os par a as ne cessi dades da j orn a da .”; em
LM 50 : “R om peu ent ão o sol , m aravi lhoso gl obo de fogo e rosa
l um i noso sai ndo da t erra sem ruí do, sem angúst i a.”; em L M 3 :
“C om o é bel o o nas cer do sol na nossa proví nci a !”; em E LAP / M 6:
“De m anh ã, aco rdou com o sol a bat er -l he no rost o” .
O Sol é a fonte da luz, do calor e da vida. Os se us raios
representam as influências celestes – ou espirituais – recebidas
pela terra. [...]
Além de vivificar, a irradiação do Sol manifesta as coisas,
não só na medida e m que as torna perceptíveis, co mo na medida
e m que representa a extensão do ponto de partida , na medida e m
que ele mede o espaço.
376
A l uz do sol est á, obvi am ent e, l i gada a t odas as part es do di a ,
i ndependent em ent e da sua i nt ensi dade:
A primeira analogia do dia é a de uma sucessão regular:
nascime nto, crescime nto, plenitude e declínio da vida. [...] as
estações do ano parecem repetir em maior escala [do que a da
lua] as quatro partes do dia: a Prima vera, a manhã; o Verão, o
meio-dia; o Outono, o pôr-do-Sol; o Inverno, a noite. Desde os
te mpos mais longínquo s que se impôs a ana logia entre o dia, o
mês (lunar) e o ano.
Em
LM
33 :
377
“Espi ava
o
m ovi m ent o
aparent e
do
S ol
no
hori z ont e, i ndi cando a cam i nhada do di a.”. Em L M 34 : “Quando
che gou a cas a, e ra j á di a.”. Em L M 35 : “S ubi a t odas as t ar des, com
376
377
Idem, pp. 610 e 611.
Idem, p. 263.
286
o s o l a pi no, a serra de Monchi que e só vol t ava à noi t e par a casa. ”.
Em LM 36 : “T eri a de l ava r ness a m an hã as p eç as de rou pa que a
m ãe l he ent re ga ra e est ar de vol t a a casa ant es de o sol est ar a
pi no.”. Em LM 37 : “J á m anhã al t a, J ul ião che ga a casa. ”. E m L M 3 8
(e LM 48 ): “ am anh ã de m anhã, ant es do sol nascer, sent a -t e à t ua
port a...”; Em L M 4 0 : “Durant e horas el e fi c a soz i nho, at é que o
t em po at ravessa a fr ont ei ra da noi t e e e nt ra nos m i st éri os do di a...”;
“Quando a m ad ru ga da vol t a a rom p er, o s cri st ãos, di spo st os a t ent ar
de novo o at aque”. Em L M 42 ( e LM 24 ): “Toda a sua vi da se
res um i a, desde a al ba at é à noi t i nha, nos cui dados c om o seu
rebanho”; “ Um a m anhã, ac abar a a m ul her de aba far o l ei t e da
vés pera ”. Em LM 4 6 (e LM 11 ): “Na m anhã se gui nt e, a pri m ei ra
coi s a que o c ri st ão f ez foi vol t ar ao l oca l da c ena d a noi t e a nt eri or.”
( LM 46 ); “t rab al hou naquel a f ai na di a e noi t e”; . Em L M 59 (e L34):
“o carpi nt ei ro [ ...] pousava às port as de Loul é, pel a m ad r ugad a.”.
Em LM 53 e LM 17 , o m ouro com eçou a ora ção d e encan t a m ent o ao
“m ei o -di a em pi no” , m as “arr em essou - a ao poço, quando j á no céu
s e vi am a l ua e as es t rel as”. Em L M 54 : “Ao a corda r, pel a m anhã, os
ol hos negros da m o ura bri l havam fi nal m ent e”. Em L M 61 : “dei x ou o
m ari do o seu t rabal ho do cam po às onze horas do di a e foi esprei t ar
a m ul her”. “Em LM 13 : “no m om ent o do nascer do sol , os t eus ol hos
darão doi s est al os”. Em L M 21 : a m oura t em a possi bi l i dade de se
“t ransform ar em ou t ro ani m al , r aci onal ou i rr a ci onal , desd e a m ei a
noi t e da ve spe ra d e S . J oão at é o out r o di a, ao nas cer do so l ”, al t ura
em que vol t ará a t er a form a de um a c obra. Em L M 26 : “De m anhã
m ui t o cedo real i z ou a com pra de um a c el ha; foi ao m ar, qu e l he não
fi cava l on ge, en che u -a de á gua s al gada , e espe rou que ano i t ecesse,
es condi do em um a furna. ”. Em LM 28 : “apen as nas ce u o sol ,
di ri gi u -se a um a ho rt a e del a t ro ux e um a boa porção d e s al sa”. E m
LM 32 , é du rant e o di a, “t odos os di as”, que a vel h a Barb aç as
deverá l eva r um a ga l i nha à “m eni na ”. E m E LAP / M 9: “m as, de di a,
foram esp rei t ar p ar a dent ro da r e feri da fenda”. Em E LM O 1: “C ert o
di a, [ …] , fart o de apanhar gravet os p ara a l a rei r a” . Em LM O 1 :
287
“C ont ava -se que, u m di a, D. Mort e apa receu a um garot o” . Em LM O
2: “Um di a, quando est avam am bos j unt o à l arei r a”.
O meio -dia marca uma espécia de insta nte s agrado, uma
parage m no mo vimento cíclico, antes que se rompa um frágil
equilíbrio e que a luz se incline para o seu declínio. Ele sugere
uma imobilização da luz no seu c urso – o único mo me nto se m
so mbra – uma ima ge m da eternidade.
378
Em LM 35 : “S ubi a t odas as t ardes, com o sol a pi no, a serra de
M onchi que”; em L M 36 : “Teri a de [ ...] e st ar de vol t a a c asa ant es de
o s ol est ar a pi no.”; em L M 53 e LM 1 7 : “di ri gi ram -se am bos, [ ...]
era m ei o -di a em pi n o, ao P oço do Vaz V arel a. ”; em L M 61 : “às onz e
horas do di a e foi esprei t ar a m ul her ” (port ant o, o confl i t o que
ori gi nou o t ri st e de sfecho d eu -se por v ol t a do m ei o -di a); e m LM 8
(e LM 52 ): “ apar e ci a t odos os di as ao m ei o di a em p ont o um a
form osa d am a ”; em LM O 3: “C ert o di a , por vol t a do m ei o -di a, um
hom em de Espi ch e encont rou D. Mort e ” e o s e gundo en co nt ro, “no
di a m arc ado”, só p ode t er si do t am bé m ao m ei o -di a, poi s a mort e
t i nha com bi nado “ – Daqui a um m ês, t enho um encont ro m arcad o
cont i go, a est a hor a, para t e l ev ar! ”.
A m oura de L M 48 (e LM 13 ) vem v est i da de a zul e (com o em
LM 38 ) t em “ol hos az ui s l i ndos, com o o céu do Al ga rve e m cert os
di as de l uz ”. O az ul est á omni present e , no céu do Al garv e, de form a
ex pl í ci t a ou i m plí ci ta.
[ … ] O a z u l é a m a i s i ma t e r i a l d a s c o r e s : a n a t u r e z a
apresenta -o geralme nte como fe ito apenas de transparência, i sto
é, de vazio acumulado, vazio d o ar, vazio da água, [...].
Aplicada a um objecto, a cor azul suaviza , abre e desfaz as
for mas. U ma superfície pintada de azul já não é uma super fície,
um muro azul deixa de ser um muro. [...] Imaterial e m si mesmo,
378
Idem, p. 446.
288
o azul desmaterializa tudo o que se liga a e le . É o ca minho do
infinito, onde o real se transfor ma e m ima ginár io.
379
Do m esm o m odo (mai s i m pl í ci t o do que ex pl í ci t o) est á present e
o verde , em t odas as al usões à pri m avera, na ve get a çã o (nos
“s i l vados” que as bruxas t ranspõem ) , e apenas em LM 40 , no
t urbant e do govern a dor de Loul é.
Equidistante do azul celeste e do vermelho infer nal, a mbo s
absolutos e inacessíveis, o verde, valor médio , mediador entre o
calor e o frio, o alto e o baixo , é uma cor tranquilizante ,
refrescante,
humana. [...] O verde é cálido. E a
vinda da
prima vera ma nife sta -se pelo derretime nto dos gelos e pela queda
das chuvas fertilizantes.
O verde é a cor do reino ve getal a reafir ma r -se, das sua s
água s re generadoras e lustrais, às quais o baptismo dá todo o se u
significado simbólico.
2.2.3.
380
MATERIAIS
E o ouro aparece, a i nda, com o mat eri al de const rução : a sal a
de LM 38 (“As pa redes er am de our o. E de ouro o bel o t ect o
t am bém .”), L M 48 e LM 13 (“ am pl a sal a de pared es e co l unas de
ouro m aci ço” ).
Ind ependent em ent e do t esouro propri am ent e di t o, há que re f eri r
a ri quez a dos m at eri ai s em que os pal áci os subt err â neos são
cons t ruí dos (i ncl ui ndo, obvi am ent e, a s escad ari as), pal á ci os que,
por vez es, faz em part e desse t esouro, i st o é , est ão i ncluí dos na
r ecompensa :
379
380
Idem, p. 105.
Idem, p. 682.
289
[…] A pedra trabalhada, pois, não é senão obra humana; ela
dessacraliza a obra de Deus, ela simboliz a a acção huma na
substituindo a energia criadora. [...]
381
As pedras preciosas são o símbolo de uma tra nsmutação do
opaco em translúcido e, no sentido espiritual, das trevas em luz,
da imper feição e m perfeição. [...]
Segundo
a
tradição
382
bíblica,
devido
ao
seu
carácter
imutáve l, a pedra simb oliza a sabedoria . A p edra é muitas vezes
associada
sabedoria.
à
água.
[...]
Ora,
a
água
simboliza
també m
a
383
A escada ri a de L M 38 e LM 48 é “de m árm ore” e a d e L M 13 ,
“do m ai s puro e fi no porfi do”; em L M 42 e LM 24 , “um a m agní fi c a
es cada d e al ab ast ro” ; e L M 61 , uns “de graus do m ai s fi no j a spe”.
O pal áci o de LM 4 2 e LM
24 é “de cri st al de rocha” e o de
L22, não sendo subt errân eo nem enca nt a do, “de m i l col unas fi nas de
m árm ore ros a”.
2.2.4.
VEGETAIS
Em L8 e L34, a f ont e est á si t uada j unt o de um “boni to” e
“vi çoso” c anavi al .
[…] o crescime nto da cana saída das água s primordiais
representa a ma ni fe staç ão […]
Por outro lado, a cana é dotada de poderes purificadores e
protectores. […]
Os anos do calendário asteca são colocados sob quatro
signos, entre os quais o da cana. A cana (verde) é associada ao
381
382
383
Idem, p. 510
Idem, p. 513.
Idem, p. 514
290
Este, pátria da Renovação. Era, para os antigos m exicanos, um
símbolo de fertilidade, de abundância e de riqueza (SOUP).
384
Em LM 28 , apar ece, t am bém , a sal sa e, om o j á vi m os, as bruxas
voam por ci m a do s si l vados. Mas s ã o as árvor es que assum em
es peci al i m port ânci a: em L M 33 é “u m a árvore ” que é “cort ad a
cerc e” e, em L M 28 , o hom em cost u m a dorm i r debai x o de um a
“ávore ” qual quer .
Símbolo da vida, e m perpétua evolução , e m ascensão para o
céu, a árvore evoca todo o simbolismo da verticalidade; [...] Por
outro lado, serve ta mb é m para simbolizar o carácter cíclico da
evolução cósmica: mor te e regeneração; as fr ondosas, sobretudo ,
evocam um ciclo, pois despojam-se e cobrem-se todos os anos de
folhas.
A árvore põe ta mbé m e m co municação os três níveis do
cosmos: o subterrâneo, co m as sua s raízes ab rindo ca minho nas
profundezas onde penetram; a superfície da terra, com o tronco e
os primeiros ra mos ; as alturas, co m os se us ramo s superiores e o
seu ponto mais alto, atraídos pela luz do céu. [...] Reúne todos os
ele me ntos: a água circ ula co m a sua seiva, a terra in tegra-se no
seu corpo através das raízes, o ar alimenta a s sua s folhas, o fo go
brota quando esfregamos dois paus.
385
Em LM 44 , LM 25 e LM 32 , a ár vore é um a “ al far robei r a ” – a
acres cent a r ao si m b ol i sm o de qual quer árvore, há o f act o de ser a
al farrob ei ra (t r az i da pel os m ouros ) um a árvo re i m port ant e no
Al ga rve: é prat i c a m ent e si l vest re e, gr at ui t am ent e, al i m ent a e dá
um a som bra fant ás t i ca (em L M 32 , a “m eni na” apa re c e m esm o
“j unt o dum a al far ro bei ra” ). H á, ai nd a, si t uações em que a árvore é
i dent i fi cada com o “ um a carval ha ” ( L M 45 e LM 31 ), um “carval ho”
( LM 50 ) ou “um a carval h ei ra ” ( L M 3 ). Num epi sódi o l endári o, a
m oura ap are ce ent r e duas az i nhei ras, l ocal onde o pr et e ndent e a
384
385
Idem, p. 150.
Idem, p. 89.
291
des encant ador t e ri a de bat e r -se com um m onst ro – a a z i nhei ra
pert enc e ao gén ero dos carval hos .
Árvore
sagrada
em
numerosa s
tradições,
o
carvalho
é
inve stido dos privilé gios da divindade sup re ma do céu, se m
dúvida porque atrai o raio e simboliza a majestade […]. Indica
sobretudo solidez, força, longevidade e altura, tanto no sentido
espiritual co mo materia l.
O carvalho é, e m todos os te mpos e e m todos os lugares ,
sinó nimo de força: de facto, é esta a impressão que nos dá esta
árvore quando adulta.
386
Há duas l endas em que as f l ores assum em espe ci al rel evo: em
LM 54 , Di norah v i vi a rodeada de “j ardi ns de m aravi l h a, onde
bai l avam ex ót i cas danças fl ores d e t o do o m undo”; e em L M 28 ,
para a m our a se r de sencant ad a, a sal sa t erá d e at i n gi r a sua fl ora çã o
pl ena (“N a pri m ei ra noi t e em que se m ani fest ou co m pl et a a
fl orescên ci a da s al sa, ao dar as d oz e ho ras, apa rec eu a m ou ra”):
Apesar de cada flor te r, pelo me nos sec unda ria mente, um
símbolo próprio, a flor , e m geral, não deixa de ser um símbolo
do princípio passivo . O cálice da flor é, tal co mo a taça, o
receptáculo da Actividade celeste, entre cujos símbolos devemos
citar a chuva e o orvalho. Al ém disso, o desenvolvimento da flor
a partir da terra e da água ( lótus) simboliza o da ma nifestação a
partir desta me sma sub stância passiva.
387
Mas em LM 54 , o t rovador passou “nu m a t arde de P ri m av era,
com eçav am as am endoei ras a fl ori r”, de m anhã, “t udo, t udo à vol t a
del es e ram p ét al as bran cas d e noi va r” e “t odos os an os, pel a
P ri m avera, Al á m an da -l hes as fl or es de am endoei ra pa ra qu e possam
noi var”:
386
387
Idem, p. 165.
Idem, p. 329.
292
A a me ndoeira, cuja floração acontece muito c edo, é o sina l
do renascime nto da natureza e d a vigilância a tenta aos primeiros
sinais da Prima vera. É igualme nte o símb olo da fragilidade,
porque as suas flores, as primeiras a abrir-se, são as mais
sensíveis às últimas geadas...”
388
Na Tor re de Bi as, vi veu um a j ovem m oura qu e cost um av a dar
frut os aos pobres, p oi s que seu pai a proi bi ra de l hes dar di nhei ro
(Al l ah, no ent ant o , t ransform av a, po r vez es, esses f ru t os em
di nhei ro) .
Símbolo da abundância , que transborda do corno da deusa
da fecundidade ou das taças dos ban quetes dos deuses. Em
virtude dos grãos que conté m, Gué non co mpa rou o fruto ao o vo
do mundo, símbolo das origens.
389
S ant o Ant óni o apareceu, em C asai s, n o cam po, j unt o de um a
es t rada, em ci m a de um a ol i vei ra.
Árvore
de
uma
riqueza
simbólica
muito
grande:
paz,
fecundidade, purificaçã o, força, vitória e recompe nsa.
Na Grécia, era consagrada a Atena […]. A oliveira participa
dos valores simbólicos atribuídos a Atena
390
, de quem é a árvore
consagrada.
[…] A oliveira simboliza, em definitivo, o Paraíso dos
eleitos.
391
388
Idem, p. 61.
Idem, p. 340.
390
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant : “[…] a figura de Atena evoluiu
muito na Antiguidade e, de uma forma constante, no sentido de uma
espiritualização. Dois dos seus atributos simbolizam os termos desta
evolução: a serpente e a ave. Antiga deusa do mar Egeu, saída dos
cultos ctonianos (a serpente), elevou -se a uma posição dominante nos
cultos uranianos (a ave): deusa da fecundida de e da sabedoria; virgem,
protectora das crianças; guerreira, inspiradora das artes e dos trabalhos
da paz.”, p.95.
391
Idem, pp. 486 e 487.
389
293
Em bora est ej am se c os, os “ gr avet os” j á foram ram os d e árv ores
e, em E LM O 1, j á fo rm avam “um pes ado fei x e de l enha”:
O feixe de lenha ( sin ) é, na China antiga, o símbolo do
composto huma no transitório, que a sucessão da vida e da morte
ata e desata. […] O feixe de lenha seca encerra as riquezas do
espírito e as energia s do fogo, o conhecime nto e os poderes.
2.2.5.
392
VESTUÁRIO
Já no Antigo T esta me nto , o ve stuário pode significar, ao
manifestá -lo, o carácter profundo daquele que o usa. […] O
vestuário não
é, portanto, um atributo exterior, estranho à
natureza do ser que o usa; ele exprime, pelo contrário a realidade
esse ncial e funda me nta l. […]
Seria
impossível
encontrar
um
melhor
exe mplo
do
simbolismo da roupa na sua for mulação gnóstiva mais elaborada:
o vestuário co mo símbo lo do próprio ser do home m.
393
As m ouras enc ant a das vêm “vest i das” , de branco ou de az ul
( LM 33 , LM 35 , L M 48 , LM 13 e LM 14 ). O s eu asp ect o é de um a
“fi gu ra di áfan a” (e m L M 33 ) e “sob a apar ênci a de um a nj o” (em
LM 13 ).
As
roupas
brancas,
brilhantes,
luminosas,
per mite m
identificar imediatamente os anjos ( Mateus, 28, 3; Lucas, 24,
4 ) . 394
Em LM 35 e em LM 37 , t raz em um “m ant o branco”:
392
393
394
Idem, p. 318.
Idem, p. 689.
Ibidem.
294
Na tradição celta, os ho me ns do grande mundo do leste
dizem a Dagda: aquele que se envolve com o manto adquire o
aspecto, a forma e o rosto que quer durante o tempo que o leva
s o b r e s i . S í m b o l o d a s m e t a mo r f o s e s p o r e f e i t o d e a r t i f í c i o s
huma nos e das diversas personalidades que um ho me m po [d]e
assumir.
395
Em LM 35 , a m oura “vel ou o rost o” e , em L M 54 , pedi u ao
t rovador “um véu p a ra noi var ”.
Hijab, véu, quer dizer em árabe o que separa duas coisas.
Significa,
portanto,
segundo
é
colocado
ou
retirado,
o
conhecimento escondido ou revelado. [...]
O véu, em última instância, pode, portanto, ser considerado
mais
co mo
um
intermediário
do
que
co mo
um
obstáculo;
ocultando apenas pela metade, convida ao conhecimento; todas as
mulheres sedutoras sabem disso, desde que o mundo é mundo.
O símbolo define -se ta mbé m pelo esoterismo: aquilo que se
r e v e l a v e l a n d o - s e , a q u i l o q u e s e v e l a r e v e l a n d o - s e . 396
P ara qu e um l obi so mem d ei x e de o ser é p reci so qu ei m ar as
s uas roupas – est a é, t al vez , a si t uação m ai s evi den t e dest a
i dent i fi cação d as ca ract e rí st i cas do hom em com as suas vest es.
Próprio do home m, pois ne nhum a nimal o u sa, o vestuário é
um dos primeiros ind ícios duma consciê ncia da nudez, duma
consciê ncia de si, da consciê ncia moral. É també m reve lador de
alguns aspectos da sua personalidade […].
Na tradição do Islão uma mudança ritual da roupa anuncia a
passagem de um mundo a outro.
395
396
Idem, p. 437.
Idem, pp. 690 e 691.
295
P or oposi ção às v est es, t em os o caso das bruxas que, se gund o
al guns di z em , danç a m nuas, à vol t a da f oguei r a, nos seus sa bat .
A nudez do corpo é, na óptica tradicional, uma espécie de
regresso ao estado primordial, à perspectiva central […]; é a
abolição da separação entre o ho me m e o mund o que o rodeia, em
função d[a] qual as energias passam de um para o outro sem
barreiras: daí a nudez ritual, talvez lendária, dos guerreiros
celtas no co mbate; a de certas dançarinas sagradas; e até de
alguns feiticeiros, particularmente receptivos, nesse caso, às
forças inferiores.
2.2.6.
Em
397
ADORNOS
L8,
é
dado
especi a l
rel evo
ao
“t urbant e
ve rde”
do
gove rnador:
Símbolo de dignidade e de poder em três planos difere ntes:
nacional, para o árabe; religioso para o muçulmano; profissional
(profissões civis, por oposição às militares). [...]
O turbante é um sinal distintivo do muçulmano em relação
ao infiel ; marca a separação entre a fé e o seu contrário. [...]
O verde é a cor do Paraíso, e a cor preferida, diz-se, de
Mao mé. Mas, segundo a tradição, ele não usava turbante des ta
cor. No entanto, o uso do turbante verde é a insígnia dos seus
descendentes.
398
Em vári as l endas ( L M 33 , LM 40, LM 45 , LM 50 e LM 3 ), é
dado um ci nt o , com o ofert a, m as que, afi nal , funci o na co m o
i ns t rum ent o de vi ngan ça, ou
(em
L M 45
e
LM 31 ) obj ect o
faci l i t ador de out ro qual quer i nt ui t o cont rári o à vont ad e d e quem o
receb e.
397
398
Idem, p. 477.
Idem, p. 667.
296
[…] Preso em torno dos rins no nascimento, o cinto religa a
unidade ao todo, ao mesmo te mpo que liga o indivíduo. T oda a
a mbivalê ncia da sua simbolo gia se resume ne stes dois ver [b]os.
Ao religar (atar com força), o cinto tranquiliza, conforta, dá
força e poder; ao ligar (apertar, prender), leva, em troca, à
submissão, dependência, e, portanto, à restrição , escolhida ou
imposta, da liberdade. [...]
O cinto protege contra os ma us espíritos, da mesma ma neira
que os cinturões de protecção em volta das cidades as protegiam
dos inimigos.
399
Nest as l end as, o ci nt o resul t a, assi m , nu m a t rai ç ão, poi s, se ndo
por t radi ção um sí m bol o de prot ecç ão e de uni ão, f aci l m ent e i l ude
quem o acei t a, m ai s do que, provavel m ent e, out ro obj ect o qual quer.
Tam bém em E LLO 1 os doi s pescad ores usam um a “ ci nt a” par a
t ent ar prende r o burro, subm et ê -l o, para o usarem com o t ransport e;
o fact o de n ão t er e m cons e gui do t i rá -l a, e de o hom em (c om t oda a
probabi l i dade, um l obi somem ) cont i nuar a ex i bi -l a ap ós a sua
t ransform a ção, pod e si g ni fi c ar a “d e pendênci a i m post a ” da sua
condi ção.
Em LM 21 , a m oura ex i be “ao pescoço um grand e col ar ” e, nos
braços, “ópt i m as pu l se i ras” ( “D um a for m a ger al , si m bol i z a [ o col ar ]
u m el o ent re aquel e ou aquel a que o usa e aquel e ou aquel a que l ho
ofere ceu ou i m pôs .”
400
), que t am bém t êm em com um com o ci nt o o
fact o de s erem ci rcu l ares:
O círculo protector toma a for ma, para o i ndivíd uo, d a
argola (ou aro), da bracelete, do colar, do cinto, da coroa. [...]
Estes círc ulos dese mpe nha va m o papel , não só de adornos,
como de estabilizadores, mant endo a coesão entre a alma e o
corpo... […]
399
400
Idem, pp. 198 e 199.
Idem, p. 210.
297
Esse me smo valor simbólico e xplica o fac to de anéis e
braceletes sere m retirados ou proibidos àqueles cuja alma deve
estar livre para se e va dir, como os mortos, ou elevar -se para a
d i v i n d a d e , c o m o o s m í s t i c o s . 401
P oderem os, ent ão, i nferi r, m ai s um a vez , que as
m ouras
encant adas se en co nt ram pri si onei ras num l i mb o qual quer ent re a
vi da e a m ort e, usa ndo obj ect os própri os da art e de seduz i r, para
m el hor cat i var em qu em est i ver di spost o a l i bert á -l as.
2.2.7.
OUTROS OBJECTOS
Associada
ao
leite,
temos,
em
LM
42
e
LM
24,
a
“escudela” (taça de madeira) em que a senhora deu a beber
leite
à
cobrinha
simbologia
seja
cor
de
comum
oiro,
à
do
embora
“vaso”
uma
(que
parte
já
da
sua
analisámos
anteriormente).
O simbolismo muito difundido da taça apresenta -se
sob dois aspectos essenciais: o do vaso da abundância, e o
do vaso que contém a bebida da imortalidade.
No primeiro caso, ela é muitas vezes comparada co m
o seio materno que produz o leite. […]
A
taça,
utilizada
refeições profanas,
pelas
serviu de
libações
suporte
rituais
a
como
nas
um simbolismo
bastante desenvolvido nas tradições judaica e crstã. […]
Mas a tónica principal do simbolismo da taça recai,
na Bíblia, sobre o destino hu mano: o homem recebe das
mãos de
Deus o
seu destino
como
uma
taça,
ou como
contido numa taça. […]
401
Idem, p. 204.
298
A taça simboliza não só o conteúdo, mas a essência
de uma revelação.
402
Em duas si t uações (L M 33 e LM 40 ), o s ci nt os “cort am cer ce”
duas árvo res, e em L M 33 , t al com o e m LM 40 , LM 50 e LM 3 , é a
“fac a” o i nst rum ent o de que se se rve u m a m ul her para cor t ar, num
cas o,
o
bol o,
no
out ro,
um
pão,
t ent ando
sat i sfa z er
a
sua
curi osi dade, m as i m pedi ndo a re al i z ação do desencant am ent o:
[...] o simbolismo gera l dos instr umento s cortantes, que se
aplica plena me nte aqui: é o princípio a ctivo que modifica a
matéria passiva. […]
Nas regiões mais d íspares, a faca tem o poder de afastar as
influê ncia s malé fica s, o que parece ligado a um dos aspectos do
simbolismo do ferro (DAM S, ELIF).
O símbolo da faca está com frequência associado à ideia de
execução judicial, de morte, de vingança, de sacrifício [...].
403
Tam bém a vassou r a est á “ rel a ci onada c om o uni verso f em i ni no
da coz i nha, da l i da da casa, d a l i m pez a e da ordem ”. S í m bolo
i ndubi t avel m ent e as soci ado às brux as, “ a vassoura era o ri gi nal m ent e
um a cana ou pau com gi est as ou qual quer out ro el em ent o veget al
num a das pont as. Qu ando col oc ada a o al t o, pode assem el har -se a
um a fi gur a hum an a de fart a cabel ei ra. Árvor e esquem át i ca, a
vas s oura n ão poss ui raí z es e po r i s so perm i t e o m ovi m ent o, o
v o o . ” 404
Humilde instrume nto domé stico na aparência, a vassoura
não deixa de ser um signo e um símbolo do poder sagrado. Nos
te mplos e nos sa ntuár ios antigos, a vassour a é um ser viço de
culto. T rata -se de eliminar do chão todos os ele mentos que
402
403
404
Idem, pp. 627 e 628.
Idem, p. 314.
Maria Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras , p. 27.
299
viera m sujá -lo do exterior e isso só pode ser feito por mãos
puras. […]
[…] Mas, se a vassoura inverte o seu papel protector, torna se instr umento de malefício e é nos cabos de vassoura que as
feiticeiras de todos os países saem pelas chaminés e vão para o
sabbat. Símbolo fálico, talvez, mas ta mbé m e sobretudo símbolos
de poderes, que a vassoura deveria te r vencido, ma s que se
apoderam dela e pelos quais ela se deixa levar.
405
O out ro obj ect o associ ado às brux as, com o j á re feri m os, é o
cal dei rão , t am bém el e l i gado à l i da da c asa, especi al m ent e à
coz i nha.
Este outro objecto mágico, o caldeirão, é sem dúvid a
descendente de um no vo artefacto de importância capital para a
vida das co munidades, que irro mpe na história na tra nsição do
Mesolítico para o Neolítico: o vaso de cerâ mica. Objecto do
quotidiano, ma s e sse ncial para o ar maze na mento e co nservação
dos alime ntos, ele contribui para a criação do tipo da economia
excedentária
resultante
das
práticas
agr ícolas
e,
consequentemente, para a repartição de tarefas, a especialização
das aptidões individuais, a mobilidade e a estratificação das
sociedades. T ambé m foi evoluindo, ao longo do te mpo, na s
for mas,
na
acompa nha ndo
ideias.
decoração
e,
por
e
nas
técnicas
sua
vez,
motiva nd o,
de
ma nufac tura,
pensa me ntos
e
406
E Gabri el a Morai s c ont a a evol uç ão do vaso de c erâm i c a at é se
t ornar o cal dei r ão onde as bruxas faz em as s uas po ções e out ros
fei t i ços:
405
Jean Chevalier e Alain Gheerbran t, ob. cit., p. 677.
Gabriela Morais, Lenda da Fundação de Portugal, Irlanda e Escócia ,
p. 40.
406
300
Disse -se, a propósito do objecto mágico calde irão, que este
era o descendente dos primeiros potes de cerâ mica. Se o vaso
ca mpanifor me
(beaker)
especializado
de
essencialmente
a
aparece
cerâ mica
partir
de
uma
co mo
sendo
requintada,
longa
um
que
tradição
tipo
evolouiu
local,
nesta
sequência se insere também a manufactura dos vasos de metal, de
cobre, bronze, ouro ou ferro. E, dos vasos pequenos, rapida me nte
se passou ao caldeirão.
E mais elucidativo do que o mapa citado acima [o mapa da
expansão dos vasos ca mpa nifor me s ou bell-be akers], é o mapa da
expansão dos caldeirões, na época final do bronze, II/I milénio
a.C., onde Irlanda e Portugal estão claramente pontilhados,
indicando as flagra ntes se melha nças.
A
difusão
dos
caldeirões
entre
Portugal
e
a
Irlanda
constitui, aliás, prova do fluxo e refluxo de influências entre
estes dois países. E reveste -se de uma qualidade digna de realce
por se relacionar directa me nteco m uma das características de
objecto má gico: o contexto marcada me n te sa grado e ritual.
407
Apenas em L M 50 e LM 3 a m our a t raz consi go um a “ vara
m ági c a”:
Co mo
o
bastão,
a
varinha
é
símbolo
de
poder
e
de
clarividência, seja de um poder e de uma clarividência vind [o]s
de Deus, seja de um poder e de uma clarividência má gic [o]s,
subtraídos às forças celestes ou recebid [o]s do demó nio: a
varinha do mágico, da feiticeira, da fada. […]
Entre os Celtas, instrume nto mágico por excelênc ia, a
varinha é o símbolo do poder do druida sobre os ele me ntos.
408
P oder t em t am bém a cruz , pre sent e e m vári as ocasi ões – em
mat éri a ou não: e m LM 33 , a m ul her de Di o go “persi gnou -s e”
quando vi u o sangu e e ouvi u o gri t o de m ul her; em L M 3 4 , J oana
venc e a m oura, “e m punhando a cruz ” ; em L M 36 , o m ouro j ura
407
408
Idem, p. 42.
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 676.
301
“s obre a cruz ”; em L M 40 , “benz endo -se e rez a ndo, o ca rpi nt ei ro
com preend e t udo”; em L M 50 , o ca rpi nt ei ro, “ chei o d e t er ror,
pers i gnou -se e co rre u dal i para fora ”; e m L M 3 , “o carpi nt e i ro fez o
s i nal da c ruz e d i r i gi u -se de corri d a para cas a”; em E LAP / M 7,
M ari a Isabel da C o ncei ção Ol i vei r a “c om eça a rez ar os t r ês credos
em cruz ” .
[…] A cruz é o terceiro dos quatro símbolos funda menta is
(segundo
CHAS),
quadrado.
Ela
junta me nte
estabelece
com
uma
o
centro,
relação
entre
o
círculo
os
e
três:
o
por
intersecção dos seus dois braços que coincide com o centro, ela
abre o centro para o exterior; inscreve-se no círculo que divide
em quatro segmentos; gera o quadrado e o triângulo, quando as
suas
extremidades
são
ligadas
por
quatro
linhas
re ctas.
A
simbologia mais co mp lexa deriva dest a s simp les obser vações:
elas dera m orige m à lingua ge m ma is rica e mais universal. Co mo
o quadrado, a cruz simboliza a ter ra, mas exprime os se us
aspectos intermediários, dinâmicos e subtis. A simbologia do
quatro liga -se e m gra nde parte à da cruz, mas sobretudo ao facto
de ela designar um certo jogo de relações no interior do quatro e
do quadrado. A cruz é o mais totalizante dos símbolos (CH AS,
365).
409
Al gum as m our as a parec em pent e ando os seus cab el os com
pent es de ouro. C om o j á vi m os, a propósi t o da serei a , o pent e t em
um a si m bol o gi a for t em ent e l i gada à s ex ual i dade. No ent ant o, “o
pent e t am bém é aq uel e que mant ém j unt os os cabel os, i st o é, os
com ponent es
da
i ndi vi dual i dade
no
seu
aspe ct o
nobrez a, de c apaci d ade d e el evaç ão esp i ri t ual ”.
a
encont r ar
sí m bol os
rel aci onados,
410
de
força,
de
Vol t am os, assi m,
si m ul t aneam ent e,
com
a
s ex ual i dade e a ev ol ução espi ri t ual , suge ri ndo que am ba s são as
com ponent es pri nci pai s da vi da do ser hum ano.
409
410
Idem, p. 245.
Idem, p. 519.
302
Ex i st e, ai nda, nest as hi st óri as, um obj ect o part i cul a r – a
“gadanh a” – só usad o por um a person a gem – a mort e .
Símbolo da morte, na medida e m q ue a gada nha, tal co mo a
morte, igua la todas as coisas vivas. Mas foi só a partir do séc.
XV que a gada nha co meçou a aparecer nas mã os de um e squeleto,
para significar a inexorável igualizadora . No Antigo e no Novo
T estame nto, fala -se se mpre de foice, e não de gadanha, para
ceifar as ervas daninhas; mas surge mais co mo instr umento de
castigo, e portanto disc riminatório, e não co mo instr ume nto geral
da morte, e por isso igua l para todos. É nas mãos do velho
Satur no, o deus coxo d o te mpo, que mais co mumme nte aparece a
foice, ou a gada nha, como instrumento que ceifa, cega me nte,
tudo o que vive. A passagem da foice para a gadanha não fez
mais do que aco mpanha r a evolução dos utensílios agrícolas.
2.2.8.
411
FORMAS E NÚMEROS:
S e, em t odos os ex em pl os apont a dos, est am os pe ra nt e o
s i m bol i sm o cri st ão da cruz , o m esm o n em sem pre a cont ece no c aso
das encruzi l hadas :
A importâ ncia simbólica da encruzilhada é univer sal. Está
ligada
à
situação
de
cruza me nto
de
ca minhos,
que
faz
da
encruzil hada co mo que o centro do mundo, verdadeiro centro do
mundo para quem nela se situa . […]
412
Est es “cruz am ent os ” (nos vá ri os sen t i dos) acont ec em com
al gum as ent i dades cri st ãs – Sant os o u a N ossa S enhora –, m as
s obret udo com ent i dades m í t i cas , espe ci al m ent e l obi some ns , bruxas
ou f ei t i cei ras , al mas penadas e out ros medos (com o j á referi m os
ant eri orm ent e ) .
411
412
Idem, p. 343.
Idem, p. 283.
303
A encruzilhada é o encontro com o destino. Foi numa
encruzilhada que Édipo encontrou e ma tou seu pai, La io, e que a
tragédia co meçou. […]
Cada ser huma no é e m si mesmo uma encruz ilhada onde se
cruzam e se degladiam os diversos aspectos da sua pessoa. […]
Os Romanos prestavam culto aos Lares das encruzilhadas,
precisa mente para ne stas não encontrare m um destino ne fasto.
[…]
Na mitologia gre ga, uma divindade mui to mal definida, de
origem incerta, de uma esfera de acção ilimitada, identificada
com Ártemis, com Deméter, com Apolo, ou ainda com outros
deuses e deusas, foi cha mada a deusa das encruzilhadas ; era
Hécate. Este no me funcional veio-lhe se m dúvida de quand o se
acordou fazer dela a senhora dos três mundos: o Céu, a Terra e
os Infernos. […]
E m toda a Europa, é nas encr uzilhadas, como ta mbé m no
cimo dos monte s malditos, que os diabos e as feiticeiras se
encontram para celebrar os seus sabat.
413
Tam bém em LM 33 , o bol o, de form a rect an gul a r, dev er á ser
“di vi di do em quat ro part es”, l o go, di vi di do em cruz e form ando
quat ro r e ct ân gul os m ai s pequenos.
“– Apen as um grand e bol o. Assi m , d est e fei t i o... Est ás a v er ? –
E desenhava com a m ão um a espéci e de rect ân gul o. [ ...] – Quero um
bol o gra nde e m ui t o branco, di vi di do e m quat ro part es.” ( L M 33 )
O rect ângul o part i ci pa da si m bol ogi a ge ral do quadr ado:
É o símbolo da terra , por oposição ao céu, mas é ta mbé m,
num outro nível, o símbolo do universo criado, terra e céu, po r
oposição ao incriado e ao criador; é a antítese do transcendente.
O quadrado é uma figura antidinâmica, ancorada
nos
quatro lados. Simboliza a parage m, o instante antecipado. O
quadrado implica uma ideia de estagnação, de solidificação; até
mesmo a estabilização na perfeição: é o caso da Jerusalém
413
Idem, pp. 284 e 285.
304
celeste. Enquanto que o movimento livre é circular, redondo, a
paragem e a estabilidade são associadas a figuras angulosas, a
linhas quebradas e irregulares (CHAS, 30-31). [...] O número
quatro é, portanto, de certa for ma, o da Perfeição divina; de uma
for ma mais geral, é o no me do desenvolvimento co mpleto da
manife stação, o símbolo do mundo estabilizado.
414
O bol o, ao ser di vi di do em quat ro part es, dá ori gem a qu at ro
rect ân gul os m ai s pe quenos:
Os significados simbólicos do quatro estão ligados ao do
quadrado e da cruz. Desde épocas próximas da pré-história que o
4 foi utilizado para significar o sólido, o tangível, o sensível. A
sua relação com a cruz fazia dele um símbolo incomparável de
plenitude, de universalidade, um símbolo totalizador. [...]
Existem
quatro
pontos
cardeais,
quatro
ventos,
quatro
pilares do Universo, quatro fases da Lua, quatro estações, quatro
ele me ntos, qua tro humores, quatro rios do Paraíso, quatro letras
no no me de De us (YH VH) , do prime iro ho me m ( Adão), quatro
braços da cruz, quatro Evangelistas, etc. [...] O quatro simboliza
o terrestre, a totalidade do criado e do revelado.
415
Em E LAP / M 6, o rapaz est á t om ando cont a de um a sec a de
fi gos num al m anx ar – um a ei ra, l o go, u m cí rcul o.
Segundo
símbolo
funda mental
(segundo
CHAS,
24),
j u n t a me n t e c o m o c e n t r o , a c r u z e o q u a d r a d o .
O círculo
é,
em primeiro
lugar,
um ponto
estendido;
participa da sua perfeição. Assim, o ponto e o círculo têm
propriedades
simbólicas
comuns:
perfeição,
homogeneidad e,
ausência de distinção ou de divisão… O círculo pode ainda
simbolizar, não as perfeições ocultas do ponto primordial, mas
414
415
Idem, p. 549.
Idem, p. 554.
305
os efeitos criados; dizendo de outra forma, pode simbolizar o
mundo, quando se distingue do seu princípio. […]
416
A m oura d e L M 33 quer u m bol o e, de poi s, ofere ce um ci nt o;
C ás s i m a ofere ce ao carpi nt ei ro um ci nt o, t am bém ( LM 40 , LM 50 e
LM 3 ); D. Zarol ha t em , pri m ei ro, um so nho e, m ai s t arde, f i ca com
u m ol ho e sal t a -l he o out ro ( LM 44 e LM 25 ); em L36, a m oura est á
a pent ear -se com um pent e de ouro ; em LM 32 , D. Barb aç as
encont ra uma m eni n a que l h e ped e que l he l eve, t odos os d i as, uma
gal i nha. Est es s ão os casos m ai s e vi dent es e, t al vez , os m ai s
s i m ból i cos, em que est á ex presso o núm ero um , m as é f requ ent e, em
m ui t as l endas, um gove rn ador, uma fi l ha, um c ast el o, um a m oura,
um m oi ri nho, et c...
Encont ram os t am bé m um rap az e um gat o p ret o (E LAP / M 6),
uma burri nha bran c a ( E LAP / M 7), um rochedo onde m al c abi a uma
pes s oa , um vul t o (E LAP / M 8), um burro ( LLO 1 e E LLO 1), um
hom em ( E LM O 1 e LM O 3 ) e um garot o ( LM O 1).
Símbolo do ho me m de pé : único ser vivo a gozar dessa
faculdade,
a
ponto
de
certos
antropólogos
fazerem
da
verticalidade um sinal distintivo do ho me m, ainda mais radical
do que a razão.
O
Um
encontra-se
igualmente
nas
imagens
da
pedra
erguida, do falo erecto, do bastão vertical: representa o ho me m
activo, associado à obra da criação.
O U m é igualme nte o Princípio. Não manifestado, é dele
que emana toda a manifestação e é a ele que ela regressa ,
esgotada a sua existência efé mera; ele é o princípio a ctivo; o
criador. O Um é o luga r simbólico do ser, fonte e fim de todas as
coisas, centro cósmico e ontológico.
Símbolo
do
ser,
mas
ta mbé m
da
Revelação,
que
é
a
mediadora para elevar o ho me m, atra vés do c onhecime nto, a um
416
Idem, pp. 201 e 202.
306
níve l superior. O U m é ta mbé m o ce ntro místico, de onde irradia
o Espírito , como um so l.
417
A m oura d e L2 quer os doi s ol hos do fi l ho de Ant óni o; a de L M
3 8 ( LM 48 e LM 13 ) dá ao al m oc reve d uas barras de ou ro; em L M
4 5 e LM 31 , o r apa z t raz da Moi ram a doi s present es; em LM 59 , a
vaca p ari u doi s bez erri nhos; em L M 7 , o rapaz j unge ao a rado doi s
t ouros. E há m ai s sit uações de pares , c om o os doi s am ados ( LM 41 ,
LM 49 , LM 54 , LM 10 e LM 16 o pai e a fi l ha ( L M 39 , LM 45 , LM
4 6, LM 47 , LM 51 , LM 53 , LM 6 , LM 11 , LM 12 , LM 17 , LM 26 ,
LM 28 e LM 31 ), o m ari do e a m ul he r ( ( L M 33 , LM 34 , LM 40 , LM
4 3, LM 47 , LM 50 , LM 59 , LM 61 , LM 3 , LM 12 , os LM 27 , LM 32
e LM O 2), doi s i rm ãos encant ados e m LM 49 (e LM 1 0 ), os doi s
am i gos ( LM 21 e E LLO 1), o c asal de pret o que s e pa ssei a pel a
prai a ao anoi t ece r ( E LAP / M 9) ou a m ã e e o fi l ho de LLO 1 .
Símbolo de oposição, de conflito, de reflexão, es te
número indica o equilíbrio realizado ou de ameaças latentes. É o
número
de
todas
as
a mbiva lência s
e
de sdobrame ntos.
É
a
prime ira e a mais r adical d as divisões (o criador e a criatura, o
branco e o preto, o masculino e o feminino, a matéria e o
espírito, etc.), aquela de que de rivam todas as outras.
Na
Antiguidade foi o número atribuído à Mãe; designa o princípio
feminino. E entre as suas temíveis ambivalências, está o tanto
poder ser o germe d e uma evolução criadora como de uma
involução desastrosa.
O número dois simboliza o dualismo, sobre o qual se apoia
qualquer dialética, qua lquer esforço, qualquer co mbate, qualquer
mo vime nto, qualquer progresso.
418
Em LM 34 , Ant óni o l evou “t rês di as e t rês noi t es a fi o a ca var
e a s em ea r”; em L M 38 ( LM 48 e LM 13 ), são t rês os encant ados – a
m oura que apa rec e a J osé C oi m bra e os seus doi s i rm ãos – e são t rês
as condi ções i m post as pel a m oura ao al m ocreve: a pri m e i ra consi st e
417
418
Idem, p. 668.
Idem, p. 270.
307
em s er “t rês v ez es engol i do e t r ês vez es vom i t ado” pel o l eão e, a
s egund a, em s er “t r ês vez es ab raç ado” pel a serp ent e; o go vernado r
de Loul é t em t rês fi l has, l ogo, dá t rês pães ao carpi nt ei ro; em L M
4 2 (e LM 24 ), o m oi ri nho preci sa d e t rês m es es pa ra ch e ga r à su a
t erra, du rant e os qu ai s a m ul her d eve j e j uar t odos os di as; e m L M 4 4
(e LM 25 ), quando D. Za rol ha vol t a a sonhar com o t acho, t em o
m es m o sonho “por t rês noi t es segui da s”; em L M 60 , apa recem a
dançar, na f rent e d o rapaz , t rês ani m a i s d i ferent es, qu e s ão t odos
encant ados. E h á, t a m bém , out ros t ri os (1+2, ou 1+1+1 ), co m o, por
ex em pl o, os segui nt es: em L M 33 – a m oura / Di ogo e a m u l her; em
LM 34 – a m oura / Ant óni o e J oana , e Ant óni o / J oana e os fi l hos ;
em LM 35 – a m our a / Ant óni o e a m ãe ; Ant óni o / doi s ami gos ; em
LM 36 – o m ouro / J oana e a m ã e ; em LM 37 – Fl ori p es / J ul i ão e
Ani nhas ; Fl ori pes / J uli ão e o com padr e Zé; o com padr e Zé / J uli ão
e Ani nhas; em LM 4 1 (e LM 16 ) – Abda l á / Al i na / Az i z ; em L M 43
(e LM 27 ) – a m ul he r / o m ari d o / o m ouro; em LM 45 (e LM 31 ) – o
rapaz / a m oura / a fam í l i a da m oura ; em L M 49 (e LM 10 ) – o
j ovem guerr ei ro / a fi l ha do governado r / o i rm ão de oi t o anos ; o
j ovem gu err ei ro / a m oura / o pai d el a ; a fi l ha do gov ern ador / o
j ovem gu err ei ro / os com pan hei ros; em LM 54 – Di n orah / o
t rovador / o própri o Al á; em L M 61 – o m ouri nho / a m ul her e o
m ari do; em L M 21 – a m our a / os doi s am i gos (e t am bém f oram t rês
os
cont act os
que
el a
em preend eu,
ant eri orm ent e,
pa ra
o
seu
des encant am ent o); e m L M 32 – a “m eni na ” / a “vel ha ” / o povo ; a
“m eni na” / a “vel ha ” / o m ari do; em E LAP / M 7 – a avó do narrado r
/ a burri nha / a vo z ; os t rês credos e m cruz ; em E LAP / M 8 – “À
t ercei r a vez , o nosso hom em concl ui u que era al guém q ue, por
det rás del e, l h e and ava a d ar um fort e sa cão na can a” e o uvi u t rês
“s onoras gar gal hada s”; em E LAP / M 9 – um senhor e um a da m a / um
grupo de garot os; e m LLO 1 – B erna rd i no / a f am í l i a / as pessoas;
em E LLO 1 – os doi s pescadores / um burro; os doi s pescadores /
um hom em ; em LM O 1 – um garot o / a m ã e / o supost o pai ; um
ga rot o / a m ãe / o verdadei ro pai ; em LM O 2 – a mort e / o casal de
i dos os.
308
O três é , universalme nte, um número funda me ntal. E xprime
uma orde m intelec tual e espiritual, e m De us, no cosmo s ou no
ho me m.
Sintetiza
a
tri-unidade
do
ser
vi vo
ou
resulta
da
conjunção de 1 e 2, produto, nesse caso, da União do Céu e da
Terra. [...] O tempo é triplo […]: passado, presente, futuro; o
mundo é triplo […]: terra, atmosfera, céu; […]
419
O três é, ainda, a ma nifestação, o revelador, o indicador
dos dois primeiros: o filho revela o pai e a mãe, o tronco de
árvore da altura do home m revela o que e stá acima dele no ar,
ra mos e folhas, e o que se oculta debaixo de terra, as raízes.
Por fim, o três equiva le à rivalidade (o dois) ultrapassada;
exprime um mistério de ultrapassage m, de síntese, de reunião, de
união, de resolução (HAMK).[…]
O três designa, ta mbé m , os níveis da vida humana: ma terial,
racional e espiritual ou divino, bem co mo as três fa ses da
evolução mística: purgativa, iluminativa e unitiva.
420
Nas l endas de mou ras encant adas, ap enas em LM 61 há um a
refe rênci a esp eci al ao núm ero ci nco : o m oi ri nho dever á aj udar a
m ul her nos servi ços da casa du rant e o p erí odo de ci nco ano s.
O número 5 vai buscar o seu simbolismo a o facto de, por
um lado, ser a soma do primeiro número par e do primeiro
número ímpar (2+3); e, por outro lado, ser o meio dos nove
prime iros números. É s inal de união, númer o nupcial, dizem os
Pitagóricos;
equilíbrio.
número
Será,
ta mbé m
portanto,
do
o
centro,
número
da
das
har mo nia
e
hierogamias,
do
o
casa me nto do princípio celeste (3) e do princípio terrestre da
mãe (2).
É ainda símbolo do home m (braços afa stad os, o ho me m
parece disposto em c inco partes e m for ma de cruz: os dois
braços, o tronco, o centro abrigo do coração a cabeça, a s duas
419
420
pernas).
Símbolo
vertical,
outro
igualme nte
horizontal,
do
universo:
passando
por
um
dois
eixos,
mesmo
um
centro;
Idem, p. 654.
Idem, p. 656.
309
símbolo da ordem e da perfeição ; finalmente, símbolo da vontade
divina que só pode desejar a ordem e a perfeição (CHAS, 243 244).
Representa ta mbé m os cinco se ntidos e as cinco for ma s
sensíveis da matéria: a totalidade do mundo sensível.
421
Mas a si m bol ogi a do núm ero ci nco t a m bém est á i nt i m am ent e
l i gada à das en cruz i l hadas:
Da mesma for ma, o Ce ntro do mundo, representado pelo 5,
é tamb é m o glifo do tre mor de terra, do castigo fina l, do fim do
mundo, onde os espíritos ma léficos se precipitarão das quatro
direcções
cardeais
sobre
o
centro
para
aniquilarem
a
raça
humana. O Centro do mundo é aqui a encruzilhada central e,
como todas a s encr uz ilhadas, é um lugar onde se produze m
te míveis aparições.
422
Em LM 32 , a vel h a B arba ças “d evi a t raz er -l he um a gal i nha
t odos os di as [ ...] durant e 6 m eses.” (“Os m úl t i pl os dum núm ero
t êm , em ger al , o m esm o si gni fi cado si m ból i c o de bas e que o núm ero
s i m pl es . P orém , ou acent uam ou i nt en si fi cam est e si gni fi cado , ou
m at i z am -n[ o] n um sent i do part i cul ar que deve ser proc urado em
cada caso. ”
423
) – or a, o núm ero s ei s , al é m de ser m úl t i pl o de doi s e
de t rês, est á di re ct am ent e l i gado a o si gno d e S al om ão (cuj a
s i m bol o gi a anal i sar em os m ai s adi ant e):
Para Allend y ( ALLN, 150), o senário marca esse ncialmente
a oposição da criatura ao Criador num equilíbrio indefinido. Esta
oposição não é necessa ria mente de contradição; pode marcar uma
simple s distinção, ma s que ser á a fonte de todas as a mbiva lência s
do
seis:
com
efeito,
reúne
dois
co mple xos
de
a ctividades
ternárias. Pode pender para o bem, mas ta mbé m para o mal , para
a união a Deus, mas ta mbé m para a revolta. É o número dos dons
421
422
423
Idem, p. 196.
Idem, p. 197.
Idem, p. 479.
310
recíprocos e dos anta gonismo s, o do destino místico. É uma
perfeição e m potência; o que se exprime pelo simbolismo gráfico
de seis triângulos equiláteros inscritos num círculo: cada lado de
cada um dos triângulo equivale ao raio do círculo e seis é quase
exactamente a relação entre a circunferência e o raio (2 p). Mas
esta perfeição virtual pode abortar e esse risco faz do 6 o número
da prova entre o bem e o mal.
424
Os l obi somens são os sét i m os fi l hos de um casal e as f ei t i ce i ras
o u mul heres de vi rt udes são as sét i m as fi l has .
O sete corresponde aos sete dias da semana, aos sete
planetas, aos sete graus da perfeição, às sete esferas ou graus
celestes, às sete pétalas da rosa, às sete cabeças da naja Angkor,
aos
sete
ra mos
da
árvore
cósmica
e
dos
sacrifícios
do
xa ma nismo, etc.
[…] Sete indica o senti do de uma mudança depois de um
ciclo concluído e de uma renovação positiva . […]
Sete é o número , observá mos inicialme nte, da conclusão
cíclica e da sua renovação. Tendo criado o mundo em seis dias,
Deus desca nsou no sétimo e fez dele um dia santo: o sabbat não
é, portanto, verdadeiramente um descanso e xterior à criação, mas
o seu coroame nto , a sua conclusão na perfe ição. É aquilo que
evoca a se ma na, que dura um quarto de Lua. […]
O sete co mporta, no entanto, uma a nsiedade pelo facto de
indicar a passagem do conhecido para o desconhecido: um ciclo
encerrou-se, qual será o seguinte?
No
caso
do
l obi somen ,
425
pa rt i cul am e nt e,
t al vez
possa m os,
t am bém , acr escent a r a se gui nt e si m bol ogi a:
Nos contos e nas le ndas, este número exp rime os Sete
estados da matéria, os Sete graus da consciência, as sete etapas
da evolução:
424
425
Idem, p. 591.
Idem, pp. 603 e 604.
311
1. consciência do corpo físico: desejos satisfeitos de
for ma ele mentar e brutal ;
2. consciê ncia da inteligência da e moção: as pulsões
comple xifica m-se co m o sentimento e a imaginação;
3. consciência
da
inteligênci a:
o
sujeito
classifica,
ordena, raciocina;
4. consciência
da
intuição:
as
relações
com
o
desprendime nto
da
inconsciente são percebidas;
5. consciência
da
espiritualidade:
vida material;
6. consciência da vontad e: que faz com que o saber
passe para a acção;
7. consciência da vida: que dirige toda a sua actividade
para a vida eterna e a salvação .
426
Mas não dei x a de ser vál i do par a a f ei t i cei ra , t am bém , sej a
mul her de vi rt udes ou m enos vi rt uosa. Assi m , de acordo co m o gr au
de consci ênci a m ani fest ado, poderem os i nt egr á -l os num dos est ádi os
aci m a re feri dos.
2 . 2 . 9. C O R P O H U M A N O :
Ao analisarmos todos os entes míticos que estudámos no
início deste trabalho, não podemos deixar de concluir que o
cabelo, ou melhor, a relação com o cabelo, ou talvez melhor
ainda, a forma como é usado, é o que todas as entidades
femininas têm em comum.
S e n d o a c a b e l e i r a u m a d a s p r i n c i p a i s a r m a s d a mu l h e r , o
facto de estar à mostra ou escondida, atada ou desatada é
426
Idem, p. 606.
312
frequente me nte um sinal de disponibilidade, de entrega ou de
reserva da mulher.
427
O cabelo constitui um aspecto profundamente significativo
do corpo huma no, quer pessoal quer socialme nte, co mo se pode
observar no vasto leq ue de simbolismo ligado aos diferente s
estilos de cabelo. Está essencia lme nte asso ciado à força vital.
[…] O cabelo co mpri do e solto nas mulheres significava o estado
solteiro ou a vir gindad e – como na iconogra fia cristã da Virge m
Maria
e
das
santas
virgens
–,
co mpara do
com
o
cabelo
entrançado da cortesã. […] A COR DO CABELO tem o seu
próprio
simbolismo;
o
cabelo
ruivo
detinh a
antigamente
associações de moníaca s, o c abelo louro representa o poder solar
ou régio e o cabelo preto autoridade terrestre. [“A górgona
Medusa, co m o seu cabelo de cobras entrelaçadas, é um símbolo
assustador da força vital fe minina no seu a specto maléfi co e
d e s t r u i d o r . ” ] 428
C onvém , ent ão, rec ordar que a serei a pode t er ca bel os ru i vos
(“rem i ni scên ci as d a pl um agem av erm el hada”, sem dúvi da ) e a I ara
apare ce com c abel o s de vári as cor es ( “l ouros e verd es , m as, em
ge ral , são ne gros e l i sos”, com o j á ci t ám os) , as mouras enca nt adas e
a N ossa Senhora c om cabel os l ouros. Y emanj á , o ra t raz cab el o
cl aro, or a pret o.
É de sal i ent ar, em t odas as l endas, a i m port ânci a especi al d ad a
ao s ent i do da vi são, em part i cul ar ao ol har, a i núm eros t i pos de
ol har e, por conse gui nt e, aos ol hos ( “o ol ho é sí m bol o da percep ção
i nt el ect ual [ …] , de conheci m ent o, d e p ercep ção sobren at ur al [ …] e
um equi val ent e si m ból i co do Sol ”
429
):
O olhar carrega todas as paixões da alma e é dotado de um
poder má gico que lhe confere uma terrível e ficácia. O olhar é o
instr umento das ordens interiores: mata, fasc ina, fulmina, seduz,
427
428
429
Idem, p. 139.
Jack Tresidder, ob. cit., p. 18.
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., pp. 484 a 486.
313
do mesmo modo que exprime. [...] O olhar aparece co mo o
símbolo e o instrume nto d uma revelação. Mas, ma is ainda, ele é
um reactor e um revelador recíproco de quem olha e de quem é
olhado.
430
E est e “ol har e ser ol hado” rem et e -nos, i m edi at am ent e, par a o
mau ol hado , “dei t ad o” especi al m ent e pe l as bruxas .
O mau olhado é uma expressão, muito co mum no mundo
islâ mico, que simboliz a uma to mada de poder sobre algué m ou
alguma coisa, por inve ja e por má inte nção. O mau olhado é a
causa, diz -se, da morte de metade da humanidade. O mau olhado
esvazia as casas e enc he os túmulos. T êm olhos partic ular me nte
perigosos:
as
velhas
e
as
jovens
recém -casadas.
E
são
particular me nte se nsíveis a ele: as cria nças, as parturiente s, as
jovens recém-casadas, os cavalos, os cães, o leite e o trigo. […]
Existem
desenhos
meios
de
geométricos,
defesa
contra
objectos
o
ma u
brilhantes,
olhado:
véu,
fumigações
odoríferas, ferro ver melho, sal, alúmen, c hifres, mei a -lua, figa.
A ferradura ta mbé m é um talismã contra o mau olhado: parece
reunir, de vido à sua matéria, à sua for ma e à sua função, a s
virtudes má gica s dos vários símbolos: corno, meia -lua, mão, e as
do cavalo, animal do mé stico e, primitiva me nte , sagrado.
431
Mas há , nas l endas de mouras encant adas , t rês si t uações em
que os ol hos assum em especi al i m port ânci a, porque l he s é (ou
pret ende ser ) ret i ra da a ex t raordi nári a capaci dad e de ex ercer em a
s ua função: em LM 34 , a m oura preci sa dos ol hos do fi l ho m ai s
vel ho de Ant óni o e de J oana para pod er l i bert ar -se do s eu c at i vei ro;
em LM 38 ( LM 48 e LM 13 ), o al m ocr eve fi c a ce go, por c ast i go da
m oura enc ant ada, d urant e al guns anos, recupe rando a vi são t am bém
por desí gni o d a m e sm a ent i dade; em L M 44 (e LM 25 ), “s al t a” um
ol ho à personagem , que fi ca a ser conhe ci da por D. Za rol ha , devi do
430
431
Idem, p. 484.
Idem, p. 486.
314
a es se f act o, supost am ent e t am bém por cast i go pel a sua h esi t ação
ant eri or.
Nout ros epi sódi os l endári os, t em os ol h os e ol har es di fer en t es:
em E LAP / M 6 , “só nel e [ o gat o pret o] bri l havam doi s ol hos m ui t o
vi vos”; em E LAP / M 9 , o senhor e a dam a de pr et o “d e fac e t ão
m aci l ent a e de ol ho s t ão l uz i di os que m ai s pare ci am duas al m as do
out ro m undo…”; e m E LLO 1 , “um en orm e burro, de or el has m ui t o
es pet adas e ol hando para el es com a r de desafi o [ …] . Depoi s, parou
e pôs -se a ol h ar pa r a el es com o que a e x am i nar as suas at i t udes. ”.
Ser cego significa, para uns, ignorar a realidade das coisas,
negar a evidência e, portanto, ser louco, lunático, irresponsável.
Para outros, o cego é aquele qu e ignora as aparênc ias enganosas
do mundo e, graças a isso, tem o privilégio de conhecer a sua
realidade secreta, profunda, interdita ao co mum dos mortais. [...]
Os deuses cegam ou enlouquecem aqueles que eles querem
perder, e por vezes salvar. Mas, se assim apetecer aos deuses, o
culpado recupera a vista: eles são os donos da luz. […]
Entre os Celtas, a cegueira constitui normalmente uma
desqualificação para o sacerdócio ou para a adivinhação.
432
E em LM 50 e LM 3 , a m ul he r do ca rp i nt ei ro, ao cort a r o pão,
cor t a “a pern a di r ei t a” de C ássi m a, e e m L M 37 e LM 14 , para s e r
l i bert ada, Fl o ri pes d everá s er f eri da no “ braço, do l ado do co ração ”:
A
mutilação
aparece
na
maior
parte
das
vezes
como
desqualificação. [...]
Mas esta conseq uência totalmente social da mutilação não
afecta verd adeira mente o sentido simbólico d essa pala vra. [...] a
ordem da cidade é par: o homem fica de pé sobre as duas pernas,
trabalha com os dois braços, vê a realidade visível com os seus
dois olhos. Ao contrário da ordem huma na o u diur na, a ordem
escondida,
nocturna,
transcendental,
é
por
princípio
una
e
repousa sobre um vé rtice, co mo a bailarina ou a pirâ mide
432
Idem, pp. 180 e 181.
315
invertida. O d isfor me, o a mputado, o estropiado têm isso e m
comum: ac ha m-se colo cados à marge m da sociedade huma na – ou
diurna – pelo fato de a paridade, neles, ser atingida: eles
participam, pois, da í e m dia nte , da outra ordem, a da noite,
infernal ou celeste, satânica ou divina. [...]
A mutilação reveste -se , portanto, de um valor simbólico de
i n i c i a ç ã o , b e m c o m o d e c o n t r a - i n i c i a ç ã o . 433
Ai nda a propósi t o de m ut i l ação, em bor a não se t rat e do corpo
hum ano, em L1, é cort ada a perna do ca val o que, deduz -se, l evari a a
m oura, desen cant ad a .
Em LM 33 , LM 40 , LM 50 e LM 3 , há “t ent at i vas ” de
m ut i l ação, que ca usari am , sem dúvi da al gum a, a m or t e, com o
vi ngan ça, por part e das m ouras, pel as m ut i l ações sofri das, e que só
não são consum adas por “acaso ”, com a agr avant e d e, em L M 50 e
LM
3,
o
obj ect o
de
t ão
t errí vel
vi ngan ça
ser
a
m ul her
do
carpi nt ei ro, no mo m ent o de dar à l uz um a cri anç a.
Revestindo a face descendente desta dualidade [evoluçãoinvolução], da luz em direcção às trevas, elas [as mulheres que
morre m
no
parto]
fazem
parte
da
expressão
perigosa
do
sagrado.[...]
A mulher que morre ao dar à luz uma criança adquire e m
todas as culturas um significado sagrado, que se aproxima do
sacrifício humano destinado a garantir a perenidade, não só da
vida, co mo da tribo, da nação, da fa mília.
434
Em LM 40, LM 50 e LM 3, do pão cort ado pel a m ul her do
carpi nt ei ro “com e ç a a s ai r san gu e” ( em L M 40, a m ul her “l ava
cui dadosam ent e o chão s uj o de sangue ”); t am bém em L M 33 , a
perna do cav al o da m oura, que fora cor t ada pel a m ul her de Di ogo ,
“es t ava a san grar ” e, quando est e aci d ent e ocorr eu, a m ul her vi ra
433
434
Idem, pp. 464 e 465.
Idem, p. 506.
316
com eça r a escor rer do bol o “um l í qui do vi scoso, verm el ho -escuro ,
com o san gue! ”:
O sangue simboliza todos os valores solidários d o fogo, do
calor e da vida que têm parentesco com o Sol. [...]
O sangue corresponde ainda ao calor, vital e corporal,
oposto à luz, que corresponde ao sopro e ao espírito. Nesta
mesma perspectiva, o sangue , princípio corporal, é o veículo das
paixões (CADV, ELIF, GUEM, GUES, PORA, SAIR).
O sangue é considerado por alguns povos co mo o veículo
da
a l ma ;
o
que
explicaria,
segundo
Frazer,
os
ritos
dos
sacrifícios, nos quais se tinha um grande cuidado em não deixar
que o sangue da vítima se derrama sse no chão [...].
435
Em E LLO 1, após o que se deduz que fo i um a t ransform a ção de
um burro / l obi somem novam ent e em hom em , est e é “j á de i dade,
m as fort al haço e d e gr andes orel h as”. As orel has são sím bol o do
s ent i do da audi ção e, por conse gui nt e, d e “ com uni caç ão, e nquant o é
recebi d a e passi va ”
burro
em
que
se
436
. M as , nest e caso, t al vez por an al o gi a com o
t ransform ar a,
e
pel a
própri a
cond i ção
de
l obi som em , parec e - nos que a si m bol ogi a das o rel has gran des est á
m ai s próx i m a da da l enda do rei Mi das:
Segundo a lenda grega do rei Midas, as orelhas grandes
seria m ta mbé m a s insígnias da estupidez. Mas a aná lise da lenda
revela muito mais: ao preferir a flauta de Pã à lira de Apolo, o
rei Midas escolhe u o q ue esses deuses simboliza m, a sed ução dos
prazeres em vez da ha r monia da razão. As suas grandes orelhas
significam
o
e mbr ute cime nto
saído
da
perversão
dos
seus
desejos. Mais ainda, ele quer esconder a sua defor midade: mais
não faz do que acrescentar a vaidade à luxúria e à patetice.
435
436
437
437
Idem, p. 171.
Idem, p. 490.
Ibidem.
317
2 . 2 . 10.
ANIMAIS:
P aral el am en t e
aos
ani m ai s
fant ást i cos
e/ ou
si m ból i cos
pres ent es em t odas as narrat i vas de c ari z t radi ci onal (o dra gão, o
l eão, o t ouro, o ca val o, o carn ei ro, o bode, a cab ra, a s e rpent e, o
s apo, o r at o, o pei x e), ve ri fi cam os ai n da, nest as l endas, u m a séri e
de ani mai s domést i cos (a v ac a, a m ul a, o burro, o bez er ri nho, o
porco, a l eb re, o coel ho, a gal i nha , o peru e, at é, a m osca ).
C om eçam os por est e s, por vi verem m ai s próx i m os dos hom ens.
Em LAP / M 10, a al m a penada é um a “m osca varej ei ra ”. P ara
al ém da cor p ret a, e st a m osca pode t er o ut ra conot aç ão:
Se mpre a zunir, e m rede moinhos, a picare m, as mosca s são
seres insuportáveis. M ultiplica m -se sobre o apodrecimento e a
decomposição,
transportam
os
piores
germes
de
doenças
e
desafia m qualq uer protecção: simboliza m uma busca ince ssante .
É, nesse se ntido, que uma a ntiga divindade síria, Belzebu, cujo
no me significaria, etimo logica me nte, o sen hor das moscas , se
tornou o príncipe dos demónios.
438
Em LM 32 , a m ul her devi a l evar t odos o s di as, à “m eni na ”, um a
gal i nha . Est e ani m al , sendo consi derad o popul arm ent e “es t úpi do e
i ngénuo ”, r epres ent a, sem dúvi d a, al gum a ri quez a, p el o m enos do
pont o de vi st a al i m ent ar, poi s forne ce carne, ovos (as pen as podem
s ervi r par a ench er a l m ofadas) e o seu s angu e é m ui t o apre ci ado em
al guns pr at os t r adi ci onai s. S abem os, t am bém , que pode ser um
ani m al sacri fi ci al (e m al gum as t r adi ções , que não a n ossa), m as que,
s egu ram ent e, é usa do, por vez es, para bruxedos , sobret u do se se
t rat ar de um a gal i nh a pret a, com o é o c a so de L M 53 e LM 1 7 .
438
Idem, p. 461.
318
A
galinha
cerimónia s
representa
iniciáticas
e
um
papel
divinatórias
de
dos
psic opompo
Bantos
da
nas
Bacia
Congolesa. […] Em muitos ritos de carácter órfico ela aparece
associada ao cão.
O sacrifício da galinha para comunicar com os defuntos –
costume espalhado por toda a África Ne gra – provém do mesmo
simbolismo.
439
Um hom em vi u -se, um di a, no m ei o de um “rebanho d e per us de
m onco esca rl at e”.
O peru é uma a ve originária da América e um símbolo
importante de fertilidade em inúmeras cultur as, no meadaa mente
entre os povos a meríndios, para os quais significa a fertilidade
fe minina e a virilidade masc ulina. O peru era sacrificado nos
rituais d fertilidade. […] ta mbé m está assoc iado ao ma u te mpo
pela agitação provocada pelas te mpestades.
440
R ecol hem os um epi sódi o l endári o que r el at a a apa ri ção d e doi s
coel hi nhos brancos, na l adei ra do al t o, de Odel ouc a.
Co mo a nimais nocturnos, os coelhos simboliza m a Lua, a
morte e o re nascime nto […]. São criatura s q ue se esco nde m na
terra, são criadores prolíferos e representam a fertilidade e a
sorte. […] No Médio Oriente e devido aos seus poderes criativos,
os coelhos e as lebres são considerados como criaturas má gicas.
Possuir uma pata (a parte que entra em contacto com a terra que
dá vida) era considerado um símbolo de protecção contra o m al e
um auspício de sorte. Apesar disso, a lebre pode ser um fa miliar
de uma br uxa.
439
440
441
441
Idem, pp. 343 e 344.
Clare Gibson, ob. cit., p. 114.
Idem, p. 101.
319
J ack
af i rm a
Tresi dder
ai nda
que,
devi do
ao
“seu
f ort e
s i m bol i sm o l unar”, est es ani m ai s (c oel hos e l ebres) “est avam
l i gados
à
fe rt i l i dade
e
aos
ci cl os
m enst ruai s
fem i ni no s”
em
vari adí ssi m as t radi ções, nom e adam ent e a cel t a: “A l ebr e er a um
at ri but o de deusas d a Lu a e d a ca ça nos m undos cl ássi co e c el t a”.
442
Tam bém em Odel ou ca, sobret udo, qu e fi ca ent r e Monchi q ue e
S i l ves, aparec e a Z orra Berradei ra que , com o j á assi nal ám os, t ant o
é as s oci ad a a um a m oura encant ada com o a um a al ma penad a .
[…]
Independente,
mas
satisfeita
por
o
ser;
activa,
inventiva, mas ao mesmo tempo destruidora; audaciosa, mas
medrosa; inquieta, astuciosa, porém desenvolta, ela [a raposa]
encarna
as
contrad ições
(GRIP,52).
Tudo
civilizador
ou
o
que
cúmplice
a
de
inerentes
à
raposa
pode
fraudes
em
condição
humana .
simbolizar,
in[ú]meros
herói
mitos,
tradições e contos pelo mundo, talvez [tenha sido] desenvolvido
a partir deste retrato […].
A sua a ssociação às divindades da fertilidade prové m, se m
dúvida, do seu vigor e da força dos seus apetites […].
443
Em S . Brás de Al port el , apare ce “um cão pret o, gi gant es co”,
que em nada se p arec e com “o m el hor am i go do hom em ”. Em
j nj bhj bhj , i a um cão em ci m a do burro segui do p el a m ul her. E e m
Al m ansi l , apar eceu , um a vez , um cã o que foi aum ent ando d e
t am anho enquant o s egui a ao l ado de um hom em de bi ci cl et a , desde o
cem i t éri o, che gando a t er o t am anho da própri a bi ci cl et a, e não se
s abe o que l he a con t eceu, poi s o hom e m , t om a do de pâni co, ent rou
de rom pant e na t aberna e nem conse gui u cont ar o que lhe t i nha
acont eci do. Est as t r ês si t uações re cord am -nos i m dedi at am ent e um a
s uperst i ção r ecol hi d a por C onsi gl i eri P e droso (Nº 447 ): “A al m a dos
442
443
Jack Tresidder, ob. cit., p. 64.
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit.,p. 561.
320
i ndi ví duos que m orrem , apa rec e às vez es debai x o da form a de um
cão pret o. ”
444
É que o cão t em u m si m bol i sm o frequent em ent e i gnor ado por
quem o vê apen as c om o o ani m al dom ést i co m ai s dóci l e subm i sso
de t odos:
Não há, se m d úvida, mitolo gia alguma q ue não te nha
associado o cão Anúbis, T ’ian -k’ua n, Cérbero, Xolotl, Garm, etc.
à morte, aos inferno s, ao mundo subterrâneo, aos impérios
invisíveis regidos pelas divindades ctonianas ou selénicas. O
símbolo muito co mple xo do cão está, portanto, à primeira vista,
ligado à trilogia dos ele me ntos terra – água – lua, da qual se
conhece o significado oculto, femeal, ao mesmo tempo que
vegeta tivo, sexual, adivinhatório, funda me nta l, tanto no que se
refere ao conceito de inconscie nte co mo ao de subsco nscie nte.
A primeira função mítica do cão univer salme nte ate stada é
a d e p s i c o p o mp o , g u i a d o h o m e m n a n o i t e d a m o r t e , d e p o i s d e
ter sido seu co mpanheiro no dia da vida.
445
S egundo vári os epi s ódi o s l endári o s , ex ist e m m ouro s encant ado s
em carn ei ro s na re gi ão d e Loul é, ass i m com o em Az i nhaga das
Qui nt as, P êra, S í t i o d a P at ã e S i l ves (o própri o rei de S i l ve s).
Ardente, macho, instintivo e potente, o carneiro simboliza a
força ge nésica que desperta o ho me m e o mu ndo, e que asse gura
a recondução do ciclo vital, ta nto na primave ra da vida co mo na
das estações. […] Esta força ígnea assemelha -se ao jorrar da
vitalidade primeira, ao ímpeto primitivo da vida, com tudo que
um processo inicial te m de imp ulso puro e bruto, de descarga
eruptiva, fulgura nte, indomá vel, de arrebatamento desmedido, de
sopro abrasador.
444
445
446
446
Consiglieri Pedroso, ob. cit., p. 204.
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit.,p. 152.
Idem, p. 160.
321
Esses encant am ent o s t êm em com um o fact o de se t r at ar de um
carnei ro que anda p el os cam pos, apar ec e e desapa rec e quan do sent e
prox i m i dade de hum anos. Quase t odos “dão uns berros de m et er
m edo”.
447
O carneiro bravo, feroz e energético encarna as qualidades
da agressivi dade, para alé m de ser um símb olo da força e da
virilidade masc ulina. […] Na mitologia celta, a serpente com
cabeça de carneiro era um atributo de Cernunnos; o carneiro
estava associado à guerra e à fertilidade.
448
Mas, ao que parec e, est e carnei ro est á c o ndenado a per corr e r os
cam pos
em
redor
enquant o
houver
encant ados
nos
pal áci os
s ubt errâneos d a r e gi ão, onde cost um am r euni r -se pe ri odi cam ent e.
Na tradição popular, como na tradição religiosa, o carneiro,
junta me nte
com
os
seus
parentes,
apresenta,
por
vez es,
a
natureza de vítima absoluta. […] Co mo vítima sacrificial, ele é
poder
de
transferência,
transporta
o
in transportável,
porque
estabelece a passa ge m para o Alé m. É por esse motivo que o
carneiro sacrificial é um mediador entre o humano e o divino; no
447
Ana Paiva Morais reproduz uma lenda citada por José Leite de
Vasconcellos, que poderá interessar -nos, dado o contexo das nossas
lendas: “Numa versão medieval da Criação dos Animais, o carneiro foi o
primeiro animal criado por Adão com uma vara que Deus lhe dera e que
permitia ficar menos só sobre a Terra depois de ter sido expulso,
juntamente com Eva, do Paraíso Terrestre. Adão brande a vara no
sentido do mar, e dele salta a ovelha, que além da companhia, fornece o
leite e a lã; ao ver o sucesso de Adão, Eva procura imitá -lo, mas quando
gesticula com a vara no sentido do mar, o que brota dele é o lobo, que
logo dispara em perseguição da ovelha. Adão, para desfazer o mal, usa
novamente a vara, com a qual cria o cão, que, ao ver o lobo e a ovelha,
se apresta a socorrer esta última. Esta tradição permite estabelecer a
linha de separação entre o universo dos an imais dóceis ao homem e
domesticáceis – os criados por Adão – e os animais selvagens e
indomáveis – os criados, insensatamente, por Eva com um gesto em que
usurpa o poder criador concedido a Adão.” – B. I. do Carneiro, p. 6.
448
Clare Gibson, ob. cit., pp. 104 e 105.
322
entanto, ele é um emissário sem voz, aquele que pode anular -se
449
diante da essência do outro. […]
Nos contos da tradição popular, retoma ndo uma lógic a
simbólica que está a ctiva ta mbé m na trad ição sacrificial do
« A n t i g o T e s t a m e n t o », o c a r n e i r o p a r e c e s e r a q u e l e q u e t r a z o
outro em si. Talvez seja ele o animal que descreve de maneira
mais intensa a ideia da nossa
necessidade do outro, de o
transportar e m nós (de o comer), de ser transportados por ele (de
o sacrificar), e, por isso, se pode acreditar que as fal sificações
da sua identidade não decorrem de uma intenção de ludibriar,
como acontece co m a raposa, mas se fica m a dever à infinita
dádiva da sua identidade, pela qual cada um dos seres, incluindo
o ho me m, pode encontr ar -se co m os outros.
Em
LM
60 ,
Ind ependent em ent e
rapa z
vi u
um
t ouro
“a
“dan ça”,
qu e
faz i a
part e
do
o
da
450
d an çar” .
ri t ual
do
des encant am ent o, pel os vi st os, o t ouro é um dos sí m bol os m ai s
com pl ex os, de ent re os ani m ai s ( à ex ce pção da serp ent e, co m o é por
dem ai s evi dent e):
O touro evoca a ideia de força e ímpeto irresistíveis. […]
Na tradição grega, os touros indomá veis simboliza va m o
desencadea me nto desenfreado da violência. [..]
O touro, ou mais geralmente, o bovino, representa os deuse s
celestes
nas
religiões
indo -mediterrânicas,
em
virtude
da
fecundidade infatigável e anárquica de Úrano, deus do céu,
análoga à sua.
O
simbolismo
do
touro
está
igua lme nte
ligado
ao
da
torme nta, da chuva e d a Lua. […]
As
divindades
lunares
mediterrânico -orientais
eram
representadas sob a forma de touro e investida s com os atributos
taurinos. […]
449
Ana Paiva Morais, B. I. do Carneiro, Lisboa, Apenas Livros Lda.,
2006, p. 20.
450
Idem, pp. 28 e 29.
323
A morte é inseparável da vida e o touro apresenta ta mbé m
uma face fúnebre. […]
O touro
não
deve
ter
tido,
para
os celtas,
um
valor
simbólico exclusivo de virilidade e não se te m a certeza se se
deve procurar o seu prime iro significado na dualidade ou na
oposição sexual com a vaca. [… ]
451
Mas t am bém o rapaz de L M 7 encont rou “doi s bel os t ouros”.
Existe m todas as a mbivalênc ias e todas as amb iguidades no
touro. Água e fogo: é lunar, na medida em que se associa aos
ritos da fec undidade; solar, pelo fogo do seu sangue e pelo
esplendor do seu sémen. […] É uraniano e ctoniano. Os bovinos,
como os ca ninos, pode m de facto aparecer ora como epifa nias
terrestres ou ctoniana s, ora como epifanias urania nas. Muita s
vezes, é a partir da su a cor que se define o seu símbolo.
Em LM 59 e LM 58 , é necessá ri o usar “bez erri nhos”. Bez e rros
ou “vi t el os”, com o t am bém são denom i nados, pensam os que o que
i m port a, aqui , é que são boi s , i st o é, não a i dade, m as a m a nsi dão.
Ao contrário do touro, o boi é um símbolo de bondade,
calma e força pacífica; […]
452
O boi, antítese simbó lica do touro, faz sobressair esta
comple xidade [na China], pois ele ta mbé m é a ssociado aos cultos
agrários. Mas simboliza o sacrifício da força fecundante do
touro, fazendo sobressair melhor, por contraste, a unicidade
deste. A eliminação deste poder realça o seu valor, da mesma
for ma que a ca stidade sublinha a importância da sexualidade. O
princípio activo urania no manife sta a sua violência, afir mando -se
ou nega ndo -se de uma for ma igu a lme nte a bsoluta. Livre, ele
fecunda; preso, continente, assinala com igual clareza que sem
ele nenhuma fec undida de é possível, pelo me nos na mesma orde m
451
452
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., pp. 650 a 652.
Idem, p. 125.
324
e no mesmo níve l de existê ncia; é a contraprova duma mesma
verdade. A sublimação da energia vital adqu ire uma fecundidade
de outra ordem, a da vida espiritual.
453
E t am bém em L M 59 e LM 58 , um a va ca sai do est á bul o,
durant e a noi t e, p ar a vol t ar “pej ada”.
De uma for ma geral, a vaca, produtora de leite, é o símbolo
da terra nutriz. […]
A figura de Hathor, no pa nteão egípcio, resume estes
diferentes aspectos do símbolo da vaca. Ela é a fertilidade, a
riqueza, a renovação, a Mãe, a mãe cele ste do Sol, jovem bezerro
de boca pura , esposa ta mbé m do sol, touro da sua própria mãe .
Ela é a ma do soberano do Egipto; ela é a própria essência da
renovação e da esperança na sobrevivência, dado que é regente e
corpo do céu, a alma viva das árvores (J. Yoyotte, in POSD, art.
Hathor). Ela está em todos os lugares em que os Gregos viram as
cidades de Afrodite ; é uma jove m, a máve l e sorridente, deusa da
alegria, da dança e da música , e compreende -se que, projectando
no além as esperanças realizadas a cada Primavera na Terra, se
tenha tornado, na margem esquerda do Nilo, em Mênfis e em
Tebas, a patrona da montanha dos mortos . A Grande Mãe ou a
Grande Vaca dos Mesopotâmicos era ta mbé m uma deusa da
fecundidade.
454
Em LM 7 , t am bém u m porco “dan çava ”.
O porco simboliza, quase universalme nte, a sofreguidão, a
voracidade: devora e engole tudo o que se lhe apresenta. Em
muitos mitos, é este papel de sorvedouro que lhe é atribuído.
453
454
Idem, p. 653.
Idem, p. 673.
325
O porco é geralmente o símbolo de tendências obscuras, sob
todas as suas formas de ignorância, d e glutonice, de luxúria e de
455
egoísmo.
No mundo celta, o porco estava ligado tanto à deusa dos
p o r c o s K e r i d wi n e a P h a e a , a d e u s a l u n a r d a f e r t i l i d a d e , q u e
alime nta os d e uses. [… ] Os cristãos consider am-no um animal vil
e inferior, um símbolo dos pecados da carne, e m e special da
gula ; poderá també m r epresentar Satanás uma vez que as cinco
marcas na sua a nteperna eram co nsideradas como um símbolo de
Satanás.
456
Tam bém por vez es conot ada com S at an ás, é a cabr a. Em Val e
de C ães, um a m our a enc ant ada apa re ce sob a fo rm a d e “u m a cab ra
com ol hos com o arc hot es em al a”.
[…]
o
seu
gosto
pela
liberdade,
por
uma
liberdade
repentista que faz com que o seu nome ( capris) tenha dado
orige m a «capric ho ». […]
Para os Gregos, a cabra simboliza o relâ mpa go. A estrela d a
Cabra,
na
constelaçãao
do
Cocheiro,
anuncia
te mpestade
e
chuva, e é a cabra Ama lteia, que alime nto u Ze us.
A ideia de assoc iar a c abra à manife stação do deus é muito
antiga. […]
[…] Em todas estas tradições [na Índia, na China, para os
Ger mano s, para os Gregos, para os cristãos, para os Órficos], a
cabra aparece como símbolo da a ma -de -leite e da iniciadora,
tanto no se ntido fí sico como no sentido místic o dos termos. Mas
a sua conotação caprichosa implicaria ta mbé m a gratuitidade dos
dons imprevisíveis da divindade.
455
456
457
457
Idem, p. 537.
Clare Gibson, ob. cit., p. 103.
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit.,pp. 139 e 140.
326
S í m bol o de S at anás , é, s em dúvi da, o bode, ani m al no qu al o
própri o “Mal i gno” s e t ransform a, p ara guardar e def ender o t esouro
que ex i st e escondi do no Bar ranc o do De m o, ent re Al fe rce e S i l ves.
Exacta mente co mo o carneiro , o bode simboliza a força
genésica e vital, a líbido, a fecundidade. Mas esta semelhença
torna-se por vezes uma oposição: pois se o carneiro é so bretudo
diurno e solar, o bode, por sua vez, é a maioria das vezes
noctur no e lunar; e e nfim, ele é a ntes de ma is nada um anima l
trágico, pois deu, por razões que nos escapam, o seu nome a uma
for ma
de
arte:
litera lme nte,
«tragédia »
significa
«ca nto
do
b o d e », e e r a , o r i g i n a l m e n t e , o c a n t o c o m q u e s e a c o m p a n h a v a
ritualmente o sacrifício de um bode nas festas de Dioniso. […]
T al como o carneiro , a lebre e o pardal, era consa grado a
Afrodite, e servia -lhe de mo ntada, be m co mo a Dioniso e a P ã,
divindades q ue p or ve zes ta mbé m se cobriam co m uma pele de
bode. […]
Nada há, portanto, de espantoso que, devido a um profundo
desconhecime nto do símbolo [expiação dos pecados dos filhos de
Israel] e a uma perversão do sentido do instinto, se tenha feito
tradicionalme nte do bode a própria ima ge m da luxúria (Horácio,
Epodos, 10, 23). […]
Santo e divino para uns [Índia védica], satânico para outros
[especialme nte Idade Média cristã], o bode é clara mente o animal
trágico que simboliza a força do imp ulso vital, ao mesmo te mpo
generoso e facilme nte c orruptível.
458
Em LM 44 e LM 25 , quem est á a gua rd ar o t esouro é um “ bel o
m ouro” enc ant ado e m sapo.
Na maioria das tradições, o sapo é considerado como a
antíte se da rã maliciosa; está, contudo, imbuído duma simbologia
conflitual de sorte, de fertilidade e de ressurreição, bem co mo do
mal, da heresia e do pecado. Devido ao facto de colocar enormes
458
Idem, pp. 123 e 124.
327
quantidades de ovos, é um símbolo da fertilid ade e é consa grado
a Heket, que tinha cabeça de sapo e era a deusa egípcia do
nascime nto (a ta mbé m a Afrodite greco -ro mana/Vé nus). O sapo
verde simboliza va a s c heias do Nilo. Para os Celtas, o sapo era o
senhor da terra e representava o poder purificador da água. Os
três estágios de evolução dos seus hábitos enquanto anfíbio
transfor mara m-no num símbo lo da ressurreição.
459
Mas t am bém as bruxas cost um am andar com sapos, com o vi m os
ant eri orm ent e.
Nas tradições da ma gia e feitiçaria e uropeias, o sapo
dese mpenha um papel preciso. Quando e stá no o mbro esq uerdo
duma feiticeira, é uma das for ma s do de mónio ; o que parece be m
claro
pelos dois cornos
minúsculos que
tem na
fronte.
As
feiticeiras tinham um cuidado infinito com os sapos; baptizavam
os seus sapos, vestiam-nos de veludo negro, punham -lhes guizos
nas patas e faziam-nos dançar (GRIA, 134). A pedra que existe,
dize m, na cabeça dos sapos era considerada um talismã precioso
para conseguir a felicidade na terra (GRIA, 386).
460
O féret ro de S . Vi ce nt e é acom panhado por corvos que, com o j á
vi m os, podem t am bém ser “gui as das a l m as na sua úl t i m a vi agem ”.
No ent ant o, est a ave é, habi t ual m e nt e, associ ad a às brux as e
fei t i cei ras e, nesse c ont ex t o, t am bém pela cor, ao Di abo.
Parece concluir -se de um estudo co mparativo de costume s e
crenças de numerosos povos que o simbolismo do corvo só
recente me nte adquiriu o seu aspecto purammente ne gativo, e
quase exclusivamente na Europa. […]
Símbolo de perspicácia , no Génesis (8, 7), é ele que va i
verificar se a terra co meça, após o dilúvio, a reaparecer por cima
das árvores. […]
459
460
Clare Gibson, ob. cit., p. 107.
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit.,p. 587.
328
Se mpre solar, o corvo era, na Grécia, consa grad o a Apolo.
[…] Estas três ave s [corvos, águias e cisnes] tê m pelo me nos isto
e m co mum: de se mpe nhara m o papel de me nsa geiros dos deuses e
preencheram funções proféticas. […] Acreditava -se que era m
dotados [os corvos] de poder de conjurar a má sorte.
O corvo aparece muitas vezes nas lendas célticas onde
dese mpenha um papel profético.
461
Em LM 33 , o caval o de Di o go “n ão de u nem m ai s um pass o em
frent e ” e, em se gui da, a m our a ap a rece; aquando do segundo
encont ro, a m our a t a m bém “m ont ava um caval o”.
[…] Não se estranhará, por isso [o facto de o cavalo ter
precedido o ser huma no à face do planeta e, conseque nte mente ,
ter sido uma das suas primeiras co nquistas], que o cavalo apareça
como o veíc ulo privile giado para uma via ge m iniciática. […]
As
suas
qualidades
de
cor age m,
velocidade,
força,
inteligência e desejo de liberdade conduziram às mais variadas
projecções, fazendo do cavalo um símbolo e um modelo para o
ser humano.
462
Em LM 34 , qu and o J oana e Ant óni o se dei t am , “o cor ação
bat i a-l he no pei t o c om o caval o a gal ope” ; em LM 36 , “o j ovem da
vés pera su r gi u m ont ado num fogoso co rcel ” e “quem est i ver j unt o
ao R i o S eco pode ai nda ouvi r um caval o correndo d esorden a dam ent e
ao l ongo d a m ar gem ...”.
[…] na mitologia grega , o cavalo nasceu da união da deusa
D e m é t e r , t r a n s f o r m a d a e m é g u a , c o m P s í d o n , « d e u s - c a v a l o ».
Sendo De méter ( filha de Cronos e de Reia) deusa da
alternânc ia da vida e da morte e deusa maternal da fertilidade, o
461
Idem, pp. 234 e 235.
Manuela Parreira da Silva, B. I. do Cavalo, Lisboa, Apenas Livros
Lda., 2004, p. 3.
462
329
cavalo pe rtence, pois, pelo lado da mãe, ao símbolo dos eternos
recomeços, dos dias e das noites, ao mun do ctónico.
Pelo lado do pai, que deté m o domínio das águas (ainda que
este o tenha gerado quando não era ainda deus dos mares e dos
oceanos, mas sim uma potência activa que fazia tremer a terra,
fecundando-a, e já capaz, apesar da sua juventude, de fazer
brotar duas fontes de água e permitir à terra rebentar em
vegetação…), pertence ta mbé m a esse me smo mundo das forças
criadoras.
O cavalo está, portanto, pela sua ascendência, ligado ao
T empo, à suce ssão da s treva s e da luminosidade e ta mbé m à
impetuo sidade do desejo.
463
E em LM 41 , “o caval o do j ovem A bdal á sabi a j á d e c or o
cam i nho ”.
U ma crença, que parece estar fixada na me mória de todos
os povos, associa origina riamente o cavalo às trevas do mundo
ctoniano, quer ele surja, galopan do como o sa ngue nas vei as, das
entranhas da terra ou dos abismo s do mar. Filho da noite e do
mistério, este ca valo a rquetípico é ao mesmo te mpo portador d a
morte e d a vida, ligado ao fogo, destruidor e triunfa nte , e à água,
nutriente
simbólicas
e
asfixiante.
provém
A
desse
multiplicidade
significado
d as
suas
complexo
das
acepções
grandes
figuras lunares, e m q ue a ima ginação asso cia por analogia a
Terra, no seu papel de Mãe, a Lua, seu luminar, as águas e a
sexualidade, o sonho , a adivinhação, o reino vegetal e sua
renovação periódica.
464
Há, no ent ant o, um out ro aspect o si m bó l i co do caval o que t em
es peci al i nt er esse p ara o est udo d as nossas l endas:
Participando do segredo das águas fertilizantes, o cavalo
conhece o caminho subterrâneo ; é o que explica que, desde a
463
464
Manuela Parreira da Silva, ob. cit., p. 6.
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 171.
330
Europa até ao E xtre mo Oriente, se acredite que ele te m o do m de
fazer brotar as fontes com uma patada. […] O próprio Pégaso
inaugura esta tradição ao criar a fonte Hipocrene Fonte do
cavalo não muito longe do bosque sagrado das musas; as Musas
reuniam-se ali para cantar e dançar, considerava-se que a sua
água favorecia a inspiração poética (GRID, 211). O cavalo, aqui,
desperta o Ima ginário, tal co mo despertava anterior mente a
natureza, no mo me nto da renovação.
Mas
há
out ros
caval ei ros ,
465
cuj as
m ont adas
não
est ão
i dent i fi cadas (ou, n o caso de L M 26 , s ão m ul as): em LM 40 : “ Lo go
s aem os m ouros em rui dosa cav al gada pel os cam pos próx i m os”; em
LM 54 , “ouvi ndo e st as pal avras, o ca val ei ro part i u a gal ope”; em
LM 26 : “um c aval e i ro m ont ado em um a m ul a possant e”; e , em L M
2 8: “acordou o pob re hom em ao t rope l de duas cav al gad uras, em
um a das quai s m ont ava um cav al ei ro t r a z endo à garupa um a form osa
m oura”:
[…] tal co mo domina a sua
montada, dominou forças
adversas. Eles mostram a asce nsão ao paraíso dos deuses, dos
heróis ou dos eleitos […]
[…] A idéia do ca valeiro, mesmo fora d a sua história, é u m
ele me nto da cultura universal e um tipo super ior d e humanidade.
[...]
O
comple xo
símbolo
de
do
co mbate ,
cavaleiro
e
numa
inscreve-se,
intenção
de
portanto,
num
espiritualizar
o
combate. [...]
A ca valaria dá um e stilo à guerra, como ao a mor e à morte.
O a mor vive -se co mo um co mba te e a guerra como um a mor; o
cavaleiro sacrifica -se p or um e por outro até à morte. Luta contra
todas as forças do ma l, incluindo as instituições da sociedade,
quando estas lhe parecem violar as suas exigências interiores.
465
466
466
Idem, p. 174.
Idem, pp. 169 e 170.
331
Em LM 38 ( LM 48 e LM 13 ) t em os um “cav al ei ro” di fe rent e: o
al m ocreve al garvi o, “no desem penho da sua profi ssão”, ut i l i z ava um
bur r o . Em LM 38 : “i a o nosso J osé C oi m bra (ou Ti Zé d a S err a)
gui ando o seu j u m ent i nho pe l a est rada for a”, quando a m oura
apare ceu
p el a
pri m ei ra
vez ,
“enqua nt o
o
burri nho,
chei rando
t am bém a m i st éri o, desapar ec era p ara n ão m ai s ser vi st o.”; quando
vol t ou a encont rá -l a, t i nha desm ont ado de um “j um ent o quase t ão
vel ho e i nút i l com o el e”.
Se o burro é para nós símbolo da ignorância, isso é apenas
o caso particular e secundário de um a concep ção ma is geral que
faz dele , quase universalme nte, o e mb le ma d o obscuro , e até
mesmo das tendências satânicas. [...]
O burro como Sa tã, ou co mo a Besta, signi fica o se xo, a
líbido,
o
eleme nto
instintivo
do
ho me m,
uma
vida
que
se
desenvolve toda no plano terreno e sensual. O espírito cavalga a
matéria que lhe deve se r sub missa, mas q ue às vezes escapa à sua
condução. […]
O burro está relacionado com Saturno, o s egundo sol, que é
a estrela de Israel. Por isso houve, nalgumas tradições, uma
identificação entre Javé e Saturno. Isto talvez explicasse o facto
de, sendo Cristo o filho do Deus de Israel, algumas caricaturas
satíricas terem representado os crucificados c om cabeça de
burro.
467
Não é d e adm i ra r e st a conot aç ão m al éf i ca do burro, depoi s de
t erm os
vi st o
que
a
m ai ori a
dos
l obi somens
port ugu eses
(e m
part i cul ar, os al gar vi os) se t ransform a m em burros e não em l obos
(com o em L LO 1 e E LLO 1 ).
Ora, J osé C oi m bra, na p ri m e i ra part e da hi st óri a, não est á
propri am ent e com b oas i nt enções em re l ação ao pa ct o fei t o com a
moura encant ada , o que l he val eu a c egu ei ra com o cast i go, com o
s abem os.
467
Idem, pp. 133 e 134.
332
Aquando do se gund o encont ro, j á c e go , em L M 48 , “ a m u l her
m ont ou -o num a burri ca” e, em L41 , “ aj udaram -no a m ont ar em um a
j um ent a”:
A
burrinha
simboliza
a
humildade
e
o
jume nt o,
a
humilhação. [...]
A burrinha é aqui um símbolo de paz, d e pobreza, de
humildade, de paciência e de coragem [...]
468
Em E LAP / M 7, a persona gem t am bé m m ont a um a “bur ri nha
branca ”.
Em LM 38 ( LM 48 e LM 13 ), ap ar ece t am bém um l eão , que
deverá “en gol i r e vo m i t ar t rês vez es” a pessoa desen cant ad ora .
Poderoso, soberano, símbolo solar e luminoso ao extre mo, o
leão, rei dos animais, está carregado das qualidades e defeitos
inerentes à sua categoria. […]
De uma maneira mais geral, simbolizaram [o Leão do
Ocidente e o Leão do Oriente, no Egipto] o rejuvenescimento de
vigor, que garante a alternância da noite e do dia, do esforço e
do repouso.
Da mesma for ma, no Extre mo Oriente, o leão, ani ma l
pura me nte e mble mático , te m profundas a finidades co m o dragão,
com o qual chega a identificar -se. […]
[…] virá a simboliza r, não só o regresso do Sol e o
rejuvenescimento
das
energias
ta mbé m os próprios renascime ntos.
cósmicas
e
biológicas,
mas
469
E o dragão que gua rda a m oura em L M 53 (e LM 17 ) de ver á
engol i -l a e vom i t á -l a “passados t r ês di a s”.
468
469
Idem, p. 134.
Idem, pp. 401 e 402.
333
O dragão aparece -nos sobretudo como um guardião severo
ou co mo um símbolo do mal e das tendê ncias demo níacas. Co m
efeito, ele é o guardião dos tesouros esco nd idos, e, como tal, o
adversário que deve ser vencido para ter acesso aos me smo s. […]
Geralme nte, o dragão como símbolo de monía co identifica se com a serpente […].
[…] O simbolismo do dragão é a mbiva lente, […]. É a
neutralização das tend ências adver sas, do enxofre e do mercúrio
alquímicos (ao passo que a natureza latente, não desenvolvida, é
representada
pelo
uroboro,
o
dragão
que
morde
a
própria
cauda).[…]
Na realidade, não se trata de aspectos diferentes de um
símbolo único, que é o do princípio activo e d emiúrgico : poder
divino,
élan
espiritual,
diz
Grousset;
símbolo
celeste,
em
qualquer dos casos, poder de vida e de manife stação, ele cospe as
água s primordiais do Ovo do mundo, o que faz dele uma image m
do Verbo criador. […]
[…] De facto, o dragão é associ ado ao raio (cospe fogo) e à
fertilidade (traz chuva). Simboliza, também, as funções reais e os
ritmos da vida que garantem a ordem e a prosperidade . […]
Podemos ligar a imagem da baleia a vomitar Jonas ao simbolismo
do dragão, monstro que engole e cospe a sua presa, depois de a ter
transfigurado. Esta imagem de origem mítica solar representa o herói
engolido pelo dragão. Vencido o monstro, o herói conquista a eterna
juventude. Realizada a viagem aos infernos, ele ascende do país dos
mortos e da prisão noct urna do mar (DAVS, 225).
470
Nas si t uaçõ es ci t ad as , pre ci sam ent e, o l eão é en car ado c om o
monst ro mi t ol ógi co , t al com o o dragão, pel o que am bos part i l ha m o
s i m bol i sm o com o do abi smo (j á ci t ad o ant eri orm ent e ), e ngol i ndo
“os ser es par a dep oi s vom i t á -l os, t rans form ados” , o qu e, com o
podem os
ver,
nã o
se
afast a
da
si m bol ogi a
de
cada
um ,
i ndi vi dual m ent e .
470
Idem, pp. 272 a 274.
334
O monstro simboliza o guardião de um tesouro , como o
tesouro da imortalidade, por exemplo, isto é, o conjunto das
dificuldades a vencer, os obstáculos a ultrapassar, para se ter
acesso, por fim, a esse tesouro, material, biológico ou espiritua l.
O mo nstro e stá ali para provocar o esforço, domínio do medo, o
heroísmo. [...]
Enqua nto guardião do tesouro, o monstro é també m sinal do
sagrado . Poder -se-ia dizer: ali onde está o monstro, está o
tesouro. Raros são os lugares sagrados em cuja entrada não esteja
postado um mo nstro: dragão, naga, boa, tigre, grifo, etc. […]
[…] Todas as vias da riqueza, da glória, do conhecimento,
da saúde, da imorta lidade são preservadas. S ó se che ga lá atravé s
de um acto heróico. Co m o mo nstro morto, q uer ela seja exterior
ou interior a nós, abre -se o acesso ao tesouro.
O monstro te m assim orige m na simbologia dos ritos de
passage m: ele devora o ho me m velho, para que nasça o ho me m
novo. […]
O monstro é ainda o símbo lo da ressurreição : ele engole o
ho me m, a fim de provocar um novo na scime nto.
2.2.10.1.
471
A SERPENTE
É i m possí vel i gnora r o fact o d e encont r arm os a serpent e co m o
denom i nador com u m ent re Mouras , Serei as , Erí ni as ou Fúri as ,
Gui l l ens , Bruxa s ou Fei t i cei ras , Vi rgem Mari a , Sant os , Di abo e
Z or r a Berradei ra . Merec e -nos, por i ss o, um l ugar d e dest a que.
Em LM 38 , LM 48 e LM 13 , ex i st e, ai nda, um a serpent e (em
L6, um a “t e rrí vel serpent e ”), t al com o em L M 46 e LM 11 (“um a
enorm e s erpent e ”), em L M 21 (“um a c obra m onst ro” ), em LM 60 e
LM 42 e LM 24 (um a “cobri nh a”).
T al como o ho me m, mas ao contrário d ele, a serpente
distingue-se de todas as espécies a nimais. Se o ho me m se situa
471
Idem, pp. 455 e 456.
335
no final de um longo esforço genético, te mos necessaria me nte de
colocar esta criatura fria, sem patas, sem pêlos, sem penas, no
começo desse mesmo e sforço. Nesse sentido, Ho me m e Serpente
são opostos, co mple me ntares, Riva is. Ne ste sentido ta mbé m, há
algo da serpente no homem e, singularmente, na parte dele que o
seu entendime nto me nos contr ola. [...] No entanto, nada há de
mais co mum, de mais simple s do que uma serpente. Mas , se m
dúvida, nada há de mais escandaloso para o espírito, devido
precisa mente a essa simp licidade. [...]
[…] A serpente visível sobre a terra, o instante da sua
manife stação, é uma hierofania. Se ntimos q ue ela continua para
cá e para lá, ne sse infinito material que nã o é mais do que o
indifere nciado primor dial, reservatório de todas as la tência s,
subjacente
à
terra
manifestada.
A
serpente
visível
é
uma
hierofa nia do sagr ado natural, não espiritua l, ma s material.
472
A serpent e de L M 38 ( LM 48 e LM 13 ), deverá “ abra çar ” o
al m ocreve, d ei x ando -l he “o co rpo em feri da ”, nos “pont o s em que
t ocar”; a d e L M 60 , pôs -se “a d anç ar”; a d e L M 21 , i ri a dar
“grandes si l vos, fi n gi ndo quer er en gol i r-t e”; em LM 24 (e LM 42 ),
“faz i a a cobri nha u ns m enei os com t ant a gr aça, ab ri a a b oqui nha
com t ant a gent i l ez a e m ene ava a c auda em com passo t ão v i vo e t ão
fugaz , que era um encant o v ê -l a ”; a d e LM 46 (e LM 11 ), não s e
s abe, poi s o cri st ão “nem t rat ou de s abe r as i nt enções do bi cho”.
[…] No mundo diurno , sur ge co mo um fa ntasma palpável,
mas q ue desliza e ntre os dedos, da mesma fo r ma que atravé s do
te mpo e do espaço me nsurá veis e das re gras d o raciocínio para se
refugiar
no
mundo
subterrâneo,
donde
provém
e
onde
a
ima gina mos, inte mporal, perma ne nte e imó vel na sua co mp letude.
Veloz como o relâ mpago, a serpente visível surge se mpre de uma
abertura escura, fenda ou racha, para cuspir a morte ou a vida
antes
de
voltar
para
o
invisível.
Ou
então
abandona
esta
aparência masc ulina para se tornar fe minina : enro la-se, e nlaça,
aperta, sufoca, e ngole, digere e dor me. Esta serpente fê mea é a
invisível serpente -princípio que reside nas camadas profundas da
472
Idem, p. 594 e 595.
336
consciê ncia e nas ca madas profundas da terra. É enigmática,
secreta, não se pode prever as suas decisões, repentinas co mo as
sua s meta morfose s. [...]
[…] A serpe nte visíve l só aparece, portanto , co mo breve
encarnação
de
uma
Grande
Serpente
Invisível,
causal
e
ate mporal, senhora do princípio vital e de todas as forças da
natureza. É um velho deus primeiro que e ncontra mos no ponto de
partida de todas as cosmogé nese s, antes q ue as religiões do
espírito a destronassem.
473
Podemos
a
assistir
associações
contraditórias,
desde
tempos muito antigos:
No Antigo T esta me nto encontra mos m uita s referências a
serpentes venenosas na Terra Santa que, segundo a opinião
popular,
se
alime nta va m
de
pó.
Os
Israelitas
associavam
serpentes e espíritos maus. Ela era símbolo do mal e da desgraça,
da falsidade, da astúcia, constituindo por isso um perig o morta l.
Contudo, entre os Orientais, muitas serpentes eram adoradas
como de usa s da fecundidade. Por isso, no T e mplo se adorava a
serpente de bronze. O próprio Cristo, pendurado na árvore da
morte, a Cr uz, é a serpente que dá a vida, vencendo a serpente
q u e s e p e n d u r a r a n a « á r v o r e d a v i d a ». V e r G é n e s i s , 3 , 1 e s s .
474
Tradi ci onal m ent e c onot ada com o Di a bo, o pecado, o m al –
i m agem vei cul ada p el a Igr ej a C at ól i ca – a serpent e est á pr esent e em
i núm eras l endas, qu er de ca ráct er rel i gi oso, l i gad a à S e nho ra, que r
pagão, associ ada às m ouras enc ant adas.
Tant o num caso co m o no out ro, el a fa z l em brar out ras fi gur as
de m i t ol ogi as m ai s ant i gas.
«Porque a ntes de E va foi Lilith », lê -se num texto hebraico.
[…] Lilith era uma serpente; foi a primeira e sposa de Adão […]
Deus criou Eva e depois Lilith para se vingar da mulher humana
de Adão, instou -a a provar o fruto proibido e a conceber Caim,
473
474
Idem, p. 595.
António Bárbolo Alves, ob. cit., nota 18, p. 36.
337
ir mão e assassino de Abel. […] Ao longo da Idade Média, o
sentido da palavra layil , que e m hebraico é o mesmo que «noite »,
foi-se transfor ma ndo. Lilith deixou de ser uma serpente para se
tornar um espírito nocturno. Por vezes é um anjo que rege a
procriação dos home ns; outras veze s são de mónios que assalta m
os que dorme m sozinhos ou os que anda m pelos ca minho s. Na
ima ginação popular co s tuma a ssumir a for ma de uma mulher alta
475
e silenciosa, de soltos cabelos negros.
É i gual m ent e di fí ci l não nos l em bra r m os dos Na gas, qu ando
deparam os com ser pent es, associ ad as a m ouras enc ant ad as, que
vi vem nas profunde z as, supost am ent e e m pal áci os enc ant ad os, com o
A C obri nha do Barranco (em bor a pequ e ni na e dourad a) ou A Moura
do Ri o Seco e t odas as out ras que apare cem , em “ e pi sódi os
l endári os”, sob a for m a dest e ani m al , co m ou sem cabel o:
Os Naga s pertence m às mitologia s do Indostão. T rata -se de
serpentes, ma s costuma m a ssumir a for ma humana. […] Habita m
debaixo da terra, em fundos palácios.
476
Mas o m esm o se pode di z er dos Y INN:
Segundo a tradição islâmica, Alá fez os anjos com a luz, os
Yinn co m o fogo e os home ns co m o pó [.] Há que m a fir me que a
matéria dos segundos é um esc uro fogo se m fumo. Fora m criados
dois mil anos ante s de Adão, ma s a sua estir pe não alcançará o
dia do Juízo Final.
Al -Qaz wini de finiu -os como «gra ndes animais aéreos de
corpo
transparente
princípio,
capazes
mostra m-se
como
de
assumir
nuvens
ou
várias
c omo
f o r m a s ».
altos
A
pilares
indefinidos; depois, se gundo a sua vontade, a ssume m a figura de
um ho me m, de um c hacal, de um lobo, de um leão, de um
escorpião ou de uma se rpente. […] Podem atr avessar uma parede
maciça ou voar pelos ares ou tornar-se de repente invisíveis. […]
475
476
Jorge Luís Borges, ibidem, p.128.
Idem, p.145.
338
A sua morada mais co mum são as ruínas, as casas desabitadas, as
cisternas, os rios e os desertos.
477
C ont udo a fi gura da serp ent e p redo m i nan t e nas T err a s da
S enhora de O fi ú sa, é, sem dúvi da, o Ur oborus:
Agora o oceano é um mar ou um sistema de mares; para os
Gregos era um rio circular que rodeava a terra. Todas as águas
fluíam dele ou não tinham nem embocadura, nem fontes. Era
ta mbé m um de us ou um titã, talvez o ma is antigo, porque o
Sonho, no décimo quar to livro da Ilíada, lhe cha ma orige m dos
deuses; na Teogonia de Hesiodo, é o pai de todos os rios do
mundo, que são três mil, e que precedem o Alfeu e o Nilo. Um
ancião
de
barba
comprida
era
a
habitual
personificação;
a
huma nidade ao fim de séculos enco ntrou um símbolo melhor.
Heraclito tinha a fir mad o que na circunferê ncia o princípio e
o fim são um único ponto. Um amuleto grego do século III,
conservado no M use u Britânico, dá a ima ge m que melhor pode
ilustrar esta infinitude : a serpente que mord e a sua caud a, ou
como dirá ad miravelme nte Martínez Estrada, «que co meça no fim
d a s u a c a u d a » . U r o b o r o s ( « o q u e d e v o r a a s u a p r ó p r i a c a u d a ») é o
no me téc nico deste mo nstro, de que os alquimistas depois muito
se serviram.
478
J á nos referi m os, ant eri orm ent e, ao «c a m i nho da serpe nt e »
“encont r ado” po r F ernanda F raz ão e Gabri el a Morai s. V ej am os o
que di z em est as a ut oras sobre a su a rel a ção com as m ouras
encant ad as:
[…] Ora, falando do binó mio mo uras/mito e aliando -o ao
culto da fertilidade, é de sublinhar o facto de a serp ente ter sido,
sob este ponto de vista , uma das referênc ias funda mentais para o
ho me m primitivo, talvez a «ima ge m de mar ca » da T erra -Mãe.
Quase todas as gra nde s cosmogé nese s do mundo tê m a serpente
como símbolo primordial. Pelas sua s características, e ste a nimal
fornece à imaginação huma na todas as a ssocia ções possíveis. Está
477
478
Idem, pp. 205 e 206.
Idem, p.201.
339
intimamente
ligada
a
este
simbolismo
da
fertilidade,
por
exe mplo, pelo gra ndioso espectáculo que o ferece quando irro mpe
das
covas,
hibernar,
no
dealbar
relaciona-se
da
Prima vera;
com
o
igualmente
mundo
por
subterrâneo,
o
nele
mundo
gerador de tesouros preciosos, como a ve getação, tão essencial
para
uma
sociedade
regeneração
e
de
de
recolecção;
cura,
porque
é
ta mbé m
muda
de
símbolo
pele
e
de
parece
rejuvenescer; a ssim, a ele ta mbé m e ain da se alia o poder de
curar todas as enfer midades, até a da idade e do envelhecimento;
por
outro
lado,
move -se
à
vontade
nas
águas
e
os
seus
mo vime ntos sinuoso s faze m le mbrar o correr dos rios e dos
ribeiros, avistados na paisagem, ou relaciona -se facilmente com a
chuva fertilizadora da terra; ma s, igualmente, os seus sa ltos
repentinos faze m-na parecer ter asas, ou le mbra m o raio que ateia
o fogo, a primeira grande descoberta que mudou a História da
Humanidade. Mostra -se , assim, ser senhora de todos os a mbi entes
gerados pela T erra -Mãe, terra, água, ar e fogo, os ele me ntos que
os ho me ns gostaria m de poder dominar para me lhor sobreviver.
479
E depoi s de t erm os t ent ado, pel o m enos, ver que ex i st e um a
rel aç ão ent re a se r pent e e t odas as e nt i dades m í t i cas e rel i g i osas
anal i sadas, não pod em os dei x ar de fal ar na rel aç ão ent re a serpent e
e a m ul her:
Epifania
da
Lua,
a
serpente
constitui
o
paradigma
do
símbolo selé nico não só ma is pleno co mo mais persiste nte,
sobrevive ndo mesmo às mutações que transformara m a s alegor ias
lunare s e m divindades cristãs co mo Santa Marta ou a Virge m
Maria.
A relação simbiótica c om a cobra, criatura ao mesmo te mpo
ctónica e matriz arcana de um selenismo remanescente, torna a
mo ura
participante
de
um
fértil
co mple xo
simbólico
donde
ta mbé m pa rticipa m água, leite e rege neraç ão, fecundidade e
erotismo, telurismo e fertilidade.
Na verdade, a relação mulher / serpente reveste aspectos
multifor mes, ne m se mpre imediata me nte perceptíveis co mo ta l,
479
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., pp. 31 e 32.
340
mas
cuja
permanê ncia
um
pouco
por
todas
mediterrâneas constitui um facto indubitável.
as
sociedades
480
E Aurél i o Lopes d escrev e um a cren ça segundo a qual “s e se
ent err arem os c abel os arran cados a um a m ul her que se enco nt ra sob
a «i nfl uênci a da Lua » (pe rí odo m enst rual ), el es t rans for m ar -s e- ão
em s erpent es” (n a E uropa C ent r al ), ap re sent ando com o “dec adênci a
do m i t o” o fact o de, no nosso paí s, haver cri anç as que “ acr e di t avam
ai nda rec ent em ent e que os cabel os ar ra ncados com rai z que caí ssem
em
pequen as
poç a s
de
á gu a
se
t r a nsform avam
em
p equenas
cobras”. 481
P odem os acres cent a r que, no b arl av ent o al garvi o, não há m ui t os
anos , ai nda se ac red i t ava (e não er am as cri anças ) que os ca bel os de
um a m ul her ( em qu al quer al t ura do m ê s) , at i rados à ru a e nquant o
es t i vesse a chover ( de prefe rênci a , que chove s s e bast ant e ), s e
t rans form av am em serpent es.
P arece -nos um bom ex em pl o da ex t ensão da propa ga ção d e um
m i t o pri m ordi al , ai nda que “ em dec adên ci a”.
Se dividir mos o reino animal e m a nimais de Deus e a nimais
do Diabo, a serpente é o Ani -Mal por excelência: incorpora e
aceita to dos os male s e todos os medos da humanidade, ao me smo
te mpo que projecta, també m, noções mais elevadas co mo as de
sabedoria e poder.
A letra S co m que a esc reve mos parece desenhar o seu corpo
e reproduzir -lhe o mo vimento ond ulatório. O próprio som da
palavra co m que a no mea mo s, é qua se ono matopaico. Animal
minimal, ela é, antes d e mais, a linha, e qua ndo a linha se cur va
e se fecha, torna -se o círculo e símbolo de perfeição. […]
[…] Razões ma is do que suficiente s para a tornar aquilo que
ela é: uma for ma in crivelmente simples numa rede co mplexa de
sentidos poderosos e contraditórios.
480
481
482
482
Aurélio Lopes, ob. cit., pp.23.
Aurélio Lopes, ob. cit., pp.21 e 22.
Maria Teresa Meireles, B. I. da Serpente, pp. 3 e 4.
341
P arece -nos, ai nda, p ert i nent e, apr esent ar a segui nt e ci t aç ão, que
i l us t ra a rel aç ão, vi st a pel o Hom em , da serpent e com a p ró pri a vi da
e com a pal avra qu e a desi gn a:
A serpente não aprese nta, portanto, um arquétipo, mas sim
um co mple xo arquetípico ligado à fria, pega josa e subterrânea
noite das origens: todas as serpente s possíveis for ma m juntas
uma
única
primordial
multiplicidade
que
não
pára
primordial,
de
se
uma
indivisível
desenroscar,
não
Coisa
acaba
de
desaparecer e renascer (KEYM, 20). Mas o que será esta Coisa
primordial senão a vida na sua latênc ia, ou, como diz Ke yserling,
a
camada
mais profunda
da
vida?
Ela
é o
reservatório, o
potencial, donde provêm todas as manifes tações. A vida do
sub mundo deve reflectir -se, precisa me nte, na consciê ncia diurna
sob a forma de serpente, acrescenta e ste autor, e precisa: os
Caldeus utilizavam uma só palavra para vida e para serpente.
T emos a mesma observação e m René Gué no n. O simbolis mo da
serpente está efectivamente ligado à própria ideia de vida; em
árabe, a serpente é el-hayyah e a vida é el -hayat (GUES, 159), e
acrescenta,
o
que
é
importantíssimo,
que
‘El -Hay,
um
dos
principais no mes divinos, se deve traduzir nã o por o vivo, co mo
se faz frequentemente, mas sim por o vivificante, aquele que dá a
vida ou que é o próprio princípio da vida.
483
A serpent e t orna -s e, assi m , m ui t as vez es, por t odos est es
m ot i vos, um “ani mal sagrado”, o que nos rem et e, i m edi at am ent e,
para o processo de t ot em i z ação que, pel os vi st os, rem ont a , pel o
m enos, à Ant i gui dad e Ori ent al , m ai s pro pri am ent e ao ant i go Egi pt o.
Le culte des animaux, ou zoolâtrie, a stupéfié les voyageurs
grecs et ro mains. Ce culte prend, e n e ffe t, une importance
capitale à la fin de l’Egypte antique. À l’origine, chaque division
territoriale, chaque nome possède son totem, l’animal qui incarne
la divinité protectrice du groupe. Pour cette raison, les dieux
humanisés gardent par la suite un aspect animal. À l’époque
483
J ean Chevalier, « Introdução »,
Gheerbrant, ob. cit.,p. 595.
in
Jean
Chevalier
e
Alain
342
tardive, on élève et ado re des animaux près des sanstuaire s, par
exe mple des ibis et de s babouins prés des te mp les de T hot, des
vaches prés du temple d’ Hathor à Denderah, etc. À Bubastis,
dans le Delta, la dée sse Bastet est la déesse -cha t. Un cito ye n
romain fut lync hé po ur y a vo ir tué quela ue matou. Le plus
c é l è b r e r e s t e t o u t e f o i s l e t a u r e a u A p i s , i n c a r n a t i o n d e P t a h , «s o n
â me ma gnifique ». À le ur mort, les anima ux sa crés sont mo mifié s;
le Serapeum de Memp his e st une imme nse galerie funéraire où
reposent les corps des taureaux Api s.
Fraz er
cont a -nos
com o
o
484
t ot em i smo ,
e
em
part i cul ar
a
cons a gra ção d a se r pent e, se m ant eve na Ant i gui d ade C l á ssi ca, na
Europa, m ai s conc re t am ent e, na Gr éci a.
L’hypothèse, suivant laquelle les anciens rois de Thèbes et
de Delphes avaient pour animal c onsacré le serpent ou le dragon
et prétendaient même à une certaine parenté avec lui, se trouve
quelque peu sanctionnée par la tradition, qui veut qu’à la fin de
leur existe nce Cad mus et sa fe mme Har mo nie aient quitté T hèbes
et soient allés régner sur une trbu d’Enchéléens ou hommesanguilles en Illyrie, où tous deux finirent par être transformés en
serpents ou dragons. Aux yeux d l´homme primitif, une anguille
est une serpent d’ea u, on ne peu do nc guère a dme ttre que se soit
par hasard que le tueur de serpe nts ait régné par la suite sur une
tribu d’hommes-anguilles et soit devenu lui -même serpent à la
fin. Bien plus, d’après un récit, sa fe mme Har mo nie éta it fille du
dragon mê me qu’il a vait tué. La traditio n s’adapterait donc
484
AA. VV., MÉMO LAROUSSE encyclopédie générale visuelle et
thématique, Paris, ed. Larousse, 1989, p.291: “O culto dos animais, ou
zoolatria, deixou assombrados os viaja ntes gregos e romanos. O culto
adquire, com efeito, uma importância capital no fim do Egipto antigo.
Na origem, cada divisão territorial, cada nome possuía o seu totem,
animal que encarna a divindade protectora do grupo. Por esta razão, os
deuses humanizados mantêm um aspecto animal. Na época tardia, criam se e adoram-se animais perto dos santuários, por exemplo íbis e
babuínos perto dos templos de Thot, vacas perto do templo de Hathor
em Dendera, etc. Em Bubastis, no Delta, a deusa Bastet é a deusa -gato.
Um cidadão romano foi linchado por ter matado um gato. O mais
célebre, contudo, continua a ser o touro Apis, encarnação de P tah, «a
sua alma magnífica». Quando morrem, os animais sagrados são
mumificados; o Serapeum de Memphis é uma imensa galeria funerária
onde repousam os corpos dos touros Apis.” (Tradução nossa).
343
parfaite me nt
avec
l’hypothèse
se lon
laquelle
le
dragon,
ou
serpent, était l’a nima l sacré de la vieille maison ro ya le de
T hèbes, et le royaume passait à qui tuait son prédécesseur et en
épousait la fille. Nous avons vu qu’il y a de bonnes raisons de
croire que ce mode de succession a u thr ône était courant dans
l’Antiquité.
485
Mas o fi nal dest a hi st óri a vai ao encont ro do ci cl o que t em os
vi ndo a veri fi car , a o fi m e ao cabo, em t odas as out r as: o c i cl o vi da
/
m ort e
/
vi da,
ou,
se
preferi rm o s,
nasci m ent o
/
m ort e
renasci m ent o, ai nda que num a out ra fo r m a.
L’histoire de la meta morphose finale de Cad mus et d ’Har mo nie
en serpents constitue p eut -être un ve stige de la cro yance que les
â mes des reines et des rois défunts de T h èbes transmigraient da ns
le corps de serpents, tout co mme le s rois cafres se changeaint, à
leur mort, e n boas constrictors ou e n serpe nts noirs venime ux. E n
fait, l’idée que les â mes des morts vo nt habiter le corps de
serpents est três répandue en Afrique et à Madagascar.
486
485
James George Frazer, ob. cit., p.71: “A hipótese, segundo a qual os
antigos reis de Tebas e de Delfos tinham como animal sagrado a
serpente ou dragão e pretendiam mesmo ter um certo parente sco com
ele, encontra-se um pouco comprovada pela tradição, que diz que no fim
da sua existência Cadmus e a sua mulher Harmonie deixaram Tebas e
foram reinar numa tribo de homens -enguia, em Ilíria, onde ambos
acabaram transformados em serpentes ou dragões. Aos olhos do homem
primitivo, uma enguia é uma serpente de água, por isso não se pode
admitir que tenha sido por acaso que o matador de serpentes tenha
reinado em seguida numa tribo de homens -enguia e se tenha tornado ele
próprio serpente no final. Mais a inda, de acordo com um relato, a sua
mulher Harmonie era filha do próprio dragão que ele tinha matado. Por
conseguinte, a tradição adaptar -se-ia perfeitamente à hipótese segundo a
qual o dragão, ou serpente, era o animal sagrado da velha casa real de
Tebas, e o reino passava para quem matasse o seu predecessor e casasse
com a sua filha. Vimos que há boas razões para acreditar que este modo
de sucessão ao trono era corrente na Antiguidade.” (Tradução nossa).
486
Ibidem: “A história da metamorfose final de Ca dmus e de Harmonie
em serpentes constitui talvez um vestígio da crença em que as almas das
rainhas e dos reis defuntos de Tebas transmigravam para o corpo de
serpentes, tal como os reis cafres, à hora da morte, se transformavam
em jibóias ou em serpentes pretas venenosas. De facto, a ideia de que as
almas dos mortos vão habitar o corpo de serpentes está muito difundida
em África e em Madagáscar.” (Tradução nossa).
344
/
2.2.10.2.
O PROMONTÓRIO SACRO
Pensamos que, tal como no caso da serpente, também
sobre o Cabo ainda há algumas coisas a dizer, que não tinham
cabimento
no
referimos
(e
relacionem
capítulo
muitas
com
as
em
que
ficarão
primeiramente
por
temáticas
dizer,
mas,
abordadas
a
ele
nos
embora
neste
se
trabalho,
pensamos que não têm nele cabimento).
S obre
a
“sant i dad e
do
l ugar ”,
esc l arec e
J osé
Lei t e
de
Vas conc el l os o se gu i nt e:
T emos por conseguinte de considerar três pontos: a) reunião
nocturna dos deuses; b) inviolabilidade do recinto da reunião; c)
interdiccção de grand es s acrifícios, co m p er missão porém de
libações.
Vejamos cada um separ adame nte.
a) Em toda a parte o povo acredita na existência nocturna
de conciliabulo s mysteriosos: a noite e stá se mpre povoada de
espíritos e avejões. É de noite que surgem as bruxas; que as
feiticeira s se a ssocia m co m o Diabo; que os medos opprime m os
ho me ns. Co m a luz do sol, com os resplendores da manhã, os
seres fa ntásticos so me m -se, e a natureza volta ao sossego e
regularidades habituaes. […]
b) Se no te mpo de Arte midoro se deixava de ir de noi te ao
Cabo, não era por devoção para com deuses lá reunidos, era por
medo!
Com effeito, ainda hoje em certas aldeias de Portugal não
s e s a e d e n o i t e s ´ z i n h o , p o r c a u s a d a s f e i t i c e i r a s . «P a r u n e
espèce d’accord tacite, il est entendu que l aterre appartient , de
j o u r , a u x v i v a n t s , l a n u i t , a u x m o r t s ».
487
[…]
As le ndas do Cabo Sa grado pertence m pois a uma cate goria
conhecida e bem definida.
c) […] se realizaria m no Sacro Promontorio liba ções, para
as quaes era precisa agua.
487
Le Braz, La légende de la mort, 3ª edição, tomo I, 41 -42, apud José
Leite de Vasconcellos, RELIGIÕES DA LUSITÂNIA na parte que
principalmente se refere a Portugal , vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional,
1913 (reimpressão fac-similada da 1ª ed., Vila da Maia, 1981), p. 211.
345
As libações co nsistia m principalme nte, c o mo é sabido, e m
offerecer
ás
divindades
certos
liquidos
que,
conforme
as
circunstanc ias, se derra mava m nos altares, ou se espalha va m na s
agua s, etc. Este s liquidos eram: vinho puro ou misturado com
agua; leite; sa ngue; azeite; hydro mel; e outros. As libaç ões
podiam
fazer
parte
de
sacrifícios
mais
co mple xos,
ou
constituíre m, co mo aq ui parece ser o caso, sacrifíc ios por si
mesmas.
O que Arte midoro affir ma co m relação a interdicção de
sacrifícios
no
sacrifícios,
i.
Cabo
é,
dever -se-há
sa ngrentos,
por
entender,
opposição
[…]
a
grandes
libações,
ou
sacrifícios mais simp le s. T alvez se imagina sse que o sangue das
victimas manchava a pureza santa do logar.
Segundo a ordem de ideias que aqui tenho exposto, as
libações de que aqui se trata seriam em honra dos espírit os ou
deuses do oceano.
488
E sobre os “m ol edros” , grupos de “pedras sa gradas ” que,
quando são d esl oca das, vol t am par a o s eu l ugar, t ece o m es m o aut or
os
segui nt es
com ent ári os,
avent and o
hi pót eses
prová vei s,
na
i m possi bi l i dade de um a ex pl i cação act u al sob re cul t os t ão a nt i gos:
Várias te m sido as hypothese s e mittidas para explicar a
natureza e significação das pedras de que fala Artemidoro.
Uns
consideram-nas
mo nume ntos
funerários,
e
principalme nte dolme ns; outros, co mo o Sr. Alo mon Reinach,
pedras balouç antes. M overs relaciona a s pedras do Promontorio
com
o
culto
dos
bétylos,
mas
expõe
a
sua
ideia
muito
concisamente, e de fugida, […] O culto dos bétylos encontra -se
«parto ut où s’est fait sentir l’influe nce de la Phenice »
489
.[…]
Explicar com precisão em que é que consistia o costume
notado por Arte midoro torna -se difficil. Podem pôr -se porém de
parte as hypotheses do s dolmens e das pedras balouçante s: co m
488
José Leite de Vasconcellos, RELIGIÕES DA LUSITÂNIA na parte
que principalmente se refere a Portugal, vol. II, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1913 (reimpressão fac -similada da 1ª ed., Vila da Maia,
1981), pp. 207 a 212.
489
Perrot & Chipiez, Histoire de l’art, III, 59, apud José Leite de
Vasconcellos, RELIGIÕES DA LUSITÂNIA na par te que principalmente
se refere a Portugal, vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1913
(reimpressão fac-similada da 1ª ed., Vila da Maia, 1981), p. 203.
346
dolme ns não condize m as palavras do geographo grego; pedras
balouçantes não póde admittir -se que lá as houvesse aos grupos
de três e quatro. A hyp othese dos bétylos é te ntadora, e m virtude
de elles terem orige m phenicia, e haver existido no Promontorio
um sa ntuário de Héracles, e, co mo parece […], um de Krono s, –
santuários, que, segundo todas as probabilida des, devem da
mesma sorte attribuir -se aos Phenicios; mas seria a influencia
phenicia de tal modo fecunda e poderosa, que, ainda alguns
séculos depois de
extinctos os cultos d’aquelles deuses
no
Promontorio, e anniquilados os sa ntuários, ficaria da antiga
religião teste munho tão vivaz co mo o que a cerimo nia descrita
por Arte midoro nos revela? […]
Nestas
apresentadas
noticias
em
[alusão
ELAP/M
às
23]
deslocações
temos
de
das
distinguir
pedras,
vários
ele me ntos: as pedras são verdadeiramente objectos mági cos, pois
cada uma representa um soldado nella encantado ; tornam para o
seu sitio, como nas le ndas das fundações das igrejas e ermidas as
ima gens
achadas
pelos
pastores
(ideia
que
já
ascende
á
antiguidade clássica); D. Sebastião figura ahi, em virtude de u ma
adaptação posterior ao séc. XVI, devida talvez á influencia
sebastianistica
dos
frades
de
S.
Vicente
e
á
lenda
muito
vulgarizada segundo a qual o mysterioso aventureiro desthronado
devia vir das bandas do oceano.
Por um lado, estes moledros asse melha m-se a os montíc ulos
cha mados fie is de Deus, co mme morativos de mortes; por outro
lado faze m le mbrar certas superstições e m que com as pedras se
relaciona a ideia de casa me nto, ou segundo as quaes certos
personagens são metamorphoseados em rochas.
490 491
490
Nota 3: “«Les menhirs des environs de Quiberon sont des soldats
pétrifiés par Sainte Hélène» ( Revue Archéologique, ibidem). As pedras
dos moledros não podem comparar -se a menhires; mas quis notar a
coincidencia de, tanto em Quiberon como em S. Vicente, os soldados
estarem transformados em pedras.”, in José Leite de Vasconcellos,
RELIGIÕES DA LUSITÂNIA na parte que principalmente se refere a
Portugal, vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1913 (reimpressão fac similada da 1ª ed., Vila da Maia, 1981), p. 2 06.
491
José Leite de Vasconcellos, RELIGIÕES DA LUSITÂNIA na parte que
principalmente se refere a Portugal , vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional,
1913 (reimpressão fac-similada da 1ª ed., Vila da Maia, 1981), pp. 202
a 206.
347
2. 2. 11. P A S S A G E N S :
Em i núm eras l end as, os encant am ent os e d esenc ant am e nt os
dão -se (ou deve rão dar -se) na noi t e de S. João , si m boli z ando o
s ol s t í ci o de verão :
O simbolismo do s so lstícios c ha ma a ate nção p or não
coincidir com o carácter geral das estações corresp ondentes. Com
efeito, é o solstício de Inverno que abre a fase ascendente do
ciclo anual; e o solstício de Verão é que abre a fase descendente;
daí o simbolismo greco -latino das portas solsticiais representado
pelas duas faces de Jano e, mais tarde, pelos dois São João , o do
Inverno e o do Verão. É fácil constatar que é a porta do Inverno
que introduz na fase luminosa do ciclo, e a porta estival na sua
fase de obscurecimento. […]
O solstíc io de Verão (24 de Junho) marca o apogeu do
percurso solar; o Sol e st á no zé nite, no ponto mais alto do céu .
Este dia foi escolhido para celebrar a festa do Sol. Na medida e m
que Cristo é co mpara do com o Sol, ele é representado pelo
Câncer solsticial. Daí todo um simbolismo de Cristo cronocrátor,
que gover na o te mpo, na art e romana ( CH AS, 497 s).
492
Tam bém j á vi m os c om o os percursos c ost um am desemboca r em
l ugar es si m ból i cos, com o grut as ou pal áci os . Há, no ent ant o,
i núm eras “port as” ( de cast el os, sobr et u do, m as t am bém de vi l as, e
m es m o de casas ) qu e, obvi am ent e, se ab rem o u se fe cham :
A porta simboliza o l ugar de passage m e ntre dois estados,
entre dois mundos, entre o conhecido e o desconhecido, a luz e
as trevas, o tesouro e a penúria. A porta abre-se para um
mistério. Mas tem um valor di nâmico, psicológico; pois não só
indica uma passage m, como ela própria convida a atravessá -la. É
o convite à viagem para um além...
492
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 614.
348
A passa ge m à qual ele convida é, na maioria das vezes, na
acepção simbólica, do domínio profano ao domínio sagrado. […]
A porta te m ta mbé m um significado esc atológico. A porta
como lugar de passage m, e partic ular me nte de che gada, torna -se
muito naturalme nte o símbolo da iminência do acesso e da
possibilidade
do
acesso
a
uma
realidade
superior
inver sa me nte, da ef[ u]são de dons celestes sobre a terra).
(ou,
493
Nas l endas d e mour as encant adas , o s c asos m ai s evi dent es são
a s aí da do govern ad or com o fi m de encant ar as fi l has ( L M 40 , LM
5 0, L3 M 3 – nas duas pri m ei ras, o carpi nt ei ro, após a cena do ci nt o,
correu pa ra cas a, “ onde s e fechou be m aferrol hado ”), o al m ocreve
de E st ói que recup e ra a vi são sent ado n o poi al de sua casa ( LM 38 ,
LM 48 e LM 13 ), a l avrador a de L M 52 e LM 8 , que “ ao t r anspôr a
port a ol hou pa ra t r á s e vi u que t odos os m ouros e m our as s e t i nham
t ransform ado em di versos ani m ai s”, e o enc ant am ent o d a fi l ha do
gove rn ador do c ast e l o de Faro, “no m om ent o em que”, nos braços do
s eu am ado, “at r aves sava” a port a do na scent e, m ai s t arde cham ada
“do Arco do R epous o” ( L M 49 e LM 10 ) .
Em E LAP / M 9 , o casal d e i dosos s ai do C ant o do La re do e
vol t a a ent rar po r “um a fend a que ha vi a ent re doi s pene dos”. Em
LM O 1, o c art ei ro b at e à po rt a do “p res um í vel pai do garot o”, e é aí
que est e o encont ra “est endi do” e “m ort o”. Em LM O 2, a m ort e bat e
à port a e, com o nenhum dos el em ent os do casal se di spões a i r abri l a, “i nvest i u pel o post i go”, l evando “os doi s vel hos consi go ”.
2. 2 . 1 2. O U T R O S S Í M B O L O S :
Que o sonho é “um a const ant e da vi da / t ão concr et a e d efi ni da
/ com o out ra coi sa qual quer” j á o poet a nos di sse. Mas referi a -s e
Ant óni o Gedeão ao “devanei o”, ao “s onho acordado ” que l eva o
hom em a est ab el e c er m et as, obj e ct i vos a al c ança r, norm al m ent e
493
Idem, pp. 537 e 538.
349
decorr ent es do t i po de vi da que l eva, podendo ser a const rução de
um ut ensí l i o que lhe perm i t a cort ar m el hor as pel es com que se
ves t e, ou o envi o de um a sonda a Mart e, que l he t ra ga ves t í gi os de
vi da naquel e p l an et a , ex i st ent es a doi s met ros de profundi d a de.
Est e “sonhar a corda do” encont ram os, s obret udo, em “Di no rah”
e “O Abi sm o dos En cant ados”, poi s é pr ópri o quer dos apai x onados,
quer dos que ans ei a m por se apai x onare m .
Tam bém Ant óni o so nhava com a m oura da S er ra d e Mon chi que,
t ant o acordado, com o a dorm i r. A verdade é que há vári os t i pos de
s onho :
Os exemplos de sonhos são inumeráveis; tentou -se várias
vezes classificá -los. As investigações psicanalíticas, etnológicas
e parapsicológicas dividira m os sonhos n octurnos, para maior
comodidade no estudo, num deter minado núme ro de categorias:
1. o
sonho
profético
ou
didáctico,
aviso
mais
ou
menos
disfarçado sobre um ac ontecime nto crítico , pa ssado, presente
ou futuro; a origem destes sonhos é muitas vezes atribuída a
um poder celeste;
[…]
4.
o sonho visionário, que transporta àquilo que H. Corbin
cha ma o mundo das imagens e que pressupõe no ser huma no,
num deter minado nível da consciência, poderes que a nossa
civilização ocidental talvez tenha atrofiado ou paralizado ,
poderes acerca dos quais H. Corbin encontra testemunhos
entre os místicos iranianos; trata -se aqui, não de presságio,
nem de viagem, mas sim de visão;
5.
o sonho pressentimento, que faz suspeitar ou privilegiar uma
possibilidade entre mil…
6.
o sonho mitológico, que reproduz algum grande arquétipo e
reflecte uma angústia fundamental e universal.
494
494
Idem, p. 617.
350
Out ras persona gens sonharam a dorm i r, e o sonho de D.
Za rol ha, que se rep et i u, t ant o pode pert ence r à pri m ei ra cat e gori a
enunci ada, com o à ú l t i m a.
O bei j o é, habi t ual m ent e, um a ct o rev el ador d e uni ão, d e am or
at é; pode t am b ém r epresent ar t r ai ção, devi do ao c él ebr e “ bei j o de
J udas a J esus”. Nest as l endas, em bor a com m enos gravi d ade, não
dei x a de ser consi de rado com o um a t rai ç ão do bei j ado aos “s agrados
s acram ent os”, poi s apar ece com o u m roubo “dos san t os ól eos
recebi dos no bapt i s m o”. Em L M 60 : “– O que el l a queri a era t i r ar m e os sant os ol eos, que r ec ebi no m eu bapt i sm o”; em L M 8 (e LM
5 2): “C onhec eu a m ul her pel os t r aj es que t i nha n a sua presenç a
m ouros e m ou ras encant adas, di spost os t odos a roubar -l he os sant os
ól eos por i nt erm édi o do bei j o f at al ”; em L M 21 : “Eu, p orém que
nunca
t ent ei
i l udi r
ni nguém ,
qui s
ex pl i car
ao
J oão
Bent o
a
s i gni fi ca ção do bei j o e di sse -l he que d epoi s de r eceb er as ri quez as
nada m ai s t i n ha que faz er senão i r à i gr ej a e pedi r ao seu p ri or que
l he t ornasse a un gi r com os ól eos do bapt i sm o que eu l hos arran car a
com o b ei j o”; em L M 43 ( e LM 2 7 ), n ã o há ref erên ci a ao b apt i sm o,
m as o “bei j o de fo go” dado pel o m ou ro rev est e -se d e um car áct er
m al éfi c o, não i dent i fi cado.
A úni ca ex cepção é L M 44 ( e LM 25 ), em que D. Za rol ha , ao
bei j ar o sapo, t em acesso ao t acho do t esouro, fi c ando ri quí ssi m a
(perde um ol ho, m a s supost am ent e pel a sua hesi t a ção i ni ci al , o que
não est á di re ct am ent e rel a ci onado com o bei j o).
Símbolo d a união e d a adesão mútuas que na Antiguidade
assumiu um significado espiritual. [...]
A este respeito, Georges Vadja cita um texto de Zohar
r e l a t i v o a o b e i j o d i v i n o : «Q u e e l e m e b e i j e c o m b e i j o s d a s u a
boca» Porque é que o texto utiliza esta expressão? Com efeito,
beijo significa adesão de espírito a espírito . É por isso que o
órgão corporal do beijo é a boca, ponto de saída e fonte do
sopro. É também pela boca que se dão os beijos de amor, unindo
351
(assim) inseparavelmente espírito a espírito. É por isso que
aquele cuja alma sai ao beijar, adere a um outro espírito, a um
espírito do qual nunca mais se separará; esta união chama-se
beijo. [...]
[…] Símbolo de união, o beijo guardava,
polivalência,
(DAVS).
de facto, a
a a mb iguidade , das inú meras for ma s d e
união
495
Em quase t odos os encant am ent os que presenci amos ( LM 39 ,
LM 40 , LM 41 , LM 45 , LM 46 , LM 47 , LM 50 , LM 51 , L M 53 , LM
3, LM 6 , LM 11 , LM 12 e LM 17 ), os m ouros “desenha m no ar uns
s i nai s m i st eri osos” e “o si gn o S am ão”:
O selo de Salomão forma uma estrela de seis ponta s,
composta
de
dois
triângulos
equil áteros
entrecruzados.
Esta
figura é uma verdadeira so ma d o pensa me nto her mético. [...]
[…] O selo de Salomã o aparece então como a síntese dos
opostos, e a expressão da unidade cósmica, ao me smo te mpo que
a sua co mp le xidade.
O selo de Salo mão engloba ta mbé m, se mpr e segundo as
tradições her mética s, os sete metais de base, isto é, a totalidade
dos metais, be m co mo os sete planeta s que re sume m a totalidade
do céu. [...]
[…] A redução do múltiplo ao uno, do imperfeito a o
perfeito, sonho dos sábios e dos filósofos, está expressa no selo
de Salomão.
496
Ou ent ão, “ uns si na i s m i st eri osos” e “si nai s cabal í st i cos”:
Na sua essênc ia, a Cabala é um ensina me nto esotérico
centrado
num
sistema
de
símbolos
considerado
reflectir
o
mistério de Deus e do universo, e para o qual o cabalista tem de
encontrar a cha ve. Ao nível teórico, essas c have s per mite m -lhe
compree nder as dime nsões espirituais do universo, enqua nto, ao
495
496
Idem, p. 119.
Idem, p. 593.
352
nível prático, lhe permitem usar os poderes associados a estas
di mensões para fins mágicos (isto é, para os processos da
transfor mação física, psicológica ou espiritual).
497
Ao m esm o t em po, ent oam “um as prec es” e pronunci am “u m as
pal avras esqui si t as, i ncom preensí vei s”:
A magia acredita no poder da palavra enquanto
expressão de uma vontade, força e energia capaz de
modificar a própria realidade – a palavra é um eco da
vontade e do poder de quem a possui. […]
Nos contos, a própria palavra age sobre a matéria e
torna-se um poder em si ecoando, deste modo, o
i m a g i n á r i o v e r b a l d a m a g i a . 498
Est as refer ênci as r e m et em , i gual m ent e, para o “poder m á gi co”
que é t radi ci on al m e nt e at ri buí do à pal avra :
Quaisquer que sejam as crenças e os dogmas, a palavra
simboliza de uma for ma geral a ma nifestação da inteligê ncia na
linguagem, na natureza dos seres e na criação contínua do
universo; ela é a verdade e a luz do ser. Esta interpretação geral
e simbólica não exclui em nada uma fé precisa na realidade do
Verbo divino e do Verbo encarnado. [...] A palavra é o símbolo
mais puro da manife sta ção do ser, do ser que se pensa e que se
exprime ele próprio ou do ser que é conhecido e comunicado por
um outro.
499
Adal bert o Al ves di z , a respei t o dos poet as árab es:
O poe ma árabe tinha, desde os te mpos ma is primitivos,
anteriores ao Islamismo, um car ácter encantatório. O poeta, pelo
poder da palavra, era considerado um ser te mível que podia
497
Jack Tresider, in Os Símbolos e o seu Significado, Lisboa, Editorial
Estampa, 2000, pág. 172.
498
Maria Teresa Meireles, A Palavra e os seus ecos, p. 17.
499
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit.,p. 502.
353
proporcionar a desgraça ou a ventura, consoante invectivasse ou
elogiasse.
500
Doral i ce Al cofor ad o , a propósi t o dos proce ssos m á gi cos dos
encant am ent os no c ont o po pul ar , afi rm a o segui nt e :
As meta morfose s ma te rializa m a transgressã o dos limite s
entre
palavra
e
coisa
com
que
um
mod o
de
pensa mento,
utiliza ndo -se de operações predomina nte me nte sensíve is, busca
apreender
abstracções
como
imagens,
como
coisas.
O
sobrenatural se instala a partir do mo mento e m que a s palavra s
passam a ser coisas.
501
E Gabri el J aner Mani l a cri a um a anal o gi a que se
rel aci ona com o con t ex t o das nossas l endas:
A
palavra
cria,
ince ssa nte me nte,
mundos
paralelos.
E
circula e m nós regida por leis compará veis às da água: tal co mo a
água
nas
profundidades
da
terra,
mete -se
por
nós
adentro,
insta la-se na no ssa ima ginação, fá -la reviver, realiza uma viage m
através da nossa me mó ria. T al como a lingua ge m [água? ], traznos os ele me ntos necessários à sobr evivê ncia.
500
501
502
502
Adalberto Alves, ob. cit., pág. 31.
Doralice F. Xavier Alcoforado, ob. cit., pág. 75.
Gabriel Janer Manila, ob. cit., p. 23.
354
2.3. AS ARTES MÁGICAS E OS DESENCANTADORES DE
TESOUROS
Parece-nos óbvio que todos os elementos analisados têm
em comum reminiscências de antiquíssimos cultos pagãos.
Em que consistiam esses cultos é o que hoje ignoramos. Mas
talvez não completamente, pois, partindo desta permissa,
concluímos que também os rituais mágicos estavam ligados a
estes cultos, quer fossem ritos ligados à fertilização, quer o
fossem à regeneração e, consequentemente, todos associados
à vida, morte e renascimento.
Ora,
embora
aparentemente
os
rituais
mágicos
nada
tenham a ver com o ciclo da vida, a verdade é que mesmo os
alquimistas não procuraram só a pedra que transformasse o
chumbo
em
ouro,
pois
consta
que
também
a
“fonte
da
juventude” fazia parte dos seus objectivos.
Assim, e ao que parece, os indivíduos que se dedicavam
à busca de conhecimentos ocultos da maioria “juntavam o
útil ao agradável” e, enquanto a alma percorria o seu ciclo,
não desleixavam
proporcionarem
a procura de tesouros
prazeres
do
corpo
que
capazes de lhes
só
o
ouro
pode
comprar.
Depois de termos analisado tamanha profusão de motivos
separadamente, como era necessário, não podíamos deixar de
dar um exemplo de como, pelo menos alguns deles, pode m
conjugar-se na tentativa de alcançar um mesmo objectivo ,
como é o caso dos rituais mágicos para desencantar tesouros,
que interessavam inclusivamente alguns clérigos, dispostos a
correrem altos riscos, pondo em perigo a própria vida, como
aconteceu ao Reverendo Padre frey José de S. João de Deos,
denunciado à
Inquisição por um seu amigo, supostamente
“íntimo”,
qual
ao
confiou
talvez
o
seu
maior
segredo.
Referimo-nos ao trabalho de Maria Benedita Araújo, sobre o
355
percurso da Clavicula Salomonis (cuja autoria é atribuída ao
próprio rei Salomão, revelando “a essênc ia da sabedoria” que
“o Senhor depusera sobre ele, em sonhos”) , “a obra magna da
magia”,
livro
proibido
em
Portugal
desde
o
século
XVI,
juntamente com outros, considerados de idêntico perigo (por
exemplo, a “igualmente famosa Chyromantiæ”), fazendo parte
de várias listas, a mais famosa e actualizada das quais era o
Index Librorum Prohibitorum.
503
Dizia-se, na carta de denúncia daquele Padre:
[…] um caderno que tinha 30 meias folhas ou mais,
tendo em cada uma delas uma figura, diferentes umas das
outras,
redondas
umas,
quadradas
outras,
com
letras
dentro, outras com cruzes, tendo em cima o titulo do que
significavão e abaxo da figura a bênção que se fazia e a
oração que se dizia, mas tudo escrito em latim, que não o
entendi pelo não saber, mas mostrou-me outro coaderno
que seria 8 meias folhas com a explicaçam do que continha
todo
o
outro
coaderno,
dizendo
que
umas
figuras
ensinavam a dquirir siencias, outras, fortunas no militar,
outras em se conseguir dezejos amorosos, etc e a figura
numero
30
ou
31
dizia
o
modo
como
se
descubriam
tesouros escondidos e no coaderno da explicasam para se
saber aonde estavam os tisoiros, diz que era necessario
matar-ce em certo tempo um cabrito que estivesse sam,
com huma espada de 3 quinas com cabo de cristal e depois
de morto se esfolaria, tirando-se-lhe a pelicola em sima da
qual se diriam as tres missas do natal e se fariam umas
varas fabricadas de certos metais, que depois de benzidas
e dita a oração como se lia ao pé da figura numero tantos,
era este instromento o que desco bria o tisouro, pois para
ele caminhava a criatura e caia no cham aonde estava
oculto, que assim o experimentara ele [..].
504
503
V. Maria Benedita Araújo, “Ler em Portugal no século XVII – O
percurso de um livro proibido ”, in Lindley Cintra – Homenagem ao
Homem, ao Mestre e ao Cidadão , org. de Isabel Hub Faria, Lisboa,
Edições Cosmos, Fac uldade de Letras da Universidade de Lisboa, 1999,
pp. 310 a 330.
504
Maria Benedita Araújo, ob. cit., p. 316.
356
E,
segundo
Maria
Benedita
Araújo,
foram
igualmente
queimados pelo Santo Ofício livros de alquimia, nigromancia
e astrologia.
[…]
No
caso
citado
evidentemente
de
(Clavicula
um
livro
Salomonis),
ou
tratava-se
«cuaderno»
muito
consultado por todos os que pretendiam achar tesouros, ser
bem sucedidos nos negócios e no amor, triunfar na política
ou na guerra. Ensinava portanto as operaçõe s mágicas mais
diversas, desde o levantamento de figura, atar, ligar e
desligar, provocar a morte de inimigos, restituir a saúde
abalada pelo uso de
preparação
dos
pentáculos,
meios preternaturais, bem como a
instrumentos
facas,
cutelos
indispensáveis
de
à
arte,
sacrifícios,
selos
planetários, invocações de entidades, entre muitos outros
segmentos.
Não era uma obra de leitura fácil, destinava -se aos
iniciados
nas
ciências
esotéricas.
Por
outro
lado,
encontrava-se relacionado com o Sefer Raziel de Eleazer
de Worms, que, por sua vez, se encontrava repleto de
fórmulas e invocações. Por outro lado, o valor atribuído
às
letras
e
colocava-o
aos
números,
principalmente
em
conexão
com
a
às
Cabala,
primeiras,
igualmente
desenvolvida pelos judeus sefardis e que entusi asmava do
mesmo modo muitos cristãos.
505
Tal como nas lendas de mouras encantadas, havia toda
uma série de preceitos a respeitar, nem sempre fáceis de
executar,
pelo
que
só
os
aptos,
persistentes
e,
por
isso
mesmo, merecedores, conseguiam alcançar os seus objectivos.
Não era fácil, porém, realizar todos estes sonhos, não
obstante
mágica
a
necessária
complicada,
505
posse
daquele
para
obrigava,
maravilhoso
a
obtenção
entre
livro.
de
outros
A
técnica
resultados
era
segmentos,
ao
Maria Benedita Araújo, ob. cit., p. 321.
357
sacrifício de animais com os instrumentos adequados, à
manipulação
do
sangue
e
dos
«perfumes»,
ao
jejum
e
purificação do operador. […] que deveria seguir para tal
as regras das conjugações dos astros e assegurar -se do
concurso das entidades que presidiam aos círculos e aos
planetas.
Garantia assim a consecução da finalidade pretendida
pela
potenciação
Considerava-se
das
que,
forças
na
subtis
invocação
da
dos
natureza.
demónios,
os
caracteres gregos e hebreus presentes nos pentáculos e no
grande círculo
mágico, permitia ao operador entrar
em
contacto com os espíritos infernais sem se expor a uma
morte certa. Na realidade, conforme asseverava a crença, a
invocação
demoníaca
não
era
matéria
fácil,
como
pensavam as pessoas mal informadas. Daí, que tantas e
tantas
tentativas
séculos
XVII
e
de
pacto
XVIII
e
ocorridas
no
testemunhadas
decurso
por
numerosa
documentação não obtivessem qualquer resultado…
Esta
podem
autora
descreve,
relacionar-se
com
ainda,
o
outros
contexto
dos
506
pormenores
das
nossas
que
lendas
(algumas, pelo menos) e, consequente mente, com a simbologia
dos motivos estudada.
Segundo a magia salomónica, o primeiro cuidado a
enfrentar
seria
respeitar
planetárias influíam
na
a
tabela
realização
do
sol.
As
horas
da operação e
havia
tabelas secretíssimas, mas que o rei expunha a Roboã o
[seu
filho]
no
correctamente.
maus,
que
seu
Testamento
Seguiam-se
presidiam
ao
os
dia
e
que
nomes
da
dos
semana.
permitiam
anjos
agir
bons
Seriam,
e
entre
outros, e para o domingo, por exemplo, Cassiel, Gabriel,
Anael, Samael, Rafael. Além disso, o opera dor deveria
preparar os instrumentos para as mencionadas operações,
mantendo sempre o domínio de si próprio e dos espíritos
que
acorriam
ao
seu
espíritos impuros e
chamado.
Haveria
que
afastar
os
aproveitar para a arte os espíritos
divinos e puros. Os utensílios considerado[s] de maior
506
Maria Benedita Araújo, ob. cit., pp. 322 e 323.
358
importância eram o «estilete», que servia para imolar as
vítimas, e a «faca», para as despedaçar. Eram destinados
unicamente a estas finalidades e seriam cuidadosamente
guardados.
A «taça» para a recolha do sangue deveria ser nova,
exorcizada
e
preparada
com
fumigações
das
ervas
planetárias. Deveria ser igualmente purificada, por uma
cerimónia apropriada, assim como todo o material presente
no sacrifício, desde os panos brancos que envolviam as
paredes
e
operador.
E,
a
mesa,
à
vestimenta
também
branca
do
507
como
seria
de
esperar,
não
podiam
faltar
outros
elementos, como a palavra, a oração, os caracteres mágicos,
os “selos de Salomão” e, finalmente, toda a natureza:
A
«oração »,
em
língua
latina,
invocava
os
nomes
santos de Deus e dos anjos para quem abençoassem aquele
instrumento preparado em honra do Senhor. O operador
conservava-o depois muito limpo até ao momento de ser
usado para gravar os caracteres mágicos. Caso raro, era
desnecessário purificá-lo com sangue de cordeiro ou de
uma pomba branca.
Na magia salomónica toda a natureza participava da
divindade
e
fazia
parte
dela.
O
homem,
colocado
no
vértice da escala hierárquica, encontrava-se relacionado
com
o
cosmos
e
participava
de
todo
o
universo.
Apontavam-se os quatro elementos e os Anjos que a estes
presidiam:
Cherub,
Seraph,
Tarsis,
e
Ariel,
Anjos
cabalísticos. Seguiam-se as quatro estações com os seus
respectivos príncipes, entre os quais se citava Carascasa,
Staran e Comissoros.
Igualmente
indicados,
os
planetas,
os
Anj os
que
assistem diante de Deus, as pedras, as ervas, os pássaros e
os «animais terrestres» correspondentes a cada um deles.
Os «incensos» apontados revelam, entre outros, o aloés
para Júpiter, o estoraque destinado a Marte, o louro, que
incensava Vénus.
507
Maria Benedita Araújo, ob. cit., p. 323.
359
Qualquer
utilização
falha,
dos
por
mais
«per fumes»
quer
insignificante,
na
simbologia
quer
na
ou
nas
operações, inactivava todo o trabalho. […]
Seguiam igualmente os «pentaculos» ou pantáculos de
Salomão,
desenhos
ou
gravuras
ensinadas
por
Deus
ao
Grande Rei para atrair toda a boa fortuna e afastar as
influências
nefastas.
Protegiam
ao
mesmo
tempo
a
apropriação do nome dos Anjos e sua utilização pelos não
508
iniciados.
Este último parágrafo vem lançar luz sobre um antigo
enigma,
um
conseguido
problema
encontrar
para
o
resposta:
qual
é
não
ponto
t ínhamos
assente
ainda
entre
os
estudiosos (referimo-nos, mais concretamente, ao Dicionário
de Símbolos, mas também a outros livros, quer se destinem a
interpretar símbolos, quer não) que o “Selo de Salomão” é a
estrela de seis pontas, ou seja, resultante de dois triângulos
invertidos, que, como é do conhecimento geral, sempre foi
símbolo do povo Judeu; também é tradição (pensamos que em
todo
o
país,
mas
no
Algarve,
seguramente)
oferecer
aos
recém-nascidos, para protecção, um conjunto de amuletos em
ouro (para colocar num fio ou numa pulseira) , em número de
cinco, de que fazem parte uma mão a fazer uma “figa”, um
corno, um coração, uma meia-lua e um pentagrama; acontece
que, no Algarve, pelo menos antigamente e até não há muito
pouco tempo, o popularmente chamado “Signo Samão” (no
falar algarvio) era o pentagrama, isto é, a estrela de cinco e
não a de seis pontas.
Quando
nos
deparámos
com
esta
questão,
depois
de
interrogarmos várias pessoas, tentando sem sucesso obter um a
resposta
diferente,
não
encontrando
outra
hipótese
de
explicação, acabámos por pensar que teria havido, algures no
tempo, uma confusão qualquer. Afinal, a “confusão” parece
ser apenas, provavelmente, a designação genérica dos vários
508
Maria Benedita Araújo, ob. cit., p. 326.
360
desenhos que
constituem
“os pentáculos de Salomão”, ou
mesmo a utilização da expressão “pentáculo” ou “pentáculos
de
Salomão”
associada
a
rituais
mágicos
(nas
lendas
de
mouras encantadas, é comum o encantador fazer “uns sinais
cabalísticos” e o “signo Samão”) , propagada pelos
livros
que
ensinavam
estas
práticas,
como
é
o
vários
caso
da
Clavicula Salomonis.
361
CONCLUSÃO
Dum
ponto
verdadeira,
de
mas
vista
nós
científico,
somente
a
história
pudemos
não
entender
é
esta
propriedade do mito num tempo em que a ciberné tica e os
computadores apareceram no mundo científico , dando-nos
o conhecimento das operações binárias, que já tinham sido
postas em prática de uma maneira bastante diferente, com
objectos ou seres concretos, pelo pensamento mítico […]
perante o qual permanecíamos completamente cegos antes
de a ideia das operações binárias se tornar um conceito
familiar para todos.
509
Se quisermos encontrar uma atitude comum a todas as
narrativas e episódios que analisámos,
não é difícil, sem
dúvida, aventar a hipótese de que todos os entes míticos do
maravilhoso
popular
algarvio
estão,
muito
provavelmente,
relacionados com cultos ancestrais dos mortos.
Mas recordemos também os rituais da água que se
recolhe para beber ou para libações, na véspera de S. João,
em
busca
dos
seus
milagres
curativos
e
fecundadores.
Água retirada das mesmas fontes onde se diz que estão as
mouras
encantadas.
Águas,
fertilidade
e
regeneração,
a
cobra e as mouras encantadas, todos mitemas do mesmo
conjunto. E os exemplos das aparições neste contexto são,
evidentemente, às centenas.
510
Água, terra, ar e fogo; fertilidade e regeneração; tempo e
ciclicidade; nascimento, vida, morte e renascimento.
E se as mouras são, como dissemos, criaturas de uma
idade
primeva,
reminiscência
de
uma
Estória
antes
da
História, as suas manifestações consubstanciaram durante
509
510
Claude Lévi-Strauss, ibidem, pp. 37 e 38.
Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 34.
362
séculos
uma
alimentou
segunda
férteis
idade.
Idade
imaginários
em
que
populares
e
a
fantasia
tradicionais.
Hoje, contudo, os seres do bestiário popular vão cedendo
lugar ao inexorável racionalismo co ntemporâneo naquilo
que
podemos
chamar
a
terceira
das
idades
de
uma
existência mística e milenar.
Os lugares recônditos são-no cada vez
menos, e o
mistério adquire agora outros contornos e cenários. Os
enriquecimentos possuem hoje outras explicações. […]
A
moura,
vínculo
arquétipo
unificador
da
com
perenidade
um
passado
da
natureza,
primevo,
perde
inevitavelmente a sua razão de ser. A sua essência vai -se
511
diluindo conforme se esvaem as crenças respectivas.
Podemos,
tradicionais
então,
a
que
talvez,
deduzir
ainda
hoje
que
todos
podemos
os
ritu ais
assistir
estão
entreligados, assim como entre as personagens míticas e as
religiosas existe uma ligação ancestral que dificilmente se
deixa entrever nas diversas formas que têm assumido ao longo
dos tempos.
Poder-se-á dizer, assim, que só a mudança permanece.
Que real não é apenas aquilo que se mant[é] m igual a si
próprio, mas ainda o que se transforma ciclicamente,dando
origem
a
novas
formas,
mas
conservando
o
mesmo
elemento essencial e o mesmo desígnio.
Afinal,
neste
complexo
fecundante
e
fertilizante
associado aos ciclos da natureza, crucial durante milénios
para
a
sobrevivência
de
sociedades
que
daí
esperam
a
abundância desejada e quantas vezes prometida, não é de
admirar que tal desígnio essencial se perpetue, enquanto
mudam,
no
configurações.
tempo
e
no
espaço,
roupagens
e
512
Foi Ferdinand de Saussure quem nos mostrou que a
linguagem é feita de elementos indissociáveis, que são,
511
Aurélio Lopes, B. I. das Mouras Encantadas, 2ª ed., Lisboa, Apenas
Livros Lda., 2004. p.28.
512
Aurélio Lopes, Personagens Florais, p. 19.
363
por um lado, o som, e, por outro, o significado. E o meu
amigo Roman Jakobson acaba de publicar um pequeno livro
intitulado Le Son et le Sens, como as duas inseparáveis
faces
da
linguagem.
Temos
o
som,
e
o
som
tem
um
significado, e não há significado sem som para o veicular.
Na música, é o elemento sonoro que predomina, e no mito
é o significado.
513
Para finalizar, apenas me ocorrem as palavras do nosso
muito estimado orientador, num artigo dedicado à Professora
Doutora Maria de Lurdes Belchior, que tivemos o prazer de
contar entr e os no ssos «mestres »:
A nível do imaginário colectivo, onde e como nos
situarmos?
É
difícil
dizer…,
embora
julguemos
que
também neste aspecto prosseguimos iguais a nós mesmos.
Sobretudo, esperamos… […] continuamos a aguardar uma
intervenção
sobrenatural
através
de
não
poucas
a
frequentes mensagens do Divino, ou, melhor, cremos no
«deus
ex-machina»,
que
poderá
concretizar-se
na
personagem «enviada» co m missão especial, no «Desejado »
carismático… […]
[…]
Eclécticos
que
sempre
fomos,
herdeiros
da
mística e da acção dos Templários e dos Cavaleiros da
Ordem de Cristo, incapazes do exercício organizador ou
planificador
da
razão,
actores
marcados
por
signo
astrológico tão bem estudado por Pessoa (cremos que é o
signo
sempre
de
–,
Peixes)
hão-de
temos
confiar
forçosamente
numa
sempre
de
ser
adiada
os
que
era
de
grandeza, continuação da efémera hegemonia passada, que
parece ser-nos garantida quer pela Santa da Ladeira ou
outros iluminados, para os problemas circunstanciais, quer
por Nossa Senhora de Fátima, para a realização dos nossos
compromissos em relação ao Bem e ao Ma l, quer ainda por
um
513
D.
Sebastião,
para
a
nossa
afirmação
de
esperança
Claude Lévi-Strauss, ibidem, pp. 75 e 76.
364
perante o futuro… Como, aliás, queria Bandarra e todos os
seus glosadores…
514
514
João David Pinto-Correia, Repensar A Nossa Identidade Cultural,
Lisboa, Apenas Livros Lda., 2005, pp. 14 e 15.
365
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377
ANEXOS
378
NUMERAÇÃO DAS LENDAS
P ara faci l i t ar a com preensão das “si gl as ” ut i l i z adas, apresent am os
a s e gui nt e l e gend a:
LM = Lendas de Mouros/as Encantados/as
ELM = Episódios Lendários de Mouros/as Encantados/as
LLO = Lendas de Lobisomens
ELLO = Episódios Lendários de Lobisomens
LS = Lenda de Sereia
LMO = Lendas da Morte
ELMO = Episódios Lendários da Morte
LAP/M = Lendas de Almas Penadas / Medos
ELAP/M = Episódios Lendários de Almas Penadas / Medos
LFeB = Lendas de Feiticeiros/as e Bruxas
ELFeB = Episódios Lendários de Feitice iros/as e Bruxas
LD = Lendas do Diabo
ELD = Episódios Lendários do Diabo
LSB = Lenda das Santas Cabeças
ELSB = Episódios Lendários das Santas Cabeças
ZB = Zorra Berradeira
G/J = Gens ou Jens
TE = Tesouros Encantados
379
LPD = Lenda de Povoação Desaparecida
LU = Lenda Urbana
LCJC = Lendas do Ciclo de Jesus Cristo
LCNS = Lendas do Ciclo de Nossa Senhora
LCS = Lendas do Ciclo de Santos
LMIA = Lenda de Milagre de Allah
LMID = Lenda de Milagre de Deus
LCD = Lenda de Castigo Divino
380
VERSÕES RECOLHIDAS
 da sra. Maria de Jesus Duarte (ti Bia)
com 91 anos, tem a 4ª classe, moradora em Casais
LCS 1 = [A Aparição de Santo António]
recolhida em 04/02/2007
 do sr. Filipe Marque com 92 anos,
tem a 4ª classe, nasceu em Monchique
ELAP/M 1 = [Os dois Coelhinhos Brancos]
recolhida em 14/04/2007
 da sra. Maria Patrocínio Castilho Santos
(D. Bibi), com 73 anos, tem a 4ª classe,
nasceu em Albufeira
ELFeB 1 = [Histórias de Almas Penadas
e de Bruxarias], recolhida em 14/04/2007
LFeB 1 = Três casos de bruxaria / 1
[A morte do irmão]
recolhida em 14/04/2007
LFeB 2 = Três casos de bruxaria / 2
[“Uma coisa muito agarrada à matéria”]
recolhida em 14/04/2007
LFeB 3 = Três casos de bruxaria / 3
[A professora da Fuzeta]
recolhida em 14/04/2007
381
LU 1 = [Casas assombradas em Olhão – o palacete
do Conde de Olhão]
recolhida em 14/04/2007
LU 2 = [Casas assombradas em Olhão – o cinema]
recolhida em 14/04/2007
 da sra. Ana Paula Santana
licenciada, com 50 anos, nasceu em Portimão
ELM 1 = [A “Pedra Mourinha”]
recolhida em 16/08/2011
ELAP/M 2 = [A Costureirinha]
recolhida em 16/08/2011
ELAP/M 3 = [A origem do nome de Odelouca]
recolhida em 16/08/2011
LCD 1 = [As rochas da praia dos Três Irmãos]
recolhida em 16/08/2011
 do sr. José Conceição Casinha Nova
licenciado, com 76 anos, nasceu em Burgau
LU 3 = [Casa assombrada em Lagos]
recolhida em 14/08/2010
ELAP/M 4 = [Fogos fátuos / Almas penadas]
recolhida em 14/08/2010
ELAP/M 5 = [Campainhas / Almas penadas]
recolhida em 14/08/2010
382
ELFeB 2 = [Um feitiço]
recolhida em 14/08/2010
VERSÕES INÉDITAS
 Ouvidas na infância, por José Conceição Casinha
Nova e passadas a escrito a partir de 1998
ELAP/M 6 = Num almanxar em Burgau
ELAP/M 7 = Nas Quatro Estradas
ELAP/M 8 = Na Toca do Rabo, em Burgau
ELAP/M 9 = Junto ao Canto do Laredo, em Burgau
LLO 1 = [Bernardino, o lobisomem]
E L L O 1 = No Val e de Bur gau
ELMO 1 = [Desabafo]
LMO 1 = [A morte do carteiro]
LMO 2 = [Amor eterno]
LMO 3 = [Tentando fugir da Morte]
383
VERSÕES EDITADAS
A l c o u t i m – C a p i ta l d o N o r d e s t e Al g a r v i o
( S u b s í d i o s p a r a u ma Mo n o g ra f i a ) ( d e
An t ó n i o M i g u e l As c e n s ã o Nu n e s
( J o s é Va r z e a n o )
LM 1 = [A Moura do Castel o da Vila]
[pp. 134-135]
LM 2 = [A Moura do Castelo Velho ]
[pp. 146-147]
ELM 2 = [As mouras de Alcoutim ]
[pp. 145]
A L G AR V E – Re f l e x o s Et n o g r á f i c os d e u ma Re g i ã o
( d e Ad é r i t o F e r n a n d e s Va z )
ELM 3 = [Carneiros que desaparecem ]
[p. 50]
ELFeB 3 = [Feiticeiros bons em Santa Rita ]
[pp. 51-52]
ELAP/M 10 = [Alma penada (mosca)]
[p. 52]
A L M AN S I L Mo n og r a f i a e Me mó r i as ( d e C r i s t ó v ã o
G u e r r e i r o No r t e )
ELAP/M 11 = [Na ponde de Carcavai ]
[p. 74]
ELAP/M 12 = [Nos cruzamentos]
[p. 74]
ELAP/M 13 = [O cão preto]
[pp. 74 -75]
ELD 1 =
[Ataques do Diabo]
[p. 75]
384
A M o n o g r a fi a d e Al v o r ( d e At a í d e Ol i v e i r a )
LCJC 1 = [A imagem do Senhor Jesus ]
[pp. 190-192]
LCJC 2 = [O salvamento dos pescadores]
[pp. 194-196]
LCJC 3 = [O terramoto de 1755]
[pp. 198 -199]
LCJC 4 = [A barba da imagem]
[pp. 200 -201]
LCJC 5 = [A imagem sua sangue]
[p. 202]
LCJC 6 = [O castigo do Senhor Jesus]
[pp. 202-203]
LFeB 4 = [A bruxa que matou o marido]
[pp. 206-208]
LFeB 5 = [A bruxa que curou o marítimo]
[pp. 214-215]
ELFeB 6 = [Engano nas horas]
[pp. 208]
ELAP/M 14 = [A alma que não requereu]
[pp. 210-211]
LAP/M 1 = [A missa pedida pela avó ]
[pp. 213-214]
As Mouras Encantadas e os Encantamentos no
Algarve (de Ataíde Oliveira):
LM
3
=
A Moura Cássima
(=>
8;
=> 18)
[pp. 61-70]
XXX
LM 4 = [Os primos encantados]
[pp. 74-77]
LM 5 = [A Moura do sítio da Canada]
[p. 82]
LM 6 = A Moura de Salir / 1
[pp. 103-109]
LM 7 = A Moura de Salir / 2
[pp. 110-113]
LM 8 = A Moura de Querença
[pp. 132-133]
LM 9 = [O Mourinho de Paderne]
[pp. 144 -145]
LM 10 = A Moura de Faro / 1
[pp. 147-150]
LM 11 = A Moura de Faro / 2
[pp. 152-154]
LM 12 = A Moura de Faro / 3
[pp. 154-155]
LM 13 = O Encantamento de Estoi
[pp. 158-161]
385
LM 14 = A Moura de Olhão
(=> 37; => 70)
[pp. 165 -167]
LM 15 = [O Mourinho de Olhão]
[pp. 167 -168]
LM 16 = O Abismo dos Encantados
[pp. 175-177]
LM 17 = O Poço de Vaz Varela
[pp. 183-185]
LM 18 = A Moura do Castelo de Tavira
[p. 194]
LM 19 = A Moura de Alcoutim
[pp. 203-204]
LM 20 = A Moura de Vaqueiros
[pp. 205-206]
LM 21 = A Moura de Giões
[pp. 207-215]
LM 22 = A Moura de Pêra
[pp. 229-230]
LM 23 = A Encantada de Porches
[pp. 231-232]
LM 24 = A Cobrinha do Barranco
[pp. 239-241]
LM 25 = O Tacho do Tesouro
[pp. 243-244]
LM 26 = O Forno da Cal
[pp. 247-250]
LM 27 = O Palácio sem Portas
[pp. 251-253]
LM 28 = A Fonte de Espiche
[pp. 261-262]
ELM 4 = [Numa cadeira de prata]
[pp. 71 -72]
ELM 5 = [Na Fonte da Moura / 1]
[p. 72]
ELM 6 = [Na Fonte da Moura / 2]
[pp. 72 -73]
ELM 7 = [Fonte das Romeirinhas / 1]
ELM 8 = [No Torrejão]
ELM 9 = [No sítio do Vale / 1]
ELM 10 = [Em Apra]
[p. 73]
[p. 77]
[pp. 77 -78]
[p. 78]
ELM 11 = [Na Fonte das Romeirinhas / 2]
[pp. 78 -79]
ELM 12 = [No Pombal]
[pp. 79]
ELM 13 = [Na Corredoira]
[pp. 79]
ELM 14 = [No Cabeço de Câmara]
[p. 81]
ELM 15 = [Na Fonte das Romeirinhas / 3]
[p. 82]
ELM 16 = [No sítio do Vale / 2]
[p. 84]
ELM 17 = [Na porta Miradela do castelo]
[p. 84]
ELM 18 = [No sítio do Vale de Cães]
[pp. 84 -85]
ELM 19 = [Reuniões dos encantados]
[p. 85]
ELM 20 = [Na Fonte do Mouro]
[p. 85]
386
ELM 21 = [Na casa da testemunha]
[pp. 85 -86]
ELM 22 = [Na Quinta do Pombal]
[p. 87]
ELM 23 = [Perto da igreja de Santa Ana]
[pp. 87-88]
ELM 24 = [Perto da Fonte Cássima]
[p. 88]
ELM 25 = [Touro caiu dentro da fonte]
[p. 89]
ELM 26 = [O rebanho de perus]
[pp. 89 -90]
ELM 27 = [A Moura do Serro da Pena]
[pp. 113 -114]
ELM 28 = [Na Fonte M ourena]
[p. 115]
ELM 29 = [A Moura nos muros do castelo]
[p. 116]
ELM 30 = [A Moura com um archote aceso]
[pp. 116 -119]
ELM 31 = [Na Fonte do Ouro]
[p. 119]
ELM 32 = [A cobra do Ribeiro Seco]
[p. 120]
ELM 33 = [ A Igrejinha dos Soidos ]
[pp. 123-124]
ELM 34 = [No sítio do Farrobeirão]
[pp. 124 -125]
ELM 35 = [No sítio dos Braganções]
[p. 125]
ELM 36 = [Em Benafim]
[p. 125]
ELM 37 = [No sítio dos Mortorios]
[p. 125]
ELM 38 = [A Moura do Ameixial]
[pp. 127 -128]
ELM 39 = [No sítio da Corte do Ouro]
[p. 128]
ELM 40 = [Mouros encantados em pedras]
[p. 128]
ELM 41 = [Na Cova dos Mouros]
[pp. 129-130]
ELM 42 = [No Lugar da Amendoeira]
[pp. 130 -131]
ELM 43 = [Mouros de Querença]
[p. 132]
ELM 44 = [Albufeira: na furna do Xurino]
[p. 142]
ELM 45 = [No sítio da Patã]
[p. 142]
ELM 46 = [Paderne: no castelo]
[p. 144]
ELM 47 = [Paderne: mourinho]
[p. 144]
ELM 48 = [Faro: mouros do castelo]
[p. 150]
ELM 49 = [Faro: na Rua da Parreira]
[p. 150]
ELM 50 = [Faro: figos fora da época]
[p. 151]
ELM 51 = [Faro: o mourinho generoso]
[pp. 151 -152]
ELM 52 = [Faro: no Rio Seco]
[p. 155]
ELM 53 = [Os Mouros de Alportel]
[pp. 163 -164]
ELM 54 = [Em Moncarapacho/1]
[p. 171]
387
ELM 55 = [Em Moncarapacho/2]
[pp. 171 -172]
ELM 56 = [Em Moncarapacho/3]
[p. 172]
ELM 57 = [No pego Bum -Bum / 1]
[pp. 172-173]
ELM 58 = [No pego Bum -Bum / 2]
(=> 93)
[p p. 172-173]
ELM 59 = [A Moura de Moncarapacho]
[p. 173]
ELM 60 = [No serro de S. Miguel]
[p. 173]
ELM 61 = [No Monte do Tesouro]
[pp. 173 -174]
ELM 62 = [Fátima e José Peso Duro]
[p. 186]
ELM 63 = [Fátima e o Cativo]
[pp. 186 -187]
ELM 64 = [Fátima e José Gigante]
[p. 187]
ELM 65 = [Fátima oferece figos]
[pp. 187 -188]
ELM 66 = [A dama do corcel alazão]
[p. 188]
ELM 67 = [Fátima continua a apare cer]
[pp. 188-192]
ELM 68 = [Castro Marim: no Castelo]
[p. 199]
ELM 69 = [Mouro encantado em sapo]
[pp. 199 -200]
ELM 70 = [No sítio da Espalhosa]
[p. 200]
ELM 71 = [A luta de D. Ana Faísca]
[pp. 200 -201]
ELM 72 = [Os nove mouros encantados]
[p. 201]
ELM 73 = [A Moura de Vaqueiros]
[p. 205]
ELM 74 = [Na prisão de Silves]
[pp. 221 -222]
ELM 75 = [No Castelo de Silves]
[pp. 222 -223]
ELM 76 = [No P ego do Pulo]
[pp. 223 -224]
ELM 77 = [O cemitério dos mouros]
[pp. 224 -225]
ELM 78 = O encantamento do Algôs
[p. 227]
ELM 79 = [Em berço de ouro]
[p. 233]
ELM 80 = A Fonte Coberta / 1
[p. 245]
ELM 81 = A Fonte Coberta / 2
[pp. 245 -246]
ELM 82 = [O Mourinho de] Bensafrim
[pp. 255 -256]
ELM 83 = O Touro da Carapetola
[p. 245]
ELAP/M 15 = [O homem que batia no chão]
LMIA = [A Torre de Bias]
[p. 89]
[pp. 179 -180]
388
ELFeB 7= [As bruxas de Boliqueime]
[p. 136]
ELFeB 8= [O virtuoso de Giões]
[pp. 207 -208]
ZB 1 = A Zorra Berradeira
[pp. 235-236]
G/J 1 = Gens ou Jens
[pp. 237-238]
Cidade
de
Mil
Tesouros
(de
Maria
José
Guerreiro Pinheiro)
LM 29 = A Moura Encantada
do Castelo de Tavira
LM 30 = Lenda do Poço Vaz Varela
[pp. 22 -23]
[pp. 23-24]
Contos Populares e Lendas (de José Leite de
Vasconcellos)
LCNS 1 = Senhora dos Milagres
[p. 507]
LCS 2 = São Cipriano
[pp. 545 -547]
LCS 3 = São Vicente
[pp. 591-592]
ZB 2 = A Zorra de Odelouca
[p. 599]
LCD 2 = A Mulher Morta
LCD 3 = O Busto de Faro
[p. 604]
[p.615]
LPD = Lameira
[p. 863]
LM 31 = [O Cinto da Moira]
[pp. 742 e 743]
LM 32 = A Velha Barbaças
[pp. 743 e 744]
389
ELM 84 = [Os Dois Moirinhos]
[pp. 782 -783]
ELM 85 = O Menino dos Olhos Grandes
[p. 797]
TE 1 = [Em Castro Marinho]
[p. 824]
TE 2 = [Em Val de Bois]
[p. 825]
Da Memória do Povo: recolha
da literatura
popular
concelho
de
tradição
oral
do
de
Portimão (de Margarida Tengarrinha)
LFeB 6 = O Baile das bruxas no Vale de Botas
[p. 25]
LFeB 7 = Os Bois presos no Cagorro
[p. 26]
LFeB 8 = A Levitação de José Perpétuo
[pp. 29-30]
LFeB 9 = A Brux a Inácia da Córte
[pp. 31-32]
LFeB 10 = Os Bruxedos da Carembicha
[pp. 33-36]
LFeB 11 = As Bruxas da Quinta da Rocha
[pp. 37-38]
LFeB 12 = A Viúva dos Montes de Alvor
[pp. 40-41]
LFeB 13 = A Sorte da Água para descobrir a bruxa [ pp. 42 -4 3 ]
ELFeB 9 = As Bruxas da Várzea do Farelo
[pp. 27-28]
ELFeB 10 = A Vingança das Bruxas
[p. 28]
ELFeB 11 = As bruxas de Alvor
[p. 39]
ELFeB 12 = Pedro nas mãos das Bruxas
[pp. 39 -40]
ELFeB 13 = As Bruxas que vinham de Santaré m [p. 44]
LLO 2 = O João do Serro, Lobisomem
[pp. 36 -37]
LLO 3 = [Lobisomens de Alvor / 2]
[pp. 41 -42]
ELLO 2 = Lobisomens de Alvor [1]
[p. 41]
LCNS 2 = Lenda da Senhora do Verde
[pp. 6 3-64]
LCNS 3 = A Pègada da Nossa Senhora
na Fonte junto da Ermida
[p. 64]
390
LCNS 4 = Nossa Senhora e o Linguado
[p. 72]
LCNS 5 = A Promessa à Nossa Senhora
[p. 73]
LCJC 7 = A Lenda do Senhor Jesú s
de Alvor [1]
LCJC 8 =
[A
[p. 65]
Lenda do Senhor Jesú s
de Alvor / 2]
[p. 66]
LCD 4 = Lenda dos três Irmãos de Alvor
[pp. 66 -67]
LCD 5 = Lenda do Sítio da Mulher Morta
[ pp. 68-69]
LAP/M 2 = A Alma Penada de Odelouca
[pp. 67 -68]
LAP/M 3 = A Lenda do Canto das Almas
[pp. 73 -74]
ELD 2 = Lenda da Mina dos Mouros
[p. 71]
ELM 86 = A Lenda do Barretinho
Encarnado
ENIGMAS
–
[pp. 71-72]
LUGARES
MÁGICOS
DE
PORTUGAL
–
Cabos do Mundo e Finisterras (de Paulo Pereira)
LCNS 6 = Capela de Nossa Senhora da Rocha
[p. 146]
LCS 4 = «M ila gre s de S. Vicente da dos a públicoem
Lisboa por Mestre Estê vão chantre
da Sé olisiponense»
[pp. 161-162]
LCS 5 = São Vicente na Grande Tradição
[p. 170]
391
Lendas de Portugal (de Gentil Marques):
LM 33 = Lenda do Bolo Branco
LM 34 = Lenda de Algoz
[vol. III, pp. 69-74]
[vol. I, pp. 345 -351]
LM 35 = Lenda da Moura
da Serra de Monchique
LM 36 = Lenda do Falso Juramento
[vol. III, pp. 313 -317]
[vol. III, pp. 273-278]
LM 37 = Lenda da Moura Floripes
(=> 14; => 70)
[vol. III, pp. 371 -376]
LM 38 = Lenda do Almocreve
de Estoi
[vol. III, pp. 209-215]
LM 39 = Lenda da Castelã de Salir
[vol. III, pp. 247 -252]
LM 40 = Lenda da Fonte Cassima
[vol. III, pp. 185-193]
LM 41 = Lenda do Abismo dos
Encantados (=> 65; => 69) [vol. III, pp. 171 -174]
LM 42 = Lenda dos Corvos de
São Vicente
[vol. IV, pp. 157-162]
LM 43 = Lenda do Manto de
Santo António
[vol. IV, pp. 205-210]
LM 44 = Lenda do Senhor
da Verdade
[vol. IV, pp. 243-249]
Lendas Portuguesas (de Fernanda Frazão):
LM 45 = O Convite da Mirra
[vol. 5, pp. 117 -122]
LM 46 = O Senhor Jesus de Alvor
[vol. 5, pp. 123 -131]
LM 47 = Lenda da Praia da Rocha
[vol. 5, pp. 133 -139]
LM 48 = A Cobrinha do Barranco
[vol. 6, pp. 67-71]
LM 49 = O Palácio sem Portas
[vol. 6, pp. 25-29]
LM 50 = O Tacho do Tesouro
[vol. 6, pp. 77-80]
LM 51 = O Cinto da Moura
[vol. 6, pp. 45-47]
LM 52 = As Mouras do Rio Seco / 1
[vol. 6, pp. 85-88]
392
LM 53 = As Mouras do Rio Seco / 2
[vol. 6, pp. 88-90]
LM 54 = O Encantamento de Estoi
[vol. 6, pp. 37-44]
LM 55 = A Moura do Arco do Repouso [vol. 6, pp. 31-36]
LM 56 = A Moura Cassima
[vol. 6, pp. 11-24]
LM 57 = A Moura de Salir
[vol. 6, pp. 63-66]
LM 58 = A Moura de Querença
[vol. 6, pp. 81-83]
LM 59 = O Poço do Vaz Varela
[vol. 6, pp. 57-62]
LM 60 = Dinorah
[vol. 6, pp. 73-75]
Livro das Visitações da Ordem de Sant’Iago na
Igreja Matriz de Aljezur (1605 -1846) (de Fernando
Calapez Corrêa)
LSC = As Santas Cabeças
[pp. 211-213]
ELSC 1 = [Declaração de 1713]
[p. 214]
ELSC 2 = [Declaração de 1846]
[p. 215]
Loulé Cidade de Mil Encantos (de Maria José
Guerreiro Pinheiro)
LM 61 = A Moura Cássima
[pp. 23-27]
LM 62 = A lenda dos dois primos
[pp. 28 -29]
LM 63 = A Moura de Salir
[pp. 29 -30]
ELM 87 = A Lenda da Fonte da Moura
[pp. 27 -28]
ELM 88 = Outra Lenda
[p. 28]
ELM 89 = A Lenda do Amei xial
[p. 29]
LCNS 7 = [A donzela que resistiu
ao fidalgo]
[p. 60]
LCNS 8 = [A construção da Capela da
Senhora da Piedade]
[p. 60]
LCNS 9 = Lenda da Senhora da Piedade [pp. 63 -64]
393
Memória das Coisas (de Silva Carriço)
ELAP/M 16 = [A velha, o burro e o cão]
[pp. 198 -199]
ELAP/M 17 = [O cão da Cruz do Peso]
[p. 200]
LFeB 14 = [ O tio Manel e a b rux a]
[p. 199]
ELFeB 14 = [As bruxas e as encruzilhadas] [ p. 200]
Mexilhoeira Grande – Ensaio Monográfico (de
Helga Maria Lopes Rosa)
LCNS 10 = Lenda da Senhora do Verde (=> 2)
[p. 159]
LCNS 11 = A pegada da Nossa Senhora
da Fonte junto da ermida (=> 3)
[pp. 159 -160]
LCD 6 = Lenda do sítio da
Mulher Morta (=> 2)
ELD 3 = Lenda da Mina dos Mouros (=> 1)
[p. 160]
[p. 160]
Monografia da Luz de Tavira (de Ataíde
Oliveira):
LM 64 = A Fonte do Arroio
[/O Pego Escuro] (=> 66)
[pp. 219-221]
394
Monografia de Estoi (de Ataíde Oliveira)
LM 65 = A Fonte do Canal (=> 41; => 69)
[pp. 141 -142]
Monografia de Estombar – Concelho de Lagoa
(de Ataíde Oliveira)
ELM 90 = [No sítio da Horta]
[p. 174]
E LM 91 = [ Nas ca vernas da M ex ilhoeirinha] [p. 175]
ELAP/M 18 = [Pancadas no soalho]
[pp. 175 -176]
ELAP/M 19 = [O tesouro dentro da furna]
[p. 176]
TE 3 = [O tesouro do Convento do Praxel]
[p. 176]
ZB 3 = [A Zorra Berradeira]
[pp. 177-178]
G/J 2 = Gens ou Jens
[p. 178]
Monografia de São Bartolomeu de Messines (de
Ataíde Oliveira):
LCS 6 = [O templo de São Bartolomeu]
[pp. 157 -158]
LM 66 = [“ Pego Escuro] (=> 64)
[pp. 158-160]
LM 67 = [O Pego da Carriça]
[pp. 160 e 161]
LM 68 = [O Encantamento]
[pp. 161-163]
395
Monografia do Algoz (de Ataíde Oliveira)
LFeB 15 = [ O homem que trocou a o r ação]
[pp. 2 02-203]
ELFeB 15 = [Bruxaria no Hospital]
[p. 203]
LCNS 12 = [A ermida da Senhora do Pilar]
[p. 208]
LCNS 13 = [A fonte da Senhora do Pilar]
[pp. 210 -211]
ELM 92 = [Na Azinhaga das Quintas]
[p. 209]
Monografia do Concelho de Loulé (de Ataíde
Oliveira
LCNS 14 = [A Senhora das Portas do Céu]
[pp. 198-199]
ELM 93 = [Na Cova de Pelles]
[p. 200]
Monografia do Concelho de Olhão
(de Ataíde Oliveira)
LM 69 = [A Fonte do Canal] (=> 41; => 65)
[pp. 43-44]
LM 70 = [A Moura Floripes] (=> 14; => 37)
[pp. 227 -228]
ELM 94 = [Companheiro Importuno]
[p. 228]
ELM 95 = [Mourinho do Pego Bum -bum]
(=> 57)
[p. 228]
ELM 96 = [No Monte do Thesouro]
(=> ??)
[p. 228]
ELM 97 = [As mouras de Pechão]
[p. 228]
ELFeB 16 = [A morte da Bruxa]
[p. 233]
396
Monografia do Concelho de Vila Real de Santo
António (de Ataíde Oliveira)
ELAP/M 20 = [A Cabrinha]
[pp. 213 -214]
O ALGARVE (de J. Mimoso Barreto)
LCD 7 = [O Monte de Trigo]
[p. 75]
LCD 8 = [Branca Flor]
[p. 76]
O Livro de Alportel – Monografia de uma
Freguesia Rural – Concelho (de Estanco Louro)
ELAP/M 21 = Os medos
[pp. 376 -377]
ELAP/M 12 = Os espíritos
[p. 377]
Passinhos de Nossa Senhora (de Fernanda
Frazão)
LCNS 15 = [Santa Maria de Daro]
[pp. 58 -59]
LCNS 16 = [Nossa Senhora do Carmo,
da Fuzeta]
[p. 59]
LCNS 17 = [A Senhora da Orada,
De Albufeira]
LCNS 18 = [Nossa Senhora das Angústias]
[pp. 59 -60]
[pp. 61 -62]
397
RELIGIÕES DA LUSITÂNIA (de José Leite de
Vasconcellos)
ELAP/M 23 = [As pedra voltam para os moledos] [p. 205]
ELAP/M 24 = [Soldados transformados em pedras][p. 205]
ELAP/M 25 = [Reunião dos deuses no Promontório][p. 207]
ELAP/M 26 = [Na Praia do Direito]
[p. 207]
ELAP/M 27 = [“Pantasmas” na praia]
[p. 208]
ELAP/M 28 = [“Pesadelo” na gruta]
[p. 208]
ELAP/M 29 = [Em Beliche Velho]
[p. 208]
ELAP/M 30 = [Luzinhas em S. Vicente]
[p. 208]
ELAP/M 31 = [Culto de mortos no Cabo
[p. 209]
LAP/M 4 = [O leixão de S. Vicente]
[pp. 214-215]
Subsídios para a Monografia de Monchique (de
José António Guerreiro Gascon)
ZB 4 = [A Zorra de Odelouca]
[p. 367]
TAVIRA do NEOLÍTICO ao SÉCULO XX, II JORNADAS
de HISTÓRIA – ACTAS (AA.VV.)
ELM 98 = As Moiras
[p. 82]
UM ALGARVE OUTRO contado de boca em boca
(de Glória Marreiros)
ZB 5 = A Zorra de Odelouca [1]
[p. 82]
ZB 6 = A Zorra de Odelouca [2]
[pp. 82 -83]
LCD 9 = [O domingo é dia santo]
[p. 83]
398
Viagens do Diabo em Portuga l (de Fernanda
Frazão)
ELD 4 = O homem das Sete Dentaduras
[p. 147]
LD 1 = A casada com o Diabo
[pp. 147 -148]
Vilas e Aldeias do Algarve Rural (AA.VV.)
ELD 5 = [No Barranco do Demo]
[p. 50]
LMID 1 = Coração de Plátano
[p. 50]
LM 71 = As Mouras de Paderne
[pp. 63 -64]
LM 72 = A Moura do Ameixial
[pp. 113 -114]
LM 73 = [A Moura da Cerca das Alcarias]
[p. 134]
ELM 99 = Lenda das Mouras de Querença
[pp. 107 -108]
LCS 7 = [S. Bento em Alcaria Queimada]
[pp. 133 -134]
ELFeB 17 = [O curandeiro de
Alcaria Queimada]
[p. 134]
399
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