UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE LITERATURA AS LENDA S DO SO BRENATUR AL D A REG IÃO DO ALG ARVE vol . I Maria Manuela Neves Casinha Nova RAMO DE DOUTORAMENTO EM ESTUDOS DE LITERATURA E DE CULTURA (LITERATURA ORAL E TRADICIONAL) 2012 UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE LITERATURA AS LENDA S DO SO BRENATUR AL D A REG IÃO DO ALG ARVE vol . I Tese orientada pelo Professor Doutor João David Pinto -Correia Maria Manuela Neves Casinha No va RAMO DE DOUTORAMENTO EM ESTUDOS DE LITERATURA E DE CULTURA (LITERATURA ORAL E TRADICIONAL) 2012 1 Dêem-me a vossa opinião, peço-vos, em breves palavras, mas, se possível, na linguagem dos homens. Porque, pobre filho da terra que sou, Não sou capaz de entender a linguagem dos deuses Que é a linguagem da razão intuitiva E. Kant 2 ÍNDICE NOTA PRÉVIA 6 RESUMO 8 RESUMÉ 9 PALAVRAS-CHAVE 10 MOTS-CLEFS 11 INTRODUÇÃO 12 I PARTE – ALGARVE E MISTICISMO 15 1.ALGARVE E MISTICISMO 16 1.1. O PROMONTÓRIO SACRO, AS FINISTERRAS E O RIO LETHES 19 2. LENDA, MITO E LITERATURA ORAL TRADICIONAL 23 2.1.LENDAS, “ENCANTAMENTOS” E APARIÇÕES 28 2.2. A DESIGNAÇÃO “LENDA MÍTICA” 32 3.A RECOLHA DO CORPUS ESTUDADO 34 3.1.APRESENTAÇÃO DO CORPUS 35 3.2. PROVENIÊNCIA DAS VERSÕES 37 3.2. 1.VERSÕES RECOLHIDAS 38 3.2.2. VERSÕES INÉDITAS 39 3.2.3. VERSÕES EDITADAS 40 4. UMA CARACTERÍSTICA PRINCIPAL DAS LENDAS MÍTICAS ALGARVIAS: A NATUREZA MÍTICA DOS AGENTES-PERSONAGENS 44 4.1. A MOURA ENCANTADA 48 4.1.1. PROBLEMÁTICA DA CLASSIFICAÇÃO DAS LENDAS DE MOURAS ENCANTADAS 57 4.1.2. ENCANTAMENTO / DESENCANTAMENTO 59 3 4.2. O LOBISOMEM 63 4.3. A SEREIA 70 4.4. A MORTE 81 4.5. OS “MEDOS” OU ALMAS PENADAS 84 4.6. AS BRUXAS OU FEITICEIRAS 92 4.7. O DIABO E AS FORÇAS DO MAL 100 4.8. “AS SANTAS CABEÇAS” 106 4.9. AS “GENS” OU “JENS” 109 4.10. A ZORRA BERRADEIRA 111 5. EXCURSO SOBRE PERSONAGENS SOBRENATURAIS RELIGIOSAS / CRISTÃS 114 5.1. CICLO DE JESUS CRISTO 118 5.2. CICLO DA VIRGEM MARIA 128 5.3. CICLO DOS “SANTOS” 136 II PARTE – CONTRIBUTO PARA A ANÁLISE E A INTERPRETAÇÃO DAS LENDAS SOBRENATURAIS ALGARVIAS 145 1. A ACÇÃO E OS AGENTES NARRATIVOS 146 1.1. O NARRADOR 147 1.1.1. A Presença do Narrador 150 1.1.2. A Ciência do Narrador 151 1.2. CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS DA ACÇÃO 152 1.3. AS PERSONAGENS 154 1.3.1. Características das Personagens 154 1.3.2. Funções das Personagens 163 1.3.3. As Relações entre as Personagens 169 4 2. 1.4. O TRATAMENTO DO TEMPO 177 1.4.1. A Localização no Tempo Histórico 177 1.4.2.O Tempo Físico – Localização e Caracterização 180 1.4.3.O Passar do Tempo 181 1.4.4.O Tempo Psicológico 199 1.4.5.Tempo da História / Tempo do Discurso 203 1.4.6.Supervivências ou “ecos” na Época da Recolha 210 1.5.O ESPAÇO 213 1.5.1. A Localização Espacial 214 1.5.2.A Caracterização do Espaço 221 1.5.3.O Espaço Social 225 1.5.4.O Espaço Psicológico 230 2. PRINCIPAIS MOTIVOS E RESPECTIVA INTERPRETAÇÃO 235 2.1. Os Quatro Elementos 236 2.2. Outros Motivos 270 2.3. As Artes Mágicas e os Desencantadores de Tesouros 355 CONCLUSÃO 362 BIBLIOGRAFIA 366 ANEXOS: NUMERAÇÃO DAS LENDAS 379 5 NOTA PRÉVIA S e j á foi com al gum a apr eensão q ue i ni ci ei o Mest rado Int e rdi sci pl i nar em Est udos P ort ugues es, na Uni versi dad e Abert a, com o di sse na “N o t a P révi a” dess a m i nha di ssert aç ão, “p oi s nada m el hor para per ce berm os quão pouco sabem os do que t ent ar aprende r um pou co m ai s”, não é possí v el descr eve r com o m e sent i ret i cent e em i ni ci ar o curso de Dout or a m ent o. P ara m i m , Dout or es t i nham si do os m e us P r ofessor es ao l ongo de t odo o p ercu rso ( i ni ci ado na Fa cul da de de Let ras e à qu a l vol t ei ) – Li ndl e y C i nt ra, Mari a de Lurdes B e l chi or, Mari a de Lu rdes Fl o r de Ol i vei ra, El sa Gonçal ves, Luí sa A z uaga, Al z i ra S ei xo, Fát i m a M orna, Manuel a B et t encourt , Leono r Bues cu (e out ros que não es queci , m as cuj os nom es não m e ocorrem com a m esm a preci são ) e, pos t eri orm ent e, J oão Davi d P i nt o -C orrei a, Mari a J osé F erro Tavar es, Hanna B a t t orëo (e out ros) – com o m e at revi a a t ent ar s equer al canç ar o t í t ul o dos Grandes Me st res? P ercebi , ent ret ant o, que o Dout oram e nt o é ap enas m ai s um degrau ac adém i co e que, t al com o “ o hábi t o não faz o m onge”, t am bém o Dout oram ent o não é senão m ai s um passo no cam i nho da aqui si ção de conhe ci m ent o e que, ape nas al i ado a out ras gr andes qual i dades, pod e co nferi r a m est ri a qu e eu reconh eço nas grandes fi gur as que me a com panhar am e q ue, fel i z m ent e, ai nda me acom panham – nunc a conse gui i m a gi nar -m e, sequer, a t raba l har com out ro ori ent ador que não fosse o m eu professor e ori ent ador de há j á doz e anos, o P ro fessor Dout or J oão Davi d P i nt o -C orrei a, cuj o apoi o não di spenso e d e quem m e consi de ro j á di scí pul a, a pesar d a di s t ânci a a que m e e ncont ro do Mest re. P el as raz ões de a bran gênci a e com pl em ent ari dade ent r e a Hi s t óri a, a Li t er at ura e a Li n guí st i ca, e pel a at r a cção p es soal pel a Li t er at ura Or al Tradi ci onal , j á por m i m evocadas ant eri orm ent e (t al vez , t am bém , por se t rat ar das “forç as” a que o P rofessor P i nt o - 6 C orrei a di z “que po dem os cham ar «m a r gi nal i z adas »” … 1), c ont i nuei a t rabal har o t em a da m i t ol ogi a popul ar, al ar gando -o a t odos os t i pos de apari çõ es r egi st ad as no Al garv e. P or t udo i st o, i ni ci ar est a di ssert aç ão foi um desafi o, p ro duz i l a, um praz er e, con cl uí -l a, um a fel i ci da de. Devo r efe ri r que, t e ndo com eç ado a esc rever est a t ese h á al guns anos , usei sem pre a ort ografi a do An t i go Acordo. Um a vez que ai nda nos encont ra m os num perí odo em que são acei t es, ge ral m ent e em al t ernat i va, as duas gr afi as, opt ei por não al t era r, c oncl ui ndo com o m esm o re gi st o. 1 João David Pinto -Correia, Repensar A Nossa Identidade Cultural, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2005, p. 3. 7 RESUMO Est e t rabal ho pret e nde faz er um l evant am ent o e um a anál i se cul t ural e l i t er ári a de t odas as l endas do sobrenat ur al ex i st ent es no Al ga rve, edi t ad as e i nédi t as. É const i t uí do por duas part es. A pri m ei ra pret end e desc r ever t odas as person a ge ns das l endas de a pari ções (e des apar i çõ es) no Al ga rve, d e ori gem m í t i cas ou rel i gi os a , report ando -nos, se m pre que pos s í vel , ao i ní ci o da sua t radi ç ão e, t am bém , à form a co m o faz em part e dos cost um es e/ ou ri t uai s dos h abi t ant es dest a re gi ão, poi s nem sem pre são os m esm os por t odo o paí s, com o sã o os c asos, por ex em pl o, da brux a e da f ei t i cei ra, ou m esm o da m oura e ncant ada. P or est e m ot i vo, é t am bém ap re sent ada um a pro post a de cl as s i fi caç ão das l e ndas de m ouras enc ant adas do Al ga rve, vi st o não poderem ser a grup a das nas cl assi fi c açõ es ex i st ent es, d e J osé Lei t e de Vascon cel l os e d e C onsi gl i eri P edros o. Apresent a m os , ai n da o corpus de l endas est ud ado, q ue é cons t i t uí do, m ai or i tari am ent e , po r l end as edi t adas po r vari adí ssi m os col ect ores – At aí de de Ol i vei ra, Fe rna nda Fr az ão, Gent i l Marques, J os é Lei t e de V asco ncel l os, Mar ga ri da Tengarri nh a , de ent r e out ros ; al gum as l end as i né di t as, recol hi das p or um nosso fam i l i ar que, ent ret ant o, as t i nh a passado a escri t o, m as não as pu bl i cou; e, fi nal m ent e, por dez l endas r ecol hi das po r nós em P ort i m ão, C asai s e Queren ça ( em bora a l gum as se report em a out ras povoa ções) . Na segund a part e, é anal i sada a est rut ura narr at i va das l endas, com base nas suas c at e gori as fund am ent ai s, bem com o a si m bol ogi a dos di versos m ot i vos present es, t ent and o i nt erpret á -l os. Em anex o, é apre s e nt ada a num e raç ão das l endas ci t ad as n est e t rabal ho, cuj os t ex t os, const i t ui nt es do corpus anal i sado, são apresent ados t am bé m em anex o, m as num segundo vol um e. 8 RÉSUMÉ C e t ravai l a l e b ut de recu ei l l i r et de fai r e une ana l ys e cul t urel l e et l i t t érai re d e t out es l es l é ge nd es du surn at urel e x i st ant es en Al garve, soi t déj à édi t ées, soi t enco r e i nédi t es. Il est const i t ué par deux part i es. La pr e m i ère essai e de d éc ri re t ous l es personna ge s des l é gend es conc ernant des appa ri t i ons (et des di s pari t i ons) en Al g arve, d ’ori gi ne m yt hi que ou rel i gi euse , en nous réfé rant , qu and c ’es t possi bl e, au d ébut de sa t radi t i on , a u ssi bi en q u ’ à l eur fa çon d e f ai re p art i e de s m œurs et / ou de s ri t e s des habi t ant s de cet t e r égi on, pui sque c el a ne se passe pas d e l a m êm e m ani ère d ans t out le pa ys, com m e en sont des ex em pl es l a sorci èr e et l e fét i cheur, ou m êm e l a m aure enc hant ée. P our cet t e r ai son, une proposi t i on de cl ass i fi cat i on des l é gend es de m aur es en cha nt ées de l ’Al ga rve est aussi présent é e, pui squ’ el l es ne pe uven t p as êt re group ées dans l es cl assi fi cat i ons ex i st ant es, de J osé Lei t e d e Vas conc el l os e t de C onsi gl i eri P edroso. Nous présent ons, encore, l e corpus de s l égendes ét udi é es, qui es t const i t ué pour l a pl upa rt pa r d es l é gend es édi t é e s par de pl us i eurs col l ect eur s – At aí d e de Ol i ve i ra, Fe rnanda Fr az ão, Gent i l M arques, J osé Lei t e de Vasconcel l os, Mar gari d a Ten gar ri nha , parm i d’aut res ; qual ques l égendes i nédi t es , recuei l l i es par un not re fam i l i er qui l es ava i t p assées à l ’éc ri t au fi l du t em ps, m a i s qui ne l es avai t j am ai s publ i ées; et , fi nal em e nt , dix l égendes re cuei l l i es par nous -m êm es à P ort i m ão, à C asai s et à Quer ença. Dans l a s econde pa rt i e, l a st ruct u re n a rrat i ve d es l é gend es est anal ys ée, basé e sur ses cat é gori es fond am ent al es, aussi bi e n que l a s ym bol o gi e des di ffér e nt s m ot i fs pr ésent s , en essa yan t de l es i nt erprét er . La numérotation des légendes citées dans ce travail est présentée en anexe, bien que les textes composant le corpus de légendes anal ysé, mais ceux -ci dans un second volume. 9 PALAVRAS-CHAVE Mi t o Lend a Narr at i va Tradi ção Al ga rve S i m bol ogi a 10 MOTS-CLEFS M yt he Lé gende Narr at i ve Tradi t i on Al ga rve S ym bol o gi e 11 INTRODUÇÃO C ri ança qu ando o H om em pi sou a Lua e adol esc ent e em 2 5 de Abri l de 1974, pert enço a um a gera ç ão cuj as pal avr as -c have são “m udança ”, “t r ansfo rm ação ” e “ evol uçã o”. J á não assi st i ao ap areci m ent o d a r ádi o, m as vi apa rec erem , nas vi das das pessoas com uns, a t el evi são, o ví deo, o com put ador, o t el em óvel , o C D e o DVD. Vi as bobi ne s evol uí rem para ca sset t es e es t as t ransform a rem -se, assi m com o os di scos em vi ni l , em C Ds e em DVDs. No m eu pri m ei ro com put ador, apenas bri ncav a c om j ogos em casset t es ; no segundo, bri ncava com di squet es e j á faz i a os m eus t rabal hos par a a es col a, ac resc ent ando -l hes depoi s os ac e nt os e as cedi l has; com o t ercei ro, t i nha acesso a est es c aract eres m em ori z ando “apen as” t rês t ecl as par a cada um del es; o quart o apresent ava já um “t ecl ado port uguês ” e er a exp ansí vel e compat í vel ; ao qui nt o j á pude “acopl ar” um modem e l i ga r -m e à Int ernet que, d ei t an do abai x o o Mi ni t el franc ês dur ant e a corri da , vi nha real i z ar o vel ho sonho de um gr a nde banco de d ados m undi al , a que qual quer pes soa poderi a t er a ce sso, em qual quer part e do m undo, a qual quer hora, e d e que ape nas se f al ava nos f i l m es de fi cção ci ent í fi ca. P assei a pri m ei ra i nfânci a num a al dei a onde ex i st i a um úni co t el efone, fi x o, part i cul ar , cuj o dono perm i t i a que out ras pessoas o us as sem em caso de ne cessi dade. N est a al dei a do Ba rl avent o al garvi o, no V erão , à “t a rdi nha”, d e poi s do j ant ar, as pessoas l evavam as c adei ras “da t abua” p ara a r ua, e l á part i l havam os seus probl em as, com ent a vam as cart as dos fam i l i ares em i grado s ou na gue rra, cont avam h i st óri as – al gum a p art i da que um hom em t i nha pre gado a fant ást i cas: um a m i go, m oura s vi a gens, encant ad as, n egó ci os, “m edos”, am or es, apari çõ es l obi som ens, al m as penadas… A se gunda i nfânci a, com t odo o p ri m ei r o ci cl o de escol ari d ade e m et ade do se gun do, foi passada em S . Tom é e P rí nci pe, onde 12 havi a ap enas du as t el evi sões, de p a rt i cul a res qu e, vi v endo na m ont anha, l on ge da ci dad e, capt av am i m a gens de em i ssões es panhol as de Fe rn ão do P ó e de An o Bom , e que, po r t odas as raz ões evi dent es , nã o eram i ncom odado s por ni nguém . P ara al ém de adqui ri r o ví ci o d a l ei t ura, pass ear e bri ncar com um a l i be r dade que i nvej o hoj e par a as m i nhas fi l has, fo r am ci nco anos de hi st óri as: caç a, pes ca, am ores fel i z es e i nf el i z es, em i grant es d e C ab o Verd e, t ornados, apa ri ções m i st eri osas, crenç as l ocai s… A hi st óri a da che gada à Lua, vi st a p or um grupo r est ri t o de pes s oas, uns m eses depoi s, no ci rcui t o i nt erno de t el evi são da t el e es col a, vei o j unt ar - se às out ras, t ão i ncrí vel com o al gum a s del as, rodeada de um a aur a de fant asi a que fa ri a i nvej a a qu al que r Guerra dos Mundos , i gua l m ent e verosí m i l e, ao m esm o t em po, t ão at ordoant e com o um a m ordedura d e um a cobra am a rel a que só l arga a presa qu ando ouve t ocar o si no de um a i grej a… A ci dade, a adol esc ê nci a, o S ot avent o al ga rvi o , o 25 d e Ab ril , o l i ceu, a pol í t i ca – a m udança dent ro d e m i m , fora de m i m , à m i nha vol t a. Out ros l ugar es, out ros t em pos, out ras persona gen s, out ras hi s t óri as. Mas, paral el am ent e, as féri as na al dei a. O ví ci o da l ei t ura conduz i u -m e à for m ação em Li t erat u r a. O i nt eresse pel a Li t er at ura Oral Tr adi ci o nal surgi u no m om ent o em que t om ei conhe ci m ent o da ex i st ênci a dest a ár ea e t ev e or i gem n o perm anent e cont act o com a t radi ç ão or al . A m udança const a nt e cri ou em m i m , t al vez , uma cert a nost al gi a m as, cert am ent e, a con sci ênci a da i m port ânci a de conserva r o pat ri m óni o cul t ural . O praz er que s i nt o ao ex pl orar e st as hi st óri as l evou -m e a opt ar pel as l endas de m ouras encant adas com o m at eri al pa ra a m i nha di ssert ação do M es t rado Int e rdi sci pl i nar em Est udos P ort ugueses. P el as m esm as raz ões de abran gê nci a e com pl em en t ari dade opt o, a go ra, por cont i nuar esse est udo, dando -l he out r a am pl i t ude, en gl ob ando t odas as l endas m í t i cas do Al garv e, i st o é, as l en das cuj as pers ona gens são, pa ra al ém dos al garvi os, t odos os seres i rreai s que povoam o i m agi n á ri o col ect i vo e p e rt encem , por i sso, a um a m i t ol ogi a popul ar . S ão t ex t os que nos dão cont a d a “or gani z ação 13 i deol ógi c a” e da “ est rut uraç ão do i m agi n ári o, quer o c ol ect i vo part i cul ar, p rópri o da com uni dade a q ue as ob ras di z em respei t o, quer o col ect i vo ge ral , uni versal , si t uá vel naquel a z ona q ue Ed ga r M ori n desi gnou por «a nt r opo cosm ol ógi c a ». ” 2 P enso que a ex equibi l i dade dest e t raba l ho passa por di vi di -l o em duas p art es. A pri m ei ra, de c aráct er m ai s et no gr áfi c o e ant ropol ógi co, est ab el ece a r el aç ão ex i st ent e ent re as t radi ç ões e as vári as persona gens sobrenat urai s, sobr e t udo as de caráct er m í t i co , em boea t am bém as de car áct e r rel i gi os o, t ent ando, quando possí vel , conhec er as suas ori gens. Assi m , av ançar em os, nest a part e do pres ent e est udo, co m um a propost a d e cl assi fi ca ção d as l endas de m ouras en cant adas do Al garv e que, com o v er em os, ne m sem pre correspond em às su as con gén eres do r e st o do paí s. Escl ar e ce, ai nd a, a t erm i nol ogi a usa da – “l endas”, “ epi sódi os l endári os” e “l endas m í t i cas”. A pres ent a m os, ai nda, o corp us de l endas est ud ado , qu e com preend e a r eco l ha oral de al gum as hi s t óri as, assi m com o a apresent ação de out ras, j á escri t as, m a s nunca publ i cadas , e ai nda t odas as l endas edi t adas que en cont rá m os na nossa pesq ui sa , que correspond em à m ai or part e do corpus . A segund a part e , de car áct er di dá ct i co -l i t erári o, pr et en de cont ri b ui r para a an ál i se de t odas a s l endas apresent a das – a es t rut ura n arr at i va , com o t am b ém o cont eúdo, a ex pressão, a s i m bol ogi a d os m ot i vos e a sua i nt erp ret ação . Para facilitar a consulta dos textos, proponho uma numeração das lendas, que apresento como pri meiro anexo, e que será tida em conta ao longo da dissertação. Assim, não serão citadas as páginas em que se encontram, mas a referida numeração, uma vez que, num segundo volume, apresento todos os textos das lendas que constituem o corpus de lendas analisado. 2 Idem, p. 5. 14 I P A R T E ALGARVE E MISTICISMO 15 1. ALGARVE E MISTICISMO São as potências do invisível, o mito (“o nada que é tudo”), a lenda , a chama que desce a iluminar o herói, são essas potências que, fecundando a realidade tornam a vida digna de ser vivida, ou, melhor, transfor ma m a existência , mero ve getar, e m vida, quer dizer, promessa do que não I mpossível, gra ndeza de alma insatisfe ita. há, perseguição do 3 P or t odo o pl anet a ex i st em pai sagens e horas do di a l i ndas , de cort ar a respi r aç ão, i nspi radoras que r de poet as que r de m í st i cos, m as o que é i negável des envol vi m ent o de habi t ant es, i sso para um é que c ert o há l ocai s m i st i ci sm o concorr endo m ai s por propí ci os pa rt e d et erm i nados ao dos seus fa ct or es, nem s em pre os m esm os e nem sem pre pel os m esm os m ot i vos. É comum a quase todas as mitologias a existê ncia de certos locais da Terra integrados numa geogrefia sagrada, lugares considerados «umbigo», ou «centro » do mundo, onde, através deles, se pode estabelecer a ligaçã o entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deuses. Já a Bíblia, resultado de muitas tradições anteriores, ta mbé m me ncio na o loca l e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu, e m sonhos, a e scada que ligava a Terra ao Céu. Se 4 ex cl ui rm os os c onheci dos por “C hacr as da T erra ”, es pal hados por t odo o m undo, de S t onehenge a J erusal ém , passando por F á t i m a, Lourde s, S ant i ago d e C om po st el a, R om a , J erusal ém e A ye rs R ock, par a ci t ar apenas os m ai s c onheci dos, que são especi ai s para t oda a hum ani dade, P o rt ugal i nt ei ro pa re ce est a r voc aci onado 3 Jacinto do Prado Coelho, “Fernando Pessoa Autor da Mensagem”, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa , Lisboa, Ed. Verbo, 4ª ed., 1973. 4 Gabriela Morais, A Genética e a Teoria da Continuidade Paleolítica aplicadas à Lenda da Fundação de Portugal, Irlanda e Escócia , Lisboa, Apenas Livros Lda., 2008, p. 33. 16 para est a rel a ção co m o sobrenat ural , h avendo, ai nda assi m , al guns l ocai s m ai s mági cos do que out ros. O sagrado pertence como uma propriedade estável ou efé mera a certas coisas (os instr ume ntos do c ulto), a certos seres (o rei, o padre), a certos espaços (o templo, a igreja, os lugares régios), a certos te mpos (o domingo, o dia de Páscoa, o Natal, etc.). Não há nada que não possa tornar -se sua sede e revestir assim aos olhos do indivíduo ou da colectividade um prest ígio sem igual. Nada há, igualmente, que não possa ver -se desapossado dele. É uma qualidade que as coisas não possuem por si mesma s: uma gr aça misteriosa ve m -na acrescentar a ela s. «A ave que voa, explicava a Miss Fletcher um índio dakota, pára a fim de fazer o seu ninho. O homem que caminha pára onde lhe agrada. O mesmo sucede com a divindade: o Sol é um lugar onde ela parou, as árvores e os animais são outros tantos lugare s. É por isso que se lhes reza, pois atinge -se o sítio onde o sagrado 5 estaciona e obtém-se assim dele a assistência e bênção.» P ara a prop ensão mí st i ca do Al garve concor rem os se gu i nt es fact or es: a sua l ocal i z ação geo grá fi ca – “onde a t er ra a cab a e o m ar com eça ”: a prox i m i dade , si m ul t aneam ent e, de Áfr i ca, do M edi t errân eo e do At l ânt i co , l ocal i z ação pri vi l egi ada, don de part i a a m ai or part e das c aravel as; ai nda a ní vel geo gráfi co, a di versi dade do rel evo e, conse quent em ent e, da ve get ação e da pai sa gem – a pres enç a const ant e do m ar e da serr a, em t oda a re gi ã o; a sua Hi s t óri a (est rei t am e nt e l i gada à si t uaçã o geo gráfi c a) – de s al i ent ar o fact o de t e r si do a pri m ei ra part e do a ct ual paí s a ser con qui st ada pel os rom anos e a úl t i m a a ser abandonada pel o s m ouros: cons equênci as ao ní vel da l í ngua , dos c ost um es e, em part i cul ar, da rel i gi osi dad e. A paisagem sentimentos é, humanos, assim, um me io sentime ntos que expressivo, são que evoca consequência da projecção huma na no espaço natural. As forma s da paisa ge m impõe m-se aos se ntido s, criando e fo me nta ndo sentimentos que 5 Roger Callois, O Homem e o Sagrado, Lisboa, edições 70, 1988, p. 20. 17 une m a s pessoas aos se us e s paços físicos. Este s ga nha m, por isso, uma “alma” q ue actua sobre os se ntimentos e sobre as ideia s dos autóctones, que acaba m por revelar na sua própria alma as qualidades da natureza que os rodeia. 6 Apesar d o qu e Lei t e d e Vascon cel l os af i rm a, com verdad e , que “a uni fo rm i dade da pai sa gem do Al ent ej o e d as c ondi ções geol ó gi c as f az que no S ul haj a m en os l endas qu e no Nort e e C ent ro”, porque “o t erreno é const ant e m ent e cort ado de ri bei ros ou ri os que i nspi ram po esi a, ou por s eu m ar ul ho ou por sua corr ent e, ou por suas pedr as, arei as e pei x es” 7, o fact o é que a rel at i va m onot oni a da pai sagem al ent ej ana dá l u ga r às ser ras (do C a l dei rão e de Monchi que ), ao Ba rroc al e às p rai as, fr equent em ent e cort adas pel a foz de um ri o, al t ernando -s e a f al ési a e as dun as, ri b ei r os ou ri os e ri as (Form os a e de Al vor), a ar gi l a e a a rei a, o pi nhei ro e o cardo - rol ador, o eu cal i pt o e o na rci so - das -ar ei as. E est a v ari edad e ex ci t a a i m agi naçã o e, em épocas de f ormação de personal i dade col ect i va , m ai s vul nerávei s porque ai n da de const ru ção do própri o paí s , de defi ni ção d e front ei r as, em que o m edo dos i ni m i gos vári os e dos confront os da s bat al has dá l uga r à eufori a das vi t óri as ou ao pâni co das de rrot a s, não é di fí ci l perceb er um a rel i gi osi dade i m pregn ada de va l ores fl ut uant es, onde há l u ga r pa ra ser es fant ást i cos, i nvoca ç ões, esconj uros, vi s ões, sej am apr esent ados pel o cl ero, sej am amál gama de pel o s sent i dos, cre nças , porque m i st urando -se, per m eável a resul t and o t oda e num a qual quer m ani fest aç ão do sobrenat ur al , di vi no ou não, os própri o s concei t os s obrepondo -se. Esta ligação com os lugares é mantida através de tradições, cultos e lendas, per ma necendo ainda vivos imensos ve stígios de uma inte gração arcaica do ho me m no co smo s, o que co nstitui um 6 Alexandre Parafita, A Mitologia dos Mouros, Canelas, Edições Gailivro, col. Mitologia e Memória, 2006, p.37. 7 José Leite de Vasconcellos, Signum Salomonis. A figa. A barba em Portugal. Estudos de etnografia comparativa , Lisboa, Dom Quixote, 1969, p.741. 18 tesouro inestimável num mundo em fase acele rada de dessacralização […]. T odavia, o home m é um ser religioso por natureza ( mesmo os siste mas cha mados ate us tê m os seus ídolos e as suas mitologias) […] 8 Assi m , al t ernam t am bém rel at os de apari ções de sant os e de m ouras encant adas, de al m as penada s e da Vi rgem Mari a, de i ns pi rações di vi nas e di aból i cas, do própri o J esus C ri st o e de l obi som ens, assi m com o ant es e depoi s de b at al has, com ex érci t os em cam po abert o e com hora m arcad a, ou aquando de esca ram uças , at aques a cast el os, de surpres a, com f ugas a press adas e pri ncesas del i cadas l i t eral m en t e cai ndo nas m ãos de gu err ei ros fe ros e brut os. 1.1. O PROMONTÓRIO SACRO, AS FINISTERRAS E O RIO LETHES T alvez a mais importante finisterra portugue sa, o cabo de Sagres constitui um dos altos lugares de uma possível mitologia portuguesa. […] Efectivamente, o promo ntório encontra -se saturado de refer ências históricas, mítica s e si mbólicas, e é já referido nas fo ntes da Antiguidade como ca bo sagrado . […] É, de facto, invariavelmente descrito como um Promontorium Sacrum, lugar de cultos antigos a Saturno ( sacra Saturni) ou a Hércules, e marcado ainda por ritos de interdição nocturna, e por sua vez associado a vestígios pré -históricos nas imediações ( menire s). 9 P arece, poi s, que o mi st i ci smo nas t erra s al ga rvi a s t em ori gens m ai s rem ot as do que possa pare cer à pri m ei ra vi st a, poi s P aul o P erei ra cont i nua, ci t ando Est rab ão, P l í ni o (que pre ci sava “ o al canc e 8 Paulo Alexandre Loução, PORTUGAL terra de MISTÉRIOS , Lisboa, Esquilo edições multimédia, 5ª ed., 2004, p. 20. 9 Paulo Pereira, ENIGMAS – LUGARES MÁGICOS DE PORTUGAL – Cabos do Mundo e Finisterras, Lisboa, ed. Círculo de Leitores, 2005, p. 142. 19 do aro do cabo S a gr ado, i nt e gr ando La gos e P ort i m ão”) e out ros aut ores ant i gos, f al ando de cul t os de Hércul es, S at urno (j á ci t ados) e Ba al Ham m on (d e us fení ci o). Talvez porque, na 10 Península Ibérica, seja a própria geografia que está e m concordância co m o mito do eterno retorno, vida – morte, fim – princípio; talvez porque seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes, com a entrada para o Alé m e a saída para o renascime nto. T erra dos Extre mos, o extre mo sudoeste, de onde os ho me ns desejavam avistar a terra da sua orige m, cuja le mbr ança conser vava m nos confins da me mória – no dizer de Fernanda Frazão – e o extremo noroeste, de onde avista va m a terra para onde queria m ir. O mesmo ele mento mítico -religioso está presente na tradição do promontório Sacro, de onde se partiu em busca das Ilhas Afortunadas, e está presente e m Brigância (ta mbé m antigo no me da Corunha), ou Breganza (no me referido pelo Lebor Gabala ), onde, d a T orre de Hércules, Ith, Breogan ou o próprio Gatelo, numa noite de luar, vislumbrou a Irlanda, espécie de ilha pro metida e paradisíaca, co mo diz a Lenda da Fundação 11 . 12 A verdade é que as Finisterras, locais onde a terra acaba e crenças, o mar […], começa aparentemente inspiraram contraditórias: sempre as de certas fim de mundo, mas também as do mundo do Além, o Sid, ou os Campos Elísios dos Gregos. Ou das ilhas, como Avalon, ou do medieval S. Brandão, tema igualmente glosado aqui na península; portugueses ou e empreendimento as ilhas espanhóis, na época Afortunadas, procuradas os primeiros a já recente. acometer Tudo, claro por tal está, envolto em nevoeiro, como envolto em nevoeiro viria o rei Artur ou o D. Sebastião. 13 10 V. Paulo Pereira, ob. cit., pp. 143 a 145. Alusão às várias versões da “Lenda da Fundação de Portugal, Irlanda e Escócia”, editadas pela mesma autora e citadas na presente obra de Gabriela Morais. 12 Gabriela Morais, ob. cit., pp. 35 e 36. 13 Gabriela Morais, ob. cit., p. 43. 11 20 Parece-nos impensável dissociar estes três elementos, pois, se é óbvia a ligação do Cabo de S. Vicente a uma Finisterra, não se pode, no entanto, como é lógico, separá-lo geograficamente do conjunto da Península Ibérica, onde as tradições também estão ligadas: Múltiplos evocativos dessa ideia [de que há locais que estabelecem a ligação entre o mundo dos vivos e o mundo dos morto s] são os locais co m no mes se melhantes, conte ndo os mesmos significados. Lethes, por exe mplo, foi ta mbé m no me de rio no Algar ve (Ant. Rei, «O Gharb al -Andalus e m dois geógra fos árabes do século VII/XIII: Yâqût al -Hamâwî e Ibn Sa’îd al Maghribî, p.21, in Medievalista on line, Nº1, 2005 – Instituto de Estudos Medievais / FCHS – UNL), que passou a r io de Santa Maria e é actualmente o rio Seco das múltiplas lendas de mouras encantadas algarvias, e Lethe será raiz do nome do rio Guadalete, e m E spanha. E mbora, neste caso, não seja segura esta etimologia, a verdade é que ta mb é m este rio é citado como loc al de outro mito ibérico correlacionado: L. Mourinho de Azevedo ( op. cit. [ 14] ) c o n t a q u e , n o t o p o s u l d a P e n í n s u l a , p e l o r i o G u a d a l e t e , entrava m a s almas q ue ia m para o Alé m, e nquanto no topo norte, pelo rio Lima, regressa va m a s almas que rena scia m. 15 J o sé Lei t e de Vas c oncel l os , que se desl ocou pessoal m ent e ao C abo , em Mar ço de 1894, no sent i do de per cebe r que t r ad i ções l á corri am ai nda no s eu t em po, escl ar ec e o se gui nt e, sobr e o que, s upost am ent e, l á se passava ou t i nha pas sado m ui t o t em po at rás: […] O Promontorio Vicente-Sagres, era nos Occidental te mpos dos Cynetes, protohistoricos hoje S. duplame nte sagrado: ahi corriam lendas populares, e se celebravam certas cerimonia s ritualisticas; ahi ha via santuários p henic ios. Aquellas lendas e cerimo nias é na tural suppor que fosse m indi gena s; que m sabe mesmo se já dataria m dos te mpos prehistoricos? Os cultos phenicios são certa me nte mais rece ntes q ue e llas. Ao passo que 14 L. Mourinho de Azevedo, Fundação, Antiguidades e Grandezas de Lisboa, ed. 1652, apud Gabriela Morais, ob. cit., p.33. 15 Gabriela Morais, ob. cit., pp. 33 e 34. 21 os santuários de Héracles e Kronos se relacionvam com as grandes navegações do povo que os erigiu, as lendas e cerimonia s pertencia m provavelme nte ao patrimonio religioso dos humildes pescadores da costa. Á dualidade dos santuários ( Héracles e Kronos) corres- pondem a gora dois nomes e m que do mesmo modo a religião manifesta o seu cunho: S. Vicente e Sagres (= sacris). E pois provavel que se o santuario de Saturno ficava ao oriente , em Sagres, o de Héracles ficasse no extre mo oposto, onde ulterior me nte se e stab eleceu o c ulto de S.Vicente propria mente dito, pois a noticia que Estrabão dá, de que l á não havia agua, só a essa extre midade conve m. 16 16 José Leite de Vasconcellos, RELIGIÕES DA LUSITÂNIA na parte que principalmente se refere a Portugal, vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1913 (reimpressão fac-similada da 1ª ed., Vila da Maia, 1981), p. 214. 22 2. LENDA, MITO E LITERATURA ORAL TRADICIONAL Mística vem do grego: do adjectivo mystikos, ê, on (μυστικός, ή, όν) que, por sua vez, deriva do verbo myeô (μυέω) que significa, na voz activa, iniciar, instruir (nos mistérios) e, na voz passiva, ser iniciado, ser instruído (nos mistérios). À raiz, místico e místic a dize m re speito aos “mistérios” e aos “mistas” (iniciados). Designa, portanto, a expressão daquilo que não consente expressão, do oculto, do silencioso, do inefável. 17 A rel a ção ent r e l e nda e mi t o j á foi por dem ai s di scu t i da por vari adí ssi m os aut or es, fi cando sem pre em abert o a qu est ã o de qua l nas ceu pri m ei ro. O conceito de Mito é, desde os gregos, um conceito alta me nte a mbíguo. O seu significado oscila e ntre os e xtre mo s da sobrevalorização e do desprezo. Por um lado ele é visto como profunda expressão da verdade e da realidade da História; p or outro lado, como oculta me nto e de for mação de verdades e de v a l o r e s r e l i g i o s o s s u p e r i o r e s . 18 O P adre Manuel Ant unes adopt a, na sua Sebent a da C ul t ura C l ás si ca (1970 ) , a “l i nha de sol ução” do “agrupam ent o da m at éri a do fenóm eno m í t i co” apres ent ada por G . van R i et , em “M yt he et Véri t é” 19, “em bor a l i vrem ent e”. Nós ad o p t arem os as duas “t e ori as” que nos par ece m el hor i rem ao encont r o dos t ex t os encont rados, a “t eori a al e góri ca ” e a “t eori a si m ból i ca ” : O mito é uma alegoria . […] A alegoria traduz uma ideia sob a for ma de uma ima ge m . […] A teoria alegó rica, cuja essência reside no desnível entre a expressão patente e a verdade latente, 17 Padre Manuel Antunes, Obra Completa , Lisboa, ed. Sebenta, Tomo I, Vol.II-Cultura Clássica, Parte I, ed. crítica, 1970, p. 85. 18 Idem, p. 62. 19 Idem, p. 64 (cf. Problèmes d’ Épistémologie , Nauwelaerts, Paris, 1960, pp. 345-422.). 23 domina grande parte d o pensa mento da Antiguidade clá ssica e, nas épocas posteriores, tenderá a impor -se na quelas que poderão ser designadas de “ép ocas meta físicas”. U ma for ma alegórica especifica -se pelo seu objecto. […] Está [a teoria simbólica] próxima da teoria alegórica. T ão próxima que, por vezes, é difícil distingui -las. O mito é um símbolo . […] Símbolo é pois sinal, isto é, uma realidade que, conhecida, le va ao co nhecimento de outra. Símbolo distingue -se de alegoria por ser, ta mbé m, à raiz, um sina l natural, ao passo que alegoria é, só, sinal artificial. Sinal natural, o símbolo é a reunião de significa nte e significado, d e maneira indissolúvel e insubstituível, num objecto concreto, no e através do qual traduz uma realidade. Por isso, enqua nto a alegoria, mais do que descobrir , i mpõe um sentido, o símbolo, mais do que impor, descobre um sentido. 20 Mas, dent ro dest a “t eori a si m ból i ca”, ai nda encont r am os um serve : é o “si m bol i sm o t i po de si m boli smo que t am bém nos ps i col ogi st a” d e J ung , qu e o P adr e M anuel Ant unes t ão bem nos ex pl i ca: “T oda a concepção que explica a expressão simbólica co mo uma a nalogia ou descrição condensad a de uma coisa conhecida é se miótica . U ma conce pção que explica a expressão simbólica como a melhor formulação de uma coisa relativamente desconhecida, que não é possível apresentar ne m de modo mais claro ne m de modo mais significativo é simbólica . T oda a concepção que circunlocução explica a intencionada expressão ou simbólica transposição de como uma uma coisa conhecida é alegórica” (Psichologische Typen , p. 675). T emos portanto que, para Jung, símbolo se opõe a signo, por um lado, a alegoria, por outro. E opõe-se, porque o símbolo, parente próximo do sonho e d a imago , é extre ma me nte co mp lexo. Essa comple xidade deriva de dois ele me ntos principais: da relação polivalente e ambígua do significante ao significado e, sobretudo, da realidade psíquica profunda d e que o símbolo é expressão. 20 21 21 Idem, pp. 64 a 69. Idem, p.70. 24 O que nos rem et e, i m edi at am ent e, par a o caráct er uni versal do m i t o, em bora sem pr e revest i do de aspec t os di ferent es: As histórias de carácter mitológico são, ou parecem ser, arbitrárias, se m significado, absurdas, mas ap es ar de tudo dir -seia que reaparecem um pouco por toda a parte. Uma criação “fantasiosa” da mente num deter minado lugar seria obrigatoriame nte única – não se esperaria e ncontrar a me sma criação num lugar co mpleta mente diferente. 22 Mas o “t e ci do” qu e resul t a d a l i gaç ão dest es “r et al hos” , n um a det erm i nada re gi ão, t al com o o resul t a nt e em t odas as r e gi ões, est á l i gado à Hi st óri a do Hom em e não pode t er um a l ei t ur a i nd i vi dual , ai nda que o seu est udo o sej a. […] é impossível co mpreender o mito co mo uma sequê nc ia contínua. Esta é a raz ão por que deve mos e star consc iente s de que se te ntar mo s ler o mito da mesma ma ne ira que le mo s uma novela ou um artigo de jornal, ou seja linha por linha, da esquerda para a direita, não poderemos che ga r a entender o mito, porque te mos de o apreender co mo uma totalidade e descobrir que o verdadeiro significado básico do mito não está ligado à sequênc ia de acontecimentos, ma s antes, se assim se pode dizer, a grupos de acontecime ntos, ainda que tais acontecime ntos ocorram e m mo me ntos difere ntes da História. Portanto, te mos de ler o mito mais ou me nos c omo lería mos uma par titura musical […] T emos de perceber que cada página é uma totalidade. E só considerando o mito como se fosse uma p artitura orquestral, escrita frase por frase, é que o podemos entender co mo uma totalidade, e extrair o seu significado. 23 E Lévi -S t rauss cont i nua a su a com pa ra ção d a m i t ol ogi a co m a m ús i ca e com a l i ngua gem , de m odo a ex pl i car m el hor co m o deve s er fei t a a sua l ei t ur a: 22 Claude Lévi-Strauss, Mito e Significado, Lisboa, edições 70, col. Perspectivas do Homem, 1978, p. 23. 23 Idem, pp. 67 e 68. 25 […] na mitologia não há fo ne ma s; os ele mentos básicos são as palavras. Assim, se se to mar a linguage m c omo um paradigma, é constituído por, e m p rimei ro lugar, fone mas; e m segundo lu gar, palavras; em terceiro lugar, frases. […] No mito há um equivalente às palavras, um equivalente às fras es, mas não há equivale nte para os fone ma s. […] enqua nto a mitologia sublinha o aspecto do sentido, o aspecto do significado, que també m está profundamente presente na linguagem. 24 Os t i pos de t ex t os que const i t uem o obj ect o do nosso estudo i ncl uem -se no conj u nt o de prát i cas l i nguí st i co -di scursi vas “ac ei t es e t ransm i t i das ao l on go dos t em pos, pat r i m óni o cul t ural , col ect i vo e anóni m o, que cham a rí am os l i t erat ura oral e t radi ci onal ”. 25 […] se a transmissão mítica s e configura e m lenda, ta mbé m a realidade – ou a tradição literária a que chama mo s “realista” – pode inserir-se “literaturiza”. em estruturas míticas, graças às quais se 26 Ora, com o Gabri el J aner Mani l a di z , “as coi sas que não som os capaz es de nom ear são com o se não exi st i ssem ”, e, i ncl usivam ent e, “por m ei o das p al av ras, at revem o -nos a i m agi nar out ros m u ndos”, e, “at é os nom ea rm os, não sabí am os que ex i st i am ”. Oralidade convivem nas e escrita sociedades são duas realidades modernas e que em contínua 27 se excluem, inter -relação. mas que […] A literatura oral é, e m pr imeiros lugar, um veíc ulo de e moções imediatas, aberta a uma multiplic idade de matize s que se per fila m ao ritmo de uma voz. No princípio era a palavra. E entender aquelas emoções é dar hospitalidade àquela 24 Idem, p. 75. João David Pinto-Correia, in Revista Internacional da Língua Portuguesa, Nº 9, Julho de 1993, p.63. 26 José Jesus de Bustos Tovar, “Presentación”, in La légende – Anthropologie, Histoire, Littérature (Actes du Colloque tenu à la Casa de Velázquez, Madrid, Casa de Velázquez/Universidad Complutense, 1989, p.15 (tradução nossa). 27 Gabriel Janer Manila, Literatura Oral e Ecologia do Imaginário , Lisboa, Apenas Livros Lda., 2007, p. 19. 25 26 voz. A hospitalidade que acolhe balbuciante, que vem do outro. a palavra impre vista, ja mais ouvida, 28 Mari a Te resa M ei rel es part i l ha um a opi n i ão sem el hant e: E m ter mo s tradicionais, conto que se ouve e não se repete é conto que morre, conto que fica para trás, esquecido. A repetição e a recordação são antídotos do esquecime nto. Repetimos e recordamo s para não esquecer. Repetir significa tornar presente, actualizar, le mbrar. 29 Nem t odos os t ex tos de t ransm i ssão oral são al vo do nosso i nt eresse nest e t rab al ho. C onvém di st ingui r a l enda do c ont o , que t am bém ex i st e na nossa re gi ão, com o é nat ural , e t am bé m , m ui t as vez es, cont endo e l em ent os do dom í ni o do m aravi l hos o e do fant ást i co. [ … ] e s t a s n a r r a t i v a s o u «r u m o r e s » s ã o , a f i n a l , r e l a t o s d e aparições sobrenaturais e têm uma religiosida de, uma sacralidade que não se encontra no conto, eminentemente profano. Para além disso, ao contrário do conto, todas elas são localizadas ou, melhor dito, referentes a um sítio específico da terra das gentes que as conta m, q uer seja um poço, uma gr uta, um penh asco ou uma fonte. 30 P el as m esm as raz ões, orações , romances , f ábul as , anedotas e pr agas , faz endo em bora part e do p at ri m óni o oral al ga rvi o , não são obj ect o da nossa an ál i se. 28 Idem, p. 9. Maria Teresa Meireles, Quem isto ouvir e contar, em pedra se há -de tornar – Sobre o conto e o reconto , Lisboa, Apenas Livros Lda., 2ª ed., 2005, p. 16. 30 Fernanda Frazão e Gabriela Morais, Portugal, Mundo dos Mortos e das Mouras Encantadas, vol. I, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2 009, p. 25. 29 27 2 .1 . LENDAS, ENCANTAMENTOS E APARIÇÕES S i nóni m o de apareci ment o , a ct o ou ef ei t o d e apar ec er , a pal avra apari ção p ode si gni fi c ar ori g em, com eço , em bora surj a quas e sem pr e com o sent i do , t am bém frequent e, de “m ani fest aç ão s úbi t a de vi são; f ant asm a”. 31 O Di ci o nári o Houai ss ap re sent a a s egui nt e d efi ni ção: “manife stação, aparecime nto súbit o e sobrenatural de um ser; espectro, fantasma . […] aparecimento repentino e de carácter divino de figura bíblica, esp. de santo ou do próprio Cristo, ou da Virgem Maria ou de Deus. […] por ext.art.plást. a representação destas aparições, esp. as que dizem respeito a Cristo ressuscitado […]” 32 C om o j á ant eri orm ent e di ssem os nout ro t rabal ho, a di st i nção fei t a por At aí de de Ol i vei ra , ai nda qu e com al gum a di fi cul dade, cons i dera l endas t odas as narr at i vas que, segundo ap urám os, apresent am um a hi st óri a que com e ça o u acab a com o enc a nt am ent o ou o desenca nt am en t o da persona gem m í t i ca . Encant ament os cha m a aquel e aut or à ocorrên ci a de fenó m enos m ai s ou m enos po nt uai s, epi sódi cos, que se aprox i m am m ai s de apar i ções de enca nt ados , sej am el es mouras ou mourinhos , ou m es m o cobras ou o ut ros ani m ai s, que a t radi çã o at ri buí a a “m ouras encant ad as sob a form a de di versos ani m ai s” 33, narrat i vas es sa s em q u e, pel a sua nat urez a, t ant o o encant am ent o com o o des encant am ent o est ão ausent es. 31 José Pedro Machado, in Dicionárioda Língua Portuguesa, vol. I, Porto, Ed. Livraria Figueirinhas, 1989, p. 222. 32 AA.VV., Dicionário Houaiss, tomo I, p. 321. 33 Ataíde Oliveira, As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve, Loulé, Edição “Notícias de Loulé”, 2ª reedição, 1996, pp. 43 e 44. 28 Fern anda Fraz ão e Gabri el a Mor ai s faz em u ma di st inçã o s em el hant e: A s u a o r a l i d a d e [ d a s “ l e n d a s d e t r a d i ç ã o p o p u l a r ” 34] é visível, ainda nos nossos dias, nas recolhas que se faze m, e o s seus contadores a fir ma m -na s co mo histórias transmitidas pelos seus próprios avós e avós dos seus avós. 35 Por tudo isso têm um carácter fragme ntário, apesar de muitas vez es «a apresentação escrita de uma lenda costuma[r] estruturá -las, dar-lhes um fio e contribui[r] para dar a aparência de que as lendas são discursos completo s ». 36 Na maioria das vezes, che ga m a ter a for ma do que podemos c ha mar «r umores»: diz-se que alé m, naquela gruta… naquela rocha… naquela fonte… há um tesouro… está uma moura encantada… apareceu a Senhora… etc. Ou, ainda, de uma possível historieta – por certo, já perdida – resta apenas o nome d o l u g a r , [ … ] 37 Est as i nvest i gador as ex pl i cam a ori gem dos “rum ores”: […] Esse poder de ima ginar e de criar saberes [por parte do ho me m primitivo ao observar a natureza] ma nté m -se nesta tradição oral, popular, fragme ntada pelo desgaste do te mpo e à qual, fazendo a correspondência com a arqueologia, gostamos de cha mar «cacos». Cacos de História e cacos de Mito. E se, de acordo com a s ciê ncias co gnitivas, o mito foi um factor essencial para a sobrevivência do Homo sapiens, estes «c acos» não são só histórias d essa sobrevivênc ia, co mo são, 34 “Ora as lendas consideradas de tradição popular destacam -se, em primeiro lugar, pelo facto de serem de criação oral, colectiva – anónimas, portanto –, e de serem sempre localizadas. E, sobretudo, por reflectirem um mergulho num tempo perdido e muito antig o.” – Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 6. 35 Cfr. Oliveira, Francisvo Xavier d’ Ataíde de, As Mouras Encantadas e os Encantamentos no Algarve, Loulé, Notícias de Loulé, 1994, apud Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 51. 36 Honório M. Velasco, «Le yendas e vinculaciones », in La Leyenda. Antropologia, Historia, Literatura. Actas del coloquio celebrado en la Casa de Velázquez. La légende. Anthropologie. Histoire, Littérature. Actes du coloque tenu à la Casa de Velázquez. 10/11 -XI-1986. Madrid, Casa de Velázquez / Universidade Complutense, 1989, p. 124, apud Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 51. 37 Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 7. 29 ta mbé m, histórias da sobrevivê ncia do próprio mito que lhe[ s] está subjacente. 38 E propõem m esm o um a di vi são: […] talvez a maneira adequada de dividir o lendário seja, por um lado, as histórias de base e, por outro, as hist órias reconstruídas, ou reco nvertidas. A história de base será, assim, aquela que, nascida do povo anónimo, bem distante da alfabetização e do tempo histórico da hierarquização, contém, de modo mais visíve l, o núcleo primordial, mític o -religioso, a for ma de conhecimento próprio das sociedades mais antiga s. Glosado, imitado, decalcado, este núcleo – já racionalizado – acaba por servir de modelo aos eruditos medievais, que o transmitem meta mor foseado, graça s ta mbé m à s novas práticas mor fológicas e lexicais, inerentes à escrita. Tornam-se, então, «histórias reconvertidas », c uja sacralidade e religiosidade de origem é travestida, para passar a servir outros contextos históricos. […] Por estas razões, optámo s por cha mar narrativas míticas , e n ã o l e n d a s , à s h i s t ó r i a s d e b a s e , o s «c a c o s » s o b r e o s q u a i s a q u i nos debruça mo s. Nestas inc luímos, claro e stá, aquilo a que cha ma mos «rumores ». 39 E t am bém a pres ent a m a sua j ust i fi cação : Ora é precisa mente p ela sua simplic idade que, por entre estes restos do mito , consider a mos serem os «r u m o r e s » a f o r n e c e r - n o s a i n d i c a ç ã o d e s s a m a i s c l a r a a n t i g u i d a d e . «T u d o s e reduz a referê ncias va gas de mo uras enca ntad as e e nca nta mentos circunscritos a certos lugares da f r e g u e s i a » 40. Sendo, como disse mo s, esses lugare s a mbie nte s pré -históricos por excelênc ia, a referência apena s à aparição de um e nte mítico le va -nos a pensar que a ima ginaç ão popular o transforma numa espécie de guardião do que esse lugar representa na sua me mória, o u seja, o seu próprio passado. T anto mais que a esse lugar e a esse ser 38 Idem, p. 10. Idem, pp. 12 e 13. 40 Ataíde Oliveira, ob. cit. p. 171, referência a Moncarapacho, no Algarve, apud Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 52. 39 30 m í t i c o s e a s s o c i a , n o r m a l m e n t e , u m t e s o u r o «e n c a n t a d o » , d e simbolismo óbvio. […] Qua nto às narrativas, mais co mpletas, pe nsa mo s ser visível, na ma ioria dos casos, que elas sofrera m a lterações e acrescentos, a reflectire m já uma gr ande diacron ia. Co mo uma rede de pesca, estes «caco s» fora m ar rastando consigo os ele mentos do minante s de cada época, transfor ma ndo -se. contextualizando -se, Nestas narrativas enriquecendo-se estão, assim, e todos os ingredie ntes próprios do ima ginário popular que o to rna m qua se numa e spécie de saga nacional, re flectindo a ca minhada deste s povos, de norte a sul do País, através de toda a sua história. 41 Na m esm a l i nha d e pensam ent o, Al ex andre P ar afi t a apr esen t a a s egui nt e d efi ni ção d e l enda : […] é corrente me nte a ceite que se trata de um relato transmitido por tradição oral de factos ou acontecime ntos encarados co mo tendo um fundo de verdade, pelo que são objecto de crença pelas comunidades a que respeita m. É “uma história não atestada pela História” (Jolles, 1976:60). Está localizada numa área geográfica ou numa “apareçam deter minada época, transfigurados pela embora os ima ginação factos históricos popular” (Reis e Lopes, 1990:216). Não rara mente, a existência de uma lenda é uma consequência da fragilidade da história, ou dos documentos que a funda menta m. Por isso, muitas vezes nasce num espaço nebulo so da história, procurando comple me ntá -la, ou justificá -la, num quadro de representações do ima ginário. 42 Nest e est udo, consi deram os l enda t odo e qual quer rel at o de apar i ção de um a en t i dade m í t i ca ou rel i gi osa , ou de qual qu er ef ei t o cons i derado sobren at ural (i n cl usi vam ent e, um d esapar eci ment o i nex pl i cável e, de al gum a form a, rel a ci onado com al gum a en t i dade) , caus ado por um a a pari ção , ou at ri buí do a um a pessoa ou a um obj ect o (por ex em pl o, um mi l agre ), q ue apr esent e um a est rut ura 41 Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., pp. 14 e 15. Alexandre Parafita, A Mitologia dos Mouros, Canelas, Gailivro, col. Mitologia e Memória, 2006, p. 61. 42 Edições 31 narrat i va com pl et a , e epi sódi o l endári o , aos v est í gi os de hi s t óri as, a que At aí de Ol i vei r a cham ou encant a ment os e Fe rnanda Fraz ão e Gabri el a Mor ai s c ham aram rumores e cacos de hi st ór i a (que apresent am , nat ural m ent e, as m esm as c aract erí st i cas d e rel aç ão com ent i dades sobren at urai s ). 2.2. A DESIGNAÇÃO “LENDA MÍTICA” Na sua propost a d e cl assi fi ca ção dos gén eros da Li t e ra t ura Oral , o P rof. Dout or P i nt o -C orrei a si t ua o m i t o e a l end a (t al com o a fábul a e o apól o go) nas “com posi çõ es ex pl i cat i vo -ex em pl ares”, pert enc ent es ao gén ero narr at i vo ou narrat i vo -dram át i co. R efer e -se, s obret udo, à possi bi l i dade de as hi st óri as serem “m ai s ou m enos ex t ensas”, de t erem com o obj ect o “vul t os hi st óri cos” ou “l ugares m ui t o concret os”, ao seu car áct e r co m frequênci a “fr an cam ent e et i ol ógi co” e ao fac t o de serem “i núm e ras” e poder em “t er al canc e naci onal ou si gni fi c ado m ui t o regi on al ” . 43 Os di ferent es i nves t i gador es/ col ect or es subdi vi dem as l endas de aco rdo com cri t é ri os pessoa i s, cl assi fi cando - as, cont udo, se gundo o s eu t em a dom i na nt e: J osé Lei t e de Vasconc el l os consi derou s ei s “ci cl os” – “ Lendas R el i gi osas ”, “ Len das de Ent i dade s Mí t i cas”, “ Lendas Hi st óri cas ”, “ Lendas de M ouras e Mouros”, “ Lend as Et i ol ógi cas” e “ Le ndas de P ovo a ções Desap are ci das” ; F ernand a Fraz ão or gani z ou as L endas Port uguesas , separando - as de acordo com as re gi ões ond e eram cont adas e, m ai s rec ent em ent e, di vi di u -as em L endas da T erra e L endas do Mar (com o t am bém J osé J orge Let ri a); Gent i l Marques cri ou ci nco v ol um es aprox i m ando -se da cl as s i fi caç ão de J osé Lei t e de V asconc e l l os – “Lendas dos Nom es de 43 João David Pinto-Correia, “Os Géneros da Literatura Oral Tradicional: Contributo para a sua classificação”, in RILP – Revista Internacional da Língua Portuguesa, Nº 9, Julho de 1993, p. 67. 32 Terras ”, “ Lend as He rói cas”, “ Le ndas de Mouras e Mouros”, “ Lendas R el i gi o sas” e “ Len das de Am or”; At aí de Ol i vei ra i nt er essou -se part i cul arm ent e p el as l endas de m oura s encant adas, que s eparou de out ras l endas publ i cadas n as vá ri as Monogr afi as qu e e l aborou, edi t ando -as à pa rt e (t al com o os C ontos Popul ares do Algarve ) e faz endo, com o já referi m os, a di st i nção ent re “l e ndas” e “enc ant am ent os”. À part i da, dada a p rox i m i da de ex ist ente ent re os con cei t o s de l enda e de mi t o , a d esi gn aç ão “l enda m í t i ca ” pode par ece r paradox al . C ont udo, dado t am bém o ri go r com que al guns es t udi osos apresent am os di ferent es con cei t os de l enda , mi t o , sí mbol o , al egori a , hi st óri a mí t i ca , narrat i va mí t i ca, mi t ol ogi a , ocul t o e mi s t i ci smo , e dada a i nex i st ênci a de um a cl assi fi ca ção rí gi da, qu e s ej a se gui da po r t od os os i nvest i gado res e col e ct ores, opt á m os pel a des i gna ção “l enda m í t i ca”, en gl obando , com o j á refe ri m os, t oda e qual quer hi st óri a onde ex i st a a presença, m ai s ou m enos evi dent e, daqui l o a que t odo s, unani m em ent e, d e um a fo rm a ou d e out ra, cons i deram os o sobrenat ur al , m as com ori gem num mi t o , para di s t i nção do sobrena t ural associ ado à rel i gi ão ( cat ól i ca). 33 3. A RECOLHA DO CORPUS ESTUDADO Mai s um a vez , ao c ont rári o do qu e se veri fi ca nout ras re gi ões do paí s, t orna -se m ui t o di fí ci l , no Al ga r ve, a r ecol ha o ral , e fect uad a em “t rab al ho de ca m po ” (j á At aí de Ol i vei ra se quei x ou da m esm a s i t uação) . No que di z respei t o às m ouras enc ant ada s, p or ex em pl o, é quase i m possí vel – t oda a gent e com m ai s de quarent a anos se l em bra de t er ouvi do cont ar, em cri ança, m as ni nguém consegu e j á re produz i r, ex cept uando rarí ssi m as ex cepções, de epi sódi os ou fenóm enos pont uai s, com o é , por ex em pl o, o caso da “ Le nda d a P edr a M ouri nha ”, em P ort i m ão. As pessoas abo rdad as l em bravam -se de i m ensas hi st óri as, m as m ui t o poucas apr es ent avam as ca ract er í st i cas por nós des ej adas – cont os, fábul as, or a ções, quadr as… Nas bi bl i ot ecas dos vári os m uni cí pi os, ex i st e, de fact o, al gum m at eri al , m as, a t ít ul o de ex em pl o das di fi cul dades enc ont radas, devem os re feri r n ã o t er encont r ado o vol um e de J osé Lei t e d e Vas conc el l os dedi ca do aos cont os e às l endas. A bi bl i ot eca da Uni versi dade d e Li sbo a foi i m port ant e, m as foi s obret udo no C en t ro de T radi çõ es P opul ares M anue l Vi e gas Fern andes qu e en co nt rám os um a pa rt e si gni fi cat i va da bi b l i ogra fi a necessá ri a. Tam bém devem os m enci onar a bi bl i ot eca da Escol a S ecund ári a M anuel Tei x ei ra Gom es, que agradav e l m ent e nos surpree ndeu com um a quant i dade c on si derável de edi ções que nos foram m ui t o út ei s. Al guns l i vros e ram nossos, j á ant i gos ou adqui ri dos re ce nt em ent e para f aci l i t ar o noss o t rabal ho. 34 3.1. A P R E S E N T A Ç Ã O D O C O R P U S C om o j á referi m os no pri ncí pi o dest e t rabal ho, foram obj ect o des t e est udo l enda s que apr esent am u m a narr at i va com pl et a, com um a est rut ura passí vel de esquem a act a nci al , bem com o hi st óri as de cará ct er epi sódi co , aquel as a qu e At aí de Ol i vei ra cham a “enc ant am ent os”, e Gabri el a Mo rai s , “r um ores” ou “ cacos ”. Não faz em part e da nossa anál i se al guns dos rom ances ex i s t ent es, por duas raz ões: a pri m ei ra é que, nas obras r i gorosas, f i ávei s (nom eadam e nt e de Id ál i a Fa ri nho C ust ódi o, Mari a Al i et e Fari nho Gal hoz e Is abel C a rdi gos ), são apr esent ad as a s vári as vers ões co rrent es n a t radi ção d e di vers as re gi ões al ga rvi as , m as as hi s t óri as são, na su a m ai ori a, acont eci m ent os que não se passaram no Al garv e (po r ex em pl o, o nasci m ent o de J esus e epi sódi os da su a vi da, quando de ca r áct er rel i gi oso) – a s poucas que apr ese nt am um cará ct er mí t i co , se assi m pod em os di z er (“ A devot a c al uni ada”, por ex em pl o) , não são l ocal i z adas ( aprox i mando -se, po r i sso, m ai s dos cont os); a segund a raz ão prende -se co m o fact o de, no Romancei ro de At aí de Ol i vei r a, as com posi ções q ue poderi am est a r present es nes t e t rabal ho (no m eada m ent e “ A Moura do C ast el o de Tavi ra” ) t erem si do r eprodu z i das do Romacei ro de Est á ci o da Vei ga. Or a, nes t e úl t i m o, pese em bora o devi do rec onheci m ent o por um t rabal ho i m enso e i nt enso do seu aut or, e que m ui t o i m port ant e foi , sem dúvi da, na sua ép oca, a ve rd ade é que, com o r ef ere J .J .Di as M arques, n ão t em o s garant i as de qu e as l endas que p ret e ndí am os anal i sar t enham si d o rec ol hi das do pov o t al com o s ão apre sent adas, pel o cont rári o, o q ue com prom et e ri a, à part i da, a nossa anál i se. Apesar de al guns aut ores cu j as l e ndas t rabal h ám os as t erem r evest i do de um a l i t erari edad e t ot al m ent e al hei a à sua recol ha (com o G ent i l Marqu es), a mat ri z da hi st óri a não foi al t erad a, o qu e parec e não t e r a cont eci do com os rom an ces de Est á ci o da V ei ga. 35 Seja feita desde já uma adve rtê ncia: o R omanceiro do Algarve, bem mais que fiel reflexo da tradição oral algarvia, é uma obra daquele que se apresenta co mo se u simples colector, Estácio da Veiga. De facto, a presente colecção não obedece aos critérios que, já na época em que foi publ icada (e mais ainda hoje), se considerava devere m orientar obras que, como esta, pretendem ser a publicação de textos recolhidos da oralidade: o respeito pela letra desses textos e, por consequência, a sua publicação sem alterações por parte do organizador da obra. […] Face a este estado de coisas, a presente edição fa csimilada visa dois objectivos: […] Por outro lado, o estudo introdutório que aco mpanha esta edição pretende ajudar a esclarecer o processo de for mação d o Romanceiro do Algarve , evidenc iando o modo co mo as versões recolhidas da tradição oral foram alteradas por Estácio da Veiga e apontando os textos que, ao contrário do que o autor afirma, não foram recolhidos oralidade mas sim p ura e simplesme nte escrito s por ele. da 44 Doi s dos rom ances que poderi am t er cabi m ent o nest e es t udo (“A Moi r a En cant ad a” e “ A S enhor a do s Mart yres ”) s ão ap ont ados por est e aut or com o sendo “pe rfei t am en t e fal sos e nun ca e x i st i ram na t radi ção or al , t en do si do escri t os pel o própri o Vei ga ou por out ro aut or cul t o e depoi s fal sam ent e at ri buí dos à oral i dade. ” 45 . Faz em part e do cor pus que const i t ui o obj ect o de est udo dest a di s s ert ação t r ês gr upos di st i nt os de t ex t os: t odas as lendas j á edi t adas, de qu e t e m os conheci m ent o, após pesqui sa ex au st i va em Bi bl i ot ecas Muni ci pai s e ou t ras; um conj unt o de l endas i nédi t as, recol hi das por um i nform ant e que as ouvi u i n l oco , na sua j uvent ude, passand o -as a escri t o m ai s t arde; e al gum a s l endas recol hi das por nós da oral i dade, t ransc ri t as t al com o as ouvi m os e com o se en cont ram gr avadas nas t r ês v ersões ent re gues em suport e di gi t al . P erfaz em um t ot al de t r ez ent as e no ve l endas, de t odo o Al ga rve: duz ent as e oi t ent a e t rês j á pu bl i cadas (i ncl ui ndo vári as 44 J.J.Dias Marques, “ESTUDO INTRODUTÓRIO”, in Estácio da Veiga, Romanceiro do Algarve, Faro, Universidade do Algarve, 2005, pp. 5 e 7. 45 Idem, p. 6. 36 vers ões de al gum as l endas, na m ai or part e dos casos com al gum as di feren ças, ai nda q ue l i ge i ras, geral m ent e), d ez i nédi t as (nunca edi t adas) e d ez asse i s recol hi das da o r al i dade d e propósi t o par a es t e t rabal ho (p el o que t am bém i nédi t as ). 3.2. PROVENIÊNCIA DAS VERSÕES Apesar d e t odas a s di fi cul dades en c ont radas, cons e gui m os, ai nda assi m , grav a r dez assei s l endas e epi sódi os l endári os de i nform ant es que se di sponi bi l iz aram para r eproduz i rem al gum as hi s t óri as que t i nha m ouvi do desde s e m pre: a o ri gem do nom e do povoado de Odel ou ca (que, d e a cordo com a l enda, t e ri a dado, pos t eri orm ent e, o nom e à ri bei r a, em bora t enha a cont eci do, provavel m ent e, o c ont rári o, um a vez que “ode ” er a a pal a vra par a “ri o”, em á rab e), a Lenda d a C ost urei ri nha , a Le nda d a P edra M ouri nha , a Lenda das t rês rochas da p rai a dos Três Irm ão s , assi m com o a Ap ari ç ão de S t o. Ant óni o, a Ap a ri ção dos Doi s C o el hi nhos Bran cos, os t rês cas os de bruxari a , t rês caso s de al mas pe nadas , as l endas urbanas de Ol hão e de La gos e a desc ri ção de u m f ei t i ço dei x ado num a encru z i l hada. . As Lendas da C ost urei ri nha , d a P ed ra Mouri nha , de Odel o uca e dos Três Irm ãos e ra m m ui t o conheci das em P ort im ão, ai nda não há m ui t os anos. Mesm o assi m , hoj e, s ão rarí ssi m os os j oven s que j á ouvi ram fal ar d el as ; a Apari ç ão de S t o. Ant óni o fo i reco l hi da em C as ai s; as rest ant es , no C ent ro de Idos os de P ort i m ão, à ex cepção da l end a urb ana d e La gos, dos doi s rel at os rel a ci onad os com o cem i t éri o de Bur gau e da descri ção do s rest os de um fei t i ço dei x ado num a encruz i l hada , que nos fo r am rev el ada s pel o nosso i nf orm ant e das L endas Inédi t as . As Bi bl i ot ecas Muni ci pai s consul t ada s foram as de La gos, P ort i m ão, Faro e T a vi ra. 37 3.2.1. VERSÕES RECOLHIDAS A nossa informante de Casais, que nos contou a “Aparição de Sto. António em Casais”, é a D. Maria de Jesus Duarte, mais conhecida por “ti Bia”, que mora na Rua da Sra. d e Fátima, Nº 34, em Casais. Tem a 4ª classe, lê e escreve muito bem, pois, contou-nos, o pai deu instrução a todos os filhos e filhas, sem distinção. Passámos juntas a tarde do dia 4 de Fevereiro de 2007, em sua casa, quando tinha quase 92 anos. No Centro de Idosos de Portimão, foram duas as pessoas que, em 14 de Abril de 2007, se lembravam de casos de carácter mítico (de entre outros, naturalmente). O Sr. Filipe Marques, que esperava fazer 93 anos em 15 de Setembro seguinte, tem a 4ª classe, é de Monchique, mas estava em Portimão havia trinta e cinco anos: lembrava-se da “Aparição dos dois Coelhinhos Brancos”. A D. Maria Patrocínio Castilho dos Santos, mais conhecida por D. Bibi, nasceu a 2 de Janeiro de 1934 (tinha, portanto, 73 anos), também tem a 4ª classe e é de Albufeira, embora esteja em Portimão – contou-nos os três casos de bruxaria passados com ela e com o irmão (causa do falecimento deste), em Olhão, uma história de almas penadas, com ela e com a sua mãe (que não acreditava “nestas coisas”) e o “boato” da casa assombrada de Olhão, assim como do cinema, e ainda esclareceu sobre o modo como os espíritos agem, quer por iniciativa própria, quer invocados por bruxas ou feiticeiras. As três lendas de Portimão, a “Lenda da Pedra Mourinha”, a “Lenda das três rochas da praia dos Três Irmãos”, a “Lenda da Costureirinha” (apesar de esta última correr também nos concelhos de Monchique, de Silves e de Albufeira), bem como a explicação para o nome da povoação de Odelouca foram reproduzidas por Ana Paula Santana, de 50 anos, licenciada 38 em Economia e professora, presentemente, na Escola Secundária Poeta António Aleixo. A casa assombrada de Lagos , os dois casos de almas penadas (fogos fátuos e campainhas) e a descrição dos restos do feitiço foram-nos contados pelo nosso informante das L endas I nédi t as . 3.2.2. VERSÕES INÉDITAS J osé C oncei ção C asi nha Nova nasc eu a 5 de J unho de 1934, l i cenci ou -se em Fi l ol ogi a R om âni c a e f oi professor d e P ort uguês do ens i no secun dári o. Após a sua aposent ação, em 1998, ded i cou -se a es crev er as suas m e m óri as e a passa r à escri t a as hi st óri as que ouvi u a quem j urava t ê - l as vi vi do, assi m com o out ras, de cará ct er di ferent e, qu e pr ese nci ou, em Bu r gau, sua al dei a n at al , on de vi veu t oda a sua i nfânci a (fre gu esi a de B u dens, concel ho de Vi l a do Bi s po, em t rês qua rt os da al dei a, con cel ho de La gos no úl t i mo quart o). Foi com i m enso praz er que a s cedeu para i nt e gr arem est e es t udo, e é com t od o o cari nho q u e as reproduz i m os e ana l i sam os. C ons t i t uem conj unt os de hi st óri as cuj as persona gens não se encont ram em m ui t as edi ções (nom e adam en t e o l obi somem e a mor t e). S ão dez hi st óri as: q uat ro de medos/ al m as penadas , sendo q ue os doi s pri m ei ros medo s não são i dent i fi ca dos, enquant o qu e o s out ros doi s são, m ani fest a m ent e, al mas penadas ; duas de l obi somens ; e quat ro da mort e , en t i dade que n ão en c ont rám os em qual q uer out ra recol ha (em bo ra n a l enda “ O C onvi t e da Mi rra ”, d e Fern anda Fraz ão, a pe rsona gem sej a um esqu el et o com não m ui t o boas i nt enções, é, na v er dade, “ um mort o ” e não a mort e ). 39 P ensam os que as pri m ei ras set e pe r t encem ao grupo dos “epi sódi os l endári os”, enquant o as úl t i m as t rês podem ser cons i derad as “na rrat i vas com pl et as”. 3.2.3. VERSÕES EDITADAS Est es duz ent os e oi t ent a e t rês t ex t os est ão publ i cado s em edi ções a cessí vei s em Bi bl i ot ecas Mu ni ci pai s e out ras, nos m ai s vari ados t i pos d e c ol ecções, de Mono grafi as a Gui as Tu rí st i cos, e pel os m ai s vari ados aut ores: Assi m , foi t rabal ha do um t ot al de ce nt o e qua rent a e d uas l endas (“nar rat i vas com pl et as”) e c ent o e quarent a e um “e pi sódi os l endári os” d e t odo o Al garve ( Ba rl ave nt o e S ot ave nt o), r epart i do s pel os segui nt es “ col ect ores ”: t rês t ex t os de Ant óni o Mi guel As censão Nunes ( e m Al cout i m – C api t al do N ordest e Al garvi o (Subsí di os para Fern andes V az u ma (e m Monograf i a ); Al garve – t am bém R ef l exos t rês, de Et nográf i cos Adéri t o de uma Regi ão ); quat ro de C ri st óvão Guerrei ro Nort e ( em Al mansi l – Monograf i a e Memóri as ); onz e de Mari a J osé Guerrei ro P i nhei ro (doi s , em C i dade d e Mi l T esouros e n ove, em L oul é C i da de de Mi l Encant os ); vi nt e e oi t o de Mar gari da Tengarri nh a ( em Da Memóri a do Povo: re c ol ha da l i t erat ura popul ar de t radi ção oral do concel ho de Port i mão ); t rês de P aul o P erei ra (em Eni gmas – L ugares Mági cos de Port ugal – C abos do Mundo e Fi ni st erras ); doz e, da edi ção L endas de Port uga l , de G ent i l Marq ues; dez asset e , d as L endas Por t uguesas , de Fer nanda Fr az ão , assi m com o quat ro, dos Passi nhos de N ossa Senhora e t rês, das Vi ag ens do Di abo em Port u gal (num t ot al de vi nt e e quat ro) ; t rês, or gani z ad os por Fe rnando C al apez C orrei a , no L i vro d as Vi si t ações da Or dem de Sant ’Iago n a Igrej a Mat r i z de Al j ezur ; quat ro d e S i l va C arri ço (em Memó ri a das C oi s as ); doi s, de J . Mi m oso Barret o (em O Al garve ); doi s, de 40 Es t anco Louro (em O L i vro d e Al po rt el – Monograf i a de uma Fr eguesi a Rural – C oncel ho ); t rês, de Gl óri a Marrei ros (em Um Al garve Out ro ); t re z e , de J osé Lei t e d e Vasconc el l os, em C ont os Popul ares e L endas e dez , em R el i gi õe s da Lusi t âni a (num t ot al de vi nt e e t rês ) ; de A t aí de Ol i vei ra: qu a t ro , da Monograf i a de São Bar t ol omeu de Mes si nes , um a, da Mo nograf i a da L uz de T avi ra , onz e, de A Monogra f i a de A l vor , s et e, d a Monograf i a de Est ombar – C oncel ho de L agoa , ci nco, da Mon ograf i a do Agoz , doi s, da Monograf i a do C oncel ho de L oul é , set e da Monograf i a do C oncel ho de Ol hão , um , da Monograf i a do C oncel ho de Vi l a Real de Sant o Ant óni o , e cent o e onz e ex cert os da sua edi ção As Mouras Encant adas e os E ncant ament os no Al garve (o t ot al é d e cent o e quarent a e nov e hi st óri as ); de aut ores vári os, t em os ai nda um t ex t o de T avi ra do N eol ít i co ao sécul o XX, II Jornadas de Hi st óri a – Act as e oi t o de Vi l as e Al dei as do Al garve Rural . 3.2.3.1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Na l enda “O C i nt o da Moura” ( L M 13 e LM 31 ), nã o há qual quer re fer ênci a espaci al . Opt ám os, no ent ant o, por i ncl uí -l a nes t e corpus , vi st o apa rec er n a edi çã o de Fe rnanda Fra z ão com o pert enc ent e ao Al ga rve, ap es ar de J osé Lei t e d e Vas concel l os a t er recol hi do em El i as – Bai ão (Douro l i t or al ). “O P ego Escu ro”, d e At aí de Ol i vei ra, é o t í t ul o at ri buí do nos C ont os T radi ci onais do Al garve , de st e aut or, à l end a que é publ i cada sem t í t ul o na Monograf i a de São Bart ol om eu de Messi nes ( LM 59 ) e denom i na da “A Font e do Arro i o” ( L M 58 ), n a Mo nograf i a da L uz de T avi ra ), por i sso o escol hem os . Usám os o m esm o cri t éri o 41 para d esi gn ar “O P ego da C ar ri ça ” ( LM 60) e “ O Enc ant am ent o” ( LM 61 ). Quant o à ex i st ênci a de t esouros ocul t os (assi nal ada em C ont os e L endas , de J osé Lei t e de Vascon c el l os), C ast ro Mari nho é a des i gna ção ar cai c a de C ast ro M ari m ; m as é possí vel que ha j a vári os “Val es de Boi s ” no paí s, pel o que não podem os t er a cert ez a de se t rat ar da povo ação do concel ho de Vi l a d o Bi spo, ent ra Bur gau e Budens – i ncl uí m os essa “l enda ” por e x i st i r est a possi bi l idade (at é pel o nom e “Val ”, e m vez de “Val e”, sem a vogal fi nal , própri a do fal ar al garvi o, em bo ra se t rat e, n est e c a so, m ui t o provavel m ent e, de um a vogal fi nal m uda em t odas as out ras regi ões, m as que di fi ci l m ent e não ser i a escri t a). Opt ám os por i ncl ui r a “ Lend a de P ovoação Des apar ec i da”, Lam ei ra (t am bém d e J osé Lei t e d e Vas concel l os, C ont os e L endas ), pel o car áct e r m í t i co da “ pri m ei r a ci dade do Mundo”. Tal com o encont r á m os “ L endas de C ast i gos Di vi nos” ( LC D), t am bém i ncl uí m os duas l endas de m i l agres di vi nos, em bora a t radi ção as di st i nga e um a sej a at ri buí da a D eus (c ri st ão) e a out ra a Al l ah (m uçul m ano). P el as m esm as raz õe s de “sobren at ural ”, i nex pl i cável , A hi st óri a “A C asad a com o Di abo” ( LD 1) aprox i m a -se, t al vez , m ai s do cont o, embora s e possa cons i derar que ap resent a al guns pont os de cont act o com a l enda – i nser i m o -l a, sobret udo , por est ar l ocal i z ada. C onsi derám os “epi sódi os l endári os” das S ant as C abeça s os depoi m ent os, em dat as di fe rent es, dos doi s cl éri gos que dão t es t em unho das suas vi rt udes, afi rm and o t er presenci ado por vári as vez es esse fenóm en o. In cl uí m os, ai nda, a s t rês “ Lend as Urb a nas” (t od as r ecol hi das) , por t rat ar em de c as as assom bradas, l o go, al mas penadas , que faz em part e das ent i dades do nosso est udo. “A Font e do C anal ” e “O Abi sm o dos Encant ados” t êm u m a gr ande pa rt e em co m um , que i ncl ui um a façanh a só possí vel por 42 um qual quer t i po d e m i l agre ou pel o uso de m a gi a po r p art e do pret endent e à m ão da m oura – po r i ss o, i ncl uí m os “A Fo nt e do C anal ”. Todavi a, o fi nal não é com um , poi s nest a l e nda os nam orados não são encant ados, c om o na out ra. P are ce -nos que se t rat a da m esm a l end a que, em v ersões di ferent es, “pe rdeu” o fi nal , ao l ongo dos t em pos. C onsi derám os, ai nda assi m , duas l endas di ferent es, poi s “O Abi sm o dos Encant ados” ap resent a doi s act os m ági cos, enquant o q ue a pri m ei r a l enda refe re ap enas um . 43 4. UMA CARACTERÍSTICA PRINCIPAL DAS LENDAS MÍTICAS ALGARVIAS: A NATUREZA MÍTICA DOS AGENTES-PERSONAGENS É do sagrado, com efeito, que o crente espera todo o socorro e todo o êxito. O respeito que ele lhe testemunha é feito simulta nea me nte de terror e de confiança. As cala midades que o a meaça m, de que ele é vítima, as prosperidades que ele deseja ou lhe calham por sorte são por ele relacionadas com determinado princípio que se esforça por vergar à sua vontade ou coagir. Pouco importa o modo como ele ima gina esta orige m supre ma da graça ou das provações: deus universal e omnipotente das religiões mo noteístas, divindades protectoras das cidades, alma s dos mortos, força difusa e indeter minada que dá a cada objecto a sua excelência na respectiva função, que torna a canoa rápida, a ar ma mortífera, o alimento nutritivo. Por muito evoluída ou muito grosseira que a concebamos, a religião implica o reconhecimento desta força co m a qual o home m de ve co ntar. Tudo o que se lhe afigure receptáculo dela surge a seus olhos como sa grado, te mível, precioso. 46 Em bora os “m ouro s m í t i cos”, com o l hes cham a Al ex an dre P arafi t a , sej am as p ersona gens p repond erant es d a m i t ol ogi a popul ar al garvi a e, t al vez m esm o, port uguesa, out ras fi gur as há que, com bas t ant e rel evo, pov oam o i m agi ná ri o popul ar dest a r e gi ão. E m Alte fala -se das mo uras da Igrejinha dos Soidos , das mo uras de B ena fim, d os mouros e ncerrados nos grandes serros que circundam aquela povoação; em Boliqueime ouve -se constantemente tratar das bruxas de Alfontes, das bruxas da Parreira Ladeira, e dos lóbis-homens de Estelle Montes. 46 47 47 Roger Caillois, ob. cit., p. 22. Ataíde Oliveira, ob. cit., p. 136. 44 Assi m , ai nda que em m enor núm ero, e ncont ram os rel at os que fal am de ser e i as, de l obi som ens, de al mas penadas , da m ort e e, com m ai or i nci dênci a, de ent i dades l i gad as à m i t ol ogi a cri st ã, m ai s propri am ent e cat ól i ca, com o a Vi r gem Mari a, J esus C ri st o, al guns s ant os e, obvi am ent e, o d i abo e as fo rç a s do m al . A cada uma das qua tro raízes ou ele me ntos e m que os Gregos dividiram a matéria, correspondeu depois um espírito. Na obra de Paracelso, alquimista e médico suíço do século XVI, figura m q uatro espíritos ele mentare s: os Gno mos da terra, as Ninfas da á gua, a s Sala mandras do fogo, e os Silfos ou Sílfides do ar. […] Os Silfos ocupam um lugar intermédio entre os seres materiais e os imateriais. 48 S egui ndo est a di vi são, podem os t am bém encont rar fi guras m í t i cas m ovendo -se nos quat ro el em ent os. Mas enq uant o a s serei as s ó vi vem na água, o s l obi som ens na t erra e as al m as penada s no ar, encont ram os, por ex em pl o, apari ções de cobras t ant o em t er ra com o na á gua, e as m our as encant adas povo am t odos os el em ent os, t al com o as ent i dades c ri st ãs. O inconsciente colectivo – a grande “descoberta” de Jung – “engloba herança tudo das aquilo que possibilidades é inconsciente, de sobretudo representação que toda não a são individ uais, mas co muns a toda a huma nidade”. A prova da existência do inconsciente colectivo enco ntra-a Jung no facto de existirem mitos análogos em povos diferentes pela raça, pela história, pela cultura e sem comunicação uns para os outros. Do inconsciente colectivo derivam os arquétipos ou “possibilidades funcio nais da Psique” que aflora m à consci ência sob a for ma de “ima gens arcaicas”, de “símbolos” ou de “mitos”, sob o impacte de uma realidade exte rior. Por exemplo: a Sereia, a Ninfa, as Três Graças, Helena, Vénus, a Atlântida, etc. Em síntese: o mito 48 Jorge Luís Borges, O Livro dos Seres Imaginários, Lisboa, Editorial Teorema, ed. outras estórias, 1989, p.185. 45 é a projecção de uma força psíquica que se ag arra a um objecto real, transfigurando -o na representação. 49 Ora, num paí s ond e, t radi ci onal m ent e, apesar d e se t r at a r d e um a soci edad e pat ri arcal , em que o ho m em é o “ chef e da fam í l i a”, m as quando não est á ausent e de cas a, a t rabal ha r fo ra (no m ar, por ex em pl o), est á ause nt e nas b at al has, na s nave gações (e, m a i s t arde, em i gr a), é a m ul h er que ac aba por ser o “pi l ar” da f am í l i a, a res ponsável p el a e ducaç ão dos fi l hos e o am p aro d a ve l hi ce dos pai s . E é nest e uni verso predom i nant em ent e fem i ni no que surge m a s ent i dades m í t i cas, t am bém el as m ai ori t ari am ent e f em i ni nas, ves t í gi os de cul t os a ncest rai s da T err a - Mãe. Qua ndo fala mos de fadas, mo uras, bruxa s e feiticeiras, fala mo s de um universo fe minino, aparente me nte dicotómico, ma s passível de situações permutáve is. Fala mo s do universo do possível, do imprová vel, do desejável, do te mível; fala mo s, sobretudo, de desejos e receios, de castigos e reco mpensas, de figuras fe minina s maternais e de mo níacas. Fadas, moura s, bruxas e feiticeiras ( mas ta mbé m sereias, jãs, velhas e velhinhas, me ninas, meias -ir mã s, madrastas, a vós, sogras, tias, rainhas, princesas, raparigas, madrinhas, etc.) repetem o fe minino na sua diver sidade e comp letude. Fadas, moura s, bruxas e feiticeiras: qualquer um deste s entes sobrenaturais geralme nte com se todos relaci ona eles, e com por os isso quatro se ele mentos, tornam figuras poderosas e m ter mos de ima ginário tradicional. Muita s delas surgem em ambientes onde existe água (rios, riachos, fontes, nascentes), relacionam -se com o fogo e / ou o Sol, possuem a capacidade do voo (com ou se m ajuda de objectos má gicos) e sur ge m de a mbie nte s te lúricos ou ser ve m -se da terra para as suas artes. 50 49 Padre Manuel Antunes, ob. cit., p. 71. Maria Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras , Lisboa, Apenas Livros Lda., 1ª ed., 2006, p. 3. 50 46 As ent i dades m í t i cas m ascul i nas (o l obi som em , o m ouro, o brux o), t al com o as rel i gi osas (J esus e os sant os), sã o m ai s raras e m enos acessí vei s. A s suas apari ções sã o pouco frequent es e o t rat o m enos fam i l i ar , m ai s form al . No roma nceiro europeu proliferam as fadas, os encanta me ntos, os a nões e os duendes, os elfos e os gno mo s, as ninfas e as sereias, que directa ou indirectamente se relacionam com e ste co mplexo simbólico [seres ance str ais e ele me ntais / fadas / mo uras enca nta das / povos vencidos obrigados a povoar o interior da terra, onde se encontra m as riquezas]. T al como acontece co m Melusina (a fada), que a tra dição representa como meia mulher, me ia serpente, […] 51 Não é, po r i sso, de est ranhar, que, n est as l endas que const i t uem o nosso corpus , t am bém apar eçam m ai s fi gur as fem i ni nas, s obret udo mí t i cas, e at é as persona gens hum anas i nt erveni ent es seri am m ari ori t ari am ent e m ul heres, não s e desse o c aso de a s mouras encant adas (t am bé m em m ai ori a em rel aç ão aos mouros ) faz erem val er os seus at ri but os de bel ez a fem i n i na para t ent arem s eduz i r os s eus fut uros desen cant adores . E at é a Mort e , sendo em bora um es quel et o (q u e se desi gna, no Al garv e, por “um a m i rra” ), é um a fi gur a fem i ni na. São os lobisome ns, c apazes de transportarem as pessoa s sem destino. São as bruxas nas encruzilhadas dançando, dançando até dare m um estoiro… São «as coisas ruins » de feitiçaria para este home m se ligar a esta mulher o u aquela mulher se esq uecer deste ho me m. São invejas, são ma ldades. São doenças e padecime ntos. É a louc ura. São «o s ataque s » e «as sinto mas »… 52 51 Aurélio Lopes, B. I. das Mouras Encantadas, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2ª ed., 2004, p.4. 52 Glória Marreiros, UM ALGARVE OUTRO contado de boca em boca , Lisboa, Livros Horizonte, 1991, p. 97. 47 4 .1 . A MOURA ENCANTADA Est a é a persona gem m ai s com um e, t al vez , a m ai s pol ém i ca d as que fi gu ram nas n ar rat i vas al garvi as. Ex pressão que desi gna, h abi t ual m ent e, os mouros mí t i cos 53 (que são r apaz es, m eni nos e, m ai ori t ari am ent e, rapa ri gas), a moura encant ada é consi d erada po r Ga rret t u m dos doi s m i t os “nasci dos” em P ort ugal (o s e gu ndo é o de D. S ebast i ão). Ini ci al m ent e l i gada às hi st óri as de co nqui st as e reconqui st as , num t erri t óri o i gu a l m ent e di spu t ado por port ugu eses do Nort e e árabes, foi sem p re ent endi da com o um a fi gura fi cci on ada dos m ouros hi st óri cos ex i st ent es na época e que prot a goni z am um el evado núm ero d e l endas hi st óri cas e re l i gi osas. C om o j á afi rm ám os nout ro t rabal ho, a si t uação m ai s fr equ ent e era o encant am ent o das fi l has pel os pai s, na preci pi t ação da fuga, ant es de r econt ros e bat al h as, pa ra qu e não c aí ssem nas m ãos dos s ol dados (em bora haj a out ras r az ões, nom eadam ent e, o encant am ent o com o cast i go por n ão que rerem c asar com quem o pai queri a i m por, por es t arem apai x onadas p or out ro). No ent ant o, a gr and e evol uç ão t e cnol ógi ca das úl t i m as déc adas vei o perm i t i r novos est udos e novas descobert as ci ent í fi cas no âm bi t o da arqueol o gi a, pondo em caus a, pel o m enos, a i d ei a pré concebi da e com um m ent e ac ei t e de que os mouros e ncant ados t i nham um a rel aç ão í nt i m a com os mouros hi st óri cos . O problema é este: onde acaba a mitolo gia e com eça a História? […] A Mitologia é estática: enco ntra mos os me smo s ele me ntos mitoló gicos co mbinados de infinitas ma neiras, mas num sistema fechado, contrapond o-se à História, que, evidente me nte, é um siste ma aberto. 53 Designação usada por Alexandre Parafita , e que nos ajuda a distinguir as personagens reais, as das lendas históricas, das personagens míticas que, supostamente, teriam a mesma origem étnica. 48 O carácter aberto da História está asseg urado pelas inúmeras mane iras de compor e recompor as células mitológica s. Isto de monstra -nos q ue, usando o mesmo material [ …] uma pessoa pode todavia conseguir elaborar um relato original […]. Qua ndo faze mos H istória científica, faze mos porventura algo cie ntífico ou adopta mos ta mbé m a nossa própria mitologia nessa tentativa de fazer História pura? […] Não ando longe de pensar que, nas nossas sociedades, a História substitui a M itologia e dese mpe nha a mesma função, já que para as sociedades sem escrita e s em arquivos a Mitologia tem por finalidade assegurar, com um alto grau de certeza – a certeza co mpleta é o bvia me nte impossíve l perma necerá fie l ao presente e ao passado. –, que o futuro 54 J osé Lei t e de V asc oncel l os j á t i nha c ham ado a at en ção para um a p ossí vel rel aç ã o ent re a mo ura en c ant ada e a pré -hi st óri a: 1) Assim como os Romanos substituíam pelas Ninfas, lares, genii, fatae as divindades típicas da Lusitânia, assim com o andar do tempo essas denominações latinas foram substituídas pela Virgem e pelas santas (influência cristã) e pelas moiras, bruxas, etc. Dos tempos antigos só ficou a palavra fadas. [...] 3) Vestígios de paganismo: cabelos de oiro das moiras como o das Ninfas clássicas: citação bibliográfica e m M o d . l a n g . n o t . , X X I I I , p . 2 4 ( 1 9 0 8 ) . 55 Acres cent ando, ai nda: Assim como no nosso país os monumentos pré históricos (dólmenes) são habitados pelos Mouros, na Baixa Bretanha, por ex., são habitados pelos Nains (Anões). As Mouras dos montes e penedos é provável que não sejam o mesmo que as das fontes. Ainda que as águas saiam também das rochas e das montanhas, o culto das pedras acha-se muito bem estabelecido na crença popular para que o possamos confundir com outro. As Mouras têm 54 Claude Lévi-Strauss, ob. cit., pp. 58 a 63. José Leite de Vasconcellos, Etnografia Portuguesa, Lisboa, ed. Imprensa Nacio nal-Casa da Moeda, vol. VII da reimpressão fac-similada da edição de 1980, 1982, p. 474. 55 49 uma significação mais vasta do que à primeira vista pode p a r e c e r . 56 Do mesmo modo, João David Pinto -Correia faz a seguinte advertência: […] Por seu turno, a “mo ura e nca ntada”, vulto que o a utor [Alexandre Parafita] considera bondosa e suplicante, é, no entanto, perigosa me nte sedutora, re mete mitic a mente para o culto das águas, inscrevendo -se deste modo em crenças antigas de natureza pagã, se bem que a designação – de características sincrética s, cre mos nós – remeta para um período histórico ainda de certo modo próximo de nós. 57 Ora, se gundo Fe rna nda Fr az ão e G abri e l a Morai s, par a al é m da m i t i fi cação dos mo uros hi st óri cos , fei t a pel o povo, “fa ci l m ent e confundí vei s com out ros seres m í t i cos”, por descon hecer “o s i gni fi cado e a fun ç ão ori gi n ai s de ce rt os vest í gi os arqu eol ógi cos e perant e, m ui t as vez es, a sua m onum ent al i dade, com o por e x em pl o, os m egal i t os” 58, ex ist e, act ual m ent e, um a t eori a hi st óri ca que, afas t ando -s e dest a ori gem árab e da mo ura encant ada , vem refor çar as hi pót eses avent a das da sua l i gaç ão a cul t os pri m i t i vos pagãos que Gabri el a Morai s ex pl i ca do segui nt e m odo: Para Alinei e Benozzo [ 60 ] está també m co mp leta me nte fora de questão confundire m-se esta s lenda s co m o povo mouro. E recorrem mais uma vez às possíveis raíze s etimo lógica s que justificam esta sua hipótese, pois reconhecem existir a palavra céltica *M RVOS para designar, tanto ‘morto ’, co mo ‘ser 56 José Leite de Vasconcellos, Tradições Populares de Portugal , Lisboa, ed. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2ª ed., 1986, Nota 4, págs. 131 e 132. 57 João David Pinto-Correia, “Prefácio”, in Alexandre Parafita, O Maravilhoso Popular, Lisboa, Plátano Editora, 2000, p.12. 58 Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., pp. 17 e 18. 59 V. Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 18. 60 Mario Alinei e Francesco Beno zzo, investigadores que, de entre outros, defendem a “Teoria da Continuidade Paleolít ica das Origens Indo-Europeias” (v. Mário Alinei, A Teoria da Continuidade Paleolítica das Origens Indo-Europeias: Uma Introdução, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2008). 50 59 , sobrenatural’. Ora, c omo se verifica, esses são elementos fundamentais neste tipo de lendas. Por outro lado, le mbra m que o ter mo mais vulgar para designar os monumentos funerários megalíticos, em galego e em portuguê s, é mamoa e não dólmen – o termo utilizado noutras língua s. Na realidade, a anta que conhece mo s é apenas o «miolo », escondido sob um mo nte de terra, agora desaparecido, que tinha essa for ma sugestiva de ma ma, o u de ve ntre grávido de mulher. Assim, o ter mo *M RV OS, tal co mo o ter mo ma moa mostra m ser aqui que reside o fundo originário deste lendário. Um fundo pré histórico céltico, fruto de uma longa tradição oral, e não tardio, como o séc. VIII. 61 Mas para al ém da possi bi l i dade col ocada pel a l i nguí s t i ca hi s t óri ca da et i m ol ogi a d a pal avr a “m ou ro”, est a t eo ri a apoi a -se em t es t es m odernos l e vados a cabo po r arqueol ó gi cos, r ece nt em ent e, apresent ando, por i s so, um a base ci ent í f i ca: Afinal, a genética parece confirmar que até há cerca de 17, 16 mil a no s o s nosso s directos a ntepassado s fizera m parte do « R e f ú g i o I b é r i c o », a p a r t i r d o q u a l s e r e p o v o o u g r a n d e p a r t e d a Europa, uma E uropa quase despovoada pela glaciação. E també m nos diz que a maioria do nosso ADN (de um modo geral, co mum ao Ocidente europeu) é autóctone, – ou seja, na linha dos prime iros Homo sapiens sapiens , aqui estabelecidos, desde há cerca de 40 000 anos. Afinal, a arqueologia ta mbé m confirma que já aqui estávamos, Homo sapiens sapiens, desde essa data – veja-se a ocupação da gruta do Esc oural ou do Almonda – e que há evidências de continuidade na ocupação do território, atravessando as várias épocas pré -históricas, proto-históricas e históricas. E a arqueologia desmente – pois não há quaisquer vestígios co mprovativos – umas pseudo invasões europeias, consideradas pelos historiadores tradicionais a fonte bendita dos actuais europeus, que teriam substituído integralmente os povos preexistentes. 61 62 62 Gabriela Morais, ob. cit., pp. 30 e 31. Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., pp. 4 e 5. 51 Tam bém confusão a Igr ej a est abel e c i da, C at ól i ca e t eve escol hem os um papel i m port ant e apres ent ar as na s egui nt es ex posi ções, de Ad al bert o A l ves, Al e x andre P arafi t a e Fern anda Fraz ão e Gab ri el a Morai s, respec t i vam ent e, que pensam os com pl em ent arem -se: T ão imposta foi a todas as consciência s essa manipulada luz da história, que, ainda hoje, às crianç as se ensina seram eles [os mo uros] os ho me ns se m rosto, se m no me, se mpre os “outros”, aqueles a quem D. Afonso Henriques, invariavelmente, vence a golpes de monta nte. 63 A a usê ncia de outras versões que não as “o fic iais” per mitiu construir no imaginário c olectivo a ideia dos mo uros infiéis, bárbaros sarracenos, gente perversa, criminosa, usurpadora, que só a fé e a heroicidade dos cristãos p ud era m co mbater. A instituição educativa, até aos anos 70 do século XX, conservou nos ma nuais e e m outr as obras autor izadas muitos te xtos de teor fundamentalista, faccioso, para tentar relatar alguns principais episódios relativos ao conflito cristão -islâmico. dos 64 […] Convirá acrescentar ter sido talvez por não poder extirpar co mpleta me nte as cre nças anteriores, que a Igreja, não só as diabolizou, co mo poderá ter fo me ntado a confusão entre os ter mos mouro e pagão, sendo essa ta mbé m uma das razões na base do actual equívoco entre as mo uras encantadas e a etnia muçulmana. E a contaminação estende-se à atribuição popular da autoria de constr uções pré ou proto -históricas ditas co mo obras de mo uros, numa clara confusão entre o grupo étnico que aqui esteve na época medieval e os seres mítico s da tradição. 65 Já Martins Sar me nto d efendia «q ue nas nossa s tradições de mo uros e nca ntados o nome de mo uros veio substituir o de pagãos e que tais tradições existiam muitos séculos antes da invasão árabe […] os mo uros d a nossa le nda são os mo uros dos castros, das fontes e das ma mo as, isto é, os misteriosos construtores de 63 Adalberto Alves, O Meu Coração É Árabe , Lisboa, col. Documenta Poetica, Nº 7, ed. Assírio & Alvim, 2ª ed., 1991. 64 Alexandre Parafita, A Mitologia dos Mouros, p. 89. 65 Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 17. 52 tudo isto, os pa gãos, enfim, co mo os cristãos lhes cha ma va m ao p r i n c í p i o ». Est a 66 fi gura, s em el hança dos que, deuses com o afi rm ám os pa gãos, nout ro a present a -s e t r abal ho, com t odas à as cara ct erí st i cas consi deradas boas e m e nos boas encont rad as no ser hum ano, prot a goni z a um núm ero el eva dí ssi m o de rel at os. Mas, “a m ai ori a das v ez es, as m ouras são fi gur as que um fado nefast o m ort i fi ca e faz sofr er; fi gu ras que ped em aj uda aos hum a nos e que del es nec essi t am para [ as] poderem d esencant ar [ …] ” 67 e , dum a form a geral , “a “m oura e n cant ad a” p a rt i ci pa no co nj unt o de ent es que não nos são ant i pát i cos ou, at é p el o cont rári o, s e i nsi nua m com o s i m pát i cos ou i nt eressant es [ …] ” 68 C om o t am bém j á t ivem os ocasi ão de assi nal ar nout ro t r abal ho, rel aci onam -se com os qua t ro el em ent os (t al com o a serpen t e, com o verem os adi ant e ) , p oi s aparec em j unt o de font es, de ri os, de pe gos, de poços, de ci st ern as – á gua –, m as t a m bém de est rad as n o cam po, de rochas – t err a – , sobre as m ural h as de cast el os – a r – e t em os m es m o um a m oura e ncant ada no fo go (n as l abar edas de um forno de cal ). […] a partir das pinturas ou das insculturas rupestres, dos vestígios encontrados em escavações, fomo s encontrando constantes desde a Pré -História até aos nossos dias que, apesar de tudo, o tempo não conseguiu apagar. E ver ificá mo s que se terá traçado um verdadeiro «ca minho da serpente», prolongado, não só na iconogra fia e na simbologia da Se nhor a da Conceição, a que m D. João IV consa grou o País, co mo e m muitos outros ele me ntos c ulturais, visivelme nte persistente s ao longo d e toda a 66 Martins Francisco Sarmento, “Materiais para a Arqueologia do Concelho de Guimarães”, pp. 172 -173, in Revista de Guimarães, 1 4), Out.-Dez, 1884, Guimarães, Casa de Sarmento, pp. 161 a 18 9, apud Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 17. 67 Maria Teresa Meireles, ob. cit., p. 18. 68 João David Pinto -Correia, “Prefácio”, in Alexandre Parafita, O Maravilhoso Popular, Lisboa, Plátano Editora, 2000, p.12. 53 nossa história. O estudo de lendas e de tradições populares é ta mbé m um claro sinal desse «ca minho » […] 69 E Fern anda Fr az ão e Gabri el a Mo rai s ac rescent am : Verifica mo s, a ssim, q ue este corpus [as le ndas de mo uras encantada s] se insere exacta me nte nesse mesmo «ca minho da serpente » a que nos referimos a ntes, o ca minho traçado pela história dos povos deste território, no período começado há cerca de 40 000 anos e que se prolonga até hoje. 70 P or vez es, são fi gu ras f em i ni nas de ra ra bel ez a, di áf anas, que apare cem pent e and o os cabel os l ouros com pent es de ouro, m as out ras vez es t ransf orm am -se em cobr as, que podem ou não ser provi das de cabel o , conform e sej am t ot al m ent e cobr as o u apenas m et ade, com a cab eça hum an a . Tam bé m podem oferec er f i gos aos pas s ant es, m as os fi gos t r ansform am -s e em ouro e, m ai s t ar de, frut o da curi osi dade e, so bret udo, da am bi ç ão , em carv ão. As mo uras, relacionadas co m a luz e o aspecto solar através dos cabelos loiros que penteiam, da altura do ano em que aparecem (solstício de Ve rão, S. João) e do ouro que oferecem, vê[e]m este aspecto solar contrabalançado pelo seu meio corpo de cobra, ligada à terra na sua representação nocturna, bem como ao f a d o q u e s o f r e m e a o c a r v ã o , e n q u a n t o r e p r e s e n t a ç ã o d a s t r e v a s . 71 Aurél i o Lopes ap res ent a as suas sem el hanças com as f adas : Heranças de um te mpo mítico, manifestações de um maravilhoso que radica no mais fundo do lendário colectivo das culturas mediterrâneas, as Fadas e as Mouras Encantadas surgem nos co mo entidades te lúricas associadas a lu gare s recônditos e misteriosos, aos quais as ligam antigos e lendários encantamentos! 69 70 71 Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 3. Idem, p. 18. Maria Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras , p. 22. 54 São personagens de um te mpo prodigioso que ne m pela ausê ncia de co mple ta d ime nsão histórica é tid o como me nos real no imaginário popular. T empo primo rdial, esse, cuja reactualização ritual d á corpo a muitos dos nossos cerimo niais mágicos e religiosos. Seres elementais, entendida co mo uma residuais de autêntica memória idade do de uma ouro, as época Mouras Encantadas têm a particularidade de se tornarem invisíveis aos olhos huma nos ou de apenas deixar vislumbrar uma image m difusa e em desaparecimento: o doirado do seu cabelo refulgindo ao sol, o reflexo parcial da sua ima ge m na á gua. São fia ndeiras sublimes; fiam o linho e o destino! […] As mo uras encantadas (à se melha nça d as fadas, que controla m o destino, o «fado », e que deste mo do o podem a lterar) s u r g e m m u i t a s v e z e s d e i m p r e v i s t o a o s v i a n d a n t e s [ … ] 72 E ex pl i ca, t am bém , a sua rel ação com o s Mouros : Inserem-se na mitologia dos encantados que, numa perspectiva histórico -l endária, transfor ma o s povos antigos e vencidos em arquétipos de mar gina is e clandestinos, logo, ocultos e má gicos, muitas vezes habitantes do sub mundo. São eles os detentores da verdadeira sabedoria, poder e riqueza, obrigados a descer às entranhas da terr a e a esconderem-se, mas, ta mbé m por isso, a imergir na s e nergia s telúricas aí persistentes e impregnar -se de um p oder mágico e uma força sobre -huma nos. T udo se processa como, se e sgotado o poder material, restasse aos povos ve ncidos, re metidos para o limb o existe ncial, a recorrência às forças má gicas e sobrenatura is prime vas que da terra ema na m e no seu interior se conser va m pote ncialmente actuantes. Ao poder cabalístico de transmudar em ouro todo o mineral ( mesmo o me nos nobre, como o carvão), junta -se o acesso às riqueza s do interior da terra; donde vê m o s meta is, as pedras preciosas e o ouro, que fazem ricos os povos. 73 Ora, na su a rel ação com os hum anos, se rvem -se de est rat a ge m as di ferent es p ar a os a bordar, f requ ent em e nt e com o m esm o o bj ect i vo: 72 73 Aurélio Lopes, ob. cit., pp.3 e 4. Ibidem. 55 s erem d es enc ant ada s. E est as aborda ge ns ex i gem , ger al m e nt e, um a perí ci a e qual i dad es com o a di sc ri ção, a paci ên ci a, a persi st ênci a e a cora gem , v al ores co m que os desencant adores são post os à prova, e cuj a ausênci a pode ser fat al pa r a am bas as – part es os encant a m ent os são d obrados e os t esouro s perdi dos. Seja qualquer for o contacto, sub mete m se mpr e os visados a uma prova, explícita o u imp lícita, co mo co ndição necessária (e a maior parte das vezes suficiente) para vir a obter um tesouro de inimaginável riqueza. Por todo o País abund a m histórias, aprese ntadas co mo de veracidade inquestionável, em que tesouros fabulosos são obtidos por bem fadados, e «explica m» assim enriquecimentos inexplicá veis ou, o que acontece vulgar me nte, ou e m que a s hipóteses de insatisfação enrique cime nto de uma qualquer acabam por condição gorar-se prévia face à requerida. A corage m suficie nte, a a mb ição desmedida e muito frequente me nte a indiscrição e a imp aciência são factores que ocasiona m, no último minuto, a fuga p or entre os dedos do amb icionado tesouro. São portanto os valores e m q ue assenta a é tica e a moral local tradicionais que serve m, freque nte me nte, de critério mítico de referência. U ma evidente função pedagógica transperece destes episódios que, apesar de lendários, são encara dos como reais e imbuídos, implicita me nte, no uma inequívoca e pragmática 74 moralidade. S ão, de ent ant o, narrat i vas de di fe rent es t i pol ogi as, que i m port a, t al vez , “ar rum ar”, um a vez qu e, at é ao m om ent o, nenhum a cl as s i fi caç ão ex i st ent e serve ao corpus de l endas do Al ga rv e. 74 Idem, pp.4 e 5. 56 4 .1 .1 . P R O B LE M Á TI C A D A C LA S S I F I C AÇ Ã O D A S LE N D AS D E M O UR AS E N C A N T AD AS C om o j á veri fi cám os ant eri orm ent e, ex i st em doi s t i pos de l endas de mouros m í t i cos (m ouras, m ouros ou m ouri nhos) : aquel a s a que At aí de Ol i vei r a cham ou en cant a me nt os , “que s e l i m i t am a re gi st ar ocorr ênci a s epi s ódi cos” 75 de fenóm enos m ai s ou m enos pont uai s, ; e as que “obedec em a um a coerênci a na rrat i va, es t abel ec endo rel a ç ões de t em poral i da de e de causal i dade ent re as acçõ es ocor ri das, form ando sequ ênci as nar rat i va s, por sua vez rel aci onad as ent re si , e conduce nt es a um d es fecho” 76. Acres cent arí am os, a i nda, que nel as ex i st em um ou m ai s confl i t os, cons t i t ui ndo um a i nt ri ga, ou sej a, perm i t em -nos des e nhar um es quem a act an ci al c om os prot agoni st as e os respect i vos obj ect i vos, adj uvant es e oponen t es. E, com o t am b ém pr ovám os nesse m esm o est udo, nenhum a das cl as s i fi caçõ es ex i st ent es (de C onsi gl i er i P edroso e de J osé Lei t e d e Vas conc el l os 77), cri ad as, provav el m ent e, com a i nt enç ão d e a bran ger t odo o t i po de l endas ex i st ent es n o país, se pode apl i car à s l endas al garvi as , n as quai s não encont ram os m ouras que produzem eco (os gri t os e/ ou choros são ouvi dos sobret udo à noi t e, m as não são o m es m o que “eco ”), nem const rut oras de monument os , e ap enas ex i s t em as Gens co m o vest í gi os de fi a ndei ras e a Z orra B erradei ra (s obre cuj a nat ur ez a não há consenso ) com o vest í gi o de géni os 75 M. Manuela N. Casinha Nova, Dissertação de Mestrado As Lendas de Mouras Encantadas do Algarve, Universidade Aberta, Lisboa, 2002, p. 58. 76 Ibidem. 77 Divisão de José Leite de Vasconcellos: a) mouras encantadas com tesouros (em águas, pedras, montes); b) mouras que produzem eco; c) mouras fiandeiras. Divisão de Consiglieri Pedroso (em “ciclos”): 1º) como divindades ou génios femininos das águas (fontes, rios, ribeiros, poços, etc.); 2º) como guardadoras de tesouros encantados; 3º) como fiandeiras e construtoras de monumentos; 4º) como génios maléficos que perseguem o homem, ocas ionando-lhe diversas doenças. 57 mal éf i cos – e am bo s est es c asos pe rt en cem à cat e gori a do s rel at os de car áct e r epi sódi c o. As ocorrên ci as “de narrat i va com pl et a”, com i nt ri ga, t êm t odas, com o el em ent o ful cral , o encant am en t o da m oura, ex plí ci t o ou i m pl í ci t o, de cuj a nat urez a dec orre a possi bi l i dade ou i m possi bi l i dade da sua própri a anul aç ão – o desencant am ent o, fact or que det erm i na rá a m odal i dade da com posi ção. Assi m , são “fechad as” as narrat i vas e m que o encant ament o s urge com o o desenl ace i rr eve rsí vel da hi st óri a, aquel as em que, por i népci a do desen ca nt ador (e, l o gi c am e nt e, do encant ado , que não es col heu um d esenc ant ador adequado, daí as cons equênci a s serem , frequent em ent e, n ef ast as par a am bos – r ecorde -se o dobra r d o t em po i ni ci al do encant am ent o ), são anul ad as t odas as possi bi l i dades de des encant am ent o , t al com o t odas aquel a s cuj o desfecho con si st e na cons um ação do d esencant ament o . S ão narrat i vas “ab ert as ” t odas as out ras, em que, co m m ai or ou m enor probabi l i dade, pe r m anece a pos s i bi l i dade do desencant am ent o. Tendo em consi der ação est es “nú cl eo s narrat i vos”, pode m os propor a se gui nt e cl assi fi caç ão par a as l endas al garvi as, a part i r da s ua m odal i dade e não das funções ex erci das pel os encant ados na hi s t óri a: 1 . Lend as cuj o el em ent o cent ral é o encant ament o 1.1. encant ament o sem p ossi bi l i dade de dese ncant ament o 1.2. encant ament o com p ossi bi l i dade de dese ncant ament o 2 . Lend as cuj o el em ent o cent ral é o d esen c ant ament o 2.1. desencant am ent o co m fi nal fel i z 2.2. t ent at i va fal had a de desencant am ent o 2 . 2 . 1 . t ent at i va fal h ada d e desen cant ament o provocad a po r i né pci a d o desencant ador 2 . 2 . 2 . t ent at i va fal had a de desencant am ent o pr ovocada por m edo d o desencant ador , que não che ga a t ent a r 58 2.3. desencant am ent o com fi nal desconc ert ant e, fel i z par a o d esencant ado e i nfel i z para o desencant ador , apesar da sua “com pet ên ci a” 4 . 1 .2 . EN C A N T AM E N T O / D ES E N C AN T AM EN T O O encant ament o pode dar -se em pres e nça ou à di st ânci a ( A Moura de Sal i r e A Moura do Ar co do R epouso são doi s ex em pl os de encant am ent os “à di st ânci a”), po r pr ecau ção, m edo ou rai va do encant ador . Ind ependent em ent e das condi ções e ci rcunst ân ci as em que ocorre o encant am e nt o , o desencant am ent o deve obed ece r a re gr as m ui t o preci sas, que provarão o m ere ci m ent o (ou não) do i ndi ví duo que o l evar á a c ab o. Parece, pois, que as no ções de puro e de impuro não fora m a princípio bem separadas dos múltiplos sentimentos suscitados, nas suas difere ntes ma nifestações, pelas força s co mple me ntares e antitéticas cuja concordia discors organiza o universo. A sua oposição é restringida tardia mente a co nsider ações de higie ne o u de moral. É possível apreender um estado em que ela se har mo niza indissoluve lme nte co m outros antagonismo s que se conjugam e interpenetram mais do que se deixam ordenar ou distinguir. A pureza é então simultaneamente a saúde, o vigor, a bravura, a sorte, a longevidade, a destreza, a riqueza, a felicidade, a sa ntidade; a imp ureza reúne e m si a doença, a fraqueza, a cobardia, a imperícia, a enfermidade, o azar , a miséria, o infortúnio, a danação. N ão é ainda possível aperceber uma aspiração moral. U ma tara censurados da me sma ma neira considerados co mo indícios física que ou ou uma um fracasso vontade são perversa consequências e desta. 59 Reciproca mente, a habilidade ou o êxito ma nifesta m o favor dos deuses e parece m uma garantia de virtude. 78 Não ser á, ent ão, po r ac aso, que, em quase t odos os rel at os de t ent at i vas fal h adas de d esencant am e nt o , o er ro a cont e ce por i nt erfer ênci a d e um a m ul her . Na verdade, a ordem natural continua a ordem social e reflecte -a. Estão amba s ligadas: o que perturba uma desordena a outra. U m crime de lesa -majestade é equivalente a um acto contranatural e prejudica da me sma ma neira o bom funcio na me nto do univer so. De igual modo, qualquer mistura é uma operação perigosa que t e nde a trazer confusão e desordem, que se arrisca e m especial a baralhar qualidades que convé m ma nter separadas, se se quiser que elas conservem as suas virtudes próprias. […] Estas [ misturas] são te midas qua ndo tende m, por exe mplo, a aproximar coisa s que, seja a que título for, p or contágio o u por natureza, parecem pertencer a um e ao outro sexo. […] É que a mistura não é considerada pelo pensa mento r eligioso co mo uma espécie de operação química de consequências definidas e, em todo o caso, purame nte mater iais. Ela a fecta a própria essência dos corpos. Perturba -a, altera -a, introduz nela uma mác ula, quer dizer, um foco contagioso de infecção que é urgente destruir, eliminar ou isolar. As qualidades das coisas são contagiosas: elas permutam -se, interverte m-se, co mbina m-se e corrompe m-se, se uma e xcessiva proximidade lhes per mite reagir entre si. A orde m do mundo encontra-se ofendida na mesma proporção. Assim, para a preservar, é preciso, teoricame nte, impedir qualquer mistura capaz de a comprome ter ou, na nec essidade de proceder a esta delicada ma nobra, não a efectuar sem tomar indispensáveis para atenuar o seu efeito. as precauções 79 Mas t am bém os hom ens fal ham , por v ez es, as suas t ent at i vas, em bora, “est at i st i ca m ent e”, pare çam m a i s apt os ( “As Mouras do R i o S eco 2 ”, “O P e go Escuro ”, “ O Al m ocr ev e de Est ói ”, por ex e m pl o ). 78 79 Roger Caillois, ob. cit., p. 56. Roger Caillois, idem, pp. 26 e 27. 60 O medo é um dos sentime ntos que, desde se mpre, liga os huma nos ao sobrenatural. No caso das mouras, os sentimentos variam ao longo do te m[p]o: co meça por haver uma certa curiosidade, por vezes forte atracção, desejos e vontades de várias q ualidades e intensidades e por fim, ge ralmente, é o medo que ve nce os huma no s, e a mo ura que m vê o seu e ncanto d o b r a d o . 80 Um a das part i cu l ari dades m ai s i m port ant es que r do encant ament o quer do desencant ament o consi st e no val or at ri buí do à pal avra: é com “ gest os ca bal í st i cos” e “uns di z eres” ou “um as orações ” qu e os p a i s encant am as fi l h as; são ess es gest o s e ess as pal avras qu e é n ec essári o rep et i r, p or ve z es, para des enc ant á -l as ( “ O C i nt o da Moura ”, “As Mouras do R i os S eco 2 ”, “ A F ont e de Es pi che ”, po r ex em pl o ); out ras v ez es , é at r avés da p al avr a que a moura cri a (ou t ent a cri a r) um “pa ct o” com o fut uro desen cant ador (“ Lend a do Bol o Bran co”, “ Le nda d e Al goz ”, “ O Al m ocreve d e Es t ói ”). As mo uras enca ntadas e nsin a m, àqueles a q ue m pedem actos de coragem, o que dizer e fazer de modo a desenca ntá -las […] O conhecime nto ou o de sconhec ime nto da pala vra certa define o herói que se torna, deste modo, aquele capaz de ecoar a palavra 81 certa. Out ra part i cul a ri d ade não m e nos i m port ant e, m as do des encant am ent o é o “opost o” da pal av ra – o si l ênci o / se gredo : Em relação às mour as, o silêncio/segredo é uma das obrigações dos mortais para com ela s […] Nos contos, a mudez é se mpre um narrativo, estado uma inter médio, suspensão do uma ser espécie que de parênteses corresponde a uma 80 Maria Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras , p. 22. Maria Teresa Meireles, A Palavra e os seus ecos, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2006, p. 26. 81 61 prova/provação e que conduz, a maioria das vezes, a um assumir pontual da palavra e da acção por uma outra personage m. 82 É fundam ent al gu ar dar se gredo, enqu an t o dura o processo que l evará ao d esen cant ament o ( “A C obri nh a do Ba rran co”, “ A Lend a do Bol o B ranco ”, “ A Lend a de Al goz ”, “ O Al m ocrev e de Est ói ”, “A M oura C ássi m a”). E m ui t as vez es, de fact o, essa “m udez ” provoca a curi osi dade ou a d esconfi an ça de out r as persona gens, qu e ac abam por agi r e rrad am ent e, i nt erferi ndo ness e processo e com pr om et endo o s eu resul t ado (“ Lenda do Bol o Br an co”, “ Lend a de Al goz ”, “A M oura C ássi m a”). Trat a -s e, port ant o, de um pa ct o , um a t roca , um cont rat o , um a pr omessa , e, com o t al , deve se r r espei t a do por am bas as p ar t es (“A t roca, acom p anhada ou não de pal avra s, conduz a acção e, de um m odo ger al , redi r ec ci ona -a. 83 ). S e um a del as fal ha, f al ha a t roca , fal t a-se à prom essa , desfaz -se o cont rat o , quebra -se o pa ct o … e o el em ent o caus ador dest a m udança d e p l anos deverá est ar prepar a do para pa ga r pel a sua i ndeci são ou i népci a, sofrendo um a part e das cons equênci as que são sem pre nefast as par a a m bos os i nt erveni ent es. 82 Idem, pp. 27 e 28. Maria Teresa Meireles, A Troca, Lisboa, Apenas Livros Lda., 200 5, p. 12. 83 62 4 .2 . O LOBIS OMEM Co mo a própria designação sugere, trata -se de um ser híbrido de lobo e home m. Existe na mitol ogia popular da generalidade dos países e perdem -se na penumbra dos te mpos as referências que lhe são feitas. Não há, por isso, unanimidade relativamente à origem desta superstição, situando -se as mais re motas alusões ao lobiso me m e m antiquíssimas tradiçõe s da Ger mânia, da Índia antiga e da Grécia. 84 S endo a Gré ci a o n osso “ber ço cul t ura l ”, não podem os d e i x ar de al udi r a ce rt a s cren ças e prát i cas, qu e m ai s fa ci l m ent e as s oci arí am os a out ras soci ed ades di t a s “m enos ci vi l i z adas”, m as que poderão est a r t am bém na ori gem dest a cren ça na l i c ant ropi a , que se m ant ém a ct ual : On rapporte qu’à la fête de Zeus Dieu -Loup, que l’on célébrait tous les neuf ans sur la montagne aux Loups, en Arcadie, un homme goûtait aux entrailles d’une victime humaine mélangées à des entrailles d ’anima ux; il était ainsi méta morp hosé en loup et restait loup penda nt neuf a ns; si, dura nt tout ce laps de te mp s, il n’ava it pas mangé d e chair humaine, il redevenait alors homme. Cette tradition nous révèle l’existence d’une société de canibales adorateurs du loup, dont un ou plusie urs me mbre s personnifiaient, o u passa ient pour incarner, l’animal sacré pendant des périodes de neuf années c o n s é c u t i v e s . 85 84 Alexandre Parafita, O Maravilhoso Popular, p.35. James George Frazer, Le Rameau d’Or, Paris, Éditions Robert Laffont, S. A., 1983, pp. 70 e 71: “Conta-se que na festa de Zeus Deus Lobo, que se celebrava de nove em nove anos na montanha dos Lobos, na Arcádia, um homem saboreava as vísceras de uma vítima humana misturadas com vísceras de animais; era, então, metamorfoseado em lobo e ficava lobo durante nove anos; se, durante esse lapso de tempo, não tivesse comido carne humana, tornaria à forma de homem. Esta tradição revela-nos a existência de uma sociedade de canibais adoradores do lobo, animal sagrado, que um ou vários membros personificavam, ou fingiam encarnar, durante períodos de nove anos consecutivos.” (Tradução nossa). 85 63 C om o vem os, e st a crença é ant i ga, apes ar de al gum as vari a nt es, em bora não nos f osse possí vel ap urar se as di fer ença s est ão rel aci onad as com o t em po ou com o espaço, poi s é pos sí vel que am bos os fact or es i nt erfi ram . Na Europa, se gundo a crença popular, o lobiso me m é ho me m de dia e transforma -se e m lobo à noite (particular mente quando está lua cheia) , atacando aqueles que se atravessam no seu caminho. […] O lobiso me m é uma criatura que muito dificilme nte se deixa a bater, e a sua morte po derá eventualmente ser provocada através de um se m -número de métodos arcanos, tais co mo a utilização de uma bala de prata o u da ar ma sa grada da capela de São Huberto. 86 No cent ro do p aí s e na Id ade M édi a, a credi t av a -se qu e o parent es co espi ri t u al cont raí do ent re com padres “e ra co nsi derado pel a Igr ej a i m pedi t i vo de m at ri m óni o, c ri ando um cl i m a d e m al di ção para as rel açõ es am orosas ent re com pad re e com adr e, provi ndo del as os l obi som ens segu ndo a t radi ção popu l ar desse t em po [ re i nado de D. Afonso IV] ”. 87 As ca usas da lica ntropia (transfor mar -se e m lobiso me m) são várias, entre as quais, ser -se possuído pelo demónio, ser infectado por outro lobiso me m ou usar um cinto de pele de lobo. […] A crença nos lobisome ns e voluiu na E uropa, durante a Idade Média, […] Populosos e muito te midos, os lobisome ns era m um símbolo de terror e de maldade, bem co mo da dimensão animal no ser humano. 88 Em pl eno sécul o X X, no B arl av ent o A l garv i o , “pa ra qu em cr ê em l obi som ens, é f at al a c renç a de qu e, quando al gu ém t em set e 86 Clare Gibson, Sinais e Símbolos, trad. Teresa Lopes Leal, ed. h.f. ullmann, 2008, p. 130. 87 Victor Mendanha, História Misteriosa de Portugal, Lisb o a, E dito r a Pergaminho, 3ª ed., 1997, p. 132. 88 Clare Gibson, ob. cit., p. 130. 64 fi l hos segui dos, t odos varões, o sét i m o fi l ho deverá c ham ar -se Adão, poi s, caso co nt rári o, vi rá a s er l o bi som em ”. 89 S egundo a m esm a c rença, c aso não se segui sse est a t radi ç ão e um a vez per ant e o fact o consum ado, s eri a pr eci so qu ei m a r -l he as roupas durant e um a das suas saí das no ct urnas, pa ra dei x a r de ser l obi som em . A atracção pelo lado feminino encenada pela lua e a ferocidade inerente à deusa Diana [uma das deusas da lua] re mete m para um a mbiente florestal e a nimalesco e para um contexto de caça. […] Ao níve l das características co mporta mentais verifica mo s que o lobisome m «à portuguesa » é perspectivado como um ser noctíva go, consta nte me nte marcado pela simb ologia numérica do sete, conotado com a figura do burro e não necessariamente com a do lobo. 90 Tam bém At aí de Ol i vei ra re gi st ou um a crença quas e i dênt i ca: “S e um a m ul her t i ve r set e fi l hos a ei t o, um será l obi shom em , [ …] ” 91 Falando do lobisho me m diz [“o ignorante ca mp onês”]: «Se um casal te m sete filhos, um será lobishome m, e este tem de cumprir o seu fadario. Levanta-se todas as noites, vae a uma e ncr usilhada e espoja -se, transfor ma ndo -se e m jumento , e assim tra nsfor mado a nda e m correrias, fa z endo mal a que m encontra. Toda a vez que ouvirmos can tar um galo fóra das horas costumadas annuncia a ndar p roximo um lobishome m». 92 Ao cont rá ri o do q ue suced e nout ros pont os do paí s 93 (e, event ual m ent e, nou t ros paí ses), na t ra di ção al garvi a não ex i st em l obi somens f êmeas e, de acordo com a m esm a crença, se um casal 89 José Conceição Casinha Nova , colector das “lendas inéditas” que apresentamos. 90 Alexandre Matos, B. I. do Lobisomem, Lisboa, Apenas Livros Lda., 3ª ed., 2009, p.9. 91 Ataíde Oliveira, Monografia do Algoz, Faro, Algarve em Foco Editora, s/ data, p. 204. 92 Idem, p. 205. 93 V. Alexandre Matos, B. I. do Lobisomem, pp. 4 e 5. 65 t i ver set e fi l has segui d as, a úl t i m a é “m ul her de vi rt udes ou fei t i cei ra ” (com o v e rem os adi ant e). Di ver gi ndo da c ren ça re col hi da por At aí de Ol i vei ra em Al goz , m ai s para o l ado de L a gos e S a gr es acredi t a -s e que o l ob i som em s ofre a sua m et am or fose ent re as 23h30 e a m ei a -noi t e, nas noi t es de l ua chei a, i ndepend ent em ent e do di a d a sem an a, e t od as a s sex t as fei ras, i ndep endent e m ent e da fas e em qu e a l ua se encont r a . 94 Em cert as z onas do S ot avent o, a crenç a é sem el hant e, m as c om um porm enor di f er ent e, que t am bém encont r ám os asso ci ado às br uxas e às cobras (a cap aci dad e de en t rar nas c asas pel a f echadur a das port as) : O lobisome m não se transfor ma va e m lobo mas e m burro e entrava nas casas de habitação pela fechadura das portas. A transfor mação surgia a pós se espojar no pó das estradas duma encruzilhada. Este condão també m podia acabar se mpre que fosse espreitado e lhe queimasse m as roupas, enquanto andava trannsformado e errante. Se isto a contecesse, nunca mais poderia ser lobiso me m. 95 O “l obi som e” é, m ui t as vez es, no Al garve, se gundo t e rm o ou obj ect o i m agi n ári o de com par açõ es, em conversas: ex pressões com o “fei o com o um l obi som em ”, “pel udo co m o um m acaco ou c om o um l obi som em ”, “ui vava com o um l obo ou com o um l obi som em ” e “barba, dent es ou m ãos de l obi som em ” foram po r nós ou vi das com frequên ci a. C ont udo, cont rari a m ent e ao qu e se poderi a esper ar, a penas encont rám os ci n co hi st óri as rel aci on adas com est a p er sonagem , t odas do Ba rl avent o, t rês r ecol hi das e publ i cad as por Mar gari da Tengarri nh a, e du a s recol hi d as d a or al i dade por um i n form ant e 94 T ambé m co nsiderado “dia de bruxas”, tal como a terça -feira – não deixa de ser curiosa esta associação, pois numa das narrativas recolhidas por Margarida Tengarrinha, um rapaz que dizem que é lobisomem é acusado de provocar doenças a outras pessoas, usando o livro de São Cipriano, acusação habitualmente f e i t a a b r u x a s e /o u f e it ic e ir a s . 95 Adérito Fernandes Vaz, in ALGARVE – Reflexos Etnográficos de uma Região, Faro, 1994, p.51. 66 nos s o fam i l i ar, ai nda i nédi t a s (em b ora dest as, um a se refi r a di rect am ent e ao fa ct o de se pensa r que um rapaz era l obi so m em , e a out ra ap enas r el at e um a m et am orfos e d e um burro em hom em , o que pres supõe o cont r ári o) . A associ a ção ent r e a fi gura do l obi somem e a f eroci dad e i nt eri or repri m i da é evi dent e: o aspect o, pel udo e fei o (com o pode s er f ei o o nosso l ad o escuro , dom i nado pel o i nconsci ent e ), os act os conden áv ei s , a t ra nsform ação do ho m em em l obo – o ani m al s el vagem e f eroz m ai s próx i m o do hom em , na Eu ropa , e m ai s pareci do ao cão, i no fensi vo, dom est i cad o, dóci l . 96 […] poderemos afir ma r que o ima ginário que envolve o lobiso me m e m Portuga l reme te para uma vora cidade interior não totalme nte expressa, p ois estes relatos da nossa tradição oral mo stra m um lobiso me m inferiorizado, mais vítima que ac usador, m a i s «d i g n o d e c o m i s e r a ç ã o q u e d e ó d i o », c o n f o r m e p a l a v r a s d e Consiglieri Pedroso. Le mbra o Diabo… ta mbé m não t ão mau como o pintara m. Na tradição popular portugue sa, sobrevive -se ao ataque, convive -se com o inimigo. Em contrapartida, noutras culturas, a aparição do lobiso me m implica uma c hacina bestial, onde não há sobrevive ntes dessa raiva interior, besta primord ial encarcerada como uma bomba -relógio pronta a explodir numa noite de lua cheia e no ma gnetismo desse luar. Talvez a ferocidade lupina permaneça no humano mais do que no lobo; afinal, o maior predador receia, não os animais selvagens, mas a besta escondida em si. 97 Tal com o no rest o d o paí s, o l obi some m al garvi o n ão p are ce ser m ui t o feroz nem co m et er grand es at ro c i dades, t al com o é refe r i do p o r Al ex andre P ar af i t a: Sendo e mbora uma criatura medonha, co m a qual ningué m ousa enco ntrar -se, o lobisome m é co nsiderado por muitos co mo 96 Alguns cães e alguns lobos são tão parec idos que podem ser confundidos: estarão estas semelhanças na base da ideia de falsidade – pensa-se que é um cão, mas é um lobo / pensa -se que é um homem, mas afinal é um lobisomem? 97 Alexandre Matos, ob. cit., p.16. 67 um ser bom e ino fensivo, que apenas cumpre um fadário com o seu próprio tormento. 98 Tal vez por est as raz ões, em P ort ugal (cuj os habi t ant es são conheci dos pel os seus “brandos cost u m es”), apa reç a o l obi somem t am bém t ransfo rm a do em bur ro, ani m al que, s e po r um l ado é dom est i cado e aj uda o hom em nas suas t aref as, por out ro, dá coi ces e é cor rent e (p el o m enos no barl avent o al ga rvi o) que t am bém não devem os aprox i m ar -nos da cabeç a, poi s quando agarr a al gu m a coi sa com os dent es nun ca m ai s a l a r ga, fi cando p reso ao obj ect o ou à pes s oa que t ri ncou. No ent ant o, não é u m ani m al feroz , com o o l obo, há nel e um a cert a m ansi dão e, at é m esm o, subm i ssão. O burro, «a sno o u jumento » é uma criatura d e simbolismo contrastante, que inclui o perigo, a po breza, a obstinação, a estupidez, a loucura e a preguiça, e, por outro lado, a virilidade, a paciência, a corage m, a brandura e a ge ntile za. […] Os cristãos considera m o burro um símbolo do mundo pagão, […] U ma vez q u e e r a u m a n i m a l d e s a c r i f í c i o , o b u r r o p o d e s i g n i f i c a r a mo r t e ; uma vez que carrega pe sos, pode representar os pobres. 99 É, t al vez , de sal i entar, o fact o de t rês d as ci nco l endas em que s e dão m et am orfos e s, est as serem em b urros , ai nda por ci m a porque, at é há ce rc a de q uarent a anos, ai nda havi a l obos nas m at as do Al ga rve (nom ead am ent e na m at a de B a rão de S . J oão, próx i m a da l ocal i dade onde fora m recol hi das duas d est as l endas). O lobo é, de todos os animais, o que mais se te m prestado à incessante a valiação do huma no e ao seu confro nto com o ou tro animal; ele não é tanto um estranho vindo do exterior para a meaçar o nosso alime nto ne m a nossa integr idade humana ou a nossa humanidade intrínseca, mas um outro interior, que coabita connosco, nos nossos e spaços do mésticos, rondando a capoeira ou o átrio, vive ndo mais na orla da floresta do que nas suas profundezas, e que também coexiste com cada um de nós, partilha 98 99 Alexandra Parafita, O Maravilhoso Popular, p. 36. Clare Gibson, ob. cit., p. 104. 68 da nossa natureza íntima mais indo má vel, c onstituindo uma das figuras mais regulare s dos mais primitivos sedimento s da nossa identidade. É igualmente deste convívio com o lobo interior que a tradição popular fala, para que esteja mos se mpre cientes do livre trânsito que existe no reino animal, e que as cercas dos currais, as vedações das ho rtas e os muros das quintas existem para ser transpostos mantenha. no nosso imaginário para que a circulação se 100 No ent ant o, M ari a Ter esa M ei rel es a fi rm a, bas eada t am bém num cont o apresent ado por J osé Lei t e de Vasconc el l os (“ Os Fi l hos do C arvoei ro” ), q ue, nout ras r e gi õe s do paí s, o l obi somem é confundi do c om o gi gant e e com o ol harapo/ ci cl ope , sobret udo porque “com e m eni nos”, m as t am bém porque “bebe vi nho at é fi ca r mei o t ont o”. C oncl ui que o Ol harapo é “perm ut áv el co m out ros ent es com o sej am a Brux a, o Lobi som em e o Al i córni o ”, por apreci arem ca rne hum ana e poss uí rem for ça e/ ou t am anho s uperi ores, pel a s ua “brut al i dade e voz medonha ”, assust ando “herói s e n ão -he rói s”. 101 Trat a -s e, pel os vi st os, de casos pont ua i s de cont os t al vez m ai s ant i gos e de r e gi ões supost am ent e m ai s agrest es, onde t am anha feroci d ade t er á subsi st i do por m ai s t em po. C om o j á di ssem os, nas l endas do Al garv e n ão ex i st em est as “de sm esuras”. 100 Ana Paiva Morais, B. I. do Lobo, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2ª ed., 2005, p. 23. 101 Maria Teresa Meireles, Gigantes, Olharapos e Outras Desmesuras , Lisboa, Apenas Livros Lda., 2005, pp. 33 a 35. 69 4 .3 . A S EREIA Monstros do mar, co m a cabeça e peito de mulher e o resto do corpo igual ao de um pássaro ou, segundo as lendas mais tardias e de origem nórdica, ao de um peixe. As sereias seduziam os na vegadores pela be leza do seu rosto e pela melodia dos se us cantos, atraindo -os par a o mar e devorando -os. […] Fez-se delas a image m dos perigos da navega ção marítima ; depois, a própria imagem da morte. […] na ima ginação tradicional, aquilo que prevaleceu das sereia s foi o simbolismo da sedução mortal. 102 Tam bém C arl os Gar cí a Gual nos dá um a defi ni ção s em el ha nt e, acres cent ando que n ão t êm “nom es i ndivi duai s” e que “pert encem à cat e gori a m í t i ca d e daí mones fem i ni nos que causam p rofun do t em or por est ar em próx i m os do m undo da m ort e . C om o as Es fi nges, as Erí ni as, as Ke res e as Harpi as. ”. 103 No ent ant o, a sua o ri gem é, no m í ni m o, confusa, por ex i st irem di versas versõ es que a t ent am ex pl i car: Na mitologia grega são filha s da musa Me lpome ne e do deus-rio Aqueloo, ou de Aqueloo e de Estérope, ou de Portáon e de Êurite, ou de Aqueloo e de Terpsícore, ou de Fórcis, o deus marinho, ou de Aquelo o e da musa Calíope. […] Segundo Libâ nio (ainda outra versão), as sereias nasceram do sangue de Aqueloo quando este foi ferido por Hércules. 104 J orge Luí s Bor ges d i z -nos o segui nt e: 102 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Lisboa, Editorial Teorema, 1994, p. 594. 103 Carlos Garcia Gual, Dicionário de Mitos, trad. Anselmo Borges e José Ribeiro Ferreira, Cruz Quebrada, Casa das Letras/Editorial Notícias, 1ª ed., 2005, p. 229. 104 Ana Maria Freitas, B. I. da Sereia, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2ª ed., 2005, p. 15. 70 Ao longo do te mpo, a s Sereia s muda m de forma. O se u prime iro historiador, o rapsodo do décimo segundo livro da Odisseia , não nos diz como era m; par a Ovídio, são aves de pluma ge m a ver melhad a e cara de virge m; para Apolónio de Rodes, de metade do corpo para cima são mulheres e para baixo aves marinhas; para o mestre Tirso de Molina heráldica), são «metade mulheres e metade peixes ». Assi m , as serei as não for am sem p re (e para a 105 donz el as l i nda s e s i m pát i cas, com bu st o de m ul her , cau da de p ei x e e voz canor a, i m agem i m ort al i z ad a por H ans C hri st i an Ande rson na fi gur a da “pequen a serei a ”, re cent em ent e r ecupe ra da e propa gada pel a Di sne y (e que s e ap rox i ma d e Mel usi na ) . Es t a i m agem m ai s re cent e d a s erei a par ec e t er si do o resul t ado de um a evol ução em que se m i s t uraram vári os m i t os ant i gos. Não me nos discutíve l é o seu género; o dicionário clássico de Le mprière ente nde que são ninfas, o de Quicherat diz que são mo nstros e o de Grimal que são demó nios. 106 Ei s al gum as sem el hanças j á re gi st adas por out ros est udi osos: As Sereias têm uma voz sedutora. Mas o seu encanto reside, mais do que no seu to m musica l, na infor ma ção muito atrae nte que oferecem ao navegante para torná-lo sábio. Nisso parecem-se com as Musas, porque sabem tudo o que aconteceu e cantam -no, mas os seus contactos não são com o mundo celeste, mas com o mundo dos mortos. Nã o sabe mos se para atra ir cada viajante lhe oferece m um cha mariz diferente e pessoal, ma s o odisseico parece estabelecido de modo especial para o curioso Ulisses, ávido de ouvir as suas próprias façanhas e notícias sobre os seus compa nhe iros de Tróia. 107 Mas as parecen ças c om as Musas cont i nuam , t am bém pel o fact o de usarem a sua voz sedut ora com o at r a cção: 105 106 107 Jorge Luís Borges, ob. cit., p.181. Ib i d e m . Carlos Garcia Gual, ob. cit., p. 230. 71 Mas enqua nto as Musa s e mite m um ca nto festivo e dança m alegres ao serviço de Apolo, as Sereias estão relacionadas com a Morte, e de modo especial co m a deusa Perséfo ne. E m muitas tumba s erigia -se a e fígie de uma Sereia – ou e ntão de uma Esfinge – para que fo sse guardiã do morto, protegendo o se u último lar. 108 Não é de est ranh ar e st a pare cenç a com a Esfi nge: Sob influê ncia do Egipto, que representava a alma dos defuntos sob a for ma d e um pássaro co m cabe ça humana, a sereia foi considerada a alma do morto que não cump riu o seu destino e se transfor mo u num va mpiro devorador. Entretanto, de gé nios perversos e de divindades infernais, tra nsfor mara m -se em divindades do alé m que enca ntava m, co m a har monia da sua música, os Bem-Aventurados que tinham atingido as Ilhas Afortunadas; é sob este aspecto que são representadas nalguns sarcófagos (GRID, 425). 109 No ent ant o, pare cem t er est ado desde se m pre l i gad as aos m ares, quer t enh a si do por i nfl uênci a d a Odi sse i a , quer est a obr a t e nha si d o j á i nfl uenci ada po r out ras l endas, ev ent ual m ent e, m ai s ant i gas. O no me de Sereias, seirenes, pôs-se e m relaç ão etimoló gica c o m s e i r i o s , « a r d e n t e » , «c á l i d o » , o q u e a p o n t a r i a p a r a q u e s ã o , na sua orige m, co mo uns de mó nios do calor meridia no; e co m s e i r á , « c o r d a » , « a t a d u r a », p o r q u e c o m o s s e u s f e i t i ç o s e n c a d e i a m os seus ouvintes. 110 O idioma inglês di stingue a Sereia clá ssica ( siren) das que têm cauda de peixe (mermaids). Na formação desta última ima ge m teria m influíd o por analogia os T ritões, divindades d o cortejo de Posídon. 108 109 110 111 111 Id e m , p . 2 2 9 . Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 594. Carlos Garcia Gual, ob. cit., pp. 231. Jorge Luís Borges, ob. cit., p.182. 72 Na opi ni ão d e C arl o s Gar ci a G rual , “as Nerei das são o que m ai s s e par ec e com as n ossas ser ei as [ …] em bora sem caud a d e pei x e”, poi s , ai nda se gundo o m esm o aut or, as “Ner ei das vão e v êm pel os es paços m ari nhos, descem aos fundos, on de habi t am no pal áci o de s eu pai [ Nereu] , e por vez es saem a bri ncar ent re as o ndas e a di vert i r -se [ …] saem a saudar os nave gant es, nad ador as ágei s, brancas e espum osas ”. 112 A passa gem d e av e s para s em i -pei x es t am bém é ex pl i cada por vári os aut ores: […] As Sereia s seria m as co mpa nheira s de Perséfone (e m latim Proserpina) meta morfoseadas pela sua dor em mulheres ave, lutuosas e lamuriosas, depois do rapto de Perséfone por Hades. 113 E de di versas form a s: Mas o mitógra fo Higino (na sua fábula 141) atribui à d eusa De méter a conversão das ninfas e m Sereias c omo um ca stigo por não terem velado bem pela sua filha [Perséfone]. Pausânias acrescenta um apontamento, ao referir (em IX, 34.3) que num certa me disputara m as Musa s e as Sereias. As prime iras ve ncera m e com as plumas das suas rivais fizeram coroas. Tristes Sereias desplumadas! 114 Mas se gundo Mari a Teres a Mei r el es, a ser ei a t am bém j á foi repres ent ada com m et ade do corpo de serp ent e, o qu e , na sua opi ni ão, a aprox i ma da moura encant ada , e am bas da mel usi na – “um a vari ant e de es peci al prest í gi o fol cl óri co é a da S erei a que se enam ora d e um hum ano e por m om en t os é m ul her, com o a fada M el usi na” 115 A sereia, o mais híbrido dos entes femininos (inicialmente muitas vezes representado com a sua metade animal de serpen te e 112 113 114 115 Carlos Garcia Gual, ob. cit., p. 179. Idem, pp. 231. Idem, p. 232. Ibidem. 73 não de peixe), aproxima -se, por sua vez, da figura da moura encantada mas, ao contrário desta, vive e sobrevive na água salgada, geralmente local de nascime nto de seres mais maléficos e masc ulinos. Ana Mari a 116 Frei t as t am bém refe re e st a prox i m i dade c om Mel usi na : Melusina, a mulher ser pente, entra ne sta cate goria, pois «La queue de poisson est a nalogue à la que ue de se rpent». 117 P ara L. Har f - La nc ner, há doi s t i pos de fadas, as d e t i po «m organi en » e as de t i po «mel usi en »: 118 No caso das fadas e dos con tos de tipo «melusien», há um encontro entre a fada e o mortal, um pacto que se estabelece entre a mbos e a violaç ão desse pacto por parte do huma no, o que leva ao desaparecimento conve niente linha ge m. da fada, não sem antes deixar 119 E Mari a Te resa M ei rel es a cres cent a , ci t ando J ai m e C ort esão: Jaime Cortesão, no seu Romance das Ilhas Encantadas , repete a ideia e noção de fada -sereia melusina, capaz de dar origem a linhagens e elites locais”. 120 E cont a a “ Lend a dos Mari nhos”, que se re fer e à o ri ge m da fun dação d a Il ha d a Madei ra, cham an do -l hes mul here s m ari nhas e ondi nas . Mulher lendária dos romance s de cavalaria, d e uma grande beleza, mas por vezes transfor mada em serpente. Génio da 116 Maria Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras , p. 20. Jean Markale, Mélusine, Paris, Éditions Albin Michel, 1993, p. 117, apud Ana Maria Freitas, ob. cit., p. 8. 118 L. Harf-Lancner, Les fées au moyen age, Morgane et Mélusine, la naissance dês fées , Librairie Honoré Cha mpio n, Paris, 1984, a p u d M a r i a Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras, p. 15. 119 Maria Teresa Meireles, ob. cit., p. 15. 120 Ibidem. 117 74 família dos Lusignan, ela aparecia na torre do castelo e lançava gritos lúgubres, de ca da vez que um Lusignan ia morrer. U m roma nce do século XV popularizou a lenda […]. 121 Desde t em pos i m em orávei s que as ser ei as povoam o i m agi n ári o col ect i vo dos povos que habi t am j unt o a o m ar. Ao contrário do que seria de esperar, a sereia t em uma presença quase nula nos nossos contos e, mesmo nas lendas, sur ge de uma for ma quase envergonhada. 122 Não dei x a de ser curi oso, est ranho, at é, que no Al garv e, t err a de pesc ador es, vi ve ndo a m ai ori a da po pul ação à b ei ra -m a r , haj a t ão poucas hi st óri as pro t agoni z adas por est e s seres, […] o certo é que estas figuras sobrenaturais da água, com tanto peso nas mitologias das diferentes áreas do globo terrestre, se apaga m um pouco no ima ginário representado pelos contos. Sobram marinhas as mouras puxadas encantadas, ninfas para pela terra de poços estranha e ribeiras, tendência do ima ginário português, já referida por Leite de Vasconcello s, de virar as costas ao mar. 123 E a ex pl i cação pode ser, preci sam ent e , que a moura encant ada acabou por, de al gu m a form a, si nt et i z ar t odas as fi gur as fem i ni nas m ai s ou m enos peri gosas, m ai s ou m en os sedut oras, m ai s ou m enos capaz es de s e m et a m orfosear em , ocupa ndo os l ocai s i naces sí vei s aos 121 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 448: “uma fada de uma beleza maravilhosa promete a Raimondin fazer dele a primeira personagem do reino, se ele aceitar desposá -la e nunca a ver aos sábados. O casamento realiza -se, a fortuna e os filhos coroam a sua união. Mas o ciúme apodera -se de Raimondin, a quem fazem acreditar que sua mulher o enganava, e este espreita, por um buraco na parede, Melusina que, um sábado, se retirara para o seu quarto. Ela está a tomar um banho e ele descobre que ela é metade mulher e metade serpente, como as sereias eram metade peixe ou metade pássaro. Raimondin fica cheio de dor, Melusina traída voa, não sem deixar de clamar a sua pena com gritos horríveis, na torre do castelo.”. 122 Maria Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras, p. 20. 123 Ana Maria Freitas, ob. cit., p. 7. 75 hum anos – cov as, grut as, roch as, ci st e r nas, ri os, pe gos –, m ovendo s e nos quat ro el em e nt os. A moira, à se melha nça da sereia e com ela se confundindo por vezes, é uma representação fragme ntária do fe minino e co mo tal inco mpleta e incor rendo nos perigos de qualquer for ma de hibridez. Na realidade, a ima ginação humana deliciou -se multi- plicando uma image m dividida de mulher que prima va por uma insistência absoluta no corte entre a parte superior e a inferior, sendo a primeira gera lme nte humana, e nqua nto que a segunda podia assumir a for ma de diversos anima is: serpente, cabra e peixe são os mais comuns. Essa divisão não foi certamente ingé nua, visto a parte superior do corpo ser considerada mais espiritual, por se e nco ntrar ma is alta, ma is «livre » do peso da gravidade, enquanto a outra parte, conotada com a parte sexuada do corpo, se tornava a mais baixa a vários níveis, aquela que se encontra mais próxima do chão e da sua simbólica. 124 S e a m et am orfose da part e de bai x o do corpo em pei x e (serei a ) e em se rpent e (mo ura encant ada ) n ã o dei x a de t er co not ações s ex uai s, a m et am orfose em cabra (dam a pé -de-cabra e Me l usi nas ) perm i t e conot ações dem oní acas (com o verem os) , pel o que t odas s i m bol iz am a t ent a ção , o que n ão e nt ra de m odo al gu m (pel o cont rári o) em cont r adi ção n em com a s i m bol ogi a l i gada à nat urez a, nem com os própri os ri t uai s em honra da fe cundi da de e da fert i l i dade. Tal com o a l í ngu a, t am bém as t ra di ções at r avessa ra m o At l ânt i co e cruz a ra m -se com as j á ex i stent es no cont i nent e am eri cano , e es t a ent i dade, ori gi nal m ent e eu ropei a e fem i ni na, vai enc ont rar, na Iar a e no Bot o d os í ndi os brasi l ei r os, os seus m ai s próx i m os equi val ent es , sobret udo da Am az óni a: No Brasil, […] a Iara [ou Uiara] exerce um enor me poder de sedução sobre os home ns, se melha nte ao do Boto sobre as 124 Maria Teresa Meireles, Elementos e Entes Sobrenaturais nos Contos e nas Lendas, Lisboa, Vega, 1998, p.48. 76 mulheres, razão pela qual também costuma ser chamada de BotoFê mea. Espécie de dom-joão da região amazónica, o Boto é um sedutor irresistível, co mo a Iara dos Índios Brasileiros , entidade do folclore de certo modo correspondente à Sereia da tradição europeia. Confor me rez a m várias le ndas, e m noites de lua cheia, o Boto emerge das á gu as dos rios e ve m a terra, adquirindo a for ma huma na, e m gera l masc ulina. Assim tra nsfigurado, o jove m desconhecido frequenta bailes e festejos populares, seduzindo as moça s e, por vezes, engravidando -as. 125 Est a am bi gui dad e d e géneros d eve -s e, provavel m en t e, ao f act o de a Iara t er si do, i ni ci al m ent e, um a fi gur a m ascul i na: Segundo re gistos dos p rimeiros cronistas do Brasil (séc ulos XVI e XVII), a princípio a Iara era ma sculina e c ha mava -se Igpupiara ou Ipupiara, uma espécie de ho me m -peixe que devorava pescadores e os levava para o fundo do rio. Ypú-piara, o que reside ou jaz na fonte, «o que habita o fundo das águas », e r a u m m o n s t r o a «q u e o s í n d i o s d a v a m c o m o h o m e m m a r i n h o , inimigo dos pescadores e das lavadeiras» (Sa mpaio, 1928). […] Originalmente, Ipupia r a era, portanto, uma entidade ma sc ulina, o Senhor das Águas. No século XVIII, decerto devido ao contato das lendas dos povos indígenas com os mitos da tradição greco roma na e do folclore europeu trazido pelos Portugueses, Ipupiara tornou-se a sedutora Iar a ou Uiara, que, por vezes, co mo o Boto, assume inte ira me nte a for ma huma na e sa i das águas, e m busca de vítima s. 126 Vej am os as r az õe s pel as quai s Ma ri a de Lu rdes S o ares es t abel ec e a corr esp ondênci a ent r e a Iara e a Serei a : O ter mo uiara ou y-yara, confo r me o Dicionário Tupi Guarani, significa: y, água, rio, e yara, senhora. Portanto, Iara é 125 Maria de Lurdes Soares, B.I. da Iara, do Boto e de Iemanjá, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2008, p. 3. 126 Idem, p. 5. 77 a Senhora ou Da ma das Águas, ou ainda, aquela que mora nas águas. […] 127 Confor me narra m as lendas (sobretudo dos indíge nas da região a mazónica), a Iara apresenta -se na figura de uma mulher extre ma me nte bela, dotada de um canto mara vilhoso, que costuma banhar -se nas cachoeiras, rios, igarapés e igapós, ou pentear seus longos cabelos sobre as pedras das enseadas. Ela tem corpo de mulher da cintura para cima e corpo de peixe da cintura para baixo. Os cabelos são de diversas cores, de acordo com as várias versões, inclusive louros e verdes, mas, em geral, são ne gros e liso s, co mo os dos povos indíge nas q ue dera m origem a essa lenda. 128 […] Acredita -se que ninguém consegue es capar à visão e, sobretudo, ao melodioso canto da Uiara, tal c omo que m o uvia o canto da sereia de tradição europeia. 129 Mas Ana Mari a F rei t as est abel e ce out ra s anal ogi as: Lâmias e Nixes gostam de pentear os cabelos com pentes de ouro. Aliás, esse hábito é comum à maioria das sereias. 130 Mas há out ras sem el hanças ent re as S er e i as e as L âmi as : Seres fabulosos de que os Gregos se serviam para assustar as criancinhas. […] O no me de Lâ mia s foi dado a mo nstros fe minino s que procuravam os jovens para lhe sugarem o sangue. Semelhante ao papão e ao va mpiro. 131 127 Ibidem. Idem, p. 8. 129 Idem, p. 25. 130 Ana Maria Freitas, ob. cit., p.20. 131 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 398: « De uma grande beleza, Lâmia terá sido amada por Zeus; mas a esposa do deus, H era, perseguiu-a por ciúmes e matou todo os os seus filhos. Lâmia refugiou se numa caverna e, com inveja das outras mães, perseguia os seus filhos para os raptar e devorar […].» 128 78 Quant o às N i xe, a úni ca refer ênci a qu e encont rám os é de C onsi gl i eri P edroso e est á t am bém i n t i m am ent e l i gada à moura encant ada : [...] as mo uras encantadas eram divindades ou génios femininos das águas, análo gas às nixen germânicas, às lac-ladies inglesas, às rusalki russas, às vilas sérvias, às elfen escandinava s, às naiadas grega s, etc. Era m ta mbé m, alé m disso, os génios que guardavam os tesouros escondidos no centro da Terra, crença que é comum a todos os p ovos, que conservaram vestígios desta e ntidad e mítica, que parece se r indo -e uropeia ou pelo menos e uropeia, por isso que se encontra, quase se m excepção em todos os grupos áricos da Europa. Apenas da mitologia portuguesa desapareceu a feição maléfica que e stas entidades por vezes revestem em outras mitologias, por ex. na russa; a não ser que queira mos ver um derradeiro reflexo desta concepção nalgumas superstições ainda hoje em vigor no nosso p a í s e q u e s e e x e c u t a m j u n t o à s f o n t e s . 132 Tudo l eva a cre r q ue e st am os p er ant e um a daqu el as si t u ações s obre as quai s C l a ude Lévi -S t rauss af i rm a que “não se espera ri a encont ra r a m esm a cri aç ão num l ugar c om pl et am ent e di fer ent e.” 133 (com o j á ci t ám os na pági n a 2 5 dest e t r a bal ho.): Iara, a Ondina ou Ninfa das Águas brasile ira, portanto, possui as principais características físicas e atributos da Sereia europeia (no meada me nte, a dos relatos da Antiguidade Clá ssica). Acredita -se que essa coincidência ou paralelo cultural constitui um universal da cultur a, uma vez que, a princ ípio, até onde se sabe, antes da chegada dos Portugueses, não houve contacto entre as lendas e crenças dos Índios e a mitologia europeia (Brandão, 1998).” Mas 134 ex i st em out ras sem el han ças c om a serei a e, por cons e gui nt e, t am bé m com a moura enc ant ada : 132 Consiglieri Pedroso, Contribuições para uma Mitologia Popular Portuguesa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1988, p p. 217 e 218. 133 Claude Lévi-Strauss, ob. cit., p. 23. 134 Maria de Lurdes Soares, ob. cit., p. 8. 79 A Iara costuma ser representada a pentear -se com um pente de ouro e, por vezes, segura na outra mão um espelho, instr umento s que contr ibue m para e mbelezá -la, tornando -a ainda mais sedutora. O pente e o espelho são conhecidos objectos que, na trajectória do mi to e ur opeu, fora m incorporados à representação simbólica da Sereia. […] O simbolismo do pente ultrapassa o seu se ntido vulgar, de simple s instr umento utilitário ou decorativo . «Os pêlos e os cabelos se mpre e stive ra m associados à se xualidade e indica m atributos de natureza sexual. […] Curiosamente, na palavra francesa séran, do século XIII, que designa um pente para dese mbaraçar a fibra de cânha mo ou de linho, percebe -se um eco da palavra sirene (sere ia e m francê s). Ora, «a lé m disso, o pente é, simbolica ment e, uma representação do sexo fe minino. As palavras kteis em grego, pecten em latim e pettigone em italiano designa m, aliás, ao mesmo te mpo, o pente e o púbis» (Brase y, 2002, 24). 135 Tam bém Iemanj á ap resent a al gum as se m el hanças com a Ia ra e, cons equent em ent e, c om a Serei a: […] é possível encontrar alguns traços comuns entre a Iara indígena, a Sereia européia e a figura de Iemanjá, divindade das religiões nativas dos Africanos. 136 E m sua s diversas representações, Ie ma njá […] se gura na s mãos um abebé (espécie de leque) de metal pr ateado, se melhante a um espelho. Às veze s, ta mbé m é representada segura ndo uma espada pequena e um abebé. O abebé apresenta no centro um recorte, com o desenho de uma sereia. E m outros modelos, aparece uma lua e uma estr ela. E ta mbé m u m peixe. 137 No ent ant o, I emanj á est á, pel o m en os depoi s da col oni z ação port ugues a, m ui t o m ai s próx im a da fi gura d a Vi rgem M ari a , ou m el hor di z endo, da N ossa Senhora , com o verem os adi ant e. 135 136 137 Idem, pp. 13 e 14. Idem, p. 3. Idem, p. 15. 80 4.4. A MORTE Desde se mpre a ideia da morte, ou o mistér io insondáve l que a envolve, constitui para o ho me m a sua maior obsessão. Por se tratar de um mo me nto único, um mo mento em que todos os anseios e ilusões terminam e todas as luzes se apagam para se mpre – um mo me nto que escolheu o ho me m, entre todos os seres vivos, para se r o único a ter consciência desse final e a aguardá -lo como que m e spera a vinda, irre mediável, de um pavoroso fantasma –, não ad mira que a morte tenha ta mbé m um lugar personificado na mitologia popular . 138 No i m a gi nári o do povo al garvi o, a p ersona gem al e gó ri c a da mor t e aprox i m a -se do conheci do “ cei f ador”, em bo ra sej a sem pre refe ri da com o um a persona gem f em i ni na: é um esquel e t o ( uma mi r r a ) com um m ant o pret o com cap uz , dei x ando ver pouco ou quas e nada da c avei ra que cobr e, e se gu rando um a gadanha, sí m bol o d a cei fa, porqu e an da cei f ando as vi d as . Num dos nosso s t ex t os, apare ce com o “ um a vel ha m ui t o vel ha, vest i da de l ut o e com um a val ent e gad anha na m ão” ( LM O 3). Enquanto símbolo, a morte é o aspecto perecível e destruidor da existência. Indica o que desapare ce na inelutável evolução das coisas: está ligada à simbologia da terra. Mas é ta mbé m a introdutora nos mundos desconhecidos dos Infernos o u dos Paraísos; o que mo stra a s ua a mb ivalê ncia, assim co mo a d a terra, e a aproxima, de qualquer modo, dos rituais d e passage m. Ela é revelação e introdução. […] Isso não impede que o mistério da morte seja tradicionalme nte se ntido como angustia nte e representado com traços assustadores. É, levada ao má ximo, mais a resistê ncia à mudança e a uma forma de existência desconhecida, do que o medo duma reabsorção no nada. 138 139 139 Alexandre Parafita, O Maravilhosos Popular, p.38. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 460. 81 E é assi m que é represent ada e en ca rada nas hi st óri as que conhec em os: t em i da e i nex orável , apes a r de h aver, por v ez e s, quem pens e que pode e t ent e enganá -l a. Trat a -se de um a at i t ude cont radi t óri a po r p art e d e qu em a t em e, goz ando -a, ch am ando -l he “com adr e m ort e” ( ou “D. Mort e”, co m i roni a) , aparent a ndo um parent es co com el a, cri ando, assi m , prox i m i dade, par a t ent ar convenc er -se d e que , agr adando -l h e, pode “suborná -l a”, fi c ando por cá m ai s al gum t em p o, e/ ou p ara i l udi r o t error d e que se é i nvadi do quando el a, fi nal m ent e, ap are ce (nas hi st óri as recol hi das , só um i ndi ví duo se di spõe a esper á -l a, conv e nci do d a i nut i l i dade de um a t ent at i va de fu ga ) . Ao procurar os princípios da vida, as energias puras do sagrado, que a suste nta m misturando -se, o ser (coisa, organismo, consciê ncia ou sociedade) aproxima -se me nos dela do que se afasta. […] Retendo na existê ncia o ser que morre de não morrer, esta gravidade aparece co mo a réplica exa cta do ascende nte exercido pelo sagrado sobre o profano, se mpre tentado a renunciar à sua parte de duração em troca de um sobressalto de glória efémera e dissipadora. O sagrado é aquilo que dá a vida e que a rouba, é a fonte donde ela corre, o estuário onde ela se perde. Mas é igualmente aquilo que em caso algum se poderia possuir plenamente ao mesmo tempo que ela. A vida é desgaste e perda. Ela obstina -se em vão em perseverar no seu ser e em recusar -se a qualquer dispêndio, a fim de me lhor se conservar. A mo rte espreita -a. Não há artifício que valha. Todos os viventes o sabem ou o pressentem. Conhecem a escolha que lhes é deixada. Receiam dar-se, sacrificar-se, conscientes de dilapidarem assim o seu próprio ser. Mas reter os seus dons, as suas energias e os seus bens, usá -los prudente ment e co m fins tota lme nte práticos e interessados, por conseguinte profanos, não salva seja quem for, no fim, da decrepitude e do túmulo. T udo o que se não conso me, apodrece. É por esta razão que a verdade permanente do sagrado reside simultaneamente na fascin ação da chama e no horror da putrefacção. 140 140 Roger Caillois, ob. cit., pp. 134 e 135. 82 P ara al ém dest a i m a gem d a mort e , há t oda um a sé ri a de si nai s que a anun ci am : Quando esta ave nocturna [os solitários] chegava junto dos mo nte s (habitações) ha via grande agoiro, porque os se us ca ntos trazia m o a núncio da morte. Era o pássaro azarento de grande respeito pelo ma u pre ssá gio que deixa va a s fa mília s triste s a esperar a morte dalgum e nte. Se para mais azar ha via algué m doente, todos pensava m nesse, e mbora não o dissesse m. 141 Tal com o o pi ar des t a ave, t am b ém o ui var dos c ães sem p re foi t em i do com o a goi ro ; sobret udo se um c ão ui vasse um a noi t e i nt ei ra, t oda a gent e di z i a que, em breve, m orreri a al guém da cas a para a qual el e est i vesse vi rado enquant o ui vav a. O mau ol hado de quebrant o e os bruxedos , em ca sos ex t remos, ou si m pl esm ent e dei x ando -os avançar sem os cont rari ar, era m t am bém consi derad os causa de m ort e. Daí a preo cupa ção ex i st ent e em se prot e ger em , usando os am ul et os t radi ci onai s, de qu e fal ar em os a seu t em po. 141 Adérito Fernandes Vaz, in ALGARVE – Reflexos Etnográficos de uma Região, Faro, 1994, p.52. 83 4 .5 . OS MEDOS OU ALMAS PENADAS T eme m-se […] acima d e tudo, a decomposição do cadáver, a ima ge m mais sugestiva da dissolução suprema e inevitável , do triunfo das e nergia s de destruição que mina m tão perigosa me nte a existê ncia biológica como a sa úde do mundo e da sociedade. O próprio morto é um errante, uma alma p enada , enquanto a sepultura e as exéquias não tiverem feito entrar na sociedade dos defuntos aq uele que o falecime nto separou da dos vivos. Só passa a ser potência benéfica uma vez agre gado a uma nova coesão. 142 C onsequênci a do m edo da m ort e, a ssi st i m os , aqui , a um fenóm eno psi co -l i n guí st i co curi oso, de si gnando -s e a apa ri ção pel a em oção causad a no espe ct ador, um processo par eci d o ao da hi pál age, revel ador do pavor sent i do por quem vi veu sem el hant e ex peri ênci a. Em bora al guns a ut o res di st i ngam medos de espí ri t os (com o é o cas o n’ O L i vro de Al port el ) e, de fact o, ex i st am al guns fenóm enos as s ust adores s em q ual quer r el aç ão ap a rent e com as al mas penadas (com o o gat o pr et o, at i rado da fal ési a , em Bur gau, ou o c ã o gr ande pret o que ap a re ce e m S . Br ás de Al por t el , ou m esm o, ai n da nest a re gi ão, a j oei ra de f ogo “em corri d a ver t i gi nosa e gr ande su ssurro” ), a ver dade é qu e os doi s “con cei t os” e st ão associ ados, t al vez por ex i s t i r a crença de que, de al gum m odo, aquel es fenóm e nos que fi cam p or ex pl i car se devem t am bém à s al m as do out ro m undo. Ora, com o as al m as qu e “andam pe nando”, s egundo a c ren ça po pul ar, são as que ai nda não ent rar am no P araí s o, as do P urgat óri o, ex i st e qual quer coi sa d e, s e não dem oní aco, p e l o m enos pouco di vi no, m au e as s ust ador, ent re e l es. S obre est es en cont r os com espí ri t os , e i s a cr ença qu e At aí de Ol i vei ra r e gi st ou e m Al vor, assi m com o o pro cedi m ent o d e vi do, por part e da p essoa abo r dada: 142 Roger Caillois, ob. cit., pp. 55 e 56. 84 É crença geral que as almas vêem do outro mundo, e apparecem a certas pessoas, pedindo-lhes que cumpram promessas, que ella s não cumprira m, qua ndo no mundo vivia m. Sobre este ponto não há duas opiniões diversas; e contam -se milhares de acontecimentos, de alma s apparecidas e que, depois de cumpridas as pro me ssas, desaparece m. É neces sário – dize m – que o individuo a que m a alma appareceu, requeira , dizendo: – Em no me de Deus dize o que de mim queres. 143 A ori gem dest a cr ença nas al m as do s defunt os, m ovendo -se num a “re al i dade pa r al el a”, r em ont a, pel o m enos , aos C el t as : A maior das suas festas [dos Celtas], Samain, que tinha lugar na véspera do nosso 31 de Outubro, celebrava a criação do mundo, quando o Ca os se apagou perante a Orde m. Período aterrorizador, quando os espíritos dos mortos voltam para asso mbrar a T erra, a meno s que se l he s ofe reça m sacrifíc ios, e que a religião cristã simp lesme nte deslocou um dia para celebrar, a 2 de Novembro, o Dia de Finados. Os Celtas acreditavam assim nos espíritos dos morto s, isto é, na sobrevivência da alma. 144 Quando e st es enco nt ros ocorr em à n oi t e (t em os rel at os de apari çõ es dest e t i po m esm o durant e o di a, em bora s ej am si t uações m ai s raras) , é sem pr e ent r e as 23h30 e a m ei a-noi t e, e quase sem pre em cruz am ent os ou ent roncam ent os, o u sej a, encruzi l hadas , o que prova a i nfl uên ci a, ai nda, dos Lusi t an os: Acredita ndo na vida alé m -túmulo, [os Lusitanos] crema va m os corpos guardando as cinzas religiosamente, presumindo que “nas noites longas e tristes, em que as aves agourentas piavam nos bosques sagrados, as alma s dos se us a nte passados va guea va m pelas encruzilhadas dos ca minhos abertos no mato, na confluência dos rios, nas florestas, onde o choro das árvores, o cântico majestoso da folhagem, a presença misteriosa dos 143 Ataíde Oliveira, A Monografia de Alvor, Faro, Algarve em Foco Editora, 3ª ed., 1993, p. 213. 144 Gerald Messadié, História do Diabo, da Antiguidade à Época Contemporânea, Mem-Martins, Publicações Europa-América, 2001, Biblioteca das Ideias – estudos e documentos, p.148. 85 espíritos infundia m respeito e, às vezes, terror”, como nos diz Veiga Ferreira. 145 E nov am ent e o pr om ont óri o S acro aparec e, com o l ocal de com uni caç ão com o m undo dos m ort os, por ex cel ênci a: E r e c o r d e m o s , c o m o B a l l e s t e r , n o a r t i g o c i t a d o [ 146] , a correspondência da geografia com crenças e mitos das religiões antigas e essa mitologia sobre os co nfins do Ocidente, as finis terræ, as terras onde o Sol se põe e a sua conotação com o reino dos mortos. Reino mítico para onde partia m para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuíam a sua própria existência. 147 E, m ai s um a vez , a própri a t radi ção n ão nos dei x a i gnor a r as novas descobert as que nos obri gam a l i gar, por ex em pl o, prom ont óri o S acro a os cul t os ant i gos da s pedras : E Estrabão, levando -nos de novo para o me smo universo mítico [do rio do esquecimento], ac rescenta que, neste ponto extre mo do Ocide nte, «não é per mitido ofere cer sacrifício s ne m aí pernoitar, pois dizem que os deuses os ocupam àquelas horas. Os que o vão visitar pernoita m numa aldeia próxima, e depois, de dia, entra m ali leva ndo água, já que o lugar nã o o tem». Se guindo Arte midoro, autor anterior a Estrabão meio século, diz ainda «q ue não se vê ne nhum santuário de Hérc ule s […] ne m altar, ou dele ou de algum outro deus, mas que em muitos sítios há grupos de três e quatro pedras, que são pelos vi sitantes voltadas, em virtude de um costume tradicional, e deslocadas, depois de eles fazere m libações ». 148 145 Victor Mendanha, História Misteriosa de Portugal, Lisboa, Editora Pergaminho, 3ª ed., 1997, p. 32. 146 X. Ballester, “Sobre el etnónimo de los gálatas (y de los celtas)”, artigo citado por Gabriela Morais anteriormente, na obra em estudo. 147 Gabriela Morais, ob. cit., p. 36. 148 Idem, p. 37. 86 o Ora, o própri o J osé Lei t e d e Vascon ce l l os rel at a, após a sua des l ocaç ão a S a gr e s, onde r ecol heu du as si t uações l i gadas a est es m ont í cul os de pedra s : […] No extre mo do Ca bo, perto do pharol e das rui na s do conve nto de S. Vicente , ha varios monti culos de pequenas pedras, que o povo cha ma mole dros, e melédros, i. é, «moledos », dizendo m e s m o « u m m o l e d r o d e p e d r a s ». [ … ] 149 Não podem os, nest e cont ex t o, de ix ar de ci t ar O L i vro de Al port el , quando Est anco Louro, depoi s de descrever os vár i os t i pos de mêdos que apoqu ent am os nat urai s d est a z ona, e de n arr ar al guns epi s ódi os at est ados por t est em unhas, co ncl ui o segui nt e: Co mo se vê, os mêdos alportelenses, po uco ou nada difere m dos deuses habitavam maus dos também, te mpos em montes pagãos, e que, fontes, como nas os árvores, bons, nos ca minhos, nos regatos, nas cearas, etc., uns com mais no meada que outros. 150 Mas t am bém à cr e nça nas al m as dos m ort os est á l i g ad o o i ns uspei t ado e, ap ar ent em ent e, i noc ent e cost um e de p edi r u m desej o ao ver um a est rel a c adent e: Une superstition três répandue, dont il a déjà été donné quelques e xe mp les, associe les météor es ou les étoiles fila ntes aux âmes des morts. On les prend souvent pour les esprits d es défunts e n route pour l’autre mo nde. […] Dans l’Antiquité classique régnait la cro ya nce populaire que tout être humain avait son étoile dans le ciel: elle brillait d’un vif ou d’un furtif éclat suivant sa bonne ou sa 149 José Leite de Vasconcellos, RELIGIÕES DA LUSITÂNIA na parte que principalmente se refere a Portugal , Lisboa, Imprensa Nacional, 1913 (reimpressão fac-similada da 1ª ed., Vila da Maia, 1981) , vol. II, p. 205. 150 Estanco Louro, O Livro de Alportel – Monografia de uma Freguesia Rural – Concelho, São Brás de Alportel, reedição da obra original pela Câmara Municipal de S. Brás de Alpportel, 1986, p. 377. 87 mauvaise fortune, et tombait sous for me de météore quand il mo urait. On rencontre communément, aujourd´hui encore, des superstitions de ce genre en Europe. […] A son apparition, on doit, dit-on, faire le signe de la croix et prier; ou bien, si l’on formule un vœu pendant la chute de l’étoile, on peut être sûr qu’il sera exaucé. 151 Al ex andre P ara fi t a recol heu, em Tr ás -o s -Mont es, um a ve rt ent e da cren ça, s em el han t e à que co rre t am bé m no Al ga rve: O povo rural, na sua perma nente inquietaç ão perante o mistério da morte, acredita que a alma dos que morre m, após uma existência arredia das convenções divinas, tem assegurado um de dois lugares no “o utro mundo”, escolhidos co nsoante a dime nsão da sua culpa: o Infe rno ou o Purgatório. E se o primeiro representa um “castigo ete rno” e “se m re médio”, o segundo pode constituir -se co mo lugar transitório, sendo permitido que as almas, após um período de purgação das suas falta s, acabe m por obter també m um luga r no Céu. Se gundo a tradição popular, as almas nesta s circunstâ ncias volta m a este mundo a penar, e m busca de auxílios para a resolução dos male s que causara m e m vida. 152 No ent ant o, ex i st e t am bém , em bora não haj a re gi st o s no Al ga rve, o caso da dama pé -cabra, que (pel o m enos na versão de Al ex andre He rcul a no) não é um a al m a à espe r a de c um pri r o purgat óri o, m as do própri o i nferno, d aí t al vez o form at o dos pés, i guai s ao da i m a ge m t radi ci onal do pr ópri o Di abo , com o verem os adi ant e. P el o aspe ct o hum ano (pel o m e nos em part e do cor po), pel a 151 James George Frazer, ob. cit., pp. 60 e 61: “Uma superstição muito espalhada, de que já foram dados vários exemplos, associa os meteoros ou meteoritos incandescentes às almas dos mortos. São tomados, frequentemente, pelos espíritos dos defuntos a caminho do outro mundo. […] Na Antiguidade clássica reinava a crença popular de que todo o ser humano tinha a sua estrela no céu; ela tinha um brilho vivo ou furtivo de acordo com a sua boa ou má sorte, e caía sob a forma de meteoro quando ele morria. Encontram-se comummente, hoje ainda, superstições deste género na Europa. À sua a parição, diz-se que se deve fazer o Sinal da Cruz e rezar; ou então, se formularmos um voto durante a queda da estrela, podemos ter a certeza de que será atendido.” (Tradução nossa). 152 Aleandre Parafita, O Maravilhoso Popular, p. 18. 88 bel ez a e p el a at i t ude sedut ora, pel o p ac t o co m o hum ano, t a m bém se aprox i m a da moura encant ada , da ser ei a e de Mel usi na , com o j á refe ri m os. A form a m ai s e fi c az e, por i sso, m ai s usual para esconj urar es t as cri at uras e ra rez ando o “cr edo e m cruz ” ( com o a co nt ece em E LAP / M 7 ), que consi st i a em r ez ar o “C r edo”, faz endo cons t ant em ent e o “S i nal da C ruz ”, at é ac abar a o ra ção. Um caso fl a grant e de al m a que and a penando é, na r egi ão al garvi a , nos con ce l hos de La go a , d e S i l ves e de Mon chi que , m ai s concret am ent e na z o na de Odel ouc a, o d e duas das ve rsões da Z o rra Ber r adei ra , que di z em t er si do um a m ulher m ui t o m á, em vida, um a, e a out ra, um homem que t ent ou roubar um a porç ão de t erreno a out ro (a t e rcei r a v ersão r el aci on a est a ent i dade com um a m oura encant ad a, com o adi ant e ver em os). Di z G l ó r i a M a r r e i r o s : Ana Maria Baiona Carvalho, de Monchique, senhora que se m medo, exerceu o magistério primário em Posto de Ensino, pela serra dentro, fala -nos do receio que os alunos adultos que frequentavam a escola à noite, manifestavam dos « m e d o s », recusando -se a ficar mai s te mpo na s aula s para evitar a passage m e m certas encr uzilhadas perto da meia -noite. Daquilo que nos contou, no seu falar sereno e doce, concluímos: «O s medos» sur ge m como no me ge nérico que designa tudo o que «aparece », seja impre ssio nando a visã o, a audi ção ou a sensibilidade cutânea, produzindo no indivíduo atingido a sensação de fenó me no extraordinário. « A s a l m a s d o o u t r o m u n d o » s ã o c o n s i d e r a d a s «o s m e d o s » mais inofensivos. Ligadas ao mistério da morte, provocam arrepios, cabelos em pé, medo afinal, e m funç ão do desconhecido e d o «r e s p e i t o » e n ã o p r o p r i a m e n t e d o r e c e i o d o m a l q u e d e l a s advenha. Pelo contrário, é sabido que «as alma s do outro mundo » «parece m» sob vários aspectos e for ma s para pediremo paga me nto de prome ssa s ou a reposição da verdade sobre os mais variados assuntos. Encontram-se em situação de fragilidade, necessitam ainda do auxílio dos vivos para o seu sossego final. 89 Os outros «medos » sã o mais te midos, porque bruxedos ou feitiçarias. 153 Di z , ai nda, Al ex andre P ara fi t a, que na “re gi ão t r ans m ont an a é m ui t o fort e a c ren ça d e qu e as al m as daqu el es qu e m orreram dei x ando com prom isso (sobret udo dí vidas) por cum pri r, vol t am a es t e m undo a ap el ar a al gum fam i l i ar o u am i go p ara qu e l h es dêem cum pri m ent o”. 154 Ac abám os de v er qu e n o m esm o se a cre di t a na re gi ão al garvi a, m a s acr esc ent arí am os que n ão é obri gat óri o que peçam aj uda, por vez es, são as própri as al m as que vê m acaba r t rabal hos dei x ados a m ei o, com o é o c aso da l enda que re col hem os em P ort i m ão, m as q ue t am bém corr e em Monchi que, d esde há c erc a d e oi t ent a anos, se m el hant e à que ex ist e e é conh eci da e m Li sboa (ao que p are ce, co r re pel o paí s i nt ei ro ), j á re col hi da e p assada a es cri t o, m as num a v ersão l i gei ram ent e d i ferent e: a cost urei r i nha . Quando a r ecol hem os, di sseram -nos qu e, de t al m odo o ba rul ho ouvi do suge ri a a m áqui na de cost ura , que pesso as habi t ual m ent e cépt i cas, qu e não acredi t am em absol ut am ent e m ai s nad a “dest as coi s as”, a fi rm am t er ouvi do a cost ur ei ri nha . Ao que p arec e, há al guns pou cos anos que a cost urei ri nha dei x ou de ser ouvi da nest es doi s concel hos, di z endo as pessoas qu e el a j á a cabou o t rab al ho que t i nha vi ndo t erm i nar . Gl óri a Marr ei ros si n t et i z a: Luzes, suspiros, sopros, música, vultos brancos são «medos » identificados com «almas do outro mundo ». Estrondos, uivos, patadas, murros, labaredas, guinchos, vultos negros, sapos de olhos cosidos, «mirras», «rafolhões de c a b e l o s », s ã o s i n a i s d e b r u x e d o o u f e i t i ç a r i a . P ara al ém dos enc ont ros com est es s eres nas encruz i l ha das, recol hem os 153 154 al gum as “l endas u rban as”, nom ead am ent e, cas as Glória Marreiros, ob. cit., pp. 96 e 97. Ibidem. 90 as s ombr adas , ou ca sos de pessoas que afi rm am t e r sofri d o c om o s eu cont act o. S egundo A d é r i t o F e r n a n d e s V a z : Os medos ia m mais pa ra o aparecimento de a lmas pe nadas, que nas próprias casas à meia noite faziam barulhos e faziam dançar as coisas sem atacarem as pess oas. Casa por alugar num povo marítimo que tivesse fa ma de medos ningué m a aluga va e fica va abandonada. Dizia m que estava asso mbr ada. 155 Veri fi c am os, assi m , que as desi gna çõe s não são cons ensuai s, m as t am bém não a ndam m ui t o l onge um as das out ras: a l mas do out r o mundo , bruxedos ou f ei t i çari as , medos é t udo o que, i nex pl i cavel m ent e, provoca o m edo. 155 Adérito Fernandes Vaz, ob. cit., p.51. 91 4 .6 . AS BRUXAS OU FEITICEIRAS A diferença entre bruxas e feiticeiras não é pacífica e, sobretudo, não é unive rsal. Aq uilo a que uns cha ma m «b ruxa », cha ma m outros sobreposição «feiticeira » de características da e há características outra. No uma de entanto, indefinição ou uma em e um modo de uma relação às geral, concebe -se a figura da bruxa co mo superior à feiticeira na sua malvadez, nos conhe c ime ntos privilegiada com o Diabo. que possui e na sua relação 156 Tal vez por i sso, na l i ngua gem popul a r , se cham e bru xa e não f ei t i cei ra a um a m ul her consi de rad a m ui t o m á, m as a verd ad e é qu e, um pouco ao cont r ári o do qu e suc ede nout ras r e gi ões do paí s, o al garvi o pare ce não faz er gr ande di st i nção , pel o m enos na re gi ão j á ci t ada, ent re La gos e S agres, e t am bé m na regi ão de P o rt i m ão e Al vor ( se gundo a s recol ha s de Mar gari da Ten gar ri nha e de At aí de Ol i vei ra ), a pl i cando as duas desi gn açõe s ao m esm o t i po de m ul h er: com ou sem o dom de adi vi nhaç ão, m as com a “a rt e” (con c ei t o que i ncl ui o conheci m en t o e a c apaci d ade) p ara f az er f ei t i ços vá ri os – de encant am ent os a po ções m á gi cas – e o poder de vo ar ( ge ral m ent e num a vassoura ). No ent ant o, At aí de Ol i vei ra re col heu e s sa di st i nção em Al goz : Falando da s bruxas, diz o ignorante ca mpo nez: «As bruxas entram nas casas pelo buraco da fechadura, em noite alta, e sugam o sangue das crianças, reduzindo -as a esqueletos. Pelas noite s so mbria s re u ne m-se nas e ncr usilhadas e depois de prestar o preito da homena ge m ao bode preto, poem-se a gritar sinistramente; outras vezes entreteem -se a desnortear o aldeão que anda toda a noite perdido.» 156 Maria Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras , p. 23. 92 Falando da feiticeira o aldeão distingue -a da bruxa: aquella apenas está iniciada nas praticas dos quebrantos, no deitar cartas, e nas benzeduras. 157 E t am bém Gl óri a M arrei ros di z o se gui nt e: As bruxas actuaria m a partir de si mesmas c om «arte s» da sua própria natureza ou fado, podendo nada lucrar com os actos praticados. A feitiçaria, pelo contrá rio, tem carga mercenária e por isso mesmo ainda ma is te mida. Usa esconjuros e substâncias do corpo da vítima ou que transportadas por ela são susceptíveis de alterar comporta mentos e acontecime ntos consigo rela cionados. A feitiçaria pode ser praticada por qualquer pessoa ma l for mada que mo vida por ódio ou ma us instinto s queira prejudicar algué m, servindo -se d e «coisa s ruins». Essa s pessoas faze m o mal mas não altera m a parente me nte o se u viver quotidiano, por tal motivo são difíceis de identificar… 158 Al gun s el em ent os sã o -l he associ ados: o cal dei rão, a v assour a, o gat o p ret o e/ ou o s a po e/ ou o corvo – p or um l ado; o ri so f renét i co, o ol har profundo e um a at i t ude di fere nt e da de out ras m ul heres – por out ro. O cal d ei rão, sí m b ol o fem i ni no asso ci ado ao vent r e e a vas s oura, sí m bol o fál i co – am bos rel a ci onados com os ri t ua i s de fert i l i dade. O gat o pret o par ece (pel o m enos em al guns ca sos ou em al gum as re gi ões) re sul t ar de um possí vel pact o com o Di abo (assi m com o qual quer out r o ani m al pret o, com o é o caso do corvo , e ai nda o s apo ): As bruxas têm […] numa segunda etapa, pacto com o Diabo (e m consequê ncia do qual passa m a «adoptar » sapos e ga tos, muitas vezes e ncarnaç ões do Diabo e a receber a «marca do D i a b o », g e r a l m e n t e n o o l h o o u o m b r o e s q u e r d o ) . E s s e p a c t o q u e , como q ualquer pacto, pressupões obrigações, te m ta mbé m direitos 157 158 Ataíde Oliveira, Monografia do Algoz, p. 205. Glória Marreiros, ob. cit., p. 97. 93 e regalias, entre eles os de se poderem transformar no que quiserem, o de poderem voar, ou o terem acesso a poderes e conhecimentos superiores. As bruxa s são, muitas vezes, assimiladas a animai s pretos tais co mo gatos pretos, galos pretos, burros escuros, carochas (aliás, os chapéus que as bruxas usa va m obrigatoria me nte, na época da Inquisição cha ma va m -se precisa me nte «carochos » ou «c arochas ») e mosca s […]. 159 O ri so frenét i co e as gar gal hadas c onst i t uem um com port am ent o pouco re com endáv e l num a senhora, a o m esm o t em po que t êm ex pl í ci t a um a provocaç ão a quem as mar gi nal i z a e, i m pl í ci t a, um a aut om ar gi nal i z ação. O ol ha r pro fundo, ou si m pl esm ent e d i ferent e, capaz de “ at i rar ” ou “t i rar” mau ol hado e d e adi vi nha ções. As feiticeiras tê m, como se pode ver, poderes te míveis e justa me nte te midos: junta m e a fasta m a ma ntes, torna m um ho me m impotente, de sma nc ha m ca sa me ntos, fazem definhar o mais robusto, tornam estéreis as mulheres, secam o leite ao gado e fazem com que as vacas deit em sangue. É sabido que o que uma feiticeira faz, só uma fe iticeira pode desfazer, e esse jogo de forças e poderes f e i t i c e i r a s e m f e i t i c e i r a s « d o b e m » e «d o m a l » . divide as 160 Não de vem se r , po r conse gui nt e , confu ndi das , poi s est e o ut ro t i po de m ul heres, “ vi rt uosa”, com m ai s ou m enos vi rt udes, cap az es de t i rar dor es m usc ul ares ou ósseas, ap l i cando ungu ent os e faz endo benz eduras, ou si m pl esm ent e conhe ced oras da r ez a cont ra o “m au ol hado” e out ras, t am bém se gundo M a rgari da Ten ga rri nha , na sua recol ha , s ão consi de radas bruxas boas : Não só de bruxas malévolas me fa lara m, mas ta mbé m de bruxas benévolas, que curam gente e animais, conhecem boas ervas, mez inhas, be nze duras e ta mbé m sabe m relacionar as fa ses da lua com mo me ntos propícios pa ra decisões importa ntes na vida das pessoas, para os trabalhos agrícolas, e a sua influência sobre 159 160 Maria Teresa Meireles, ob. cit., p. 30. Idem, p. 44. 94 animais e plantas, ensinamentos que vêm de muito longe no te mpo e que, aliás, no caso da lua, são do conhecimento geral dos ca mponese s. 161 Quase o m esm o di z At aí de Ol i vei ra sobr e o povo de Al vor: […] Para elles há bruxas boas, (e estas curam muitas doenças,) e bruxas más, que sugam de noite o sangue ás crianças, e causa m gra ndes ma les á humanidade. 162 Gl óri a Marr ei ros f az a se gui nt e di st i nçã o: As curandeiras ou curandeiros, que são agentes de magia positiva, suscita m «re speito » mas não origina m medo porque utilizam palavras benéficas ao reequilíbrio do que foi desviado da nor malidade por forças ne gativas atravé s de más palavras o u acções, quer se trate de res tituir o marido à mulher, o cordão de oiro roubado, a saúde ao doente, a água à nascente, sem, em contrapartida, exercer vinga nça ou castigo no causador do mal. 163 Di z o nosso i nform ant e (e forne ced or das nossas “l endas i nédi t as) , proveni en t e do con cel ho d e Vi l a do Bi spo, qu e , “se os s et e descend ent es segui dos de cad a cas al forem rapari gas, a sét i m a deverá cham a r -se E va, poi s, caso cont r ári o, vi rá a se r «m ul her de vi rt udes », i st o é, f ei t i cei ra”. De a cordo com o q ue cont ar am a At aí de Ol i vei ra em Al goz , “[ S e um a m ul her t i ver set e fi l hos a ei t o, um será l obi shom em ] , se fi l has, um a será br ux a, e para que est a não sej a brux a, deverá sua i rm ã m ai s vel ha ser sua m adri nha do bat i sm o.” 164 161 Margarida Tengarrinha, Da Memória do Povo: recolha da literatura popular de tradição oral do concelho de Portimão , Lisboa, ed. Colibri, 1999, pp. 23 e 24. 162 Ataíde Oliveira, A Monografia de Alvor, Faro, Algarve em Foco Editora, 3ª ed., 1993, p. 212. 163 Glória Marreiros, ob. cit., p. 97. 164 Ataíde Oliveira, Monografia do Algoz, pp. 204 e 205. 95 Tam bém Mar ga ri da Tengarri nha (d o concel ho de P ort i m ão) corrobo r a est as i nfo rm aç ões, ao re feri r - se ao fa ct o, t am bém por nós veri fi cado, d a quase t ot al ausênci a de br uxos : Benévolas ou malévolas, são as mulheres e não os homens que aparecem nos relatos que recolhi, com os poderes e a sabedoria para curar ou provocar doenças, deitar ma u olhado ou libertar dele, adivinhar o passado ou augurar o futuro. Só num caso é que me falara m num bruxo e são poucas as histórias de lobiso me ns. […] Mas e m geral o s ho me ns aparece m com funções menos mágicas e mais concreta s e práticas, co mo ou curandeiros “endireitas”. Entretanto, não é excluída a existê ncia de bruxos, segundo a crença de que, se a uma mãe nascerem sete filhos seguidos o último está sujeito a ser lobiso me m ou bruxo, e no caso de sete filhas seguidas a última terá poderes de bruxa ou vide nte. 165 Est as cap aci dad es não são for çosam e nt e i nat as, pod em ser “pas sadas ”, m as qu ando são “he redi t ár i as”, passam sem pr e de m ãe para fi l ha, um hom e m não pode t ransm i t i -l as: Note-se que não é o pai que m deter mina este s poderes, mas sim a mãe, sendo portanto transmitidas por descendência materna, o que re mete tal crença para épocas matriarcais. 166 As cri anças, pel a sua fra gi l i dade, est ão m ai s suj ei t as a doenças e out ros m al es e, t al vez por serem i ndef esas, m as t am bém por serem um a form a fáci l de at i ngi r os seus progeni t ores, na t radi ção apare cem com o ví t i m as prefe ren ci ai s de brux as (e de cobr as ). E m vários relatos que recolhi as crianças aparecem co mo principais vítimas das bruxas, confirmando uma velha superstição, muito espalhada, que aliás leva a protegê -las com a muletos vários. 165 166 167 167 Margarida Tengarrinha, ob. cit., p.22. Ibidem. Idem, p. 23. 96 Ai nda hoj e, no Al ga rve, quando um a cri ança n asce, é com u m a ofert a dos pad ri nhos ser um conj unt o d e am ul et os em ouro , de qu e faz em part e um de do a faz e r um a f i g a , um a m ei a -l ua e m quart o cr es cent e , um pent a grama , um corno e um coração . As bruxas ou f ei t i ce i ras encont ram -se, ai nda, em al t ur as c e rt as do m ês, no m ei o dos cam pos, ge ral m ent e em z onas de encruz i l hadas, para os seus bai l es noct urnos, em que cant am , danç am e r i em e de que ni ngu ém ousa a prox i m ar -se. Dos bailes de bruxas nas encruzilhadas recolhi relatos na parte rural do concelho de Portimão. As narrativas, se demo nstra m algum te mor, ma ntê m ao mesmo te mpo a veia jocosa que caracteriza a personalidade do camponê s algarvio. 168 Di z -se que esses encont ros se dão aos sábados e em noi t es de l ua chei a ou l ua nov a. Segundo Mircea Eliade, “As correspondências e as identificações descobertas entre os diferentes planos cósmicos sub metidos aos ritmo s lunares – chuva, vegetação, fec undidade animal e lunar, espíritos dos mortos – estão presentes nas religiões mais arcaicas”. De facto, os maiores especialistas na matéria considera m que o culto da lua é muito anterior ao do sol. Segundo aquele a utor, e m alguma s religiões p rimitivas “ a festa da lua nova era exclusivamente reservada às mu lheres, dado que a lua é, ao mesmo te mpo, mãe pro missora da fertilidade dos animais e das plantas, da criação periódica, da vida inesgotável e, ao mesmo te mpo, asilo dos fantasma s”. 169 Em t odo o Al garv e (provavel m ent e, em t odo o paí s), era t radi ção, no di a da espi ga, “i r ao c am po l evar o farn el e p assar l á a t arde t raz endo um ram o de ci n co espi gas d e t ri go, rom a nz ei ra e 168 Ibidem. Mircea Eliade, Tratado de História das Religiões, Porto, 1992, apud Margarida Tengarrinha, ob. cit., p. 24. 169 97 s i l vas. As espi gas, para t e r pão t odo o ano, a rom anz ei r a, para t e r di nhei ro, e as si l vas , para a fu gent a r as b rux as.” 170 S obre os pode res d as bruxas e os seu s bruxedos , di z i a -s e o s egui nt e: A bruxa ta mbé m metia respeito ao mo nta nheiro, quando andava nas noites escuras nas alfarrobeiras bastante ramudas, onde só os mochos e os solitários (aves) canta va m. […] As bruxas, além do mal que podia m fazer, tinham poderes sobrenaturais que conduziam as famílias para o bem ou para o mal. Pessoa que a ndasse e mbruxada não gover nava vida, era uma pessoa doente. O bruxedo era uma espécie de contágio transmitido por um simp les objecto. Bastava a bruxa faze r as sua s rezas do mal sobre uma peça de vestuá rio, deitar sobre o telhado da casa um tr apo ou baraço queima do. Para todo esse poder desaparecer tinha que haver certas práticas bastante difíceis, […]. As bruxas, além de andarem nas alfarrobeiras escuras, o nde deixava m almo fadas com a lfinete s ou sapos com cabeça s picadas, ta mbé m a ndava m errantes pelos cruzeiros, lugare s assinalados com uma cruz de pedra, onde tinha morrido algué m. No campo para os ma les da bruxa ou os ma us olhados de quebranto não entrarem n os a nima is fazia m uma cruz de cal branca nas paredes. 171 E t al vez não sej a d escabi do r efe ri r qu e, em al guns cont o s de M i randa, as b rux as t êm a c apaci dad e de se m et am orf osearem , em bora r aram ent e, e m serpent e. 172 Encontrar rolos de cabelos de mulher nas encr uzilhadas não é «um medo » poré m sendo sina l de fe itiços «mal que algué m fez », gera horror pela ligação em triângulo feitiço -mulher- 170 Adérito Fernandes Vaz, ob. cit., p.52 (Este ramo era pendurado atrás da porta da rua e era trocado por outro novo, todos os anos.). 171 Idem, p.51. 172 António Bárbolo Alves, Cuntas de bruxas – Contos de bruxas, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2ª ed., 2004, p. 28. 98 cabelo, simboliza ndo este, a corda com a qual se amarra que m não deseja ser amarrado. 173 Nem sem pre é pre ci so evi dênci a dos s eus poderes: qual quer m ul her que vi va so z i nha, vi úva ou nã o, à saí da de um povoado, l evant a, pel o m eno s, a suspei t a (“di z em que é um a bruxa ”); se, ai nda por ci m a, t i ver um gat o, d e pre f erênci a, pr et o, é c e rt o que é um a fei t i cei ra di ssi m ul ada. […] Para o c amponês a característica da bruxa era a mulher bastante autoritária, de barba e bigode, com olhar felino. Sendo o homem o ser forte, tinha a mulher através do personage m da bruxa o seu poderio, marca ndo desde se mpre uma luta pela igualdade. 174 Num a soci eda d e e m que o conhe ci m e nt o não era ac essí vel a t odos e, m ui t o m enos, às m ul heres 175 , não havi a m ui t as al t ern at i vas: ou s e vi vi a de acor do com a m ai ori a, a com odando -se à con di ção de es posa e m ã e de fa m í l i a e em t udo obedec endo , pri m ei ro ao pai , depoi s ao m ari d o 176 , ou, por qual quer raz ão (que podi a i r da orfandad e pre coc e à vi uvez , ou m esm o por opção) adopt ava -se um com port am ent o di f erent e, qu e podi a ser ap enas a pr ocura d o conheci m ent o do po der cu rat i vo das pl a nt as, e assum i a -s e u m cert o di s t anci am ent o do rest o da com uni da de, que, de a cord o com a at i t ude escol hi da, r esul t ava em resp ei t o ou em m edo , ou, em casos ex t rem os, em gal hofa e p erse gui ções v ári as, cuj o ex em pl o m áx i m o foi dado pel a Inqui s i ção. 173 Glória Marreiros, ob. cit., p. 97. Adérito Fernandes Vaz, ob. cit., p.51. 175 Recorde-se, a este respeito, que, no século XVIII, um autor francês afirmava que “a mulher já era suficientemente inteligente quando sabia distinguir entre o colete e a casaca do marido”. 176 Recorde-se, também, que, já em pleno século XX, uma mulher casada só podia viajar para fora do país com uma autorização escrita do marido. 174 99 4 .7 .O DIABO E AS FORÇAS DO MAL Paralelame nte, no outro pó lo do sagrado, o demo níaco, a quem couberam em sorte os aspectos terríveis e perigosos, suscita por sua vez sentimentos opostos de recuo e de interesse, a mbos igualme nte irra cionados. O Diabo, por exe mplo, não é apenas aquele que castiga cruelmente os cond enados do Inferno, é ta mbé m aque le c uja voz te ntadora oferec e ao anacoreta as doçuras dos bens da terra. Claro que é apenas a fim de o perder, e o pacto com o de mónio nunca asse gura senão uma fe licidade passageira, mas co mp reender -se -á que não pode ser de outra mane ira. Não é meno s notável q ue o torciná rio se apresente ao mesmo te mpo co mo o sedutor, se preciso for como o consolador: o roma ntismo, ao exaltar Satanás e Lúcifer, ao parame ntá -lo de todos os atractivos, não fez mais que dese nvolver se gundo a lógica própria do sagrado certos ger me s que pertencia m de direito a estas figuras. 177 Assi st i m os, assi m , a m ai s um dos m ui t os casos em q ue a rel i gi ão cri st ã se i m pôs às i nfl uênci a s ant eri or es, poi s o s C el t as, cuj a pr esenç a foi t ão i m port ant e nest e t erri t óri o , em bor a acredi t ass em em d em óni os, com o j á vi m os, não possuí am est a pers oni fi ca ção do M al . Assim, não existe Diabo entre os Celtas. […] Resta saber co mo é que a religião, entre os Celtas, nunca atingiu esse estádio que se viu entre os Iranianos, onde hab ita naturalmente o Diabo. A origem é contudo comum [indo - europeia] e quando eles che gara m à E uropa, no terceiro milé nio, trazia m se m d úvida na sua baga ge m ele me ntos da mesma essência de pensa me nto que iria servir aos Irania nos para fabricar o seu Arimânio. 178 No Y açana , o m ai s ant i go l i vro da re l i gi ão pers a, Zoro a st ro apresent a “doi s espí ri t os gém eos”, o Es pí ri t o do Bem e o E spí ri t o do 177 178 Roger Caillois, ob. cit., p. 38. Gerald Messadié, ob. cit., p. 155. 100 M al . E no Vendi da d , out ro dos l i vros sagrados d a m esm a rel i gi ão, Ari m âni o rep resent a um pap el t ão i m p ort ant e com o o de Ai r y a naVaédj a, num a p assa gem qu e t em afi ni da des com o Gén esi s hebreu. Não repugna, pois, aceitar a hipótese de que as relações dos Persas com os Hebreus influíssem para avivar nestes a crença no grande poder do espírito mau; todavia, o que parece mais confor me co m o papel que o Diabo representa nos livros bíblicos é a suposição que já fize mos e ne nhum livro contradiz; isto é, que na religião oficial o génio mau era completa mente subordinado ao do bem, mas na religião popular, muito diferente da outra porque é acomodada a um nível intelectual inferior, e por consequênc ia mais imbuída de superstiç ões, nessa vivia a tradição do dualismo espírito bom. E era, primitivo, modificad o pela diga mo -lo assim, impressiva tão vitória do esta tradição, que passou para o cris tianismo, e ainda hoje vive exacta mente nas me smas condições, isto é, forma ndo parte das crenças populares, sem a consagração da religião oficial. 179 Mas est a fi gu ra t a m bém evol ui u, em di ferent es esp aços e ao l ongo dos t em pos e, sobret udo, pel a i nfl uênci a da Igrej a C at ól i ca: Debido al relato del Paraíso, Satanás se convertió en ele me nto inte grante de todas las historias sob re la Creació n y el Mundo, y con motivo del descenso de Cristo a los Infiernos pasó a for mar parte de las representacione s del Nuevo Testamento , especialme nte en los a utos de las se mana s de Pasíon y la Se ma na Santa. La solida creencia que se tenía en la victoria de Dios y del Cristianismo hizo que se le adjudicara en tales representaciones el esteriotipado papel del vencido, con un aire esencialmente cómico; el má s bello de los angele s se transformó en una figura fea y de aspecto animal, bajo la que se escondía el burlado e degradado. 180 179 Delfim de Almeida, “Apontamentos para a vida do Diabo – I”, in O Ocidente, Lisboa, vol. 4º, 1881 e vol. 7º , 1884, in Fernanda Frazão, Viagens do Diabo em Portugal , Lisboa, Apenas Livros Lda., 2000, p. 171. 180 Elisabeth Frenzel, Diccionario de Argumentos de la Literatura Universal, versión espagñola de Carmen Schad de Caneda, Madrid, 101 De f act o, o seu v er dadei ro p apel , i nde pendent em ent e da fi gur a com que se apr esen t e, é o d e t ent ar a hum ani dade, “re co rrendo a t odos os ex pedi ent es para conqui st a r as al m as”: Satanás não vive já apenas no Inferno; aparece na terra para tentar os mortais, revestindo todas as for mas, desde as ma is repulsivas às mais atraentes. Entra nas celas das freiras, dissimula-se no hábito de um frade. É o infatigável propagador do pecado, empenhad o na sua luta for mid ável co m os Cé us, recorrendo a todos os expedientes para conquistar as alma s. 181 C ont udo, ao cont rár i o do que suced e n out ras re gi ões do p aí s, es t a di vi ndade , sem pre m al é fi ca, nunc a se apres ent a com as suas facet as de um a cri at ura t osc a, i m pert i ne nt e e at é en gr açad a (com o é o caso do t rasgo ou do maf arri co , nom eadam ent e, em Trás -os M ont es), m as sem pre enc arnando o m al m ai or (por vez e s m esm o, t ransform ado em bo de). 182 Com os seus olhos vesgos, o pé de cabra, o nariz adunco, a barbicha ruiva, a cauda lanzuda, […] Sem a nobreza trágica de Satanás, o anjo taciturno e rebelde, príncipe tenebroso do mal e da hierarquia divina, o Editorial Gredos, 1976, p. 424: “Devido ao relato do Paraíso, Satanás converteu-se num elemento integrante de to das as histórias sobre a Criação e o Mundo, e com o motivo da descida de Cristo aos Infernos passou a formar parte das representações do Novo Testamento, especialmente nos autos das semanas da Paixão e na Semana Santa. A sólida crença que se tinha na vitór ia de Deus e do Cristianismo fez com que se lhe atribuísse em tais representações o esteriotipado papel do vencido, com um ar essencialmente cómico; o mais belo dos anjos transformou-se numa figura feia e de aspecto animal, debaixo da qual se escondia o enganado e o degradado.” (Tradução nossa) . 181 Fernanda Frazão, Viagens do Diabo em Portugal, Lisb o a , AP E N A S Livros Lda., 2000, p. 15. 182 O que não impediu uma tradição muito antiga, pelo menos no Barlavento, que consiste em dar uns nós num fio, quando algum a coisa anda desaparecida por casa, dizendo que “se está a atar os testículos do Diabo”, até que o objecto perdido apareça. Outras tradições semelhantes verificam-se no Sotavento: “Quando uma família desconfiava que andava enfegada ou embruxada ia prender o diabo e só o soltava quando se sentisse bem, com o espírito liberto. Igualmente prendi a o diabo quando perdia um objecto e conservava -no preso até o encontrar. Este diabo constava duma cruz de cana com os braços iguais e um rab o de trapo que iam esconder em lugar de segredo e com uma pedra bem pesada a esmagá-lo.” – Adérito Fernandes Vaz, ob. cit., p.52. 102 Diabo das velhas lendas é um Diabo do país das diabruras, fa mo so pelas suas pa rtidas hilaria ntes e p elas suas faça nha s maliciosa s, herói có mico criado em represália ao terror teológico do Inferno, verdadeira caricatura de Lúcifer, tornado inofensivo 183 pelo ridículo. J ack Tresi dder apre sent a u m a ex pl i cação para “ as ori gens da cabra di aból i ca”: Muito do ambíguo simbolismo da cabra esclarece -se num contexto sexual: virilidade, luxúria, astúcia e destruição no macho; fec undidade e zelo com o alimento na fê mea. […] A virilidade do bode impre ssio n ou o mundo antigo, co mo demo nstra a sua a ssociação a diversos deuse s sumero -se míticos e gregos. Forneceria muitas das características físicas de Pã e dos sátiros. Os bodes são particular me nte activos no Inver no (quando a fêmea procura o calor), o que pode explicar as imagens de cabras de palha usadas nos festivais de cereais escandinavos, realizados na quadra natalícia – uma época por vezes personificada pela cabra. Contudo, a virilidade do bode era considerada obscena pelos Hebreus. No século V a. C., o historiador grego Heródoto registou práticas sexuais bestiais no culto me ndesia no da cabra, entre os Egípcios. T al facto pode ter influe nciado o simbolismo cristão da cabra como personificação da imp ureza e da desprezível luxúria – daí as características física s caprinas do Diabo medieval, associação reforçada pela reputação da cabra no sentido da destrutibilidade malic iosa. [ … ] 184 Os rel at os descrev e m -no com a i m age m t radi ci onal , de pés de cabra e chi fres (por vez es, com um t ri dent e, com o qual , é sabi do, em purra as al m as q ue querem fu gi r, pa ra dent ro do gr ande cal dei rão do i nferno, onde e st ão penando), em b ora r aram ent e se d ei x e ver, as s um i ndo -se quase sem pre com o a fo rça qu e oper a por det rás de out ras persona gens que el e m ani pul a, com o um l obi somem , um a 183 Fernanda Frazão, ob. cit., p. 13. Jack Tresidder, Os Símbolos e o seu significado, Lisboa, Editorial Estampa, 2000, p. 60. 184 103 al m a penad a, um a m oura en cant ad a , um a brux a ou um a s erp ent e (ou um a dam a pé -d e- cab ra, nout ras r e gi ões d o paí s). En Europa, Satanás fue asimilando poco a poco las características de los dioses pagano s destrona dos, y de la mezcla de ele mentos diversos surgió el Diablo de la Edad Media. El argume nto de Sata nás imp licaba no sólo el mo tivo más a mplio del Diablo o del grupo de Diablos co mo encarnación del mal, sino que ademá s se refería tambié n al destino del ángel que en el comienzo de los tie mp os fue degradado y que a partir de este acontecimiento, llevaba rasgos individuales. 185 O que não impede a sua aproximação do homem comum, pelo contrário, uma vez que se encontra, embora “disfarçado”, no meio deles. Pelo que, também com esta figura encontramos o pacto, a troca, (embora mais frequente nos contos). Quando lemos contos tradicionais, muitas vezes esquecemo-nos de que estão inseridos numa determinada cultura, a cultura popular, e que reflectem uma forma de entender e de enfrentar o mundo que não corresponde à d a cultura oficial ou dominante. Um dos aspectos que numa primeira leitura dalgumas das versões resulta mais curioso é o do jogo (e utilizamos esta palavra muito consciente mente) dos heróis com o Bem e o Mal para conseguirem sobreviver. Este jogo é impensá vel na óptica da Igreja Cristã, que propugna como pecado toda aproximação ao Mal de eterna. que há que redimir-se para alcançar a vida 186 185 Elisabeth Frenzel, ob. cit., p. 424: “Na Europa, Satanás foi assimilando pouco a pouco as características dos deuses pagãos destronados, e da mescla de elementos diversos surgiu o Diabo da Idade Média. O argumento de Satanás implicava não apenas o motivo mais amplo do Diabo ou do grupo de Diabos como encarnação do mal, mas para além disso referia -se também ao destino do anjo que no começo dos tempos foi degradado e que a partir deste acontecimento tomava iniciativas individuais.” (Tradução nossa). 186 Laura Badescu e Marta Negro Romero, O conto dos enganos ao Diabo nos limites da romanidade, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2007, p. 17. 104 Também a associação do Mal com a serpente é bastante antiga: A serpente antiquíssimo como animal antagonismo entre maligno o Bem e resulta o Mal. do Já o encontramos no mundo oriental e persa muito antes do mundo cristão. O cristianismo como uma personalidade seres diabólicos, como maior, a herdou o mito do Diabo e bruxa, dele a surgiram serpente e outros outros animais fantásticos que também são fonte de lendas. O cristianismo perpetuará, através da identificação da serpente com o Mal, este tipo de lendas, contribuindo para difundir o medo da serpente na cultura popular. 187 187 António Bárbolo Alves, ob. cit., p. 28. 105 4 .8 . AS “ SANTAS CA BEÇAS” Ex i st e , em Al j ez ur , um a l enda (cuj a ve r aci dade é at est ad a, por es cri t o, pel o P adre Bene fi ci ado F ranci s co Di as C anel l as, em 1713, e pel o P ri or Encom endado, J oão P edro Dini z Land ei ro, em 1846), que at ri bui poderes sob renat ur ai s, capaz es de cur ar doen ças, a du as cavei r as que pe rt e nceram a doi s ho m ens que t am bém em vi da curavam v ári as m al e i t as a quem del es se aprox i m ava. Não const a que os hom ens, pai e fi l ho, fossem i nst ruí dos em ervas m edi ci n ai s, nem em art es m á gi c a s; segundo o P adr e C anel l as, ant es vi vi am t ão v i rt uos am ent e e t ão de com um a cordo com a vont ade de Deus, q ue l he t eri am si do concedi dos est es do ns, sendo i gual m ent e prot e gi d os de t odo o m al , a o pont o de dei x are m de se r vi s t os quando os el em ent os do S ant o Ofíci o se aprox i m avam para os l evar, após t e re m si do denunci ados. Não podem os, assi m , a grupá -l os com os brux os ou fei t i c ei ros de que j á fal ám os. E t am bém , em bora t al vez se aprox i m assem m ai s des t es, não pod em os i ncl uí -l os no gru po dos sant os, poi s não são reconhe ci dos com o t al pel a Igr ej a C at ól i ca. No ent ant o, a ven e ração das cav ei ras não se afast a m ui t o do ant i go e conheci d o “cul t o d e c abe ç as”, d e cuj a ori gem cel t a Gabri el a Mo rai s t am bém nos fal a: […] culto das cabeças, no meado igualmente como celta, por Alinei e Benozzo. Sabe -se, historicamente, que um dos costumes mais correntes, e ntre os Celtas, era a decapitação. Há exemplos de decoração arquitectónica celta com incorporação de crânios nas paredes. Porquê? Talvez por considerarem que era na cabeça que se situa va a força vital e, ta mbé m, a s qua lida des de corage m e honra, temas que, aliás, estão bem presentes nos romances de cavalaria medie val, no meada me nte e ntre os Cavaleiros da Távola Redonda. E é ine vitá vel recordarmo s os crâ nios mesolíticos, expostos no Museu Geológico, em Lisboa, a demonstrar si nais de 106 trepanação, mas a que estaria ligado certamente um ritual: e m redor do orifício, desenha -se um pequeno Sol. […] Este ritual [decapitação] foi, de resto, um costume muito comum aos povos indo -europeus, já que as cabeças tinham, entre outros, o poder da profecia. Na tradição celta das ilhas Britânicas, o deus Bran […] tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeça, sobrevivente 80 anos à decapitação, para alé m de proteger contra o inimigo, tinha esse dom. 188 A m esm a aut ora dá -nos vári os ex e m pl os dest e cul t o, em P ort ugal , sendo o m ai s fam oso o da c ab eça d e S . R om ão. Por outro lado, em Portugal existem, não só esculturas de crânios, co mo sinais r ituais fúnebres e m que as cabeças era m propositada mente separadas do resto do corpo. [Gruta do Escoural] […] No Alentejo, são exe mplares as histórias da cabeça de S. Romão, depositada na Igreja de São Pedro de Panóias – o corpo deste santo está na Er mida de S. Ro mã o, mandada edificar propositada mente para esse mesmo e feito – e a de S. Fabião, e m Caével. E s t a s c a b e ç a s , c h a m a d a s « c a b e ç a s d e s a u d a d o r e s », e r a m nor malme nte enca stoadas e m o uro ou e m pr ata e servia m para benzer pessoas ou animais, fazer adivinhações e praticar mezinha s. A cabeça de S. Ro mão, por exemp lo, era levada, por leigos, a locais profanos para, através dela, se benzer o gado, ritual que se manteve até ao séc. XVII. 189 Não cab e nest e t r ab al ho um a anál i se ex aust i va dest e cul t o, m as não podem os d ei x ar de ref eri r a pol ém i ca ex i st ent e à vol t a do cul t o da cabe ça d e S . J oão Bapt i st a, supost am ent e prat i cad o pel os Tem pl ári os, que del e foram a cusados pe l a Inqui si ç ão, at ri bu i ndo -s el hes um a i m ensa l i st a de pr át i cas, con fi rm adas ou não, cons i derada s 188 Gabriela Morais, A Genética e a Teoria da Continuidade Paleolítica , p. 42. 189 Idem, pp. 42 e 43. 107 herét i cas pel a Igrej a, i ndependent em en t e da i nt enção com que eram efect u adas. Ora, est e é o “nosso ” S . J oão Bapt i st a d o sol st í ci o de Verão , e, as s i m , encont ram os m ai s um a rel ação obscura ent re as ent i dades s obre as quai s nos d ebruçam os. 108 4.9. AS GENS OU JENS OU J ÃS OU J ANS Tecedeiras do fado individual, apresentam -se [as fadas] como arqué tipo das fiandeiras, num conte xto modelar que entre nós vulgarizou e sublimo u a expressão: «mão s de fada! » 190 As f adas não são obj ect o do nosso estudo, por não fi gura rem nas “l end as” n em n os “epi sódi os l endá ri os” de que nos oc upam os; s ão pe rsona gens do s cont os fant ást i cos, t am bém dos al gar vi os, por i s s o faz em t am bém part e do i m agi ná ri o col ect i vo al garvi o, porém s ão encar adas co m o personagens f i ct í ci as, enquant o que as pers ona gens l endá ri as, pel o s eu c ará ct e r mí st i co e mí t i co , s ão vi st as com o seres r eai s, po r i sso são adm i radas ou t em i das. […] A crença na sua singular capacidade de fiar (que lhe advirá, eventualmente, da relação que o ima ginário local estabelece com as fadas) existe um pouco por todo o país, do Minho ao Algarve. O linho fiado por elas constitui, no género, arquétipo de perfeição; fino, se m nós, be m c omo qualquer outra deficiência. 191 No ent ant o, com o vi m os , as f adas poderão est ar na ori gem das mouras t eced ei ras , “seres ex t raordi nári os” (com o l hes cha m a At aí de Ol i vei ra) 192 , cuj o s vest í gi os se encont r am ent re nós em “ cacos”, epi s ódi os l endári os, cuj as prot agoni st a s eram “fam osas t e cedei r as, às quai s benfaz ej o” o 193 povo l i gava grandes s i m pat i as pel o seu cará ct e r , caí das em esqueci m ent o , no Al garve, t al vez por se 190 Aurélio Lopes, ob. cit., p.11. Idem, p.15. 192 Ataíde Oliveira, As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve, pp. 237 e 238. 193 Idem, p. 238. 191 109 t rat ar de um a t radi ç ão apen as conhe ci da no Barl avent o, t ant o quant o apurám os (t al com o a Zo rra B err adei ra, com o a se gui r ve re m os). O imaginário popular consubstanciou até pretensos mecanismos de cooperação entre as mo uras e as populações das nossa s aldeias. Acreditava -se, nalguma s zonas do País, que, deixando na lareira linho aco mpa nhado de dádivas correspondentes (pão e vinho), estas, de noite, fiá -lo-iam! N o A l g a r v e , o n d e s e l h e s c h a m a «j ã s » o u « j a n s », q u e m deixasse à noite no borralho, um pouco de linho e um bolo co mo o f e r e n d a r i t u a l e n c o n t r á - l o - i a d e m a n h ã f i a d o , «t ã o f i n o c o m o cabelo »! 194 Est a “coop era ção ” e nt re as m ouras e as popul ações t em par a l el o no que di z respei t o às mouras const rutoras , m as dessas parece n ão haver vest í gi os no Al ga rve. No ent ant o, é de re gi st ar qu e não há con senso quant o à nat ur ez a das Gens , poi s, co m o At aí de Ol i vei ra ex pl i ca, uns crêem que são mouras encant adas , out ros, que são f ada s , out ros, ai nda, due ndes . É preci so não esquecer, cont udo, que, paral el am ent e ao “car áct e r ben faz ej o ”, apr esent av am um car áct e r vi n gat i vo, poi s se os pret endent es ao “fi ado” “ eram esc assos na oferend a do bol o , s om i t i cos, o l i nho ou est opa era reduz i do a ci nz as e os bol os fei t os em m i gal has, m i st uradas est as com as ci nz as para que ni n guém as pudesse aprov ei t ar”. 194 195 195 Aurélio Lopes, ob. cit., pp.15 e 16. Ataíde Oliveira, ob. cit., p. 238. 110 4.10. A ZORRA BERRADEIRA Est a ent i dade (qu e repres ent a p reci s am ent e o opost o das G ens ) – “m á e odi ada por t odos” e que “só anunci a des gr aças e m al dades” 196 –, a Z orra Berradei ra , q ue t am bém só ex i st e no Barl avent o, m ai s propri am ent e nos co ncel hos de La go a, S i l ves e M onchi que, e em part i cul ar na z ona de Od el ouca , com o já m enci onám os, ex i ste em t rês versões, d uas das quai s consi deram -n a um a al ma penada . Tant o é at ri buí da a um a m our a en cant ada qu e se t er á reb el ado cont ra Al l ah (cont ra os “efei t os do encant am ent o”, t endo si do com o que proscri t a, t orna da “obj ect o de ódi o ent re m ouros e ch ri st ãos”. 197 ), com o à al m a de um a m ul her m ui t o má e de “vi da escand al osa”, à al m a de um hom e m que roub ava t er re no a out ros, ou m es m o à d e um a m ul her que t am bém roubava fai x as de t erreno; do m esm o m odo, t ant o é um ser arrepi ant e, com o um a som bra que persegu e os pas s ant es, ou m esm o um choro que t am bém perse gue qu em passa ou s e aprox i m a de cert o sí t i o; t ant o m at a, com o com ove. P arece -nos que um dos t ex t os (ZB 6 ) t erá, t al vez a chav e do probl em a, ao di z er que se t rat a d e “duas z orras” (um a “t em apel aç ão”, a out ra não), em bor a em a m bos o ser sej a um a al ma penada – fi ca, ass i m , em abert o, a hi pót ese de hav er vári as z orras… Mas a est ranh ez a não fi ca po r est as hi pót eses, poi s i ndependent em ent e da ori gem que l h e a t ri buem , al gum as d e scri ções coi nci dem , afi rm and o t rat ar -se de um se r que, ao l onge, t em a form a de um a z orra, m as que se d esl oca a um a vel oci dad e esp ant osa, pel o que t em de t er asas, para al ém de que, ao pert o, se assem el ha a um pás s aro que ex al a um “vapor i m undo e noj ent o” 196 197 198 198 . At aí de Ol i vei ra Idem, p. 235. Ibidem. Ibidem. 111 afi rm a m esm o que “é o ve rdadei ro r et rat o das arpi as d e out ras eras ” 199. Génios maus, cabeça de mo nstros alados, com corpo de pássaro, mulher, de garras afiadas, odor infecto, elas atorme nta m as almas c om perversidades incessante s. O seu no me significa rapaces. Em geral, são em número de três : Borrasca, Voa-depressa, Obscura, palavras que evoca m as nuve ns so mbria s e rápidas de uma te mp estade. Só o filho de Bóreas, o vento, as pode exterminar ( GRI D, 175). São as partes diabólicas das energia s cósmicas; as provedoras do inferno através das morte s repentinas. […] Podem co mparar -se às Erínias; mas esta s representa m mais o castigo, enquanto que as Harpias representam a inquietação dos vício s e as provo cações da maldade. O único vento que consegue expulsá -las é o sopro do espírito. 200 Da sua rel aç ão com as serei as j á nos ocupám os ant eri orm e nt e, m as a gora sur ge out ra l i gaç ão – é que o própri o At aí d e Ol i v ei ra di z , no m esm o t ex t o: “A z orra b err a dei ra é verd adei r am ent e a t ransform a ção das f úri as dos ant i gos. É t ão m á com o est a s e com o es t as i gual m ent e t e m i da.” 201 Ora, as F úr i as são preci sam ent e as Er í ni as , que acabám os de ver, a p ropósi t o das Harpi as : No me gre go das Fúrias [Erínias], de mónio s ctoniano s, co mo as Harpias (Górgo nas), que to ma va m a fo r ma de cães e de serpentes [ e v o l t a m o s à s e r p e n t e …] . S ã o o s i n s t r u m e n t o s d a vinga nça divina, na seq uência da s faltas co me tidas pelos ho me ns, que elas perse guia m, se mea ndo o pavor no seu coração. Na Antiguidade, Interiorizadas, 199 200 201 eram já identificadas simbolizam o com re morso, o a consciência. sentime nto de Idem, p. 235. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 362. Ataíde Oliveira, ob. cit., pág. 235. 112 culpabilidade, a auto -destruição daquele que se abandona ao sentimento de uma falta considerada inexpiável. Tal como as Moiras (o destino), ta mbé m elas eram originalmente guardiãs das leis da natureza e da ordem das coisas (física e moral), o que fazia com que castigassem todos os que ultrapassassem os seus direitos à custa dos outros, tanto entre os deuses como entre os homens . Só mais tarde é que elas se tornarão, esp ecificamente, as divindades vingadoras do crime (LAVD, 391 e Paul Mazon, HOMI III, p. 74, nº 1). 202 S e consi derarm os as Jens o seu op ost o, ent ão podere m os, event ual m ent e, est ar perant e v est í gi os d as Euméni das : Figuras lendárias, siste matica me nte opostas às Erínias: estas representam o espírito vingativo, o gosto pela tortura e pelo torme nto, que castigam toda a o espírito de compreensão, significam ultrapassagem e de sublimação. violação Estas da ordem; de ima gens aquelas perdão, opostas de e correlativas representa m a s d uas tendê ncias da alma pecadora, que hesita entre o re mo rso e o arrependime nto. […] As Erínias são imp iedosas, as Euménidas são benevolentes. Na antiguidade, era m os mesmos e spíritos, protectores da ordem social e principalme nte da fa mília, vingadores dos crimes, inimigos da anarquia; e chamavam -se Erínias ou Fúrias, quando a sua cólera se desencadeava, e Euménidas, quando se pretendia apaziguá -las, implorando a sua bene volênc ia . Mas esta última atitude pressupunha uma conversão interior, qu e, e m si me sma, era já um regresso à ordem. 203 Assi m , t al vez est e sej a, de fact o, o úni co caso de “géni os m al éfi cos doenças” 204 que per segu em o hom em , ocasi onando -l he di versas , de que n os fal a C onsi gl i eri P edroso. 202 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 288. Idem, p. 311. 204 Consiglieri Pedroso, ob. cit., p. 218. 203 113 5 . EXCURSO SOBRE PERSONAGENS SOBRENATURA IS RELIGIOSAS / CRISTÃ S Na Idade Média, assistimo s a um sobressa lto do pensa me nto mítico. Todas as classes sociais se reclamam de tradições mitológicas próprias. Os cavaleiros, os artesãos, os clérigos e os ca mponese s adoptam um «mito de orige m» da sua condição ou da sua vocação e esforçam -se por imitar um modelo exemplar. A origem destas mitologias é variada. O ciclo arturiano e o tema do Graal integram, sob uma capa cristã, inúmeras crenças célticas, sobretudo em relação com o Outro Mundo. Os cavaleiros pretendem rivalizar com Lancelot ou Parsifal. Os trovadores elaboram toda uma mitologia da Mulher e do Amor utiliza ndo ele me ntos cristãos, mas ultrapassando ou contrariando as doutrinas da Igreja. Certos movime ntos históricos da Idade Média ilustra m, de uma for ma particular mente significativa, as manife stações mais típicas do pensa mento mítico. Esta mos a pensar na s exaltações milenaristas e nos mitos escatológicos que surgem nas Cruzadas, nos mo vimento s de um T anquelmo e de um Eudes de L’Étoile, na elevação de Frederico II à categoria de Messias, e em tantos outros fe nó me nos revolucionários […]. colectivos messiânicos, utó picos e pré- 205 P aral el am ent e às f i guras de í ndol e pagã, m ai s ou m e nos i m port adas de out r a s cul t uras, en cont ra m os t odas as person agen s do “m aravi l hoso cri st ã o”, m ai s propri am ent e cat ól i co, por ser est a a rel i gi ão dom i nant e e dom i nadora, du rant e t ant os sécul o s, nest e t erri t óri o. As pres enças do j udaí sm o e do i sl am i sm o, que não i ncl uem out ras pers onagens al ém do “D eus úni co”, não se p rest avam t ão fa ci l m ent e à c ri ação de hi st óri as de apa ri ções, ci n gi ndo -se m ai s aos “m i l agr es” do própri o Deus, não se ndo de ex cl ui r, no ent ant o, a 205 Mircea Eliade, Aspectos do Mito, edições 70, col. Perspectivas do Homem, s/ data, pp. 146 e 147. 114 i nfl uênci a c el t a, cuj a rel i gi ão , segundo G eral d Messadi é, apresent ava um pan t eão de qu at rocent o s deuses, a G rand e Deusa, al guns d em óni os e nenhum Di abo. 206 A sua religião desaparecia sem se ter reorganizado, cedendo ao Cristianismo alguns ritos e lendas. A sua influência cultural desapareceu até ao século XIX, quando ressurgiu em nostalgias literárias, sobretudo anglo -saxónicas, em prol dos cultos do individ ualismo e do heroísmo. 207 Ora, com o di z R oge r C ai l l oi s: […] Toda a força que o encarne [o sagrado] tende a dissociar -se : a sua primeira a mbiguidade resolve -se e m ele me ntos antagónicos e co mple mentare s aos quais se refere, respectivamente os sentimentos de respeito e de aversão, de desejo e de pavor que a sua natureza essencialme nte eq uívoca inspirava. Mas logo esses pólos nascem da distensão desta, provocam cada um por seu lado, precisa mente na medida e m que possue m o carácter do sagrado, as mesmas reacções a mbivalentes que os tinham feito isolar um do outro. A cisão do sagrado produz os bons e os ma us espíritos, o padre e o feiticeiro, Ormazd e Arimâ ncio, Deus e o Diabo, ma s a atitude dos fiéis para com cada uma destas especializações do sagrado revela a mesma a mbivalê ncia q ue o seu co mporta mento relativamente às suas manifestações indivisas. […] Contudo, se se orientar a análise da religião na perspectiva dos limite s e xtre mo s e anta gónicos represe ntados, sob as su a s diversas formas, pela santidade e pela danação, o essencial da sua função aparece logo determinado por um duplo mo vimento: a aquisição da pureza, a eliminação da mácula. 208 S em quererm os ne m poderm os aprofu ndar a r el ação ent re o cri s t i ani sm o e o pen sa m ent o m í t i co, não podem os, porém , d ei x ar de ci t ar Mi rce a El i ade, quando apres ent a a “t ese” do cri s t i ani smo 206 207 208 Gerald Messadié, ob. cit., p.141. Idem, p. 158. Roger Caillois, ob. cit., pp. 37 e 38. 115 cós mi co , ao r efe ri r - se à pol í t i ca [ da Igrej a] de assi mi l ação de um «pagani smo» que não era possí vel el i mi nar : Os ca mpone ses da E uropa entendia m o c ristianismo co mo uma liturgia cósmica. O mistério cristológico englobava ta mbé m o destino do Cosmo s. «T oda a Natureza susp ira, na expectativa da Ressurreição »: é um mo tivo ce ntral ta nto da liturgia pasca l como do folclore religioso da cristandade oriental. A solidariedade mística com os ritmos cósmicos, violentamente atacados pelos Profetas do Antigo T estame nto e a custo tolerada pela Igreja, é o cerne da vida religiosa das populações rurais, sobretudo do Sudeste da Europa. Para todo este sector da c r i s t a n d a d e , a «N a t u r e z a » n ã o é o m u n d o d o p e c a d o , m a s a o b r a de Deus. Depois da encarnação, o Mundo foi restabelecido na sua glória primitiva ; é por isso que Cristo carregados de tantos símbolos cósmicos. e a Igreja foram 209 E, em segui da, ao a nal i sar a ac ei t aç ã o do cri st i ani sm o por part e das soci edades ru rai s da Europa, ex põe as l i nhas f undamentai s de st a «t eol ogi a popul ar» (o cri st i ani smo cósmi co ), ex pl i ca ndo o t i po de pens am ent o subj ace nt e , e com o não se t rat ou de um processo de «pagani zação» do cri st i ani smo , m as ant es de uma «cri st i ani zação» da r el i gi ão dos seus ant epassados : […] por um lado, não há contradição entre a ima ge m de Cristo dos Evangelhos e da Igreja e a do folclore religioso : a Natividade, os ensinamentos de Jesus e os seus milagres, a crucificaçã o e a Ressurreição constitue m os te mas essencia is deste cristianismo popular. Por outro lado, é um espírito cristão e n ã o «p a g ã o » q u e i m p r e g n a t o d a s e s t a s c r i a ç õ e s f o l c l ó r i c a s : t u d o gira e m torno da Salvação do ho me m por Cristo; da fé, da e s p e r a n ç a e d a c a r i d a d e ; d e u m m u n d o q u e é «b o m » , p o r q u e f o i criado pelo Deus Pai e foi resgatado pelo Filho; de uma existência humana que não se repetirá e que não é desprovida de significado; o ho me m é livre de escolher o bem ou o mal, mas não será julgado unicamente em função desta escolha. 209 Mircea Eliade, ob. cit., pp. 144 e 145. 116 […] é necessário constatar que o cristianismo cósmico das populações rurais está dominado pela nostalgia de uma Natureza santificada pela presença de Jesus . Nostalgia do Paraíso, desejo de reencontrar uma Natureza transfigurada e invu lnerável, livre dos cataclismos provocados pel[a]s guerras, pelas devastações e pelas conquistas. É ta mbé m a expressão do «i d e a l » das sociedades agrícolas, constantemente aterrorizadas por hordas guerreiras alógenas e exploradas pelas diferentes classes de «se nhores » mais ou meno s autóctones. É uma revolta passiva contra a tragédia e a injustiça da História, em última análise, contra o facto de o ma l não se re velar unica mente co mo decisão individ ual, ma s sobretudo como uma e strutura transpessoal do mundo histórico. 210 O obj ect o do nosso est udo é preci sam e nt e a m i t ol ogi a popul ar de um a soci edade essenci al m ent e ru ra l , europei a, e é f á ci l rever , nes t e cri st i ani smo c ósmi co , o pensam en t o e a at i t ude d e per sonagens das l endas anal i sad as, quer per ant e a Nat urez a, com c el e brações do s ol s t í ci o de Verã o, quer perant e a rel i gi ão, i ncl ui ndo est as pers ona gens m í t i cas no seu quot i di ano, quase m ant endo os m esm os ri t os ant i gos e subst i t ui ndo um as di vi ndades por out r as. […] vis-à-vis de l’Europe – rurale, essentielle me nt, […] celle [l’attitude] que le christia nisme européen a l ongte mps e u à l ’ é g a r d d e s s u r v i v a n c e s «p a ï e n n e s » : d e v e n u e s a p p a r e m m e n t v i d e s de contenu, elle s é taie nt non se ule ment acce ptables, mais mê me intégrables à la religiosité officielle. 211 210 Idem, pp. 145 e 146. Michel Izard, “Introduction”, in James George Frazer, Le Rameau d’Or, Paris, Éditions Robert Laffont, S. A., 1983, p.9: “ […] em relação à Europa – rural, essencialmente –, […] aquela [atitude] que o cristianismo europeu teve durante muito tempo para com os vestígios «pagãos »: tornados aparentemente vazios de conteúdo, eram não apenas aceitáveis, como integráveis mesmo na religiosidade oficial.” (Tradução nossa). 211 117 5 .1 . CICLO DE JESU S CRISTO A une période primitiv e de son développeme nt intellectuel, l’ho mme se croit par nature immortel; […] Parmi les multiples influences qui se coalisèrent pour le forcer à accepter, à son corps défendant, la né cessité de la mort, il faut co mpter cel le, toujours croissante, de la religion qui, en démasquant la vanité de la ma gie échafaudées et sur de elle, toutes a les prétentions graduelle me nt extravagantes modifié l’attitude orgueilleuse et méprisante de l’homme envers la nature, et lui a inculqué la cro yance qu’il y a dans l’univers d es mystère s que sa faible intellige nce ne réussira ja mais à percer , et de s forces q ue ses mains débiles ne sauront ja mais do mpter. De plus e n plus, il apprit ainsi à s’incliner devant l’inévitable, et à se consoler de l a brièveté et des tristesses de la vi e, ici-bas, par l’espérance d’une éternité de bonheur, au -delà. 212 Mas a i dei a d a su a própri a condi ç ão m ort al , apes ar d a c rença num a vi da par a al ém da m ort e, n ão dei x ava ao hom em gr andes es peran ças num a vi d a di fí ci l , se m a aj ud a de ser es superi or e s. […] Mais s’il reconnaissait, à contre -cœur il est vrai, l’existences d’êtres à la fois surhumains et surnaturels, il était loin encore de se douter de la profondeur et de la largueur de l’abîme qui le séparait d’eux. Il adme ttait bien que les dieux, dont à présent son imagination peuplait les ténèbres de l’inconnu, lui fussent supérieurs par le savoir et par la puissance, par 212 James George Frazer, ob. cit., p.23: “Num período primitivo do seu desenvolvimento intelectual, o homem acreditou que era, por natureza, imortal. [..] De entre as múltiplas influências que se coligaram para o forçar a aceitar, contra a sua vontade, a necessidade da morte, é preciso contar com a da religião, sempre crescente, que, desm ascarando a vaidade da magia e de todas as pretensões extravagantes entabuladas por ela, modificou gradualmente a atitude orgulhosa e depreciativa do homem para com a natureza, e inculcou -lhe a crença de que há no universo mistérios que a sua fraca intelig ência não conseguirá nunca penetrar, e forças que as suas mãos débeis não saberão nunca domar. Ele aprendeu, assim, cada vez mais, a inclinar -se perante o inevitável, e a consolar-se com a brevidade e as tristezas da vida, aqui em baixo, na esperança de uma eternidade de felicidade, lá em cima, para além da morte.” (Tradução nossa). 118 l’heureuse splendeur et la durée de leur ex istente; mais, et à son insu, ce s créature s ma gnifiq ues et terribles étaient uniq ue ment, comme le spectre du Broken, l’ima ge ré fléc hie de sa propre et chétive personne que l’éloignement, les brumes et les nuées de l’ignorance avaient grandie de façon gigantesque. L’homme a, en effe t, créé les dieux à son ima ge: é tant lui-mê me mortel, il a n a t u r e l l e m e n t g r a t i f i é s e s c r é a t u r e s d e l a m ê m e t r i s t e c o n d i t i o n . 213 Ora, a r el i gi ão cri st ã const rui u -se, c om o sabem os, com um a gr ande i nfl uênci a j udai ca, que, por sua vez , por força das ci rcunst ânci as que const i t uem a hi st óri a do povo j udeu, sofreu, forçosam ent e, i nfl uê nci as e gí pci as, b abi l óni cas e out ras. Les grands dieux de l’Égipte n’échappaient pas à la loi commune. Eux a ussi vieillissa ient et mo uraie nt. T out co mme les ho mmes, ils se co mposaient d’un corps et d’une â me, et co mme eux, ils étaient sujets à toutes les passions et à toutes les infir mités de la chair. Le ur corps, il e st vrai, était fait d ’une substa nce plus é thérée que le nôtre et durait p lus longte mp s, mais il ne pouvait résister éternellement aux assauts du temps . L’âge transfor mait le urs os e m arge nt, leur c hair en or, et les boucles azures en lapis -lazuli. Quand leur temps était révolu, ils quittaie nt le mo nde joye ux des ho mme s pour aller régner, en qualité de dieux morts, sur les o mbres, dans le monde mélancolique des trépassés. Leur âme même, tout comme celle des humains, ne pouva it persister après leur mort qu’a uta nt que leur corps subsistait; aussi était -il indispensable de conserver le corps des dieux comme celui du plus commun des mortels, de peur qu’avec le corps divin, l’âme aussi ne trouvât 213 Ibidem: “Mas se ele reconhecia, é verdade que contra -vontade, a existência de seres ao mesmo tempo sobre -humanos e sobrenaturais, estava longe ainda de desconfiar da profund idade e da largura do abismo que o separava deles. Admitia perfeitamente que os deuses, com os quais a sua imaginação povoava, presentemente, as trevas do desconhecido, fossem superiores a ele, pelo saber e pelo poder, pelo feliz esplendor e pela duração d a sua existência; mas, e sem que ele soubesse, estas criaturas magníficas e terríveis eram unicamente, como o espectro do Brocken, a imagem reflectida da sua própria e fraca pessoa, que o afastamento, as brumas e as nuvens espessas da ignorância tinham feito crescer de forma gigantesca. O homem criou, de facto, os deuses à sua imagem: sendo ele próprio mortal, gratificou, naturalmente, as suas criaturas com a mesma triste condição.” (Tradução nossa). 119 prématuré ment sa fin. […] Les grands die ux de Babylone a ussi, bien qu’ils n’apparussent à leurs adorateurs qu’en rêves et en visio ns, éta ient conç us sous une for me corporelle humaine; le urs passions et leur destin étai ent ceux des hommes; comme eux ils venaie nt a u mo nde, aimaient, co mbattaie nt et mo uraie nt. 214 Ao apr esent ar a rel a ção ent re cri st i ani sm o e pensam ent o m í t i co, M i rcea El i ad e di st i ngue t r ês probl em a s fundam ent ai s. O pri m ei ro prende -s e com o si gni fi c ado do t erm o «m i t o » e a hi st ori ci dade d e J es us: […] Os primeiros teólogos crist ãos to mava m este vocábulo no sentido que se tinha impo sto há vários séculos no mundo greco roma no: «fábula, ficcção, me ntira ». Consequentemente, r e c u s a v a m - s e a v e r n a p e s s o a d e J e s u s u m «p e r s o n a g e m » m í t i c a , e no dra ma cristológico um «mito ». A partir do século II, a teologia cristã foi levada a defender a historicidade de Jesus, simultaneamente contra os docéticos e os gnósticos e contra os filósofos pagãos. 215 O segundo di z resp ei t o ao val or at ri buí do aos docum ent os em que se fund e a hi st ori ci dade de J esus : 214 Idem, pp. 24 e 25: “Os grandes deuses do Egipto não e scapavam à lei comum. Também eles envelheciam e morriam. Tal como os homens, eram compostos por um corpo e uma alma, e como eles, estavam sujeitos a todas as paixões e a todas as enfermidades da carne. É verdade que o seu corpo era feito de uma substância mais etérea do que o nosso e durava mais tempo, mas não podia resistir eternamente aos assaltos do tempo. A idade transformava os seus ossos em prata, a sua carne em ouro e os seus caracóis azulados em lápis -lazúli. Quando o seu tempo era volvido, deixavam o mundo alegre dos homens para ir reinar, na qualidade de deuses mortos, sobre as sombras, no mundo melancólico dos falecidos. Até a sua alma, tal como a dos humanos, não podia perdurar depois da sua morte senão enquanto o corpo subsistisse; assim, era indispensável conservar o corpo dos deuses como o do mais comum dos mortais, para que, com o corpo divino, a alma também não encontrasse prematuramente o seu fim. […] Também os grandes deuses de Babilónia, embora não aparecessem aos seus adoradores senão em sonhos e visões, eram concebidos sob uma forma corporal humana; as suas paixões e o seu destino eram os dos homens; como eles vinham ao mundo, amavam, combatiam e morriam.” (Tradução nossa). 215 Mircea Eliade, ob. cit., p. 137. 120 […] Hoje em dia, um Rudolf Bultmann afirma que não se pode saber nada ne m da vida ne m da pessoa de Jesus, e mbora não duvide da sua existê ncia histórica. Esta posição metodológica pressupõe que os Eva ngelho s e os outros teste munhos primitivos e s t ã o i m b u í d o s d e «e l e m e n t o s m i t o l ó g i c o s » ( e n t e n d e n d o - s e o ter mo no se ntido de «aq uilo que não pode existir »). De que abunda m «ele me ntos mitológico s» nos Eva ngelhos, não resta m dúvidas. Alé m diss o, símbolos, figuras e rituais de orige m judia cedo foram assimilados pelo cristianismo. […] o vasto número de símbolos e ele me ntos que o cristianismo partilha co m o s c ultos solares e as religiões de Mistérios encorajou alguns eruditos a rejeitar a historicidade de Jesus, refutando a posição de um Bultma nn, por exe mplo. Em vez de postular e m a existê ncia, no início do cristianismo, de uma persona ge m histórica sobre a qual nada se pode saber devido à «mitologia » que rapidame nte a envolveu, esses especialistas postulara m, pelo contrário, um «mito » que foi imper feita me nte «historicizado » pelas primeiras gerações de cristãos. 216 O t erc ei ro probl em a resul t a da ex i st ênci a de doi s t i pos de m i t o: o “myt hos d essac ral i z ado da époc a hel e ní st i ca” vs “o mi t o vi vo , t al com o el e foi conh eci do nas soci edad es ar cai c as e t radi ci onai s” , afi rm ando est e aut o r que “o c ri st i ani sm o, t al com o foi ent e ndi do e vi vi do durant e qua se doi s m i l éni os da sua hi st óri a, não pode s er com pl et am ent e di ssoci ado do pensam ent o m í t i co .” 217 e acres cent ando m ai s t arde, após t er dado vári os ex em pl os, que “convém subl i nhar a cont i nui dade ent re as concep ções es cat ol ógi cas m edi evai s e as di fe rent es «f i l osofi as da hi st óri a » do Il um i ni sm o e do s écul o X IX. ” 218 S e at ent arm os n a hi st óri a de J esus, cont ada n a vers ão dos Evangel hos consi de rados l e gí t i m os pel as vári as i gr ej as c ri st ãs, que s ão, supost am ent e, a vers ão esc ri t a dos rel at os or ai s que ci rcul ar am durant e bast ant es a nos (pel o m enos a t é à dat a da su a r ecol ha) , 216 217 218 Idem, pp. 137 e 138. Idem, p. 138. Idem, p. 150. 121 aperc ebem o -nos do s “pont os de cont a ct o” ex i st ent es ent re a sua m at ri z e out ras, com uns a vári as soci eda des. […] dans le contexte du lent c he mine me nt qui mène l’huma nité de l’âge ma gique à l’â ge religie ux, et du roi ma gicie n au roi divin, ils [les hommes] associent à la souveranité les attributs de la divinité, et par un retour des dieux sur la terre, conçoivent les rois divins comme les dieux du ciel, donc leur assigne nt co mme destin de mourir un jour. 219 Num a époc a de ocu pação e de opressã o por part e do Im p éri o R om ano, J esus foi consi derado, por a l guns dos seus se gui dores, com o o Messi as, o descendent e de D av i d que vi ri a l i bert a r o povo de Isra el do j u go rom ano ( à sem el hança do que f ez Moi sés, l i bert ando -o do j ugo egí pci o). No seu des es pero e na sua esperan ça, acredi t a ram que vi r i a a ser o “R ei dos J udeus” , desi gna çã o e fam a que vi eram a s er -l h e fat ai s. […] c’est bien cette double corporéité, dont l’un des deux ele me nts est ha ute me nt corruptible , quand l’a utre n e sa urait être donné po ur tel […] Le roi ne peut pas ne pas mo urir, mais il faut que le royaume vive, qu’il se perpétue sans être atteint dans sa «c hair » sociale par les altérations que ne peut ma nquer de subir le corps du souverain. Pour q ue la mise e n phase associant l a vie du roi à ce lle du ro ya ume n’entraîne pas la mort du corps social, il faut et il suffit que le roi meure ava nt qu’il risque d’entraîner une per ma ne nte prospérité. 220 219 Michel Izard, “Introduction”, in James George Frazer, ob. cit., p. 11: “No contexto do lento caminho que a humanidade percorre d esde a idade mágica até à idade religiosa, e do rei mágico ao rei divino, os homens associam à soberania os atributos da divindade, e por um retorno dos deuses à terra, concebem os reis divinos como os deuses do céu, pelo que lhes é atribuído como destino morrer um dia.” (Tradução nossa). 220 Idem, pp. 11 e 12: “[…] é precisamente esta dupla co rporeidade, de que um dos dois elementos é altamente corruptível, quando o outro não poderia ser dado como tal […] O rei não pode não morrer, mas é preciso que o reino viva, que se perpetue sem ser atingido na sua «carne» social pelas alterações que o corp o do soberano não pode deixar de sofrer. Para que o processo de associação da vida do rei à do reino não arraste a morte do corpo social, é preciso e é suficiente que o rei morra antes 122 Mas a m al dade e a i nj ust i ça dum povo q ue, pouco t em po ant es, apl audi ra J esus, para depoi s escol he r Bar rabás p ara s er l i bert ado, condenando - o a um a m ort e vi ol e nt a, pode t er r aí z es ancest r a i s: […] Si le dieu-ho mme meurt de ce que nous appelons une mort naturelle, cela veut dire, d’ après le sauva ge, soit que son â me a volo ntaire me nt quitté son corps et refuse d’y reve nir; soit, plus comunément, qu’elle lui a été dérobée ou qu’elle a été retenue dans se s vo ya ges par un dé mo n ou un sorcier. Dans l’un comme dans l’autre cas, l’âme du dieu-homme est perdue pour ses adorateurs; avec elle dispar aît leur prospérité et leur existence se trouve de ce fait en péril. […] Tandis qu’en tuant le dieu-homme ses adorateurs pourraient, en premier lieu, avoir la certitude de capturer son â me q uand elle s’é chapperait et de la transmettre à un successeur convenable; en second lieu, en le metta nt à mort ava nt que sa force naturelle f ût diminuée, ils auraient la garantie que le mo nde ne déclinerait pas a vec la sa nté du dieu-homme. Toutes les conditions se trouvaient donc re mplies et tous les da nger s écartés si l’on tuait le dieu -ho mme et si l’on faisait ainsi passer dans un successeur vigoureux son â me encore toute vigoureuse. 221 A i dei a de que a i dade do corpo corresp onderi a à i dade da a l m a e, por conse gui nt e, est a est ari a suj ei t a a um a de gen era ção, t al com o que se arrisque a arrastar uma prosperidade permanente.” (Tradução nossa). 221 James George Frazer, ob. cit., p. 27: “Se o deus-homem morre daquilo a que chamamos uma morte natural, isso quer dizer, do ponto de vista do selvagem, quer que a sua alma deixou voluntariamente o corpo e se recusa a voltar a ele; quer, mais comumm ente, que ela lhe foi subtraída ou que ficou retida, nas suas viagens, por um demónio ou um feiticeiro. Tanto num caso como no outro, a alma do deus -homem está perdida para os seus adoradores; com ela desaparece a sua prosperidade e a sua existência encont ra-se, deste modo, em perigo. […] Enquanto que ao matar o deus-homem os seus adoradores podiam, em primeiro lugar, ter a certeza de capturar a sua alma quando ela se escapasse e de a transmitir a um sucessor conveniente; em segundo lugar, matando -o antes que a sua força natural diminuísse, teriam a garantia de que o mundo não declinaria com a saúde do deus -homem. Todas as condições se encontrariam, por conseguinte , preenchidas e todos os perigos afastados se se matasse o deus -homem e se se fizesse, assim, p assar para um sucessor vigoroso, a sua alma, enquanto esta ainda estivesse também vigorosa. “ (Tradução nossa) 123 o corpo, l evou al gu ns povos a m at ar em os seus “r ei s di vi nos” num a al t ura da vi da em que est i vessem l i vres de qual quer corr upção. A m ort e de J esus, aos t ri nt a e t rês anos, faz -nos pensar em c om o est a i dade é, d e fa ct o, o apo geu das fa c ul dades hum anas, fí si cas e i nt el ect uai s, j á que é opi ni ão corrent e ent re psi cól ogos e m édi cos que a de cad ênci a hu m ana com e ça a faz e r -se sent i r, ai nda qu e depoi s decorr a gradu al m ent e , aos t ri nt a e ci nco anos. […] les sujets per mettent a u roi ou prêtre divin [e m ca sos contados anterior me nte ] de conserver ses fonc tions jusqu’au jour où quelque symptô me vis ible, quelque tare physique, révé lant que ses forces décroissent ou qu’il prend de l’âge, les avertit qu’il n’e st plus à mê me de s’acq uitter de ses devo irs sacrés; mais o n ne le met pas à mort avant q ue c es symptô mes n’apparaissent. Certains peuples, cepe n dant, ne se mb lent pas avoir une sécurité suffisa nte da ns ce systè me qui leur co mmandait un signe de déclin, si léger soit -il; ils ont préféré tuer le roi alors qu’il jouissait e ncore de sa pleine vigue ur. Ils ont donc déter miné une durée au-delà de laquelle le souverain n’avait pas le droit de régner et à l’e xpiration de laquelle il devait mourir; le laps de te mps ainsi fixé était assez bref pour que toute probabilité de dégénérescence physique en cours de règne fût exclue. 222 A ressur rei ç ão apar ece, assi m , com o u m a re gener aç ão, ap ós a des ci da aos i nferno s, de t al m odo um a puri fi caç ão, que ne m m esm o M ari a Mad al ena t er á podi do t ocar -l he para n ão conspur ca r o seu “novo corpo” com o i m puro cont act o hum ano. E é com est e “novo corpo”, não hum an o, l i vre de qual que r hi pót ese de cont a m i nação 222 Idem, pp. 49 e 50: “Os indivíduos permitiam ao rei ou ao padre divino [em casos contados anteriormente] conservar as suas funções até ao dia em que algum sintoma visível, alguma imperfeição física, reveladores da diminuição das suas forças ou da sua idade avançando, os advertisse de que ele já não estava capaz de lidar directamente com os seus deveres sagrados; mas não o matavam antes que os sin tomas aparecessem. Alguns povos, no entanto, não parecem ter encontrado segurança suficiente neste sistema que os obrigava a esperar um sinal de declínio, por mais ligeiro que fosse; preferiram matar o rei enquanto ele gozasse ainda do seu pleno vigor. Det erminaram, por conseguinte, uma duração para além da qual ele devia morrer; o lapso de tempo assim fixado era bastante breve para que qualquer probabilidade de degenerescência física durante o reinado fosse excluída.” (Tradução nossa). 124 não di vi na, e l i vr e d e qual que r hi pót es e de de gener aç ão e m ort e, que i rá cont i nuar a “r ei nar”, no m undo do es pí ri t o, et ernem ent e. Est a re gener aç ão não and a l on ge d e si m bol i z ar a p r ópri a re gene ra ção d a nat u rez a, sobret udo s e r ecor da rm os que s e deu por vol t a do i ní ci o da P ri m avera, al t ura t a m bém em que é co m em orada t odos os anos. A Páscoa dos c ri st ãos é, port ant o, um a fe st i vi dade que cel eb ra a r essurrei ç ão de C ri st o, e m que est á i m pl í ci t a a su a re gene ra ção e t rans m ut ação, na époc a e m que oco rri am as ant i gas fes t i vi dades a com panhadas de ri t uai s de fe rt i l i dade. Est am os, t al vez , perant e m ai s “um a com posi ção de si ncret i sm o que revel a vári as proc edên ci as ”, com o di z J oão Davi d P i nt o -C orrei a: […] Adónis (do se mítico “Adon”, isto é, “se nhor ”), antes de ser o deus grego, foi o babilónico Tamuz, o jovem amante de Ishtar (deusa mãe -terra), o qual foi morto por um javali, quando caçava na s montanhas, tendo do seu sangue nascido a ané mo na ver melha. A perda foi tão grande que, pera nte a fúria da d eusa do a mor, os deuses maior es aquie scera m e m que ele ressusc itasse, vivendo meio ano na terra, e o outro meio ano no mundo subterrâneo. Adónis torna -se assim o símbolo da morte sazonal e do reaparecime nto fulgurante da vege tação. A história de Adónis, em diferentes versões, vai ser contada desde a Ásia e regiões mediterrânicas até às Ilhas Britânicas, atravessando toda a Europa, sobretudo a do Sul. Mas esta história, como reconhece m os historiadores da Mitologia, te m co mo primeira manife stação uma versão siro-fenícia, relacionada com Mirra (ou Esmir na), filha de T eias, rei da Assíria . Este mito funda me ntal para a s culturas do Mediterrâneo prende -se co m o te ma e respectivos mo tivo s da morte e re ssurreição, co m simbo lismo s variados da fertilidade e da vegeta ção, relaciona-se com as histórias de Átis (da Frígia), Osíris (do Egipto), Dionísios -Zagreus (da Trácia e de Creta), Balder (da Escandinávia), John Barle ycorn (da Inglaterra), e naturalmente co m a história e o simboloismo de Jesus (dos Hebreus e dos Crsit ãos). 223 223 João David Pinto-Correia, “A Literatura Oral / Escrita Tradicional e o Espaço Mediterrânico: História, Assuntos, Poéticas”, O Mediterrâneo Ocidental: Identidades e fronteira , Lisboa, Edições Colibri, 2002, pp. 194 e 195. 125 C om o a Igrej a C at ó l i ca deu s em pre esp eci al at enção à i m a gem do C ri st o cruci fi cado (por raz ões que se prendem , obvi am e nt e , com a acei t aç ão do sofri m ent o) , é nat ural que sej a nest a condi ção que prot agoni z a a m ai or i a das narr at i vas . P ossui dor do pode r m áx im o, à sem el hança do P ai , raram ent e apare ce e i nt e rvém ge ral m ent e em si t uações gr aves, de gr andes afl i ções, p rot e gendo o col e ct i vo de m ai ores ou m enores cat ást rofes, com o é o caso da a pari ção c rí st i ca da bat al ha de Ouri que ou, m ai s recent em ent e, do m i l agre do Bom J esus de Al vor , aq uando do t erram ot o de 1755 . S obre as “d esl oc ações no ct urnas” 224, Al ex andre P ara f i ta apresent a a sua opi ni ão que, sendo a propósi t o das i m agens sagradas des cobert as em Trá s -os -Mont es, se apl i ca pe rfei t am ent e a doi s dos nos s os casos (o do Bom J esus de Al vor e o da Nossa S enhora do Verde ) : Entretanto, na escolha do lugar para a construção do santuário, é frequente haver um conflito de vizinhanças, com as constantes trasladações da imagem para diferentes locais em função das conveniências do minantes nas comunidades. E, perante questões terrenas desta orde m, imp orta que haja uma resposta do Céu. Daí que será a própria image m a solucionar os diferendos, utiliza ndo os mé todos sobrenaturais apropriados, que passa m, geralmente, pelo “m ila gre” da deslocação nocturna, à revelia da mão huma na, para o lugar exacto em que “pretende” ficar instalada. Nas nossas 225 duas hi st óri as, encont ram os os ani m ai s a obedec erem à vont ade di vi na, recus an do -se a avan çar ad ent ro do t erri t óri o da f re gu esi a nã o des ej ada . C orroborando a t ese de Al ex andre P arafi t a, um dos i nform ant es de Mar gari da T en ga rri nha afi rm a m esm o que depoi s que o S enhor J esus de Al vor com eçou a 224 Um dos milagres atribuídos ao Bom Jesus de Alvor é precisamente a escolha de Alvor como local de permanência, por parte da imagem. 225 Alexandre Parafita, A Mitologia dos Mouros, p. 74. 126 faz er m ui t os m i l agres, “passou a ser m ui t o cobi çad o pel o povo de P ort i m ão que o foi buscar num a car ret a de boi s” 226 226 . Margarida Tengarrinha, ob. cit., p.65. 127 5 .2 . CICLO D A VIRGEM MARIA É dito que Portuga l é um país mariano, p rofunda me nte ligado à Virgem Maria, Mãe de Deus. D. João IV consagrou a Nação à Senhora da Conceição, como toda a gente sabe, ma s já Afonso Henriq ues ficar a a dever o mo vimento das suas perninhas de me nino de tenra idade a Nossa Senhora do Cárquere, cuja ima ge m apareceu propositada me nte para curar o nosso primeiro infante. 227 N ossa Senhora , a m ãe d e J esus, a quem são at ri buí dos pod eres es peci ai s, en carn a o pri ncí pi o fem i ni no ausent e da t ri nda de cri st ã (pel o m enos com o foi vei cul ada na E uropa) , e é, po r ve z es, um a “deusa das pequ ena s coi sas” i ndi vi duai s , i nvocada const an t em ent e, em rez as quot i di anas, sej a para desfaz e r os nós dum a dobada de fi o que se em p eçou, s e j a para encont r ar u m obj ect o que se p erdeu, e apare ce, às vez es, à s cri anças e out ros i nocent es, ap arent em ent e sem qual quer obj ect i vo especí fi co, ou pel o m enos, sem um padrão recor rent e de i nt en ç ão , m as t am b ém , po r vez es, qu ando i nv ocada e m afl i ções de m edo ou de dúvi da, t raz endo “apenas” uma b oa hora , t ranqui l i dade ou um a sol ução a qu em a pedi u. Facilme nte podemo s verificar, ainda, que muitas crença s e m santos, ou em nossas senhoras e nas suas respectivas capacidades interventivas nas dores e alegrias das populações são transposições fiéis dessas crença s primitiva s: os no mes mudara m, mas o funda me ntal manteve -se. Co mo diz o abade de Baçal, apesar dos propósitos da Igreja Católica, o povo, indiferente aos no me s e às imposições, prossegue se mpre co m a cultura que lhe é própria. 228 227 Fernanda Frazão, Passinhos de Nossa Senhora , Lisboa, Apenas Livros Lda., 1ª ed., 2006, p.11. 228 Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., pp. 16 e 17. 128 Mas t am bém pod e ser, e t al vez na m ai or pa rt e d as vez e s, a “cri s t i ani z ação” d a Grande M ãe. O símbolo da Virgem, Mãe divina enquanto Theotokos, designa a alma na q ual Deus se recebe a si mesmo, gera ndo -se a si me smo e m si me smo, pois só ele é. A Virge m Maria representa a alma perfe ita me nte unificada, e m que Deus se torna fec undo. Ela é se mpre vir ge m, p ois perma nece se mpre intacta e m relação a uma nova fec undidade. 229 De fa ct o , e com o v eri fi cou Fern anda F raz ão, “nenh um a l e nda de ori gem popul ar f al a da Vi rgem Mari a, m as sem pre e só de Nossa S enhora ou, si m pl esm ent e, da S enho ra. A Vi r gem Ma ri a fi ca re gi st ada apen as na l i ngua gem e rudi t a do cl ero cat ól i co que, no pas s ado, fez as gr an des recol h as” 230 . […] Será por acaso que, e m Portugal, raramente se me ncione Nossa Senhora co mo a Virgem Maria? Nossa Senhora, ou simple sme nte a Senhor a, é a denominação comum popular, e tal facto parece ser reflexo dessa crença primitiva [a Terra -Mãe], […] As aparições d a Se nhora de Fátima são ma is outras aparições de moura s encantadas, num co ntexto moderno. São inúmeros os e x e m p l o s d e «r u m o r e s » q u e t a n t o s e r e f e r e m a o a p a r e c i m e n t o d e uma moura, co mo de N ossa Senhora. […] 231 S em quererm os faz e r l i gaçõ es que não p oderí am os ex pl i car, não podem os , cont udo, dei x ar de assi nal ar a coi nci dênci a dos espaços em que se dão as ap ari ções vá ri as, quer da Senhora , quer de mouras encant adas : “D e f ac t o, são dez enas as i m agens ap are ci das [ de Nossa S enhora] em t ronc os de árvo res, j unt o a font es, n as pe nhas das s erras. H á sem pr e u m m i l agre qu e se l h es associ a.” 229 230 231 232 232 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 698. Fernanda Frazão, ob. cit., p.11 Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., pp. 17 e 18. Fernanda Frazão, ob. cit., p.11 129 […] As mo uras e Nossa Senhora são igualmente confundidas quando, por vezes, se diz que esta levava uma pedra à cabeça, enquanto faz meia, tal co mo se diz que aquelas fia m, enqua nto transporta m o ta mpo de uma anta (Pala da Moura, T rás os-Monte s), ou a «Pe dra Formosa » de um castro (Briteiros, Guimarães). Por outro lado, o tipo de local – gruta, árvore (como é exe mplo a azinheira), penhasco, poço, mina, ca minho, fo nte, etc. –, a descrição da aparição – uma se nhora resplandecente, muito branca – importante e bela como – e um, aparecer ou a outro pastores ponto, não ou jovens a menos das populações rurais, o segredo a ma nter, etc. – são outros ta ntos ele me ntos que se repete m ne stes dois géneros de aparições. 233 E t am bém Al ex andre P arafi t a, a prop ós i t o da descobert a de i m agens s a grad as, f enóm eno, pel os vi st os, de m ai or i nci dê nci a em Trás -os -Mont es, e , que nós sai bam os, sem ocorr ênci a no Al ga rve (pel o m enos di gna de not a), rel aci o na a Vi rgem Mari a com pers ona gens de out ras l endas e ch am a a at en ção p ara a f i gura do “des cobri dor ” das i m agens que, na s l endas, t em paral el o na pers ona gem a quem a Senhora ap are ce: […] Vulgar me nte designado por culto mariano , há nele uma forte co mponente ico nológica. Antes do período da Reconquista, as ima ge ns da Vir ge m era m pratica me nte inexiste nte s e o seu aparecime nto em locais muito específicos acontece sempre acompa nhado de lendas que apresenta m um fundo co mum no seu conjunto. Desse fundo co mum é de realçar a figura do “descobridor” : geralme nte um pastor ou um la vrador, pessoa se m um status relevante e me nos ainda no quadro da instituição religiosa. E não é despicienda tal condição. Como não é e m vã o que ela é també m comum à ge neralidade das aparições marianas (que conte mpla m sobretudo crianças de famílias pobres e de escassa instrução). A circunstância de socialme nte, inibe haverem planeado se à tratar de partida uma acção pessoas toda e simp les, qualquer estratégica cultural presunção visando um e de culto iconológico cristão. Por isso, quanto mais a lenda acentue a 233 Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 19. 130 humildade social e cultural do “descobridor”, ma is convincente resultará o se u te ste munho, e a leitura a fazer do fe nó me no parecerá deixar claro que a iniciativa da “descoberta” não partiu do “descobridor”, mas da própria ima ge m, impulsionada por uma força sobrenatural num universo de códigos co municativos só interpretáveis no do mínio do sagrado. 234 Mas é i m possí vel di s soci ar a Senhora da i m agem da serp e nt e, poi s a própri a Nos sa S enhora da C on cei ção, a quem D. J oão IV con s a grou a Na ção , apar ece rep resent ada com aquel e an i m al . S ó que, di z Fernanda Fraz ão, a Senhora , “segundo a Igr ej a , pi sa a cabe ça da se rpent e ” , enquant o que “na gr ande m ai ori a d as i m agens, i s s o não acont ece: a serpent e enrosc a - s e-l he nos pés, abr açando o gl obo t er rest re, vi v a , bel a e, ap arent em e nt e, pací fi c a”. 235 Ora, na opi ni ão de st a aut ora, o nosso t erri t óri o, a Terr a de Ofi úsa, «T e rr a da S erpent e », dev e est a desi gna ção ao fa ct o de “aqui t erem encont rado, m ui t o vi vo, um cul t o cuj a di vi ndade e ra pers oni fi ca d a pel a s erpent e. E ess a di vi ndade e ra a G rande Mãe, a deus a da fecundi d ad e, a deus a dos ani m ai s, a deusa dos el e m ent os, a deus a de t udo e d a m ort e t am bém : a S e nhora .”. 236 E, sendo assi m , o cul t o de N ossa Senhora pode rem ont ar a épocas pr é -hi st óri ca s, t ai s com o out ros a que j á nos r efe ri m os. Ainda que não seja conhecida senão uma pequena imagem feminina do paleolítico português, do nosso neolítico, são bem conhecidas as muita s image ns da Senhora – «a deusa dos olhos de sol», co mo lhe c ha mo u um arqueólogo – gravadas e m placas de xisto. Associadas à serpente, sur ge m, no nosso território, ima gens co mo espirais, labirintos, serpentifor mes. Pertence m já ao período da agricultura, e muitas veze s estão inscrita s nas bases enterradas dos menires, ligadas a cultos su bterrâneos de morte e rena scime nto, de vida, enfim. 234 Alexandre Parafita, Mitologia dos Mouros, p. 73. Fernanda Frazão, ob. cit., p.11 : a autora faz, ainda, referência a imagens populares de Estremoz, em que a serpente se enrola “nas p ernas de Nossa Senhora, pousando a cabeça na região púbica”. 236 Fernanda Frazão, ob. cit., p. 12. 235 131 A Nossa Senhora cristã incorporou, de resto, todas as características das divindades fe mininas da H uma nidade. […] E, n ã o b a s t a n d o a s i n v o c a ç õ e s , v e j a m - s e o s l o c a i s d e «a p a r i ç ã o » d a s diversas imagens: font es, barrocais, árvores, grutas. Lembram histórias de mo uras e nc antadas… 237 O que nos rem et e, n ovam ent e, par a a s er pent e: E cá voltamo s à nossa Senhora / Serpente, numa ima ge m de órobo (a serpente q ue morde a ca uda), de infinito, de eterno r e t o r n o , a n o s s a « p e s c a d i n h a d e r a b o n a b o c a ». C r e i o p o d e r dizer-se que a repetitividade das temáticas do lendário de Nossa Senhora demo nstra à saciedade que lhes está subjacente um mito conte mporâneo do nasc ime nto da Huma nidade, que engloba todo o País e, na verdade, tod o o mundo. 238 E os desenhos de s e rpent es, i nscul pi dos em ped ras, t r az em - nos de vol t a a N ossa Se nhora : Convém realçar aqui um outro desenho insculpido nas rochas, muito abundante, em Portugal: os podomorfos. Encontram-se, na maioria das vezes, associados a os desenhos referidos atrás [insculturas e pinturas na própria decoração de mo numento s: e spirais, círculos, ziguezagues, antropomor fas, cabeças serpente s ou dese nhos serpentifor me s, labirintos, de bovídeo mac ha dos, e outros], us, figuras sobretudo às serpentes o u aos dese nhos serpentifor mes, símbolos da fertilidade e da regeneração sazonal. Aparecem de Vila Real, a Tondela, de Eiró ao vale do Tejo, do Alto ao Baixo Alentejo e ao Algarve. São, aliás, referência constante em lendas medievais portuguesas deno minadas, às vezes, por pegadas da burra que Nossa Senhora mo nta va. 239 237 Ibidem. Idem, pp. 15 e 16. 239 Gabriela Morais, Lenda da Fundação de Portugal, Irlanda e Escócia , Lisboa, Apenas Livros Lda., 2ª ed., 2006, p. 34. 238 132 Mas t am bém n ão é possí vel di ssoci ar N ossa Senhora do m ês d e Mai o, das fl o res e de t oda a bel ez a ex uber ant e da nat urez a na P ri m avera. Plasmando todas as a ctividades, a influê nc ia prima veril impregna assim, formal ou infor malme nte, organizada ou espontanea me nte, co mo ele me nto central o u c omple me ntar, todas as acções festivas (hoje predominante mente maria nas) acontecidas nesta a ltur a do ano, especialme nte as localizadas no te mpo primordia l e fertilizante das cale ndas de Maio. 240 E as t r adi ções l i ga das às “c al endas d e Mai o” n ão são po ucas por t odo o paí s, do Mi nho ao Al garv e – das “m arafon as” de t rapo à apanha do “di a d a espi ga ”. N est a noss a re gi ão, t am bém é cost um e faz er uns bol o s pr ópri o s , fei t os de m i ol o de am êndo a, que s e cham am “rol has de Mai o” , que os al gar vi os com em , acom panhados de vi nho doce, ger al m ent e em pi queni ques, ao ar l i vre, t radi ção a que dão o nom e de “ desarrol ha r o Mai o” . E t odas est as fest as se d est i nam a dar as boas -vi n d as à P ri m avera. N ão ser á, t al vez , por a caso , que N ossa Senhor a apar ece em Fát i m a, em Mai o … O que se pode dizer, sim, é que coexiste m naturalme nte, aqui, múltiplas influê ncias, que se funde m num co mp lexo mítico de que aspectos cultura is e históricos part icipam e m simb iose. São, por um lado, as festa s das maia s, sobrevive ndo nas marafonas que se constroe m para o efeito e se manip ula m durante todo o percurso, bem ainda co mo na s danças e cantos que tão característicos são das calendas de Maio. São, por outro, as festas das cruzes, persistindo na te mporalidade, na denominação (e mbora em d esuso) e na relação eventual com o culto mariano de Nossa Senhora do Pé da Cruz, hoje em dia transferida para Nossa Senhora do Castelo, […] 240 Aurélio Lopes, Personagens Florais Lisboa, Apenas Livros Lda., 2007, p.3. 241 Idem, p.18. e Espíritos da 241 Vegetação , 133 Mas não é só com a serpent e e o m ês d e Mai o qu e a fi gu ra de N os s a Senhora se rel aci ona: sí m bol o da vi da e da f ert i l i dade por ex cel ênci a, a á gua n ão podi a fal t ar nest e cont ex t o. Mari a, segundo o P adre Ant óni o Vi ei r a, si gni fi c a “ Domi n a Mari s , senhora do m ar” 242 e é prot a goni st a de al gum as l endas l i ga das ao m a r, nom ead am ent e a d e “Nossa S enho ra e o Li n guado ” ( LC NS 4) . Est a soberani a da s águ as t am bém f az de Iemanj á a sua repres ent ant e no s t e rri t óri o s afri c ano e brasi l ei ro : De acordo com a mito logia ioruba, Iema njá é um orixá 243 fe minino, consi derada «a se nhora das grandes água s , mãe dos deuses, dos homens e dos peixes, aquela que rege o equilíbrio e mocional e a louc ura », […] No Brasil, sa udada como a rainha d o m a r , I e m a n j á é «t a l v e z o o r i x á m a i s c o n h e c i d o » ( P r a n d i , 2001), […] No período da escr avidão, como os Negros não podiam cultuar livre me nte os seus orixá s e era m pressionados pelos padres catequista s a se convertere m ao catolicismo, procurara m utilizar os sa ntos da I greja Católica co mo disfarce dos deuse s africanos e, assim, poder reverenciá -los em seus cultos. Nas senzalas 244 , por necessidade de adaptação às condições a que estavam submetidos, erguiam pejis mas atrás delas, colocavam otás 245 com imagens de santos, 246 , elementos que representavam os orixás. No sincretismo religioso que resultou dessa prática, 242 Padre António Vieira, Sermão de Santo António , ed. Preparada por Manuel dos Santos Alves, Lisboa, Livraria Popular de Francisco Franco, 1976, p. 27. 243 “O r i x á : s e g u n d o « o s i o r u b á s t r a d i c i o n a i s e s e g u i d o r e s d e s u a r e l i g i ã o nas Américas, os orixás são deuses que receberam de Olodumare ou Olorum, também chamado de Olodim em Cuba, o Ser Supremo, a incumbência de governar o mundo, ficando cada um deles responsável por alguns aspectos da natureza e certas dimensões da vida da sociedade e da condição humana» (Prandi, 2001, 20)”, in Maria de Lurdes Soares, B.I. da Iara, do Boto e de Iemanjá, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2008, nota 3, p. 42. 244 “Senzala: alojamento destinado à moradia dos escravos nos engenhos de açúcar e nas fazendas do Brasil”, in Maria de Lurdes Soares, ob. cit., nota 5, p. 42. 245 “Peji ou quarto de santo: altar onde são colocados os assentamentos dos orixás”, in Maria de Lurdes Soares, ob. cit., nota 6, p. 42. 246 “Ot á s : t a m b é m c h a m a d a d e i t á o u O t á - d o - s a n t o : p e d r a - f e t i c h e s o b r e a qual o axé (a força sagrada) de um orixá é fixado por meio de ritos consagratórios, e que constitui o seu símbolo principal”, in Ma r i a d e Lurdes Soares, ob. cit., nota 7, p. 42. 134 Ie manjá corresponde, na religião católica, a Nossa se nhora da Conceição, a mba s ide ntificadas co m a cor azul clara, e ta mbé m a Nossa Senhora dos Navegantes (Rio Grande do Sul), Nossa Senhora da Glória (Rio de Janeiro), Nossa Senhora das Cande ias, Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora da Piedade. 247 E t am bém a associ ação com os ri t m os l unares a ap rox i ma de N os s a Senhora : O simbolismo do abebé ou espelho liga -se e m especial à principal característica de Iema njá: a mater nidade. Como mãe da criação, mãe de todos os filhos, Ie ma njá é o espelho do mundo. É ela que orienta, q ue educa os se us filho s, mostra ndo -lhes o u abrindo-lhes os caminhos. Não faz distinção entre eles, por isso é aquela q ue reflecte todas as diferenças . O espelho é um símbolo d as águas e m geral. A for ma arr edondada do abebé representa a fecundidade e lembra ta mbé m a lua cheia, conhecido símbolo do fe minino. Outros símbolos de Iemanjá são o quarto minguante, as ondas e os peixes. Nas representações significativa a essencialmente presença pela de Iema njá, do portanto, simbolismo mudança. A lunar, poderosa é bastant e caracterizado deusa rege o mo vime nto rítmico da vida, co m se us ciclos q ue se alterna m e se sucede m, do nascime nto à morte, como as fa ses da Lua. A ideia de mudança e de movime nto encontra -se també m e m outro símbolo de Ie manjá, as ondas, associadas ao mo vime nto do mar, ao incessa nte ritmo das marés. 248 247 Maria de Lurdes Soares, B.I. da Ia ra , d o Bo to e d e Iema n já , Lisboa, Apenas Livr os Lda., 2008, p. 4. 248 Idem, pp. 15 e 16. 135 5 .3 .CICLO D OS SANTOS Equi parados a di vi ndades m enores, m en os poderosas, m as nem por i sso m enos út ei s no process o de i nt ercessão, const i t uem um a gal eri a num e rosa. T êm quase sem pr e f unções espe cí fi cas, com o é, por ex em pl o, o caso de S ant o Ant óni o, o casam ent ei ro. As própri as fogu ei ras ac endi das em sua honra são , de al gum a fo rm a, c anai s do s eu poder, poi s não há m ui t o s anos ai nda se acr edi t ava nas sort es de St o. Ant óni o . 249 Apare cem , po r vez es, par a p rot e ger em al guém num a si t uação es pecí fi c a, quando i nvocados por um a p essoa que nel es t em um a fé i nabal ável . Em a gr adeci m ent o por ess es sal vam ent os, o prot egi do m anda e r guer um a c apel a ou, se n ão t e m posses par a t ant o , const rói um ni cho, ger al m ent e revest i do a az ul ej os, al usi vo ao acont eci m ent o. 249 manifestações divinas, do santo, através de práticas mágicas (adivinhatórias) em objectos com os quais se saltava a fogueira três vezes, esperando -se depois toda a noite para, de manhã, encontrar a resposta do “oráculo” para o futuro amoroso da rapariga; faziam -se com favas, com chumbo derretido em água e com água simples; nas que envolviam água, saltava -se a fogueira ao mesmo tempo que se segurava uma vasilha com essa água, que depois era usada para a adivinhação – poderemos fazer uma associação com o Graal, à luz da relação estabelecida por Gabriela Morais, em Lenda da Fundação de Portugal, Irlanda e Escócia? Diz esta historiadora (p.45): “O cálice do Graal faz parte do contexto da ritualização e do cerimonial do caldeirão, símbolo do acto essencial e regenerador do alimento. Este, tornado social, começou por ser, certamente, celebrado à volta da fogueira e adquiriu estatuto à volta da mesa dos banquetes […]”. Ou será “simplesmente” o vaso, conotado com o útero materno, uma vez que todas estas sortes se relacionavam com o casamento – a profissão do futuro marido, condição sócio-financeira, nome e, até, o próp rio indivíduo (que seria natural que fosse um rapaz da aldeia)? 136 Não i nt eressa a su a ori gem nem o seu passado, o sant o foi al gu ém que, a part i r de um m om ent o preci so, passou a i nt egr ar o s agrado: […] se na hagiografia cristã os maiores pecadores se tornam os ma iores santos, isso não acontece apenas para edificação dos fiéis quanto à omnipotência da graça divina, mas ta mbé m por efeito de uma muda nça de sinal, se mpre possível na ordem das bê nçãos, do s recursos e xcepcionais ma nifestados pela enor midade das falta s. 250 Mui t o provavel m ent e, t erá m esm o si do a Igrej a C at ól i ca que, vol unt ari a ou i nvol unt ari am ent e, aj udo u a propa gar al gum as l endas, com o crê em t am bém Fern anda Fraz ão e Gabri el a Mo rai s: Não ignora mos que, na Idade Média, muita le nda nasce u a partir do objectivo de divulgar a vida de santos – as hagiografias –, divulgação essa q ue era feita, precisa mente, através da leitura pública. E, se atender mo s ao a fã siste mático da Igreja Católica para extirpar quaisquer compree ndere mos aproveita me nto a razão claro do vestígios de que ser das anteriores desse vinha de crenças, nascimento. trás e que Num sabia profundamente arreigado nas crenças das camadas populacionais que pretendia catequiz ar, apropriou -se dos ele mentos esse nciais contidos nas tradições de cariz popular para os desviar, adaptar, recriar e assim os devolver com outras roupagens, mais consentânea s co m as cr enças que desejava imp or. Já o insuspeito abade de Baçal afirmava que: «[…] o c atolicis mo teve de adaptar -se, transigir, copiar mesmo as fór mulas, indume ntária e técnica linguística» 251 D este modo, a Igreja Católica apropriou -se deste tipo de histórias orais para as devolver reconvertidas, e s c r i t a s , d e e l a b o r a ç ã o e r u d i t a m a s a o j e i t o p o p u l a r , p o i s «o s u p o r t e d e u m a c r e n ç a é o u t r a c r e n ç a » 252. 250 Roger Caillois, ob. cit., p. 47. Francisco Manuel Alves, abade de Baçal, Memórias Arqueológico Históricas do Distrito de Bragança , tomo IX, Bragança, Tipografia Académica, 1982, p. 174, apud Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 52. 252 Honório M. Velasco, op. cit., p. 119, apud Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 11. 251 137 Ora, ai nda s e gund o as m esm as i nvest i gador as, t am bém os s ant os, em part i cul ar os conheci dos p or “sant os popul are s”, est ão rel aci onados com o ut ras apa ri ções, qu e j á apr esent ám os, t odas el as apont ando na m esm a di rec ção – os ant i gos cul t os de fert i l i dade. Os santos populares, uma óbvia cristianização das celebrações solsticiais mile nares be m co mo as fe sta s das Maia s ou da espiga, estão estreita me nte relacionados com os mo vime ntos cíclicos d a natureza, de seca e de chuva, co m as se me nteiras e a s colheitas e, portanto, ta l co mo as mo uras encantada s, encerra m e m si, ta mbé m, os mite mas característicos dos primitivos c ultos d e fertilidade. 253 E os cul t os de f ert i l i dade po r oc asi ão do sol st í ci o de V erão rem ont am t am bé m , com o sabem os, aos cel t as: A importâ ncia sacrofe stiva dos a ntigos cerimo niais ce lto bretões de «b e l t a n e » e a forte intensidade flamejante e fecundante do solstício de Verão tornara m o e spaço te mporal por eles delimitado, podemos no chamar o mo me nto grande por ciclo excelência festivo daquil o da a que exaltação da Prima vera. Datas cronologica me nte datáveis era m vista s como ocasiõe s reguladoras de um cosmo e ntendido co mo e ntrópico e renovável. Numa visão cósmica da existê ncia e m que o ho me m constitui, apenas, parte de um todo maior de que participa como que e m simbiose, e stes são te mpo s tão sa grados qua nto a fertilidade e a vida, aí exaltados, o podem ser. Eivados simple sme nte marcantes de funções catalisadoras, divinatórias, da gestação e apresentam-se crescime nto propiciatórias co mo de uma ou ele mentos natureza periodicame nte grávid a de vida. De uma mãe -terra que gera, incessantemente, novas formas de vida arrancando -as à sua própria substância. Que fecundadas pelo sémen celeste (que a 253 Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 33. 138 chuva corporiza) existências. explode, ciclica mente, numa sinfonia de 254 A rel a ção ent re S . J oão e as mouras e ncant adas é por d e m ai s evi dent e nas l enda s recol hi das, e At aí de Ol i vei ra av an ça um a pos s í vel ex pl i cação para est e fa ct o: As noites de S. João no Algarve simboliza m uma verdadeira religião tradicional, cuja crença se conserva de séculos arreigada no coração algarvio . Convenço-me de que de longa data tem sido festejada a noite consagrada ao santo glo rioso. Os mo uros iguaa lme nte festeja m o mesmo Sa nto, se gund o se vê nos livros antigos. Por isso talvez a ma ior parte das lendas de mouros tê m o seu enlace ou desenlace naquelas noites. 255 Mas não podem os e squecer a dat a da s ua com em ora ção e a sua as s oci aç ão com o so l st í ci o de Verão. Mas recordemos ta mbé m os rituais da água q ue se recolhe para beber ou para libações, na véspera de S. João, em busca dos seus milagres curativos e fecundadores. Água retirada das mesmas fo ntes o nde se diz que estão as mo uras e nca ntadas. Águas, fertilidade e re generação, a cobra e as moura s enca nt adas, todos são mite mas d o mesmo co njunto. E os exe mplo s das aparições neste conte xto são, evidente me nte, à s cente nas. 256 C i t ando ai nda as m esm as aut oras, na Al em anha, as fo gu e i ras t radi ci onai s “de pi nhei ro for am pri m i t i vam ent e em honr a de Fr ei a, deus a-m ã e da fe rt i l i dade” que, d e a cord o com C onsi gl i e ri P edroso, t erá si do “subst i t uída por S . J oão, no C oncí l i o de Agda, no sécul o V I”. 257 O que col oc a S . J oão, t al com o a Senhora , no j á ci t ado «c a m i nho da serp ent e »: 254 Aurélio Lopes, ob. cit., p.3. Ataíde Oliveira, As Mouras Encantadas e os Encantamentos Algarve, pp. 220 e 221. 256 Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 34. 257 Ibidem. 255 do 139 É nossa convicção que, para alé m de sere m «cac os» de mitos da nossa mais longínqua pré -história, deles [dos «r umores»] depende m muita s crença s (ou uma s e outras tê m subjacente o(s) me smo(s) mito(s)), co mo a crença em bruxas, fantasmas e a lma s -pena das, o entreaberto, os trasgos, fadas, etc., e, até, muitas das cha madas «le ndas urbana s» actuais, co mo a história da costureira que faz ouvir a sua eterna máquina de costura, cujo paralelismo co m a mo ura tecedeira nos parece claro, ou a do fantasma de uma mulher que pede boleia numa estrada. Pensa mos que este corpus está també m intima mente associado a muitas práticas de religiosidade popular, como as já mencio nadas interpretações ao vivo, as festas dos santos popula res, em que se destaca S. João, e tantas outras. T odas estas ma nifestações são reflexos do que r e sta do mito, contê m mite mas de uma me sma concepção do mundo de fundo pré -histórico. Analisadas e m muitos dos seus elementos constitutivos, desde as razões de tais festejos até à gastro no mia, pode mos verificar que todo este conjunto faz parte de um só «ca m inho da serpente » e m Portugal, desde a Pré-História até hoje. Aos Sant os Popul ares 258 est á associ ad a, obri gat ori am ent e , a “fes t a ”, que, ai nda que ap arent e o cont rári o, apres ent a um a r el ação es t rei t a com o sa gra do: […] as festa s proporciona m, e m co mparação com os dias úteis, à distinção entr e o sagrado e o profano. Elas opõem, na verdade, uma e xplosão inter mite nte a uma baç a continuidade, um frene si exalta nte à repetição quotidiana das me sma s preocupações materiais, o corpo poderoso da efervescênc ia comum a os calmo s trabalhos em que cada qual se afadiga isolada me nte, a concentração da sociedade à sua dispersão, a febre dos seus instantes culminantes ao tranquilo labor das fases átonas da existê ncia. De mais, a s cerimónias religiosa s de que elas são ocasião tr anstorna m a alma dos fiéis. Se a festa é o te mpo da alegria, é ta mbé m o te mpo da a ngústia. O jejum, o silê ncio, são obrigatórios antes da expansão final. Os interditos habituais são reforçados, 258 certas proibições novas são impostas. Os Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., pp. 25 e 26. 140 transborda mento s e os excessos de toda a espécie, a solenidade dos ritos, a severidade prévia das restrições, concorrem igua lme nte para fazer da ambivalê ncia da festa um mundo de excepção. Na realidade, a festa é freque nte me nte tida pelo próprio reino do sagrado. O dia de fest a, o simp les d omingo, é a ntes de mais um te mpo consa grado ao divino, e m que o trabalho é interdito, em que se deve repousar, gozar e louvar a Deus. […] 259 E não será, t al vez , por acaso, qu e, e m bora o di a de S . J oão es t ej a m ai s próx i mo do própri o di a do sol st í ci o de Verão , os di as dos t rês Sant os apa recem s e gui dos e m ui t o próx i m os, ocupando as res pect i vas fest as pr at i cam ent e t odo o m ês de J unho (de 12 a 29) . O excesso não se limita então a aco mpanhar a festa de for ma co nsta nte. Ele não é um simples epife nó m e no da agitação que ela desenvolve. É necessário ao suce sso das cerimónia s celebradas, participa da sua virtude santa e contribui co mo elas para renovar a natureza ou a sociedade. Realme nte parece não haver d úvida de que esta é a finalidade das fe stas. O t e mpo esgota, exte nua. Ele é aquilo que faz e nvelhe cer, o que caminha para a morte, o que desgasta : é o próprio sentido da raiz donde são extraídas em grego e em iraniano as palavras que o designam. T odos os anos a vegetação se renova e a vida social, do me smo modo que a natureza, inaugura um no vo ciclo. T udo o que existe deve então ser rejuvenescido. É preciso recomeçar a criação do mundo. 260 E não é, obvi am ent e, di fí ci l , rel aci onar est as fest as dos Sant os Popul ares com os ant i gos ri t uai s pagão s, cul t os de fert i l i dade, quer pel a époc a, que r pel as m ani fest a ções (fo guei r as, sal t os por c i m a das fogu ei ras e sort es ), quer pel a i nt enção dest as m ani fest açõ es , que r pel os seus própri os l ocai s de cul t o e ve neraç ão . […] as festa s dos santos populares estão estreita me nte ligadas 259 260 às mouras encantadas, não só por serem a época Roger Caillois, ob. cit., p. 97. Idem, p. 99. 141 preferencial para a sua aparição, como pelos aspectos do mito subjacentes a a mbos os fenó menos. Por outro lado, elucidativa é ta mbé m a prática gera l de cristianização da grande maioria dos locais o nde é voz corrente este s ente s mítico s se ma nifestare m: neles colocou-se uma imagem de Nossa Senhora ou de um santo, ergueu-se um cruzeiro, ou uma capela, etc. 261 Mas há out ros sant os e sant as i gu al m ent e “ ant i go s ”. Gab ri el a M orai s ex pl i ca a ori gem cel t a de S ant a Ana e de S ant a B rí gi da: (É interessa nte verific ar, por outro lado, que ta mbé m faz parte do panteão celta irlandês o nome da deusa Brigantina, com grandes semelhanças com uma outra, a deusa Brígida ou Brigite, que os mitógrafos consideram identifica r-se com a principal deusa dos Celtas, Dana ou Ana. Ora esta deusa bem conhecida da religião primitiva portugue sa, está presente no no me do rio Guadiana o u, até, e m Santa Co mba Dão (Dão ou Don, no me ta mbé m de um rio da Europa Central, que se rá a ma sc uliniz ação de Dana), para além de se encontrar em tantos outros topónimos de vilas e aldeias portuguesas. Sofrendo depois a cristianização para Santa Ana ou Santa Brígida, vale a pena acrescentar que esta última aparece conside rada como ir mã de S. Brissos (santo dos primórdios do cristianismo), no me igualme nte de, pelo menos, duas povoações e igrejas no Alentejo. No processo de evolução da religião primitiva matriarcal para a religião patriarcal, uma deusa passou, masculino.) nor ma lme nte, a ter o seu correspondente 262 E são v ári os os s an t os que se rel a ci ona m com a s erpe nt e , sej a qual for o m ot i vo apresent ado com o pret ex t o. “ S ão J orge ou S ão M i guel e o dr a gão, que os art i st as re present ar am m ui t as vez es a com bat er, i l ust ram a l ut a perp ét ua do m al cont ra o bem ” 263 , confundi ndo -se, po r vez es, o dr a gão e a serp ent e , p resum i vel m ent e por serem am bos guardi ã es “seve ros” de t esouros, pel as s em el hanças d e am bos com a serpent e -pássa ro Quet z al c oal t , com 261 Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 19. Gabriela Morais, Lenda da Fundação de Portugal, Irlanda e Escócia , p. 18. 263 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 274. 262 142 out ras “bi chas” co m cabeça de m ul he r, com Apófi s – a serpent e dra gão que at ac a a b arca sol ar de R á. Realmente, o dragão como símbolo de moníaco identifica -se com a serpe nte: Oríge nes confir ma esta identidade a propósito do Salmo 74 (ver Levia tã). As cabeças de dra[g] ões quebradas e as serpentes destruídas sã o a vitória de Cristo sobre o mal. Alé m das imagens bem conhecidas de São Miguel ou de São Jorge, o próprio Cristo é por vezes representado calcando aos pés um dragão. 264 Nest e cont ex t o de vi t óri a do bem sobre o m al , da i co nogr afi a cri s t ã, “ em t odos os cená ri os de T en t a ção”, M ari a T er esa Mei rel es acres cent a que “S . P at rí ci o, S . P aul o, S . Fi l i pe, S . Ben edi t o, S . J oão M oi sés e A arão sã o al gum as das fi gu ras m ascul i nas que com el a [ s erpent e] , de al gum m odo, se rel aci on a m .” 265 R el aci onando -se t a m bém com um anim al , m as apare nt e m ent e m ui t o di ferent e – u m a ave, o corvo – t em os S . Vi cent e. E di z em os “apar ent em ent e ”, p orque, com o j á vi m os, bast a s er um a a ve pr et a para se r i m edi at a m ent e conot ada co m “as forç as do Mal ”. No ent ant o, não par ec e que est es corvos qu e acom panh aram o f ér et ro d e S . Vi cent e fossem de al gum m odo m al éfi cos , pel o cont rá ri o, poi s i m pedi ram a dest rui ção do corpo do sant o. É que, nest e caso, a cor pret a não est á di rect am ent e rel a ci onada com o Di ab o e, por cons e gui nt e, com b rux as ou out ras fi guras suas subordi na da s, m as com o ant i go cul t o de S at urno, com o adi ant e ve rem os. E o corvo , habi t ual m ent e assoc i ado às brux as, na nossa época, era con si derado um a “ave ora cul ar” , em t em pos t ão rem ot os com o a pré -hi st óri a, at es t ada no l oc al pe l a ex i s t ênci a de m en i res e out ros v est í gi os. Assim, na ma ior parte das crenças a se u respeito, o corvo aparece como um herói solar, muitas vezes de miur go ou mensa geiro divino, e m todo o caso guia, e, até, guia das alma s na 264 Idem. p. 272. Maria Teresa Meireles, B. I. da Serpente, Lisboa, Apenas Livros Lda., 3ª ed., 2006, pp. 26 e 27. 265 143 sua última via ge m, pois, sendo psicopompo, ele penetra, se m se perder, o segredo das trevas. Parece que o seu aspecto positivo está ligado pescadores, às crenças tornando -se dos negativo desenvolvimento da agricultura. 266 povos nómadas, com a caçadores sedentarização e e o 266 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 235. 144 I I P A R T E CONTRIBUTO PARA A ANÁLISE E A INTERPRETAÇÃO DAS LENDAS SOBRENATURAIS ALGARVIAS 145 1. A ACÇÃO E OS AGENTES NARRATIVOS C om o afi rm ám os nout ro t rabal ho, s e é verdade qu e, em m u i t os cas os, há um a se m el hança ent re as car act e rí st i cas do s vári os m om ent os em que s e pode di vi di r a a cç ão, não é m enos ver dade que , em m ui t os out ros, t am bém , t udo suce de de form a i nesp erada. É m ui t o di fí ci l e arri scado, at é, t ent ar a pont ar um a est rut ura com o s endo t í pi ca dest as l endas. E est a i rre gul ari d ade é v eri fi c a da quer nas “nar rat i vas com pl et as” quer nos “ep i sódi os l endári os”. No ent ant o, em gera l , t ant o nas nar rat i v as com o nos epi sódi os, o narr ador é pr ed om i nant em ent e het erodi e gét i co, ocor r endo, por vez es, al gum hom odi egét i co. C om o excepç ão, t em os os casos de b rux ari a cont ados pel os própri os pr ej udi cados ou seus parent es , pel o que, nest e cont ex t o, surge m narrador es aut odi egét i cos (nom eadam ent e na r ecol ha de M ar ga ri da Tengarri nh a e na n ossa). As persona gens são quase sem pr e adul t a s, raras v ez es apa re cem cri anç as , nas l end as, e m esm o os moi ri nhos são poucos. Nos epi s ódi os são bast an t e m ai s frequent es. O encad eam ent o p redom i na em t odos os t i pos de t ext os, havendo ap enas doi s encai x es em du as l endas, com o v er e m os. S ão m ui t o poucas as na rrat i vas abert as, ent re as l en das, e os e pi sódi os cons i st em t odos em narrat i vas fechad as (consi derando as pers ona gens hum an as, se ex cept uarm os o fact o de não sab erm os o que acont e ce à cobr a, à al m a p enada ou ao cão pr et o…). O t em po ani s ocroni a s, das com o “ narrat i vas anal epses, com pl et as” el i p ses, pod e ap rese nt ar prol epses, d escri çõ es, res um os, m as o dos “epi sódi os l endár i os” é quase s em pr e l i near, res pei t ando a ord em cronol ógi ca dos ac ont eci m ent os (ex ce pt uam -se al gum as al usõ es a acont eci m ent os a nt eri ores, com o no caso da cos t urei ri nha, ou a ex i st ênci a de um cem i t éri o, ant i ga m ent e, em Bur gau. ). 146 O espaço é t al vez a cat ego ri a da narr at i va m ai s com pl ex a nos epi s ódi os, apresent ando um a va ri edad e ai nda m ai or do q ue a d as l endas – em qu al qu er sí t i o pode o corr er um a si t ua ção d e car áct e r s obrenat ural . A di f i cul dade prende -se com a quant i dade de l ocai s apont ada. 1.1. O NARRADOR Mediante as palavras, quando estas florescem nos seus lábios incontaminados, o narrador cria espaços de ficção, novas realidades que só se desva nece m no mo me nto e m qu e o relato se conclui e a história contada ter mina. O narrador é o eixo – escreve M. Vargas Llosa –, a coluna vertebral, o alfa e o ómega de qualquer ficção. 267 Neste espaço aberto pode acontecer o inesperado. […] A voz que narra é uma voz criadora, u ma voz que desperta a imaginação e nos abre uma janela através da qual poderemos entre ver outros universos. Em qual quer dos casos 268 (l endas edi t adas, i nédi t as ou recol hi das), o “ cont ador” é j á, evi d ent e m ent e, um “recont a dor” . As hi s t óri a s que t rabal ham os são as úl t i m a s dum a sucessão de r epr oduções , em qu e , de um m odo ger al , a responsabi l i da de pel a veraci d ade dos aco nt eci m ent os se pe rd eu no t em po. Ist o a pl i ca -se, nat ural m ent e, a t odas, m as m ai s às que j á est ão publ i cadas, poi s o edi t or, de cert a for m a, apenas rep rod u z o que l he cont ara m ( em bora el e s ej a, t am bém , obvi am ent e, um “cont ador”), em i t i ndo, por vez es, j uí z os de val or sobre o que cont a q ue ouvi u (com o é o caso fl agrant e d e At aí de Ol i vei ra). Mari a T eres a M ei rel es afi rm a qu e “o co nt ador pode, at r avés das pal avras qu e escol he, dram at i z ar ou desdram at i z ar um a si t uação; acent ua r um act o, refor çar c ert a hero i ci dade ou, pel o c ont rári o, 267 Mario Vargas Llosa, «La mentira de las verdades», EL PAÍS , 31 -X1999, p.16, apud Gabriel Janer Manila, Literatura Oral e Ecologia do Imaginário, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2007, p. 2 7, nota 30. 268 Gabriel Janer Manila, ob. cit., p. 23. 147 ret i rar a fo rça devi da ao h erói / heroí n a. ” 269 E acr esc ent a q ue “não s ão apenas as perso nagens que a gem , m as t am bém o cont ador que as s i m t ransform a o seu cont ar si m ul t ane am ent e em voz e em eco.” 270 A m esm a aut ora e x pl i ca est a t ransfo rm ação, a p ropósi t o do cont o, m as que cons i deram os que se apl i ca i gual m ent e à l en da: Quem conta, transforma o conto ( Quem conta um conto acrescenta um ponto). Que m o uve, ta mbé m transfor ma o conto (Quem faz o conto é o ouvinte , escreveu Italo Calvino), e todo aquele que ouve um conto transforma -se desde logo num potencial contador. O conto, por seu lado, transfor ma -no s – o conto possui, de algum modo, o dom d a meta mor fose. Ante s e d epois do conto não so mos os me smo s e, pelo meio, enq uanto e scuta mo s, passa mos por uma e spécie de petrificação , de não -mo vime nto, da atenção que o próprio conto exige de nós. 271 Um a at i t ude de des responsbi l i z ação ou, pel o cont rári o, de cum pl i ci dade, t am b ém se v eri fi ca nas l endas r ecol hi das, o u sej a, n a nos s a recol ha vi v em os, provavel m ent e, si t uações sem el hant es às dos out ros col ect ores. O contador pode estabelecer, com o ouvinte ou ouvintes, uma forte c ump licidade, e por isso se se n te à vontade para come ntar e sublinhar fa ctos do próprio conto […] Muitas vezes, o contador explica e contextualiza o que conta, sobretudo quando refere localidades específicas ou quando usa uma palavra anacronismo […] que pensa ser um regionalismo ou um 272 Ai nda assi m , d e t o das, são as l endas i nédi t as (e al gum as das recol hi das) as que “corr eram m enos m undo”, poi s não devem t er 269 Maria Teresa Meireles, A Palavra e os seus ecos, p. 7. Idem, p. 11. 271 Maria Teresa Meireles, Quem isto ouvir e contar, em pedra se há -de tornar – Sobre o conto e o reconto, 2ª ed., Lisboa, Apenas Livros Lda., 2005, p. 18. 272 Maria Teresa Meireles, A Palavra e os seus ecos, p. 9. 270 148 s i do m ui t o propagad as for a daqu el a z ona (no m áx i m o, ent re S agr es e La gos ), nem rep et i das m ui t as vez es , nem por m ui t o t em po, s obret u do as de l o bi somens e as de medos , poi s, supost am ent e, pas s aram -s e com pessoas que vi vi am em Burgau; j á as da mort e são t al vez m ai s conhe c i das, pel o m enos p erdura ram po r m ai s t em po, poi s ouvi m o -l as vári as vez es durant e al guns anos. Apont am os ex em pl os das e x pressões m ai s ut i l i z adas pel os narrado res nas di v er sas si t uações: a) m om ent os de desresponsabi l i zação : “Di z a l enda que…”; “Di z -se que…”; “Ouvi a -s e cont ar que …”; “ D i z e m os que se julgam versados nas tradições que…”; “Conta-se que…”; b) m om ent os de cu mp l i ci dade : “Daí a t é hoj e t em a pobr e m oura es perado qu e a r ed i m am do seu cat i ve i ro, e ai nda l á se conserva nes s a doc e espe ranç a e se conserv ará po r t odos os sécul os.” ( L M 6 ); “Ora é ex act am ent e nest e pl ano ocup ado act ual m ent e pel o R i o Seco , onde se acham en c ant ados m ui t os m ouros, que al i ai nda ex i st em , prefe ri ndo a vi da s ubt errân ea à vi da s obre o nosso pl anet a.” ( L M 1 1); “E assi m , o al garvi o de Espi che foi m orre r ao P ort o.” ( LM O 3); “com pra -se i st e, na há ni ngu ém que pe gue na gent e !” (E LF e B 1); c) m om ent os de i ncapaci dade para ref ut ar provas por demai s evi dent es : “Mui t as pessoas, desde a m ai s rem ot a ant i gui d ade at é hoj e, t êm t ransm i t i do num a t radi ção s e m pre const ant e as suas vi sões de Fát i m a, a m oura encant ad a, encost ad a ao ga r gal o do poç o. Todos os rel at os concorda m em que essas vi sões se passaram ou ao m ei o di a em pont o ou à m ei a -noi t e em pi no.” ( L M 53 ); “Ai nda não há 10 anos que por al i ni nguém pass ava, porq ue à hora fat al , à m ei a noi t e, apare ci a a m oura v est i da de branco c om os seus cabel os de ouro s ol t os aos vent os. [ ...] J á t em si do vi st a em c ert as o casi ões, sem pre de noi t e, a convers ar com um m eni no de gor ro enc arnado e ol hos gr andes. Est e m eni n o t em apare ci do a m ui t a gent e d e Ol hão.” ( L M 149 14); “cont a e fi ca m ani fest am ent e z an ga do quando pom os em dúvi da aqui l o que di z que vi u bem vi st o com os ol hos que a t erra há -d e com er” ( E LAP / M 9); “A verd ade é qu e, 15 di as depoi s, foi -se o m i údo e, 15 di as depoi s, l á se foi a pob re da m ã e.” ( LM O 1 ); d ) m o m e n t o s d e n a t u r e z a m í s t i c a p r ó p r i a d o A l g a r v e : “Ver ão pl eno. C a l or i nt enso. Al i , no Al ga rve, o m ês de A gost o é m ui t o quent e e t em noi t e s cál i das de um l uar l um i noso com o obra de m agi a. Tudo, nat ur e z a e povo, parece ba nhado por essa l uz prat ead a. Um ar de m i st éri o envol ve a t er ra q uando as horas ava nçam no s i l ênci o da noi t e. E a i m a gi naç ão fe rvi l ha nas m al has do so nho. E a l enda t e ce -s e na t ra m a de fi os de ansi e dade e de l uar. ” ( L M 37 ); “ A pres enç a da j ov em m oura t i nha al go de sort i l égi o. A su a b el ez a er a gém ea da su a al t i ve z . E am bas pareci a m fi l has do sonho e da poesi a des s e fi m de t arde nost ál gi co.” ( LM 3 9 ); “Era j á noi t e e, dei t ado, ol hava o céu obse r vando as est rel as m ui t o vi vas, com o cost um am s er no céu al garvi o” ( E LAP / M 6). 1.1.1. A PRESENÇA DO NARRAD OR Na sua m ai or pa rt e , “os epi sódi os l endári os” for am cont ados p o r pessoas i nt e rve ni ent es nesses aco nt eci m ent os , conhe ci das ou m es m o fam i l i ares aut odi egét i cos ou desses i nt e rveni ent es hom odi egét i cos) , ao (po rt ant o, cont rári o narrado res d as l endas propri am ent e di t as (sal vo ra ras ex cepç ões, com o L M 21 ), em que o narrado r é sem pr e het erodi e gét i co, a t é pel o t em po que deco rreu ent re os a cont eci m e nt os e a sua (úl t i m a) narra ção. No caso das “ Lend a s In édi t as”, as l end as da mort e apres en t am t odas narr ador het er odi egét i co, assi m co m o E LAP / M 2 , e E LLO 1, e quas e t odos os os out ros epi sódi os l endári os são cont ados por narrado r hom odi e gé t i co. A nar rat i va encai x a da de L M 21 e as anal epses o corri d as em 150 LM 3 5, LM 37, e L M 21 são cont adas pel as própri as pers onagens. Em LM 35 , Zul ei m a reco rda a vi da no pal áci o de seu p ai , ant es de t er s i do encant ada, e em L M 37 ( e LM 1 4), Fl ori pes rel at a as fu gas do pai e do n am ora do, o naufr á gi o des t e úl t i m o, a que as si st i u de l onge, m as qu e a i m pedi u de s er l i bert ada e o d ecorr ent e encant am ent o – nar radores aut odi e gét i cos, assi m com o e m L M 21 , em que a m o ur a na rra t am bém as ci rc unst ânci as em que ocorreu o s eu enc ant am ent o e, at é, as v ári as t ent at i vas l evadas a c abo para s er des encant ada. Nest a úl t i m a, com o j á ref eri m os , ex i st e ai nda um out ro narrado r, o do encai x e, o rapaz que afi rm a t er vi st o a m oura e fal ado com el a, e q ue rel at a o encont r o ao am i go , r eprod uz i ndo a hi s t óri a da m oura – narrado r hom odi e gé t i co. 1.1.2. A CIÊNCIA DO NARRADOR Quant o ao sabe r, o narr ador m ai s fr eq uent e é o om ni sci e nt e, em bora nem s em pr e est a si t uaç ão se j a i ndi scut í vel . Adopt ando di versas fo cal i z açõ es i nt ernas, nas l e ndas, o n arr ador n ão dei x a m argem para dúvi d as acer ca do seu c onheci m ent o gl obal , em bora por vez es, devi do, t al vez , a i nt rusões do edi t or , faça af i rm ações des conce rt ant es, re correndo ao “Di z - se que … ” e ao “Não se s abe…” , que dei x am o l ei t or na dúvi da s obre essa o m ni sci ên ci a. Nos epi sódi os l endári os, é m ai s frequent e a foc al i z ação ex t erna, em bor a por vez es se adopt e a v i são de um a pe rsona gem em part i cul ar. T am bém , por vez es, o narr a dor sabe t udo: “S e el e não t i v es se dei t ado for a os fi gos, t r ansfo rm avam -se em dobrões de ouro.” Nas “ Lend as In édi t a s”, o narrador adopt a focal i z ações i nt er nas do prot agoni st a do “i nci dent e”, nos ep i sódi os l endári os de medos , focal i z ações ex t er nas nos doi s “ca sos” de l obi some ns , e o m ni sci ent e nas hi st óri as da mort e . 151 é 1.2. CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS DA ACÇÃO Um a sequên ci a n ar rat i va é, por de fi n i ção, um conj unt o de acçõ es, l i gad as ent r e si por rel ações de t em poral i dade e c au sal i dade, ocorrendo num m es m o espaço e num a m esm a sequênci a t e m po ral . Em am bos os t i po s de t ex t os, o pro cesso m ai s com um d e art i cul aç ão das sequ ênci as na rrat i vas é o encad eam ent o . N a s l endas de mouras encant a das , a al t ernân ci a não ex i st e e encont ram os apenas um c aso de e ncai x e. 273 LM 21 é um a d aque l as si t uações pouco frequent es, a que, al i ás, j á fi z em os ref erên ci a , em que a n arr at i va pri nci pal é en cai x ada na s ecundári a – o enco nt ro do rap az com a m oura const i t ui um encai x e num a hi st óri a de um passei o de doi s am i gos, que cont i n ua após o encont ro, quando o rapaz que est ava a dorm i r acord a e a m oura des apar ec e. “[ V] endo o seu am i go ví t i ma de um a horrí vel sugest ão ”, o rapaz qu e dorm i ra durant e o en cont ro “envi dou t odos os esforços em convencê -l o do seu erro” – e segue -se um a out ra sequênci a narrat i va que de cor re, n ão da pri m ei r a, m as da na rrat i va e ncai x ada (o que é ai nd a m eno s frequent e ). C om o j á ex pl i cám os na pri m ei ra part e dest e t rabal ho, quando apresent ám os a nossa propost a de cl assi fi caç ão dest as l enda s, a sua t em át i ca c ent ral é o “enc ant am ent o”, que pode est ar ex pl í ci t o ou apenas i m pl í ci t o, del e decor rendo o desencant am ent o, ou não – a pos s i bi l i dade ou i m possi bi l i dade da anu l ação do en cant am e nt o é qu e é o fact o r que det er m i nará a m odal i dad e da com posi ção. P odem os, assi m , consi derar “ fe chadas ” as narr at i vas em q ue o encant a m ent o sur ge com o o desenl a ce i rreversí v el da hi st óri a ( L M 4 1, LM 49 , LM 54 , LM 10 e LM 16 ) , aquel as em que, por um a qual quer i ncap aci d ade do desen cant a dor , são “ani qui l a das” as pos s i bi l i dades de de sencant am ent o ( L M 33 , LM 34 , LM 35, LM 36 , 273 Nossa Dissertação de Mestrado , As Lendas de Mouras Encantadas do Algarve. 152 LM 40 , LM 50 e LM 3) e ai nda, nat ural m ent e, aqu el as cuj o des enl ac e co nsi st e na consum a ção do d esencant am ent o ( L M 37 , LM 4 2, LM 43 , LM 44 , LM 45 , LM 47, LM 11 , LM 2 4, LM 25 , LM 26 , LM 27 , LM 28 e LM 31 ). “Abert as ” s ão t od as as out ras, em que, h avendo ou não t ent at i vas de d ese ncant am ent o, a su a possi bi l i dade perm anec e, cons ervando -se os encant ados “n essa doce espe ranç a”, ai nda que s ej a por “m i l e um a nos”. Os epi sódi os l endári os, pel a sua própri a nat u rez a (acont e ci m ent os pont uai s) , s ão quase t odos narrat i vas fechad as (em bora não s e sai b a o que a cont ec eu à m oura que ofe rec eu os fi gos e depoi s desap are ce u, nem t ão pouco às al m as p enadas qu e ent rar am pel a rocha ), ex cep ção fei t a aos “en cant am ent os” em t ouros e carnei ros (e acont eci m ent os al gum as ( ex cept o, cobras), t am bém , q ue o quase t ouro que nunc a só rel at am at acav a a det erm i nadas horas e o out ro t ouro que cai u dent ro da font e), l i m i t ando -se a r e gi st ar a ex i st ênci a d esses f enóm enos e um a ou out ra apa ri ção. Tem os , ai nda, as l e ndas de brux as, l obi som ens, al m as pena das, s erei as e m o rt e, q ue são quase t odas fechad as (não s ab em os se Bern ardi no cont i nu a ou não a “ corr er o seu f adári o” ) , e m bora os m i s t éri os persi st am … E LMO1 é ab ert a, p oi s fi cam os sem sa ber se a m o rt e l ev ou o vel ho. As l endas de car áct er rel i gi oso são i gu al m ent e fech ada s, p oi s rel at am a cons ecu çã o de m i l a gr es – s al vam ent os, cast i gos ou fa ct os que est i veram na o r i gem da const rução de capel as, ger al m ent e; há, ai nda, a i m a gem do S enhor J esus que s uava san gu e e cri av a barb a, m as est es fenóm eno s t am bém j á não se r egi st am . 153 1.3. AS PERSONAGENS J á anal i sám os as c aract erí st i cas fund a m ent ai s, assi m com o as ori gens, d as fi gura s mí t i cas e rel i gi osas que prot a goni z am est as narrat i vas. V am os, ago ra, deb ruça r -nos sobre el as com o per sonagens das l endas e epi sód i os l endári os que c onst i t uem o nosso corpus de es t udo e sobre o uni verso das pe rsona ge ns humanas que as p ovoam . 1.3.1. CARACTERÍSTICAS DAS PERSONAGENS Os prot a goni st as , qu er das l endas , quer dos epi sódi os l endár i os, s ão s em pre i ndi ví duos. As massas são persona gens s ecundá r i as , com al gum peso no de senrol ar dos a cont eci m ent os, ou si m pl esm ent e fi gur ant es – as t rop as e o povo. Ex i st e, no ent ant o, um a ex cepç ão – a s bruxas são as ún i cas pers ona gens pe rt en cent es ao uni verso m i t ol ógi co que agem em grupo. Os núcl eos f am i l i ar es, est rut u ras col ec t i vas por nat urez a, são apresent ados com a sua ve rdadei r a pro bl emát i ca conf l i t ual , i st o é, com os seus el em ent os perf ei t am ent e i nd i vi dual i z ados, cada um com um a função e um l uga r na hi st óri a. 1.3.1.1. OS ENCANTADADOS H om ens, m ul heres ou cri an ças são ger al m ent e educ a dos, capaz es de com p ai xão, generosos e nu nca for çam ni ngu é m a faz er s ej a o que for cont ra a sua vont ade (a grande ex cepç ão é a m oura de Al goz , m as At aí de Ol i vei ra al ude t am b ém ao car áct e r ant i pát i co de Fát i m a, a m oura en cant ada no P oço do Vaz Varel a, ch am ando -l he “arroj ada, r ebel de e vi ngat i va ” 274). 274 Ataíde Oliveira, ob. cit., p. 193. 154 Assi st e -se a um a superl at i vaç ão das qual i dades da j o vem m ul her m oura (que faz l em brar a da s cant i gas da noss a poesi a t rovadoresc a), qu e r esul t a num a di vi ni zação fem i ni na que, por si só, não surpreen d e, m as cuj a bel ez a, m ui t as vez es angel i cal , cont rast a, ao m esm o t em po, c om a sedução qu e ex erce (vol unt ari am ent e ou não) e com um a obsessão pel a ne ga ç ão do cri st i ani sm o, de que decorr e um a c ert a c onot ação m al é fi ca. Não é fá ci l ret rat a r a moura encant ad a. Di rem os m esm o que não é possí vel cri a r um t i po . O que m ai s di fi cul t a a defi ni ção dest a fi gu ra é a sua cara ct eri z aç ão (psi col ógi c a, cl aro), c uj os t raços, n ão s ó não se podem gen er al i z ar (quando m ui t o, agru par), com o fo rm am um l eque que abran ge um a en orm e m ul t i pl i ci dade de car act e res. De aco rdo com o no sso est udo ant eri or, apurám os al guns d ados es t at í st i cos, em função do corpus est ud ado, que en gl obav a t odas as l endas de mouras e ncant adas , j á publ i cadas, qu e nos foi possí vel encont ra r. A c oncl u são , em núm er os ar redondados , foi a s egui nt e : 50% de m oi ri nhos bons e 50% d e m oi ri nhos maus ; 50% d e m ouros b o n s e 50% de m ouros maus ; 50% de m ouras boas , 20% de m ouras mai s boas do que m ás ; 15% de m ouras mai s más do qu e bo as e 15 % de m ouras más – o u, se qui serm os, si m p l esm ent e 70% bo as e 30 % más . Os pre cei t os dos de sencant am ent os v ari am , m ant endo, cont udo, al gum as ex i gênci as com uns a al guns del es: m ant er se gr edo, por ex em pl o, é fundam e nt al em quase t odos os casos; a queb ra de um a prom essa (que pod e ser a de gua rda r se gredo ) ar rast a consi go, ge ral m ent e, um c a st i go; a não cons e cução do des enc an t am ent o, frequent em ent e i nt erveni ent es ac arret a – para um o dupl o cast i go, desen c ant ador , pa ra pel a a m bos os i ncapa ci dade m ani fest ada de con cl ui r as provas a que foi subm et i do, par a o encant ado , pel a m á escol ha do pri m ei ro. O que, m ui t as vez es, não nos perm i t e p erc ebe r se s e t r at a d e car á ct er vi n gat i vo do en cant ado, 155 s e de az ar, obr a do dest i no ou cont i ngê nci a i ner ent e ao pró pri o act o de desencant ar . As mouras encant adas apare cem a q ual quer um – o seu obj ect i vo é serem aj udadas, é ser em desencant adas. A sua cara ct erí st i ca m ai s r el evant e é o e goí sm o, o “não ol har a m ei os para at i ngi r os fi ns”. P ri si onei ras de um d est i no fat í di co, qua ndo em des espero de c aus a, est ão di spost as a t udo em t roca da sua l i bert ação – são apa rent adas dos hum anos. De cert a form a, C ássi m a e a m our a d’ “O B ol o Bran co” s ão m a i s cruéi s do que a m oura de Al goz , poi s a vi nga nça não pode rá dev ol ver -l hes a esp er an ça, m as o m ot i vo de am bas é a não acei t a ção de um a vi da d est roçada, provocada p el a i né pci a de out rem – há sem pre um argum ent o humano capaz de at enuar a su a m al dad e . Apesar d e se r fei t a a apol o gi a de el ev a dos val ores m or ai s com o a honest i dade, a honra, a obedi ênci a, a fi del i dade, a coerê nci a e a s ol i dari edade, e d e cara ct erí st i cas com o a ast úci a, a det e rm i nação e a cora gem , e de ser em cri t i cados os seus opost os e t odos os t i pos de fraquez a , com o a curi osi dade, a des c onfi ança, a i n genu i d ade, a i ns egur anç a e a cob ardi a (com o j á m en ci onám os) , a ve rda de é que es t ão m ui t o presen t es o egoí sm o e a vi ngan ça, sai ndo vi t ori osa, m ui t as vez es, a am bi ção. É com o se o povo p ort uguês (con cret am ent e, o al ga rvi o), n um a época que não é c aract eri z ada, propri am ent e, pel o “eas y l i vi ng”, com os t esouros ocul t os e os proc essos de d ese n can t am ent o apel ando a um r efo rço das cap aci dad es e da co ra gem , a u m cert o heroí sm o, at é, par a vencer as di fi cul da des, t i vesse encont r ado um a form a de nunc a per der a esp eran ça na possi bi l i dade de “t r ocar ess a vi da de t rabal hos e m i séri a pel a de soss ego e r i quez a” ( LM 48 ) (que pode ser, si m bol i ca m ent e, o conhe ci m e nt o espi ri t ual e a pa z ). 275 275 Nossa Dissertação de Mestrado , As Lendas de Mouras Encantadas do Algarve. 156 1 . 3 .1. 2. NAS LEN D AS DE MOURAS EN C AN T ADAS Nest as hi st óri as, de sf i l am vari adí ssi m os “t i pos” soci ai s, a par de al gum as persona gens qu e se dest ac a m pel as suas cara ct erí st i cas própri as. Os hom ens port ugue ses são, habi t ual m ent e, coraj osos, honr ados e am bi ci osos. As m ul heres, m ai s i nsegur as, m as nã o m enos coraj osas, e i gu al m ent e honr adas e am bi ci osas. A curi osi dade é com um a am bos os sex os, t endo, no ent ant o, conse quênci as di fere nt es, i st o é, se um hom em age m ovi do por curi osidade, em ge ral , a caba po r en cont rar um t esouro, m as quando é um a m ul her que l he n ão r esi st e, norm al m ent e a c aba po r est r a gar u m pl ano qual quer do m a ri do, que l hes pe rm i t i ri a m el horar de v i da. As m ul heres são i nt erferi r em f r e quent em ent e i ndevi dam ent e c ausa doras (quando um de i nfort ún i os, hom em , por perant e as evi dênci as, i nt e rfe r e, as consequ ênci as ne gat i vas, s e as há , rec aem ge ral m ent e sob re a m ul her , com o em “ O P al áci o sem P ort a s” ), o que t am bém rem et e par a a m ent al i dade co m um da época m edi eval , a i dei a da m ul her com o veí cul o da t ent açã o dem oní aca. Todos querem enri quec er, m ul here s e hom ens, j ovens e m enos j ovens, pobres e m enos pobres. E t o dos são fi éi s aos s a gr ados pri ncí pi os c r i st ãos do bapt i sm o. S ão m ui t o pouc os os el em ent os forne ci dos pa ra a cara ct eri z aç ão fí si c a dos port u gu eses. P ara al ém da j uvent ude e da vel hi ce ( e nem sem pre), m ui t o ra ram en t e se re fer e a b el ez a (só em LM 34 e em LM 36 ) e nunca out ros el e m ent os que perm i t am com por qual quer r et rat o, po r m ai s va go que sej a . O m esm o não sucede em rel aç ão aos m ouros que, se forem hom ens, quando j ov ens, são sem pre bel os, e, s e m ul her es, l oi ras ou m orenas, m as sem pre j ovens e sed ut oras, de um a f orm osura i ndescri t í vel . Os val ores m orai s não di ferem dos dos port ugues es, m as os hom ens m ai s vel hos são vul garm ent e m ai s avaros e possuem 157 conheci m ent os de ar t es m ági c as. P ai s i gual m ent e ex t rem osos e severos, t ant o encant am as fi l has para as sal v arem do s port ugues es, na i m possi bi l i dade absol ut a de as l evarem consi go, c om o por c ast i go, p or deci di r em el as c asar com quem el es não quer em (ou vi ce -v ersa), m as faz em -no sem pre po r am or. S e a fi gu ra do p ai é preponde rant e , a da m ãe é qu ase com p l et am ent e i nex i st ent e, sendo as duas versões d’ “A Moura de S al i r” as úni c as r efe rênci a s a um a m ãe ( j á m ort a). 276 Enquant o a j ov em m oura ap ar ece nas t r ê s fases – ant es, dura nt e e depoi s do encant am ent o (às vez es, na m esm a l enda) –, o j ovem m ouro apare ce j á encant ado (só e m L M 41 e LM 16 é que encont ram os um j ovem t rovador ant es do encant am ent o), nada se s abendo sobre o s eu passado, nem sobre as suas rel a ções f a m i l i ares. As cri a nças port u gues as são sem pr e “os fi l hos” do c asal envol vi do na hi st ór i a do desen cant am e nt o (apen as em L M 34 , LM 4 2, LM 43 , LM 2 4 e LM 27 ), nunc a sã o meni nos nem meni nas , e só em L2 assum em i m port ânci a, po r ser o pri m ogéni t o (o ú ni co cuj o s ex o é di fer enci ado ) o obj ect o de i nt e r esse da m oura. As cri anç as m ouras são i nex i st ent es (t al com o as m ães) , e qu ando apar ecem , j á encant ad as, são se m pre m eni nos – não há moi ri nhas (quand o o t erm o é usado, é com o di m i nuti vo revel ador de cari nho ). A úni ca ex cepção é o i rm ã oz i nho da “Moura de F aro ” ou “do Arco d o R epouso”, que aco m panha a i rm ã ant es do encant am ent o , fi cando am bos encant ados , e m segui da. Assi m , a vi da fa m i l i ar ex post a é apena s a d as f am í l i as port ugues as e nunc a a das árabes. Qua ndo é revel ado o i nt eri or de um a casa d e m ouro s (com o em “Di no r ah” ou em “O Abi sm o dos Encant ados” ), nunca é abord ada a probl em át i ca fam i l i ar 276 Nossa Dissertação de Mestrado , As Lendas de Mouras Encantadas do Algarve. 158 propri am ent e di t a, a penas a r el aç ão da m oura com o pai . S ão m enci onados al guns rei s port u gues es, raram ent e, o que não é de est ranh ar, po i s vi vi am à part e, nos pal áci os das capi t ai s; quando apar eci am , era pa ra conqui st a r em cast el os aos m ouros e, m es m o assi m , D. P ai o P eres C orrei a ass um e m ai or prot agon i sm o do que qua l que r r ei . O s gov ernado res m ou ros vi v i am nos c ast el os das povoações, j unt o da popul ação; o c am p onês e o pes cador a l garvi os nunca t i nham vi st o, segur am ent e, o rei port uguês, m as co nheci am , m ui t o provavel m ent e, o govern ador do cast el o m ai s próx i mo – não s erá, cert am ent e, por ac aso, que o carpi nt ei ro d’ “ A Moura C ás s i m a” re conhec e o ex -gov ernado r d e Loul é em duas v ersões e que est e r econhe ce o art i st a, nas t rês. 1 . 3 . 1.3. NOS EP IS Ó D IOS LENDÁR IOS DE MOURAS EN C AN T ADAS Nest es “ cacos ”, as persona gens são em m enor núm ero . Em ge ral , doi s hom ens, duas m ul heres ou m ãe e fi l ho pass am por um a meni na que, com ou sem est ei ra, o fere ce fi gos, com ou sem recom end ação. A fal t a de at enç ão ou o desr espei t o po r al gum a recom enda ção t ransform am (na m ai ori a das vez es) o s dobrões d e ouro, em que , ent ret ant o , se t i nha m convert i do os fi gos , em carvão , par a desi l usão dos cont em pl ados q ue, norm al m ent e, t ent am a sort e s e gu nda vez , nunca sendo b em sucedi dos. Tam bém nest es epi sódi os, a m oura , por vez es, est á pent ea ndo os s eus l i nd os cabe l os dourados e t am bém , por vez es, ao vol t ar em ao l ocal do encont r o, é um a s erpent e q ue as p essoas en con t ram , em vez da meni na que t i nha ofer eci do os fi gos. 159 1 . 3 .1 .4. NAS LEN D AS E NOS EP IS ÓD IOS LEND ÁR IOS D E L OBISOMEN S Est as l endas envol v em quas e sem pr e o l obi somem , a fam í l i a e os vi z i nhos. A ex cepção é o epi sódi o e m que os doi s am i gos t ent am l evar o bu rro qu e depoi s se t rans for m a em hum ano, po i s não há rel aç ão ent r e el es e o ani m al e, com o se passa no m ei o do c am po, de noi t e (ou ao anoi t ec er) , t am bém m ai s ni nguém i nt erv ém . É de sal i ent a r a cor a gem rev el ada p el a m ul her que, cont ra t o dos os peri gos, conse gu e cum pri r à ri sca a s i nst ruções do seu m ari do l obi somem , l i bert an do -o, assi m , do seu fadári o. Tam bém é de re feri r o l obi some m de LLO 2, qu e é a c usad o de brux ari a, pel o que, em vez de i nspi rar al gum a pi ed ade, co m o vi m os ant eri orm ent e qu e é a si t uação m ai s co m um , despert a nos vi z i nhos a rai va, po r vez es i nc ont i da, sendo m esm o al vo de act os vi ol ent os de vi ngan ça, por p art e daquel es. 1 . 3 .1.5 .NA LEN DA DE SEREIAS Na “ Le nda da P r ai a da R ocha ”, não há p ersona gens hum anas : o pes cador a qu e se fa z refer ênci a, em br e ve é i dent i fi c ado co m o m ar, as s i m com o o serrano acaba por se re vel ar com o sendo a própri a S erra de Mon chi que . A serei a , com o é h a bi t ual , é sedut ora, a o pont o de ser desej ada por am bos, o que ori gi na um a “ guer ra” ent re a m ont anha e o m ar, de que nenhum sai vi t ori oso. Na i m possi bi l i dade de escol her um d os doi s e s eduz i da, el a própri a, pel a r e gi ão e pel o am or de am bos, dei x a -se fi car, t ransform ando -se t a m bém , em arei a. 160 1 .3. 1.6 .NAS LEN D AS E NOS EP IS ÓD IOS LEND ÁR IOS DE MEDOS E / O U AL MAS PEN ADAS Tem os , vul garm ent e, d uas pe rs ona gen s – o i ndi ví duo que é “ví t i m a” da i ncom p reensão dos out ros, poi s foi t est em unh a de um a vi s ão que n ão pode com prov ar, e a ent i dade prop ri am ent e di t a que, ge ral m ent e , assum e aspect o hum ano, m as que pode apar ecer sob out ras form a s, nom e adam ent e de ani m ai s , com o é o caso do gat o que foi at i rado da fal ési a , dos vári os casos de cã es pret os , d a c abri nha e dos doi s coel hi nho s da Ladei r a do Al t o , ou at é d a rod a d e fo go à vol t a do hom em (em S . Brás de Al port el ). Em E LAP / M 9, há um a persona gem col ect i va, o grupo de ga rot os que assi st e ao fenóm eno, que c onsi st e num a apari ç ão de um cas al , o qu e não é fr equent e, poi s est as apa ri çõe s ac ont ecem , ge ral m ent e, a i ndi ví duos i sol ados, event ual m ent e a duas p es soas. Out ro caso de perso nagem col ect i va qu e presen ci a o fenóm eno i ns ól i t o é o grupo de m ul he res “faz endo ba raci nha ” e cosendo em prei t a, em E LAP / M 15, que se r efu gi am em casa dum a del a s, as s ust adas pel o “h om em que bat i a no chão”, vendo -o, depoi s, des apar ec er “i nst ant aneam ent e”. Al guns fenóm enos, no ent ant o, i ncom od am t oda um a povoa ção, com o é o caso d a a l m a penada do pai da rap ari ga qu e fu gi u com o nam orado, dando no m e ao l ugar de Odel o uca (E LAP / M 3). 1 . 3 .1.7 .NAS LEN D AS E NOS EP IS ÓD IOS LEND ÁR IOS DA MORT E Est as l endas , do pont o de vi st a das per sonagens, são t al ve z as m ai s l i neares d e t o das: um ou doi s i ndi ví duos e a mort e . Apenas a l enda em que o m eni no é avi sado de que el a vi r á buscar t o da a sua 161 fam í l i a envol ve m ai s al gum as p ersona ge ns do que as out ras. A escol ha , por pa rt e da mort e , rec ai nas t rês di fere nt es s i t uações fam i l i ar es : pessoa soz i nha , casal sem fi l hos e “fam í l i a com pl et a” . Todos t êm m edo de l a e, sendo possí ve l , t ent am fu gi r -l he das m ai s vari adas m an ei ras, sem sucesso. H á, ai nda, os que p en sam que podem enganá -l a (E LM O 1 , LM O 2 e LM O 3). Não sabem o s o que acont ec eu à pe rsona gem de E LM O 1, ap enas pod em os deduz i r que a m ort e não l he l e vou o fei x e de l enha par a cas a e qu e, provavel m ent e, n ão m orreu daquel a vez , ou esse fact o se ri a narrad o na l enda. 1 . 3 .1 .8. NAS LEN D AS E NOS EP IS ÓD IOS LEND ÁR IOS D E BRUXAS OU F EIT IC EIRAS S ão, m ai s um a vez , os hom ens e as m ul heres do povo, co m os s eus m edos e os seu s act os de cor a gem , na et ern a l ut a do be m cont ra o m al . S ão os probl em as ent re vi z i nhos, ent re fam i l i ares, ent re fal s os am i gos. E , e m geral , um a ct o d e am or der rot a a p e rsona gem m al éfi ca e, m ai s um a vez , o bem preval ece. Mas t am bém são os preconc ei t os, a m ar gi nal i z ação dos qu e são “di fer ent es”, a di scri m i nação da m ul her que não t em um com port am ent o i gu a l ao das out ras. É, ai nda, a “ guer ra dos sex os”, poi s as brux as, apesar dos seus poderes, s ão hum an as, e os hom ens ap arec em , nest e cont e x t o, em des vant a ge m , send o a úni ca possi bi l i dade de um a m ul her se encont ra r num a posi ção de al gum a ( rel at i va ) superi ori dade . C om o di z Mari a Teres a M ei rel es, “subv ert em t odo o uni verso ord enado e l i near, ger al m ent e m ascul i no”. 277 C om o j á di ssem os at rás, as brux as , ou fei t i cei ras, encont ra m -se 277 Maria Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras , p. 53. 162 nas encruz i l hadas e dançam , cant am e r i em em conj unt o, t al vez por i s s o sej am m ai s t em i das, porque t êm al i ados(as), n ão est ão sós. E, com o t am b ém j á refe ri m os, não deve m ser confundi das c om as mul heres de vi rt udes , curandei r as e/ ou part ei r as procur a das pel o p o v o – essas são as bruxas ou f ei t i cei ras boas, que, par a al ém das vi r t udes que possu am , t êm , por vez es , o pode r de “d esm anchar ” m es m o ou, pel o m enos, at enuar, o m al f e i t o pel as out ras. Mas t am bém predom i nant em ent e há raros fem i ni no, hom ens e nest e t am bém uni verso podem s er q ue é bons , cur andei ros , ou ma us , f ei t i cei ros ou bruxos . Nest e caso, p art i ci pam das “or gi as” das en c ruz i l hadas. 1.3.2.FUNÇÕES DAS PERSONAG ENS Todas as l endas e e pi sódi os l endári os t êm , com o p rot a goni st a, obvi am ent e, a fi gur a m í t i ca ou rel i gi osa que l he deu ori gem . Do pont o de vi st a da anál i se narr at i va, porém , esse prot a go ni sm o é repart i do com as out ras person a gens hum anas qu e com el as s e rel aci onam . 1 . 3 . 2.1. NAS LEN D AS DE MOURAS EN C AN T ADAS Quando est am os per ant e l end as em qu e há um en cant ado e um des encant ador (ou um encant ado e um encant ador ), est es s erão, em pri ncí pi o, as person agens pri nci p ai s . C om o nem t udo é t ã o l i near, podem os cri ar os s e gui nt es grupos: 1) situações em que a função das personagens é clara: L M 38, LM 39, LM 42, LM 44, LM 48, LM 51, LM 52, LM 53, LM 60, LM 6, LM 7, LM 8, LM 11, LM 13, LM 15, LM 24, LM 25 e LM 28; 163 2) histórias em que, não havendo dúvidas sobre quais são as personagens principais, há, todavia, personagens secundárias cuja maior ou menor interferência na acção altera por completo o rumo dos acontecimentos: L M 33, LM 34, LM 35, LM 36, LM 37, LM 40, LM 41, LM 43, LM 49, LM 54, LM 59, LM 61, LM 58, LM 9, LM 14, LM 21, LM 27 e LM 32; 3) textos constituídos por dois momentos distintos, em q ue uma personagem, cuja importância era quase nula no primeiro momento, assume o protagonismo no segundo: L M 45, LM 46, LM 47, LM 10, LM 11, LM 26 e LM 31; 4) LM 50 e LM 3 são narrativas mais complexas do que a maioria. Aparentemente compostas por cinco gra ndes momentos (grosso modo: 1º) em Loulé; 2º) em Tânger; 3º) novamente em Loulé; 4º) novamente em Tânger; 5º) outra vez em Loulé.), a sua complexidade não reside, no entanto, nem na quantidade desses momentos, nem na alternância dos espaços (ambas se verificam noutras lendas, nomeadamente, em L8), mas na alternância de funções das personagens. Até ao terceiro momento, o sujeito é o (ex -)governador de Loulé, que passa a ter como objectivo desencantar as suas filhas, e que vai ser ajudado pelo carpinteiro na consecução do seu plano (situação comum a LM 40). No quarto momento, o carpinteiro é novamente transportado pelos ares para Tânger, mas esta mudança de tempo e de espaço implica outras, mais importantes: a) o ex-governador já atingiu o seu objectivo (dentro do que foi possível) e já nada pretende do carpinteiro (nem a vingança, embora reaja impulsivamente, ao princípio); b) também não foi ele que o chamou lá (para cumprir a sua promessa de recompensá-lo) – tudo, no texto, leva a crer que foi Cássima o agente desta deslocação, para que o seu pai a 164 vingasse (já que ela não o conseguira, à primeira tentativa); c) por seu lado, o carpinteiro tem, agora, um objectivo – voltar para casa – e só o ex-governador pode ajudá-lo (ou não), o que se concretiza no quinto m omento. Uma vez que não restam dúvidas de que se trata de uma mesma história, tanto pelo encadeamento das acções, como pelas personagens, podemos, então, concluir que estamos perante não cinco, mas três grandes partes (com as suas subdivisões, logicamente) , cujo factor determinante é a mudança de sujeito (e respectivo objecto): 1ª) o ex-governador, que pretende desencantar as filhas; 2ª) Cássima, que pretende vingar-se; 3ª) o carpinteiro, que pretende regressar a casa (curiosamente, só este consegue alcançar, cabalmente – e excedendo, até, as expectativas iniciais –, o seu objectivo). O carpinteiro passa, assim, de adjuvante a objecto, e de objecto a sujeito; o governador, de sujeito a oponente, e de oponente a adjuvante; Cássima, de objecto a sujeito (o único que não consegue atingir, nem parcialmente, os seus fins), e não está presente nesta última sequência, desaparecendo de cena e reaparecendo apenas pontualmente para chorar “tristemente o seu encantamento nas encantadas terras de um Al -Faghar perdido” (LM 50). O padre é um a pe rsonagem que, a o i nt e rferi r, r ar am ent e (só em LM 21 e LM 28 ), n ão t em , ap ar ent em e nt e, m ui t o peso n o desenrol a r dos acont e ci m ent os, m as que ac aba p or est ar pres ent e e m vári as l endas, por se r o agent e da at ri bui ção dos ól eos sa grados do bapt i sm o ( LM 5 2, L M 60 , LM 8 e LM 2 1 – em doi s epi sódi os). Encont ram os em duas l endas ( L M 21 e LM 28 ) a fi gu ra do padr e com o i nt erm e di ári o, m as nem se m pre favor ável à co nsecução do proj ect o, com o p ressupõem Di e go P . P acheco e F ran ci sc o M. V. P ardo: En cuanto a los tesoros, obedecería a la imagen, puesta de evidencia por Foster, del “bien limitado”; sólo 165 es posible enriquecerse o mermando las posibilidades de los iguales, o, si es en el outro segmento cultural, com el favor de un ayudante humano o sobrehumano que facilite los medios extraordinarios de mejoramiento social. En este esquema, el clérigo es el intermediario. Y así se explican también otros instrumentos, como el Libro de San C i p r i a n o y o t r o s l i b r o s d e t e s o r o s . 278 O padre , pároco , cl éri go ou pri or só é adj uvant e qua ndo part i ci pa do pro c esso i nvol unt ari a m ent e, desconh ece dor dos obj ect i vos do seu paroqui ano (com o em L M 28 ), e é cl aram ent e oponent e quando s abe que o proc edi m ent o i m pl i ca a perda dos “s ant os ól eos do ba pt i sm o”, ai nda que recupe rá v ei s (com o em L M 2 1, em que é r espon sável pel a de ci são d e J oão Bent o). 1 . 3 . 2 . 1.1. NOS EP IS ÓD IOS LENDÁR IOS DE MOURAS E N C AN T ADAS Nest es rel at os, com o j á observám os, as persona gens apa re cem em núm ero m ai s reduz i do. A moura e o cont em pl ado part i l ham o pro t agoni sm o, enqu ant o as out r as pe rso nagens, que são, ger al m ent e, os acom panhant es, o u são adj uvant es ou são m eros fi gur ant e s. Nos cabri nhas rel at os e das out ros apari çõ es ani m ai s em de c arn ei ros, que encant ados, é fr e q uent e ex i st i r o os t ouros, m ouros encant ado cob ras, poss a m est ar e al gué m que é as s ust ado, norm al m ent e um a person a ge m i ndi vi dual . 278 Diego Peral Pacheco y Francisco M. Vázquez Pardo, “Leyendas Naturalistas y Etiológicas”, in La Casa Encantada–estudios sobre cuentos, mitos e leyendas de España y Portugal –Seminario Interuniversitario de Estudios sobre la tradición , coords. Eloy Martos Núñez (UEX) e Víctor M. de Sousa Trindade (U. ÉVORA), Serie Estudios Portugueses, Nº 3, Mérida, Editora Regional de Extremadura, 1997, pág. 113: “Quanto aos tesouros, obedeceria à imagem, evidenciada por Foster, do “bem limitado”; só é possível enriquecer ou dimuindo as qualidades dos iguais, ou, se noutro segmento cultural, com o favor de um ajudante humano que facilite os meios extraordinários de melhoramento social. Neste esquema, o clérigo é o intermediário. E assim se explicam também outros instrumentos, como o Livro de São Cipriano e outros livr os de tesouros.” 166 1 . 3 . 2.2. NAS LEN DAS E N OS EP IS ÓD IOS LE NDÁR IOS DE L OBISOMEN S Nest as hi st óri as, o l obi somem é s e m pre o he rói ou, se qui s erm os, o ant i -he rói . No ent ant o, ex c ept ua -se o epi sódi o l end ári o em que os doi s hom ens encont ram um burro que depoi s se t ransform a em hom em e na qual , ou c onsi deram os que s ã o os t rês pers ona gens pri n ci pai s, ou t erem os de consi derar o supost o l obi somem com o sec undári a (ou o cont rá ri o…) . Há, ai nda, o c aso d o l obi somem a cusado de b rux ari a, q ue é i ndubi t avel m ent e a persona gem pri nci p al da l enda, em bora sej a “o m au da fi t a”, po r i sso m esm o o verdadei ro ant i -herói . Na nar rat i va em que a m ul her cons e gue l i bert ar o m ari do, s e ndo am bos prot a goni st as, é el a, de fact o, a v erdadei ra he roí na. 1 . 3 . 2 .3. NA LENDA DE SER EIAS Na “ Lenda da P rai a da R ocha ”, enco nt ram os novam ent e um a s i t uação em que a fi gur a cent r al é a serei a , m as t ant o o m ar com o a m ont anha, sendo oponent es ent re si , são os “const rut ores” da hi s t óri a , enquant o a s erei a t em um a act uação passi va. P oder -s e -i a cons i derar fi gur ant e , não fosse el a, de fact o, a raz ão daquel a gue rra de poder , sedu ção e conqui st a. Um esquem a a ct an ci al dest a hi st óri a seri a um a i nt e res sant e confusão: t r ês pe rs onagens pri n ci pai s t ent ando, cad a um a, al can çar um obj ect i vo e i m pedi r que os out ros d oi s at i nj am os seus – porque a s erei a n ão est á i nocent e n est a “ gu e rra ”: el a apenas pa rou par a des cansa r, m as, s e não t em cul p a de qu e am bos s e t enham apai x onado por el a, não dei x a de ser cu l pada por n ão p ôr fi m a um a l ut a em que qu ase se dest roem m ut ua m ent e. Que m ai s n ão fosse, podi a t er se gui do o seu cam i nho, em vez de se t er sedent a ri z ado, o que nos l ev a a pens ar que, de al gum m odo, l he a gradou a si t uação de s er co rt ej ada po r duas forç as da nat u r ez a ao m esm o t em po. 167 1 . 3 . 2 .4. NAS LE NDAS E NOS EP IS ÓD IOS LEN DÁR IOS DE MEDOS OU AL MAS PEN ADAS Nest es “c asos”, o prot a goni st a é s em pre, sem som br a de dúvi da, o i ndi ví duo que “sofre ” a vi sã o i nsól i t a. Mas a verdade é que t am bém não se pode ret i ra r prot a go ni sm o à ent i dade em c ausa. At é aqui , é t udo nor m al , duas person a ge ns pri nci pai s, ou t rê s é um fenóm eno l i t erá ri o que su r ge com al gum a fr equên ci a . Mas os medo s nem sem pr e t êm fi gu ra hum an a, e o qu e faz e r co m aquel e gat o que vol t ou a a parec er , j á depoi s d e m ort o , j unt o do hom em que o at i rou da fal ési a ? P arec e -nos di fí ci l não consi der á -l o t a m bém um dos prot agoni st as da hi st óri a. Mas p i or, ai nda, é o caso da roda de fogo. Ora, o qu e a cont ec e , com o j á vi m os, é que est á s em pre o D i abo ou um a al ma pena da (ou m esm o um a bruxa ) po r det r á s dest es fenóm enos, ou ani m ai s, pel o que, a nosso ver, t erão de ser cons i derados peron a gens, ai nd a que não chegu em a ser i ent i fi cadas na hi st óri a. A sua f unção n ão pode red uz i r -se a fi gu rant e, um a vez que é o m ot i vo da narrat i va, pel o que, de acordo com a si t uação, s erá se cundári a ou t am bém pri nci pal . 1 . 3 . 2 .5. NAS LEN DAS E N O EP IS ÓD IO LEND ÁR IO DA MORT E S endo a mort e um dos i negávei s prot agoni st as, as out ras pers ona gens a cab a m por sê -l o t am bém , poi s são as suas ví t i m as, l ogo, t am bém os seu s oposi t ores, t endo i gual p eso na na rrat i va. Na l enda em que o m eni no é avi sado de que el a vi rá bu scar t oda a sua fam í l i a, a si t uação é m ai s com pl ex a , poi s, ou cons i deram os t odas as persona gens co m o pri nci pai s, ou t erem os de es col her ent r e o fi l ho e o supost o pai , vi st o que não f i cam dúvi das 168 de que a m ã e e o car t ei ro são secund ári a s. Nas out ras na rrat i va s, a si t uação é l i ne a r. 1 . 3 . 2.6. NAS LEN DAS E NOS EP IS ÓD IOS LEN DÁR IOS DE BRUXAS OU FE IT IC EIRAS S ej a persona gem i ndi vi dual , sej a um grupo de bruxas , e st as ri val i z am sem pre em prot agoni sm o , quer com as suas ví t im as, quer com os que t ent am v i ngar -se del as, dest r ui ndo -as at é, se pos sí vel . Assi m , t em os em ge ral si t ua ções l i n eares de duas ou m ai s pers ona gens pri nci p ai s (a b rux a e o m a ri do que t ro cou as pal avras, por ex em pl o), ou são el as as pro t a goni st as e os out ros m eros obs ervador es. Tam bém nos casos de vi rt uosas e cur andei ros, a person a gem necessi t ada p art i l ha a i m port ânci a na hi s t óri a com o “cu rado r”. 1.3.3. AS RELAÇÕES ENTRE AS PERSONAGENS Encont ram os t odos os t i pos de rel ações que ex i st em na vi da real : rei s port ugu ese s e governado res m ouros; t ropas e povo; pat rões e em pre ga dos; fam í l i as pequenas e f am í l i as num erosas; fam í l i as fel i z es ou, pel o m enos, vi vendo em harm oni a e fam í l i as desavi ndas; pai s e fi l hos; m ães e fi l has; i rm ãos; i ndi ví duos soz i nhos, hom ens ou m ul heres; pares d e nam orados; apai x onados não cor res pondi dos; am i gos; col e gas de t rabal ho; vi z i nhos; desconheci dos; p árocos e paroqui anos. 1.3.3.1. NAS LEN DA S DE MOURAS EN C AN T ADAS O ex érci t o port u guê s é com and ado por o fi ci ai s e, pont ual m e nt e, pel o rei ( D. Afon so III). As fo rças m i l i t ares dos ár a bes são chefi ad as pel os al c ai des dos cast el os e, ocasi onal m ent e, por rei s 169 m ouros. É m ani fest a a sua coesão, bem com o a aut ori dade ex erci da em am bos os l ados e a obedi ên ci a dos hom ens, que t êm noção d e que se t rat a de um a gu err a cuj o obj ec t i vo ul t rapassa a posse das t erras. As pessoas do po vo est ão l i gadas por l aços nas ci dos de s ol i dari edade e en t reaj uda, r espei t o e cum pl i ci dade, q uer ent re cri s t ãos, quer ent re m uçul m anos. Tudo l eva a cr er q ue, em é pocas d e paz , uns e out ros co abi t avam paci fi cam ent e, e qu e est a h ar m oni a só era queb rada p el as bat al has da r econqu i st a e, m esm o assi m , só ent re com bat ent es. S ão est es m esm os l a ços que vam os en co nt rar ent r e os fo gue i ros d’ “O Fo rno d a C al ” ( L M 26 ), e qu e o s faz con corda r em uní ssono com as condi ções i m post as pel o caval e i ro m ouro que o co m prou. No ent ant o, apes ar dest a apa rent e co ncordânci a, h á sem pre, s ubj acent e, a p rese r vação d e um a ce rt a i nt i m i dade, não se r evel ando nunca a t er cei ros as i nt enções d os act os, quando se t rat a de precei t os a respei t ar num proc esso cuj a fi nal i dade é en ri que cer, par a evi t ar sej a i nvej as, sej a i nt erf er ênci as d e qual que r ord em , e a prov a acab ada é L M 3 2, em que, devi do a desconfi an ças do “ povo”, a vel ha Barb aç as não só é es panc ada p el o m ari do, com o nun ca m ai s vê “a m eni na ”. Apenas um a p ersona gem po rt ugu esa n ão se rel a ci ona nunc a c om m ouros, provavel m e nt e por raz ões óbvi as – o padre. Nunca apare ce na “épo ca m ouri sc a” e nunca é al vo das apari çõ es dos encan t ados . Há narr at i va s em que um a das perso nagens pri nci pai s vi ve s oz i nha (hom em ou m ul her), por raz ão desconh eci da (“ O Tacho do Tes ouro”, L M 44 e LM 25 , e “A Font e de Espi che”, L M 28 ). A sua rel aç ão com o r est o do povo só é m enc i onada depoi s de en ri quece r, vi s t o est a al t e raç ã o de est at ut o i m pl i car fo rçosam ent e um aum ent o do respei t o, ou sej a, a subi da na esca l a soci al , poi s ai nda que os m éri t os se r esum am à aqui si ç ão de for t una, i ndependent e m ent e do processo ut i l i z ado, é sem pre m ot i vo de subi da na consi der ação dos 170 out ros, “poi s que o di nhei ro foi sem pre um pergam i nho de nobrez a que nunca d ebot a” ( L M 24 ). Grupos de am i gos são ra ros, só em “ A Moura da S e rra de M onchi que” ( L M 35 ) e em “A Mou ra do Arco do R epouso” ( L M 49 e LM 9 ) e, em am ba s as si t uações, i nt e rvêm aj udando (ou t ent a ndo aj udar) o am i go i sol ado, em peri go, arri scando -se ao seu d e sagrado, m as seguros da necessi dad e e ur gênci a da sua i nt ervenç ão, j us t i fi cada pel o sent i m ent o que os une. Am i z ade ent re duas pessoas, s ó em “A Moura Fl ori pes” (na v ersão de Gent i l Marques, L M 37 ) e em LM 21 , gerand o um a confi ança m út ua que, a cert a al t ura, é ques t i onada, m as acab a por venc er, na pri m ei ra, re fo rçando a com preens ão ent r e os doi s hom ens e , na se gund a, n ão che ga a res ol ver -s e com pl et am ent e a si t uaç ão, m as não p are ce que venha a afect ar, fut ur am ent e , as suas rel a ções. Em bora em si t uações com pl et am ent e d i ferent es e, cl aram e nt e, m ovi da por s ent i m ent os e ne cessi dad es di st i nt os, encont ra m os doi s cas os de cum pl i ci dade ent re es crav os e senhores. Foi ass i m que o “j ovem guer rei ro ” e a fi l ha do gove rna dor do c ast el o de F aro “po r al gum t em po n am or aram por i nt erm édi o de um es cravo da m oura que i a e vi nha com r ec a dos.” ( L M 49 ). E fo i com o m esm o est a t ut o que o carpi nt ei ro d e Loul é foi cont a ct ado pel o ex -gov ernado r par a a m i s s ão (event ual m ent e per i gos a) de re gr essar ao Al ga rve e des encant ar as t r ês f i l has (em L M 40 , L M 50 e LM 3 ). P ares de nam orado s são frequent es e encont ram os t odos os gén eros de desfe ch os: J ul i ão e Ani nhas (“A Moura Fl ori p es”) ( L M 3 7), am bos cri st ãos, cuj o am or é i m pedi t i vo da co ncret i z ação do s onho da m oura qu e , por sua v ez , t i nha assi st i do ao naufr á gi o do seu pri m ei ro nam or ado, quando t ent ava s al vá -l a, fact o que l h e val eu o encant am ent o post e ri or; os nam oros c ont rari ados, em qu e o am or vence sem pr e, i nde pendent em ent e do f i nal , b em ao gost o popul ar, t am bém não fal t am – os ap ai x onados d’ “O Abi sm o dos Enc ant ados ” ( LM 41 e LM 1 6 ) ( a m bos m ouros, cont r ari ados p el o pai d a rapari ga) 171 e “Di nor ah” ( L M 5 4 ) (a rap ari ga é m oura e o s eu am ado é cri st ão , cont rari ados por Al á); enquant o o gu err e i ro port ugu ês (que nam orou a m oura do Arco do R epouso) “nunca m ai s ri u” e, “t erm i nado o cerco, pedi u ao R ei di spensa do exérci t o e recol heu -s e a um convent o, onde p ro fessou m udando de nom e” ( L M 49 ), C ont udo, nem sem pre Al á se opõe aos am ores e nt re m ouros e cri st ãos que, s uperando os obst ácul os i nt erpost os, po r vez es, acabam m esm o por cas ar e se r fel i z es – é o que acont ece e m “O C i nt o da Moura” ( L M 4 5 e LM 3 1 ). As rel a ções f am i l i ares são as pri vi l egi adas, em am bos os cont ex t os. As rel aç ões ent re m ari do e m ul her (port u gues es ) rev el am um a com pre ensão m út ua que pass a pel a s desconfi an ças e, a t é, pel o ci úm e, quando as at enções di m i nuem ou sofrem qual quer l i gei r a al t eraç ão; cont udo, são i nex i st ent es ent re os m ouros, ou por des conheci m ent o, o u pel a t radi ção bí gam a, que i m pede os cri st ãos de os i m agi narem na i nt i m i dade do l ar. Os pai s m ouros ex ercem , as s i m , supost am ent e , um dupl o papel mat ernant e e est rut urant e (envol vem c ari nhos am ent e, ao m esm o t em po que i m põem a l ei ). As m ães (e/ ou esposas ) não ent ram nunca e m cena (só em LM 45 e LM 3 1 s e faz al usão a “t oda a fam í l i a”, m as sem di st i ngui r os seus el em ent os, e se ref e rem “os pa rent es ”, s em os i ndi vi dual i z ar). O que não di fere nunc a, é o am or m ani fest o ent re pai s e f i l hos (no sent i do de parent s e enf ant s , poi s a rel aç ão en t re o pai e o j ove m mouro é, t am bém , i nex i st ent e), em bora ent re os cri st ãos sej a a m ãe quem se s ent e “ fer a no d eser t o ao not ar a cri a e m peri go” e, ent re o s m ouros, o pai , a fi gura pro e m i nent e, “av arent o da com panhi a da fi l ha” ( L M 4 1), ou quem “al i se c onservou a chora r at é às horas da m ei a -noi t e” (e LM 17 ), “p el a fi l ha que en cant ar a po r m i l e um anos” ( L M 53 ). 172 1.3.3.1.1. NOS EP IS Ó D IOS LENDÁR IOS DE MOURAS EN C AN T ADAS Na sua m ai or p art e , as rel a ções ent r e as persona gens de st es epi s ódi os n ão são re l evant es. Um a m ãe e um fi l ho que vão passan do, duas vi z i nhas, doi s am i gos, t udo é oc asi onal , i nesperado e n at ural , ao m esm o t e m po. Acabam po r se r m a i s i m port ant es (e i nt eressant es ) as rel ações ex i s t ent es ent re os encant ados : doi s nam orados que sae m ao l uar; doi s pri m os que não qui seram casar u m com o out ro e são et ernos am i gos; um a t i a que fi ca encant ada ap enas para f az er co m panhi a à s obri nha; um a m ãe com um fi l hi nho que, por v ez es, é repr esent ado por um ade reço no cabel o; um a cri an ça ab andonad a nu m berço à es pera que ve nha m busca -l a; duas i rm ãs; out ras doz e i rm ãs “es pal had as por Fa r o e Loul é ”; i núm era s “ gent i s m ouras ” a gua rdando hom ens sufi ci ent em ent e cor aj osos para superar em as prov as do seu des encant am ent o … 1 . 3 . 3.2. NAS LEN D AS E NOS EP IS ÓD IOS LEND ÁR IOS DE L OBISO MEN S Aqui , a fam í l i a j á t em um a i m port ânc i a especi al , at é po r que com eça por s er a c ausadora do “fad ári o” do pobr e l obi so mem , qu e não t eve cul p a de t e r s i do o sé t i m o fi l ho (e de n ão l he t er e m dado o nom e de Adão ) ou fr ut o de rel açõ es m at r i m oni ai s ent re com p adres. Nas hi st óri as que encont rám os, há u m l obi somem que vi ve s oz i nho, não se sab e porquê, e que , t al vez por i sso, por nã o t er um a es t rut ura f am i l i ar q ue o apoi e, é al vo d a m al dade d e um vi z i nho que o acusa de brux ari a , nã o se sabe com que fundam ent o; do i s del es l evam um a vi da f a m i l i ar em t udo “norm al ”, com m ul her e fi l hos, s urgi ndo os probl e m as apenas nas al t u ras das t ransform a ç ões – num dos casos é a m ã e que, m ui t o prov avel m ent e, l he res ol veu o probl em a, quei m and o -l he as roup as (“n ão se sab e”, m as t u do l eva a 173 crer qu e si m ), e, no out ro caso, é m esm o a m ul her que, a p edi do do própri o, conse gu e t er a for ça n ecess ár i a para enf rent a r a “fe ra” e res gat á-l a. O l obi somem nasc e, assi m , dum núcl eo fam i l i ar de al gum m odo di s funci ona l , i ndo c ri ar out ro núcl eo fa m i l i ar (quando casa , cl aro ) que i rá sof rer as co nsequênci as, t endo, cont udo, a possi bi l i dade de anul ar a m al di ç ão. Em qual quer dos c asos, o equi l í bri o é conqui st ado quando se vence a fe ra. P ensam os que nest as hi st óri as (assi m c om o em al gum as l endas de m ouras encant ad as), m ai s do que na s out ras, est á m ui t o present e a t em át i ca do “pe ca do ori gi nal ”, a i dei a de que os fi l hos sofrem as cons equênci as dos act os dos pai s, i sto é, de que um a m al di ção l ançada aos pai s pel o seu com port am en t o (por ex em pl o, as rel açõ es ent re com padr es, ou a desobedi ênci a à l ei / t radi ção d e cham ar “Adão” ao sét i m o fi l ho consecut i vo) é s ofri da com m ai s i nt ensi dade pel os fi l hos, m as que est es t êm sem pre a possi bi l i dade de anul ar es s a m al di ç ão, se f orem m er ec edore s, se conse gui rem “ en frent ar a fera ”, super ar as d i fi cul dades ex i gi da s pel o processo (s ej a para acab ar com o “fad ári o” de l obi som em , sej a para proc e der a um des encant am ent o). 1.3.3.3. NA LENDA DE SEREIAS Na Lenda d a P rai a da R ocha, não ex i st e qual quer grau de parent es co ent r e as persona gens . P odem os consi der ar qu e o m ar e a m ont anha er am vi z i nhos, m as não se rel aci on avam , ap e sar dessa prox i m i dade, e a serei a era d esconhe ci d a de am bos. É, durant e t odo o desenvol vi m ent o da hi st óri a, o j ogo de s edução e conqui st a e x erci do p el os d oi s ri vai s que d i s put am o m es m o obj ect o de a m or, que assi st e, de l ei t ando -se com as at enções de que é al vo. 174 1 . 3 . 3 .4. NAS LEND AS E NOS EP IS ÓD IOS LEND ÁR IOS DE MEDOS OU AL MAS PEN ADAS Tam bém nest es epi sódi os não são i m por t ant es as r el açõ es e nt re as pers ona gens, poi s o el em ent o ful cral é a apa ri ção em si e o fact o de al guém a t e r pres enci ado. Há, no ent ant o, ge r al m ent e, al usões às rea cçõ es de fam i l i ares, am i gos ou vi z i nhos, um as vez es sol i dar i z ando -se, out ras de screndo e goz ando, p rovocan do a revol t a do e sp e ct ador do f enóm eno. Ex i st e, no ent ant o, o caso cu ri oso do casal de i dosos qu e s e pas s ei a, ao ent a rde cer, na pr ai a de B urgau, par a vol t ar aos seus apos ent os no m ei o da roch a; o pai que, depoi s de m orto, ai nda gri t av a, ch am ando pel a fi l ha “ Est ás l ouca! Vo l t a, l o uca!”; e, s obret udo, a r el ação de cord i al i dad e que se est abel e ce ent re o rapaz e a mi rra (a consel h o do sábi o pároco ). 1 . 3 . 3 .5. NAS LEN DAS DA MORT E Nest as narr at i vas , consi deram os que o m ai s i m port ant e é a rel aç ão com a própr i a mort e , e, at é dest e pont o de vi st a, não dei x a de s er si nt om át i ca a reac ção d e c ada um dos esposos , na lenda em que a mort e v em buscar um dos el em ent os do casal . Dest acam -s e, assi m , os doi s hom ens que t ent am en gana r a m ort e, de m anei r as di ferent es. S al i ent a -se, poi s , o m edo com o fact o r d et erm i nant e – que l eva a fu gi r ou a l udi bri ar, nunc a a a cei t á -l a com o um fenóm en o que f az part e da vi da. Apenas num caso, u m hom em , “ em dese spe ro, prep arou -se para a i dei a de m or rer t am bém ” ( LMO 1) , o que a cabou por nã o acont ec er. 175 1 . 3 . 3 .6. NAS LEND AS E NOS E P IS ÓD IOS LEND ÁR IOS DE BRUXAS OU FE IT IC EIRAS O cont ex t o soci al das hi st óri as de br uxas ou f ei t i cei ras é a vi z i nhança, na povo ação, e a f am í l i a . A vi z i nhança, que s e une cont r a a bruxa que é o i ni m i go com um ; a f am í l i a, que sofr e, em conj unt o e por consequ ên ci a d a prox i m i dade dos l aços, os m al es que reca em sobre um d os seus el em ent os. As bruxas , quando em grupo, di vert em -s e cant ando e danç an do , e, por vez es , à cus t a de al gum i ncaut o que passou por p ert o, ou pre gando part i das a al gum curi oso que resol veu espre i t á-l as, prot ege ndo -s e um as às out ras . Al gum a s enganam os m ari dos, que des conhec em as “ar t es” das suas esposas, sai ndo de noi t e quando el es est ão dorm i ndo , e re gr essando ant e s de el es a corda rem . No ent ant o, quand o se fal a de bru x edos que pr ej udi ca ram gr avem ent e al guém , l evando m esm o à m ort e, é de pe r sonagens i ndi vi duai s que se f al a, não const a que el as aj am em conj un t o nest as ci rcunst ânci as. É, t al vez , de sal i e nt ar, a pres enç a d a ne cessi dade de p edi r perdão, ocor ri das e m LF eB 1 e LF eB 3, por part e de que m p edi u a al gum ( a) brux o(a) que fi z esse o m al , assi m com o a capaci dade de perdoar d e D. Bi bi , em ci rcunst ân ci as, n o m í ni m o, desagr ad ávei s. 176 3. 1.4. O TRATAMENTO DO TEMPO Qual quer ac ção oco rre sem pre, fo rçosa m ent e, num det erm i nado pont o em que t em po e espaço s e cruz am . É um fact o. Em separa r est as d uas real i dad es di st i nt as é que r esi de, por vez es, a di fi cul dad e. De a cordo com os parâm et ros de anál i se l i t erári a, v am os, a ssi m , di ssoci ar est as duas cat e gori as, para as t rabal har s epar adam ent e. Envo l vendo t udo – espaço, acç ão, pe rs onagens e n arr ador – o t em po é o fact or qu e faz evol ui r t odos est es i nt erveni ent es . É, com frequên ci a, o p ri nci pal a gent e t ransfor m ador, na Hi st óri a com o nas hi s t óri as, o “grande escul t or” por ex cel ê nci a. 1.4.1. A LOCALIZAÇÃO NO TEMPO HISTÓRICO Na t radi ção or al , a l ocal i z ação t em pora l pode ser i ndefi ni da – com o é h ábi t o nos c ont os – ou, pel o con t rári o, pe rfei t am ent e si t uada na Hi st óri a – o que é fr equent e nas l endas. Nest e corpus , encont ram os t am bé m al gum as si t uaçõ es i n t ermédi as . S e, por um l ado, al gum as l endas n ecessi t am dessa p reci são para provarem ce rt os fe nóm enos, por out r o l ado, em p art i c ul ar nos epi s ódi os l endári os, o m om ent o em que os fact os ocorr er am acaba por não s er i m port ant e, pe rant e o i nsól i t o dos própri os acont eci m ent os. 1 . 4 . 1 . 1 . NAS LEN DAS DE MOURAS EN C AN T ADAS Há l endas cuj a a cç ão se passa num t em po post eri or ao dos encant am ent os, e o ut ras em que quas e “pres enci am os” o s si nai s cabal í st i cos ex ecut a dos pel o pai desespe rado. 177 “Di norah, fi l ha de Agar, er a um a das m ai s bel as m ouras de t odo o Al ga rve m uçul m a no.” ( L M 54 ). Est a é a úni ca ex pressão que nos rem et e par a um a ép oca de ocupa ção á ra be, ant eri or à r econ qui st a e, port ant o, um perí od o de paz e prospe ri dade. Al gum as ac ções o correm cl a ram ent e durant e a época da ex pul s ão dos m ouros do Al garv e: “A t er ra al garvi a er a j á qu ase t oda t erra port u gu esa. F al t ava Loul é e pou co m ai s. Tavi ra a c abara d e cai r.” ( LM 39 ); “Mi l duz ent os e quaren t a e nove. [ ...] Os m el hores gue rrei ros m ouros de ent ão co rrem a j unt ar -se sob as o r dens dos s eus chef es.” ( L M 4 0 ); “na époc a m ouri sca” ( L M 41 ); “ No t em po da conqui st a do Al ga r ve. [ ...] di as depoi s da t om ada d e Fa ro.” ( L M 4 6); “No t em po do dom í ni o dos m ouros no Al garve [ ...] em 23 de Feve rei ro d e 1249. ” ( L M 49 ); “Du as noi t es ant es da ent rada dos cri s t ãos em Loul é ” ( L M 50 ); “ No t e m po em que o r e i no dos Al ga rves p ert enci a aos m ouros” ( L M 51 ); “Depoi s d os duros com bat es feri dos e m frent e do cast el o, reconhe ceu [ o gove rnador do cas t el o de Loul é] que a vi l a seri a brevem ent e i nvad i da pel os s ol dados de D . P ai o. Na penúl t i m a noi te [ ...] ” (L M 3); “Na noi t e em que o consel ho form ado pel os sarr acenos resol veu d esam par ar preci pi t adam ent e o cast el o [ de S al i r] ” ( L M 6 ); “Em t e m po dos árabes nest a proví nci a” ( L M 16 ); “[ ...] al guns di as de poi s da ex pul são dos aga re n os dest a bel a proví n ci a.” ( L M 26 ). Out ras ap resent am ref erên ci as t em po rai s hi st óri cas, em bora com m enor preci são , si t uando a acção – quase sem pre um a t ent at i va fal hada de des en cant am ent o – nu m a época post eri or à da reconqui st a: “Em pl eno sécul o X IV e a pó s a conqui st a do Al ga rve [ ...] El -rei D. Afons o IV anda a gor a em gu err a com Espanh a.” ( L M 35 ); “no i ní ci o do sécul o XV III” ( L M 44 ); “Há uns d uz ent os e ci nquent a anos” ( L M 48 ); “no pri ncí p i o do sécul o passa do” ( L M 6 1); “nos pri ncí pi o s do sécul o passad o” ( L M 59); “Em 1 865 [ ...] ” ( LM 21 ). “C ert a vez , um rapaz observou por acaso um m ouro est ar a ent err ar vi va a fi l ha. C om o i a pa rt i r p ara a Moi ram a e nã o a podi a 178 l evar, est av a a enca nt á -l a debai x o da t e rra.” ( L M 45 ); Um caso ori gi nal é o da “ Lend a de Al goz ”, em que est e t i po de l ocal i z aç ão é fei t o por um a person a gem , di ri gi ndo -se a o m ari do: “Nunca t e vi cans ad o, nem dur ant e a co nqui st a dest as t e rra s, que t e foram doad as pel os t eus m éri t os de gu er rei ro [ ...] ” ( L M 34 ). Na “ Lenda do Fal s o J uram ent o” ( L M 36 ) há um a refer ên ci a i m preci sa: “N esse t em po, a ci dade [ F a ro] não t i nha a i m port ânci a que hoj e t em , sobr e puj ando -a S i l ves e Tavi ra.” Não se per cebe se foi durant e o apoge u da época mouri sca ou durant e o t empo que se s egui u e em que Fa ro foi m enos i m port ant e do que as out ras duas ci dades. Out ras, ai nda, apr esent am as vari ant es possí vei s de um a i ndefi ni ção da épo ca em qu e se d er am os acont e ci m en t os m ai s recent es (os enc ant a m ent os ocorrer am durant e a épo ca mou ri sca , de form a ex pl í ci t a ou i m pl í ci t a, com o, de rest o, é ó bvi o): “H á m ui t os anos ” ( LM 33 e LM 7 ); “Um di a” ( L M 38 ); “em t em pos i dos” ( L M 4 2 e LM 24 ); “ em t em pos” ( L M 43 ); “ um a vez ” ( LM 3 2 e LM 31 ); “Em cert a noi t e ” ( L M 60 ); “Em cert a o casi ão, há m ui t os a nos” ( L M 8); “ant i gam ent e ” ( L M 1 4); “ em t em pos di st ant es” ( L M 27 ); “em t em pos recuados ” ( L M 5 2); “em t em pos, que j á l á vão ” ( L M 28 ). Fi nal m ent e, há um a m i nori a de l endas que não si t uam a acção, cons i derando -a, ev e nt ual m ent e, m ai s i m port ant e do que a a l t ura em que se de ram t ai s acont e ci m ent os , um pouco à sem el hanç a do s cont os t rdi ci onai s. ( LM 37 5 e LM 25 ). 1.4.1.2. EM TODAS AS OUTR AS LE ND AS E EP IS ÓD IO S LEN DÁR IOS C om o faci l m ent e se com preende, t odas as out ras narrat i va s se di vi dem em t rês gr upos: as que n ão t êm ref er ênci as hi st óri cas de qual quer espéci e, s i t uando -se num t em po i ndefi ni do ( t al com o os cont os), por n ão s er i m port ant e a ép oca em qu e se de ram t ai s 179 acont eci m ent os, co m o é o cas o da “ Lenda da P rai a da R ocha”; as que se report am a um t em po recent e – fi ns do sécul o X IX e pri ncí pi os do sécul o XX, no caso d as recol has d e At aí de Ol i vei ra, J os é Lei t e de V asc oncel l os e out ros, e m eados do sécul o XX, para al gum as re col has de Fe rnanda F raz ão, G ent i l Marques , J osé C asi nha Nova e out ros, i ncl ui ndo a nossa –, vi st o se t erem passado com pes s oas que di z em ter ouvi do cont ar ou m e sm o t er presenci ado t ai s fact os; fi nal m ent e, aquel as qu e co rrem na t radi ção ex pl i ci t am ent e com o t endo o corri d o “al gum t em po de poi s da ex pul são do s m ouros des t a proví nci a ”. 1.4.2. O TEMPO FÍSICO – LOCALIZAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO Às m anhãs de P ri m a vera s u cedem -s e as noi t es de Ver ão e, t ant o um as com o out ras, são descri t as un ani m em ent e pel os di versos aut ores com o m om e nt os apraz í vei s. As noi t es são i nva ri a vel m ent e de l uar e, as m anh ã s, de sol . O cal or é perm anent e. A “m ei a -noi t e em pont o” e o “pi n o do m ei o -di a” são as horas, por ex cel ê nci a, de encant am ent os, apar i ções e des encant am ent os. Tam bém o ent ard ecer t em o s eu l ugar, com o m om ent o prepar at óri o, e ap a rece em si nt oni a com o est ado de espí ri t o das pers ona gens (“ A t a rde c aí a num ci nz ent o de chum bo.” – L2; “A t arde com e çar a a ca i r, e com el a o cal or [ ...] ” – L3; “ Num a t arde de pri m avera, com eç av am as am endoei ras a fl ori r [ ...] ” – L22). A sensaç ão t áct i l d o cal or do Ve rão, q uando não é t r ansm i t i da di rect am ent e (“Noi t e cál i da de V erão ” – L1, “A t ard e co m eçar a a cai r e com el a o cal or que ab rasa ra o di a. A t er ra con t i nuav a quent e e a á gua m orna. ” – L3), é-o de form a i ndi rect a: “a t e rra, m u i t o seca, res val av a debai x o dos pés.” ( L4). 180 As noi t es são quase sem pre de l ua ch ei a, o que confer e um a cert a m a gi a ao am bi e nt e (“Noi t e l u arent a” – L1; “noi t e de l ua chei a ” – L2; “um l u ar for m osí ssi m o banhava t oda a prop ri edad e” – L9; “nes se m om ent o su bi a a l u a no ho ri z ont e” – L35), cont ra st a com a cl ari dade do di a, ap esar d e t udo n ão m e nos poét i ca (“ a l uz doi rad a do s ol ” – L2 ; “a m anhã est ava cl a ra, s erena ” – L4; “m anh ã boni t a, chei a de sol , i rr adi a ndo perfum e ” – L8). Est as noi t es de l ua chei a, com o j á vi m os, são com uns a t odas as apari çõ es de ent i dades m í t i cas (ou quase t odas, poi s a mort e parec e não t er pre fer ênci as ), assi m com o às t ransform açõ es em l o bi somens ou aos encont ros e nt re bruxas ou f ei t i cei ras . As al mas penadas , com o a mort e , apare cem em qual quer al t ura (do di a ou da noi t e) e os out ros medos , pre fer enci al m ent e à n oi t e, com ou sem l ua che i a. P el o cont rári o, as e nt i d ades rel i gi osas parec em pr efe ri r a l uz do di a para f az erem as suas apari çõ es, em bora al guns mi l agre s sej am operados dur ant e a noi t e, com o são o s casos das desl o ca ções das vári as i m a gens de Nossa S enhora e d o S enhor J esus de A l vor, e quando o S enhor sai da cruz . 1.4.3. O PASSAR DO TEMPO S e o t em po “não pode vol t ar at rás”, a s persona gens pode m , a s eu bel praz er, desl ocar -s e no t em po, em qual quer sent i do – é o efei t o de doi s f enó m enos psí qui cos a que cham am os “m e m óri a” e “i m agi n ação ”. E o narr ador t am bé m pode, por con veni ênci a, el i m i nar se gm ent os t em porai s sem i nt eresse p ara a econ om i a da narrat i va. As an al epses , que, com o é nat ur al , são m ui t o m ai s freque nt es nas l endas de mou ras encant adas do que nas out ras l e ndas ou 181 m es m o nos epi sódios l endári os, t ent am sem pre e x pl i car qual quer s i t uação do present e do t ex t o cuj a ori gem r em ont a a um passado m ai s ou m enos re cent e e d e cuj o c onheci m ent o dep en de a sua com preens ão (m ui t o frequent em ent e, na rram o en cant am ent o) : LM 34 : “ Di as an tes [ ...] C om o i sso ai nd a h á p ou co temp o l he er a gr at o! A go ra, po ré m [ ...] ” – l ocuçõe s adverbi ai s de t e m po que i nt roduz em a reco rdação, car act e ri z ando a rel a ção de Ant óni o Navar ro com a fam í l i a, m ost rando a sua fel i ci dad e, par a real ç ar o cont rast e com a an si edade do m om ent o; em di ál o go, na fal a d e J oana: “ Nu n ca t e vi cans ado, n e m d u ra n te a conqui st a d est as t er ras [ ...] ” – novam ent e o cont rast e ent re c aract erí st i cas da p e rsona gem (Ant óni o), ac ent uan do a di fer ença ent re o passado e o pr es ent e. LM 35: “Ant óni o, j ovem pesc ador q ue sof rera um n a ufrá gi o e f i cara al gum t em p o em t erra a r eco m por -se, subi a nu m vaga r am ol eci do.” – a ant eri ori dade é c onfe ri da pel o pret éri t o m ai s -queperfei t o, ex pl i cando a pres enç a do pescador em t er ra, a sua di s poni bi l i dade e at i t ude (“va gar am ol e ci do”); “M eu p ai ti n h a um pal áci o lá em ba i x o... Fazí amos f est as t ão l i ndas! Vi n h am t rovadores cant a r... e eu... t am bém t ocava l i ra...” – o aspect o durat i vo do pret éri t o i m perfei t o do i ndi cat i vo, em conj unto com a enum era ção, p roduz um a si m ul t anei dad e de acçõ es que, m ai s um a vez , pel o cont rast e, real ç a a i nf el i ci dade da si t uação pr esent e. LM 37 : “S or ri i nt i m am ent e, e r ecor d a , en q u an to cami nha, o di ál ogo havi do ent r e el e e o com padr e Zé ” – e se gu e -se o refe ri do di ál ogo, que n ão só j ust i fi ca a presen ç a de J ul i ão no cená ri o, com o t orna pr evi sí vel a apari ç ão da m oura; durant e o encont r o ent re J uli ão e Fl ori pes, est a cont a -l he c om o ocorreu o se u t rági co encant am ent o, prov ocando um cres cen do da pi edade qu e o rapaz s ent e por el a, a um ent ando, conse quent em ent e, a d ensi dade dram át i ca, um a vez que est a pi ed ade, al i ada à b el ez a da m oura e à s ua “t ri st e” e “h arm oni osa” voz , são fa ct ores que s e conj u gam p ara 182 que J ul i ão vaci l e, i n t ensi fi cando, no fi nal (do en cont ro), o am or que es t e sent e por Ani nhas, e que sai vi t ori o so. LM 49 e LM 10 : “C on tou -l h e q u e ti nham ten tad o ent ra r n o cast el o [ ...] ” são, proposi t adam ent e, om i t i dos acont eci m ent os, r evel ados pos t eri orm ent e por out ra persona ge m , m ant endo a coerên ci a narrat i va do pont o de vi st a do j ovem guer rei ro; pouc o depoi s, repet e -se pro cesso, m as porque est es acont e ci m ent os são m ai s i m port ant es par a el e , o di scurso i ndi rect o é subst i t uí do pel o di ál ogo com o i rm ão da j ove m m oura. LM 50 : “ Par ec e q u e al gu n s cri stãos vi ram o hom em sai r do cas t el o com as fi l has, em di recção à font e. Depoi s ou vi ra m uns cânt i cos e quando vi ra m o gov ernado r v ol t ar, vi nha soz i nho.” – est e r ecuo (em que o carpi nt ei ro t em o cui dado de não afi rm ar nada cat e gori c am ent e, e scudando -se com os que t est em unharam o epi s ódi o e narrando apenas o que podi a t er si do vi st o e ouvido) vem el uci dar o gove rn ador sobre o con heci m ent o gene ral i z ado do encant am ent o de suas fi l has, perm i t i ndo -l he i dent i fi car -s e e faz er o l oul et ano com preen der a sua at i t ude . “Nessa al tu ra , o carpi nt ei ro d eu -se con ta d e q u e a m ul her que l h e acen ara na P ra ça de Loul é era a m ou r a C assi m a, que assi m procu r ava vi n ga r -se pel a segund a vez !” (Em L M 3: “S ó en tão o carpi nt ei r o se re cord ou das f ei ções de C ás s i m a e con h ece u ser el a q u e l h e acen ara na pr aç a!” ) – est a record aç ão t em um a part i cul ari dad e ori gi nal : é um a si t uação pres ent e (es t á a se r l evado à pres enç a do gov ernado r pel a se gunda vez , depoi s de t er cr uz ado os ares t am bé m pel a segund a vez ) que faz l uz s obre um a si t uação passad a (re conh ece a m ul her que l h e acenou ) que, por sua vez , l h e perm i t e com pr een der a si t uaç ão pres e nt e. LM 2 1: Tam bém nest a l enda, um t ri st e encant am ent o é narr a do, com a ori gi nal i dad e de est arem i ncl uí das n o rel at o as vári as t ent at i vas em preendi das pel a m oura pa ra conse gui r o seu desen can t am ent o, pondo, dest e m odo, o seu r ec ept or a p ar dos pr ec ei t os ex i gi dos e res pect i vas consequ ênci as. Est a an al eps e est á pres ent e na n arrat i va 183 encai x ada, que co rresponde a m ai s um a das suas frust radas t ent at i vas. Ao cont rári o das a nal epses , as prol epses apare cem com i gual frequên ci a nout ras narrat i vas, pri nci pal m ent e nas l endas cuj a pers ona gem m í t i ca é a mort e . Nas l end as de mour as encant adas , a m ai or pa rt e d as prol e pses encont rad as assum e um ca rá ct er “pro fé t i co”, ou d e prom es sa – t al com o nas l endas da mort e –, ai nda que m ui t as se re sum am a previ sões depend ent es, nat ural m ent e, da acei t aç ão ou da re cusa em s ubm et er -se à prova ex i gi da. LM 33 : “E em t ro ca do bol o, recebe rás um a fort una p ara o resto d a tu a vi d a .”; “ Nem à t ua m ul her. E será el a que m m ai s t e provocar á.”; “ Ver -n os -em os a man h ã à m ei a -noi t e, no cast e l o.”; LM 34 : “ Al a gar ei a t ua casa, as t uas terras e t oda a t ua fam í l i a!”; “Tent ar ei ai nda est a mad ru gad a ...”; “ Hei -de de fend ê -l o s! Hei -de defende r os m eus fi l hos!...”; “ De us os prot eger á! ”; “Ou os encont ro... ou n ão mai s vol ta rei !”; LM 3 5: “Mas tu h á s -d e vi r aq u i mai s ve zes e ent ão... f ar-te -ei a vont ade.”; “ S ob est a pedra ex i st e um caudal de á gua que f ará cur as m aravi l hosas! S e m e t roux eres a t erra, di rás à t ua m ãe que venha aqui banha r -se na águ a qu e vi r corr er .”; “ S e ent rar es... serás o h ome m mai s p od er oso d estas red on d ezas !”; LM 36 : “ S e qui seres, n ão p reci sará s mai s de l avar. P agarás a out rem para t r at ar d o que é t eu [ ...] ”; “ Vi rás, si m. ”; “El a querer á acom panha r -t e a ma n h ã [ ...] ”; “ A man h ã est arás aqui à m esm a hora.”; LM 37 e LM 1 4: “ O hom em que m e a braça r e m e f e ri r t e m de m e acom panha r at é Áf ri ca [ ...] Por tod a a vi d a [ ...] ”; “ Não mai s 184 vol tará aos seus!”; L5 (só): “E t u é que poderás en cont rar out ro hom em que quei ra s egui r -t e.”; “Ter ei de acom panh ar aqu el e que m e am a e não ser acom panhada pel o qu e eu am o. P aci ê nci a! Cu mp ri r ei o meu d esti n o .”; “A gor a nós e el e ser em os fel i z es!”; LM 38 , LM 48 e LM 1 3: “Em pri m e i ro l uga r, se rás t r ê s vez es engol i do e t rês vez es vom i t ado por m eu i rm ão, q ue est á t ransform ado n est e l eão. Depoi s, t rês v ez es serás t am bém abraç ado por m i nha i rm ã, que est á t ransfo rm ada n est a serp ent e, e qu e dei x ará o t eu co rpo em ch a ga nos pont os em q ue t e t o car... E po r fi m eu bei j ar -t e- ei na f ront e, para t e t i rar os s ant os ól eos que re c ebest e no bapt i sm o...”; “Ama n h ã , ant es de o sol nascer, sent a -t e à s o l ei ra da t ua port a, porque n o m om ent o do nascer do sol os t eus ol hos darão doi s est al os com o duas am êndoas dur as e ent ão com eçar ás a ver. Pri mei ro avi starás a casa do padre J osé Di as, d ep oi s os canári os que el e t em na gai o l a e, p or f i m, v erá s as casas d a p ovoa ção e os cam pos em vol t a.”; LM 40 : “Q u an d o a al vorad a romp e r vão t ent ar o assal t o... Mas não nos acharão desp re veni dos, com o j ul gam !”; “ Na vésp era d e S . João, à mei a -n oi te, i rás j unt o daqu el a font e que fi c a a nas cent e d a vi l a, l ogo à ent rada , e at i ra rás est es pã es para dent ro da f ont e, um de cada vez ... E de cada vez di rás o nom e de um a del as... P ri m ei ro, Za ra... Depoi s, Lí di a... E, fi nal m ent e, C assi m a!... Quando acab ares, part i rás l ogo pa ra t ua casa... Daí em d i an te , acr edi t a , serás o hom em m ai s ri co de Loul é! ”; “S e conse gui r es f az er i sso, i med i ata men te ch e garás a Loul é. Mas se t ocar es na á gu a, m orrerás afo gado...”; LM 41 : “[ ...] n u nca o esq u ec er ei ... J uro por Al á qu e n ão o es q u ecerei !...”; “ Le m brai -vos que sem Abdal á n ão sab erei vi ver !”; LM 47 e LM 12 : “ Aqui f i carás encant ada até q u e duas pe ssoas de s ex o di ferent e am assem f i l hozes com a águ a dest e ri o, na véspera d e S ão J oão, e aqui as venham com er d ep oi s de m ut uam ent e se t erem at i rado à c ar a com a s m esm as f i l hozes .”; 185 LM 49 : “ Est a noi t e espero ent ra r no ca st el o pel a port a do nascent e. S e eu n ão vol tar d ep oi s d e al gu m te mp o , é porque caí num a ci l ada, por i sso pe ço -vos q ue, quando o c ast el o for t om ado, poupe i s a fi l ha do gove rnador. N ão a m al t rat ei s, porqu e em caso de t r ai çã o el a não t erá t i do nada c om i sso.”; LM 50 : “N a véspe ra de S ão J oão, à m ei a -noi t e, vai at é à fo nt e onde el as est ão e abei r a - t e. Dei t a -os [ os pães com os nom es das fi l has] ent ão um a um l á para d ent ro, di z endo al t o o nom e de c ada um a del as: Zar a, Lí di a e C assi m a. Depoi s vol t a p ara cas a e e squece o as s unt o!”; “S e l he passares por ci m a de um pul o, ver-t e-á s i med i ata men te à po rt a da vi l a; se não c onsegui r es, cai s a fo gado no m ar...”; “[ ...] se desencant a res as m i nha s fi l has serás re com pensado de m ui t as m anei ras .”; “ S ou eu, C assi m a, con denad a a es t a font e p or sécu l os e sécu l os .”; “El a vai t er um fi l ho em b reve . Nessa al tu ra ci nge -a com el e.”; “[ ...] só a m i nha pequena C as si m a al i , para sem pr e, ete rn amen te num a font e ! Fel i z m ent e que não fi car á s ó!!”; “ E n q u an to exi sti r Al - Fagh ar nel e pal p i t ar á um m undo de coraçõ es sar rac enos. ..”; LM 6 1: “ Aj ud ar -t e -ei d u ran te ci n co a n os , e n o f i m l ego - t e t odos os m eus t esouros.”; “ Morres e eu aqui fi co p or mu i tos an os .”; LM 59 : “ Ahi t ens a t ua vacca pej ada. D’aq u i a p ou co temp o pari rá doi s bez erri nhos: um est rel ado e o out ro moi rat o . No fim d e u m an n o j unge -os ao ar ado e t ral -os a est e pego. É pr eci so que ni nguem vej a o l ei t e da v acc a e mq u an to cri ar os bez erri nhos.”; LM 7 : “ Dou -t e ri q uez as de m ui t o m ai s val or se m e prest ares um pequeno se rvi ço.”; “S e n os d esenc an t ares, dou -t e di nhe i ro para com prar es m ui t os pent es.”; “ A man h ã , ant es do sol nado, vem aqui e encont ra rás doi s t ouros boni t os e belos. [ ...] S e t e di st rai res não ganh as o que t e p ro m et i e r edobr as o nosso encant am ent o. ”. LM O 1 : “Daq u i a 15 d i as , l evo -t e a t i , 15 d i as d ep oi s , l evo a t ua m ãe e, 15 d i as d ep oi s , l evarei o t eu pai . ” ; 186 LM O 3: “D aqui a u m m ês, t enho um e ncont ro m ar cado co nt i go, a es t a hora, p ara t e l e var!”. Out ras l i m i t am -se a ant e ci pações (de m ai or ou m enor am pl i t ude), dúvi das ou quase cert ezas sobre o que i r á pass ar -se em s egui da: LM 33 : “Vi nha de l onge e se gui a par a casa, ond e d ec erto a mu l h e r o agu ard ava j á c om i m paci ênci a.”; “Eu est ar ei à t ua espera. ”; “A man h ã j á poderei cont ar -t e t udo. ”; LM 35 : “N ão foi o m edo que o fez par a r. Ant es o r ec ei o de que a s ua presenç a pusesse em fuga a l i nda a pari ção. ”; “E para q ue o t eu encant o d esapa reç a ter ei eu d e p erd er a mi n h a al ma . ”; “ Não poderei dei x ar a m i nha m ãe que é doent e!”; “ Nós te acom panha rem os aman h ã e t rarem os a t ua m ãe. S e a ág ua curar, farem os daq ui um as t erm as par a al í vi o dos doent es!”; LM 36 : “T eri a d e l a var nessa m anhã as peças d e roupa qu e a m ãe l he ent re ga ra e estar d e vol ta a casa an t es d e o sol es tar a p i n o .”; “ A man h ã não vi re i ao ri o. ”; “M as vo l t o l á a man h ã .”; “ A man h ã vai s ao ri o soz i nha. Mas l evas est a cru z . Q u and o el e te p ed i r par a cas ar es com el e [ ...] ”; “ Vou faz er assi m com o diz !”; “[ ...] não cas ar á com i go.”; LM 37 : “S e el a nã o apare cer, dou -t e a Herdad e das R el vas com o pres ent e d e noi vado ! [ ...] Não t e dou nada quando casa re s com a Ani nhas.”; “ El a en cont rar á out ro noi vo.”; LM 38 , LM 48 e L M 13 : “[ ...] e part i u par a c asa, di spos t o a não cont ar n ada a ni n guém , nem m esm o à m ul her. ”; “O a l m ocreve j ul gou -se s al vo. S al vo p ara se mp re , e ai nda por ci m a poss ui dor de d u as barr as de ouro ...”; “[ ...] escondeu as duas bar ras de o uro ond e a m ul her n u n ca pudesse encont ra r [ ...] convenc endo -se i nt i m am ent e a n u n ca mai s t o rnar ao pal áci o subt er râ neo e enc ant ado da m oura de 187 Es t ói .”; “[ ...] vendê -l as, por ex em pl o, num a fei r a grande , onde l he dari am d ece rto bom di nhei ro por el as.”; LM 39 : “[ ...] ol hava at óni t o para o ex érci t o fort e e di sci pl i nado que s e es prai ava pel a pl aní ci e em frent e e q ue el e sab i a d e an temão não poder venc er.”; “ P arec e bem grand e a p rovação q u e n os esp era , m i n ha fi l ha!”; “ Lá nos encont r arem os d ep oi s .”; “ Den tro e m b rev e os m eus com p anhei ros est a rão aqui !... E pode rão pensa r que eu fi quei encant ado di a nt e de vós!”; LM 40 : “ Fal ta m já p ou cos mi n u tos para que os ast ros e st ej am na conj unção propí ci a.. .”; “No seu í nt i m o pensa na m ul her, no s fi l hos, nos am i gos... Que e norm e surpr esa! Nã o, não pode fal h ar! ” ; “[ ...] j á i nebri ado pel o t ri unfo e p el a p ersp ecti va d a f ortu n a p rometi d a . [ ...] certo d e q u e t udo se vai passar co m o ant eri orm ent e... ”; LM 41 e LM 15 : “[ ...] egoí st a e re ceos o do dot e que t eri a de da r l he, se casass e!”; “ Vou m anda r que t e abram a port a. Al i n a r eceou o pi or.”; “ P oi s vere m os se el e t e m er e ce...”; “E n a noi t e desse di a dei t ou -se descans ad o n a certeza d e q u e não seri a despe rt ad o do seu s ono.”; LM 43 e LM 27 : “[ ...] podi a ser que, com um pouco de sort e, l hes vi es s e a c aber al gum a coi sa do t eso uro que o m ouro devi a t er es condi do [ ...] ”; “[ ...] e pode s er qu e t u l he pr est es al gum servi ço, do qual r esul t e a no ssa fel i ci dad e.”; “[ ...] e d ep oi s i a ser a cha co t a da vi z i nhança [ ...] ”; LM 45 : “[ ...] um a broa que só deve ri a part i r em pres ença da m ul her e um bel o ci nt o de ouro para enfei t ar a ci nt a da m ou ra.”; “D e repent e, l em brou -se de pôr o ci nt o no t ronco p ara ve r o ef ei to q u e f ari a na m ul her.”; “E subi t am ent e d es at ou a ri r, um pouc o nervoso m as di vert i do, i magi n an d o a cara dos m ouros q u an do vi sse m apare ce r um a c arval ha em vez da fi l ha q ue esper avam .”; LM 47 : “O ho rt el ão part i u d al i co m o p rop ósi to d e f i ni d o de cum pri r os pre cei t os de desenc ant am ent o .”; 188 LM 50 : “[ ...] o gov e rnador, reconh ec end o que e m b r eve a vi l a cai ri a nas m ãos dos cava l ei ros de D. P ai o [ ...] ”; “[ ...] os cri stãos que m oravam fora d a m ural ha e que de cer t o m odo come mora vam já a conqui st a que D. P a i o vi ri a a cons e gui r. ”; “P art i am na esper ança d e e m b reve vol t are m com gent e sufi ci ent e para r et om a r Loul é ”; “ Andar ei mu i to te mp o pel o ar? – Já vai s sab ê -l o . ”; “[ ...] i magi n ou que devi am ence rra r um a f ort una qual quer qu e o seu hom em l he escond er i a.”; “[ ...] i nqui et o com a des gr aç a – m as qual? – que ad i vin h ava e não podi a socorrer. ” ; “[ ...] esp eran d o cont udo a p rometi d a p aga pel o servi ço que p rest a ra ao vel ho m ouro. ” ; LM 53 (e LM 17 ): “O govern ador, p r e ven d o um at aque de ci si vo de D. P ai o P eres, orde nara e p rep ara ra a f uga d as gent es e das ri quez as por doi s cam i nhos [ ...] ”; “[ ...] o governador, t e men d o q u e el a caí s s e nas m ãos dos perros i nfi éi s, resol veu enc ant á -l a p or mi l e u m an os .”; LM 3: “Depoi s dos duros com bat es feri dos em frent e do cast el o, reconhe ceu [ o gove rnador do cast el o de Loul é] que a vi l a seri a b reve men t e i nvadi da pel os sol dados de D. P ai o.”; “[ ...] e foram t odos em barc ar em Quart ei r a pa ra Tâ nge r, n a d oce esp e ran ça de que vol t ari am brevem ent e, acom p a nhados de grand e s forças arm adas, a ret om a r o cast el o e a vi l a. ”; LM 10 : “[ ...] comb i n an d o -se q u e o m ouro i nt erm edi ári o l he abri sse, al t a noi t e, a port a, h oj e da S enhora do R epouso.”; LM 21 : “[ ...] d ep ois d e r eceb e r as ri quez as nada m ai s t i nha que faz er sen ão i r à i gr ej a e pedi r ao s eu p ri or que l he t orn ass e a un gi r com os ól eos do bap t i sm o que eu l hos ar ranca ra com o bei j o.”; “[ ...] n ão ti n h a recei o de com bat er o t ouro [ ...] .”; “ P ort ant o há ent re o pego e a sua resi dênci a um a com uni cação ocul t a.[ ...] Verem o s aman h ã i sso.”; “ Mas, p od e su ced er q u e não encont re m os essa com uni caç ão [ ...] ”; “ Lanço à c i st er na um dos m eus podengos . Q u ero ver se el e encont ra a t al c om uni cação subt er r ânea: se mo rre r, p erd i u m cão .”; “Tu fi c as aq ui , m et es o cão na ci st erna e 189 faz um t i ro com a t ua espi nga rda, eu vou col ocar -m e l á em bai xo j unt o do pego [ ...] ”. E LAP / M 6: “ Iri a m i j ar em ci m a dos fi go s? ” – pensou el e.”; E LAP / M 8 : “ -Que sort e! – pensou. Ia pesca r, sert am ent e, o m ai or pei x e da sua vi da!” . E LLO 1: “-Ol ha, j á t em os t ransport e! – di z um .” . LM O 1: “O hom e m , em desespero, preparou -se par a a i dei a de m orrer t am bém . ” ; LM O 2: “Qu e seri a da m i nha vi da sem o t eu am or? ”; “E de m i m , que s eri a de m i m sem t i? Quem m e rem e ndari a a roup a e q uem m e cos eri a os p eú gos e m e fari a a com i da? ” ; LM O 3: “t eve um a i dei a e, j ul gando - se m ui t o espert al hão, um a s em ana aant es foi passea r p ara b em l onge da t er ra e m que se encont ra ra com D. Mort e.”. Out ras, ai nda, ap ar ecem com o sonhos premoni t óri os (ou, pel o m enos, com essa i nt enção): LM 38 , LM 48 e L M 13 : “S on h ava qu e era en gol i do e vom i t ado pel o l eão, abr aç ado pel a serp ent e e b ei j ado pel a m our a.”; LM 44 : “[ ...] i a pel a est rada qu e vai d ar ao sí t i o da R ocha, quando em det e rm i nado l oc al , ao pé d e um a al farrob ei ra, vi u ent e rrado um t acho chei o de our o, guard ado por um m ouro encant ado que dari a t ão grand e t esouro a quem , ao pi no da m ei a -noi t e, al i fosse e cons ent i sse que l he desse um bei j o.”. Ant eci pações f ei t as pel o narrador, i st o é, m om ent os em que o narrado r, om ni sci en t e, rev el a o conh eci m ent o de acont e ci m ent os que ai nda não se d eram no present e do t ex t o: 190 LM 44 : “[ ...] o que acabou por l he ac a rret ar a el a o resu l t ado de um a pequena vi n gan ça, co mo v er e mos .” ; LM 46 : “[ ...] possi bi l i t ando a sua ut i l i z ação pl ena p el os m ouros da re gi ão, que, l o gi c a m ent e, o usar am para os s eus enc ant am ent os, co mo va mos ve r .”; LM 54 : “P or i sso d e ci d i u [ Al á] , l ogo al i, aquel es doi s cast i gar.”; P ara al ém dest es doi s t i pos de anacroni a, veri fi cam -s e el i pses , s um ári os e pau sas (que serão anal i sado s a seu t em po ), ani s ocroni as que acont ec em co m al gum a fr equênc i a em t ex t os de t ransm i ssão oral , dada a t endên ci a nat ural par a r et er o fundam ent al da hi st óri a, dei x ando t am bém ao cont ador a l i berdade d e preen ch er al guns vaz i os com a sua pr ópri a cri at i vi dad e. Tem os, ai nda, i nform ações fo rneci d as t am bém por advérb i os e l ocuções adv erbi ai s de t em po, conj uga ções peri f rást i cas, ge rún di os e out ros el em ent os m orfossi nt áct i cos, dando cont a da duração, da frequên ci a, da si m ul t anei dade e de out ra s rel açõ es de t em po ral i dade ent re os vári os s e gm ent os narrat i vos: a) du ração / con t i n u i dade : LM 33 : “so rri ndo sem pre ”; “Es pi ava o m ovi m ent o apare nt e do S ol no horiz onte, i ndi cando a cam i nhada do di a.”; LM 34 : “l en t am ent e t am bém , o gado desci a”; “[ ...] l evast e t rês di as e t rês noi t es a fi o a ca var e a sem e ar.”; “Ol hou dem oradam ent e o hom em ”; “Ant óni o ergui a -s e deva ga ri nho ”; “águ a com abundânci a, qu e fi cou correndo at é form ar um a l ago a.” ; L M 35 : “s ubi a num va gar a m ol eci do”; “A j ove m m oura fi cou uns m om ent os s i l enci osa.”; LM 3 9 : “As nossas sen t i nel as t êm est ado sem pre al ert a! ”; L M 40 : “M ant ém -se al i durant e cert o t em po”; “P or fi m , ao cabo de l on ga e ár dua ex pect at i va, um a e x pressão”; “C aut el osam ent e [ ...] vão t ranspondo a port a ar rom bada.”; L M 41 : 191 “De m ansi nho, a j anel a abri u -s e.”; LM 42 : “Toda a sua vi da se res um i a, desde a al ba at é à noi t i nha, nos cui dados c om o seu rebanho”; “di a a di a, i a cont ando o t em po do j ej um ”; L M 43 : “Durant e m ui t o t e m po a m ul her ocul t ou”; “Dur ant e l a r gos m eses s obrevi veu a pob re ”; L M 49 : “P or al gum t em po nam orara m ”; L M 5 0: “E dur ant e m ui t as sem anas m an t eve -se sosse gado”; LM 6 : “C onservava -se vol t ada p ara o Ori ent e horas esquec i d as”; LM 10 : “Naquel a fai na t r a bal hou horas e ho ras sem i nt errup çã o, di a e noi t e.”; LM 14 : “– P or t oda a vi da, resp ondeu a m our a”; L M 21 : “E as s i m vi vo, se i st o é vi ver, há quase oi t o sécul os.”; L M 24 : “ durant e t rês m eses, o t em p o que ca re ço par a che gar à m our am a [ ...] ”; LM 2 7: “Ocul t ou a m ul her, enqu ant o pôde ”; “al i se achav a e ncant ado, havi a l ongos anos ”. E LAP / M 6 : “est ava um rapaz que t rabal hava no cam po t om ando co nt a de um a seca de fi gos ”; “ol hava o céu obs ervando as est r el as”; “ao fi m de m ui t o correr a t r ás do gat arr ão”; E LAP / M 8 : “dei x ou -se por l á est ar a t é m ui t o t arde”; ELAP / M 9 : “quando se en cont r ava com um grupo de out ros garot os a m i gos a bri ncar n a arei a ”; “C am i nhavam l ado a l ado, m ui t o l en t am ent e”; LLO 1: “l evando um a vi da em t udo norm al ”; E L LO 1: “se gui am doi s pes cador es no v al e de Bu r gau a c am i nho de Bar ão de S . Mi guel ”; LM O 1: “o pobre do hom em en ganav a -s e na cont a gem do di nhei ro”; LM O 2 : “E assi m cont i nuaram , am bos i nvent ando descul pa s que os i m pedi ssem de se d esl ocar em à port a. ”; LM O 3: “Enquan t o o t em po pas s ava e o hom em m at ut ava em com o se h avi a d e l i vra r daquel a s i t uação”. b) fr equ ên ci a : L1 : “aprovei t ando sem p re os c am i nhos m ai s curt os”; LM 35 : “ Às vez es. .. quando est ou t ri ste...”; “S ubi a t odas a s t ardes, com o S ol a pi no, a serra de Monchi que ”; LM 36 : “J á t e di sse que t e vej o sem pre que v ens aqui ao ri o.”; “E não fal h as nunca a t ua canç ão predi l e ct a.”; L M 37 : “ P orque andas sem pr e pi n ga do!”; L M 4 0: “de v ez em qu ando vai m i r ar e r em i rar”; L M 41 : “ Todas a s noi t es que o t em po perm i t i a, l á i am , c aval o e cav al ei ro”; L M 42 : 192 “P or vári os di as se repet i u a cena, sem pre à m esm a hora”; L M 43 : “a m ul her não podi a di ri gi r -s e à nora que não l he apar ec esse um m ouro”; “const ant e m ent e perse gui da ”; L M 44 : “por t r ê s noi t es s egui das t eve as m esm as vi sões.”; L M 48 : “ A fr equê nci a dest e s onho era t al que s e habi t uaram am bos ao ri t ual noct urno ”; L M 50 : “Todos os dom i ngos o carpi nt ei ro se di r i gi a à font e.”; L M 5 3 : “cada vez que por aí pas sa al guém pre ga -l h e um a part i da ”; L M 54 : “e t odos os anos, pel a P ri m avera, Al á m anda -l hes as fl ores de am endoei ra ”; LM 6 1 : “Ti nha el l e por cost um e sai r t odas as m anhãs para o seu cam po”; L M 14 : “H avi a u m suj ei t o que se em bri agava m ui t as vez es”; LM 32 : “A vel ha B arba ças i a t odos os di as l evar o j ant ar ao m ari do. ”; “P ara i sso devi a t ra z er-l he um a gal i nha t odos os di as , poi s el a l he dari a t odos os di as 500 réi s par a a c om prar.”; E LAP / M 6 : “ com o cost um am ser no cé u al garvi o”; E LAP / M 7: “um cruz am ent o, norm al m ent e l ocal i ndi cad o para brux edos”; E LAP / M 8: “nos di as em que o m ar não e st ava c ap az de pe scar em em barc ação, gost av a de i r pes car par a a Toc a do R ab o”; E LAP / M 9: “nunca m ai s se at r e veram a and ar por l á depoi s do ent arde cer”; L LO 1: “t odas as sex t as -fei ras, ent r e as onz e horas e a m ei a -noi t e, quando a m ãe i a ao seu quart o, encont r ava sem pre v az i a a cam a d o Bern ardi no e só vol t ava a v ê -l o na cam a por al t as horas d a noi t e.”; “l evando um a vi da em t udo norm al ”; E LM O 1: “fa rt o de apanhar gr avet os p ara a l ar ei ra”; “ – Est ou fa rt o dest a vi d a que e u l evo!” ; LM O 2 : “quando fal avam sobre um a poss í vel m ort e próx i m a, di s cut i am qual del es l evari a pri m ei ro D. Mort e.” . c ) s i m ul t an ei dade : LM 33 : “Di o go suspi rava. Andav a de um l ado para o out ro. Espi a va o m ovi m ent o ap arent e do S ol no h ori z ont e, i ndi cando a c am i nhada do di a. N ão fal ava. Não com i a. P areci a doent e.”; L M 34 : “Ent ão J oana, s ai ndo por d et rás do r ochedo e em punhando a c ruz , gri t ou”; L M 35 : “ Meu pai t i nha um p al áci o l á em bai x o... Faz í am o s fest as t ão l i ndas! Vi nham t rovador es cant ar... e eu... t am bém t oca va l i ra...”; L M 38 : “P re gou -l he o co rpo , a voz e 193 o pensam ent o.”; L M 40 : “dom i nando -se e t ent ando do m i nar a em oção d as fi l ha s”; “B enz endo -se e r ez ando, o c arpi nt ei ro com preend e t udo”; “el a cons e gue a garr ar -se ao gar gal o da font e, e m os t rar a sua bel ez a, e chora r a sua dor”; L M 43 : “El a f ugi a a o i nqui et ant e convi t e, m as o m ouro vá de se gui -l a at é c asa”; L M 4 9: ”no m om ent o em que o ent re abri a p a ra que o caval ei ro s aí sse, os bat ent es fo ram i m p el i dos de fo ra com fúri a ”; L M 50 : “ A o m esm o t em po que t i rav a d e um a cai x a t rês p ães, o m ouro i a re vel ando”; “Enquant o i st o se p assava em T ân ger, o ca rpi nt ei ro at rave ssava os m ares com o um a á gui a e pousav a às port as de Loul é”; L M 54 : “nes t e gest o, vi u -se t ransform a r em fon t e e o s eu t rov ador m udar -se em l ago. ”; LM 58 : “o l avrador p roí bi u que al gu em t rat asse da vaca , em quant o am am ent a sse os bez erri nhos.”; L M 6 : “e enqu an t o t odos s aí am dal i [ ...] a fi l ha do gov ernado r f a z i a oração no m ai s a l t o m uro do cast el o.”; LM 10 : “encant ou -nos aqui no m om ent o em que t ranspunhas a port a ”; E LAP / M 6: “ol hava o céu obse r vando as es t rel as”; E LAP / M 7 : “Ent ret ant o, m i nha avó ouvi u um a voz que l he di z i a”; E LAP / M 8: “Ao m esm o t em po, ouvi u um a sonora gar gal had a por det rás d e si .”; “ sent i u m esm o que a m ão esquerd a de al guém s e apoi ava no seu om br o di rei t o enquant o sent i a a can a ser pux ada p ar a a á gu a e ouvi a a t a l sonora gar gal h ada .”; “A rrepi ado, sent i u -se ao m em so t em po com m edo e ví t i m a da goz ação de al guém ”; E LLO 1 : “ol hando para el es com ar de desafi o, raspando o chão co m a pat a di ant ei ra e t odo aos pi not es.”; LM O 2: “bat endo à port a, di z ”; LM O 3: “Enquant o o t e m po passava e o h om em m at ut ava em com o se hav i a de l i vra r daqu el a si t uação ”. d) progr essão : LM 33 : “P or fi m , à t ard e dessa sex t a-fei ra, o cansaço parec eu dom i ná -l o. ”; LM 34 : “e l ogo em segui da fum o e fogo precedi am a m ul her”; L M 37 : “J ul i ão e Ani nhas casara m pouco depoi s.”; LM 38 : “P assaram uns m i nutos. Dal i a pouco aparec er am as pri m ei ras l um i nosi dades”; L M 41 : “i nst ant es depoi s , com o se t i ves se acord ado de um sonho”; L M 58 : “Um ano depoi s o l avrador 194 j ungi u os b ez erri nh os ao arado ”; L M 1 2 : “Na próx i m a vés pera de S . J oão, o hort el ão e sua m ul her”; L M 1 3 : “Em breve, poré m , sai u des t e pasm o quand o vi u a corr ent ados ”; “P assados al gun s anos, com eçou J osé C oi m bra”; L M 21 : “Doi s ou t rês di as d epoi s c om bi nou com el e”; L M 24 : “di a a di a i a cont a ndo o seu j ej um ”; L M 31 : “P as sado t em po foi à Moi ram a v er a f am í l i a da m ul her.”; E LAP / M 6: “Ao fi m de m ui t o corr er at rás do gat arrão, m at ou -o ”; E LA P / M 7 : “Ent ão não é que, ao t ercei ro cr edo e m cruz , o o di abo da burra com eça a andar t oda l i gei ra? ” ; E LAP / M 8: “Mas, and ado s al guns m et ros, ouvi u de no vo um a sonora ga r gal hada”; E LAP / M 9 : “J á ao l onge, ol har am para t rás e vi ram -nos desapar ec er”; LLO 1 : “a um a cert a di st ânci a, de i x ou de vê -l o e, em seu l u ga r, sur gi u -l he a i m agem de um burro ”; E LLO 1: “Depoi s , parou e pôs -se a ol har para el es ”; “ Depoi s de t ent arem em vão m ont ar o ani m al , ac ab aram po r des i s t i r”; “J á t i nham passado um sí t i o [ …] , quando ouvem z urrar.”; LM O 1 : “qui nz e di a s depoi s, foi -se o m i údo e, 15 di as depo i s, l á se foi a pobre da m ãe. [ …] P assados 15 di as [ …] ”; LM O 2: “ E assi m cont i nuaram , am bos i nvent ando descul p as” . e ) progressi vi dade : LM 33 : “C ad a vez m ai s surpreendi da ”; L M 34 : “com eç ara m a ch am ar a esse l ocal Al a gôs e m ai s t arde A l goz .”; ”; LM 38 : “passou a t er pesadel os vi o l ent os”; “E aos poucos, os pes adel os for am di m i nui ndo e aca baram por des ap arec er. ”; “com eçou a arrui n a r -se, a em pobr ec er e fi cou na m i séri a. ” ; L M 39 : “ Lá fora, a voz ea ri a aum ent ava a cada m om ent o. E a cada m om ent o t am bém , m ai s port ugues es ent ravam no cast el o”; L M 40 : “P orém , com o passar dos di as, a m ul her do car pi nt ei ro com eça a d esconfi a r de qual quer coi sa. ”; L M 48 : “O seu ne góci o foi dec ai ndo e a fom e com eçou a bat er -l he à port a do est ôm ago. ”; “à m edi da que i a acal ent ando est a i dei a, ia dei x ando de ver, at é que fi cou com pl et am ent e c e go .”; L M 50 : “ a árvo re desat av a a subi r, a subi r at é desap are ce r no ar.”; L M 51 : “um a m el opei a t ri st e e m í st i ca que s e foi el ev ando at é t om ar propor ções an gust i osí ssi m as.”; L M 13 : “À 195 m edi da que J osé C oi m bra acari ci ava a i dei a de vender as b arras, i a s ent i ndo ofuscar -s e- l he a vi st a, com eça ndo por sent i r apen as um as névoas nos ol hos, e a brev e t recho est av a com pl et am ent e ce go.”; L M 3 2: “A vel ha pri nci pi ou a com prar gal i nhas e a l evar -l has at é que o povo desconfi ado c om eçou a m urm ur a r ”; E LAP / M 7: “c om eça a rez ar os t rês cr ed os em cruz ”; E LA P / M 9: “os mi údos fi caram boqui abert os e, ch ei os de m edo, d es at aram a co rre r pe l a prai a fora. ”. f ) s u c ess ão : LM 34 : “E, faz endo -os s ai r da cam a, em brul ho u -os num m ant o e foi escondê -l os”; LM 38 : “Dep oi s dos pesadel os vieram os m aus negóci os. ”; L M 39 : “C om a m ão di rei t a t raçou no espaço [ ...] . Depoi s di sse um as pal avras m i st eri osa s – e t udo se cons um ou no m es m o i nst ant e...”; LM 40 : “preci pi t a - se para l á, abr aç a e bei j a a m ul her e os fi l hos [ ...] . Depoi s corre a escond er os t rês pães [ ...] . Torna a d esce r pa ra abraç ar ”; L M 41 : “o j ovem desm ont ava sob um a j anel a fl ori da, em punhava um al aúd e e c ant ava t rovas d e am or”; LM 4 8: “P ri m ei ro avi st arás a casa do p adre J osé Di as, d epoi s os canári os que el e t em na gai ol a e, por fi m , verás as casas d a p o v o ação e os c am pos em vol t a.”; LM 59 : “a vacc a despr endeu -se da m angedoura, sai u, e vol t ou horas depoi s m ui t o fart a.”; L M 60 : “O r apaz vi u ent ão um porco a dan çar, na sua p resen ça, ao som da gui t ar ra; e l o go a s egui r, vi u um t ouro , faz endo o m esm o, e m ai s l ogo um a serpent e que se poz t am bem a dançar.”; L M 26 : “De m anhã m ui t o c edo r eal i z ou a com pr a d e um a c el ha; foi ao m ar [ ...] encheu - a de á gua s al gada, e espe rou q ue anoi t ec esse es co ndi do em um a furna. À noi t i nha conse gui u apanh ar uns pei x es [ ...] m et eu -os na cel ha e vol t ou para o fo rno, quan do veri fi cou que p odi a faz e r es t e passei o sem test em unhas [ ...] Apanhou os pei x es da cel ha , preparou -os, coz eu - os e devorou -os ”; LM 31 : “dei x ou o rapaz i r o m oi ro, che gou ao pé da cova, di sse as pal avras, d esenc ant ou -a e cas ou com el a.”; E LAP / M 6: “m at ou -o com um a val ent e paul ada no t out i ço, aga rrou nel e e foi at i rá -l o de u m a fal ési a ab ai x o.” ; E LAP / M 196 8: Enrol ou o fi o na cana, pe gou no bal d e chei o de pei x e e di spôs -se a faz er cam i nho di r ei t o a cas a.”; LLO 1: “dei x ou de vê -l o e, em seu l u gar, sur gi u -l he a i m agem d e um bu rr o que des apar ec eu em l ouca corre ri a. ”; E LM O 1 : “pousou no chão o j á pesado fei x e de l enha, l i m pou o suor do rost o e desaba fou”; LM O 1: “C ont ou o m i údo t udo o que se passou à mãe, m as el a não acr edi t ou. No ent ant o, cont ou o que o fi l hot e l he co nt ara ao m ari do, qu e at é s e ri u. ”; LM O 2: “Ent ão a M ort e, i rri t ad a, i nvest i u pel o post i go e, p e gando os d oi s pel a i l harga, l evou os do i s vel hos consi go.” . g) r ei t eração : LM 3 3 : “e que res i r j á t r abal har out r a vez ? ”; L M 34 : “Aqui est ou de novo!”; “Ouvi u -se o m esm o est am pi do”; “e era cont ada e r econt ad a em vol t a da l arei r a .”; L M 35 : “vol t ou a ol har a l i nda m oura.”; LM 3 6 : “Fez -se, ent ão, novo si l ênci o ent re a s duas.”; LM 37 : “J ul i ão t orna a t ropeç ar.”; L M 38 : “Um a vez . Duas vez es. Três v ez es.”; L M 4 0 : “rep et e o pai , c om o um eco. ”; “d e vez em quando vai m i rar e rem i rar ”; “Do m esm o m odo, out ra f i gura di áfana s e er gue da font e, a scende no ar e som e -se no hori z ont e.”; L M 42 : “não sem vol t ar re pet i das vez es a cabeça ”; L M 53 : “E, cont udo, Di norah chor ava. [ ...] E Di norah cho rava [ ...] Di norah chorava afi nal [ ...] e cho r ava -se ”; LM 58 : “R epet i u -se êst e c aso, e o gua rdador pr eveni u o pat r ão.”; L M 13 : “ser t rês v ez es en gol i do e t rês vez es vom i t ad o pel o m eu i rm ão : t rês vez es se rás depoi s abraç ado por m i nha i rm ã”; L M 24 : “R epet i u -se a m esm a cena nos di as segui nt es e à m esm a hora”; L M 25 : “sonhou el a novam e nt e com o t es ouro, e i st o por t rês noi t es segui d as .”; L M 26 : “o m our o t ornou a apare ce r ”; E LAP / M 6 : “m as o di abo do ani m al andava à roda do al m anx ar sem i nt enção de sai r.”; E LAP / M 8: “A verdade, verdadi nha – di z i a el e, é que i st o se passou um as duas ou t rê s vez es”; “ouvi u d e n ovo um a sonor a gar gal h ada”; LLO 1: “ t odas as s ex t as -fei ras, ent re as onz e horas e a m ei a -noi t e”; D epoi s de t ent arem em v ão m ont ar o ani m al , a caba ram por desi st i r”; E LM O 1 : “fart o de ap anhar grav et os para a l arei ra ”; LM O 2: “E assi m 197 con t i nuaram , am bos i nvent ando descul p as que os i m pedi sse m de se des l ocar em à port a ” . h) i n st an t an ei dade : LM 33 : “em pi no u -se subi t am ent e”; LM 34 : “Abri ndo num rep e l ão a port a de cas a”; “M al J oana ac abara de pronunci ar est as pa l avras”; L M 35 : “D e súbi t o, est ac ou”; LM 38 : “P or um i nst ant e, o al m ocrev e ai nda pensou”; “D e um p ul o, el e er gueu -s e, gri t ando ”; LM 39 : “e t udo se consum ou no m esm o i ns t ant e...”; LM 40 : “vol t ar à sua t err a, num i nst ant e, sem quase dar por i sso.”; L M 44 : “ bei j ar o sapo era ap enas um i nst an t e e pront o.”; “ Im edi at am ent e, m a l se t oca ram , s al t ou -l he um ol ho d a órb i t a”; L M 4 6: “assi m que asse nt ou os pés no fund o, apar ec eu -l he um a enorm e s erpent e ”; LM 48 : “quando, de súbi t o, os seus ol hos deram num cant o do sal ão”; “D e repent e, ouvi u um a voz ”; ELAP / M 6: “quando, de repent e, vi u ent r ar no al m anx ar um gat o pr et o.”; E LAP / M 7: “ei s que a m a gana d a bu rri nha est a ca”; E LLO 1: “quando, a ce r t a al t ura, l hes apar ec eu um enorm e bur ro”; LM O 1: “um di a, D. Mort e apare ceu a um garo t o”; LM O 2: “Ent ã o a Mort e, i r ri t ada, i nvest i u pel o post i go”; LM O 3 : “um hom em de Espi che encont rou D. Mort e”. i ) l ocal i zação (das proposi ções e s eq uênci as narrat i vas ) : LM 33 : “P or fi m , à t ard e d essa sex t a -fei r a, o c ansaço p are ceu dom i ná -l o.”; “M as quando a p ri m ei ra b adal ad a da m e i a -n oi t e cort ou o si l ênci o, o hom em acordou ”; L M 34 : “Ont em à noi t e se gui -t e ”; LM 35 : “ Meu pai , ant es de ch e ga rem os t eus hom en s, t roux e -m e para aqui e... encant ou -m e !”; LM 36 : “À hor a da s es t a a m ã e vol t ou a i nt erro gá l a.”; “Mas t odos os m eses, nesse di a e a essa m esm a hor a [ ...] pode ai nda ouvi r um c av al o corr endo”; L M 37 : “J á m anhã al t a, J ul i ão che ga a cas a.”; L M 40 : “num a t arde de dom i ngo, quando o carpi nt ei ro saí ra pa ra rond ar a font e”; L M 41 : “ No di a s egui nt e, Al i na per gunt ou a o pai ”; L M 42 : “P el a noi t e t raz i a o l ei t e m ungi do”; LM 46 : “Num a noi t e de P ri m avera, depoi s da t om ada de 198 Faro, pass ava um cr i st ão” ; “E quando a águ a do fundo era t ão pouca que nem dava j á par a enche r um bal de, desceu”; L M 48 : “A o che ga r a casa, escond eu a s barras d e ouro”; “Am anhã, ant es d e o sol nas cer, s ent a -t e ”; L M 49 : “À hora m a rc ada, o c aval ei ro p en et rou no cas t el o”; L M 50 : “ Duas noi t es ant es da ent rad a dos cri s t ãos em Loul é, o gove rna dor”; “Quando a noi t e che gava e cobri a m ansam ent e a t err a, o hom em vol t ava a casa ”; L M 51 : “O al cai de, as s i m que l he fo i dada a nov a de que os cafi r es [ ...] se aprox i m avam , convocou o consel ho”; L M 53 : “no m om ent o da fuga enfrent ou esp ant ad o a recusa de Fát i m a”; L M 3 : “Na p enúl t i m a noi t e, quando t odos descansav am , abri u um a das port as”; L M 14 : “Quan do a m i nha r aça foi ex pul sa da proví nci a, vi u -se m eu pai forçado a sai r”; LM 16 : “E na noi t e desse di a dei t ou -se des cansado ”; LM 2 6 : “ant es do rom per da m anhã t i nha o pl ano form ado”; L M 31 : “à ret i rad a deram -l he um a broa”; “a o che ga r pert o de c asa, sent ou -se à som br a de um a carv al ha ”; E LAP / M 6 : “era j á de noi t e”; “De m anh ã, aco rdo u com o sol a bat er -l he no ros t o”; E LAP / M 7: “t i nha -se desl o cado à ci dad e de La gos [ …] De re gresso ”; E LAP / M 8: “quando j á an oi t eci a”; E LAP / M 9: “um a t ardi nha (er a j á ao anoi t ecer )” ; LLO 1: “Um a noi t e de sex ta -fei r a”; LM O 3: “C e rt o di a , por vol t a do m ei o -di a”; “– Daqui a um m ês, t enho um encont ro m arcado cont i go, a est a hora ”; “no di a m arcado ” . 1.4.4. O TEMPO PSICOLÓGICO O m odo com o o p a ssar do t em po é se nt i do e vi vi do por cada pers on a gem em di f erent es si t ua ções é , sem dúvi da, dos aspect os m ai s verosí m ei s dest as hi s t óri as popul ares. O processo do mi nut o que parece um sécul o e do sécul o que pas s a num mi nut o , c om um núm ero i nfi n i t o de vari ant es pos sí vei s, é um dos que m ai s cont ri buem pa r a a cara ct eri z aç ão dos est ados em oci onai s das p ers onagens e, consequ ent em ent e, p ara au m ent ar ou 199 at enuar um a cert a densi dade d ram át i c a. É, por e st e m ot i vo, m ai s frequent e nas l endas de mouras encant a das . LM 33 : “ Di ogo susp i rava. And ava de u m l ado para o o ut ro . Espi ava o m ovi m ent o apare nt e do S ol no hori z ont e, i ndi cando a c am i nhada do di a. N ão fal ava. Não com i a. P a reci a doent e. P or fi m , à t a rd e des s a sex t a -fei r a, o cansaço p ar eceu do m i ná -l o.” – Não há aqui um a refe rênci a di re ct a a quant o t empo l he pa receu d urar esse di a , m as a enum era ção d as fo rm as verb ai s no pr et éri t o i m perf ei t o do m odo i ndi cat i vo, as sensações vi suai s e de m ovi m ent o e a l ocução adverbi al “po r fi m ” t ransm i t em a an gúst i a vi vi da pel a pe rsonagem e a form a com o o t em po cust ou a passar ; “ S ó d or m i um bocadi nho...” / “M as o cert o é que n esse bocadi nho a co nt ecer am m ui t as coi sas.” Esse “boc adi nho” foi desde que Di o go ad orm eceu, “à t arde ”, at é à “ pri m ei ra badal ada da m ei a -noi t e” ! O própri o narrado r di z que a m ul her de Di ogo “o rou por l argo t em po ”, “t ant o quant o Di ogo est eve dorm i ndo”; LM 37 : “Qu em t ent a escut ar o si l ên ci o, conse gue ouvi r m i l ruí dos es t ranhos. Assi m ac ont ece a J ul i ão. Ouve cam pai nh as ao l on ge. Um a es péci e de z um bi do acer ca -se del e, de v ez em quando. Mas nada l he parec e a m our a do m oi nho! [ ...] J á ti nham soado as doz e badal adas havi a m ei a hora. ” – A enum er aç ão de sensa ções audi t i vas e a l ocução adv erbi al “de vez em qu ando” su ger em uma esper a dem orada, m as J ul i ão só esperou m e i a hora, poi s “m et era p o r atalhos para chegar a horas ao síti o do Moinho do Sobrado”, à meia-noite; LM 38 : “Houve u m si l ênci o. S i l êncio pesado, enerv ant e, cruel . S i l ênci o de ex pect at i va e de an gúst i a.” – C om o no pri m ei ro ex em pl o, a vi vênc i a t em poral n ão é re feri d a di re ct a m ent e, é s uge ri da, nest e c aso , pel a repet i ç ã o e pe l a adj ect i vaç ão (enu m eraç ão de adj ect i vos e d e s ubst ant i vos com função adj e ct i val ); LM 40 : “Mant ém -s e al i durant e ce rt o t em po, t ent ando rom per a 200 es curi dão com a i n si st ênci a do seu ol har. Todos os seus sent i dos es t ão em guard a, re gi st ando qual que r p or m enor, por i nsi gn i fi cant e que pareç a. P or fi m , ao cabo de l onga e árdua ex pect at i va [ ...] ” – Não sab em os quan t o t em po é o “ce r t o t em po”, m as as form as verbai s no gerúndi o e as l ocuçõ es adv e rbi ai s “por fi m ” e “ ao cabo de”, associ ad as à dupl a adj ect i vaç ão de “ex pect at i va”, são revel ado ras da di fe rença ent re o t em po fí si co e o psi cológi co; “ O choque é brut al . A l ut a, san gr ent a. D ura hor as? Dura di as? Dura s em anas? ...” – E st as i nt erro ga ções ret óri c as (cuj a respost a, i m pl í ci t a, só poderá ser N em el es sabe m! ) t ent am dar -nos cont a d e com o as pe rsona ge ns envol vi das no c om bat e perd eram a noção d a pas s a gem do t em po e c ri am um a i nt e mporal i dade que r e sul t a no conheci m ent o da s ua vi vênci a i nt eri o r; “Há um a p ausa. O vel ho gove rnador pro cura ndo ac al m ar as bat i das do cora ç ão ex ci t ado. O hom em de Loul é a pergunt ar a si própri o qual será o fi m de t ão es t ranha conv ersa... ” – Não sabem os qual a duração d a “pau sa”, m as em bora se di ga, em segui da, que “ a sua curi osi dade não t ard a em ser s at i s fei t a”, est a t en t at i va de i socroni a, d ebruç ando -se sobre c ada um a das p ersona ge ns, aum ent a a d ensi dade dr am át i ca da si t uação, faz endo supor que, i nt eri orm ent e, cada um a del as a vi veu i nt ensam ent e, e cri a ndo no própri o l ei t or a ex pect at i va do m om ent o s egui nt e; “Esper a c om i m paci ênci a a m ei a -noi t e.” – O us o de duas pal avras, a pr eposi ç ão e o subst ant i vo, que cara ct eri z am a “esper a”, t orna-se m ai s ex pre ssi vo do que o de um a só, fosse o ad vérbi o de m odo ou o adj ect i vo correspond ent es ; “Fez -se si l ênci o. S i l ênci o pes ado, an gust i oso. ” – Tal com o em L6 , s ão a repet i ção e a adj ect i vaç ão que confe rem dr a m at i ci dade ao m om ent o, des conhec endo -s e a sua duraç ão f í si ca ; LM 41 : “As h oras p areci a m -l h e d i as .” – A pal avra “hor as” , por ser a uni dade de t em po m ai s l onga dent ro de “um di a”, su ger e sem pre gr ande quant i dad e d e t em po (desde que i nferi or ao di a ou à noi t e); nes t e ex em pl o, a co m paraç ão é evi d ent e ; LM 43 : “Dur ant e l a rgos mes es sobrevi veu a pobr e à cust a de cal dos 201 e l ei t e, num sofri m ent o at roz .” – É o adj e ct i vo “l a r gos” que, cara ct eri z ando o t e m po fí si co, no s dá a di m ensão, i ndefi ni da, do t em po psi col ógi co; est a ex pressão “l a r gos m eses” opõe -s e a out r a, “al gu m te mp o ”, du rant e o qu al “m ari do e fi l hos chor ar a m a sua m ort e”, cri ando -se um cont rast e ent re a vi vênci a do pri m ei ro perí odo e a do s e gu ndo, “t ant o m ai s que est avam ri cos e f e l i z es”; LM 46 : “Tr abal hou naquel a fai na d i a e n oi te , h oras i n f i nd as , sem p arar.” – O es forço da pe rsona gem e a consequent e di fi cul dade em pas s ar o t em po r esu l t am , nest a f rase, d e um a com bi nação de vári os processos: “di a e n oi t e” si gn i fi c a j á, corrent em ent e, “s e m parar”, pel o que o uso des t a úl t i m a ex pressão no fi nal da fr ase se t orna redundant e; o subst ant i vo “horas”, ut i l i z ado com a m esm a i nt enção (t am bém co rrent e ) d e L9, associ ado ao adj ect i vo “i nfi nd as” que, só por si , bast ava para dar a di m ensão (ou a fal t a de di m ensão) das horas, resul t a num paradox o que pret e nde cri ar um a am bi gui dad e: por um l ado, eram horas sem f i m , porque cust av am a pa ssar; por out ro, f oram horas sem f i m, porque, som adas, perfi z era m vári os di as ; LM 49 : “À hora m a rcada, o c aval ei ro p enet rou no cast el o, onde se ent ret eve por l a r go s m i nut os conversa ndo com a su a am ada.” – Aqui , é o pa radox o “l ar gos m i nut os” que, associ ado às form as verbai s “ent r et eve ” , no pret éri t o per fei t o, e “conve rsa ndo”, no ge rúndi o, m ost ra co m o o caval ei ro se esqueceu do t empo , dem orando -s e m ai s do que o previ st o e do que el e própri o pensava (uns “m i nut os”); os seus am i gos, por o ut ro l ado ( cont rari a m ent e à s ua descont rac ção e espe rando ans i osament e por el e ), “num a gri t a ri a de est ont ear cham ava m p el o gue rrei ro qu e j á não es peravam vol t ar a ver ” – “vi st o a dem ora d el e t er si do m ui t o grande ”; LM 50 : “sent ou -se encost ado ao m uro, esperando a m e i a -noi t e, s i l enci oso e sol i t ári o. [ ...] o vel ho m ouro, a essa hor a t ã o ansi oso com o el e, c ert am ent e.” – S ó i ndi rect am ent e há ref erên ci a a o t em po ps i col ógi co, at rav é s da ansi edad e qu e, c ara ct eri z ando “o vel ho m ouro”, t am bém i ndi rect am ent e car act e r i z a o carpi nt ei ro; 202 LM 14 : “ e eu fi quei sóz i nha, esper ando a cad a m om ent o a vi nda de m eu pai para m e l evar consi go. ” – A form a verbal no ge r úndi o e a l ocução adve rbi al “a cada m om ent o” , no cont ex t o si t uaci onal , denot am a ansi eda de da p ersona gem e, por conse gui n t e, uma dur ação psi col ógi ca da esper a; LM 26 : “Não se sa be o t em po que o t rabal hador l evou ent ret i do na ri quez a dos baús, n em el e m esm o t al ve z o soubesse di z er, o que é cert o e const a d a t r adi ção é qu e, qu and o el e qui s a gr ade cer à j ovem t ão val i osa oferend a, t i nha el a desapa reci do.” – Mai s um a vez , a f al t a de noção do tem po fí si co, por pa rt e da person a gem , a rem e t e r para um t em po psi col ógi co que, nest a l enda, é am bí guo, po dendo ser s uge ri das, na duraç ão do perí odo de t em po que o t rabal hador ol hou para os baús, t ant o a rapi dez com que a m oura desap are ceu, com o a l ent i dão com que el e vol t ou a ol har pa r a el a; LM 27 : “S ofreu a i nfel i z por l argos m eses, sem anas e di as [...] ” – À s em el hança de L11 , é o adj ect i vo “l a rgos ” que, ca ract er i z ando o t em po fí si co, i nt en si fi cado, aqui , p el a enum er ação, t ent a confe ri r um a di m ensão ao t e m po psi col ógi co; E LAP / M 8 : “C ert a vez , ent ret i do, dei x ou -se por l á est ar a t é m ui t o t arde, t al v ez por a pesca l he est ar a ser bast ant e f avorá vel .” – o part i cí pi o passado “ent ret i do”, com fu nção adj e ct i val , re m et e par a um a act i vi dade a gr adável , que f az o suj ei t o perder a n oção do t em po, o que é confi rm ado em se gui da. 1.4.5. TEMPO DA HISTÓRIA / TEMPO DO DISCURSO A duraç ão do dese nrol ar das l end as de mouras encant ad as é s em pre, pel o m enos, de al gum as horas ( a úni ca ex cepç ão é L31 , qu e s erá ex pl i cada se gui dam ent e ). Ex i st em , cont udo, anal epses que rem ont am a “q u ase oi t o sécul os” ( L46). A sua i ncl usão nos di ál ogos ent re as pe rsona gen s t em um a i nt enç ão dupl a: rel at a r epi só di os que 203 ocorre ram durant e esse perí odo de t em po ou, si m pl esm ent e, l ocal i z á -l os, e, nat u ral m ent e, da r um a i dei a da du raç ão do cat i vei ro, es t abel ec endo, assi m , um a r el aç ão ent r e o t em po e o sof ri m ent o da pers ona gem . Tem os, ent ão, nest e corpus , quat ro grup os de l endas, de aco rdo com a dura ção da su a hi st óri a: 1) as que se ocupam dos encontros entre encantados e eventuais desencantadores e das decorrentes tentativas de desencantamento (LM 33, LM 34, LM 36, LM 38, LM 42, LM 43, LM 44, LM 48, LM 52, LM 59, LM 60, LM 61, LM 58, LM 7, LM 8, LM 13, LM 24, LM 25, LM 27 e LM 32); 2) os relatos cuja acção tem início aquando desse encontro, mas em cujos diálogos há recuos a um tempo mais ou menos distante (LM 35, LM 37, LM 14 e LM 21); 3) as narrativas que englobam o momento do encantamento e o do eventual desencantamento, assim como o que decorre entre os dois (LM 40, LM 45, LM 46, LM 47, LM 50, LM 3, LM 11, LM 12, LM 26, LM 28 e LM 31); 4) finalmente, as que se resumem aos encantamentos e às circunstâncias em que ocorreram (LM 39, LM 41, LM 49, LM 51, LM 53, LM 54, LM 6, LM 10, LM 16 e LM 17). Em t odas est as l en das, t ant o no r econ t o oral com o na ed i ção es cri t a é óbv i a a di feren ça ent r e a duração d a hi st óri a e a do di s curso, porque m e sm o as m ai s curt as, com o j á foi re feri d o, duram al gum as ho ras ( ex cept o L M 60 ). A hi st óri a da l enda “O P ego da C arri ç a” ( L M 60 ), t al vez nem um a hora t enha du r ado (pr edom i nam os di ál ogos n a n arr aç ão, com o é c ara ct erí st i co d a t radi ção or al , e os poucos acont eci m ent os des enrol am -s e l i nea rm ent e), m as há um m om ent o, cuj a du r ação não é revel ad a com preci são, em que o rapaz t oca gui t ar ra e os encant ados danç am , que não t em equi val ent e no t em po d o t ex t o, 204 pel o que a sua r epr odução (o ral ou esc ri t a) se rá s em pre de duraç ão i nferi or à d a hi st óri a. E são as el i pses e, por v ez es, os s um ári os (que não são reproduz i dos na í nt egr a, dad a a su a ex t ensão, apresen t ando -se apenas al guns ex em pl os si gni fi cat i vos), que des em penham um papel fundam ent al , cont ri bui ndo para encu rt a r sécul os, m eses ou “apen as ” noi t es i nt ei ras: LM 33 : “O rou po r l ar go t em po. T ant o quant o Di ogo est eve dorm i ndo.” (sum ári o); LM 34: “ And ar am a ssi m durant e t al vez hora e m ei a. ” (sum á ri o); LM 35 : “S ubi a t o das as t ardes, com o S ol a pi no, a serra d e M onchi que e só vol t ava à noi t e p ara cas a.” (el i pse ); LM 36 : “E J oana r es ol veu -se. C ont ou t udo quant o sabi a.” (s um ári o); LM 37 : “[ ...] Fl ori pes cor reu p ara o m oi nho, não t ornan do m ai s a apare ce r naquel a no i t e.” (sum ári o); “J á m anhã al t a, J ul i ão che ga a cas a.” (el i pse); LM 40 : “Dur ant e ho ras el e fi c a soz i nho, at é que o t em po at ravessa a front ei ra d a noi t e e ent ra nos m i st éri os do di a...” (sum ári o); LM 42 : “T rês m eses cont ados, m ost rou” (el i pse); LM 43 : “Ao fi m d e al gum t em po de duros sacri fí ci os d e t oda a fam í l i a” (sum ári o); LM 44 : “P assados t e m pos vol t ou a sonhar” (el i pse ); LM 45 : “ Tem pos de poi s casou com a ra pari ga e for am vi ve ndo a sua vi da sem probl em as de m ai or.” ( el i pse s egui d a de r esum o); LM 48 : “P assar am anos e J osé C oi m bra com eçou a r es sent i r -se” (el i pse); LM 50 – “P ass aram - se m ui t as sem anas, poi s que o t em po de S . J oão ai nda est av a l on ge. ” (el i pse ); “P assad os al guns m eses, e st ava j á es queci do do assunt o” (el i pse ); “E dura nt e m ui t as sem an as m ant ev e205 s e s osse gado, esper ando cont udo a pro m et i da pa ga pel o se rvi ço qu e pres t ara ao vel ho m ouro” (sum ári o ); LM 58 : “T em pos depoi s pari u os doi s bez erri nhos”; (el i p se); “Um ano depoi s o l avrad or j ungi u os bez er ri nhos ao arado ” ( el i pse); LM 3 : “Enqu ant o, poi s, o govern ador não conse gui a os esforços des ej ados, passe ava , t ri st e e pensat i vo, pel as prai as de Tânger. ” (s um ári o); “C he gou afi nal a vésp era d a noi t e de S . J oão” (el i pse); LM 10 : “C ai u no chão sem sent i dos. P assadas horas t orn ou a si o ofi ci al ” ( el i pse); LM 21: “D ei t aram -se [ ...] e... adorm ece ram . Quando um do s rapaz es acordou vi u o seu com panhei ro ex t rem am ent e pál i do e ass ust ado.” (el i pse); LM 28 : “Em pou co t em po com e çar am a apare ce r os pri m ei r os bot ões da s al sa e a m ani fes t ar -se a sua fl ores cê nci a. Dess e t em po e m di ant e o hom em nunca mai s desam parou a font e.” (el i pse se gui da de res um o); LM 31 : “P assado t em po foi à Moi r am a ver a f am í l i a da m ul her.” (el i pse); “Todos o t rat ar am m ui t o bem , e à ret i rad a der am -l he um a broa” (sum á ri o se gu i do de el i pse). Nas out ra s l end as e epi sódi os l endári o s t am bém se encont ram el i ps es e su m ári os, que t am bém cont ri buem para en cur t ar não s écul os, m as m ese s, sem anas, di as o u t am bém “ apen as ” noi t es i nt ei ras: E LAP / M 6: “ado rm e ceu rapi d am ent e. D e m anhã, aco rdou” ( e l i pse); E LAP / M 7 : “com eç a a rez ar os t rês c re dos em cru z . [ …] ao t ercei r o credo em cruz [ …] ” (el i pse); E LAP / M 8 : “C ert a vez , ent ret i do, dei x ou -se por l á est ar a t é m ui t o t arde, t al vez por a pesca l he est ar a ser bast ant e favorável . ” 206 (s um ári o); E LLO 1: “Depoi s d e t ent ar em em v ão m ont ar o ani m al , a cabar am por desi st i r” (sum á ri o); “J á t i nham passado um sí t i o c onheci do com o a C ova da A re i a [ …9, quando ouvem z urrar.” (el i pse); LM O 1: “A v erdad e é que, 15 di as depo i s, foi -se o m i údo e, 15 di as depoi s, l á se foi a pobre da m ãe.” (d ua s el i pses sucessi vas); “ O hom em , em desespe ro, prepa rou -se p ar a a i dei a d e m orre r t am bém . P as s ados 15 di as [ …] ” (sum ári o); LM O 2 : “E assi m cont i nuaram , am bos i nvent ando descul pa s que os i m pedi ssem de se de sl ocarem à po rt a.” ( sum ári o); LM O 3 : “Enquant o o t em po passava e o hom em m at ut ava em com o s e havi a d e l i vra r daquel a si t uaç ão, t e ve um a i dei a e, j ul gando -se m ui t o espert al hão, um a sem ana ant es f oi passear pa ra bem l onge d a t erra em que se enc ont rara com D. Mort e.” (sum ári o); “Qu al não foi , porém , o seu es p ant o, quando, no di a m arcado ” ( el i pse). Há, t odavi a, m om e nt os de t ent at i vas de i socroni a, com o os di ál ogos, os monól ogos i nt eri ores e al gum as descri çõ es (se, oral m ent e, o cont a dor pode i m i t ar um si l ênci o, por ex empl o, por es cri t o o edi t or pod e ocupar – e ocup a, ge ral m ent e – esse m om ent o com a sua descri ç ão, ou m el hor, a do efei t o desse si l ênci o nas pers ona gens ). Os se gui nt es ex em pl os de pausa nar rat i va são t am bém os m ai s repres ent at i vos: LM 35 : De “A t arde com eç ar a a cai r” at é “S onhav a coi sas fant ást i cas e di fus a s.” (des cri ç ão e ex pl i cação que, ret ar dando o encont ro com a m ou ra, t ent am t r aduz i r o “va ga r am ol e ci do” com que Ant óni o subi a a serr a); LM 36 : D e “C o rri a J oana da sua ca si nha” at é “ch e gou ao ri o.” (des cri ç ão e ex pl i ca ção, ocupando o t e m po l evado p or J oana na sua corri da, p ara s al i ent ar a r api dez com qu e che gou ao seu dest i no); 207 LM 37 : De “J ul i ão cam i nha n ão m ui t o afoi t o.” at é “O rapa z afroux a o passo.” (paus a di gr essi va que t em co m o i nt enção est abel ecer u m par al el o ent re o t em po do di scurso e o da c am i nhada da pers ona gem ); d e “ O l uar bat e n as pa redes” at é “ Ol ha o m oi nho, num a espéci e d e d espedi da.” (pausa descri t i va que t ent a dar a di m ensão do t em po de esper a); LM 38 : “Houve u m si l ênci o. S i l êncio pesado, enerv ant e, cruel . S i l ênci o de ex pect at i va e d e an gúst i a. O al m ocrev e ol hou a m edo para o l eão e pa ra a serpent e. No seu í nt i m o, qui s rez ar, m as não se l em brou das o raç õ es. Todo el e t r em i a, por dent ro e p or for a.” (des cri ç ão do ef e i t o causado p el o si l ênci o na per sonagem , aum ent ando a dra m at i ci dade do m om ent o, ao m esm o t em po que ret ard a, t am bém na escri t a, a ac ção); LM 40 : De “ Lo go saem os m ouros” at é “a úni ca que pode deci di r a vi t óri a.” (descri çã o est át i ca segui d a de descri ç ão di nâm i ca, aum ent ando a ex pec t at i va do resul t ado do com bat e); “Há u m a pausa. O vel ho govern ado r procur ando a cal m ar as bat i das do cora ção ex ci t ado. O hom em de Loul é a pe r gunt a r a si própri o qual s erá o fi m de t ão est ranha co nversa...” (si t uação sem el hant e à veri f i cada em LM 38 , aum ent ando t am bém a ex pect at i va); LM 50 : “R om peu ent ão o sol , m aravi lhoso gl obo de fogo e rosa l um i noso sai ndo da t er ra s em ruí do, sem an gúst i a. ” (paus a des cri t i va que suge re que a pe rsona ge m se dem orou a ol h ar pa ra o nas cer do sol enqua nt o esperav a que ab ri ssem as port as da vi l a); LM 54 : Do i ní ci o at é “per gu nt ou c ant an do com o a poderi a al e gra r.” (des cri ç ão do pal á ci o cont rast ando c om o est ado em oci onal da pers ona gem , qu e se al onga re al çando a “ m el ancol i a” de Di no rah); LM 3: De “[ ...] não sei se che gou a peni t enci ar -s e” at é “das al gem as do cat i vei ro!...” (di gr essão que, t al co m o em L18, t ent a t raduz i r o ri t m o do nascer do s ol , at é “que foss em abert as as port as” ); LM 6 : De “Er a a form osa m oura” at é “a sua vi rt uosa fi l ha.” (des cri ç ão que su ge re a dem ora h a bi t ual da j ovem sobre 208 as m ural has); LM 26 : De “Ent ão o t r abal hador, i m port ando -se nada ” at é “t i nha el a des apar eci do.” (des cri ção se gui da d e d i gress ão, t ent ando a prox i m ar o t em po do di scu rso do que o t r abal had or l evou a ol ha r pa r a os b aús e, s i m ul t â nea e supost am ent e, do que a m oura l evou a desaparec er); de “Não di z a l e nda” at é “out ras pai x ões si m il ares.” (pausa di gressi v a cuj a i nt enção é, cl ar am ent e, ap rox i m ar o t e m po do di s curso do do t rans port e das ri quez as); LM 27 : De “A i nfel i z s ent i u l ogo” at é “dedi caç ão pel o s seus.” (des cri ç ão dos si nt om as e da evol uçã o do est ado d a per sonagem , ret ard ando a sua m ort e, dando, assi m , cont a da dura ç ão do seu s ofri m ent o); E LAP / M 6 : “Er a j á noi t e e, dei t ado, ol hava o c éu obser vando as es t rel as m ui t o vi vas, com o cost um am ser no céu al ga rvi o,” (des cri ç ão que asse nt ua o cont rast e e n t re a c al m a que rei nava no al m anx ar e o deseq ui l í bri o provocado pel o apar eci m ent o s úbi t o do gat o e do seu com p ort am ent o); E LAP / M 7 : “Mi nha avó desceu da burri nha, pux ou -l he pel a réd ea, m as, qu a l quê? Nem se m ex ia!... M i nha avó ent ão t e m um a i dei a: deu m e i a vol t a e pux ou pel o rabo da burra, m as a m agana cont i nuou i m óvel . P ara grande s m al es, gr andes r em édi os. Mi nha avó m ont a na burra e com eç a a rez ar os t rês cr edos em cruz .” (des cri ç ão di nâm i ca, m as po rm enori z ada dos ges t os da av ó, pret e ndendo m ost rar e ocu par t odo o t em po que l evou a t ent ar que a bur ri nha andasse; a a náfora “Mi nh a avó ” t am bém cont ri bui para a i dei a da i nsi st ênci a e, consequ ent em e nt e, da dem ora); E LAP / M 8 : “- Qu e sort e! – pensou. Ia pescar, cert am ent e, o m ai or pei x e da sua vi da!” (m onól ogo i nt e ri or que nos pr epa ra p ar a o fact o de o hom em t er d eci di do fi c ar ai nda m ai s um bocado ); de “ A verdade, ve rdadi nh a” at é “ a t al sono ra ga r gal had a.” (fo cal i z ação i nt erna da person a gem com des cri ção d i nâm i ca do que se est ava a pas s ar, que p ret end e i gual a r, e m t em po, a real i dad e) ; E LAP / M 9 : “C am i nhavam l ado a l ado, m ui t o l ent am ent e e t ão 209 l evem ent e que m al pareci a pi sa rem os pés na arei a h úm i da.” (des cri ç ão em que os advérbi os d e m o do t ent am su geri r a l ent i dão com que as pe rsona gens cam i nhavam ). 1.4.6. SUPERVIVÊNCIAS OU “ECOS” NA ÉPOCA DA RECOLHA “Tradi ç ão” é, por defi ni ção, o que passa “de ger ação em ge raç ão”. A r ecol ha dest as l endas foi um a t ent at i va conse gui da de pres erv á -l as, num a época em que a t ran sm i ssão oral , segun do At aí de Ol i vei ra, com e çava a perd er t er reno, e m favor dos out ros m ei os de com uni caç ão, m odernos, que, gr adual m ent e, “apa gari am ” grand e part e da m em ó ri a, i ndi vi dual e col ect i va (ou porque, co m o di z o m es m o aut or, “hoj e at ravessam os um a é poca m ai s posi t i va” 279). Mas as di fi cul dad es encont rad as, pa ra al ém das que são com uns a qual quer t i po de recol ha, pre ndi am -se, j á na épo ca dest e aut or, com doi s fact ores rel a ci onados com o caráct er e specí fi co des t as l endas: se al gum as pessoas não se i m port am de dar o seu t es t em unho dest as e dout ras apari ções, “c ont ra t udo e cont r a t odos”, out ras são m ai s r el ut ant es em faz ê -l o, t em endo s er conot adas com crendi c es e supe rst i ções que, h abi t ual m ent e, deni grem um pouco a s ua i m agem num a s oci edade qu e pr eci s a de “v er p ara cre r” ; out ras, ai nda, por resp ei t o e/ ou m edo, p refe rem ocul t ar as suas ex peri ênci as, ou m esm o as al hei as, re ceando que a sua r evel aç ão pos s a t raz er quai sq uer consequ ênci as m enos agrad ávei s, para el as ou para as ent i dades envol vi das, j á qu e ex i st e a convi cç ão “ de que a s ua narr ação a pesso as curi osas r e dobra os encant am ent os ” 280 . Tal vez est e t r abal h o não est i vess e co m pl et o sem o r e gi st o 279 Ataíde Oliveira, ob. cit., p. 155. Ataíde Oliveira, ob. cit., pág. 133 – nesta página, o autor conta um episódio, aquando da sua recolha, em que uma “velhinha” se recusa a dar-lhe informações, quase o insultando, que ilustra bem esta dificuldade. 280 210 des t es t est em unhos orai s e, m ui t as v ez es convi ct am ent e , vi suai s, del i ci adam ent e anot ados pel os aut ores dest as edi ções, a p ar de t ão fant ást i cas hi st óri a s. É, poi s, com o m esm o praz er, que aqui apont am os os m ai s evi dent es : 1 )C r enças col ect i va s : “E ai nd a h oje se d i z que j unt o do cast el o e no cam i nho do ri o da vel ha C hel b – hoj e ci dade de S i l ves – cont i nua ent err ado o t esouro da bel a pri nc esa m oura.” ( L M 33 ); “Ni ngu ém m ai s o vi u. Ni nguém m ai s ouvi u fal ar del e. Mas t odos os m eses, nes s e di a e a essa m esm a hora – d i z a cren ça p op u l ar – quem es t i ver j unt o ao R i o S eco pod e ai nda ouvi r um caval o correndo des ordenad am ent e a o l ongo d a m ar gem ...” ( L M 36 ); “Ai n d a h oje se d i z al i , em S ão Br á s de Al port el , em pl eno cor aç ão do Al garve, qu e t udo i st o acont eceu de verdad e....” ( L M 38 ); . E ai n d a h oje h á q u em af i rme te r vi sto , à m ei a -noi t e, um be l o par d e j ovens p asseando abraç ados pel a qui n t a do Mari m .” ( L M 41 ); “Mui t o próx i mo de Faro ex i s t e o l ei t o de um ri o, o ri o S e co, com o l he ch am am as ge nt es, que é ti d o e h avi d o como a p ri n ci p al sed e d e mou ros e mou ra s en can tad as nos arredores daqu el a ci da de. [ ...] Daí em di ant e, até h oje, f al a -s e do apareci m ent o de um a m oura encant ad a naquel e l ugar do ri o S eco.” ( LM 46 ); “Di z a lenda que esta mou ra ai n d a h oje p en a, en can tad a , nos rest os do m uro do vel ho al cáce r e gua rdada po r um en orm e l eão. E nas no i t es de t em po agres t e ou ve s e mu r mu ra r por ent re as árvor es o som t ri st í ssi m o do l am ent o i nfi ndável da fi l ha do úl t i m o al cai de m ouro de S al i r.” ( L M 51 ); “um s í t i o ent re La gos e a P rai a da Luz , con heci do por Quat ro Est radas, devi do a haver n el e u m cru za men to, n or mal men te l o cal i n d i cad o p ara b ru xed os ” (ELAP / M 7 ); “com eç a a rez ar os t rês credos em cruz .” ( E LAP / M 7); “havi a um hom em [ …] que possuí a sete fi l hos t odos varões e, não segui ndo a t radi çã o de pôr o nom e de Adão ao s eu sét i m o fi l ho, est e con stava q u e vi era a torn ar -se l ob i some m . C ham ava -se Be rnar di no, o rapaz , e as p essoas ol h avam p ara el e ch ei as d e n atu r al cu ri osi d ad e . S eri a verdade o q u e se d i zi a ? E o q u e se d i zi a era [ .. . ] ” ( LLO 1); “ Con t ava -s e que, um di a, [ …] ali 211 p ara os l ad os d e Bar ão de S . J oão” ( LM O 1 ); “Con ta -s e que um cas al de i dosos, m ui t o am orosos, al i em Val e de Boi ” ( LM O 2); “É por i sso que d i ze m que não val e a pen a fugi r d a m ort e.” ( LM O 3); 2) s ent i ment os col ect i vos : “Ai n d a n ão h á 10 an os q u e p or al i n i n gu ém p assava , porque à hor a f at a l , à m ei a -noi t e, ap areci a a m oura vest i da de branco com os seus cabel os de ouro sol t os aos vent os. [ ...] E t odavi a o m eni no e a m oura ap are cem m ui t as vez es, e tod a a vi l a se sen te est re mec er , quando t em not í ci a de t al apare ci m ent o.” ( L M 14 ); “ E o p ovo con ti n u a a amar os d oi s n amorad os, od i an do d e mort e o te meroso vel h o .” ( LM 16 ); “ A gen te d o p ovo , sem pre que se vê forç ad a a passar próx i m o do forno, d es cob re -s e r esp ei t osamen te e mu r mu ra u ma p re ce , que m al se l he esc apa d os l ábi o s.” ( L M 26 ); “ Nu n ca mai s se atr evera m a anda r por l á depoi s do ent ardec er ” ( E LAP / M 9 ); 3) f act os conheci do s : “A l enda não di z se che gou o u não a casar e a t er fi l hos, o que não dei x a de ser um pouco est ranho [ ...] Mas, e i sto é f acto i n con testável , a fam a da sua ri quez a est endeu -se p or t odo o rei no de P ort u gal , t endo a cont eci do ch egar à M ex i l hoei ra gent e de povoações l on gí nqu as par a pedi r e m pr ést i m os à ri ca z ar o l ha, que, em boa verdade, nu nca os negava.” ( L M 44 ); “S eus fi l hos, educados na capi t al , foram t a m bém gr andes s enh ores, poi s que a ri q uez a era t ant a que o seu desbarat o se t ornou i mpossí vel , e ai nd a hoje ch ega até n ós a f ama d e gen te t ão ri ca .” ( L M 24 ); “C asou em segui da e teve mu i tos f i l h os q u e se torn ara m c on h eci d os n a p rovín ci a d o Al garve e at é n a c orte ond e casa ram com dam as do P aço , que l he s deram um a descen dênci a num erosa. ” ( L M 28 ); “cont a , e f i ca man i f esta men t e za n gad o qu and o p om os em d ú vi d a aqui lo que di z que vi u b em vi sto com os ol h os q u e a terra h á -de co mer ” (E LAP / M 9 ); “Não se sabe se a m ãe s e gui u a t radi ç ão secu l ar de l he quei m ar a roupa du rant e um a dessas s aí das par a el e dei x ar de ser l obi som em , mas o certo é q u e o con h eço casado e com fi l hos, l evando um a vi da e m t udo norm al .” ( LLO 1 ); 212 1.5. O ESPAÇO Assum i ndo vári as vert ent es e est a bel ecendo um a re l ação pri vi l egi ad a, de co m pl em ent ari dade, c om a car act e ri z ação de t odos os a gent es n arr at i vos, o espaço é, i n quest i onavel m ent e, um do s i nf ormant es m ai s di versi fi cados e com p l ex os. Historias de la tradición que son, en suma, y en expressión de A. M. MAT UT E, “volanderas”, y cuyo s únicas se ñas de identidad son la for ma que adoptan en un deter minado mo me nto y la comunidad que las recibe, como imá gene s que se “posa n” o contextualizan en un mo mento/lugar y por unas causas determinadas. De e ste modo, reconstr uir el imaginario popular y relacionarlo com la evolución histórica de esa comunidad y com su paisaje, es recomponer el mosaico de lo que Leite de VASCONCELLOS llamaba “vida psíquica” del pueblo. Así pues, rescatar la leye nda de este limbo de determinación es una tarea saludable para percibir de forma má s nítida el perfil de los cuentos con los que se relaciona, como si fueran carriles paralelos de una misma auto vía, co m cruces y desviacio nes ocasionales. El problema para estudiar las Narraciones Tradicionales y sistematizar sus Fuentes en España y Portugal es el carácter liminar evanescente que tienen los cuentos, anécdotas, en el conjunto de la tradición oral. le ye ndas o 281 281 P. L. Lorenzo Cadarso y E. Martos Núñez, “La Leyendística en España y en Portugal”, in La Casa Encantada–estudios sobre cuentos, mitos e leyendas de España y Portugal–Seminario Interuniversitario de Estudios sobre la tradición , coords. Eloy Martos Núñez (UEX) e Víctor M. de Sousa Trindade (U. ÉVORA), Serie Estudios Portugueses, Nº 3, Mérida, Editora Regional de Extremadura, 1997, pág. 16: “Histórias da tradição que são, em suma, e na expressão de A. M. MATUTE, “volantes”, e cujos úni cos indícios de identidade são a forma que adoptam num determinado momento e a comunidade que as recebe como imagens que “pousam” ou se contextualizam num momento/lugar e por umas causas determinadas. Deste modo, reconstruir o imaginário popular e relacioná-lo com a evolução histórica dessa comunidade e com a sua paisagem, é recompor o mosaico daquilo a que Leite de VASCONCELLOS chamava “vida psíquica” do povo. Assim pois, resgatar a lenda deste limbo de determinação é uma tarefa saudável para perceber de forma mais nítida o perfil dos contos com que se relaciona, como se fossem carris paralelos de uma mesma via, com cruzamentos e 213 1.5.1. A LOCALIZAÇÃO ESPACIAL No que di z respei t o às l endas de mouras encant adas , t em os em pri m ei ro l u gar um m acroespaço qu e é o Al ga rve, “l ar ” dos m ouros e cri s t ãos i nt erveni en t es nest as hi st óri as. O segundo é a Mo i ram a (onde, à ex cep ção de Tân ger, a l o cal i z ação dos mi croes paços é i ndefi ni da). As vi agens ent r e os doi s t êm , como pont o de part i da, o Al ga rve, e as p ers onagens nunc a as em preend em por i ni ci at i va própri a: em L M 45 , o rapaz vai vi si t ar a fam í l i a da esposa , a pedi do des t a ( em L53, não é apont ado o m ot i vo pel o qu al o rapaz v ai “ve r a fam í l i a da m ul her”, m as deduz i m os que se t rat a, pel o m enos , de um a vi s i t a de cort esi a ); em LM 40 , LM 5 0 e LM 3, o c arpi nt ei ro é “cat i vo dos m ouros ”; em L M 50 e L M 3, o m esm o ca r pi nt ei ro é ar r ebat ado por m a gi a, ao sal t ar i nad vert i dam ent e um a val et a; e quando os m ouros part em , l evam “nos seus al for ges a esper ança de t ornarem um di a” ( L M 51 ). C ada um a das l enda s se si t ua num det erm i nado l ocal , sej a um a povoação, sej a um l ugar m ai s o u m enos erm o, no m ei o do cam po. Es t a l ocal i z ação é fei t a com m ai or ou m enor ri gor, cons oant e o edi t or e consoant e, t am bém , os el em ent os que l he foram fo rneci dos pel os di versos narr a dores da t ra di ção. Assi m , s i gni fi cat i vos, agrup ar am -se al guns ex em pl i fi cando -se pro ce ssos ape nas com que as pare ce r am l endas m ai s repres ent at i vas de um a l ocal i z ação porm enori z ada faz endo part e da i nt rodução: 1) si t uação em que, i n cl usi vament e, al gun s deí ct i cos cont ri buem desvios ocasionais. O problema para estudar as Narrativas Tradicionais e sistematizar as suas fontes em Espanha e Portugal é o ca rácter liminar evanecente que têm os contos, lendas ou anedotas, no conjunto da tradição oral. 214 par a uma aproxi m ação do própri o l ei t or : “Foi em S i l ves e h á m ui t os anos, que t udo i st o acont eceu. F oi al i , pert o do cast el o ai nda m aj est oso e sob ranc ei ro, que se der am o s fact os que vam os rel at ar. ” ( LM 33 ); “D e Mex il hoei ra [ Grande] para o sí t i o da Rocha vai um a es t rada de ca rret ei ra e port ant o m ui to l arga. [ ...] C ert a m ul her s onhou que nessa e st rada, no sí t i o do Sumagre , onde a m esm a é m ai s l ar ga, ao pé de um a al far robei r a , ex i st i a um t acho chei o de di nhei ro em ouro [ ...] ” ( L M 5 ); 2) part i ndo do geral para o part i cul ar : “P róx i m o de La gos, no cam i nho para Odi áx ere, h ouve em t em p os um a hort a e dent ro dest a um est ranho prédi o al t o.” ( L M 43 ); “ O poço do Vaz Var el a fi ca à s aí da de Tavi r a, na vel ha est rad a par a Vi l a R eal de S ant o Ant óni o, j unt o à cerc a do an t i go convent o dos f rades do C arm o.” ( L M 53 ); “Um a vez na M ex i l hoei ra G rande, n a est rada d e Bo rba, apar eceu -l h e j unt o dum a al farrob ei ra um a m eni na m u i t o boni t a” ( L M 32 ); 3) evocando at é det al h es do espaço na épo ca dos acont e ci ment os nar r ados : “A l end a que vou cont a r si t ua -se nos a rredo res de Fa ro. [ ...] Todavi a, no sí ti o de Fa rão – c om o era ent ão conh eci da – havi a um a fort al ez a m ou ri sca. A nas cent e er gui a -se um out ei ro, e em bai x o corri a um ri o hoj e cham ado ri o seco, pel a ci rcunst â nci a da m aré j á não pen et ra r nel e, com o ant i ga m ent e. É n as m a r ge ns desse ri o que deco rre a no ss a hi st óri a...” ( L M 36 4); 4 ) em pl eno camp o : “C orrem dent ro dos l i m it es dest a fre guesi a [ Querença] duas ri bei ras que m ai s ad i ant e se unem e f orm am a ri bei ra cham ad a d a T ôr , m ui t o caudal osa. Ai nda m ai s a di ant e a ri bei ra da T ôr perd e o nom e e é deno m i nada a ri bei ra d e Al gi bre , j unt o da qual ch e go u D. P ai o P er es C or rei a [ ...] ” ( L M 7 ); “ Gi ões é s ede de um a fr e gue si a da m esm a denom i nação, si t uada na serra do Al ga rve e p ert enc e nt e ao concel ho de Al cout i m . Ent re os di versos s í t i os dest a fregue si a e os l ugares hi s t óri cos que nel a ex i st em , des t aca -se o ser ro das R el í qui as, a t rês qui l óm et ros da m esm a 215 povoação. N a part e m ai s el evada dest e serro ex i st em ai nda hoj e as rui nas de um c ast el o de m ouros, e po r i sso é cham ado o Serro do C as t el o dos Mouros . P rox i m o das ruinas do cast el o ex i st i u um a pequena ca pel a, i nt i t ul ada a C apel a da Senhora das Rel í quias .” ( LM 2 1); 5 ) numa po voação : “No sécul o p assa do, em f rent e à re si dênci a paroqui al da Mex i l hoei ra Gr ande, no Al ga rve, ex i st i a um barran co por onde t oda a ge nt e t i nha m edo de passar [ ...] vi vi a mesm o em frent e ao r efe ri do barran co um pobr e cabr ei ro [ ...] ” ( L M 42 ); “O act ual po ço qu e ex i st e no sí t i o do Arro i o vei o subst i t ui r u m a ant i ga font e, denom i nada a Font e C obert a . Fi cava a font e j unt o da est rada vel ha que, ant es da cons t rução da que hoj e ex i st e, li gava Faro a Tavi ra.” ( L M 58 ); 6) s i t uação em que se prova a exi st ên ci a do espaço : “No sí t i o do Moi nho do Sobrado , nas prox i m i dades de Ol hão, no m esm o l uga r onde hoj e ex i st e um arm az ém pert enc ent e ao sr. Fonsec a, havi a ant i gam e nt e um a c asa, a cuj a j anel a apare ci a, al t a noi t e, um a form osa m ul her vest i da de branco.” ( LM 14 ); “No sí t i o do Es campadi nho , pro pri edade do s enho r J osé Fl orênci o de S ousa C as t el o Bran co, a uns 1500 m et ros de Odeax ere, à esq uerda d a es t rada nov a, que s egu e dest a povo aç ã o para M ex i l hoei ra Grande, vêem -se as p ared es de um forno de cal , do qual ni nguém s e l em bra de t er si do ut i l i z ado em t em po al gum . ” ( L M 26 ). P odem os, ai nda, ap resent ar um re gi st o dos l ocai s especí f i cos onde se desenrol am os acont eci m ent os i m po rt ant es, os “aspect os da pai s agem ”, de aco rd o com a t eori a d e H enri From a ge: [...] je vais attirer l’attention sur l’aspect géographique de la légende [...] 216 Mon propos est, en effet, de mo ntrer co mme nt le mythe se saisit d’un secteur micro -géographique et en fait un paysage dont la structure se développe jusqu’à nos jours. 282 A si m bol ogi a dos m ot i vos i nseri dos nas se gui nt es “p ai sa gens ” s erá an al i sada pos t eri orm ent e, no po nt o 4. da II I par t e dest a di s s ert ação. Local do Local do Local do L encantamento encontro entre desencantamento (lenda) (quando se encantado e (quando existe a conhece) perto de um castelo 33 34 35 36 37, 14 /junto de um rio ? possibilidade) (quando existe) = = no campo/junto de = uma cova de areia serra (palácio) serra, junto de = uma pedra ? margem do rio perto do mar junto de um (o encantador na moinho Moirama) 38, 48, 13 desencantador ? (perto do mar) no meio do campo = margem de um rio = + palácio subterrâneo castelo 39, 51, 6 (o encantador X (castelo) num monte) 282 Henri Fromage, « Légende et paysage », in La Légende – Anthropologie, Histoire, Littérature, Colloque franco-espagnol, Madrid, Universidad Complutense, 1989, pág. 133: “[...] vou chamar a atenção para o aspecto geográfico da lenda [...] O meu objectivo é, com efeito, mostrar como o mito se apropria de um sector micro -geográfico e faz dele uma paisagem cuja estrutura se desenvolve até aos nossos dias.” 217 Local do L encantamento (lenda) (quando se conhece) 40,50,3 fonte Local do Local do encontro entre desencantamento encantado e desencantador (quando existe a (quando existe) possibilidade) = = X X (perto do castelo) abismo (nascente) 41, 15 (o encantador numa casa apalaçada) 42, 24 43, 27 ? = + barranco ? junto de uma palácio subterrâneo = nora estrada entre dois valados 44, 25 ? junto de uma árvore = no meio do campo 45, 31 na terra na terra X 46, 11 perto de um rio, junto de uma X = nora 47, 12 junto de um rio X 49, 10 52, 8 = castelo ? X X em casa furna (no campo) (no campo) 218 Local do L encantamento (lenda) (quando se Local do Local do d e s e ncantamento encontro entre ( q u a ndo existe a encantado e p o s sibilidade) desencantador (quando existe) conhece) X = X X pego? pego = 60 ? junto de um pego = 7 fonte? junto da fonte = cisterna do junto de um = castelo num pego, serro num serro 53, 17 poço 54 palácio 59, 58 21 forno, no meio do 26 = X campo, mas perto do mar 28 fonte = X estrada, 32 junto de uma ? = ? árvore, no meio do campo Il apparaît d’abord que le mythe est un processus d’investisse me nt de l’e space. Par sa démarche , il fait à l’ho mme discerner, différencier et spécifier des é léments de son espace vécu quotidie nne me nt. Cette spécificatio n apparaît comme une projection des préoccupations et des co mporte ments majeurs d u groupe social, couple et/ou clan. Elle charge les parties du secteur géographique de significations et de “vert us”. Elle crée un paysage-théâtre et essentiel. Cette y opère la mise e n scène du dra me affectation théâtrale se concrétise par un 219 marquage, des rituels, une sacralisation, qui dans la plupart des cas sont proliférants, se développent et s’enrichissent d’e uxmêmes et de leurs propres effets. Mesm o os epi só di os 283 l endári os de mouras encant adas acont ec em , pr efe ren ci al m ent e, no cam p o, um as vez es j unt o de um poço, out ras, nos c am i nhos, e h á m es m o um j unt o do pi l ar d e um a pont e. Os epi sódi os l endár i os de medos acont ecem em qual qu er s í t i o, m as m ai s fr equent e m ent e no c am po, e m especi al nas encr uzi l hadas , t al com o os encont ros ent re bruxas – no ent ant o, el as vi vem e act uam nas povoa çõ es ; t em os doi s ocor ri dos num a prai a, a m bos na m es m a z ona, um a part e da prai a ch e i a de rochas , par a al ém dos recol hi dos por J osé Lei t e d e Vascon cel l os, que ocorrem e m S agres, t am bém nas p rai as. Os de l obi somens t am bém se d ão no cam po e , pel os vi st os, t am bém em qual quer sí t i o se m orre. As l endas r ecol hi da s por J osé C asi nha Nova passam -s e t od as no Barl avent o, m ai s co ncret am ent e nos C oncel hos de La gos e de Vi l a do Bi spo. A re col ha de Mar gari da T engarri nh a t am bém , m as no C oncel ho de P ort i m ão, assi m com o a nossa, que ab ranj e ai nda os C oncel hos de S i l ves, Monchi que e La go a. Os epi sódi os l end á ri os de mouras encant adas recol hi dos po r At a í de Ol i vei ra repo rt am -se ao S ot avent o, com espe ci al i nci dênci a no C oncel ho de Loul é. Mas se no Al garv e podem os faz er um m apa onde é poss í vel as s i nal ar t odas est a s ocorr ênci as, a Mo uram a, com o di ssem os, é um es paço i nde fi ni do (à ex cepção de Tân ge r , ci dade r efe ri da ap enas nas di versas versõ es da «Le nd a da Mour a C ássi m a ») . E Fe rnand a Fr az ão 283 Henri Fromage, ob. cit., pág. 153 : «E m primeiro lugar, parece que o mito é um processo de investimento do espaço. Pela sua deslocação faz o homem discernir, diferenciar e especificar elementos do seu espaço vivido quotidianamente. Esta especificação aparece como uma projecção das preocupações e dos comportamentos mais importantes do grupo social, casal e/ou clã. Ela carrega as partes do sector geográfico de significações e de « virtudes ». Cria uma paisagem/teatro e opera aí a encenação do drama essencial. Es ta afectação teatral concretiza -se por uma marcação, rituais, uma sacralização, que na maior parte dos casos são proliferantes, desenvolvem-se e enriquecem-se de si próprios e dos seus próprios efeitos.» 220 e Gabri el a Morai s apresent am um a possí vel i nt erpret aç ão dest a i ndefi ni ção, part i nd o do pri ncí pi o de que est e espa ço , e nt endi do com o a t erra dos mouros , não é, com o sem pre se p ensou , o Nort e de Áfri ca, m as a t erra dos mort os , à luz das t eori as j á ex post as ant eri orm ent e: É da salientar, no que toca aos rios Lima ou ao actual rio Seco, e m Faro, e ao Promo ntório Sacro, não ser coincid ência o facto de esta s regiõe s possuíre m um acervo particular me nte rico e m narrativas ou r umor es relacionados co m as mo uras e ncantadas Mas mais importante é o facto de os dois mundos se interpenetrare m, q uer no Promontório Sacro e no rio Letes, q uer nas narrativas de mo uras encantadas, se m e squecer a se melha nça que se conjuga, indiscutivelmente, com o significado já referido da raiz possível para a palavra moura. […] Os locais são muitos e variados, ma s estão se mpre e m situação de ligação com o mundo subter râneo, o mundo dos morto s. São grutas, c ovas, poços, mina s, o u são correntes de água que brotam do mundo subterr âneo, fontes, rios ou cisternas, ou são árvores cujas raizes mergulham na terra, ou penedos escarpados que se abrem, cume s de mo ntes e monta nhas q ue se despenham no abismo. São, afinal, a Mourama (a mesma Mourindade dos Galegos, ou o Sid), que pensa mos ser o no me aqui assume o País dos mortos, apesar da natural confusão co m a terra dos Sarracenos. 284 1.5.2. A CARACTERIZAÇÃO DO ESPAÇO É prat i cam ent e i m p ossí vel faz er um a l ocal i z ação espa ci al sem cara ct eri z ar m i ni m a m ent e esse esp aço, a m enos que se p roceda à s i m pl es nom eação do l ocal , com o acont ece com “a Mo i ram a” e “Tân ge r”, cuj os el em ent os são i nsufi ci ent es para esbo çar um a 284 Fernanda Frazão e Gabriela Morais, Portugal, Mundo dos Mortos e das Mouras Encantadas, pp. 46 e 47. 221 cara ct eri z aç ão, que est á t am bém depe ndent e do m ai or o u m enor recurso a proc essos est i l í st i cos ut i li z ados pel o cont ador . Mas é sobret udo a cara ct eri z aç ão fei t a dos m i croespa ços em que oco rrem os en c ont ros , sej a qual fo r a sua n at urez a, qu e pe rm i t e a es t as aut oras avan çarem a i dent i fi ca çã o da Mourama com o m undo dos m ort os: […] Mas as características expressas nestas narrativas são inconfundíveis q uanto aos aspectos do mito sobre os quais aqui nos te mo s debruçado. Se não, veja mos: a Mourama é se mpre referida co mo uma e ntrada feita a tra vés de um b uraco na terra, na árvore ou na pedra, já existente na natureza, ou que se abre misteriosa me nte à pa ssage m do ente mítico. E a Mourama, tal como o Alé m, é um sítio mara vilhoso, meta morfoseado, na s versões mais actualizadas, em palácios de our o, prata e pedras preciosas, as riquezas do interior do seio da T erra -Mãe ma s que no ima ginário do ho me m pré -histórico era m tão só a vegetação, os animais da sua sobrevivê ncia, todos os ser es vivos, co mo ele próprio, e as pedras para seu abrigo na vida e n a morte. E dentro da concepção cíclica de vida / morte / vida, esse mundo do Alé m, dos mortos e dos antepassados, e mbora e m oposição ao mundo dos vivos, também é a outra face deste. Portanto, paralelo, subterrâneo, onde a vida decorrerá do mesmo modo que d o lado de cá, excepcionais do mas que, a través dos mo mento s entreaberto, se podem cruzar. É nesses mo me ntos, simulta nea mente privile giados e perigosos – a Morte, tal co mo o Sol, não se pode olhar de frente – que um de sses seres míticos ve m e m b usca de uma parteira, ou ve m dar de beber aos seus cavalos, ou anda a jogar os paus e as bolas (jogos tradicionais portugueses), ou vem estender a roupa ou os frutos, ao Sol, ou está a tecer no seu tear, o que, para além dos significados simbólicos que possue m, são, o u fora m, actividades rotineiras e nor mais no dia -a -dia das populações que conta m estas visõe s. Mas ainda, e acima de tudo, vê m pro meter as riquezas que desfrutam nesse mundo subterrâneo concebido pela ima ginação huma na primitiva co mo cheio de dádivas de vi da / 222 morte / vida, de fertilid ade e de regeneração. 285 Apresent a rem os, a gora, ex em pl os em que essa car act e ri z aç ão se revel a em aspe ct os di st i nt os: 1) a i mponênci a dos cast el os : “cast el o ai nda m aj est oso e s obrancei ro [ de S i l ves] ” ( L M 33 ); “c ast el o i m ponent e d a en t ão vi l a de C ast al ar” ( L M 39 ) ; 2) a maj est ade dos pal áci os : “Vi vi a num bel í ssi m o pal áci o de m i l col unas fi nas de m árm ore ros a e vent anas de fi l i gr ana de m adei ra, rode ada d e cox i ns de sedas col ori das e m aci as com o um roçar d e asa d e pom ba.” ( L M 54 ); 3) a ri q ueza dos pal áci os subt errâneos : “E desce ram am bos um a es cada ri a d e m árm ore, que os l evou a um a sal a eno rm e chei a de ouro por t odos os l ados. As paredes era m de ouro. E de ouro o bel o t ect o t am bém .” ( L M 38 ); “num a am pl a sal a de par edes e co l unas de ouro m ac i ço” ( LM 1 3 ); 4 ) o bucol i smo do s campos : “A nas cent e do out ei ro d e S ant o Ant óni o do Al t o [ “ao nascent e de Far o”] , e l ogo l á em bai x o, há um a funda pl anura, por onde em épocas rem ot as desl i z ou um ri o, hoj e denom i nado o Ri o Seco . P or est e r i o ent rava a m a r é q uase at é Es t oi , e nel e havi a gr andes est ei ros [ ... ] ” ( L M 11 ); “P el os cam pos do Al ga rve, v ai um verdadei ro fest i m de l uz e cor...” ( L M 4 0 ); 5 ) a ari dez da serra : “A t erra cont i nu ava quent e e a á gu a m orna. Nem a bri sa soprav a. Na serr a, o si l ênci o assen t ara a rrai a i s.” ( LM 3 5); 285 Fernanda Frazão e Gabriela Morais, Portugal, Mundo dos Mortos e das Mouras Encantadas, p. 47. 223 6) a t ranqui l i dade das povoaçõ es : “ S eparada do Al ent ej o pel a ri bei ra do Vas cão, a l i nda e po ét i ca vi l a de S al i r – a ant i ga C ast al ar – ergu e-se pr e gui ço sam ent e ao l ongo d a ri bei ra que t em nom e i gual ao s eu.” ( L M 39 ); “É Mex i l hoei r a um a bel a povoaç ão si t uada em l ugar el evado, qu e s e descobr e do m ar a gr ande di st ânci a.” ( L M 25 ); 7) a precari edade das casas dos camponeses : “um a pobre fam í l i a que nada m ai s t i nha de seu e po r i sso al i habi t ava nuns casebr es ” ( LM 43 ); “um m ai oral de c a bras, cas ado, que t i nha a s ua pobre choupana m esm o em frent e do r ef eri do b arran co” ( L M 24 ); 8) a opul ên ci a das casas dos mouros : “resi dên ci a apal a çada do vel ho m ouro Az iz ” ( L M 41 ); “ era dono daquel a propri ed ade um ri co m ouro, que m orava em um prédi o acast el ado quase no c ent ro” ( L M 1 6); 9) a rural i dade : “ Lent am ent e, t am b ém , o gado d esci a das past agen s para s e abri gar da n oi t e” ( L M 34 ); “foi o gu ardado r em pr ocura d e um a vacca que se s afár a da al pendur ad a, e vi u que, horas depoi s, a vacc a ent rar a no est abul o m ui t o fart a.” ( L M 59 ); “es t ava um hort el ão à espr ei t a das l ebr es e coel hos que vi nham à su a h ort a ro er nas al fa ces” ( L M 1 2 ); “est ava um rap az que t rabal hav a n o cam po t om ando cont a de u m a seca d e fi gos nu m al m anx ar.” ( E LA P / M 6); 10) l ocai s mí st i cos, nos campos : “ao passar por um sí t i o ent re La gos e a P r ai a da Luz , co nheci do por Quat ro est radas, d evi do a h aver n el e um cruz am ent o, norm al m ent e l ocal i ndi cado para brux edos” (E LAP / M 7 ); “um s í t i o conheci do com o a C ova da Arei a, onde se di z i a que apare ci am med os ” ( E LLO 1); 224 11 ) quando a t erra se j unt a ao mar : “Nas du as ex t erm i dades d a prai a d e Bur gau, ex i st em i núm eros pen hascos que, pel a e r osão, se des penca ram das a l t as fal ési as sobre a arei a n as m ai s vari ada s pos i ções. P or essa r az ão, cham am -s e C ant os do Lared o. ” ( E LAP / M 8); “Ao fundo, e ra s ó rocha, só f ra ga… ” ( E LAP / M 9); 12 ) a proxi mi dade do mar : “agarrou nel e e foi at i rá -l o de um a fal és i a ab ai x o.” ( E LAP / M 6); “ ex i st e um espaço redon do ent re rochedos, pa reci do com um poço, e, quando a m aré est á chei a e o m ar a gi t ado, as on das ent ram por bai x o e sobem pel o poço aci m a produz i ndo um ruí do m edonho.” ( E LAP / M 8 ); 13 ) os prazeres da prai a : “É um sí t i o ópt i m o para pesca ri a à can a.” (E LAP / M 8 ); “nos d i as em que o m ar n ã o est ava c apaz de p escar em em barc ação, gost av a d e i r pesc ar pa r a a Toc a do R abo, sent ado s obre um ro chedo o nde só el e m al c abi a.” ( E LAP / M 8 ); “q uando se encont rav a c om um grupo d e out ros garot os am i gos a br i ncar n a arei a ” (E LAP / M 9 ). 1.5.3. O ESPAÇO SOCIAL O val or do cum ent a l dest as l endas de mouras enc ant adas é i ncal cul ável , se an al i sadas do pont o de vi st a soci al . D os m ai s pobres aos m ai s ri c os, passando por u m a di versi dade de p rofi ssões, t odos t êm l ugar n est as hi st óri as. Observam os, po r e x em pl o, que os po rt ugues es são sem pre t rabal hador es z el osos ou pobr es hon ra dos, enquant o os m ouros são ri cos respei t ados. A proveni ênci a da sua ri quez a não é c onheci da, m as a sua honest i da de t am bém nunca é post a em causa. Os t esouros que os m ouros, na pressa d a fu ga, es conder am , na 225 es peran ça de recup e rarem m ai s t ard e, c o nt rast am com um a pobrez a gen eral i z ada dos cam poneses po rt ugueses que, n ão fi cando, nat ural m ent e, i ndi f erent es a t am a nhas ri quez as, se aven t uram a quas e t udo par a t ent ar os desen cant am en t os. P erder “os sa grado s ól eos do bapt i sm o” é a úni c a si t uaç ão que faz um cri st ão recusa r um pedi do fei t o por um a bel a m ul her, num a noi t e de l uar, em t roca de um a grande fort un a. S ão rar os os cas os em que, hom em ou m ul her, não vence o m edo cau sado por al gum a cobr a gi gan t esca ou out ro ani m al i gual m ent e fan t ást i co, e apenas em “A Mour a Fl ori pes” ( L M 37 e LM 14 ) encont r a m os um hom em que não ac om panha um a m our a a Áf ri ca pa ra n ã o vol t ar, num a das versões, por am or a out ra m ul her ( LM 37 ), n a versão de At aí de Ol i vei ra ( LM 14 ), por am or à pátri a (com t udo o que i m pl i ca, t am bém , de re l a ções fam i l i ares e d e am i z ade, nat ural m ent e). P odem os enum era r os se gui nt es rep resent ant es de gru pos s oci ai s: LM 33 : hom em de profi ssão desconhe ci da (“um hom em vol tava do s eu t rabal ho”) / moura encant ada (“P oi s fi ca sabendo que sou fi l ha do rei m ouro a qui ent errado. ”); LM 34 : l avrador (“depoi s de acom odar o gado ”) / m oura encant ad a (al t i va, p ossui dora de grand e fort una); LM 35 : “j ovem pescador que sofrer a um naufrá gi o e fi car a al gum t em po em t erra a re com por -se” ( am paro da m ãe doent e) / m oura encant a d a (“S e vi e r es com i go pa ra o m eu pal áci o, se rás po deroso com o m eu pai e m eu s i rm ãos.”); LM 36 : j ovem l avad ei ra (“ Teri a d e l ava r nessa m anhã as pe ças de roupa que a m ãe l he ent regara ”) / m ouro encant ado (“ri co... nobre, t al vez ”); LM 37 : um dono de t err as e h erd ad es / m oura enc ant ada de es t at ut o soci al desc onheci do; 226 LM 38 , LM 48 e L M 13 : “um al m oc re ve” / m our a encant a da (“S e qui s eres t roc ar es sa vi da ar rast ada que l evas pel a vi da de opul ênci a e ser possui dor dest e vast í ssim o pal áci o, onde o ouro é ai nda o que m enos v al or t em , só depend e de t i ”); LM 39 , LM 51 e L M 6 : “o últ i m o al cai de m ouro de S al i r”, a fi l ha e “os seus fi éi s soldados” / ex érci t o port uguês ( em part i c ul ar, D. Gonçal o P er es); LM 40 , LM 50 e L M 3 : “Os m el hores gue rrei ros m ou ros de ent ão correm a j u nt ar -se s ob as o rdens dos se us chef es” / “os sol dados cri s t ãos de D. P ai o P eres C orrei a, qu e s e prepa ram t am bém para a l ut a gi gant es ca. ”; “ o gov ernado r de Lo ul é” (“x eri f e absol u t o”) e as fi l has / um port uguês qu e e ra “ carpi nt ei ro em Loul é” e escravo em Tân ger; LM 41 e LM 15 : “um ri co m ouro, que m orava em um prédi o acas t el ado ” ( “ grand e fort una que possu í a”) e a fi l ha / o “ j ovem Abdal á”, “m ui t o ri co”, que de noi t e “ c ant ava t rovas d e am or que durant e o di a com pu nha para a sua b em - am ada”; LM 42 e LM 24 : a espos a de “um pobre cabr ei ro” / m ouri nho encant ado, possui d or de um “pal á ci o subt errâneo ” onde “vi u am ont oada em cofr e s de oi ro t ant a ri quez a em di nhei ro e pedras preci osas, qu e ni ngu ém pode i m a gi ná -l o e m enos desc revê -l o”; LM 43 e LM 27 : “um a fam í l i a pobre e h onrad a” / m ouro encant ado que “j un t o a si conservava um a fort una em ouro e pedras pr eci osas ”; LM 44 e LM 25 : “m ul her ex t rem am e nt e pobre”, de pro fi ssão des conheci d a (que “não podi a d ei x ar de aprovei t a r aquel a fort una”) / m ouro e ncant ado em sapo, que gua rdav a um t e souro que a t ornou “ ri quí ssi m a”; LM 46 e LM 11 : “u m cri st ão” de profi s são desconh eci da, m as que “t rat ou de sabe r a q uem pert en ci a en gen ho e t e rreno e com prou -os s em re gat ear ”, “por bom pre ço” / m our a en cant ad a pel o p a i num a nora (“ond e m andei const r ui r o t eu pal á ci o”); 227 LM 47 e LM 12 : “um hort el ão” / m oura enc ant ada co m “um a enorm e c ai x a chei a de di nhei ro em ouro ”; LM 49 e LM 10 : “ part e das for ças qu e at aca ram o C ast el o de Faro ”, com and adas por “um j ovem gue rrei ro, fo rm oso, ch ei o de bri o e desej os de re nom e”, enam or ado da “fi l ha do gov ern ador” / gove rnador do cast e l o “com as suas num erosas fo rças ”; LM 52 e LM 6 : u m a “l avr ador a” / m oura en cant ad a q ue m ora dent ro de “um pal ác i o”; LM 53 e LM 17 : D. P ai o P eres C or rei a e out ros “ cav al ei ros cri s t ãos” / “o go ver nador de ent ão ” do cast el o de Tavi r a, a s suas gent es e a fi l ha q ue, “no p al áci o en cant ado, conserv a gr andes val ores em ouro e j ói as preci osas que oferec erá ao seu des encant ador”; LM 54 : “um t rov ador” cri st ão / D i norah, que “vi vi a num bel í s si m o pal áci o”; LM 59 : “um l avrad or, que possuí a m ui t o gado, e t i nha por i sso m ui t os creados ao seu servi ço” / um a “voz occul t a” de um encant ado que t i nha para ofer ec er um a “grande c ai x a, chei a de di nhei ro em ouro”; L 2 1 : doi s am i gos de profi ssão d escon heci da / m our a en c ant ada cuj o “pai era o re i dos m ouros que habi t avam no serro das Rel í qui as ” e que “e st ava ri cam ent e ves t i da, t raz endo ao pescoço um grande col ar de ouro, e nos braços bri l havam ó pt i m as pul s ei ras do m esm o m et al ”; LM 26 : “o dono e seus t rabal h adores ”, t odos bene fi ci ados pel as “vant aj osas condi ç ões” em que o fo rno foi com prado / “um caval ei ro m ont ado em m ul a possant e, com um a dam a na ga rupa, s egui do de um cri a do que conduz i a ou t ra m ul a car re gad a de doi s gr andes baús. ”; m oura enc ant ada / “u m dos t rabal hadore s”, que receb eu, com o “pr é m i o do i m pagável servi ço” que l he pr es t ou, os doi s baús “a t ran sbordar de m oedas , barras em ouro, j ói as preci osí ssi m as, di a m ant es de gr ande v al or, esm er al das d e preço 228 i ncal cul ável , rubi s e out ros val ores de s ubi do preço”; LM 28 : “um pobre hom em ” que, “ao rel ent o, est endi a sob um a árvore os m em bros canç ados e l assos” / m oura encant ad a que l he ent re gou “doi s b aús chei os de ouro e de pedras pr eci osas ” (d onde, depoi s, el e “t i rav a o di nhei ro necess ár i o para pa gar as co m pras dos gr andes p ré di o s que t odos os di as faz i a com v erd adei ro es pant o de t oda a ge nt e”). LM 32 : m ul her de profi ssão desconh ec i da, provavel m ent e dona d e-cas a, espos a de t rabal hador rural (“ i a t odos os di as l e var o j ant ar ao m ari do” ) / “um a m eni na ” qu e “l he dari a t odos os d i as 500 réi s” par a com prar gal i nhas, “dura nt e 6 m eses”, após o que fari a a m ul her ri c a. S i st em at i z ando: os port ugues es t êm profi ssões l i gadas à t er ra (l avrador, hort el ão , al m ocrev e, m ol ei ro, past or, ca r pi nt ei ro, res pect i vas espos as) , à água (p esc ador, l a vadei ra ), ao fo go (dono e t rabal hador es do f orno da cal ) e ao ar (t rovado r). Ou t ros são s i m pl esm ent e pobres, sem profi ssão. S ó encont r am os quat ro que se podem consi derar “ m ai s abast ados”: o “com padr e Zé” de L M 37 , o l avrador d e L M 59 , o “cri st ão ” de L M 4 6 e LM 11 e o dono do forno de LM 26 . Há, ai n da, os gu err ei ros, e o padre, repr esen t ant e do cl ero. Os m ouros s ão, quas e sem pr e, repres ent ados p el as cl asses di ri gent es, govern a dores de cast el os ( e resp ect i vas fi l has ) ri cos e poderosos ( em bora sai am ven ci dos d os conf ront os com os port ugues es), e sã o t odos guerr ei ros , ex cept uando -se o “vel ho m ouro” e o t rovado r de L M 41 e LM 16 , que t am bém são ri c os. Nas “ Lendas In édi t as”, bast ant e m ai s recent es, que dat a m de m eados do sécul o XX, encont ram o s as segui nt es p rofi ssões repres ent adas: E LAP / M 6 : “um r a paz que t r abal hav a no cam po t om ando cont a de 229 um a seca d e fi gos n um al m anx ar”; E LAP / M 7 : m ul her sem profi ssão defi n i da, m as que faz i a “t apet es m ui t o l i ndos”, “bo rdados em ser api l hei ra” que vendi a, faz endo depoi s com pras na c i dade, com o di nhei r o da venda; E LAP / M 8: p escado r que, qu ando “o m a r não est ava cap az d e pesc ar em em barc aç ão”, go st ava de pes car à ca na; (E LAP / M 9 : grupo d e garot os a b ri ncar na prai a ) LLO 1: hom em “r es pei t ável , t rab al hado r do cam po, n aqui l o que er a s eu”, port ant o l avra dor (possi vel m ent e o que se cham ava, n a al t ura, “l avrado r abast ado ” ); E LLO 1: doi s pes ca dores; E LM O 1: “um hom e m de i dade avan çad a”, que se d eduz ser pobre, poi s passa a vi da a apanhar l enha; LM O 1: um a fam í l i a cuj os m em bros t ê m profi ssões descon heci das e um cart ei ro; ( LM O 2 : i gnor am os as profi ssões dos do i s i dosos do casal ) LM O 3: t am bém nã o há i nform ação so bre a profi ssão do hom em , apenas sab em os que t eve o di nhei ro sufi ci ent e para fu gi r d a m ort e , i ndo “passea r” pa ra o P ort o “um a sem an a ant es” . 1.5.4. O ESPAÇO PSICOLÓGICO R et rat o da i nt eri or i dade das person a gens, est a subcat e gori a narrat i va é ex pressa, ger al m ent e, at ra vés do m onól ogo i nt eri or, revel ado r, habi t ual m ent e, de um confl i t o í nt im o, e decorrent e, forçosam ent e, de u m a focal i z açã o i nt e r na do narr ador. É, por conse gui nt e , m ui t o m ai s frequent e nas l endas, q uase i nex i st ent e nos epi sódi os. 230 Em segui da, d ar -s e- ão ex em pl os dos monól ogos i nt eri ores m ai s repres ent at i vos, cuj o re gi st o se veri fi c a nos t rês t i pos de di scurso (di rect o, i ndi re c t o e i ndi rect o l i vre): LM 33 : “ A m ul her de Di o go ol hou o m ari do em si l ênci o. Est ava pál i do, de ol hos bri l hant es. C he gou a pens ar qu e ele t eri a enl ouqueci do. Mas não! Os s eus m ovi m ent os eram cert os , os seus raci ocí ni os pr eci sos . Que t eri a, poi s, su rgi do n a sua vi da? E porque t eri a fei t o aquel e bol o? Agora com pr eendi a o s eu i nt er esse em aj udá-l a, em apren der coi sas que só di z em respei t o às m ul heres. Ti nha l á a sua fi sgad a! Mas po rqu ê? P orquê? ...” – Di scurso i ndi rect o l i vre que r evel a as i nt erro gaçõ es da m ul h er de Di o go sobre as rec ent es at i t udes do m ari do, enquant o o observa; LM 34 : “A su a c asa est ava à vi st a. A m ul her e os fi l hos es peravam no. Di as ant es, com o l he era gr at o che ga r at é al i , descans ar no seu l ei t o fofo, ouvi r o t aga rel a r das cri a nças, conve rsa r co m a bel a J oana que escol hera para m ãe dos seus fi l hos! C om o i sso ai nda há pouco t em po l he e ra t ão grat o ! A gor a, porém , ent r ar n essa cas a cons t ruí da pel as suas própri as m ãos era quase um pesa del o.” – Di s curso i ndi rect o Ant óni o Navarro l i vre que enquant o corres ponde se di ri ge aos para pensam en t os su a cas a; de “Ol hou dem oradam ent e o h om em por quem a a dm i ração qu e por e l e sent i a s e t ransfo rm ara em am or. El e fi ngi a dorm i r. Bem o pre ssent i a. Ant óni o est ava p reocupado e que ri a i sol ar -s e, fi n gi ndo -s e adorm eci do . J oana i m i t ou -o. Tam bém i ri a fi ngi r qu e dorm i a. Mas o s eu pensam ent o gal opava com o bat er do seu cora ção. E s e Ant óni o t i ves se descobert o out ra m ul her e qui sesse abandoná - l a? Mas des cobri r out ra m u l her, onde? Vi vi am t ão i sol ados! A povoação m ai s próx i m a f i cava t ão l on ge! É c ert o que Ant óni o l eva va o di a t odo fora de cas a. S ó ao c ai r d a t ard e vol t ava p ara j unt o dos seus. Ah, se el a pudesse l er -l he no pensam en t o! C onhecer a sua vont ade, des cobri r porqu e a ndava el e a go ra as si m ...” – Di scurso i ndi rect o l i vre r evel ado r da ansi edade d e J oana, que t ent a encont rar um a 231 ex pl i cação par a a al t eraç ão do com port a m ent o do m ari do; LM 36 : “J oana fi co u por m om ent os si lenci osa. Não qu eri a fal t ar à prom essa f ei t a ao s enhor do ri o, m as c om preendi a q ue a m ãe t i nha raz ão. Travou -se l ut a dent ro do seu espí ri t o. P er gunt ava, i nt i m am ent e, o que devi a faz er.” – Di scurso i ndi rect o que, sem des crev er a “l ut a dent ro do seu espí ri t o”, nos i nform a sobre a ex i s t ênci a e a nat ure z a desse confl i t o i nt eri or de J oana; LM 37 : “J ul i ão sorri . Tal vez o com pa dre Zé o est i vesse espi ando por al i pert o. A Ani nhas fi ca ra r ez ando, pedi ndo a D eus que a m oura não apa rec esse. O c ul pado er a o com p a dre Zé, que espal ha ra se r a m oura a m ul her m a i s l i nda que el e vi ra!...” – Di s curso i ndi rect o l i vre que, t al com o no pri m ei ro ex em pl o de L2, corr esp onde aos pens am ent os da pe rs onagem enquant o ca m i nha; LM 39 : “Ab en -F abi l l a cer rou os ol hos. C om forç a. C om ó di o. At é faz er doer. Não con segui a coord enar as i dei as em desal i nh o. S i m , a bat al ha est av a p erd i da, ai nda ant es de co m eç ar. Al guns dos seus hom ens t i nham j á com eçado a deb anda da. Que espe rava el e, ent ão? ” – Novam ent e um co nfl i t o i nt eri or, r eve l ado pel o di scu rso i ndi rect o l i vre; “Apen as o j o vem D. Gon çal o fi cou par ado a ol har em sua vol t a. A ol har e a pensar: – Meu Deus, t eri a eu sonhado? Teri a si do t udo um a i l usão? Não, m i l vez es não!... Eu fal ei -l he... Eu t oquei l he... El a d eve t er fi cado aqui encan t ada pa ra s em pre !. ..” – O pens am ent o da p ersona gem , dest a vez na pri m ei ra pessoa, ut i l i z ando -se o di scurso di rect o; LM 40 : “ P or fi m , ao cabo de l on ga e árdu a ex pect at i va, um a ex pressão m ai s am ar ga desenh a -se no rost o m acerado d o vel ho gove rnador. D e si para si conf essa: – J á os pressi nt o... E l es est ão cerc a d e nós... Quan do a al vorad a rom p e r vão t ent ar o assal t o... Mas não nos apanh arão d espreveni dos, com o j ul gam !” – Mai s um a vez , o di s curso di rect o a d ar cont a do m onól ogo i nt eri or; “O vel ho m ouro é abal ado por i nt ensa em oção. S erá aqu e l e hom em o m ensagei ro que el e t ant o pedi ra a Al á? P oi s não há que duvi dar! ” – Di scurso i ndi rec t o l i vre qu e r evel a os pens am ent os e as em oções da 232 pers ona gem ; “H á um a pausa. O vel ho govern ador pro curando acal m ar as bat i das do seu coraç ão ex ci t ado. O hom em de Loul é a per gunt ar a si próp r i o qual será o fi m d e t ão est r anha conv ersa...” – Di s curso i ndi re ct o q ue desc rev e, al t e rna dam ent e, a i nt eri ori dade d as duas person a gens; o s pensam ent os do c a rpi nt ei ro de Loul é, ex post os em di scurso i ndi r ec t o l i vre, nos t r ês e x em pl os segui nt es: “No seu í nt i m o pensa na mul her, nos fi l hos, nos am i gos... Que enorm e s urpresa ! Não, n ão pode fal h ar! ”; “P e l o cam i nho, pár a d e vez em quando e sent a -se a refl ect i r. Qu e i rá a gora suc ede r à pobre C as s i m a? O que el a não t erá d e sofr er!.. .”; “B enz endo -se e r ez ando, o ca rpi nt ei ro com preende t udo: C as si m a dera -l he aqu el e ci nt o apenas p ar a s e vi ngar! S ua m ul her fi ca ri a cort ad a ao m ei o , com o o carval ho gi gant esco !...”; LM 42 : “A m ul her, porém , est av a di vi di da ent r e o re cei o an cest ral e vi s ceral e a curi osi d ade acut i l ant e de sa ber em que poderi a consi st i r a s ua fort una. P or fi m , convenci d a d e q ue quem n ão s abe u t i l i z ar -se da s ort e quando el a bat e à port a não p ode quei x ar -se quan do el a s e vai , encheu -s e de c ora gem e des ceu as escadas at rás do m ouri nho.” – Di scurso i ndi re ct o que, t al com o em L4, i nform a da ex ist ênci a e da nat urez a do con fl i t o i nt eri or; LM 44 : “ao fi m do t ercei ro sonho, deci di u vol t ar ao sí t i o da al farrob ei ra porqu e , afi nal , era pobr e e não podi a de i x ar de aprovei t ar aquel a fo rt una. P or out ro l ado, pensava el a, o di abo não é t ão fei o com o o pi nt am , bei j ar o s ap o era apen as um i ns t ant e e pront o.” – Di scurs o i ndi rect o, d ando -nos cont a da dec i são da m ul her, se gui do d e di scurso i ndi re ct o l i vre, dando -nos c ont a dos s eus pensam ent os; LM 48 : “E l á do fundo da m em óri a subi u -l he a l em branç a do que s eus pai s cont avam sobre o l ugar e el e nun ca qui ser a ac red i t ar: que naquel e pont o ap a reci a um a m ou ra encant ad a a qu em por al i pas s asse sol i t ári o.”; “P ensou i r à fei ra de Vi l a Vi çosa vendê -l as, es perando que aí l he dessem po r el a s um m ai s j ust o val or.” – Di s curso i ndi rect o em am bos os ex em pl os, rev el ando, no pri m ei ro, 233 um a reco rdaç ão e, n o segundo, um a deci são; LM 3 : “Quando o governador ch e gou à s al t uras do Serro da Pena e não encont rou ent r e as a garen as a sua fi l ha queri da, t eve a profunda com preens ão da su a des gra ça: fi c ara sobre os m uros em oraçã o porque não re ceb era o seu avi so! [ ...] o vel ho di st i ngui u l á ao l onge , s obre o cast el o, u m vul t o de m ul her: era a fi l ha! C ham á -l a!, não ouvi ri a. Ir buscá -l a !, i m possí vel .” – O di scurso i ndi rect o l i vre a ex pri m i r “a profund a com pre ensão da su a des gra ça ”; LM 8 : “C onheceu a m ul her pel os t raj es que t i nha na sua presenç a m ouros e m ouras encant adas, di spost os t odos a roubar -l he os sant os ól eos por i nt e rm édi o do bei j o fat al .” – Em di scurso i ndi rect o, a percep ção qu e a pe r sonagem t em do que se est á a p assar à sua vol t a; LM 13 : “O seu pr i m ei ro m ovi m ent o foi de p rofundo su st o, m as depoi s pensou qu e, sendo t udo o que vi a verd ad ei ram ent e ex t raordi nári o, dev i a m ant er o seu sossego d e espí ri t o.” – O pens am ent o do al m o creve em di scurso i ndi rect o; LM 14 : “O suj ei t o ouvi u at ent am ent e est a respost a e l ogo pensou que o sac ri fí ci o e ra real m ent e m ui t o superi or à sua boa vo nt ade.” – A m esm a si t uação d e L41, o pens am ent o da person a gem em di scurso i ndi rect o; LM 28 : “ O pobre hom em fi cou por m ui t o t em po a pensar n as pal avras do m our o. El e conheci a pe rfei t am ent e a sal sa [ ...] m as do m aná só t i nha o l ev e conhe ci m ent o do que ouvi ra cont ar a sua m ãe por ocasi ão do p ovo hebreu andar pel o desert o. ” – S i t uação s em el hant e às ant e ri ores, de L41 e de L42, o pens am ent o da pers ona gem em di scurso i ndi rect o ; E LAP / M 6 : “P el o b arul ho produz i do, devi a ser um bi cho enorm e. “ Iri a m i j ar em ci m a dos fi gos? ” – pensou el e.” – O pensa m ent o do rapaz pri m ei ram ent e em di scurso i ndi rect o, se gui do de di scurso di rect o, com o se est i vesse f al ando m es m o, revel ado r d a pr eocupa ção que o assal t ou nesse m om ent o; E LAP / M 8 : “ – Que sort e! – pensou. Ia pescar, ce rt am ent e, o m ai or 234 pei x e da sua vi da! ” – A pri m ei ra i de i a em di scurso di re ct o, e a ex pect at i va se gui nt e em di scurso i ndi re ct o l i vre; “ – É boa ! – di sse para consi go – que di abo de coi sa será est a? ” – Novam ent e a dúvi da da per sona gem ex pressa em di scurso di r ect o; LM O 3 : “Enquant o o t em po passava e o hom em m at ut ava em com o s e havi a d e l i vra r daquel a si t uaç ão, t e ve um a i dei a e, j ul gando -se m ui t o espert al hão, um a sem ana a nt es f oi passear pa ra bem l onge d a t erra em que se en cont rar a com D. M ort e.” – A pr eocup ação do hom em , assi m com o a sua deci são, apresent adas em di scurso i ndi rect o, m esm o re sum i das. 2. PRINCIPAIS MOTIVOS E RESPECTIVA INTERPRETAÇÃO Dos quatro elementos aos seres míticos e dos lugares às fases do dia, do mês ou do ano (que é como quem diz do sol e da lua), passando pelos objectos utilizados, dados, recebidos ou trocados, e pelos vários seres vivos, humanos e não humanos que são, no fundo, todo o material d estas lendas, não seria possível estudá-las sem fazer uma abordagem simbólica destes “motivos”. O símbolo distingue -se essencialmente do signo, por este ser uma convenção arbitrária que deixa estranhos entre si o significante e o significado (objecto ou s ujeito), enquanto que o símbolo pressupõe homogeneidade do significante e do significado no sentido de um dinamismo organizador (DURS,20). […] O símbolo é, pois, muito mais do que um simples signo: transporta interpretação e, para esta, lá da duma significação, certa depende predisposição. da Está 235 carregado de afectividade e de dinamismo. Não só mostra, de uma certa maneira, mesmo quando dissimula, como realiza, também de uma certa maneira, quando desfaz. […] Com o signo, permanecemos num caminho contínuo e seguro: o símbolo pressupõe uma ruptura de plano, uma descontinuidade, uma passagem a uma outra introduz uma ordem nova de múltiplas dimensões. S egundo o m esm o aut or, “os mi to s ordem; 286 apresent am -s e t ransposi ções dram a t úrgi c as” dos arqu ét i pos de J u ng 287 c om o , “esquem as e s í m bol os ou de com posi ções de co nj unt o, epopei as, narrat i vas , gén eses, cosm ogoni as, t eo goni as, gi ga nt om aqui as, que r e vel am j á um processo de r aci onal i z ação.” 288 2.1. OS QUATRO ELEMENTOS P arece -nos l ógi co c om eçar pel o s quat ro el em ent os - água, t erra , ar e fo go – que e st ão repres ent ados em t odas est as hi stóri as de encant am ent os e des encant am ent os, apar i ções e des apar eci m ent o s . 2.1.1. A ÁGUA As significações simbólicas da água podem reduzir -se a três te mas do mina nte s: fonte de vida, meio de pur ificação, centro de regenerescê ncia. [...] Mergulhar nas águas, para delas e mer gir se m se dissolver totalmente, salvo por uma morte simbólica, é retornar às fontes, reabastecer-se num imenso reservatório de energia e regressão dele e de beber uma força desintegração , nova: fase p assageira condicionando progressiva de reintegração e de regenerescência. uma de fase 289 286 J ean Chevalier, « Introdução », in Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., pp. 12 a 14. 287 “Os arquétipos eram, para Jung, como que protótipos de conjuntos simbólicos, tão profundamente inscritos no inconsciente que constituiriam como que uma estrutura, os engramas, […]”, idem, p.14. 288 Ibidem. 289 Idem, p. 41. 236 No caso das l end as de mouras encant a das , n a m ai or part e dos cas os, as m ouras são at i radas para de nt ro de água – font e, poço, nora, ci st ern a ou ri o – enquant o os pai s pronunci am “or ações” e “pal avr as i ni nt el i gí vei s” e faz em “si nai s cab al í st i cos” e o “si gn o s am ão”, e l á fi cam a t é serem des encant a das. Enquant o dura o seu exí l i o , um as e st ão t ransform ad as em cobras, out ras n ão, out ras não se sabe e m quê, m as há quas e sem pr e, pel o m enos um a al t ura do ano, do m ês ou do di a (perí odo de vi nt e e quat ro hor as), em que podem assum i r um a fo rm a hum an a e, de al gum m odo, convi ver com al guns pa ssant es, at é pa ra q ue sej a pos s í vel t ent ar o al m ej ado desenc an t am ent o. O que acont ec e dep oi s às di t osas que o consegu em , só s e sabe em al guns casos e deduz i m os que se p ode gen eral i z ar: re gressam à M oi ram a onde se (re)hum ani z am t ot a l m ent e, prosse gui ndo a sua vi da norm al . O processo de encant am ent o/ desen cant am ent o re v el a -se, as s i m , “um a m ort e si m ból i ca”, um a v ez que o ser não d ei x ou de ex i s t i r, m as desi nt egrou -se, passou a o ut ro est ado, a out ra di m ensão da qual “ ren asce ” , rei nt e gr ando -se, l ogo, re gen erand o -se ( “A i m ersão é re gene ra dora, provo ca um r enasci m ent o, no se n t i do em que el a é ao m esm o t em po m ort e e vi d a. A á gua apa ga a hi st óri a, porque rest a bel ec e o ser num est ado nov o.” 290 ). Na Bíblia, os poços no deserto, as fontes que se oferecem aos nó mad as são outros tantos lugares de alegr ia e espanto . Junto das fontes e dos poços realizam-se encontros essenciais; enqua nto lugares sa gra dos, os pontos de água dese mpenha m um papel inco mparável. Junto deles, o a mor nasc e e os casa mentos começa m. A marcha d os Hebreus e a ca minhada de todo s os ho me ns durante o se u peregrinar t errestre estão intima mente 290 Idem, p. 43. 237 ligadas ao contacto exterior ou interior com a água, que se torna um centro de paz e de luz, oásis. 291 2. 1 . 1 .1 . LOC A IS Mui t as m ouras são encant ad as dent ro d e f ont es ( LM 40 , L M 50 e LM 3 , LM 7 , LM 28 ) “P el as suas águ as sem pr e novas , a font e s i m bol iz a, não a rej uvenes ci m ent o.” 292 i m ort al i dade, m as si m o perpét uo A m oura da S err a de Monchi que er a guardi ã de um “caud al de á gua qu e fa rá cu ras m aravi l hosas” ( L M 35 ) – “O s i m bol i sm o da font e ou nascent e é o d a regen eração e o d a p u ri f i cação .” 293 Al i na e o j ovem Abd al á ( L M 41 e LM 1 6 ) são encant ados ao c aí re m num “verdad ei ro abi sm o de onde j orrava a águ a num a i m ponent e cat adupa ” (a ex i gên ci a do vel ho Az i z ti nha s i do não um a font e qual quer, m as “a f am osa nascent e da Font e do C anal ”): O ab ismo i ntervé m e m todas as cosmo gonia s , como gé nese e ter mo da evolução universal. Este último, tal como os monstros mitológicos, devora os seres para depois os vomitar, transfor mados. As profundezas abissais evoca m o país d os mortos e, portanto, o culto da Grande Mãe Ctoniana. É, sem dúvida, sobre esta antiga base cultural que se apo ia C. G. Jung quando liga o simbolismo do abismo ao arquétipo ma terna l, ima ge m da mãe a m a n t e e t e r r í v e l . 294 S ão not óri as as vári as al usões ( cl aras ou i m pl í ci t as) às pr of undi dades . Em LM 41 “A á gu a j orr ava de um a cova p ro funda.” e “o m ouro ol hou o abi sm o donde a águ a j orr ava. ”. Em L M 50 : 291 292 293 294 Idem, p. 42. Idem, p. 334. Ibidem. Idem, p. 34. 238 “Todos os dom i ngo s o carpi nt ei ro se di ri gi a à font e, à t ardi nha, onde se ent ret i nha p erscrut ando o fundo , na esper ança de vi sl um brar al gum as d as m ouras que l he habi t avam as profundez as.”. E m L M 53 : “O govern ador, deb ruçando -s e par a den t ro do poço, di sse, ent ão, o s egui nt e encant am e nt o”. Em L M 59 : “v i u el l e os bez erros, no fundo do pe go”. Em L M 3 : o c arpi nt ei ro “al i s e conse rvav a, hor as i nt ei ras, com os ol hos fix os na á gua da font e, esperando, a cad a m om ent o, l obri ga r l á no fundo al gum a d as desdi t o sas enc ant adas ”, e q uando a m ul her cort ou o pão, “debruç ado na fo nt e, ouvi u di st i nt am ent e um enorm e gri t o saí do do i nt eri or e da part e m ai s funda das águas ”; ao at i rar o pri m ei ro pã o, “e r gueu -s e i m edi at am ent e do fundo da font e um gl obo de espum a” e, no fi nal do encont ro com a m oura, “o carpi nt ei ro a cei t ou a val i osa ofert a, e a i nfel i z C ássi m a desceu ao fundo da font e”. E em LM 21 : “o cão com eçou a gani r no perci pí ci o”. Ao cont rá ri o dos d oi s am ados, a m our a de Al goz , presa n um a “cova m al di t a” ( L M 34 ), sol t a, por vi ngan ça, “um a á gu a que t udo al a gou”, form ando um a l a goa. Est am o s, ent ão, pe rant e o aspect o negat i vo da á gu a: Os lagos são ta mb é m considerados como p alácios subterrâneos, de dia ma nte s, de jóias, de cristal, d e onde surge m as fadas, feiticeiras, ninfas e sereias, mas que atraem também os huma nos para a morte. Toma m e ntão o significado perigoso de paraísos ilusórios. exaltada; [...] Simboliza m as criações da ima ginação 295 Há t rês l endas pass adas j unt o de pegos – o Pego Escuro (L M 5 9), o Pego da C arri ça ( LM 60 ) e o p ego do S erro d as R el í qui as ( LM 21 ). As duas p ri m ei ras t êm um a part i cul ari dad e com u m : ouve s e um a voz , que não é i dent i fi cada com o sendo fem in i na ou m as cul i na, e sabe -se, no fi nal , que pe rt ence a um ( a? ) mouro(a? ) 295 Idem, pág. 397. 239 encant ado (a? ). Na t ercei ra, o pe go com uni ca com o c ast el o por um a vi a subt err ânea. P or não se ver o i ndi ví duo a quem p ert en c e a voz , nas pri m ei ras, e pel a com uni caç ão com o cast el o, na úl t i ma, faz em record ar um out ro sim bol i sm o de “l ago” “o ol ho da Terra po r onde os habi t ant es do m undo subt errâneo podem ver os ho m ens, os ani m ai s, as pl ant as, et c.” 296 Em “Di norah” ( L M 54 ), a m oura “vi u -se t ransform ar em fo nt e e o s eu t rovado r m ud ar -se em l a go”. S ó que não é um l a go com um , es t át i co, passi vo , poi s “desde ent ão a ndam j unt os a corr er par a o m ar”. O ra, com o “ a desci da par a o o ce ano é a r euni ão das águas , o re gresso à i ndi fer en ci ação, o ac esso ao Ni rvan a ” 297 , sabendo que o agent e dest e en cant am e nt o foi o própri o Al á, não é de est ranhar que “t odos os anos, p el a P ri m aver a”, el e l hes m ande “fl ores de am endoei ra p ar a que possam noi var”... Al gum as m our as sã o encant ad as dent ro de poços ( LM 46 e LM 1 7), ou noras ( LM 46 e LM 11 ; em LM 43 e LM 27 , o m our o apare ce pert o da no ra, n ão se sabendo qual a rel a ção ex i stent e, s e el e est á enc ant ado l á ou não ) e a m oura de Gi ões ( L M 21 ) “di z a l enda que el a resi d e l á em ci m a n a ci st erna”; a nor a e a ci st erna, s endo di fer ent es, t ê m , por defi ni ção, a nal ogi a com os po ç os, pel o que são i ncl uí dos no m esm o grupo: O poço reveste-se de um carácter sagrado em todas as tradições: realiza como que uma síntese das três ordens cósmicas: céu, terra, infernos; dos três ele me ntos: a água, a terra e o ar; é um meio vital de comunicação. É també m um microcosmo, ou sínte se cósmica. Faz a comunicação com a morada dos mortos; o eco cavernoso que sobe dele, os reflexos fugidios da água remexida, que aumentam mais do que esclarecem o mistério. Visto de baixo para cima, é uma luneta astrnómica gigante, apontada do fundo das entranhas da terra 296 297 Ibidem. Idem, pp. 569 e 570. 240 para o pólo celeste. Este complexo faz uma escada de salvação ligando entre si os três estádios do mundo (CHAS, 152). O poço é o símbolo da abundância e a fonte d a vida [...] é, por outro lado, um símbolo de segredo, de dissimulação, princip alme nte d a verdade, que, como se sabe, sai dele n u [ a ] . 298 Em E LAP / M 8, t oda a hi st óri a s e pass a j unt o e por causa de um poço di fer ent e: “u m espaço r edondo ent re ro chedos, pa r eci do com um poço e, quando a m aré est á chei a e o m ar agi t ado, as ondas ent ram por bai x o e sobem poço a ci m a produz i ndo um ruí do m edonho.” Ve rem os , depoi s, t am bém a s i m bol ogi a buraco e do mar . Out ras, ai nda, sã o encant ad as em ri os ( LM 47 e LM 12 ). Em LM 33 e em LM 36 , os en cont ros d ão -s e nas m ar gens dos r i os, não s e s abendo qual a r el ação ent r e est es m ouros e os resp ect i vos ri os (em LM 33 , Di ogo vê o t esouro do pai da m oura, de que e l a se di z gua rdi ã, por um a “p equena abert ur a na m argem do ri o”): O simbolismo do rio, do fluir das suas águas, é ao mesmo te mpo o da possibilida de universal e o da flu idez das formas (F. Schuon) , o da fertilida de, da morte e da re no vação. A corrente é a da vida e da morte. [...] Descendo as mo ntanha s, insinuando -se através dos vales, perdendo -se nos la gos ou nos mar es, o rio simboliza a e xistência humana e o seu curso com a sucessão dos desejos, sentimentos, das intenções, e a variedade dos seus desvios. dos 299 Não é di fí ci l assoc i ar est a i dei a à da t ri st e sort e das m ouras que, num revés do j ogo da vi da, vi ram a sua sort e m udar d e form a t ão i nesperad a com o i m previ sí vel será o seu fut uro. 298 299 Idem, pág. 532. Idem, pp. 569 e 570. 241 Na “ Lenda do F al so J uram ent o” ( L M 36 ) , J oana vê a i m agem do m ouro encant ado r ef l ect i da nas á guas do ri o, com o num espe l ho: É verdade que o reflexo da luz ou da realidade não muda a natureza, mas co mporta um certo aspecto de ilusão ( apanhar a Lua na água) e de mentira em relação ao Princípio. Existe uma identidade na diferença, dizem os textos hindus: a luz reflete-se na água, mas na realidade não a penetra; [...] Por outro lado, o espelho dá uma imagem invertida da realidade: É como se aquilo que está em cima estivesse em baixo, diz a Tábua de Esmeralda her mética, mas e m se ntido inverso. A ma nife stação é o refle xo invertido do Princípio: [...]. 300 Tam bém o fal so j ur am ent o do m ouro ( e o t í t ul o, só po r s i , j á t raduz um a cont r adi ção) é, d e cert a fo r m a, um a i nv ersão d os seus val ores m orai s e rel i gi osos, e por i sso é cast i gado. 2.1.1. 2 . TR AVES S IA Nas t rês ve rsões da l enda da m oura C á ssi m a ( L M 40 , LM 50 e LM 3 ), o ca rpi nt ei r o de Loul é sal t a, d e cost as, sobr e “um al gui da r chei o de á gua” e é t ransport ado , m i st eri osam ent e , “po r ares e vent os”, at rav essan do “os ares com o u m a á gui a”, por ci m a do Mar M edi t errân ei o . Ora, o “al gui dar com á gu a” é o “vaso”: O vaso alquímico e o vaso her mético signi fica m se mpre o local onde as maravilhas se operam; é o seio materno, o útero no qual se for ma um novo nascimento. Por isso esta crença que o vaso conté m o segredo das meta mor foses. O vaso encerra sob formas diferentes o elixir da vida: é um reservatório de vida. [...] 300 Idem, p. 301. 242 O facto de o vaso ser aberto receptividade às influências celestes. em cima indica uma 301 R essal vando, nat ur al m ent e, as di fer en ças ex i st ent es ent re os doi s obj ect os, é, a i nda assi m , not óri a, a sem el hanç a en t re est e s i m bol i sm o e a função ex e rci da pel o al gui dar, na l enda. C ont i nuando com a m oura C ássi m a, em L M 50 e LM 3 , o m es m o carpi nt ei ro, ao sal t ar m ai s t arde um a “val et a que i a chei a d e águ a”, vol t a a p assa r por um a ex peri ênc i a sem el hant e, dest a vez “à vel oci dade d e um t ufão”. Ai nda q ue e m pont o m ui t o pequeno, t al com o o nom e i ndi ca, um a “val et a” nã o dei x a de ser um “val e” . Di fere, port ant o, do al gui d ar, n a m edi d a em qu e a su a á gu a est á em m ovi m ent o, t endo e m com um o fact o d e ser em am bos ab e rt os por ci m a. Em L M 44 e LM 25 , a est rad a on de est á ent er rado o “t acho do t es ouro” é l i m i t ada por “doi s val ados ” ( m ai ores do que “as val et as” , ai nda que pequ enos são t am bém “val es” ); da m esm a nat ur ez a é “um re go sem curvas, o m ai s di rei t o que possas” que, em L M 7 , é pedi do ao rapaz ”: […] Primeira me nte, o vale é vazio e aberto e m cima , portanto, receptivo às influências celestes ( Tao, 15); o vale é uma cavidade, um ca na l, para o qual converge m necessaria me nte as águas vindas das alturas que o rodeiam. 302 S ão, ent ão, com uns a t odos os m ot i vos l i gados à á gu a, o fa ct o de ser em “ab ert os em ci m a”, po r conse gui nt e, “ rec e pt i vos às i nfl uênci as cel est es”, e repr esent a rem o út ero m at erno, no sei o do qual se oper am t ransf ormações mi l agrosas . R ecorrendo , ai nda, à “Moura C ássi m a” , em am bos os casos o carpi nt ei ro sal t a , em bora em ci rcuns t ânci as di ferent es, pri m ei ro s obre o al gui dar, d e poi s sobre a val et a ( em L M 50 e LM 3 ): 301 302 Idem, pp. 677. Idem, p. 675. 243 Para os celtas, o salto é uma proeza guerreira, e faz parte dos recursos do herói quer para fugir do seu adversário quer para o derrotar. [...] No entanto, noutras tradições, os saltos fazem parte de alguma s cerimónia s litúrgica s ; são, então, símbolo da a scensão celeste. 303 Ora, ao sal t ar sobre , o carpi nt ei ro at ravessa, passa para o out r o l ado , quer do al gui da r, quer d a val et a, e d est as pequenas t raves si as r esul t am out ras m ui t o m ai ores, de Tân ger p ara Loul é e vi ce-ve rsa ( “at r ave ssava os m ar es co m o um a á gui a” – LM 50 ; “at rav essava com o u m a águi a os a res e s al t ava os m ares” – LM 3), o que t am bém assum e um si gni fi cado próp ri o: [...] a travessia é a de um obstáculo que separa dois domínios, dois incondicionado, estados: o vinculação. [...] mundo o mundo fenomenal dos sentidos e o e estado o estado de não- o estado que está para lá do ser e do não -ser […] é simbolizado […] ainda pela água corrente sem espum a. 2.1.2. 304 A TERRA Opondo -se “ao c éu , com o o p ri n cíp io p assi vo se opõe ao act i vo ; o asp ec to f e mi n i n o ao aspect o m ascul i no da m ani fest aç ão” 305, a t e rra é, m ai s um a ve z , um sí m bol o da função m at ernal : Ela dá e tira a vida. [...] Identificada com a mãe, a terr a é um símbolo de fecundidade e de regeneração. Ela dá à luz todos os seres, 303 304 305 Idem, p. 584. Idem, p. 570. Idem, p. 642. 244 alime nta -os, depois recebe deles nova me nte o germe fec undo (Ésquilo, Coéforas, 127 -128). 306 Tam bém só há um a l enda em que t emos a cert ez a de que a m oura foi enc ant ad a na t erra , “ent er ra da” – é “O C i nt o da Moura ” ( LM 45 e LM 31 ): Existe m enterros simbólicos, análogos à imersão ba ptismal, quer para curar e fortificar, quer para satisfazer ritos iniciáticos. A ideia é se mpre a me sma: re generar atra vés do contacto co m a s forças da t erra, morrer para uma for ma de vida para renascer para outra for ma. 307 Igu al m ent e “ ent er ra do” est á o t a cho de L M 44 , s endo pr e ci so “es cav ar ” par a enco nt rá -l o. Em LM 61, “havi a um pequeno m ont e de t erra, qu e pa reci a ser t odos os di a s revol vi da”, e “q uando a l i che gar am abri u -se um a port a” que deu passagem para “um a ri quí ssi m a sal a, forrada d e sedas bo rdadas a ouro ”. O m esm o acont ec e em L M 38 , LM 48 e LM 13 – a m oura “bat eu na t er ra. Um a vez . Duas vez es. Três vez es. E l ogo se abri u um al çapã o”, cuj a pas s a gem “ os l evou a um a sal a enorm e chei a de ouro por t odos os l ados”. Tam bém em LM 42 e LM 24 , a cobri nh a, “ com a m ul her at rás ”, “ ent ra ram a m bas por um a abert ura que havi a n a ba rrei ra d e t erra ” que, t al com o e m m ui t as out ras lendas , vai dar a um “pal áci o s ubt errân eo ”, on de ex i st e um “t esouro ent err ado ”, cuj a si m bol ogi a apresent arem os adi a nt e. Não se sab e com o f oi encant ad a (ap ena s que vi ve num pal áci o “debai x o da t e rra ”, sob um a p edr a), m as a m our a d a S erra de M onchi que ( L M 35 ) pede ao p escado r Ant óni o que l he l eve “um pedaço d e t er ra ond e est á a t ua c asa. O ut rora e ra aí um a m esqui t a.” (es t e “peda ço d e t e r ra” pode s er, aqui , sí m bol o d o car áct e r sa gra do 306 307 Idem, p. 642. Ibidem. 245 do l ugar, ou, po r se t rat ar d e um sí t i o onde t i nha ex i sti do um a m es qui t a, um a m anei ra de revi ve r o ri t ual sagr ado d a ora ção, que acont eci a nesse l u gar , com o se a ener gi a, l i bert ada aqu an do desse ri t ual , se t i vesse ac um ul ado no l ocal , t ornando a t e rra, d e al gum a form a, sa gr ada, i st o é, port adora d essa ener gi a, ou si m pl es m ent e um com ponent e de um q ual quer f ei t i ço ). Li gad o à t e rra , m as opondo -se a el a, t e m os o buraco (que, por vez es, funci ona com o vi a de com uni ca çã o, passa gem subt er r ânea) : Símbolo da abertura pa ra o desconhecido: o q ue desemboca no outro lado [...] O buraco permite que uma linha passe através de outra linha (coordenadas do plano dimensional )... (VIRI, 44). No plano do imaginário, o buraco é mais rico de significado que o simples vazio: é ple na me nte c heio de todas as potencialidades daquilo que pode preencher ou passar pela sua abertura; é como a espera ou a repentina revelação de uma prese nça. [...] aparece como o símbolo de todas as virtualidades. 308 Em LM 46 e LM 1 1 , um a “enorm e se r pent e”, supost am ent e, a m oura encant ada, ap arec e “vi nda de um buraco que com uni c ava par a a nora ”; em L M 42 e LM 24 , “ent r ar am am bas por um a abe rt ura que havi a na b arr ei ra d e t erra ”; em L M 49 e LM 10 , o j ovem gue rrei ro vê “ a c abeç a d e u m a cri an ça qu e s e assom ava po r um buraco ” (apesa r de, prov ave l m ent e, se t rat ar de um buraco nas m ur al has do cas t el o, e n ão dent r o da t err a propr i am e nt e di t a); em LM 21 , os doi s am i gos descob rem “ um a com uni cação s ubt errân ea do cast el o para o pego ”; em E LAP / M 8, com o j á referi m o s, a acção passa -se j unt o de um buraco nas roch as, por onde ent ra a águ a do m ar; e em E LAP / M 9, os garot os vi r a m “sai r de u m a f enda que havi a en t re doi s penedos” um casal , “um senhor e um a dam a m ui t o i dosos vest i dos am bos de pret o, de face m a ci l ent a e de ol hos t ão l uz i di os que m ai s pareci am duas al m as do out ro m undo…”. 308 Idem, p. 132. 246 Fi l ha s da t erra , t e m os as rochas – “ O si m bol i sm o do roched o com port a di ve rsos aspect os , dos quai s o m ai s evi dent e é o da i m obi l i dade, do i m ut ável . m ani fest aç ão cósm i ca, [ ...] ” [ ...] 309 P ri ncí pi o a ct i vo, font e da e as pedras – “A pedra brut a é t am bém consi derad a com o andró gi na, const i t ui ndo a androgi ni a a perfei ç ão do est ad o pri m ordi al . [ ...] As pedras não sã o m assas i nert es; ped ras vi v a s caí das do céu, el a s cont i nuam vi vas d epoi s da queda .” 310 Em LM 34 , “J oana escondeu -s e at rás d e um rochedo”; em L M 3 5, a pedr a sob a q ual vi ve a m oura ap arec e desi gnad a por “pedr a” , “rocha ”, “ro chedo ” e “penedo ”; em L M 37 , J ul i ão “sent a -se num a pedra m ai s al t a”, en quant o espera a ap a ri ção da m oura; em L M 42 , “i m edi at am ent e se l evant ou um a gr ande l aj e”; em L M 43 , o m ouro “l evant ou um a gran de l aj e que havi a no chão”; e em L M 21 , os am i gos “dei t ar am -s e sobre um a grand e l aj e, qu e ex i st e à bei ra do pego ” e, a c ert a al t ura, um del es vi u “j á sent ada na bei r a da l aj e um a l i nda m eni na” ; em LM 39 , ant e s de desapa rec er, a j ovem t ransform ou -se num a “e st át ua ”, um a “c ast el ã de pedr a ”; t a m bém em E LM 39 m ã e e fi l ho est ão enc ant ado s em est át u as de p edra que abrem os ol hos ao mei o -di a e à m ei a -noi t e; e as pedras dos mol edros s ão t al vez o m el hor ex em pl o de que as pedras cont i nuam vi v as , poi s des l ocam -se, sendo encant ament os de sol dados; e m ELAP / M 6 , O gat o, d epoi s de m o rt o, é at i r ado dum a fal ési a; em E LAP / M 8 , o pes cador est av a “se nt ado sobre um ro c hedo onde só el e m al cabi a”, num dos cant os do La redo, ch ei o de r ochas “que, p el a er osão, se des penca ram d as al t as fal ési as ”; e em E LAP / M 9 , no m es m o cant o d a m esm a pr ai a, vi ram os garot os o c asal sai r “d e um a f enda que havi a ent re doi s pe nedos”, t endo ve ri f i cado, no di a s e gui nt e, que não havi a “si nal d e qual quer ent rad a” na re feri d a f enda, que “ ao fundo, era só roch a , só fraga…”. Al gu ns dest es ex em pl os t êm um a part i cul ari dad e com um : são roch as (ou pedras) que s e en co nt ram e m t errenos el evados, c uj a si m bol ogi a ver e m os adi ant e. 309 310 Idem, pp. 570 e 571. Idem, p. 510. 247 2 . 1 . 2.1. LOC A IS Os poços, as no ras, os val ados, os b ar rancos e os pe gos são l ocai s onde, por di f erent es raz ões, se d á (ou d eu) a j unção dos doi s el ement os, água e t erra , porque sendo covas, bur acos, cont êm á gua, pel o que o seu si m bol i sm o é dupl o. Igu al m ent e dupl o é o si m bol i sm o da prai a, e pel as m esm as raz ões, acr esc ent and o -se o fa ct o de se t r at ar da á gua do m a r. T udo sai do mar e a ele regress a: lugar de na scime ntos, transfor mações e re nascime ntos. Água s e m movime nto, o mar simboliza um e stado transitório e ntre as possibilidades ainda infor mais e as realidades for mais, uma situação de a mbivalê ncia, que é a da incerteza, da dúvida , da indecisão, e que pode terminar be m ou mal . ” 311 Foi n a p rai a de Bur gau que o corr er am os t rê s epi sódi os ci t ados at rás ( E LAP / M 6 , E LAP / M 8 e E LAP / M 9). É, t al vez , de sal i ent ar que, no epi sódi o do “gat arr ão pret o”, est e foi at i rado da fal ési a, di fi ci l m ent e não cai ndo de nt ro de á gu a. Al guns m ouros en c ant ados vi vem em covas, grut as, fur nas, bur acos de v ári os t i pos, que t êm cons i derad a com o desi gna ção o si m bol i sm o da gené r i ca – “Arquét i po caverna , do út ero m at erno, a c avern a f i gura nos m i t os de o ri gem , de ren asci m e nt o e de i ni ci ação de m ui t os povos.” O cará ct er prot e ct or 312 e ocul t ador da caverna ve ri fi ca -se, s obret udo, nas se gui nt es si t uações: em L M 34 , J oana, apavorada , corre a esconde r os fi l hos “num a grut a próx i m a”; em L M 42 e LM 2 4, a m ul her esconde a sua fort una, dur a nt e os t rês m eses ex i gi dos, “dent ro de um vaz i o que fi cav a por deb ai x o das m ós de um pequeno 311 312 Idem, p. 439. Idem, p. 177. 248 m oi nho”; em LM 2 6 , o hom em esper a que anoi t eç a, “ esco ndi do em um a furna”, pa ra ap anhar uns pei x es vivos; e em L M 28 , “ o pobre hom em t ransport ou durant e a noi t e t od o s os val ores p ar a o fundo de um ocul t o barran co” . A ca verna ta mbé m é considerada como um gigantesco receptáculo de energia , mas d uma e nergia telúrica e não cele ste. E assim, dese mpe nho u e dese mpenha um pa pel nas operações mágicas. [...] É propícia às iniciações, ao enterro simulado, às cerimónias que rodeiam a imposição do ser mágico . [...] Põe em comunicação o primitivo com as forças ctonianas (divindades que residem no interior da terra) da morte e da germinação (AMAG, 150). 313 Em LM 34 , a m oura est á pr esa num a “cova de t err a e ar ei a”; em LM 35 , a m oura vi ve num pal áci o su bt errân eo, t al com o a m oura de LM 38 , LM 48 e LM 13 ; em LM 42 e LM 24 , “a cobri nha di ri gi u s e, ent ão, par a o b a rranco ” e “ ent rar am am bas po r um a abe rt ura qu e havi a na barr ei ra de t erra ” , abri ndo - se um a passagem por onde apare ceu “um m ouri nho m ui t o engraç ad o”; em L M 59 , ouve -se um a voz que vem do “ fu ndo do pe go” (cuj as á guas s e t i nham “di vi di do”); em LM 8 (e LM 52 ), “m et eu -s e a d am a por um a furn a se gui da pel a l avrador a”, vendo -s e est a “à port a de um pal áci o, e nel e ent rou”, encont rando -se “ cer cada de di ve rsas pes soas de am bos os sex os, que s e er gue ram à sua c hegada ” e r econhe c endo “pel os t raj es q ue t i nha na s ua presen ça m ouros e m ouras enca nt adas”; e em L M 2 1 , “di z a l enda” que a moura enc ant ada “vi ve n a ci st erna”. [...] o carácter subterrâneo da caverna é objecto de várias interpretações secundá rias; abriga os mineiros, os anões, os guardiães dos tesouros escondidos que são perigosas entidades 313 Idem, p. 178. 249 psíquicas, muitas vezes relacionadas com o as pecto nefasto da metalurgia.” 314 Em LM 33 , o t esou r o do rei m ouro est á ent err ado e a m our a di z a Di o go que esprei t e por um a “pequ ena abert ur a na m ar ge m do ri o”; em LM 38 , LM 48 e LM 13 , “a m oura b at eu com o seu pequ eni no pé no s ol o por t rês vezes” e, “ao m esm o t em po, abri u -se um a port a pel a qual am bos ent rara m ”, i ndo dar a um a “am pl a sal a de p aredes e col unas de ouro m a ci ço”; em L M 42 e LM 24 , o m ouri nho “pedi u à m ul her que o acom panhasse ao seu pal áci o subt errân eo”, l evando - a a um a “i m ensa grut a de cri st al de rocha onde vi u am ontoada um a ri quez a i nfi nda”; em L M 43 e LM 27 , o m ouro “l evant ou um a grand e l aj e que havi a no c hão”, “pondo a des cobert o um a i m ens a ri quez a em ouro e j ói as ”; e m L M 44 e LM 25 , com o j á r efe ri m os , o t acho cont endo o t esouro encont ra -se ent er rad o num det erm i nado l ocal de um a est rad a l i m i t ada por doi s val ados; em L M 61 , l o go que a m ul her e o m oi ri nho chega ram ao l uga r “onde apare ci a o t erreno t odos os di as revol vi do”, “ab ri u -se um a port a” e “foram dar a um a ri quí ssi m a s al a, forrad a de se da s bordadas a our o”; e em L M 21 , al ude -se a “grandes e val i osos t esouros” ent er rad os no S erro das R el í qui as, “ri quez as deposi t ad as na part e subt err â nea do c ast el o”. [...] O carácter central da caverna faz dela o lugar do nascime nto e da regeneração; d e iniciação ta mbé m, que é um novo nascimento, ao qual conduzem as provas do labirinto, que geralme nte precede a caverna. 315 Há, de f act o, ger al m ent e, um percurso , m ai s ou m enos si nuoso, m ai s l ongo ou m ai s curt o, com m ai s ou m enos escadari as, ou m ai s ou m enos mági co , que conduz à cav e rna , especi al m ent e se est a encer ra um t esouro ou um pal á ci o subt errân eo: em L M 42 (em LM 314 315 Idem, p. 180. Ibidem. 250 2 4, não é t ão po rm enori z ado) – “Ent r a ram am bos por um a abert ur a que havi a na bar r ei ra d e t e rra. Im e di at am ent e se l ev a nt ou um a gr ande l aj e que d ei x ou ver um a m agní fi ca esc ada de al ab ast ro” e, em se gui da, a m u l her “des ceu as e scadas at rás do m ouri nho. C hegad a ao fi n al d a es cada ri a, d esem b ocou num a i m ens a grut a de cri s t al de roch a”; e m L M 44 e LM 25 , a “est rad a que vai d ar ao sí t i o da R ocha” é o “c a m i nho” que conduz ao t acho ent err ado (t al com o a “es t rad a de Borb a”, em LM 32 , conduz à “m e ni na” e, cons equent em ent e, à ri quez a); em L M 46 e LM 11 – “a ssi m que as s ent ou os pés no fundo, apar ec eu -l he um a enorm e se rpen t e, vi nda de um bura co qu e c om uni cava pa ra a n ora”; em L M 48 ( em LM 38 e LM 13 o c am i nho não é t ão l on go) – “ Abri u -se ent ão um a port a pel a qual ent ra ram , d esc endo em s e gui da u m a esc adari a de m á rm ore qu e pareci a não t er fi m . E quando chegara m ao fi nal da esca da, J osé C oi m bra abri u a bo ca de pu ro esp ant o, porque des em boca ra num a s al a enorm e, de p ar edes e col unas d e ouro m aci ço.”; em L M 61 – “ Lo go que al i che garam [ ao l u gar ond e apa reci a a t err a r evol vi da t odos os di as] , abriu -se um a port a e am bos ent raram desc endo por uns degraus d e fi no j aspe, at é um a sal a , forrad a de seda b ordada a ouro.”; em LM 59 – “vi ram t am bem que a a gua do pe go se abri ra, dando assi m f aci l e nt rada á va cca ” e , u m ano depoi s, “a a gua abri u s e, e os ani m aes ent raram ”; em L M 7 , não se che ga a saber o que se encont ra ri a nos Pal mei ros , m as o rapaz t eri a de t raçar um cami nho at é l á – “J unge -os ao ar ado e t i ra o r e go d a i gr ej a d e S al i r at é aos P al m ei ros: um re go sem curvas, o m ai s di rei t o que possas.” ; em L M 8 (e LM 52 ) – “Teri am andado um qui l óm et ro, m et eu -se a dam a por um a furna s e g ui da pel a l avrado ra. Mo m ent os depoi s vi u -se est a à port a de um p al áci o , e n el e ent rou i m pe l i da pel a d am a.”; e m L M 21 – os doi s am i gos deduz em , pri m ei ro (“P ort ant o há um a com uni cação ocul t a”), p ara depoi s concl uí rem qu e “h avi a r eal m ent e com uni cação do cast e l o par a o pe go”. 251 É a dorm i r sobre a t erra qu e se en cont ra o i ndi ví duo que at i ra o gat o pel a f al ési a ab ai x o 316 , que depoi s aparec e, no di a segu i nt e, a s ervi r -l he de t r aves sei ro (em E LAP / M 6). E é da t err a, no S erro de C anel as, que sa em os doi s m em bros do cas al avi st ado a p a ssear n a prai a, com roup a gen s ant i gas, vol t ando a ent ra r nel a, d esap arec endo s em dei x ar si nal (e m E LAP / M 9). É na t err a, sobret u do nas encruzi l had as , que se dão os maus encont ros: com bru xas ou f ei t i ceri as , c om medos ou al mas penadas e at é com l obi some ns . Mas t am bém co m l adrões, que, n ã o sendo ent i dades m í t i cas, nem por i sso dei x am de povoar o i m agi ná ri o col ect i vo, as s ust ador. repr esen t ando 317 um peri go di ferent e m as i gual m ent e E os l obi somens correm “por m ont es e val es” e “es poj am -se n as enc ruz i l hadas” durant e a m et am orfose. Lugares epifânicos (lugares de aparições e de revelações) por excelência, as encruzilhadas são asso mbra das pelos espíritos, geralme nte a terradores, co m que o ho me m e stá interessado e m reconciliar-se. Em todas as tradições se ergueram obeliscos, altares, pedras, capelas e inscrições nas encruzilhadas: são um lugar que leva m à parage m e à refle xão . São ta mbé m o lugar de passage m de um mund o para outro, de uma vida para outra, da vida para a morte. 318 Em E LAP / M 7 , é n um a encruzi l hada q ue a bur ri nha br anc a da avó do nar rador est aca e se r ecus a a av ançar, at é qu e a do na rez a o 316 Q u a l q u e r falésia está sobre o mar, mas e m Burgau as falésia s são muito altas, pelo que, se o gato não estivesse já morto, teria morrido aos tombos, por ela abaixo, ou podia facilmente morrer afogado, a me nos que a maré estivesse muito vazia, ou nas rochas junto ao mar. 317 Em Burgau, na estrada que liga esta povoação à Estrada Nacional 125, cha mada “Ra mal de Barão”, com cerca de 2K m de comprimento, existe m dois locais, a mbos com o aspecto de “barrancos”, e m lados opostos da estrada, não muito distantes um do outro – a “Cova da Areia” (referida e m LO2) e a “Cova dos Ladrões” – onde, ainda há poucos anos (antes de terem sido construídas urbanizações aí perto, e quando ainda havia bastante vegetação que e ncobria as covas), toda a ge nte tinha medo de passar , pois era voz corrente que eram albergue de medos e de ladrões. 318 Idem, pp. 283. 252 t ercei ro credo e m c ruz , ouvi ndo, em segui da, um a voz que l he di z “A t ua fé t e sal vou! ”. Mas t am bém se dão bo ns encont ros: Não terá sido por um desígnio de conjuração, de sacrifício expiatório, de imploração, que o mundo cristão espalhou pelas encruzilhadas as cruzes, as alminhas, as estátuas da Virgem Maria e dos santos, os oratórios e as capelas onde, em certos países, as velas ardem incessantemente? A encruzilhada pode ter, de facto, um aspecto benéfico: é o lugar onde se reencontra a luz, onde aparecem também os bons espíritos, as fadas boas, a Virgem Maria ou os santos. 319 2 . 1 . 2.2. E LEV AÇ ÕES Encont ram os vari a dos graus de al t it ude , com eçando pel o out ei ro : [ . . . ] a c o l i n a é a p r i m e i r a ma n i f e s t a ç ã o d a c r i a ç ã o d o mundo: suficientemente saliente para se diferenciar do caos inicial, não te m a majestos idade da monta nha. Marca o início de u ma e mergência e da diferenciação. As suas linhas doces har mo niza m-se co m um asp ecto do sagrado que está na medida do ho me m. Nas 320 l endas de mouras encant ada s , as el eva ções t êm , frequent em ent e, ob j ect i vos est rat é gi co s, o que n ão é, de m odo al gum ( at é pel o c ont rári o), i m pedi t i vo da rel a ção que se possa es t abel ec er com os vári os si m bo l i sm os. É o caso d e L M 40 : os m ouros, “ gui ados p el o govern ador d e Loul é, t om am a di r ecç ão de um out ei ro que fi ca sobrancei ro ao sí t i o dos Furadou ros. Do al t o, j á 319 320 Idem, p. 285. Idem, p. 211. 253 podem ver os sol dados cri st ãos de D. P ai o P eres C orrei a, que se prepar am t am bém para a l ut a gi gant esca” e, no di a segui nt e, “as pri m ei ras l um i nosi dades da m anhã b oni t a de P ri m aver a dei x am des cobri r no out ei r o vi z i nho, um cabeço am pl o e desanu vi ado, os com panhei ros do fa m oso D. P ai o P eres C orrei a, m est r e da Ordem de S ant ’ Ia go.”; e o de L M 51 – “ as m ul h eres, ent ret ant o, se gui ram à frent e, pa ra o ce rro da P ena, onde for a m ont ado um aca m pam ent o i m provi sado” – e LM 6 : o governador “corr eu por sobre o Serro da Pena e foi col o car -se no pont o de onde podi a ver os m uros” . Menos pra gm át i co é o ex em pl o de L M 21 , em que os doi s am i gos, cum pri ndo um a t radi ção, resol veram “em honr a e l ouvor de S . J oão, i r t om ar banho em um grande p ego, que ex i st e no serro das Rel í qui as ”. P or coi nci dênci a (o u não...), o caso m a i s poét i co é o d e L M 35 : quando encont rou a m oura, Ant óni o subi a a serra de Monchi que e “cam i nhav a ao ac as o, esqueci do que t e r i a de vol t ar par a t r á s e que a noi t e poderi a surpr eendê -l o no cam i nh o. Ia de ol hos per di dos na l i nha arredond ada do hori z ont e. Sonhava coi sas fan t ást i cas confusas”. O simbolismo da mo ntanha é múltiplo: está ligado ao da altura e d o centro. Na medi da e m q ue e la é alta, vertical, elevada, próxima do céu, participa do simbolismo da transce ndência; na me dida em que é o centro de hierofania s atmosféricas e de numerosas teofa nias, particip a do simbolismo da manife stação. Ela é , assim, o encontro do céu e da terra, morada dos deuse s e ter mo da ascensão humana. [...] A mo ntanha e xprime ta mbé m as noções de e stabilidade, de imutabilidade, por vezes até de pureza. 321 321 Idem, p. 456. 254 e 2 . 1 . 2.3. C ONS TR UÇ ÕES Mas não é só n a m o nt anha que se procu ram as al t ur as. Tam bém no cast el o, em L M 39 , “do al t o das a m ei as, o al cai de do cast el o, Aben - Fabi l l a, ol hav a at óni t o pa ra o ex é rci t o fort e e di sci pl i nado que s e esprai ava pel a pl aní ci e em frent e ” e, m ai s t arde, “subi u ao pont o m ai s al t o do m onte onde se refu gi a r a” e, procu rando a fi l ha, “avi st ou ao l on ge a sua fi gura d el i cad a, bat i da pel os rest os do sol da t arde, no al t o da t orre do cast el o”; nes se m esm o l ocal , “co m a m ã o di rei t a t raçou no e spaço o si gno S ai m ão em di re cç ão ao vul t o da fi l ha. Depoi s di sse um as pal avr as m i st e ri osas – e t udo se c onsum ou no m esm o i nst ant e...”. Em L M 40 , “que m fi ca de at al ai a n e ssa noi t e é el e próp ri o, o vel ho gove rnador d e Loul é. Mal conse gue aqui et ar s uas fi l has, sobe a o pont o m ai s al t o do cast el o. Mant é m -se al i durant e cert o t em po , t ent ando rom per a escuri d ão com a i n si st ênci a do s eu ol har. Todo s os seus sent i dos est ão em gua rda, r egi st ando qual quer porm enor, por i nsi gni fi cant e que pareç a.”. Em L M 51 , “t odas as noi t es a m ouri nha de S al i r subi a à m ural ha do al các er, onde se dem orav a m ui t as horas, vi rada para Me ca, com o que em êx t ase, i m pl orando ao P ai dos C r ent es m i l bênçãos pa ra o s eu povo.”; em L M 6 , “ t odas as noi t es subi a nos m uros do cast el o e no m ai s al t o el evava ao céu os seus form osos ol hos e i m pl o rava de Al l ah as b ênç ãos p ara o seu povo”. E em L M 21 , “n a p a rt e m ai s el evada dest e s erro ex i st em ai nda hoj e as rui nas de um c ast el o de m ouros”. Símbolo de ascensão e de espiritualização, de assimilação progressiva àquilo que o céu representa: harmonia n as alturas. A altura não é só moralizadora , é já também, por assim dizer, fisicamente moral. A altura é mais que um símbolo. Aquele que a procura, aquele que a imagina com todas as suas forças da imaginação, que é o próprio motor do nosso dinamismo psíquic o, 255 reconhece que ela é material, dinâmica e vitalmente moral ( B A C S , 7 5 ) . 322 Os cast el os são sí m bol os de prot ecção e s e guran ça por ex cel ênci a. Aqui , e ssa se guran ça, ex t eri or, é sem pr e am e açad a e quebrada p el a che ga da dos sol dados port ugueses, e é a prot ecç ão da “t ransc endênci a do espi ri t ual ” que se m ant ém , o “poder m i s t eri oso e i nacessí vel ” de um conheci m ent o que nunca che ga a ser re vel ado, part i ndo para Áf ri ca com os seus det entores, que dei x am at rás de si a prova vi va de se gredos nunca desven dados. Encont ra m -s e em LM 3 3, LM 39 , LM 40 , LM 49 , LM 50 , LM 51 , LM 53 , LM 3, LM 6 , LM 1 0, LM 16 ( “um pré di o acast el ado ”), L M 17 e LM 21 . Na realidade, bem como nos contos e nos sonhos, em geral o castelo situa-se em lugares altos ou na clareira de uma floresta: é um edifício sólido e de acesso difícil. Dá uma sensação de segurança, como a casa em geral, mas uma segurança de um grau elevado. É um símbolo de protecção. Mas a sua própria situação isola-o um pouco no meio dos campos, bosques e colinas. O que ele encerra está separado do resto do mundo, toma um aspecto longínquo, tão inacessível quanto desejável. Por isso o castelo figura e n t r e o s s í m b o l o s d a t r a n s c e n d ê n c i a : [ . . . ] 323 Há r efe rênci as aos muros ou às mural has dos cast el os em L M 5 1 (“subi a à m ural h a do al các er”, “ a fi l ha que dei x ara i nvi sí vel na m ural ha do al cá cer de S al i r” e “p ena e ncant ada nos r est os do m uro do vel ho al cá cer ”) e L M 3 (“subi a nos m uros do cast el o”, “fi ca ra s obre os m uros em oração ” e “no pont o onde podi a ver os m uros”). E a out ros muros em LM 50 (o carpi nt ei ro “sent ou -se en c ost ado ao m uro”), em L M 5 3 (“F át i m a, a m oura enc ant ada, enco st ada ao 322 323 Idem, p. 58. Idem, p. 168. 256 ga r gal o do poço ”) e em L M 3 (“se gu r a pel as m ãos ao ga rgal o da font e, um a form osí s si m a m ul her”). A muralha, ou a grande muralha, é tradicionalme nte a cintura protectora que encerra um mundo e evita que nele penetrem as influências nefastas de origem inferior. Tem o inconveniente de limitar o domínio que ela encerra, mas a vantagem de garantir a sua defesa, deixando, além disso, a via aberta à recepção da influ ência cele ste. [...] Chegaría mo s, assim, ao significado mais funda mental do muro: separação perma necera m; entre ir mãos exilados e separação-fronteira-propriedade aqueles entre que nações, tribos, indivíduos; separação entre famílias; separação entre Deus e a criatura; entre o soberano e o povo; separação entre os o u t r o s e e u . 324 Assi m com o “a casa est á no cent ro do m undo, é a i m agem do 325 uni verso” e repres ent a um a cert a r el a ção com as suas for ças (“é t am bém um sí m bolo fem i ni no, no sent i do de refú gi o, de m ãe , d e prot ecç ão, de sei o m at ernal ” 326), t am bém o pal ác i o t em uma cons t rução “suj ei t a às l ei s d a o ri ent a ção , qu e o i ns crev em num a ordem cósm i ca”, acres cent ando “ as m agni fi c ênci a, o t e souro e o segredo” preci sões 327 que evocam a , i ngredi ent es que est ão s obej am en t e pres ent es nest as l endas, no s seus abundant es p al áci os , quer t érr eos, que r subt errân eos. O palácio é a morada do soberano, o refúgio das riquezas, o lugar dos se gredos. Poder, fortuna, ciência, e le simboliza tudo o que escapa ao co mum dos mortais. [... ] O palácio aparece, portanto, ao mesmo te mpo co mo produto e fonte da har monia, har mo nia ma terial, har mo nia individual, har monia social. 324 325 326 327 328 328 Idem, pp. 463 e 464. Idem, p. 165. Idem, p. 166. Idem, p. 501. Ibidem. 257 S e pensarm os que o cent ro do pal áci o t a m bém é um “ei x o”, que “reúne os t r ês veri fi cam os ní vei s: que o subt errâneo, pal áci o t errest re subt errâneo e adqui re cel e st e ” um a 329 , dupl a s i gni fi ca ção. O ex em pl o que m el hor i l ust ra a m agni f i cênci a e a harm oni a é o úni co pal áci o t érreo descri t o em porm enor, o de L M 54 que, com o t odos os pal á ci os m uçul m anos, é rod eado d e j a rdi ns, ev o cando o Éden: “Vi vi a [ Di norah] num bel í ssi m o pal áci o de m i l col unas fi nas de m árm or e rosa e vent anas de fi l i gr ana d e m ad ei ra, ro deada de cox i ns de sedas col ori das e m aci as com o um roçar de as a d e pom ba. J ardi ns de m aravi l ha, onde bai l avam ex ót i cas danças f l ores de t odo o m undo, havi am sido pl ant ados para e ncant ar os seus ol ho s negros . R i achos t ranspa ren t es rum orej ar de m ú si ca s al t i t avam const ant e. ” de cal hau em cal h au num Encont ram os, ai nd a, um a “res i dên ci a ap al aç a da”, em L M 41 , e “ um est ranho p rédi o al t o”, em LM 43 e LM 27 , a que é confer i do o t í t ul o de “O P aláci o sem P ort as”. Ai nda no âm bi t o das const ruções , em bora não est ej a di rect am ent e r el aci onado com o pal áci o, t em os o moi nho , sí m bol o de t ransfo rm ação e de r eor gani z aç ão , pel a própri a nat urez a da act i vi dade de qu e é faci l i t ador. A m ou ra Fl ori p es, de L M 37 , est á encant ad a num m oi nho, e é t am b ém n um m oi nho que a m ul her de LM 42 e LM 24 esconde, dur ant e t rês m eses, as ri qu ez as que l h e dera o m ouri nho. P al áci os subt errân eos encont r am -se em LM 35 , LM 36 (“pal á ci o que há po r debai x o do ri o”), L M 38 , LM 42 , LM 46 (“est a nora, onde m andei c onst rui r o t eu p al ác i o”), L M 48 , LM 52 , LM 53 (“pal á ci o enc ant ado ”), LM 8 , LM 11 , LM 13 , LM 17 e LM 24 . Tal vez m ai s pequ en a ou m enos grandi os a, m as t am b ém subt errân ea e não m en os sum pt uosa, é a sal a ap al açada de LM 6 1 : “um a ri quí ssi m a sal a, forr ada de sed as bord ad as a ouro”. 329 Idem p. 501 258 O acesso com pre en de, por vez es, um a escadari a (em LM 38 , LM 42 , LM 48, LM 61 , LM 13 e LM 24 ) : A e scadaria é o símb olo da progressão e m direcção ao saber, da ascensão em direcção ao conhecimento e à transfiguração. [...] quando penetra no subsolo, trata -se do saber oculto e das profundidades do inconsciente. [...] Participa do simbolismo do eixo do mundo, da verticalidade e da espiral. [ ...] Co mo todos os sí mbolos deste tipo, a escadaria també m se reveste de um aspecto negativo: a descida, a queda, o regresso ao terra-a-terra e até mesmo ao mundo subterrâneo. Porque a escadaria liga os três mundos cósmicos e presta -se tanto à regressão co mo à a sce nsão; a escadaria resume todo o dra ma da verticalidade. Dos 330 cast el os aos pal áci os subt err âneos, p assando pel as m ural has e pel as esc adari as, r essal t a a i dei a de re ci nt o : Trata-se essencialmente de um lugar fechado de uma maneira qualquer (muro, fosso ou paliçada). [...] O recinto é o símb olo da reserva intransponível, excepto para o iniciado. sagrada, do lugar 331 2 . 1 . 2.4. OS TES OUR OS Nest es pal áci os e n out ros l ocai s subt errâneos j á m enci ona dos, encont ram -s e escon di dos os t esouros , e é che gad a a a l t ura de rel aci ona r a sua bu sca com o percurso necessá ri o para al c ançá -l os (j á i gu al m ent e r efer i dos): 330 331 Idem, p. 292. Idem, pág. 772. 259 O tesouro oculto [...] é o símbolo da Essênc ia divina não manife stada. É ta mbé m do conhecime nto esotérico. [...] De uma for ma geral, est es tesouros são símbolos do c onhecime nto, d a imortalidade, dos depósitos espirituais, que só uma busca perigosa per mite alca nçar . São, por fi m, gua rdados por dragões ou por monstros, imagens das perigosa s entidades psíquicas , de quem se corre qualificações o e risco as de ser precauções vítima, se não necessárias tiver mos (CORT, as GUER, MALA). O tesouro está, geralmente, no fundo das cavernas ou enterrado em dificuldades subterrâneos. inerentes à Essa sua situação procura, mas simboliza sobretudo as a necessidade de um e sforço huma no. O teso uro nã o é um do m gratuito do céu; é descoberto no final de longas provações. O que confir ma que o te souro oculto é de natureza moral e espiritua l e que as provações, te mpestades, com os os co mbates com salteadores da os mo nstros, estrada, são, com as como os próprios obstáculos, d e ordem moral e esp iritual. O teso uro oculto é o símbolo da vida interior e os mo nstros que o guarda m não são mais do que aspectos de nós mesmos. 332 Todos os t esouros present es n est as l e ndas est ão “o cul t os”. E t odos ex i gem um a “prova çã o ” que, em ger al , co rres ponde ao cum pri m ent o dos pr ecei t os ex i gi dos p ar a os d esenc ant am ent os. Nem t odos est ão, cont udo, em l ocai s subt err âneos, com ou sem águ a, ou s i m pl esm ent e “ent er rados” ( com o em L M 33 , LM 34 (dedu z -se), LM 3 5, LM 36 , LM 38 , LM 42 , LM 4 3 , LM 44 , LM 48 , LM 53 , LM 59 , LM 60 (d eduz -se t a m bém ), LM 61 , LM 13 , LM 17 , LM 21 , LM 24 , LM 25 e LM 27 ) – em LM 45 , é a broa que, ao ser p art i da, se t ransform a em “peç as de ouro”; em L M 47 e LM 12 , a “c ai x a chei a de di nhei ro” est á no fundo do ri o; em L M 7, não se sabe, ap enas que “um a gr ande porç ão de dob rões em ou r o” sal t ou d e um a p edra que rebent ou, m as não e ram est as as “ri que z as de m ui t o m ai s val or [ do que um pent e de ouro] ” que est avam prom et i das; em L M 26 , os doi s 332 Idem, pp. 643 e 644. 260 baús com as “ri quez as” foram l anç ad os na “fo guei r a”; e, em L M 28 , “os doi s baús chei o s de ouro e p edras preci osas” saí r am “ das á guas da font e”. S ej a qual fo r a i nt erpret a ção que q ui serm os dar -l h es, os t es ouros são, i ndi sc ut i vel m ent e e em q ual quer d as si t uaçõ es, um a r ecompensa . E é po r i sso que se t r aduz em , vul garm ent e, e m ouro e pedr as preci osas (t r abal hadas – as j ói as – ou não). No conhecimento secreto , a jóia (bijou), feitas pelas suas ge ma s de luz e pelo s se us metais – principalmente o ouro inalterá vel , da matér ia ma is amadurecida no sentido alquímico do termo, torna-se a expressão da energia primordial, saída do ventre da terra, ctoniana, portanto, [...] as jóias e as suas pedras preciosas, que tantos mitos e lendas ligam ao dragão e à serpente estão, pois, carregadas d e um se gredo de imortalidade , que não é divino, mas sim, ligad o às entranha s deste mundo, […] Pelas sua s pedras, pelo seu metal, pela sua for ma, as jóias simboliza m o conhecimento esotérico. [...] Tendem a passar do plano do conhecime nto secreto ao da energia primordial: pois são energia e luz. 333 Em LM 33 : “ Tant as j ói as! Tant o ou r o! Tant a ri quez a!”; em LM 34 : “t odo o oi ro que t e prom et i ”; em L M 38 : “um a sal a enorm e chei a de ouro por t odos os l ados”, “de st e pal áci o e de t od o o ouro que el e possui ”, “pegou em duas ba rras de ouro e de u -as ao al m ocreve ”; em LM 45 (e LM 31 ): “pa r t i ram a broa e, est a rreci dos, vi ram -na desf az er -s e em peças d e our o”; em L M 48 (e LM 13 ): “pos sui r est e pal áci o, em que o ouro que vês é o que m enos val or t em ”, “di sse -l he at é que l evasse j á cons i go d uas bar ras de o uro”; em LM 43 : “um a i m ensa ri quez a em ouro e j ói as”; em L M 53 e LM 17 : “o ouro, a prat a e a s pedrari as”, “fi gos de ouro qu e ofe re c erá, b em com o as out ras ri quez as”; em L M 61 ): “m ui t os cofres a t ra nsbordar de ouro e p edras p reci osas”; em L M 7: “sal t ando par a o ar um a 333 Idem, p. 389. 261 gr ande po rção de dobrões em ou ro ” (ai nd a que est e s t enham des apar eci do, d evi do à am bi ç ão do r a paz , e não const i t uí s s em o t es ouro prom et i do); e em L M 28 : “doi s baús chei os de ouro e pedras preci osas”. O ouro, c onsiderado na tradi ção co mo o ma is precioso dos metais, é o meta l perfe ito. [...] T em o brilho da luz; [...] T em o carácter ígneo, solar e real, e até divino. Nalguns países, a carne dos deuses é feita de ouro; [...] Além disso, é preciso recordar, a propósito de perfeição, o carácter primordial da Idade de ouro tradicional, enqua nto q ue a s idades seguintes (de prata, bronze e ferro) indicam as etapas descendentes do ciclo. Na tradição grega, o ouro evoca o simbologia : fecundidade-riqueza-dominação, Sol e toda a sua centro a mor-do m, fo go de luz-conhecime nto -irradiaçã o . de calor- 334 Mas, com fr equên ci a, o t esouro ou, pel o m enos, um a pa rt e del e, cons i st e em di nhei ro : em LM 42 : “um a ri quez a i nfi nda, co m post a de m oedas e di v ersas peças de ou ro e prat a e b aús de pedra s preci osas.”; em LM 44 : “o t acho do o uro”, “a cobri r o d i nhei ro”, “t odo o ouro do t a c ho”; em L M 47 , L M 59 e LM 12 : “u m a grand e cai x a chei a de di nh ei ro em ouro”; em L M 7 : “S e nos des e ncant ar es, d o u-t e di nhei ro p ar a com pr ares m ui t os pent es”; em L M 2 1 : “num a cai x a de m ade i ra, cont endo t rez ent a s barras de ouro, de oi t o ar r at ei s cada barr a, e um a j oei ra de m oedas do m esm o m et al .”; em LM 24 : “am ont oada em cofres de oi ro t ant a ri quez a em dinhei ro e pedras pre ci osas”; em L M 25 : “um tacho chei o de di nhei ro em ouro”, “o di nhei ro de que o t acho est a va chei o”; em L M 26 : “nos doi s baús e vi u -os a t ransborda r de m oedas, bar ras de ou ro, j ói as preci osí ssi m as, di a m ant es de gr ande val or, esm er al das de pre ço i ncal cul ável , rubi s e out ros v al ores de subi do pre ço.”; em L M 27 : “um a gr ande po rç ã o de di nhei ro em o uro, e d e j oi as de ex cessi vo 334 Idem, pp. 495 e 496. 262 val or.”; e em L M 32 : “per gunt ou -l he se queri a ser ri ca, [ ...] poi s el a l he dari a t odos os di as 500 réi s par a as c om prar.”. Mas o ouro é um teso uro a mbivale nte. Se o ouro -cor e o ouro-meta l puro são símbolos solares, o ouro-moeda é um símbolo de perversão e de exaltação impura dos desejos (DIES, 172), uma materia liz ação do espiritual degradação do imortal e m mortal. e do estético, uma 335 As moedas , quas e sem pre ref eri das com o sendo d e ouro, m ant êm , nest e cont e x t o, essenci al m ent e, o si m bol ism o do seu val or (“É que as m oeda s ant i gas [ ...] era m carr e gadas d e s í m bol os, part i ndo de i nfl uênc i as espi ri t uai s. Ex i st i a, port ant o, um cont rol o da aut ori dade espi ri t ual sobre concep ção pur am e nt e o v al or quant i t at i va”, das m oedas, que “m ar ca evi d ênci a o esqueci m ent o do si m bol i sm o” 337 [ ...] ” 336), co m t oda “a a , ai nda que m ant endo, event ual m ent e, o do própri o ouro. Apenas em duas l en das, “O P oço do Vaz Varel a” ( L M 53 e LM 1 7) e um a versão d’ “A C obri nha do Barr anco ” ( L M 42 ), se fa z refe rênci a à prat a (“Que nunca à m i nh a fi l ha fal t em os víveres, o ouro, a prat a e as p edrari as no seu pal áci o enc ant ado.” e “di versas peças de ou ro e p rat a”, resp ect i vam ent e ) : T radicionalme nte, co m efeito, por oposição ao ouro, que é o princípio a ctivo, masculino , solar, diurno, ígneo, a prata é princípio passivo, feminino , lunar, aquoso, frio. A sua cor é o branco, sendo o a mare lo a do ouro. [...] O seu no me e m la ti m, argentum, deriva de um vocábulo sânscrito que significa va branco e brilhante. Nã o será por isso de admirar ver este me tal ligado [à] dignidade real. [...] Segundo os mitos egípcios, os 335 336 337 Idem, p. 496. Idem, p 454. Ibidem. 263 ossos dos deuses eram feitos de prata, enquanto que a sua carne era de ouro (POSD, 21). 338 Opost o aos t esouros , m as di rect am ent e associ ado, est á o c a rvão – o s fi gos que as m eni nas ofer ecem , t r ansform am -s e em o uro; m as, em s e gui da, conseq uênci a d a am bi ç ão, da curi osi dad e ou d a i ncúri a , podem vol t a r a t r a nsform ar -s e, dest a vez não em com i da , m as em carvão. S e, por um l ado, no Al garve o carvão é esp eci al m e nt e út i l para a prep ara ção da al i m ent aç ão, vi st o a orl a cost ei ra t er si do s em pre habi t ad a po r pesc adores, nest e s epi sódi os, o que real ç a do carvão é a sua i nut i l i dade par a quem o rec ebe, qu e m ai s não sej a , por oposi ção ao ouro que era cobi ç ado, e por repr ese nt ar um cas t i go. Símbolo do fogo escondido, da energia oculta ; a força do Sol roubada pela terra está enterrada no seu seio; reserva de calor. […] O carvão negro e frio, representa só virtualidades: precisa de uma ce ntelha, de um contacto co m o fogo, para rev elar a sua verdadeira natureza. Realiza, então, a transmutação alquímica do ne gro e m ver me lho. É uma vida extinta q ue nunca poderá reacender-se por si mnesma, se continuar negro. 339 2 . 1 . 2.5. T IP OS DE C ONT IN ENTES DOS TES OUR OS Quase t odos est es val ores se en co nt ram , com o t i vem os oport uni dade de ve r i fi car, dent ro d e arc as , cai xas , baús , cof res : Símbolo fe minino, inte rpretado como uma rep resentação do inconsciente e do corpo materna l , a caixa conté m se mpre um segredo: encerra e separa do mundo o que é precioso, frágil ou 338 339 Idem, p. 541. Idem, p. 165. 264 te mível. [...] Paul Die l liga e s te símbolo [c aixa de Pandora] à e x a l t a ç ã o i ma g i n a t i v a q u e e m p r e s t a a o d e s c o n h e c i d o e n c e r r a d o na caixa todas as riquezas dos nossos desejos e vê nele o poder ilusório de os realizar: origem de tantas desgraças! [...] Quer a caixa seja ricame nte orna me ntada ou muito simples, ela só te m valor simbólico pelo seu conte údo, e abrir uma caixa implica se mpre correr um risco (LOEF). 340 Em LM 40 , LM 50 e LM 3 , são os t r ês pães (qu e, de c ert a form a, são m ai s v al i osos que t odos os t e souros) que s e en cont ram , pri m ei ro, dent ro de um a “cai x a”, no quart o do ex -gove rn ador (em LM 40 , “o vel ho a bre um a a rc a, e del a ret i ra um a c ai x a com t rês pães ”), e d epoi s s ão col oc ados pel o carpi nt ei ro d ent ro de “um a vel ha ar ca ”; em L M 50 e LM 3 , o carpi nt ei ro “t ant as v ez es” abri u a cai x a para “observ a r os t rês pã es”, qu e despert ou a curi osi dade da m ul her que, em LM 40 e LM 3 abre a c ai x a duas vez es (em L M 40 , s ó um a, poi s não chega a i nt erp el ar o m ari do), caus ando a desgraç a de C ássi m a (e quas e a sua). Tal com o o si m bol i sm o da cai xa , “o si mbol i sm o do cofre ap oi a s e em doi s el em en t os: o fa ct o d e aí se d ep osi tar um T esou ro m at eri al ou espi ri t u al ; o fact o d e a abe r t ura do co fre se r eq ui val ent e a um a rev el açã o .” 341 Ora, com o “ a R evel ação di vi na não po de ser l ev i anam ent e d es ve ndada ”, “o cof re n ão pode se r ab ert o senão à hora provi den ci al m ent e pret endi d a, e só po r aquel e qu e possui l egi t i m am ent e a ch ave” 342 . Dest a du al i dade si m ból i ca dão cont a es t as l endas: os t es ouros m at eri ai s gua rdados e dest i nados apenas àquel e s que, depoi s de subm et i dos a al gum a p rova, m ost ra ssem ser m erec edores da re c om pensa, que consi st e na ri quez a, m as t am bém na r evel aç ão qu e a acom panha, nem qu e est a consi st a “ap enas ” no fact o de, ao cont act arem com o d esen c ant ado , t om arem i gual m ent e cons ci ênci a da ex i st ênci a e da v era ci dade dos en cant ame nt os , em que al guns não ac redi t am , t ornando -s e, assi m , de c ert a form a, 340 341 342 Idem, p. 144. Idem, p. 209. Idem, p. 210. 265 t am bém , i ni ci ados , após t erem t om ado part e d e um qual qu er ri t ual cuj a ori gem i gno ra m , m as de qu e fo r am part i ci pant es, a i nda que ex t eri or es e d esconh ecedor es das for ças que o envol v em – “ A Arc a é um s í m bol o do cofre do t esouro, t esour o de conheci m ent o e de vi da. 343 É pri ncí pi o de conservaç ão e de ren asc i m ent o dos seres.” vez que o conheci m ent o é um processo . E uma i rreve rsí vel e com cons equê nci as que nem sem pre v ão ao encont ro dos nossos desej os, al guns i ni ci ados – os que não “ possuem l egi t i m am ent e a chave ”, i s t o é, os que prova ram não ser cap az e s, por qual qu er raz ã o, de se s ubm et erem às prov ações ex i gi das – sã o cast i gados (c om doenças, m ut i l ações di versas ou at é com a m ort e), por t er em t i do acesso ao cof r e e não o t erem des conheci m ent o abert o , assi m i ndescul pável d est a com o aquel es i ncapa ci dade, que, por re vel aram, i ndevi dament e, o se u cont eúdo (com “ e ncant am ent os r edob rados”). 2.1.3. O FOGO O f o g o , n o s r i t o s i n i c i á t i c o s d e mo r t e e r e n a s c i m e n t o , associa-se ao seu princípio antagónico, purificação pelo fogo é comple me ntar da no plano microcósmico (ritos a Água. [...] a purificação pela água, iniciáticos) e no plano macrocósmico [...] . O fogo é ta mbé m, ne sta perspectiva, na medida em que queima e co nso me, regenerescência. um símbolo de purificação e de 344 No corpus an al i sa do, aquel e que no s pare ce s er o m e l hor ex em pl o de puri fi ca ção pel o fo go é o a ct o de quei m a r as r oupas do l obi somem para ac abar co m o seu “f adári o”. Quant o às m ouras encant ad as, a úni ca l enda em que um a m oura é en cant ada no fo go 343 344 Idem, p. 81. Idem, pp. 332 a 333. 266 (“em l abar eda” ) é “O Forno da C al ” ( L M 26 ) e a si m bol ogi a do “forno” reúne o que foi di t o at rás par a a águ a e p ara o fo go: O simbolismo do forno [...] provém dos rituais da metalurgia [...]. A fundição, a esmaltage m, a olaria e a Grande Obra alquímica são q uer casa mentos do yin e do yang, da água e do fogo, da Terra e do Céu, quer retornos ao útero, regressões ao estado e mbrionário tendo e m vista um no vo nas cime nto. O fornilho é o cadinho onde se elabora a união, o seio materno, onde se prepara o ren ascimento . O no me de seio mate rno era expressamente europeus. dado ao forno dos antigos esmaltadores 345 Mas o fo go t am bé m pode ser de d e st rui ção, “obs cure c e e s ufoca com o fum o; quei m a, devor a e d e st rói : o fogo d as pai x ões, do cas t i go e da guer ra” . 346 Em LM 51 , o fo go ex erce a fun ção de m eio de com uni caçã o e si m bol iz a, para os m ouros, a dest ruição e a gue rra: “as at al ai a s rec eber am o al arm e, pel as fo gue i ras das al m en aras m ai s pró x i m as”. Em L M 46 e LM 11 , o desen cant ador , t om ado de “um pâni co sem nom e” ao ve r um a enorm e serp e nt e, foge “a s et e pés”, sem consum ar o desencan t am ent o cuj o processo t i nha i ni ci ado, e fi ca s abendo, di as depoi s, “que a cab ana por el e cons t ruí da fora qu ei m ada i nex pl i cavel m ent e, em cert a noi t e de l uar”. A m oura de Al goz ( L M 34 ), a úni ca com um cará ct er t ot al m ent e m al éfi co , surge do fo go e de sapare ce “desf ei t a e m fum o” e, quer p el a sua e x i gênci a, que r pel o cast i go at roz que prom et e, quer ai nda pel a fo r m a com o é venci da “pel a C ruz do S enhor”, é conot ada com o própri o S at anás. Ai nda em L M 26 , após t erem si do proferi das as pal avr as do encant am ent o, “sai a do forno um a grand e fum arad a, que po r m ui t o t em po quase sufocou o cu ri oso o bservador des t a c ena com ove nt e”, e “quando o fum o se di ssi pou, est ava o 345 346 Idem, p. 336. Idem, p. 333. 267 forno abat i do, apa gad a a l abared a; e m ul as, caval ei ro e cri ado t i nham desapa reci d o com o se t i vessem si do l evados ou a r rast ados pel o fum o do forno ” – conform e a si m bol ogi a, “ o fum o é a i m a gem das rel a ções ent r e a Terra e o C éu”. 347 P orém , para desen c ant ar a m oura en can t ada no fogo é prec i so “que haj a ou apare ça al gu ém que faç a vi r aqui as água s de m ar s al gado ” ( L M 26 ): S e o mar , só por si, “é sí m bol o da di nâm i ca da vi da” (com o j á m eni onám os) , mar sal gado acum u l a o si m bol i sm o do s al : [...] um fogo libertado das águas, ao mesmo te mpo quint a essê ncia e oposição. [...] O sal é ao mesmo te mpo conser vador dos alime ntos e destr uidor p or corrosão. Por isso, o se u símbolo aplica-se tanto à lei das transmutações física s como à lei das transmutações morais resultante o e e espirituais equilíbrio das (Devoucoux). propriedades [...] dos é a seus c o mp o n e n t e s . [ . . . ] s i m b o l i z a t a m b é m a i n c o r r u p t i l i d a d e . [ . . . ] Entre os Gregos, co mo entre os Hebreus ou os Árabes, o sal é o símbolo compartilhado, indestrutível. da e da amizade, palavra da dada, hospitalidade, porque o seu porque sabor é é 348 Encont ram os duas a l usões a l arei ras , obvi am ent e dent ro d e cas a, em E LM O 1 e em LM O 2, qu e rem et em pa ra a i de i a do confort o do l ar (e m bora o “hom em j á de i dade avan ça da” d e E LM O 1 vi vesse so z i nho ), que a m ort e vem dest rui r (ou t ent ar, poi s não sabem os se t erá l evado o hom e m de E LM O 1). Símbolo da vida e m comum, da casa, da uniã o do ho me m e da mulher, da conjugação do fogo e do seu receptácul o. Enquanto centro solar que aproxima os seres, pelo seu calor e pela sua luz – que é ta mbé m o lugar onde se cozinha a co mida – é o centro de 347 348 Idem, p. 453. Idem, p. 582. 268 vida, de vida dada, conser vada e propagada. O lar foi ta mbé m se mpre honrado e m tod as as sociedades; tornou -se um sa ntuário, sobre o qual se pede a protecção de Deus, […]. 2 . 1 . 4. 349 O AR S e ex cept uarm os as l endas em qu e se desconhec e o el em e nt o em que mouros e m ouras foram en cant ados, rest am -nos aq uel as em que o en cant am ent o se deu dent ro ou f ora de c asa, em rep ouso ou em m ovi m ent o, mas no el em ent o nat ural , o ar , “sí mbol o de es pi ri t ual i z ação”, q ue “repr esent a o m undo s u b ti l i nt erm edi ári o 350 ent re o céu e a t erra ” . P aradox al , porque i nt erm édi o, “o el em ent o ar, di z S ão Ma rt i nho, é um sí mb ol o s e n sí vel d a vi d a i n visí vel , um mób i l u n i versal e um p u rif i cad or [ ...] . O ar é o m ei o própri o da l uz , do v o o, do perfum e, da cor, das vi brações i nt erpl an et á ri as; é a vi a de com uni ca ção ent re a t e rra e o c éu .” 351 Mas depoi s de d es encant ad as, as mou ras , quando saem das águ as, é sem pr e nu m est ad o vol át i l , qu e de hum ano só t em o aspect o ex t eri or, “evol ando - se” (“ O ser aér eo é l i vre como o ar e, l onge d e s er evaporado , pa rt i ci pa, pel o cont rári o, das propri edades su b t i s e puras do ar.” 352) e desapar ecendo em segui da (r el at a m as t es t em unhas, quand o as há). É est e ar qu e o c arp i nt ei ro de Loul é at r avessa, t r ansform ad o em águi a, quando sal t a por ci m a do al gui da r com águ a, ao m esm o t em po que at rav essa o Med i t errâneo. É t am bém nest e ar que se desl oc a o cas al avi st ado a pass ea r na prai a de B ur gau ( “t ão l evem e nt e que m al pareci a pi sarem os pés na arei a húm i da ”) e qu e “ent r a” no S e rro de C anel as, e t am bé m o gat o que reap ar e ce d ebai x o da cabeça do s eu pre sum í vel assassi n o. 349 350 351 352 Idem, Idem, Idem, Idem, p. 399. p. 77. pp. 77 e 78 p. 78. 269 Mas, sobret udo, é por onde p assam a s bruxas , com ou sem vas s oura, “po r ci m a dos si l vados”. E che gam os, m ai s u m a vez , à concl us ã o de que, nat u ral m e nt e, os el em ent os est ã o t odos l i gados e nt re si , ai nda que sej am di ferent es, e que est es seres os pa rt i l ham quase sem pre, du m a form a ou de out r a (de ent r e as associ a ções po ssí vei s, só não é fre quent e a rel aç ão ent r e a á gu a e o fo go, por raz õe s óbvi as – m as m esm o assi m , encont ram o -l a n’ “O Forno da C al ”). 2.2. OUTROS MOTIVOS P ara al ém dest es , a s l endas est ão r epl et as de out ros m ot i vos s i m ból i cos, o que c onst i t ui um a das su as ori gi nal i dades, j á que nos depara m os com um a si mbi ose de t rad i ções, ou sej a, m ot i vos de ori gem an cest ral i gu al m ent e usados por cri st ãos e por m uçul m anos e com si m bol i sm os que podem os consi d erar, no m í ni m o, am bí guos. Não se conse gue p erceb er, n a m ai ori a das vez es, se s e t rat a da apr opri açã o de sím bol os i sl âm i cos por part e dos cri st ãos, se de s í m bol os cri st ãos por part e dos m uçul m a nos. P rovavel m ent e, am bas, res ul t ado de um a rel i gi osi dad es, de m út ua quem assi m i l açã o de cr enças, rel i gi ões vi veu sécu l os part i l hando um e m esm o es paço. Ou, ent ão, o ut ras i nfl uênci as ai nda: A língua, ou os seus dialectos originais, os deuses, bem como os seus mitos e lendas, as tradições oraois, os motivos iconográfico s, co mo e spirais, círculos o u cruzes, os se us carros de rodas, certo tipo de jóias – como os torques e as viria –, ou os vasos de cerâ mica o u de metal – co mo os caldeirões – são, afinal, a grande parte dos seus ve stígios e os ele mentos tidos por célticos pelos historiadores. E é no â mbito dessa descrição 270 cultural que ressalta m mais contradições e que a s explicações dos autores «tradiciona is» não satisfaze m. 353 Dada a pro fusão d e m ot i vos present e s nest as l end as e a sua i nt erl i ga ção, de ci di m os agrup á -l os de acordo com as rel açõ es com uns ex i st ent es ent re si , e t rat ado s, depoi s, i ndi vi dual m ent e, quando nec e ssári o. 2 . 2 . 1. A LIMENTOS A úni ca l enda em q ue a água ap are ce c om o al i m ent o é L M 28 , com a ori gi nal i dade de ser al i m ent o da sal sa – “at é que haj a quem nes t e sí t i o sem ei e sal sa r e gada com á gua do m aná, cresç a e fl oresça ”. Out r a c uri osi dade é qu e não se t rat a de u m a água qual quer , m as espec i al , “do m aná”: Este alimento providencial, de que o livro do Êxodo nos conta que os Israelitas benefic iara m mila grosa mente d urante quarenta anos no deserto ( 16), foi desde o princípio o suporte sonhado duma elaboração simbólic a. [...] Alimento celeste, o maná pode ser o trigo do céu e o pão dos anjos (Salmos,78, 24 s.). A ex pressão “á gu a 354 do m an á” é, obvi am ent e, di fí ci l de des codi fi ca r e asso ci ada a qual qu er v i rt ude di vi na: “Vi u l ogo o pobre que a pal avra m aná dev eri a ser t om ada em sent i do cabal í st i co”, de m odo que “foi à próx i m a i gr ej a e p edi u a o pároco l he benz esse um a boa vaz i l ha chei a de águ a” (“ A bênção si gni fi ca um a tran sf erên ci a d e f orças . Aben çoa r quer di z er, na re al i dade, s ant i fi car, f azer san t o pel a pal avra , i st o é, ap rox i m ar do s ant o , que 353 354 Gabriela Morais, A Genética e a Teoria da Continuidade Paleolítica , p. 13. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 434. 271 cons t i t ui a m ai s el e vada fo rm a de ene r gi a cósm i ca.” 355 ). E f oi com es t a águ a, “bent a ”, que regou a sal sa que, em breve, fl oresceu, l i bert ando a j ovem m oura. Há duas versõ es de um a l enda l i gad a ao ri o S eco ( L M 47 e LM 1 2), em que u m do s prec ei t os para o desencant am ent o é “am assa r fi l hós com a á gu a d o ri o”. J á vi m os o poder r e gene rador as soci ado à águ a. Quant o às f i l hós , podem os consi derar qu e são um t i po de bol o cuj a m assa ob edec e a um proc esso de fabri co s em el hant e ao da do pão, t a l com o a bro a de LM 45 e LM 3 1 , ou o bol o de LM 33 , ou os bol i nhos de E LM 5 0, a m enos que co nsi derem os que t an t o bol os com o pães são al i m ent os, com pro cesso s de ex ecu ção p are c i dos, de que resul t a um a m assa t am bém p are ci da, dada a com uni dade dos i ngredi ent e s que a com põem , ent re os quai s o ferm ent o (“ pri ncí pi o act i vo da pani fi c aç ão – sí m bol o de t ransform aç ão espi ri t ual ” 356 ), que não ent ra na com posi ção de m ai s nenhum coz i nhado (pel o m enos confe cci onad o em P ort ugal ), n ão t endo, no ent ant o, os bol os, o cará ct er de “ al i m ent o es senci al ” at ri b uí do ao pão. Em L M 40 , LM 5 0 e LM 3 , é num pão que est á esc ri t o o nom e de cada um a das fi l has do govern ado r de Loul é e, ao c aí rem dent ro d a á gu a da font e onde el as se encont ram en cant ad as, ess es pães i rão d ar o r i gem ao s eu des enc ant am ent o: Se é verdade que nem só de pão vive o homem, no entanto é o no me de pão que se dá à sua alimentação e spiritual, be m co mo ao Cristo eucarístico, o pão da vida. É o pão sagrado da vida eterna de que fala a liturgia. [...] Os próprios pães da proposição dos Hebreus não tinham um significado difere nte . E o pão ázimo – de que se co mpõe a hóstia actual – representa ao mesmo tempo, diz São Martinho, a aflição da privação, a preparação para a purificação e a memória das origens. 355 356 357 357 Idem, p. 119. Idem, p. 503. Ibidem. 272 Vol t em os à m oura de LM 26 , poi s fal t am al guns prec e i t os: “á guas de m ar sal ga do com pei x es vi vos”: O peixe é, be m e nte ndido, o símbolo do ele me nto Água, no qual ele vive. [...] é a ssociado ao nasc ime nto ou à resta uração cíclica. [...] Além disso, fecundidade, em o peixe virtude é da ainda sua símbolo de prodigiosa vida e de faculdade de reprodução e do núme ro infinito dos seus ovos. Símbolo que pode, bem entendido, ser transferido para o plano espiritual. [...] O I s l ã o a s s o c i a i g u a l m e n t e o p e i x e à i d e i a d e f e r t i l i d a d e . 358 Mas não é só: “pei x es vi vos que apanhe e aqui m esm o sej am coz i dos e por esse a l guém com i dos”: Entretanto, na maior i a dos casos, o simbolismo, me smo perma nece ndo estrita mente cristológico , rec ebe uma dimensão um pouco diferente: da do que o peixe é tamb é m um alime nto, e até Cristo ressuscitado o comeu ( Lucas, 24, 42), ele torna-se símbolo do alime nto e ucarístico, onde ele figura freque nte mente ao lado do pão. 359 Out ro al i m ent o i m port ant e é o l ei t e (em LM 42 e LM 24 , é dado l ei t e de cabra a um a cobra, e em L M 59 , são doi s bez erros que são al i m ent ados com l ei t e da m ãe, que foi p ej ada não se s abe co m o, m as deduz -se que por art es m ági cas): […] Primeira bebida e primeiro alimento e m que todos os outros existem em estado potencial, o leite é naturalmente símbolo de abundância, de fertilidade e ta mbé m de conhecimento, entendendo-se esta palavra num sentido esotérico, 358 359 Idem, pp. 515 e 516. Idem, p. 516. 273 e por fim, co mo ca minho de iniciação, símbo lo da imortalidade. [...] Acrescentemos por fim que, co mo todos os ve ctores simbólicos da Vida e do Conhec ime nto to ma dos como valores absolutos, o leite é um símbolo lunar, fe minino por excelência, e ligado à renovação primaveril. 360 E m E LAP / M 6, o r a p a z e s t á “ t o m a n d o c o n t a d e u m a s e c a de figos num almanxar” e são inúmeros os casos de episódios lendários em que uma moura encantada oferece figos aos passantes. A figueira simboliza a ciência religiosa. No Egipto tinha um sentido iniciático. Os eremitas gostavam de alimentar-se de figos. […] No norte de África, o figo é o símbolo da fecundidade proveniente dos mortos. O seu nome, tendo-se tornado sinónimo de testículos, já não é utilizado na fala corrente e foi substituído pelo nome da sua estação, o Khrif, o Outono. Neste ultrapassa Servier o nível domínio chega à de da comparação, alegoria interpretação e da quase não analogia. simbólica, se Jean quando acrescenta: Repletos de inúmeras sementes, os figos são um símbolo de fecundidade e são, a este título, a oferenda depositada sobre os rochedos, nas termas e nos santuários dos génios guardiães e dos Invisíveis: oferenda que pode ser partilhada pelo viajante necessitado, porque ela é a dádiva do Invisível (SERP, 38, 143). 361 Num epi sódi o l endári o um m ouri nho oferece fei j ões: Os feijões fecundidade. 360 361 […] tinham eram igualmente talismãs um simbolismo populares no de Japão, Idem, p. 404. Idem, p. 323. 274 habitualme nte e spalhad os numa casa para a fastar os relâ mpago s e os espíritos malignos. 2.2.2. 362 CORES O bol o de L M 33 t i n ha um a part i cul ari d ade di fe rent e dos p ã es e das fi l hós – er a bra nco . Al i m ent o br anc o, t am bém , é o l ei t e ( L M 42 , LM 59 e LM 24 ), cu j o si m bol i sm o j á anal i sám os. T al como o preto, a sua cor oposta, o branco pode situar -se nas d uas e xtre midad es da ga ma cro mática. Ab soluto e se m outras variações que as que vão do fosco ao brilhante s, o branco significa ora a ausê ncia, ora a soma das cores . Por isso àsveze s coloca-se ora no início ora no fim da vida diurna e do mundo manifesto, o que lhe confere um valor ideal, assimp tótico. Mas o fim da vida [n]o mo mento da morte é ta mbé m um mo mento transitório, na charneira do visível e do invisível, e por isso um outro ponto de partida. O branco candidus é a cor do candidato, isto é, daquele que vai mudar a sua condição [...] É uma cor de passagem, no mesmo sentido em que se fala de ritos de passagem; e é, justamente, a cor privilegiada desses ritos, com os quais se opera m as mutações do ser, segundo o esque ma clá ssico de toda qualquer inicia ção: morte e rena scime nto. 363 De branco v êm “ve st i das” al gum as m o uras ( L M 33 , LM 3 5 e LM 14 ), faz endo -se al usão a um “m ant o branco” em L M 35 e em LM 3 7: a m oura da se rr a de Monchi que est á “t oda vest i da d e branco” , quando apar ec e pel a pri m ei ra vez , e “ en vol t a num m ant o branco que l he pendi a da cabe ç a”, quando os com panhei ros de Ant óni o a vêem ; a m oura Fl ori pes “t r az um m ant o branco a cobri -l a ”. Bran cas, ai nda, são as “p ét al as br ancas de noi var ”, as fl ore s de am endoei ra qu e Al á m anda a Di norah e ao t rovador, em L M 54 , e a cal do forno d e L M 26 . Os d ent es do d ra gão que gu arda F át i m a no 362 363 Jack Tresidder, ob. cit., p. 85. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 128. 275 poço do V az Varel a ( L M 53 e LM 17 ) s ão de m a rfi m . E, fi nal m ent e, é m enci onad a a bur r i nha branc a da avó do narrado r de ME2. Encont ram os, ai nda , um bran co di f ere nt e: a cor da prat a e, event ual m ent e, de out ros m et ai s. Nas t rês versões d’ “ O P oço do Vaz Varel a ” ( L M 5 3 e LM 17 ), Fát i m a é gua rdad a por um “dra gão de escam as de pr at a ”. Branca e luminosa, a p rata é ta mbé m símbolo de pureza, de toda a espécie de pureza. É a luz pura, tal como é recebida e devolvida pela transparência do cristal, na limpidez da água, nos reflexos do espelho, no brilho do diamante; parece-se com a limpidez da consciência, com a pureza de intenção, com a franqueza, com a rectidão dos actos; remete para a fidelidade que isto se segue (GEVH). 364 Da m esm a cor s ão, com t oda a ce rt ez a, as escam as dos p ei x es pes cados que r pel o t rabal hador de LM 26 , quer pel o p es cador d e E LAP / M 8 . E “[ d ] e prat a ”, t am bém , é o l uar, que i l um i na quase t odas as noi t es das l endas: A L u a é u m s í m b o l o d o s r i t mo s b i o l ó g i c o s [ … ] s i m b o l i z a ta mbé m o te mpo que passa , o tempo vivo, de que ela é a medida, pelas suas fases sucessivas e regulares. [...] A L ua, astro das noites, evoca me tafor ica me nte a beleza e ta mbé m a l uz na ime nsidade tenebrosa. Mas não sendo est a luz mais que um reflexo da luz do Sol, a Lua é apena s o símbolo do conhecimento por reflexo, racional; [...] isto é, do conhecime nto teórico, conceptual, 365 Quase sem pr e em c ont rast e com as out ras cor es e, sobr et udo, com o branco, su r ge o pret o (ou ne gro): 364 365 Idem, p. 541. Idem, pp. 418 e 419. 276 Cor oposta ao branco, o preto é seu igual em valor absoluto. Co mo o branco, pode situar -se na s duas extre midades da ga ma cro mática, co mo limite tanto das cores que ntes co mo das cores frias; segundo sua opacidade ou seu brilho, torna -se então a a u s ê n c i a o u a s o m a d a s c o r e s , a s u a n e g a ç ã o o u a s u a s í n t e s e . 366 Em LM 34 : “um a m ul her m ui t o be l a, de l on gos c ab el os negros”; em L M 4 2 : “um m ouri nho m ui t o en gra çado, de go rro verm el ho sobre uns cabel os t ão negros com o um a noi t e sem es t rel as”; em L M 5 4 : “os seus ol hos n egros, ne gros com o um céu onde a l ua nunca passeou o l uar, er am t ri st es ”; em LM 59 , os novi l hos t i nham de ser “pr et os e gém eo s”; em LM 26 : “os o l hos de a[ z] evi che”; em E LAP / M 6: “vi u ent rar no al m anx ar um gat o pret o”; em E LAP / M 9: “um senhor e um a d am a m ui t o i dosos vest i dos am bos de pret o ”; em LM O 3 : “f rent e a frent e com um a v el ha m ui t o vel ha, ves t i da de l ut o e com um a val ent e gad a nha na m ão”. Os cã es pret os de E LAP / M 13 e E LAP / M 16 . S en hora s de pr et o . F aci l m ent e rel aci onam os os c a bel os ne gros da m oura d e L M 34 com o aspe ct o negat i vo que est a co r pode assum i r: Simbolica mente, é visto com mais frequência no seu aspecto frio, negativo. Cor oposta a todas as cores,o preto está associado às trevas primordiais, à indifere nciação original. [...] ao passo que o preto se coloca, por sua vez, no Eixo Norte -Sul, que é o da transcendência absoluta e dos pólos. Conforme os povos localiza m o seu infer no e a parte de baixo d o mundo no Norte ou no Sul, considerada preta. uma ou outra dessas direcções é então 367 Em LM 54 , a m el a ncol i a e a t ri st ez a dos ol hos de Di nor ah, as s oci adas à i m pos si bi l i dade de con cr et i z ar o seu sonho de am or podem evoca r a pe r da i rrem edi ável , o l ut o: 366 367 Idem, p. 541. Ibidem. 277 [ … ] O preto é, pois, cor de luto, não como o branco, mas de uma for ma mais opressiva. O luto branco te m qualquer coisa de me ssiâ nico. Indica uma a usê ncia destinada a ser completada, uma fa lta provisória. [...] O luto ne gro , por sua vez, é, poder -seia dizer, o luto sem esperança. [...] o luto de preto é a perda definitiva, a queda sem regresso no Nada: [...] 368 Negros são, obviamente, os pedaços de carvão em que o ouro (que começou por ser alimento – figos) dos episódios lendários de mouras encantadas se transforma. Negra, também, é a noite: A n o i t e é , n a c o n c e p ç ã o c e l t a d o t e m p o , o c o me ç o d a jornada, assim co mo o Inver no é o princípio do ano. […] A noite simboliza o te mpo das gestaçõe s, das ger minações, das conspirações, que desabrochar ão em pleno dia co mo manifestação de vida. É rica em todas as virtualidades da existê ncia. Porém, entr ar na noite é regressar ao indeterminado, onde se mistura m pesad elos e monstros, as ideias negras. A noite é a image m do inconsc iente e, no sono da no ite, o incons cie nte liberta-se. Co mo qualq uer símbolo, a noite a presenta um duplo aspecto: o das trevas onde fermenta o futuro, e o da preparação do dia, donde brotará a luz da vida. 369 Em LM 33 , é de noi t e que Di o go en cont ra a fi l ha do rei m o uro e é à m ei a -noi t e que deve ent re ga r -l he o bol o. Em LM 34 , é de noi t e que Ant óni o se enc ont ra com a m our a e que J oana escond e os seu s fi l hos. Em L M 35 o s encont ros de Ant óni o com a m oura dã o -se a o fi m da t a rde. Em L M 37 , é à m ei a - noi t e que J ul i ão es pera por Fl ori pes, que cost um a apar ece r ao co m padre Zé a essa hora; el a apare ce ce rc a de m ei a hor a d epoi s e, após o di ál o go t rav ado com J uli ão, “correu pa ra o m oi nho, não t ornando m ai s a aparec er naquel a noi t e”; em LM 14 , t am bém t udo se passa “al t a noi t e”. Em L M 38 , depoi s do en cont ro com a m our a, o al m ocreve “ ent rou em c asa j á de 368 369 Idem, pp. 541 e 542. Idem, p. 474. 278 noi t e”, t eve um p esadel o, e, “d aí em d i ant e, t odas as noi t es” t i nha “pes adel os vi ol ent os, al uci nant es ”, que “a caba ram po r des apare ce r ” (em LM 48 e LM 1 3 , são com uns os p esadel os su cessi vos, durant e m ui t as noi t es); depo i s de c e gar, “passou a vi ve r num m undo horrí vel de escu ri dão”, i dei a habi t ual m ent e asso ci ada à noi t e; par a r ecuper ar a vi s ão, sent a -s e, a consel ho da m oura, à sol ei ra da po rt a, “ ant es do nas cer do sol ” (nas t rês versões). Em L M 39 , o encant am en t o dá-se ao fi m da t arde (“a sua fi gur a del i cad a, bat i da pel os rest os do sol da t arde” ). Em L M 4 0 , o gove rnador d e Loul é fi ca horas soz i nho, durant e, supost am e nt e, duas noi t es, ant es de encant ar as fi l has e fugi r (não é cl aro se o encant am ent o ocorreu t am b ém durant e a noi t e); é n a noi t e de S . J oão que o carpi nt ei ro d eve cu m pri r os precei t os do dese ncant am ent o; e é t am bém de noi te que o carpi nt ei ro e a m ul her t êm m edo da v i ngan ça de C assi m a : “Nessa noi t e não conse gu e m dorm i r [ ...] Mas a m oura não v em . Nem ness a noi t e, nem nas rest a nt es.”. Em L M 41 e LM 16 , “t odas as no i t es que o t em po perm i t i a”, o j ovem Abdal á “c ant ava t rov as de a m or” que Al i na escut ava à j a nel a do seu qua rt o; e foi durant e a n oi t e que real i z ou a proez a de t raz er, par a a prop r i edade do pai d a s ua am ada, a nascent e da Fon t e do C anal (em L M 41 , “qu ando e ra quase m anhã”, e em LM 1 6 “seri a m ei a -noi t e ”); cont i nuam a ser vi st os à m ei a-noi t e ( em L M 16 , o vel ho m ou ro t am bém ap are ce, m a s só “em noi t es de t orm ent a” ). Em L M 44 e LM 25 , t udo se passa de noi t e: o pri m ei ro sonho, a p ri m ei ra t ent at i va, o s t rês sonhos se gui nt es “por t rês noi t es se gui das”, e a s e gunda e úl t i m a t ent at i va que, fi nal m ent e, resul t ou : “Des ent e rrou o t ac ho à m ei a -noi t e em pont o” e es vaz i ou progr essi vam ent e o seu cont e údo, a consel ho do m ouro, vol t ando “al i t odas as noi t es, à m esm a hora”. Em L M 46 e LM 11 , o cri s t ão presen ci ou o encant am ent o “num a noi t e de P ri m aver a” (“ era m ei a noi t e e r ecei ou -se o cri st ão d e al gum a ci l ada ” – LM 11 ); “t rabal hou naqu el a fai na di a e noi t e ”; soube, depoi s, que “ a caban a por el e const ruí da f ora qu ei m ada i nex pl i cavel m ent e, em c e rt a noi t e de l uar”. Em LM 49 e LM 10 , é durant e a noi t e que se dá o fat í di co encont ro ent re o j ovem gu err ei ro po rt uguês e a fi l ha do gov ernador . 279 Em LM 50 , “du as n oi t es ant es d a ent r a da dos c ri st ãos em Loul é, o gove rnador, [ ...] sai u com as t rês fi l has do cast el o, po r um a pequena port a. P ensava o m ouro que ni n guém dari a pel a sua surt i da, vi st o es t ar t oda a vi l a a descansa r da at al ai a const ant e em qu e vi vi a de di a” (port ant o, nes t a versão, o encan t am ent o ocorreu d urant e a noi t e); “Na noi t e segui nt e, os m ouros abandonar am secret a e s i l enci osam ent e a ci dade”; “ No di a se gu i nt e, ao sol -post o, o cri st ão es t ranhou um a bat i d a na port a do seu c ubí cul o”; foi dur ant e a noi t e que o ca rpi nt ei ro at raves sou “os m a res com o um a á gu i a (poi s che gou de m adru ga da); at é che gar o “t em po de S . J oão”, “t odos os dom i ngos o ca rpi nt ei ro se di ri gi a à fo nt e, à t ardi nha ” e, “quando a noi t e che gav a e co bri a m ansam ent e a t erra, o hom em v ol t ava a cas a”; foi num a de st as t ard i nhas que a sua m ul her cort o u o pão, cort ando a p erna de C assi m a; quando “ che gou fi nal m ent e a noi t e de S . J oão”, com eça ra m “os fest ej os qu e durari am essa noi t e e t odo o di a se gui nt e”; “Nes sa noi t e, por ém , o c arpi nt ei ro n ão f est e j ou. Mal es cure ceu, p art i u p ara a font e [ ...] esper ando a m ei a -noi t e”; “che gada a hora ”, cum pri u as i nst ru ções do m ouro; fi nal m ent e, “nes sa noi t e, por ordem do ex -governa dor de Loul é, o car pi nt ei ro em barcou num navi o venez i ano que se f ez à vel a par a F aro ” . Em L M 5 1 e LM 3 , “t odas a s noi t es a m ouri nh a de S al i r subi a à m ural ha do al các er” e “aí s e en cont rava em or aç ão quando as at al ai as r eceb eram o al arm e ”; em L M 3 , a fu ga é l oc al i z ada, com pre ci são, “n a noi t e em que o consel ho form ado pel os sarr acenos resol veu d esam par ar preci pi t adam en t e o cast el o ”. Em LM 53 , e LM 17 , o pai “arr em essou -a ao poço, quando j á n o céu s e vi am a l ua e as es t rel as”, pe rm ane c endo no l ocal , e “e r a m ei a -noi t e quando o m ouro s ecou as l á gri m as”. Em L M 54 , o t rov ador passa pert o do “bal c ão” de Di norah “num a t arde d e P ri m ave ra ”; quando “che gou a noi t e de m ansi nho”, “um a voz dul cí ssi m a” ouvi u -se, “c ant ando t rovas vel hi nhas” e “ness a noi t e Di norah dorm i u t ranqui l a e em paz ”. durant e al guns di as que se se gui ram , “e ram t ão grand es os gem i dos que el e ouvi a dur a nt e a noi t e e t am a nhos sust os apanhou, que se deci di u a l ar gar a ca sa” ( L M 61 ). Em L M 59 , é durant e a n oi t e que a 280 vaca s ai do est áb ul o, vol t ando, horas depoi s, “m ui t o fart a ”, repet i ndo -se a c en a m ai s do que uma vez ; é, por consegui nt e, t am bém durant e a n oi t e, que o l a vrador segue a vac a, pri m ei ro com o cri ado e, na noi t e se gui nt e, soz i nho, di z endo um a voz que el a es t ava “pej ad a”; n a pri m ei ra p art e, i n co m pl et a, de L M 58 , “ seri a n a noi t e de S . J oão que o t esouro seri a de sencant ado ”, pel o que, “l ogo que se aprox i m ava est a noi t e, afl ui a ao l ocal da font e t oda a gent e que conhe ci a a l end a”. Em L M 60 , t ud o se passa “em cert a noi t e”. Em LM 3 , o enca nt am ent o dá -se, co ncret am ent e, “na penúl t i m a noi t e, quando t odos descans avam ”; t od as as out ras t ardes e noi t es s ão com uns a L18, p reci sando -s e, t am b ém , que o carpi nt ei ro sal t ou a val et a “ em um a t arde de chuv a”. Em L M 7 o rap az l eva a cabo a t ent at i va de d esenc a nt am ent o, por ord e m ex pressa da m our a, “ant es do s ol nado”. Em L M 12 , o hort el ão presenci ou o enca nt am ent o “noi t e al t a, poi s qu e a ess e t em po ou vi u as panc adas do si no do rel ógi o d a ci d ade, a nunci adoras d a m ei a -noi t e” (em L M 47 , apenas s e pode i m a gi na r q ue o hort el ão esp re i t ava as l eb res e c oel hos à noi t e, m as não há qual quer refe rênc i a t em poral ). Em L M 21 , t om ando part e nos fes t ej os da noi t e de S . J oão, “quando deu m ei a noi t e l arga ram os doi s rapaz es o bai l e e m archa ram para o pego das R el i qui as”; o encont ro de um del es com a m oura t er -s e-á dado, as s i m , durant e a noi t e, enquant o o out ro dorm i a; ao encant ar a m oura em cobra, o pa i deu -l he, a possi bi l i dade de s e “t r an sform ar em out ro ani m al , r aci onal ou i rra ci on al , desde a m ei a noi t e da ves pera de S . J oão at é o out ro di a, ao nascer do sol ”; a pri m ei ra t ent at i va de desen cant am ent o em pr ee ndi da pel a m oura deu -se, t am bém , num a noi t e de S . J oão, e o m ol ei ro di sse “que er a m el hor adi ar o desenc ant o para o di a segui nt e ant es do sol nado”. Em L M 2 6, quase t udo acont ece de noi t e: os m ouros aparec em j unt o do forno “m ei a - noi t e em pont o”, real i z ando o negóci o l ogo em s egui da; o t rab al ha dor esc ond e -se e o bserva t udo “ap rov ei t ando -se do escuro da noi t e ”; “ant es do rom p er da m anh ã t i nha o pl ano form ado”; “à noi t i nha conse gui u ap anhar uns pei x es vi vos”, procedendo, d epoi s, ao rest o dos precei t os. E t am bém em L M 28 a 281 noi t e é pri vi l e gi ad a: “Em um a no i t e dei x ou -se el e ado r m ecer ao abri go de um as b al sas j unt o daquel a f ont e. S eri a m ei a -no i t e, hora des t i nada aos s ere s que and am pel o s ares ou cam i nh am por ex t raordi nári os processos, acordou o pobre hom em ”; “Na pri m ei ra noi t e em que se m a ni fest ou com pl et a a fl oresc ênci a d a sal sa, ao da r as doz e horas, apar eceu a m oura ”, e “ o pobre hom em t ransport ou durant e a noi t e os val ores”. Em E LAP / M 6, o rapaz que t om ava cont a do al m anx ar “ era j á noi t e e, d ei t a do, ol hava o c éu ob servando as es t rel as m ui t o vi vas”. Em E LAP / M 7, não se sabe a qu e horas a avó do narr ador vol t ava pa ra c asa, m as p odem os deduz i r que não er a cedo, poi s t i nha -se desl ocado a La gos, de burra, t i nha f ei t o al gum as com pras e j á s e enc ont rava d e r e gresso. Em E LAP / M 8, o p escador , “cert a vez , ent ret i d o, d ei x ou -se por l á at é m ui t o t ard e, t al vez por a pes ca l he est ar a ser bast ant e fav orável . S ó que, q uando j á anoi t eci a,” d ei x ou -se fi ca r m ai s t em p o, t ent ando pesc ar “o m ai or pei x e da sua vi da ” e , quando fi nal m ent e j á i a d e c am i nho p ara casa, “ol hando para t r á s, vi u, est upefact o q ue, na escuri d ão, o vul t o de al gu ém est ava sent a do a pesca r no l uga r ex act o onde el e e st i vera”. Em E LAP / M 9, “um a t ardi nha (er a j á ao anoi t ece r), q uando se encont rav a c om um grupo d e out ros garot os am i gos a br i ncar n a arei a ” o i rm ão do narrado r “vi u sai r, de um a fenda que ha vi a ent re doi s penedos do Cant o do Laredo, u m senhor e um a dam a m ui t o i dos os vest i dos am bos de pret o”. Em LLO 1, di z i a -se que “t odas as s ex t as -fei ras, ent re as onz e horas e a m ei a -noi t e, quando a m ãe i a ao s eu quart o , encont r ava sem pre vaz i a a cam a do Berna rdi no e só vol t ava a vê -l o na c am a por al t as horas da noi t e, resol vendo , ent ão, “um a noi t e de sex t a -fei ra ”, “ esprei t á -l o na sua saí da d e cas a ”. Nós n ão esta mo s lo nge, aqui, do esoterismo tântrico, q ue faz corresponder à meia-noite o estado de repouso absoluto na beatitude. É que, co mo nota Gué non, a culminação do Sol espiritual tem lugar à meia-noite, por analogia inversa com a do Sol físico. A iniciação nos mistérios antigos era associada ao Sol 282 da meia-noite. [...] o ponto a partir do qual começa a ascensão da Revelação solar. 370 Em LM 53 e LM 1 7 , um a das p rát i c as envol ve um a “ gal i nha pret a”, em L M 59 , os bez erros t êm de ser “n ão pr et os de t odo, um es t rel ado e o out ro m oi rat o”, e na pri m ei ra part e, i ncom pl e t a, de LM 5 8, os novi l hos são pret os; t am bém o ga t o que foi at i r ado da fal ési a, em E LAP / M 6, era pret o e “só nel e bri l havam doi s ol hos m ui t o vi vos”, e o casal de i dosos, em ELA P / M 9 , “vest i dos am bos de pret o, de f ace t ão m aci l ent a e d e ol hos t ão l uz i di os”. Ora, com o j á re feri m os ant eri orm ent e, a propósi t o das bruxas , os ani m ai s pr et os p arec em est ar l i gado s ao di abo , t am bém at rav és do pact o com as bru xas . Devi do à rel a ção ex i st ent e ent re as cor es (“o ne gro bri l han t e e quent e, saí do do ru bro , rep resent a, por sua ve z , a som a da s cores. ” 371 ), se gue -s e o ver mel ho : Universalmente co mo o símbolo funda me ntal do princípio de vida, com a sua força, o seu poder e o seu brilho, o vermelho, cor de fogo e de sangue, possui, entretanto, a me sma a mbivalê ncia simbólica destes últi mos, se m dúvida, visualme nte fala ndo, confor me seja claro ou escuro. 372 Em LM 34 , aqu and o da pri m ei ra apari ção (que cor respond e ao s egundo en cont ro, j á que o pri m ei ro apenas é ref eri do), “ um a l uz verm el ha i l um i nou o seu hom em ”, vi nda da cova donde surgi u a m oura, e, da se gun da, “fum o e fo go precedi am a m ul her” ; em L M 3 5, um a das d esi gn a ções da pedr a “po r onde a m our a saí a ” é “ro cha encarni çada ”; em L M 42 , LM 61 e LM 24 , o en cant ado é um mouri nho “de gor ro enca rnado” ( “v erm el ho ”, em LM 42 ); em LM 2 1, “O ho m em aco rdou, qui s acende r a l uz , m as i m pedi -l he que 370 371 372 Idem, p. 446. Idem, p. 542. Idem, p. 686. 283 feri s se l um e ”; e, e m LM 26 , o fo go d o forno ( “em al a vi va” e “em l abared a”) ; t al com o o fo go com que se quei m am as ro upas dos l obi somens , ou das fogu ei ras à vol t a d a s quai s as bruxas dançam e cant am , dura nt e os seus sabat , ou as foguei ras por ci m a das quai s se s al t a, durant e as fes t as dos sant os populares . O ver melho-claro, brilhante, centrífugo, é diurno, masc ulino , tónico, inc itando à acção, lança ndo como um sol o seu brilhante sobre todas as coisas com um imenso e irredutível poder (KANC). O vermelho escuro, pelo contrário, é no cturno, fe minino , secreto e, no limite, centrípeto; ele representa não a expressão, ma s o misté rio da vida. U m seduz, encoraja, p rovoca, [...]; o outro alerta, r eté m, incita à vi gilâ ncia e, no limite, inquieta: [...] 373 Em LM 40 ( LM 50 e LM 3 ) e em LM 5 3 ( LM 17 ), en cont ra m os refe rênci as di re ct a s ao sangue (cuj a si m bol ogi a ve rem os m ai s adi ant e), sem m en ç ão da cor, e, em L M 33 , m enci on a -se a co r, m as não se dá a c ert ez a sobre a nat u r ez a do l í qui do – “com eçou a es corr er um l í qui do vi scos o, verm el ho -e scuro, com o san gu e! ”. Este vermelho nocturno e centrípeto é a cor do fogo central do home m e da terra, o do ventre e do atanor dos alquimista s onde, pela obra ao rubro, se opera a digestão, o a madurecime nto, a geração ou a regener ação do home m o u da obra. [...] Subjacente à verdura da terra, à negrura do Vaso, este ver melho e mine nte me nte sagrado e secreto é o mistério vital escondido no fundo das trevas e dos oceanos primordiais. [...] Iniciático, este ver me lho esc uro e ce ntrípe to reveste -se assim de um significado funerário: A cor púrpura, segundo Artemidorus, tem relação com a morte (Ste. Croix, Mystères do Paganismo em PORS, 136-137). Pois esta é, com efeito, a 373 Ibidem. 284 a mbivalê ncia de ste vermelh o de sangue profundo: escondido, ele é a c o n d i ç ã o d a v i d a . E s p a l h a d o , s i g n i f i c a a m o r t e . 374 C ont i nuando com as cores consi de rada s “quent es”, ap ar ec e o amarel o , cuj a pr ese nça const ant e nest a s l endas est á l i gad a a duas das suas nuances , a cor do sol e a cor do ouro, am bas dourad as . Intenso, viole nto, agudo até à estridência, ou a mp lo e ofuscante co mo um me tal e m fusão, o amarelo é a mais que nte, a mais e xpansiva, a ma is ardente das cores, difíc il de desva necer, e que extra vasa se mpre os limites e m que se pretende encerrá-la. Os raios do Sol, atravessando o azul dos céus, manifestam o poder das divindades do Alé m. [...] A Luz de Ouro torna-se, por vezes, um ca minho de comunicação nos dois sentidos, um mediador entre os ho me ns e os deuses. [...] Sendo de essência divina, o a marelo dourado torna -se, na Terra, o atributo do poder dos príncipes, dos reis e dos imperadores, para procla mar a orige m divina d o seu poder. […] O a marelo é a cor da eternidade, do me smo modo que o ouro é o metal da eternidade. 375 P ara al é m do ou ro dos t esouros, enc ont ram os os se gui nt es obj ect os dourados : em LM 40 , o p unhal do gov ernad or, “com em but i dos em ouro” ; em L M 40 , LM 50 e LM 3 , “um ci nt o bordado a ouro”; em LM 45 e LM 31 , “um bel o ci nt o de ouro”; em L M 7 , “a pent ear -se com um pent e de ouro”; e em LM 21 , “t ra z endo ao pes coço um gr ande col ar de ouro, e nos braços bri l hava m ópt i m as pul s ei ras do m esm o m et al ”. Há, ai nda, a “cob ri nha côr d e oi ro” de LM 42 e LM 24 , e os cabel os das m ouras de L M 38 (“l oi r os”), de LM 14 e d e LM 26 ( “ de ouro”) . Quant o ao S ol , e m LM 34 : “ E o hom e m sai u corr endo, a gor a s audado pel a l uz doi rada do S ol .”; em L M 38 (e LM 48 ): “C om os 374 375 Ibidem. Idem, p. 58. 285 pri m ei ros rai os de l uz , os t eus ol hos da rão doi s est al os, e t u fi ca rás a ver de novo...”; em L M 39 : “O S ol bri l hava a grand e al t ura, faz endo reful gi r as cot as de m al ha e os capa cet es dos gue r rei ros no arrai al .”; em L M 40 : “Manhã de P ri m av era. M anhã boni t a, chei a d e s ol , i rradi ando perf um e.”; em L M 45 : “e, num a m anhã de sol , l á part i u com os al for ges chei os par a as ne cessi dades da j orn a da .”; em LM 50 : “R om peu ent ão o sol , m aravi lhoso gl obo de fogo e rosa l um i noso sai ndo da t erra sem ruí do, sem angúst i a.”; em L M 3 : “C om o é bel o o nas cer do sol na nossa proví nci a !”; em E LAP / M 6: “De m anh ã, aco rdou com o sol a bat er -l he no rost o” . O Sol é a fonte da luz, do calor e da vida. Os se us raios representam as influências celestes – ou espirituais – recebidas pela terra. [...] Além de vivificar, a irradiação do Sol manifesta as coisas, não só na medida e m que as torna perceptíveis, co mo na medida e m que representa a extensão do ponto de partida , na medida e m que ele mede o espaço. 376 A l uz do sol est á, obvi am ent e, l i gada a t odas as part es do di a , i ndependent em ent e da sua i nt ensi dade: A primeira analogia do dia é a de uma sucessão regular: nascime nto, crescime nto, plenitude e declínio da vida. [...] as estações do ano parecem repetir em maior escala [do que a da lua] as quatro partes do dia: a Prima vera, a manhã; o Verão, o meio-dia; o Outono, o pôr-do-Sol; o Inverno, a noite. Desde os te mpos mais longínquo s que se impôs a ana logia entre o dia, o mês (lunar) e o ano. Em LM 33 : 377 “Espi ava o m ovi m ent o aparent e do S ol no hori z ont e, i ndi cando a cam i nhada do di a.”. Em L M 34 : “Quando che gou a cas a, e ra j á di a.”. Em L M 35 : “S ubi a t odas as t ar des, com 376 377 Idem, pp. 610 e 611. Idem, p. 263. 286 o s o l a pi no, a serra de Monchi que e só vol t ava à noi t e par a casa. ”. Em LM 36 : “T eri a de l ava r ness a m an hã as p eç as de rou pa que a m ãe l he ent re ga ra e est ar de vol t a a casa ant es de o sol est ar a pi no.”. Em LM 37 : “J á m anhã al t a, J ul ião che ga a casa. ”. E m L M 3 8 (e LM 48 ): “ am anh ã de m anhã, ant es do sol nascer, sent a -t e à t ua port a...”; Em L M 4 0 : “Durant e horas el e fi c a soz i nho, at é que o t em po at ravessa a fr ont ei ra da noi t e e e nt ra nos m i st éri os do di a...”; “Quando a m ad ru ga da vol t a a rom p er, o s cri st ãos, di spo st os a t ent ar de novo o at aque”. Em L M 42 ( e LM 24 ): “Toda a sua vi da se res um i a, desde a al ba at é à noi t i nha, nos cui dados c om o seu rebanho”; “ Um a m anhã, ac abar a a m ul her de aba far o l ei t e da vés pera ”. Em LM 4 6 (e LM 11 ): “Na m anhã se gui nt e, a pri m ei ra coi s a que o c ri st ão f ez foi vol t ar ao l oca l da c ena d a noi t e a nt eri or.” ( LM 46 ); “t rab al hou naquel a f ai na di a e noi t e”; . Em L M 59 (e L34): “o carpi nt ei ro [ ...] pousava às port as de Loul é, pel a m ad r ugad a.”. Em LM 53 e LM 17 , o m ouro com eçou a ora ção d e encan t a m ent o ao “m ei o -di a em pi no” , m as “arr em essou - a ao poço, quando j á no céu s e vi am a l ua e as es t rel as”. Em L M 54 : “Ao a corda r, pel a m anhã, os ol hos negros da m o ura bri l havam fi nal m ent e”. Em L M 61 : “dei x ou o m ari do o seu t rabal ho do cam po às onze horas do di a e foi esprei t ar a m ul her”. “Em LM 13 : “no m om ent o do nascer do sol , os t eus ol hos darão doi s est al os”. Em L M 21 : a m oura t em a possi bi l i dade de se “t ransform ar em ou t ro ani m al , r aci onal ou i rr a ci onal , desd e a m ei a noi t e da ve spe ra d e S . J oão at é o out r o di a, ao nas cer do so l ”, al t ura em que vol t ará a t er a form a de um a c obra. Em L M 26 : “De m anhã m ui t o cedo real i z ou a com pra de um a c el ha; foi ao m ar, qu e l he não fi cava l on ge, en che u -a de á gua s al gada , e espe rou que ano i t ecesse, es condi do em um a furna. ”. Em LM 28 : “apen as nas ce u o sol , di ri gi u -se a um a ho rt a e del a t ro ux e um a boa porção d e s al sa”. E m LM 32 , é du rant e o di a, “t odos os di as”, que a vel h a Barb aç as deverá l eva r um a ga l i nha à “m eni na ”. E m E LAP / M 9: “m as, de di a, foram esp rei t ar p ar a dent ro da r e feri da fenda”. Em E LM O 1: “C ert o di a, [ …] , fart o de apanhar gravet os p ara a l a rei r a” . Em LM O 1 : 287 “C ont ava -se que, u m di a, D. Mort e apa receu a um garot o” . Em LM O 2: “Um di a, quando est avam am bos j unt o à l arei r a”. O meio -dia marca uma espécia de insta nte s agrado, uma parage m no mo vimento cíclico, antes que se rompa um frágil equilíbrio e que a luz se incline para o seu declínio. Ele sugere uma imobilização da luz no seu c urso – o único mo me nto se m so mbra – uma ima ge m da eternidade. 378 Em LM 35 : “S ubi a t odas as t ardes, com o sol a pi no, a serra de M onchi que”; em L M 36 : “Teri a de [ ...] e st ar de vol t a a c asa ant es de o s ol est ar a pi no.”; em L M 53 e LM 1 7 : “di ri gi ram -se am bos, [ ...] era m ei o -di a em pi n o, ao P oço do Vaz V arel a. ”; em L M 61 : “às onz e horas do di a e foi esprei t ar a m ul her ” (port ant o, o confl i t o que ori gi nou o t ri st e de sfecho d eu -se por v ol t a do m ei o -di a); e m LM 8 (e LM 52 ): “ apar e ci a t odos os di as ao m ei o di a em p ont o um a form osa d am a ”; em LM O 3: “C ert o di a , por vol t a do m ei o -di a, um hom em de Espi ch e encont rou D. Mort e ” e o s e gundo en co nt ro, “no di a m arc ado”, só p ode t er si do t am bé m ao m ei o -di a, poi s a mort e t i nha com bi nado “ – Daqui a um m ês, t enho um encont ro m arcad o cont i go, a est a hor a, para t e l ev ar! ”. A m oura de L M 48 (e LM 13 ) vem v est i da de a zul e (com o em LM 38 ) t em “ol hos az ui s l i ndos, com o o céu do Al ga rve e m cert os di as de l uz ”. O az ul est á omni present e , no céu do Al garv e, de form a ex pl í ci t a ou i m plí ci ta. [ … ] O a z u l é a m a i s i ma t e r i a l d a s c o r e s : a n a t u r e z a apresenta -o geralme nte como fe ito apenas de transparência, i sto é, de vazio acumulado, vazio d o ar, vazio da água, [...]. Aplicada a um objecto, a cor azul suaviza , abre e desfaz as for mas. U ma superfície pintada de azul já não é uma super fície, um muro azul deixa de ser um muro. [...] Imaterial e m si mesmo, 378 Idem, p. 446. 288 o azul desmaterializa tudo o que se liga a e le . É o ca minho do infinito, onde o real se transfor ma e m ima ginár io. 379 Do m esm o m odo (mai s i m pl í ci t o do que ex pl í ci t o) est á present e o verde , em t odas as al usões à pri m avera, na ve get a çã o (nos “s i l vados” que as bruxas t ranspõem ) , e apenas em LM 40 , no t urbant e do govern a dor de Loul é. Equidistante do azul celeste e do vermelho infer nal, a mbo s absolutos e inacessíveis, o verde, valor médio , mediador entre o calor e o frio, o alto e o baixo , é uma cor tranquilizante , refrescante, humana. [...] O verde é cálido. E a vinda da prima vera ma nife sta -se pelo derretime nto dos gelos e pela queda das chuvas fertilizantes. O verde é a cor do reino ve getal a reafir ma r -se, das sua s água s re generadoras e lustrais, às quais o baptismo dá todo o se u significado simbólico. 2.2.3. 380 MATERIAIS E o ouro aparece, a i nda, com o mat eri al de const rução : a sal a de LM 38 (“As pa redes er am de our o. E de ouro o bel o t ect o t am bém .”), L M 48 e LM 13 (“ am pl a sal a de pared es e co l unas de ouro m aci ço” ). Ind ependent em ent e do t esouro propri am ent e di t o, há que re f eri r a ri quez a dos m at eri ai s em que os pal áci os subt err â neos são cons t ruí dos (i ncl ui ndo, obvi am ent e, a s escad ari as), pal á ci os que, por vez es, faz em part e desse t esouro, i st o é , est ão i ncluí dos na r ecompensa : 379 380 Idem, p. 105. Idem, p. 682. 289 […] A pedra trabalhada, pois, não é senão obra humana; ela dessacraliza a obra de Deus, ela simboliz a a acção huma na substituindo a energia criadora. [...] 381 As pedras preciosas são o símbolo de uma tra nsmutação do opaco em translúcido e, no sentido espiritual, das trevas em luz, da imper feição e m perfeição. [...] Segundo a tradição 382 bíblica, devido ao seu carácter imutáve l, a pedra simb oliza a sabedoria . A p edra é muitas vezes associada sabedoria. à água. [...] Ora, a água simboliza també m a 383 A escada ri a de L M 38 e LM 48 é “de m árm ore” e a d e L M 13 , “do m ai s puro e fi no porfi do”; em L M 42 e LM 24 , “um a m agní fi c a es cada d e al ab ast ro” ; e L M 61 , uns “de graus do m ai s fi no j a spe”. O pal áci o de LM 4 2 e LM 24 é “de cri st al de rocha” e o de L22, não sendo subt errân eo nem enca nt a do, “de m i l col unas fi nas de m árm ore ros a”. 2.2.4. VEGETAIS Em L8 e L34, a f ont e est á si t uada j unt o de um “boni to” e “vi çoso” c anavi al . […] o crescime nto da cana saída das água s primordiais representa a ma ni fe staç ão […] Por outro lado, a cana é dotada de poderes purificadores e protectores. […] Os anos do calendário asteca são colocados sob quatro signos, entre os quais o da cana. A cana (verde) é associada ao 381 382 383 Idem, p. 510 Idem, p. 513. Idem, p. 514 290 Este, pátria da Renovação. Era, para os antigos m exicanos, um símbolo de fertilidade, de abundância e de riqueza (SOUP). 384 Em LM 28 , apar ece, t am bém , a sal sa e, om o j á vi m os, as bruxas voam por ci m a do s si l vados. Mas s ã o as árvor es que assum em es peci al i m port ânci a: em L M 33 é “u m a árvore ” que é “cort ad a cerc e” e, em L M 28 , o hom em cost u m a dorm i r debai x o de um a “ávore ” qual quer . Símbolo da vida, e m perpétua evolução , e m ascensão para o céu, a árvore evoca todo o simbolismo da verticalidade; [...] Por outro lado, serve ta mb é m para simbolizar o carácter cíclico da evolução cósmica: mor te e regeneração; as fr ondosas, sobretudo , evocam um ciclo, pois despojam-se e cobrem-se todos os anos de folhas. A árvore põe ta mbé m e m co municação os três níveis do cosmos: o subterrâneo, co m as sua s raízes ab rindo ca minho nas profundezas onde penetram; a superfície da terra, com o tronco e os primeiros ra mos ; as alturas, co m os se us ramo s superiores e o seu ponto mais alto, atraídos pela luz do céu. [...] Reúne todos os ele me ntos: a água circ ula co m a sua seiva, a terra in tegra-se no seu corpo através das raízes, o ar alimenta a s sua s folhas, o fo go brota quando esfregamos dois paus. 385 Em LM 44 , LM 25 e LM 32 , a ár vore é um a “ al far robei r a ” – a acres cent a r ao si m b ol i sm o de qual quer árvore, há o f act o de ser a al farrob ei ra (t r az i da pel os m ouros ) um a árvo re i m port ant e no Al ga rve: é prat i c a m ent e si l vest re e, gr at ui t am ent e, al i m ent a e dá um a som bra fant ás t i ca (em L M 32 , a “m eni na” apa re c e m esm o “j unt o dum a al far ro bei ra” ). H á, ai nd a, si t uações em que a árvore é i dent i fi cada com o “ um a carval ha ” ( L M 45 e LM 31 ), um “carval ho” ( LM 50 ) ou “um a carval h ei ra ” ( L M 3 ). Num epi sódi o l endári o, a m oura ap are ce ent r e duas az i nhei ras, l ocal onde o pr et e ndent e a 384 385 Idem, p. 150. Idem, p. 89. 291 des encant ador t e ri a de bat e r -se com um m onst ro – a a z i nhei ra pert enc e ao gén ero dos carval hos . Árvore sagrada em numerosa s tradições, o carvalho é inve stido dos privilé gios da divindade sup re ma do céu, se m dúvida porque atrai o raio e simboliza a majestade […]. Indica sobretudo solidez, força, longevidade e altura, tanto no sentido espiritual co mo materia l. O carvalho é, e m todos os te mpos e e m todos os lugares , sinó nimo de força: de facto, é esta a impressão que nos dá esta árvore quando adulta. 386 Há duas l endas em que as f l ores assum em espe ci al rel evo: em LM 54 , Di norah v i vi a rodeada de “j ardi ns de m aravi l h a, onde bai l avam ex ót i cas danças fl ores d e t o do o m undo”; e em L M 28 , para a m our a se r de sencant ad a, a sal sa t erá d e at i n gi r a sua fl ora çã o pl ena (“N a pri m ei ra noi t e em que se m ani fest ou co m pl et a a fl orescên ci a da s al sa, ao dar as d oz e ho ras, apa rec eu a m ou ra”): Apesar de cada flor te r, pelo me nos sec unda ria mente, um símbolo próprio, a flor , e m geral, não deixa de ser um símbolo do princípio passivo . O cálice da flor é, tal co mo a taça, o receptáculo da Actividade celeste, entre cujos símbolos devemos citar a chuva e o orvalho. Al ém disso, o desenvolvimento da flor a partir da terra e da água ( lótus) simboliza o da ma nifestação a partir desta me sma sub stância passiva. 387 Mas em LM 54 , o t rovador passou “nu m a t arde de P ri m av era, com eçav am as am endoei ras a fl ori r”, de m anhã, “t udo, t udo à vol t a del es e ram p ét al as bran cas d e noi va r” e “t odos os an os, pel a P ri m avera, Al á m an da -l hes as fl or es de am endoei ra pa ra qu e possam noi var”: 386 387 Idem, p. 165. Idem, p. 329. 292 A a me ndoeira, cuja floração acontece muito c edo, é o sina l do renascime nto da natureza e d a vigilância a tenta aos primeiros sinais da Prima vera. É igualme nte o símb olo da fragilidade, porque as suas flores, as primeiras a abrir-se, são as mais sensíveis às últimas geadas...” 388 Na Tor re de Bi as, vi veu um a j ovem m oura qu e cost um av a dar frut os aos pobres, p oi s que seu pai a proi bi ra de l hes dar di nhei ro (Al l ah, no ent ant o , t ransform av a, po r vez es, esses f ru t os em di nhei ro) . Símbolo da abundância , que transborda do corno da deusa da fecundidade ou das taças dos ban quetes dos deuses. Em virtude dos grãos que conté m, Gué non co mpa rou o fruto ao o vo do mundo, símbolo das origens. 389 S ant o Ant óni o apareceu, em C asai s, n o cam po, j unt o de um a es t rada, em ci m a de um a ol i vei ra. Árvore de uma riqueza simbólica muito grande: paz, fecundidade, purificaçã o, força, vitória e recompe nsa. Na Grécia, era consagrada a Atena […]. A oliveira participa dos valores simbólicos atribuídos a Atena 390 , de quem é a árvore consagrada. […] A oliveira simboliza, em definitivo, o Paraíso dos eleitos. 391 388 Idem, p. 61. Idem, p. 340. 390 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant : “[…] a figura de Atena evoluiu muito na Antiguidade e, de uma forma constante, no sentido de uma espiritualização. Dois dos seus atributos simbolizam os termos desta evolução: a serpente e a ave. Antiga deusa do mar Egeu, saída dos cultos ctonianos (a serpente), elevou -se a uma posição dominante nos cultos uranianos (a ave): deusa da fecundida de e da sabedoria; virgem, protectora das crianças; guerreira, inspiradora das artes e dos trabalhos da paz.”, p.95. 391 Idem, pp. 486 e 487. 389 293 Em bora est ej am se c os, os “ gr avet os” j á foram ram os d e árv ores e, em E LM O 1, j á fo rm avam “um pes ado fei x e de l enha”: O feixe de lenha ( sin ) é, na China antiga, o símbolo do composto huma no transitório, que a sucessão da vida e da morte ata e desata. […] O feixe de lenha seca encerra as riquezas do espírito e as energia s do fogo, o conhecime nto e os poderes. 2.2.5. 392 VESTUÁRIO Já no Antigo T esta me nto , o ve stuário pode significar, ao manifestá -lo, o carácter profundo daquele que o usa. […] O vestuário não é, portanto, um atributo exterior, estranho à natureza do ser que o usa; ele exprime, pelo contrário a realidade esse ncial e funda me nta l. […] Seria impossível encontrar um melhor exe mplo do simbolismo da roupa na sua for mulação gnóstiva mais elaborada: o vestuário co mo símbo lo do próprio ser do home m. 393 As m ouras enc ant a das vêm “vest i das” , de branco ou de az ul ( LM 33 , LM 35 , L M 48 , LM 13 e LM 14 ). O s eu asp ect o é de um a “fi gu ra di áfan a” (e m L M 33 ) e “sob a apar ênci a de um a nj o” (em LM 13 ). As roupas brancas, brilhantes, luminosas, per mite m identificar imediatamente os anjos ( Mateus, 28, 3; Lucas, 24, 4 ) . 394 Em LM 35 e em LM 37 , t raz em um “m ant o branco”: 392 393 394 Idem, p. 318. Idem, p. 689. Ibidem. 294 Na tradição celta, os ho me ns do grande mundo do leste dizem a Dagda: aquele que se envolve com o manto adquire o aspecto, a forma e o rosto que quer durante o tempo que o leva s o b r e s i . S í m b o l o d a s m e t a mo r f o s e s p o r e f e i t o d e a r t i f í c i o s huma nos e das diversas personalidades que um ho me m po [d]e assumir. 395 Em LM 35 , a m oura “vel ou o rost o” e , em L M 54 , pedi u ao t rovador “um véu p a ra noi var ”. Hijab, véu, quer dizer em árabe o que separa duas coisas. Significa, portanto, segundo é colocado ou retirado, o conhecimento escondido ou revelado. [...] O véu, em última instância, pode, portanto, ser considerado mais co mo um intermediário do que co mo um obstáculo; ocultando apenas pela metade, convida ao conhecimento; todas as mulheres sedutoras sabem disso, desde que o mundo é mundo. O símbolo define -se ta mbé m pelo esoterismo: aquilo que se r e v e l a v e l a n d o - s e , a q u i l o q u e s e v e l a r e v e l a n d o - s e . 396 P ara qu e um l obi so mem d ei x e de o ser é p reci so qu ei m ar as s uas roupas – est a é, t al vez , a si t uação m ai s evi den t e dest a i dent i fi cação d as ca ract e rí st i cas do hom em com as suas vest es. Próprio do home m, pois ne nhum a nimal o u sa, o vestuário é um dos primeiros ind ícios duma consciê ncia da nudez, duma consciê ncia de si, da consciê ncia moral. É també m reve lador de alguns aspectos da sua personalidade […]. Na tradição do Islão uma mudança ritual da roupa anuncia a passagem de um mundo a outro. 395 396 Idem, p. 437. Idem, pp. 690 e 691. 295 P or oposi ção às v est es, t em os o caso das bruxas que, se gund o al guns di z em , danç a m nuas, à vol t a da f oguei r a, nos seus sa bat . A nudez do corpo é, na óptica tradicional, uma espécie de regresso ao estado primordial, à perspectiva central […]; é a abolição da separação entre o ho me m e o mund o que o rodeia, em função d[a] qual as energias passam de um para o outro sem barreiras: daí a nudez ritual, talvez lendária, dos guerreiros celtas no co mbate; a de certas dançarinas sagradas; e até de alguns feiticeiros, particularmente receptivos, nesse caso, às forças inferiores. 2.2.6. Em 397 ADORNOS L8, é dado especi a l rel evo ao “t urbant e ve rde” do gove rnador: Símbolo de dignidade e de poder em três planos difere ntes: nacional, para o árabe; religioso para o muçulmano; profissional (profissões civis, por oposição às militares). [...] O turbante é um sinal distintivo do muçulmano em relação ao infiel ; marca a separação entre a fé e o seu contrário. [...] O verde é a cor do Paraíso, e a cor preferida, diz-se, de Mao mé. Mas, segundo a tradição, ele não usava turbante des ta cor. No entanto, o uso do turbante verde é a insígnia dos seus descendentes. 398 Em vári as l endas ( L M 33 , LM 40, LM 45 , LM 50 e LM 3 ), é dado um ci nt o , com o ofert a, m as que, afi nal , funci o na co m o i ns t rum ent o de vi ngan ça, ou (em L M 45 e LM 31 ) obj ect o faci l i t ador de out ro qual quer i nt ui t o cont rári o à vont ad e d e quem o receb e. 397 398 Idem, p. 477. Idem, p. 667. 296 […] Preso em torno dos rins no nascimento, o cinto religa a unidade ao todo, ao mesmo te mpo que liga o indivíduo. T oda a a mbivalê ncia da sua simbolo gia se resume ne stes dois ver [b]os. Ao religar (atar com força), o cinto tranquiliza, conforta, dá força e poder; ao ligar (apertar, prender), leva, em troca, à submissão, dependência, e, portanto, à restrição , escolhida ou imposta, da liberdade. [...] O cinto protege contra os ma us espíritos, da mesma ma neira que os cinturões de protecção em volta das cidades as protegiam dos inimigos. 399 Nest as l end as, o ci nt o resul t a, assi m , nu m a t rai ç ão, poi s, se ndo por t radi ção um sí m bol o de prot ecç ão e de uni ão, f aci l m ent e i l ude quem o acei t a, m ai s do que, provavel m ent e, out ro obj ect o qual quer. Tam bém em E LLO 1 os doi s pescad ores usam um a “ ci nt a” par a t ent ar prende r o burro, subm et ê -l o, para o usarem com o t ransport e; o fact o de n ão t er e m cons e gui do t i rá -l a, e de o hom em (c om t oda a probabi l i dade, um l obi somem ) cont i nuar a ex i bi -l a ap ós a sua t ransform a ção, pod e si g ni fi c ar a “d e pendênci a i m post a ” da sua condi ção. Em LM 21 , a m oura ex i be “ao pescoço um grand e col ar ” e, nos braços, “ópt i m as pu l se i ras” ( “D um a for m a ger al , si m bol i z a [ o col ar ] u m el o ent re aquel e ou aquel a que o usa e aquel e ou aquel a que l ho ofere ceu ou i m pôs .” 400 ), que t am bém t êm em com um com o ci nt o o fact o de s erem ci rcu l ares: O círculo protector toma a for ma, para o i ndivíd uo, d a argola (ou aro), da bracelete, do colar, do cinto, da coroa. [...] Estes círc ulos dese mpe nha va m o papel , não só de adornos, como de estabilizadores, mant endo a coesão entre a alma e o corpo... […] 399 400 Idem, pp. 198 e 199. Idem, p. 210. 297 Esse me smo valor simbólico e xplica o fac to de anéis e braceletes sere m retirados ou proibidos àqueles cuja alma deve estar livre para se e va dir, como os mortos, ou elevar -se para a d i v i n d a d e , c o m o o s m í s t i c o s . 401 P oderem os, ent ão, i nferi r, m ai s um a vez , que as m ouras encant adas se en co nt ram pri si onei ras num l i mb o qual quer ent re a vi da e a m ort e, usa ndo obj ect os própri os da art e de seduz i r, para m el hor cat i var em qu em est i ver di spost o a l i bert á -l as. 2.2.7. OUTROS OBJECTOS Associada ao leite, temos, em LM 42 e LM 24, a “escudela” (taça de madeira) em que a senhora deu a beber leite à cobrinha simbologia seja cor de comum oiro, à do embora “vaso” uma (que parte já da sua analisámos anteriormente). O simbolismo muito difundido da taça apresenta -se sob dois aspectos essenciais: o do vaso da abundância, e o do vaso que contém a bebida da imortalidade. No primeiro caso, ela é muitas vezes comparada co m o seio materno que produz o leite. […] A taça, utilizada refeições profanas, pelas serviu de libações suporte rituais a como nas um simbolismo bastante desenvolvido nas tradições judaica e crstã. […] Mas a tónica principal do simbolismo da taça recai, na Bíblia, sobre o destino hu mano: o homem recebe das mãos de Deus o seu destino como uma taça, ou como contido numa taça. […] 401 Idem, p. 204. 298 A taça simboliza não só o conteúdo, mas a essência de uma revelação. 402 Em duas si t uações (L M 33 e LM 40 ), o s ci nt os “cort am cer ce” duas árvo res, e em L M 33 , t al com o e m LM 40 , LM 50 e LM 3 , é a “fac a” o i nst rum ent o de que se se rve u m a m ul her para cor t ar, num cas o, o bol o, no out ro, um pão, t ent ando sat i sfa z er a sua curi osi dade, m as i m pedi ndo a re al i z ação do desencant am ent o: [...] o simbolismo gera l dos instr umento s cortantes, que se aplica plena me nte aqui: é o princípio a ctivo que modifica a matéria passiva. […] Nas regiões mais d íspares, a faca tem o poder de afastar as influê ncia s malé fica s, o que parece ligado a um dos aspectos do simbolismo do ferro (DAM S, ELIF). O símbolo da faca está com frequência associado à ideia de execução judicial, de morte, de vingança, de sacrifício [...]. 403 Tam bém a vassou r a est á “ rel a ci onada c om o uni verso f em i ni no da coz i nha, da l i da da casa, d a l i m pez a e da ordem ”. S í m bolo i ndubi t avel m ent e as soci ado às brux as, “ a vassoura era o ri gi nal m ent e um a cana ou pau com gi est as ou qual quer out ro el em ent o veget al num a das pont as. Qu ando col oc ada a o al t o, pode assem el har -se a um a fi gur a hum an a de fart a cabel ei ra. Árvor e esquem át i ca, a vas s oura n ão poss ui raí z es e po r i s so perm i t e o m ovi m ent o, o v o o . ” 404 Humilde instrume nto domé stico na aparência, a vassoura não deixa de ser um signo e um símbolo do poder sagrado. Nos te mplos e nos sa ntuár ios antigos, a vassour a é um ser viço de culto. T rata -se de eliminar do chão todos os ele mentos que 402 403 404 Idem, pp. 627 e 628. Idem, p. 314. Maria Teresa Meireles, Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras , p. 27. 299 viera m sujá -lo do exterior e isso só pode ser feito por mãos puras. […] […] Mas, se a vassoura inverte o seu papel protector, torna se instr umento de malefício e é nos cabos de vassoura que as feiticeiras de todos os países saem pelas chaminés e vão para o sabbat. Símbolo fálico, talvez, mas ta mbé m e sobretudo símbolos de poderes, que a vassoura deveria te r vencido, ma s que se apoderam dela e pelos quais ela se deixa levar. 405 O out ro obj ect o associ ado às brux as, com o j á re feri m os, é o cal dei rão , t am bém el e l i gado à l i da da c asa, especi al m ent e à coz i nha. Este outro objecto mágico, o caldeirão, é sem dúvid a descendente de um no vo artefacto de importância capital para a vida das co munidades, que irro mpe na história na tra nsição do Mesolítico para o Neolítico: o vaso de cerâ mica. Objecto do quotidiano, ma s e sse ncial para o ar maze na mento e co nservação dos alime ntos, ele contribui para a criação do tipo da economia excedentária resultante das práticas agr ícolas e, consequentemente, para a repartição de tarefas, a especialização das aptidões individuais, a mobilidade e a estratificação das sociedades. T ambé m foi evoluindo, ao longo do te mpo, na s for mas, na acompa nha ndo ideias. decoração e, por e nas técnicas sua vez, motiva nd o, de ma nufac tura, pensa me ntos e 406 E Gabri el a Morai s c ont a a evol uç ão do vaso de c erâm i c a at é se t ornar o cal dei r ão onde as bruxas faz em as s uas po ções e out ros fei t i ços: 405 Jean Chevalier e Alain Gheerbran t, ob. cit., p. 677. Gabriela Morais, Lenda da Fundação de Portugal, Irlanda e Escócia , p. 40. 406 300 Disse -se, a propósito do objecto mágico calde irão, que este era o descendente dos primeiros potes de cerâ mica. Se o vaso ca mpanifor me (beaker) especializado de essencialmente a aparece cerâ mica partir de uma co mo sendo requintada, longa um que tradição tipo evolouiu local, nesta sequência se insere também a manufactura dos vasos de metal, de cobre, bronze, ouro ou ferro. E, dos vasos pequenos, rapida me nte se passou ao caldeirão. E mais elucidativo do que o mapa citado acima [o mapa da expansão dos vasos ca mpa nifor me s ou bell-be akers], é o mapa da expansão dos caldeirões, na época final do bronze, II/I milénio a.C., onde Irlanda e Portugal estão claramente pontilhados, indicando as flagra ntes se melha nças. A difusão dos caldeirões entre Portugal e a Irlanda constitui, aliás, prova do fluxo e refluxo de influências entre estes dois países. E reveste -se de uma qualidade digna de realce por se relacionar directa me nteco m uma das características de objecto má gico: o contexto marcada me n te sa grado e ritual. 407 Apenas em L M 50 e LM 3 a m our a t raz consi go um a “ vara m ági c a”: Co mo o bastão, a varinha é símbolo de poder e de clarividência, seja de um poder e de uma clarividência vind [o]s de Deus, seja de um poder e de uma clarividência má gic [o]s, subtraídos às forças celestes ou recebid [o]s do demó nio: a varinha do mágico, da feiticeira, da fada. […] Entre os Celtas, instrume nto mágico por excelênc ia, a varinha é o símbolo do poder do druida sobre os ele me ntos. 408 P oder t em t am bém a cruz , pre sent e e m vári as ocasi ões – em mat éri a ou não: e m LM 33 , a m ul her de Di o go “persi gnou -s e” quando vi u o sangu e e ouvi u o gri t o de m ul her; em L M 3 4 , J oana venc e a m oura, “e m punhando a cruz ” ; em L M 36 , o m ouro j ura 407 408 Idem, p. 42. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 676. 301 “s obre a cruz ”; em L M 40 , “benz endo -se e rez a ndo, o ca rpi nt ei ro com preend e t udo”; em L M 50 , o ca rpi nt ei ro, “ chei o d e t er ror, pers i gnou -se e co rre u dal i para fora ”; e m L M 3 , “o carpi nt e i ro fez o s i nal da c ruz e d i r i gi u -se de corri d a para cas a”; em E LAP / M 7, M ari a Isabel da C o ncei ção Ol i vei r a “c om eça a rez ar os t r ês credos em cruz ” . […] A cruz é o terceiro dos quatro símbolos funda menta is (segundo CHAS), quadrado. Ela junta me nte estabelece com uma o centro, relação entre o círculo os e três: o por intersecção dos seus dois braços que coincide com o centro, ela abre o centro para o exterior; inscreve-se no círculo que divide em quatro segmentos; gera o quadrado e o triângulo, quando as suas extremidades são ligadas por quatro linhas re ctas. A simbologia mais co mp lexa deriva dest a s simp les obser vações: elas dera m orige m à lingua ge m ma is rica e mais universal. Co mo o quadrado, a cruz simboliza a ter ra, mas exprime os se us aspectos intermediários, dinâmicos e subtis. A simbologia do quatro liga -se e m gra nde parte à da cruz, mas sobretudo ao facto de ela designar um certo jogo de relações no interior do quatro e do quadrado. A cruz é o mais totalizante dos símbolos (CH AS, 365). 409 Al gum as m our as a parec em pent e ando os seus cab el os com pent es de ouro. C om o j á vi m os, a propósi t o da serei a , o pent e t em um a si m bol o gi a for t em ent e l i gada à s ex ual i dade. No ent ant o, “o pent e t am bém é aq uel e que mant ém j unt os os cabel os, i st o é, os com ponent es da i ndi vi dual i dade no seu aspe ct o nobrez a, de c apaci d ade d e el evaç ão esp i ri t ual ”. a encont r ar sí m bol os rel aci onados, 410 de força, de Vol t am os, assi m, si m ul t aneam ent e, com a s ex ual i dade e a ev ol ução espi ri t ual , suge ri ndo que am ba s são as com ponent es pri nci pai s da vi da do ser hum ano. 409 410 Idem, p. 245. Idem, p. 519. 302 Ex i st e, ai nda, nest as hi st óri as, um obj ect o part i cul a r – a “gadanh a” – só usad o por um a person a gem – a mort e . Símbolo da morte, na medida e m q ue a gada nha, tal co mo a morte, igua la todas as coisas vivas. Mas foi só a partir do séc. XV que a gada nha co meçou a aparecer nas mã os de um e squeleto, para significar a inexorável igualizadora . No Antigo e no Novo T estame nto, fala -se se mpre de foice, e não de gadanha, para ceifar as ervas daninhas; mas surge mais co mo instr umento de castigo, e portanto disc riminatório, e não co mo instr ume nto geral da morte, e por isso igua l para todos. É nas mãos do velho Satur no, o deus coxo d o te mpo, que mais co mumme nte aparece a foice, ou a gada nha, como instrumento que ceifa, cega me nte, tudo o que vive. A passagem da foice para a gadanha não fez mais do que aco mpanha r a evolução dos utensílios agrícolas. 2.2.8. 411 FORMAS E NÚMEROS: S e, em t odos os ex em pl os apont a dos, est am os pe ra nt e o s i m bol i sm o cri st ão da cruz , o m esm o n em sem pre a cont ece no c aso das encruzi l hadas : A importâ ncia simbólica da encruzilhada é univer sal. Está ligada à situação de cruza me nto de ca minhos, que faz da encruzil hada co mo que o centro do mundo, verdadeiro centro do mundo para quem nela se situa . […] 412 Est es “cruz am ent os ” (nos vá ri os sen t i dos) acont ec em com al gum as ent i dades cri st ãs – Sant os o u a N ossa S enhora –, m as s obret udo com ent i dades m í t i cas , espe ci al m ent e l obi some ns , bruxas ou f ei t i cei ras , al mas penadas e out ros medos (com o j á referi m os ant eri orm ent e ) . 411 412 Idem, p. 343. Idem, p. 283. 303 A encruzilhada é o encontro com o destino. Foi numa encruzilhada que Édipo encontrou e ma tou seu pai, La io, e que a tragédia co meçou. […] Cada ser huma no é e m si mesmo uma encruz ilhada onde se cruzam e se degladiam os diversos aspectos da sua pessoa. […] Os Romanos prestavam culto aos Lares das encruzilhadas, precisa mente para ne stas não encontrare m um destino ne fasto. […] Na mitologia gre ga, uma divindade mui to mal definida, de origem incerta, de uma esfera de acção ilimitada, identificada com Ártemis, com Deméter, com Apolo, ou ainda com outros deuses e deusas, foi cha mada a deusa das encruzilhadas ; era Hécate. Este no me funcional veio-lhe se m dúvida de quand o se acordou fazer dela a senhora dos três mundos: o Céu, a Terra e os Infernos. […] E m toda a Europa, é nas encr uzilhadas, como ta mbé m no cimo dos monte s malditos, que os diabos e as feiticeiras se encontram para celebrar os seus sabat. 413 Tam bém em LM 33 , o bol o, de form a rect an gul a r, dev er á ser “di vi di do em quat ro part es”, l o go, di vi di do em cruz e form ando quat ro r e ct ân gul os m ai s pequenos. “– Apen as um grand e bol o. Assi m , d est e fei t i o... Est ás a v er ? – E desenhava com a m ão um a espéci e de rect ân gul o. [ ...] – Quero um bol o gra nde e m ui t o branco, di vi di do e m quat ro part es.” ( L M 33 ) O rect ângul o part i ci pa da si m bol ogi a ge ral do quadr ado: É o símbolo da terra , por oposição ao céu, mas é ta mbé m, num outro nível, o símbolo do universo criado, terra e céu, po r oposição ao incriado e ao criador; é a antítese do transcendente. O quadrado é uma figura antidinâmica, ancorada nos quatro lados. Simboliza a parage m, o instante antecipado. O quadrado implica uma ideia de estagnação, de solidificação; até mesmo a estabilização na perfeição: é o caso da Jerusalém 413 Idem, pp. 284 e 285. 304 celeste. Enquanto que o movimento livre é circular, redondo, a paragem e a estabilidade são associadas a figuras angulosas, a linhas quebradas e irregulares (CHAS, 30-31). [...] O número quatro é, portanto, de certa for ma, o da Perfeição divina; de uma for ma mais geral, é o no me do desenvolvimento co mpleto da manife stação, o símbolo do mundo estabilizado. 414 O bol o, ao ser di vi di do em quat ro part es, dá ori gem a qu at ro rect ân gul os m ai s pe quenos: Os significados simbólicos do quatro estão ligados ao do quadrado e da cruz. Desde épocas próximas da pré-história que o 4 foi utilizado para significar o sólido, o tangível, o sensível. A sua relação com a cruz fazia dele um símbolo incomparável de plenitude, de universalidade, um símbolo totalizador. [...] Existem quatro pontos cardeais, quatro ventos, quatro pilares do Universo, quatro fases da Lua, quatro estações, quatro ele me ntos, qua tro humores, quatro rios do Paraíso, quatro letras no no me de De us (YH VH) , do prime iro ho me m ( Adão), quatro braços da cruz, quatro Evangelistas, etc. [...] O quatro simboliza o terrestre, a totalidade do criado e do revelado. 415 Em E LAP / M 6, o rapaz est á t om ando cont a de um a sec a de fi gos num al m anx ar – um a ei ra, l o go, u m cí rcul o. Segundo símbolo funda mental (segundo CHAS, 24), j u n t a me n t e c o m o c e n t r o , a c r u z e o q u a d r a d o . O círculo é, em primeiro lugar, um ponto estendido; participa da sua perfeição. Assim, o ponto e o círculo têm propriedades simbólicas comuns: perfeição, homogeneidad e, ausência de distinção ou de divisão… O círculo pode ainda simbolizar, não as perfeições ocultas do ponto primordial, mas 414 415 Idem, p. 549. Idem, p. 554. 305 os efeitos criados; dizendo de outra forma, pode simbolizar o mundo, quando se distingue do seu princípio. […] 416 A m oura d e L M 33 quer u m bol o e, de poi s, ofere ce um ci nt o; C ás s i m a ofere ce ao carpi nt ei ro um ci nt o, t am bém ( LM 40 , LM 50 e LM 3 ); D. Zarol ha t em , pri m ei ro, um so nho e, m ai s t arde, f i ca com u m ol ho e sal t a -l he o out ro ( LM 44 e LM 25 ); em L36, a m oura est á a pent ear -se com um pent e de ouro ; em LM 32 , D. Barb aç as encont ra uma m eni n a que l h e ped e que l he l eve, t odos os d i as, uma gal i nha. Est es s ão os casos m ai s e vi dent es e, t al vez , os m ai s s i m ból i cos, em que est á ex presso o núm ero um , m as é f requ ent e, em m ui t as l endas, um gove rn ador, uma fi l ha, um c ast el o, um a m oura, um m oi ri nho, et c... Encont ram os t am bé m um rap az e um gat o p ret o (E LAP / M 6), uma burri nha bran c a ( E LAP / M 7), um rochedo onde m al c abi a uma pes s oa , um vul t o (E LAP / M 8), um burro ( LLO 1 e E LLO 1), um hom em ( E LM O 1 e LM O 3 ) e um garot o ( LM O 1). Símbolo do ho me m de pé : único ser vivo a gozar dessa faculdade, a ponto de certos antropólogos fazerem da verticalidade um sinal distintivo do ho me m, ainda mais radical do que a razão. O Um encontra-se igualmente nas imagens da pedra erguida, do falo erecto, do bastão vertical: representa o ho me m activo, associado à obra da criação. O U m é igualme nte o Princípio. Não manifestado, é dele que emana toda a manifestação e é a ele que ela regressa , esgotada a sua existência efé mera; ele é o princípio a ctivo; o criador. O Um é o luga r simbólico do ser, fonte e fim de todas as coisas, centro cósmico e ontológico. Símbolo do ser, mas ta mbé m da Revelação, que é a mediadora para elevar o ho me m, atra vés do c onhecime nto, a um 416 Idem, pp. 201 e 202. 306 níve l superior. O U m é ta mbé m o ce ntro místico, de onde irradia o Espírito , como um so l. 417 A m oura d e L2 quer os doi s ol hos do fi l ho de Ant óni o; a de L M 3 8 ( LM 48 e LM 13 ) dá ao al m oc reve d uas barras de ou ro; em L M 4 5 e LM 31 , o r apa z t raz da Moi ram a doi s present es; em LM 59 , a vaca p ari u doi s bez erri nhos; em L M 7 , o rapaz j unge ao a rado doi s t ouros. E há m ai s sit uações de pares , c om o os doi s am ados ( LM 41 , LM 49 , LM 54 , LM 10 e LM 16 o pai e a fi l ha ( L M 39 , LM 45 , LM 4 6, LM 47 , LM 51 , LM 53 , LM 6 , LM 11 , LM 12 , LM 17 , LM 26 , LM 28 e LM 31 ), o m ari do e a m ul he r ( ( L M 33 , LM 34 , LM 40 , LM 4 3, LM 47 , LM 50 , LM 59 , LM 61 , LM 3 , LM 12 , os LM 27 , LM 32 e LM O 2), doi s i rm ãos encant ados e m LM 49 (e LM 1 0 ), os doi s am i gos ( LM 21 e E LLO 1), o c asal de pret o que s e pa ssei a pel a prai a ao anoi t ece r ( E LAP / M 9) ou a m ã e e o fi l ho de LLO 1 . Símbolo de oposição, de conflito, de reflexão, es te número indica o equilíbrio realizado ou de ameaças latentes. É o número de todas as a mbiva lência s e de sdobrame ntos. É a prime ira e a mais r adical d as divisões (o criador e a criatura, o branco e o preto, o masculino e o feminino, a matéria e o espírito, etc.), aquela de que de rivam todas as outras. Na Antiguidade foi o número atribuído à Mãe; designa o princípio feminino. E entre as suas temíveis ambivalências, está o tanto poder ser o germe d e uma evolução criadora como de uma involução desastrosa. O número dois simboliza o dualismo, sobre o qual se apoia qualquer dialética, qua lquer esforço, qualquer co mbate, qualquer mo vime nto, qualquer progresso. 418 Em LM 34 , Ant óni o l evou “t rês di as e t rês noi t es a fi o a ca var e a s em ea r”; em L M 38 ( LM 48 e LM 13 ), são t rês os encant ados – a m oura que apa rec e a J osé C oi m bra e os seus doi s i rm ãos – e são t rês as condi ções i m post as pel a m oura ao al m ocreve: a pri m e i ra consi st e 417 418 Idem, p. 668. Idem, p. 270. 307 em s er “t rês v ez es engol i do e t r ês vez es vom i t ado” pel o l eão e, a s egund a, em s er “t r ês vez es ab raç ado” pel a serp ent e; o go vernado r de Loul é t em t rês fi l has, l ogo, dá t rês pães ao carpi nt ei ro; em L M 4 2 (e LM 24 ), o m oi ri nho preci sa d e t rês m es es pa ra ch e ga r à su a t erra, du rant e os qu ai s a m ul her d eve j e j uar t odos os di as; e m L M 4 4 (e LM 25 ), quando D. Za rol ha vol t a a sonhar com o t acho, t em o m es m o sonho “por t rês noi t es segui da s”; em L M 60 , apa recem a dançar, na f rent e d o rapaz , t rês ani m a i s d i ferent es, qu e s ão t odos encant ados. E h á, t a m bém , out ros t ri os (1+2, ou 1+1+1 ), co m o, por ex em pl o, os segui nt es: em L M 33 – a m oura / Di ogo e a m u l her; em LM 34 – a m oura / Ant óni o e J oana , e Ant óni o / J oana e os fi l hos ; em LM 35 – a m our a / Ant óni o e a m ãe ; Ant óni o / doi s ami gos ; em LM 36 – o m ouro / J oana e a m ã e ; em LM 37 – Fl ori p es / J ul i ão e Ani nhas ; Fl ori pes / J uli ão e o com padr e Zé; o com padr e Zé / J uli ão e Ani nhas; em LM 4 1 (e LM 16 ) – Abda l á / Al i na / Az i z ; em L M 43 (e LM 27 ) – a m ul he r / o m ari d o / o m ouro; em LM 45 (e LM 31 ) – o rapaz / a m oura / a fam í l i a da m oura ; em L M 49 (e LM 10 ) – o j ovem guerr ei ro / a fi l ha do governado r / o i rm ão de oi t o anos ; o j ovem gu err ei ro / a m oura / o pai d el a ; a fi l ha do gov ern ador / o j ovem gu err ei ro / os com pan hei ros; em LM 54 – Di n orah / o t rovador / o própri o Al á; em L M 61 – o m ouri nho / a m ul her e o m ari do; em L M 21 – a m our a / os doi s am i gos (e t am bém f oram t rês os cont act os que el a em preend eu, ant eri orm ent e, pa ra o seu des encant am ent o); e m L M 32 – a “m eni na ” / a “vel ha ” / o povo ; a “m eni na” / a “vel ha ” / o m ari do; em E LAP / M 7 – a avó do narrado r / a burri nha / a vo z ; os t rês credos e m cruz ; em E LAP / M 8 – “À t ercei r a vez , o nosso hom em concl ui u que era al guém q ue, por det rás del e, l h e and ava a d ar um fort e sa cão na can a” e o uvi u t rês “s onoras gar gal hada s”; em E LAP / M 9 – um senhor e um a da m a / um grupo de garot os; e m LLO 1 – B erna rd i no / a f am í l i a / as pessoas; em E LLO 1 – os doi s pescadores / um burro; os doi s pescadores / um hom em ; em LM O 1 – um garot o / a m ã e / o supost o pai ; um ga rot o / a m ãe / o verdadei ro pai ; em LM O 2 – a mort e / o casal de i dos os. 308 O três é , universalme nte, um número funda me ntal. E xprime uma orde m intelec tual e espiritual, e m De us, no cosmo s ou no ho me m. Sintetiza a tri-unidade do ser vi vo ou resulta da conjunção de 1 e 2, produto, nesse caso, da União do Céu e da Terra. [...] O tempo é triplo […]: passado, presente, futuro; o mundo é triplo […]: terra, atmosfera, céu; […] 419 O três é, ainda, a ma nifestação, o revelador, o indicador dos dois primeiros: o filho revela o pai e a mãe, o tronco de árvore da altura do home m revela o que e stá acima dele no ar, ra mos e folhas, e o que se oculta debaixo de terra, as raízes. Por fim, o três equiva le à rivalidade (o dois) ultrapassada; exprime um mistério de ultrapassage m, de síntese, de reunião, de união, de resolução (HAMK).[…] O três designa, ta mbé m , os níveis da vida humana: ma terial, racional e espiritual ou divino, bem co mo as três fa ses da evolução mística: purgativa, iluminativa e unitiva. 420 Nas l endas de mou ras encant adas, ap enas em LM 61 há um a refe rênci a esp eci al ao núm ero ci nco : o m oi ri nho dever á aj udar a m ul her nos servi ços da casa du rant e o p erí odo de ci nco ano s. O número 5 vai buscar o seu simbolismo a o facto de, por um lado, ser a soma do primeiro número par e do primeiro número ímpar (2+3); e, por outro lado, ser o meio dos nove prime iros números. É s inal de união, númer o nupcial, dizem os Pitagóricos; equilíbrio. número Será, ta mbé m portanto, do o centro, número da das har mo nia e hierogamias, do o casa me nto do princípio celeste (3) e do princípio terrestre da mãe (2). É ainda símbolo do home m (braços afa stad os, o ho me m parece disposto em c inco partes e m for ma de cruz: os dois braços, o tronco, o centro abrigo do coração a cabeça, a s duas 419 420 pernas). Símbolo vertical, outro igualme nte horizontal, do universo: passando por um dois eixos, mesmo um centro; Idem, p. 654. Idem, p. 656. 309 símbolo da ordem e da perfeição ; finalmente, símbolo da vontade divina que só pode desejar a ordem e a perfeição (CHAS, 243 244). Representa ta mbé m os cinco se ntidos e as cinco for ma s sensíveis da matéria: a totalidade do mundo sensível. 421 Mas a si m bol ogi a do núm ero ci nco t a m bém est á i nt i m am ent e l i gada à das en cruz i l hadas: Da mesma for ma, o Ce ntro do mundo, representado pelo 5, é tamb é m o glifo do tre mor de terra, do castigo fina l, do fim do mundo, onde os espíritos ma léficos se precipitarão das quatro direcções cardeais sobre o centro para aniquilarem a raça humana. O Centro do mundo é aqui a encruzilhada central e, como todas a s encr uz ilhadas, é um lugar onde se produze m te míveis aparições. 422 Em LM 32 , a vel h a B arba ças “d evi a t raz er -l he um a gal i nha t odos os di as [ ...] durant e 6 m eses.” (“Os m úl t i pl os dum núm ero t êm , em ger al , o m esm o si gni fi cado si m ból i c o de bas e que o núm ero s i m pl es . P orém , ou acent uam ou i nt en si fi cam est e si gni fi cado , ou m at i z am -n[ o] n um sent i do part i cul ar que deve ser proc urado em cada caso. ” 423 ) – or a, o núm ero s ei s , al é m de ser m úl t i pl o de doi s e de t rês, est á di re ct am ent e l i gado a o si gno d e S al om ão (cuj a s i m bol o gi a anal i sar em os m ai s adi ant e): Para Allend y ( ALLN, 150), o senário marca esse ncialmente a oposição da criatura ao Criador num equilíbrio indefinido. Esta oposição não é necessa ria mente de contradição; pode marcar uma simple s distinção, ma s que ser á a fonte de todas as a mbiva lência s do seis: com efeito, reúne dois co mple xos de a ctividades ternárias. Pode pender para o bem, mas ta mbé m para o mal , para a união a Deus, mas ta mbé m para a revolta. É o número dos dons 421 422 423 Idem, p. 196. Idem, p. 197. Idem, p. 479. 310 recíprocos e dos anta gonismo s, o do destino místico. É uma perfeição e m potência; o que se exprime pelo simbolismo gráfico de seis triângulos equiláteros inscritos num círculo: cada lado de cada um dos triângulo equivale ao raio do círculo e seis é quase exactamente a relação entre a circunferência e o raio (2 p). Mas esta perfeição virtual pode abortar e esse risco faz do 6 o número da prova entre o bem e o mal. 424 Os l obi somens são os sét i m os fi l hos de um casal e as f ei t i ce i ras o u mul heres de vi rt udes são as sét i m as fi l has . O sete corresponde aos sete dias da semana, aos sete planetas, aos sete graus da perfeição, às sete esferas ou graus celestes, às sete pétalas da rosa, às sete cabeças da naja Angkor, aos sete ra mos da árvore cósmica e dos sacrifícios do xa ma nismo, etc. […] Sete indica o senti do de uma mudança depois de um ciclo concluído e de uma renovação positiva . […] Sete é o número , observá mos inicialme nte, da conclusão cíclica e da sua renovação. Tendo criado o mundo em seis dias, Deus desca nsou no sétimo e fez dele um dia santo: o sabbat não é, portanto, verdadeiramente um descanso e xterior à criação, mas o seu coroame nto , a sua conclusão na perfe ição. É aquilo que evoca a se ma na, que dura um quarto de Lua. […] O sete co mporta, no entanto, uma a nsiedade pelo facto de indicar a passagem do conhecido para o desconhecido: um ciclo encerrou-se, qual será o seguinte? No caso do l obi somen , 425 pa rt i cul am e nt e, t al vez possa m os, t am bém , acr escent a r a se gui nt e si m bol ogi a: Nos contos e nas le ndas, este número exp rime os Sete estados da matéria, os Sete graus da consciência, as sete etapas da evolução: 424 425 Idem, p. 591. Idem, pp. 603 e 604. 311 1. consciência do corpo físico: desejos satisfeitos de for ma ele mentar e brutal ; 2. consciê ncia da inteligência da e moção: as pulsões comple xifica m-se co m o sentimento e a imaginação; 3. consciência da inteligênci a: o sujeito classifica, ordena, raciocina; 4. consciência da intuição: as relações com o desprendime nto da inconsciente são percebidas; 5. consciência da espiritualidade: vida material; 6. consciência da vontad e: que faz com que o saber passe para a acção; 7. consciência da vida: que dirige toda a sua actividade para a vida eterna e a salvação . 426 Mas não dei x a de ser vál i do par a a f ei t i cei ra , t am bém , sej a mul her de vi rt udes ou m enos vi rt uosa. Assi m , de acordo co m o gr au de consci ênci a m ani fest ado, poderem os i nt egr á -l os num dos est ádi os aci m a re feri dos. 2 . 2 . 9. C O R P O H U M A N O : Ao analisarmos todos os entes míticos que estudámos no início deste trabalho, não podemos deixar de concluir que o cabelo, ou melhor, a relação com o cabelo, ou talvez melhor ainda, a forma como é usado, é o que todas as entidades femininas têm em comum. S e n d o a c a b e l e i r a u m a d a s p r i n c i p a i s a r m a s d a mu l h e r , o facto de estar à mostra ou escondida, atada ou desatada é 426 Idem, p. 606. 312 frequente me nte um sinal de disponibilidade, de entrega ou de reserva da mulher. 427 O cabelo constitui um aspecto profundamente significativo do corpo huma no, quer pessoal quer socialme nte, co mo se pode observar no vasto leq ue de simbolismo ligado aos diferente s estilos de cabelo. Está essencia lme nte asso ciado à força vital. […] O cabelo co mpri do e solto nas mulheres significava o estado solteiro ou a vir gindad e – como na iconogra fia cristã da Virge m Maria e das santas virgens –, co mpara do com o cabelo entrançado da cortesã. […] A COR DO CABELO tem o seu próprio simbolismo; o cabelo ruivo detinh a antigamente associações de moníaca s, o c abelo louro representa o poder solar ou régio e o cabelo preto autoridade terrestre. [“A górgona Medusa, co m o seu cabelo de cobras entrelaçadas, é um símbolo assustador da força vital fe minina no seu a specto maléfi co e d e s t r u i d o r . ” ] 428 C onvém , ent ão, rec ordar que a serei a pode t er ca bel os ru i vos (“rem i ni scên ci as d a pl um agem av erm el hada”, sem dúvi da ) e a I ara apare ce com c abel o s de vári as cor es ( “l ouros e verd es , m as, em ge ral , são ne gros e l i sos”, com o j á ci t ám os) , as mouras enca nt adas e a N ossa Senhora c om cabel os l ouros. Y emanj á , o ra t raz cab el o cl aro, or a pret o. É de sal i ent ar, em t odas as l endas, a i m port ânci a especi al d ad a ao s ent i do da vi são, em part i cul ar ao ol har, a i núm eros t i pos de ol har e, por conse gui nt e, aos ol hos ( “o ol ho é sí m bol o da percep ção i nt el ect ual [ …] , de conheci m ent o, d e p ercep ção sobren at ur al [ …] e um equi val ent e si m ból i co do Sol ” 429 ): O olhar carrega todas as paixões da alma e é dotado de um poder má gico que lhe confere uma terrível e ficácia. O olhar é o instr umento das ordens interiores: mata, fasc ina, fulmina, seduz, 427 428 429 Idem, p. 139. Jack Tresidder, ob. cit., p. 18. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., pp. 484 a 486. 313 do mesmo modo que exprime. [...] O olhar aparece co mo o símbolo e o instrume nto d uma revelação. Mas, ma is ainda, ele é um reactor e um revelador recíproco de quem olha e de quem é olhado. 430 E est e “ol har e ser ol hado” rem et e -nos, i m edi at am ent e, par a o mau ol hado , “dei t ad o” especi al m ent e pe l as bruxas . O mau olhado é uma expressão, muito co mum no mundo islâ mico, que simboliz a uma to mada de poder sobre algué m ou alguma coisa, por inve ja e por má inte nção. O mau olhado é a causa, diz -se, da morte de metade da humanidade. O mau olhado esvazia as casas e enc he os túmulos. T êm olhos partic ular me nte perigosos: as velhas e as jovens recém -casadas. E são particular me nte se nsíveis a ele: as cria nças, as parturiente s, as jovens recém-casadas, os cavalos, os cães, o leite e o trigo. […] Existem desenhos meios de geométricos, defesa contra objectos o ma u brilhantes, olhado: véu, fumigações odoríferas, ferro ver melho, sal, alúmen, c hifres, mei a -lua, figa. A ferradura ta mbé m é um talismã contra o mau olhado: parece reunir, de vido à sua matéria, à sua for ma e à sua função, a s virtudes má gica s dos vários símbolos: corno, meia -lua, mão, e as do cavalo, animal do mé stico e, primitiva me nte , sagrado. 431 Mas há , nas l endas de mouras encant adas , t rês si t uações em que os ol hos assum em especi al i m port ânci a, porque l he s é (ou pret ende ser ) ret i ra da a ex t raordi nári a capaci dad e de ex ercer em a s ua função: em LM 34 , a m oura preci sa dos ol hos do fi l ho m ai s vel ho de Ant óni o e de J oana para pod er l i bert ar -se do s eu c at i vei ro; em LM 38 ( LM 48 e LM 13 ), o al m ocr eve fi c a ce go, por c ast i go da m oura enc ant ada, d urant e al guns anos, recupe rando a vi são t am bém por desí gni o d a m e sm a ent i dade; em L M 44 (e LM 25 ), “s al t a” um ol ho à personagem , que fi ca a ser conhe ci da por D. Za rol ha , devi do 430 431 Idem, p. 484. Idem, p. 486. 314 a es se f act o, supost am ent e t am bém por cast i go pel a sua h esi t ação ant eri or. Nout ros epi sódi os l endári os, t em os ol h os e ol har es di fer en t es: em E LAP / M 6 , “só nel e [ o gat o pret o] bri l havam doi s ol hos m ui t o vi vos”; em E LAP / M 9 , o senhor e a dam a de pr et o “d e fac e t ão m aci l ent a e de ol ho s t ão l uz i di os que m ai s pare ci am duas al m as do out ro m undo…”; e m E LLO 1 , “um en orm e burro, de or el has m ui t o es pet adas e ol hando para el es com a r de desafi o [ …] . Depoi s, parou e pôs -se a ol h ar pa r a el es com o que a e x am i nar as suas at i t udes. ”. Ser cego significa, para uns, ignorar a realidade das coisas, negar a evidência e, portanto, ser louco, lunático, irresponsável. Para outros, o cego é aquele qu e ignora as aparênc ias enganosas do mundo e, graças a isso, tem o privilégio de conhecer a sua realidade secreta, profunda, interdita ao co mum dos mortais. [...] Os deuses cegam ou enlouquecem aqueles que eles querem perder, e por vezes salvar. Mas, se assim apetecer aos deuses, o culpado recupera a vista: eles são os donos da luz. […] Entre os Celtas, a cegueira constitui normalmente uma desqualificação para o sacerdócio ou para a adivinhação. 432 E em LM 50 e LM 3 , a m ul he r do ca rp i nt ei ro, ao cort a r o pão, cor t a “a pern a di r ei t a” de C ássi m a, e e m L M 37 e LM 14 , para s e r l i bert ada, Fl o ri pes d everá s er f eri da no “ braço, do l ado do co ração ”: A mutilação aparece na maior parte das vezes como desqualificação. [...] Mas esta conseq uência totalmente social da mutilação não afecta verd adeira mente o sentido simbólico d essa pala vra. [...] a ordem da cidade é par: o homem fica de pé sobre as duas pernas, trabalha com os dois braços, vê a realidade visível com os seus dois olhos. Ao contrário da ordem huma na o u diur na, a ordem escondida, nocturna, transcendental, é por princípio una e repousa sobre um vé rtice, co mo a bailarina ou a pirâ mide 432 Idem, pp. 180 e 181. 315 invertida. O d isfor me, o a mputado, o estropiado têm isso e m comum: ac ha m-se colo cados à marge m da sociedade huma na – ou diurna – pelo fato de a paridade, neles, ser atingida: eles participam, pois, da í e m dia nte , da outra ordem, a da noite, infernal ou celeste, satânica ou divina. [...] A mutilação reveste -se , portanto, de um valor simbólico de i n i c i a ç ã o , b e m c o m o d e c o n t r a - i n i c i a ç ã o . 433 Ai nda a propósi t o de m ut i l ação, em bor a não se t rat e do corpo hum ano, em L1, é cort ada a perna do ca val o que, deduz -se, l evari a a m oura, desen cant ad a . Em LM 33 , LM 40 , LM 50 e LM 3 , há “t ent at i vas ” de m ut i l ação, que ca usari am , sem dúvi da al gum a, a m or t e, com o vi ngan ça, por part e das m ouras, pel as m ut i l ações sofri das, e que só não são consum adas por “acaso ”, com a agr avant e d e, em L M 50 e LM 3, o obj ect o de t ão t errí vel vi ngan ça ser a m ul her do carpi nt ei ro, no mo m ent o de dar à l uz um a cri anç a. Revestindo a face descendente desta dualidade [evoluçãoinvolução], da luz em direcção às trevas, elas [as mulheres que morre m no parto] fazem parte da expressão perigosa do sagrado.[...] A mulher que morre ao dar à luz uma criança adquire e m todas as culturas um significado sagrado, que se aproxima do sacrifício humano destinado a garantir a perenidade, não só da vida, co mo da tribo, da nação, da fa mília. 434 Em LM 40, LM 50 e LM 3, do pão cort ado pel a m ul her do carpi nt ei ro “com e ç a a s ai r san gu e” ( em L M 40, a m ul her “l ava cui dadosam ent e o chão s uj o de sangue ”); t am bém em L M 33 , a perna do cav al o da m oura, que fora cor t ada pel a m ul her de Di ogo , “es t ava a san grar ” e, quando est e aci d ent e ocorr eu, a m ul her vi ra 433 434 Idem, pp. 464 e 465. Idem, p. 506. 316 com eça r a escor rer do bol o “um l í qui do vi scoso, verm el ho -escuro , com o san gue! ”: O sangue simboliza todos os valores solidários d o fogo, do calor e da vida que têm parentesco com o Sol. [...] O sangue corresponde ainda ao calor, vital e corporal, oposto à luz, que corresponde ao sopro e ao espírito. Nesta mesma perspectiva, o sangue , princípio corporal, é o veículo das paixões (CADV, ELIF, GUEM, GUES, PORA, SAIR). O sangue é considerado por alguns povos co mo o veículo da a l ma ; o que explicaria, segundo Frazer, os ritos dos sacrifícios, nos quais se tinha um grande cuidado em não deixar que o sangue da vítima se derrama sse no chão [...]. 435 Em E LLO 1, após o que se deduz que fo i um a t ransform a ção de um burro / l obi somem novam ent e em hom em , est e é “j á de i dade, m as fort al haço e d e gr andes orel h as”. As orel has são sím bol o do s ent i do da audi ção e, por conse gui nt e, d e “ com uni caç ão, e nquant o é recebi d a e passi va ” burro em que se 436 . M as , nest e caso, t al vez por an al o gi a com o t ransform ar a, e pel a própri a cond i ção de l obi som em , parec e - nos que a si m bol ogi a das o rel has gran des est á m ai s próx i m a da da l enda do rei Mi das: Segundo a lenda grega do rei Midas, as orelhas grandes seria m ta mbé m a s insígnias da estupidez. Mas a aná lise da lenda revela muito mais: ao preferir a flauta de Pã à lira de Apolo, o rei Midas escolhe u o q ue esses deuses simboliza m, a sed ução dos prazeres em vez da ha r monia da razão. As suas grandes orelhas significam o e mbr ute cime nto saído da perversão dos seus desejos. Mais ainda, ele quer esconder a sua defor midade: mais não faz do que acrescentar a vaidade à luxúria e à patetice. 435 436 437 437 Idem, p. 171. Idem, p. 490. Ibidem. 317 2 . 2 . 10. ANIMAIS: P aral el am en t e aos ani m ai s fant ást i cos e/ ou si m ból i cos pres ent es em t odas as narrat i vas de c ari z t radi ci onal (o dra gão, o l eão, o t ouro, o ca val o, o carn ei ro, o bode, a cab ra, a s e rpent e, o s apo, o r at o, o pei x e), ve ri fi cam os ai n da, nest as l endas, u m a séri e de ani mai s domést i cos (a v ac a, a m ul a, o burro, o bez er ri nho, o porco, a l eb re, o coel ho, a gal i nha , o peru e, at é, a m osca ). C om eçam os por est e s, por vi verem m ai s próx i m os dos hom ens. Em LAP / M 10, a al m a penada é um a “m osca varej ei ra ”. P ara al ém da cor p ret a, e st a m osca pode t er o ut ra conot aç ão: Se mpre a zunir, e m rede moinhos, a picare m, as mosca s são seres insuportáveis. M ultiplica m -se sobre o apodrecimento e a decomposição, transportam os piores germes de doenças e desafia m qualq uer protecção: simboliza m uma busca ince ssante . É, nesse se ntido, que uma a ntiga divindade síria, Belzebu, cujo no me significaria, etimo logica me nte, o sen hor das moscas , se tornou o príncipe dos demónios. 438 Em LM 32 , a m ul her devi a l evar t odos o s di as, à “m eni na ”, um a gal i nha . Est e ani m al , sendo consi derad o popul arm ent e “es t úpi do e i ngénuo ”, r epres ent a, sem dúvi d a, al gum a ri quez a, p el o m enos do pont o de vi st a al i m ent ar, poi s forne ce carne, ovos (as pen as podem s ervi r par a ench er a l m ofadas) e o seu s angu e é m ui t o apre ci ado em al guns pr at os t r adi ci onai s. S abem os, t am bém , que pode ser um ani m al sacri fi ci al (e m al gum as t r adi ções , que não a n ossa), m as que, s egu ram ent e, é usa do, por vez es, para bruxedos , sobret u do se se t rat ar de um a gal i nh a pret a, com o é o c a so de L M 53 e LM 1 7 . 438 Idem, p. 461. 318 A galinha cerimónia s representa iniciáticas e um papel divinatórias de dos psic opompo Bantos da nas Bacia Congolesa. […] Em muitos ritos de carácter órfico ela aparece associada ao cão. O sacrifício da galinha para comunicar com os defuntos – costume espalhado por toda a África Ne gra – provém do mesmo simbolismo. 439 Um hom em vi u -se, um di a, no m ei o de um “rebanho d e per us de m onco esca rl at e”. O peru é uma a ve originária da América e um símbolo importante de fertilidade em inúmeras cultur as, no meadaa mente entre os povos a meríndios, para os quais significa a fertilidade fe minina e a virilidade masc ulina. O peru era sacrificado nos rituais d fertilidade. […] ta mbé m está assoc iado ao ma u te mpo pela agitação provocada pelas te mpestades. 440 R ecol hem os um epi sódi o l endári o que r el at a a apa ri ção d e doi s coel hi nhos brancos, na l adei ra do al t o, de Odel ouc a. Co mo a nimais nocturnos, os coelhos simboliza m a Lua, a morte e o re nascime nto […]. São criatura s q ue se esco nde m na terra, são criadores prolíferos e representam a fertilidade e a sorte. […] No Médio Oriente e devido aos seus poderes criativos, os coelhos e as lebres são considerados como criaturas má gicas. Possuir uma pata (a parte que entra em contacto com a terra que dá vida) era considerado um símbolo de protecção contra o m al e um auspício de sorte. Apesar disso, a lebre pode ser um fa miliar de uma br uxa. 439 440 441 441 Idem, pp. 343 e 344. Clare Gibson, ob. cit., p. 114. Idem, p. 101. 319 J ack af i rm a Tresi dder ai nda que, devi do ao “seu f ort e s i m bol i sm o l unar”, est es ani m ai s (c oel hos e l ebres) “est avam l i gados à fe rt i l i dade e aos ci cl os m enst ruai s fem i ni no s” em vari adí ssi m as t radi ções, nom e adam ent e a cel t a: “A l ebr e er a um at ri but o de deusas d a Lu a e d a ca ça nos m undos cl ássi co e c el t a”. 442 Tam bém em Odel ou ca, sobret udo, qu e fi ca ent r e Monchi q ue e S i l ves, aparec e a Z orra Berradei ra que , com o j á assi nal ám os, t ant o é as s oci ad a a um a m oura encant ada com o a um a al ma penad a . […] Independente, mas satisfeita por o ser; activa, inventiva, mas ao mesmo tempo destruidora; audaciosa, mas medrosa; inquieta, astuciosa, porém desenvolta, ela [a raposa] encarna as contrad ições (GRIP,52). Tudo civilizador ou o que cúmplice a de inerentes à raposa pode fraudes em condição humana . simbolizar, in[ú]meros herói mitos, tradições e contos pelo mundo, talvez [tenha sido] desenvolvido a partir deste retrato […]. A sua a ssociação às divindades da fertilidade prové m, se m dúvida, do seu vigor e da força dos seus apetites […]. 443 Em S . Brás de Al port el , apare ce “um cão pret o, gi gant es co”, que em nada se p arec e com “o m el hor am i go do hom em ”. Em j nj bhj bhj , i a um cão em ci m a do burro segui do p el a m ul her. E e m Al m ansi l , apar eceu , um a vez , um cã o que foi aum ent ando d e t am anho enquant o s egui a ao l ado de um hom em de bi ci cl et a , desde o cem i t éri o, che gando a t er o t am anho da própri a bi ci cl et a, e não se s abe o que l he a con t eceu, poi s o hom e m , t om a do de pâni co, ent rou de rom pant e na t aberna e nem conse gui u cont ar o que lhe t i nha acont eci do. Est as t r ês si t uações re cord am -nos i m dedi at am ent e um a s uperst i ção r ecol hi d a por C onsi gl i eri P e droso (Nº 447 ): “A al m a dos 442 443 Jack Tresidder, ob. cit., p. 64. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit.,p. 561. 320 i ndi ví duos que m orrem , apa rec e às vez es debai x o da form a de um cão pret o. ” 444 É que o cão t em u m si m bol i sm o frequent em ent e i gnor ado por quem o vê apen as c om o o ani m al dom ést i co m ai s dóci l e subm i sso de t odos: Não há, se m d úvida, mitolo gia alguma q ue não te nha associado o cão Anúbis, T ’ian -k’ua n, Cérbero, Xolotl, Garm, etc. à morte, aos inferno s, ao mundo subterrâneo, aos impérios invisíveis regidos pelas divindades ctonianas ou selénicas. O símbolo muito co mple xo do cão está, portanto, à primeira vista, ligado à trilogia dos ele me ntos terra – água – lua, da qual se conhece o significado oculto, femeal, ao mesmo tempo que vegeta tivo, sexual, adivinhatório, funda me nta l, tanto no que se refere ao conceito de inconscie nte co mo ao de subsco nscie nte. A primeira função mítica do cão univer salme nte ate stada é a d e p s i c o p o mp o , g u i a d o h o m e m n a n o i t e d a m o r t e , d e p o i s d e ter sido seu co mpanheiro no dia da vida. 445 S egundo vári os epi s ódi o s l endári o s , ex ist e m m ouro s encant ado s em carn ei ro s na re gi ão d e Loul é, ass i m com o em Az i nhaga das Qui nt as, P êra, S í t i o d a P at ã e S i l ves (o própri o rei de S i l ve s). Ardente, macho, instintivo e potente, o carneiro simboliza a força ge nésica que desperta o ho me m e o mu ndo, e que asse gura a recondução do ciclo vital, ta nto na primave ra da vida co mo na das estações. […] Esta força ígnea assemelha -se ao jorrar da vitalidade primeira, ao ímpeto primitivo da vida, com tudo que um processo inicial te m de imp ulso puro e bruto, de descarga eruptiva, fulgura nte, indomá vel, de arrebatamento desmedido, de sopro abrasador. 444 445 446 446 Consiglieri Pedroso, ob. cit., p. 204. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit.,p. 152. Idem, p. 160. 321 Esses encant am ent o s t êm em com um o fact o de se t r at ar de um carnei ro que anda p el os cam pos, apar ec e e desapa rec e quan do sent e prox i m i dade de hum anos. Quase t odos “dão uns berros de m et er m edo”. 447 O carneiro bravo, feroz e energético encarna as qualidades da agressivi dade, para alé m de ser um símb olo da força e da virilidade masc ulina. […] Na mitologia celta, a serpente com cabeça de carneiro era um atributo de Cernunnos; o carneiro estava associado à guerra e à fertilidade. 448 Mas, ao que parec e, est e carnei ro est á c o ndenado a per corr e r os cam pos em redor enquant o houver encant ados nos pal áci os s ubt errâneos d a r e gi ão, onde cost um am r euni r -se pe ri odi cam ent e. Na tradição popular, como na tradição religiosa, o carneiro, junta me nte com os seus parentes, apresenta, por vez es, a natureza de vítima absoluta. […] Co mo vítima sacrificial, ele é poder de transferência, transporta o in transportável, porque estabelece a passa ge m para o Alé m. É por esse motivo que o carneiro sacrificial é um mediador entre o humano e o divino; no 447 Ana Paiva Morais reproduz uma lenda citada por José Leite de Vasconcellos, que poderá interessar -nos, dado o contexo das nossas lendas: “Numa versão medieval da Criação dos Animais, o carneiro foi o primeiro animal criado por Adão com uma vara que Deus lhe dera e que permitia ficar menos só sobre a Terra depois de ter sido expulso, juntamente com Eva, do Paraíso Terrestre. Adão brande a vara no sentido do mar, e dele salta a ovelha, que além da companhia, fornece o leite e a lã; ao ver o sucesso de Adão, Eva procura imitá -lo, mas quando gesticula com a vara no sentido do mar, o que brota dele é o lobo, que logo dispara em perseguição da ovelha. Adão, para desfazer o mal, usa novamente a vara, com a qual cria o cão, que, ao ver o lobo e a ovelha, se apresta a socorrer esta última. Esta tradição permite estabelecer a linha de separação entre o universo dos an imais dóceis ao homem e domesticáceis – os criados por Adão – e os animais selvagens e indomáveis – os criados, insensatamente, por Eva com um gesto em que usurpa o poder criador concedido a Adão.” – B. I. do Carneiro, p. 6. 448 Clare Gibson, ob. cit., pp. 104 e 105. 322 entanto, ele é um emissário sem voz, aquele que pode anular -se 449 diante da essência do outro. […] Nos contos da tradição popular, retoma ndo uma lógic a simbólica que está a ctiva ta mbé m na trad ição sacrificial do « A n t i g o T e s t a m e n t o », o c a r n e i r o p a r e c e s e r a q u e l e q u e t r a z o outro em si. Talvez seja ele o animal que descreve de maneira mais intensa a ideia da nossa necessidade do outro, de o transportar e m nós (de o comer), de ser transportados por ele (de o sacrificar), e, por isso, se pode acreditar que as fal sificações da sua identidade não decorrem de uma intenção de ludibriar, como acontece co m a raposa, mas se fica m a dever à infinita dádiva da sua identidade, pela qual cada um dos seres, incluindo o ho me m, pode encontr ar -se co m os outros. Em LM 60 , Ind ependent em ent e rapa z vi u um t ouro “a “dan ça”, qu e faz i a part e do o da 450 d an çar” . ri t ual do des encant am ent o, pel os vi st os, o t ouro é um dos sí m bol os m ai s com pl ex os, de ent re os ani m ai s ( à ex ce pção da serp ent e, co m o é por dem ai s evi dent e): O touro evoca a ideia de força e ímpeto irresistíveis. […] Na tradição grega, os touros indomá veis simboliza va m o desencadea me nto desenfreado da violência. [..] O touro, ou mais geralmente, o bovino, representa os deuse s celestes nas religiões indo -mediterrânicas, em virtude da fecundidade infatigável e anárquica de Úrano, deus do céu, análoga à sua. O simbolismo do touro está igua lme nte ligado ao da torme nta, da chuva e d a Lua. […] As divindades lunares mediterrânico -orientais eram representadas sob a forma de touro e investida s com os atributos taurinos. […] 449 Ana Paiva Morais, B. I. do Carneiro, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2006, p. 20. 450 Idem, pp. 28 e 29. 323 A morte é inseparável da vida e o touro apresenta ta mbé m uma face fúnebre. […] O touro não deve ter tido, para os celtas, um valor simbólico exclusivo de virilidade e não se te m a certeza se se deve procurar o seu prime iro significado na dualidade ou na oposição sexual com a vaca. [… ] 451 Mas t am bém o rapaz de L M 7 encont rou “doi s bel os t ouros”. Existe m todas as a mbivalênc ias e todas as amb iguidades no touro. Água e fogo: é lunar, na medida em que se associa aos ritos da fec undidade; solar, pelo fogo do seu sangue e pelo esplendor do seu sémen. […] É uraniano e ctoniano. Os bovinos, como os ca ninos, pode m de facto aparecer ora como epifa nias terrestres ou ctoniana s, ora como epifanias urania nas. Muita s vezes, é a partir da su a cor que se define o seu símbolo. Em LM 59 e LM 58 , é necessá ri o usar “bez erri nhos”. Bez e rros ou “vi t el os”, com o t am bém são denom i nados, pensam os que o que i m port a, aqui , é que são boi s , i st o é, não a i dade, m as a m a nsi dão. Ao contrário do touro, o boi é um símbolo de bondade, calma e força pacífica; […] 452 O boi, antítese simbó lica do touro, faz sobressair esta comple xidade [na China], pois ele ta mbé m é a ssociado aos cultos agrários. Mas simboliza o sacrifício da força fecundante do touro, fazendo sobressair melhor, por contraste, a unicidade deste. A eliminação deste poder realça o seu valor, da mesma for ma que a ca stidade sublinha a importância da sexualidade. O princípio activo urania no manife sta a sua violência, afir mando -se ou nega ndo -se de uma for ma igu a lme nte a bsoluta. Livre, ele fecunda; preso, continente, assinala com igual clareza que sem ele nenhuma fec undida de é possível, pelo me nos na mesma orde m 451 452 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., pp. 650 a 652. Idem, p. 125. 324 e no mesmo níve l de existê ncia; é a contraprova duma mesma verdade. A sublimação da energia vital adqu ire uma fecundidade de outra ordem, a da vida espiritual. 453 E t am bém em L M 59 e LM 58 , um a va ca sai do est á bul o, durant e a noi t e, p ar a vol t ar “pej ada”. De uma for ma geral, a vaca, produtora de leite, é o símbolo da terra nutriz. […] A figura de Hathor, no pa nteão egípcio, resume estes diferentes aspectos do símbolo da vaca. Ela é a fertilidade, a riqueza, a renovação, a Mãe, a mãe cele ste do Sol, jovem bezerro de boca pura , esposa ta mbé m do sol, touro da sua própria mãe . Ela é a ma do soberano do Egipto; ela é a própria essência da renovação e da esperança na sobrevivência, dado que é regente e corpo do céu, a alma viva das árvores (J. Yoyotte, in POSD, art. Hathor). Ela está em todos os lugares em que os Gregos viram as cidades de Afrodite ; é uma jove m, a máve l e sorridente, deusa da alegria, da dança e da música , e compreende -se que, projectando no além as esperanças realizadas a cada Primavera na Terra, se tenha tornado, na margem esquerda do Nilo, em Mênfis e em Tebas, a patrona da montanha dos mortos . A Grande Mãe ou a Grande Vaca dos Mesopotâmicos era ta mbé m uma deusa da fecundidade. 454 Em LM 7 , t am bém u m porco “dan çava ”. O porco simboliza, quase universalme nte, a sofreguidão, a voracidade: devora e engole tudo o que se lhe apresenta. Em muitos mitos, é este papel de sorvedouro que lhe é atribuído. 453 454 Idem, p. 653. Idem, p. 673. 325 O porco é geralmente o símbolo de tendências obscuras, sob todas as suas formas de ignorância, d e glutonice, de luxúria e de 455 egoísmo. No mundo celta, o porco estava ligado tanto à deusa dos p o r c o s K e r i d wi n e a P h a e a , a d e u s a l u n a r d a f e r t i l i d a d e , q u e alime nta os d e uses. [… ] Os cristãos consider am-no um animal vil e inferior, um símbolo dos pecados da carne, e m e special da gula ; poderá també m r epresentar Satanás uma vez que as cinco marcas na sua a nteperna eram co nsideradas como um símbolo de Satanás. 456 Tam bém por vez es conot ada com S at an ás, é a cabr a. Em Val e de C ães, um a m our a enc ant ada apa re ce sob a fo rm a d e “u m a cab ra com ol hos com o arc hot es em al a”. […] o seu gosto pela liberdade, por uma liberdade repentista que faz com que o seu nome ( capris) tenha dado orige m a «capric ho ». […] Para os Gregos, a cabra simboliza o relâ mpa go. A estrela d a Cabra, na constelaçãao do Cocheiro, anuncia te mpestade e chuva, e é a cabra Ama lteia, que alime nto u Ze us. A ideia de assoc iar a c abra à manife stação do deus é muito antiga. […] […] Em todas estas tradições [na Índia, na China, para os Ger mano s, para os Gregos, para os cristãos, para os Órficos], a cabra aparece como símbolo da a ma -de -leite e da iniciadora, tanto no se ntido fí sico como no sentido místic o dos termos. Mas a sua conotação caprichosa implicaria ta mbé m a gratuitidade dos dons imprevisíveis da divindade. 455 456 457 457 Idem, p. 537. Clare Gibson, ob. cit., p. 103. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit.,pp. 139 e 140. 326 S í m bol o de S at anás , é, s em dúvi da, o bode, ani m al no qu al o própri o “Mal i gno” s e t ransform a, p ara guardar e def ender o t esouro que ex i st e escondi do no Bar ranc o do De m o, ent re Al fe rce e S i l ves. Exacta mente co mo o carneiro , o bode simboliza a força genésica e vital, a líbido, a fecundidade. Mas esta semelhença torna-se por vezes uma oposição: pois se o carneiro é so bretudo diurno e solar, o bode, por sua vez, é a maioria das vezes noctur no e lunar; e e nfim, ele é a ntes de ma is nada um anima l trágico, pois deu, por razões que nos escapam, o seu nome a uma for ma de arte: litera lme nte, «tragédia » significa «ca nto do b o d e », e e r a , o r i g i n a l m e n t e , o c a n t o c o m q u e s e a c o m p a n h a v a ritualmente o sacrifício de um bode nas festas de Dioniso. […] T al como o carneiro , a lebre e o pardal, era consa grado a Afrodite, e servia -lhe de mo ntada, be m co mo a Dioniso e a P ã, divindades q ue p or ve zes ta mbé m se cobriam co m uma pele de bode. […] Nada há, portanto, de espantoso que, devido a um profundo desconhecime nto do símbolo [expiação dos pecados dos filhos de Israel] e a uma perversão do sentido do instinto, se tenha feito tradicionalme nte do bode a própria ima ge m da luxúria (Horácio, Epodos, 10, 23). […] Santo e divino para uns [Índia védica], satânico para outros [especialme nte Idade Média cristã], o bode é clara mente o animal trágico que simboliza a força do imp ulso vital, ao mesmo te mpo generoso e facilme nte c orruptível. 458 Em LM 44 e LM 25 , quem est á a gua rd ar o t esouro é um “ bel o m ouro” enc ant ado e m sapo. Na maioria das tradições, o sapo é considerado como a antíte se da rã maliciosa; está, contudo, imbuído duma simbologia conflitual de sorte, de fertilidade e de ressurreição, bem co mo do mal, da heresia e do pecado. Devido ao facto de colocar enormes 458 Idem, pp. 123 e 124. 327 quantidades de ovos, é um símbolo da fertilid ade e é consa grado a Heket, que tinha cabeça de sapo e era a deusa egípcia do nascime nto (a ta mbé m a Afrodite greco -ro mana/Vé nus). O sapo verde simboliza va a s c heias do Nilo. Para os Celtas, o sapo era o senhor da terra e representava o poder purificador da água. Os três estágios de evolução dos seus hábitos enquanto anfíbio transfor mara m-no num símbo lo da ressurreição. 459 Mas t am bém as bruxas cost um am andar com sapos, com o vi m os ant eri orm ent e. Nas tradições da ma gia e feitiçaria e uropeias, o sapo dese mpenha um papel preciso. Quando e stá no o mbro esq uerdo duma feiticeira, é uma das for ma s do de mónio ; o que parece be m claro pelos dois cornos minúsculos que tem na fronte. As feiticeiras tinham um cuidado infinito com os sapos; baptizavam os seus sapos, vestiam-nos de veludo negro, punham -lhes guizos nas patas e faziam-nos dançar (GRIA, 134). A pedra que existe, dize m, na cabeça dos sapos era considerada um talismã precioso para conseguir a felicidade na terra (GRIA, 386). 460 O féret ro de S . Vi ce nt e é acom panhado por corvos que, com o j á vi m os, podem t am bém ser “gui as das a l m as na sua úl t i m a vi agem ”. No ent ant o, est a ave é, habi t ual m e nt e, associ ad a às brux as e fei t i cei ras e, nesse c ont ex t o, t am bém pela cor, ao Di abo. Parece concluir -se de um estudo co mparativo de costume s e crenças de numerosos povos que o simbolismo do corvo só recente me nte adquiriu o seu aspecto purammente ne gativo, e quase exclusivamente na Europa. […] Símbolo de perspicácia , no Génesis (8, 7), é ele que va i verificar se a terra co meça, após o dilúvio, a reaparecer por cima das árvores. […] 459 460 Clare Gibson, ob. cit., p. 107. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit.,p. 587. 328 Se mpre solar, o corvo era, na Grécia, consa grad o a Apolo. […] Estas três ave s [corvos, águias e cisnes] tê m pelo me nos isto e m co mum: de se mpe nhara m o papel de me nsa geiros dos deuses e preencheram funções proféticas. […] Acreditava -se que era m dotados [os corvos] de poder de conjurar a má sorte. O corvo aparece muitas vezes nas lendas célticas onde dese mpenha um papel profético. 461 Em LM 33 , o caval o de Di o go “n ão de u nem m ai s um pass o em frent e ” e, em se gui da, a m our a ap a rece; aquando do segundo encont ro, a m our a t a m bém “m ont ava um caval o”. […] Não se estranhará, por isso [o facto de o cavalo ter precedido o ser huma no à face do planeta e, conseque nte mente , ter sido uma das suas primeiras co nquistas], que o cavalo apareça como o veíc ulo privile giado para uma via ge m iniciática. […] As suas qualidades de cor age m, velocidade, força, inteligência e desejo de liberdade conduziram às mais variadas projecções, fazendo do cavalo um símbolo e um modelo para o ser humano. 462 Em LM 34 , qu and o J oana e Ant óni o se dei t am , “o cor ação bat i a-l he no pei t o c om o caval o a gal ope” ; em LM 36 , “o j ovem da vés pera su r gi u m ont ado num fogoso co rcel ” e “quem est i ver j unt o ao R i o S eco pode ai nda ouvi r um caval o correndo d esorden a dam ent e ao l ongo d a m ar gem ...”. […] na mitologia grega , o cavalo nasceu da união da deusa D e m é t e r , t r a n s f o r m a d a e m é g u a , c o m P s í d o n , « d e u s - c a v a l o ». Sendo De méter ( filha de Cronos e de Reia) deusa da alternânc ia da vida e da morte e deusa maternal da fertilidade, o 461 Idem, pp. 234 e 235. Manuela Parreira da Silva, B. I. do Cavalo, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2004, p. 3. 462 329 cavalo pe rtence, pois, pelo lado da mãe, ao símbolo dos eternos recomeços, dos dias e das noites, ao mun do ctónico. Pelo lado do pai, que deté m o domínio das águas (ainda que este o tenha gerado quando não era ainda deus dos mares e dos oceanos, mas sim uma potência activa que fazia tremer a terra, fecundando-a, e já capaz, apesar da sua juventude, de fazer brotar duas fontes de água e permitir à terra rebentar em vegetação…), pertence ta mbé m a esse me smo mundo das forças criadoras. O cavalo está, portanto, pela sua ascendência, ligado ao T empo, à suce ssão da s treva s e da luminosidade e ta mbé m à impetuo sidade do desejo. 463 E em LM 41 , “o caval o do j ovem A bdal á sabi a j á d e c or o cam i nho ”. U ma crença, que parece estar fixada na me mória de todos os povos, associa origina riamente o cavalo às trevas do mundo ctoniano, quer ele surja, galopan do como o sa ngue nas vei as, das entranhas da terra ou dos abismo s do mar. Filho da noite e do mistério, este ca valo a rquetípico é ao mesmo te mpo portador d a morte e d a vida, ligado ao fogo, destruidor e triunfa nte , e à água, nutriente simbólicas e asfixiante. provém A desse multiplicidade significado d as suas complexo das acepções grandes figuras lunares, e m q ue a ima ginação asso cia por analogia a Terra, no seu papel de Mãe, a Lua, seu luminar, as águas e a sexualidade, o sonho , a adivinhação, o reino vegetal e sua renovação periódica. 464 Há, no ent ant o, um out ro aspect o si m bó l i co do caval o que t em es peci al i nt er esse p ara o est udo d as nossas l endas: Participando do segredo das águas fertilizantes, o cavalo conhece o caminho subterrâneo ; é o que explica que, desde a 463 464 Manuela Parreira da Silva, ob. cit., p. 6. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 171. 330 Europa até ao E xtre mo Oriente, se acredite que ele te m o do m de fazer brotar as fontes com uma patada. […] O próprio Pégaso inaugura esta tradição ao criar a fonte Hipocrene Fonte do cavalo não muito longe do bosque sagrado das musas; as Musas reuniam-se ali para cantar e dançar, considerava-se que a sua água favorecia a inspiração poética (GRID, 211). O cavalo, aqui, desperta o Ima ginário, tal co mo despertava anterior mente a natureza, no mo me nto da renovação. Mas há out ros caval ei ros , 465 cuj as m ont adas não est ão i dent i fi cadas (ou, n o caso de L M 26 , s ão m ul as): em LM 40 : “ Lo go s aem os m ouros em rui dosa cav al gada pel os cam pos próx i m os”; em LM 54 , “ouvi ndo e st as pal avras, o ca val ei ro part i u a gal ope”; em LM 26 : “um c aval e i ro m ont ado em um a m ul a possant e”; e , em L M 2 8: “acordou o pob re hom em ao t rope l de duas cav al gad uras, em um a das quai s m ont ava um cav al ei ro t r a z endo à garupa um a form osa m oura”: […] tal co mo domina a sua montada, dominou forças adversas. Eles mostram a asce nsão ao paraíso dos deuses, dos heróis ou dos eleitos […] […] A idéia do ca valeiro, mesmo fora d a sua história, é u m ele me nto da cultura universal e um tipo super ior d e humanidade. [...] O comple xo símbolo de do co mbate , cavaleiro e numa inscreve-se, intenção de portanto, num espiritualizar o combate. [...] A ca valaria dá um e stilo à guerra, como ao a mor e à morte. O a mor vive -se co mo um co mba te e a guerra como um a mor; o cavaleiro sacrifica -se p or um e por outro até à morte. Luta contra todas as forças do ma l, incluindo as instituições da sociedade, quando estas lhe parecem violar as suas exigências interiores. 465 466 466 Idem, p. 174. Idem, pp. 169 e 170. 331 Em LM 38 ( LM 48 e LM 13 ) t em os um “cav al ei ro” di fe rent e: o al m ocreve al garvi o, “no desem penho da sua profi ssão”, ut i l i z ava um bur r o . Em LM 38 : “i a o nosso J osé C oi m bra (ou Ti Zé d a S err a) gui ando o seu j u m ent i nho pe l a est rada for a”, quando a m oura apare ceu p el a pri m ei ra vez , “enqua nt o o burri nho, chei rando t am bém a m i st éri o, desapar ec era p ara n ão m ai s ser vi st o.”; quando vol t ou a encont rá -l a, t i nha desm ont ado de um “j um ent o quase t ão vel ho e i nút i l com o el e”. Se o burro é para nós símbolo da ignorância, isso é apenas o caso particular e secundário de um a concep ção ma is geral que faz dele , quase universalme nte, o e mb le ma d o obscuro , e até mesmo das tendências satânicas. [...] O burro como Sa tã, ou co mo a Besta, signi fica o se xo, a líbido, o eleme nto instintivo do ho me m, uma vida que se desenvolve toda no plano terreno e sensual. O espírito cavalga a matéria que lhe deve se r sub missa, mas q ue às vezes escapa à sua condução. […] O burro está relacionado com Saturno, o s egundo sol, que é a estrela de Israel. Por isso houve, nalgumas tradições, uma identificação entre Javé e Saturno. Isto talvez explicasse o facto de, sendo Cristo o filho do Deus de Israel, algumas caricaturas satíricas terem representado os crucificados c om cabeça de burro. 467 Não é d e adm i ra r e st a conot aç ão m al éf i ca do burro, depoi s de t erm os vi st o que a m ai ori a dos l obi somens port ugu eses (e m part i cul ar, os al gar vi os) se t ransform a m em burros e não em l obos (com o em L LO 1 e E LLO 1 ). Ora, J osé C oi m bra, na p ri m e i ra part e da hi st óri a, não est á propri am ent e com b oas i nt enções em re l ação ao pa ct o fei t o com a moura encant ada , o que l he val eu a c egu ei ra com o cast i go, com o s abem os. 467 Idem, pp. 133 e 134. 332 Aquando do se gund o encont ro, j á c e go , em L M 48 , “ a m u l her m ont ou -o num a burri ca” e, em L41 , “ aj udaram -no a m ont ar em um a j um ent a”: A burrinha simboliza a humildade e o jume nt o, a humilhação. [...] A burrinha é aqui um símbolo de paz, d e pobreza, de humildade, de paciência e de coragem [...] 468 Em E LAP / M 7, a persona gem t am bé m m ont a um a “bur ri nha branca ”. Em LM 38 ( LM 48 e LM 13 ), ap ar ece t am bém um l eão , que deverá “en gol i r e vo m i t ar t rês vez es” a pessoa desen cant ad ora . Poderoso, soberano, símbolo solar e luminoso ao extre mo, o leão, rei dos animais, está carregado das qualidades e defeitos inerentes à sua categoria. […] De uma maneira mais geral, simbolizaram [o Leão do Ocidente e o Leão do Oriente, no Egipto] o rejuvenescimento de vigor, que garante a alternância da noite e do dia, do esforço e do repouso. Da mesma for ma, no Extre mo Oriente, o leão, ani ma l pura me nte e mble mático , te m profundas a finidades co m o dragão, com o qual chega a identificar -se. […] […] virá a simboliza r, não só o regresso do Sol e o rejuvenescimento das energias ta mbé m os próprios renascime ntos. cósmicas e biológicas, mas 469 E o dragão que gua rda a m oura em L M 53 (e LM 17 ) de ver á engol i -l a e vom i t á -l a “passados t r ês di a s”. 468 469 Idem, p. 134. Idem, pp. 401 e 402. 333 O dragão aparece -nos sobretudo como um guardião severo ou co mo um símbolo do mal e das tendê ncias demo níacas. Co m efeito, ele é o guardião dos tesouros esco nd idos, e, como tal, o adversário que deve ser vencido para ter acesso aos me smo s. […] Geralme nte, o dragão como símbolo de monía co identifica se com a serpente […]. […] O simbolismo do dragão é a mbiva lente, […]. É a neutralização das tend ências adver sas, do enxofre e do mercúrio alquímicos (ao passo que a natureza latente, não desenvolvida, é representada pelo uroboro, o dragão que morde a própria cauda).[…] Na realidade, não se trata de aspectos diferentes de um símbolo único, que é o do princípio activo e d emiúrgico : poder divino, élan espiritual, diz Grousset; símbolo celeste, em qualquer dos casos, poder de vida e de manife stação, ele cospe as água s primordiais do Ovo do mundo, o que faz dele uma image m do Verbo criador. […] […] De facto, o dragão é associ ado ao raio (cospe fogo) e à fertilidade (traz chuva). Simboliza, também, as funções reais e os ritmos da vida que garantem a ordem e a prosperidade . […] Podemos ligar a imagem da baleia a vomitar Jonas ao simbolismo do dragão, monstro que engole e cospe a sua presa, depois de a ter transfigurado. Esta imagem de origem mítica solar representa o herói engolido pelo dragão. Vencido o monstro, o herói conquista a eterna juventude. Realizada a viagem aos infernos, ele ascende do país dos mortos e da prisão noct urna do mar (DAVS, 225). 470 Nas si t uaçõ es ci t ad as , pre ci sam ent e, o l eão é en car ado c om o monst ro mi t ol ógi co , t al com o o dragão, pel o que am bos part i l ha m o s i m bol i sm o com o do abi smo (j á ci t ad o ant eri orm ent e ), e ngol i ndo “os ser es par a dep oi s vom i t á -l os, t rans form ados” , o qu e, com o podem os ver, nã o se afast a da si m bol ogi a de cada um , i ndi vi dual m ent e . 470 Idem, pp. 272 a 274. 334 O monstro simboliza o guardião de um tesouro , como o tesouro da imortalidade, por exemplo, isto é, o conjunto das dificuldades a vencer, os obstáculos a ultrapassar, para se ter acesso, por fim, a esse tesouro, material, biológico ou espiritua l. O mo nstro e stá ali para provocar o esforço, domínio do medo, o heroísmo. [...] Enqua nto guardião do tesouro, o monstro é també m sinal do sagrado . Poder -se-ia dizer: ali onde está o monstro, está o tesouro. Raros são os lugares sagrados em cuja entrada não esteja postado um mo nstro: dragão, naga, boa, tigre, grifo, etc. […] […] Todas as vias da riqueza, da glória, do conhecimento, da saúde, da imorta lidade são preservadas. S ó se che ga lá atravé s de um acto heróico. Co m o mo nstro morto, q uer ela seja exterior ou interior a nós, abre -se o acesso ao tesouro. O monstro te m assim orige m na simbologia dos ritos de passage m: ele devora o ho me m velho, para que nasça o ho me m novo. […] O monstro é ainda o símbo lo da ressurreição : ele engole o ho me m, a fim de provocar um novo na scime nto. 2.2.10.1. 471 A SERPENTE É i m possí vel i gnora r o fact o d e encont r arm os a serpent e co m o denom i nador com u m ent re Mouras , Serei as , Erí ni as ou Fúri as , Gui l l ens , Bruxa s ou Fei t i cei ras , Vi rgem Mari a , Sant os , Di abo e Z or r a Berradei ra . Merec e -nos, por i ss o, um l ugar d e dest a que. Em LM 38 , LM 48 e LM 13 , ex i st e, ai nda, um a serpent e (em L6, um a “t e rrí vel serpent e ”), t al com o em L M 46 e LM 11 (“um a enorm e s erpent e ”), em L M 21 (“um a c obra m onst ro” ), em LM 60 e LM 42 e LM 24 (um a “cobri nh a”). T al como o ho me m, mas ao contrário d ele, a serpente distingue-se de todas as espécies a nimais. Se o ho me m se situa 471 Idem, pp. 455 e 456. 335 no final de um longo esforço genético, te mos necessaria me nte de colocar esta criatura fria, sem patas, sem pêlos, sem penas, no começo desse mesmo e sforço. Nesse sentido, Ho me m e Serpente são opostos, co mple me ntares, Riva is. Ne ste sentido ta mbé m, há algo da serpente no homem e, singularmente, na parte dele que o seu entendime nto me nos contr ola. [...] No entanto, nada há de mais co mum, de mais simple s do que uma serpente. Mas , se m dúvida, nada há de mais escandaloso para o espírito, devido precisa mente a essa simp licidade. [...] […] A serpente visível sobre a terra, o instante da sua manife stação, é uma hierofania. Se ntimos q ue ela continua para cá e para lá, ne sse infinito material que nã o é mais do que o indifere nciado primor dial, reservatório de todas as la tência s, subjacente à terra manifestada. A serpente visível é uma hierofa nia do sagr ado natural, não espiritua l, ma s material. 472 A serpent e de L M 38 ( LM 48 e LM 13 ), deverá “ abra çar ” o al m ocreve, d ei x ando -l he “o co rpo em feri da ”, nos “pont o s em que t ocar”; a d e L M 60 , pôs -se “a d anç ar”; a d e L M 21 , i ri a dar “grandes si l vos, fi n gi ndo quer er en gol i r-t e”; em LM 24 (e LM 42 ), “faz i a a cobri nha u ns m enei os com t ant a gr aça, ab ri a a b oqui nha com t ant a gent i l ez a e m ene ava a c auda em com passo t ão v i vo e t ão fugaz , que era um encant o v ê -l a ”; a d e LM 46 (e LM 11 ), não s e s abe, poi s o cri st ão “nem t rat ou de s abe r as i nt enções do bi cho”. […] No mundo diurno , sur ge co mo um fa ntasma palpável, mas q ue desliza e ntre os dedos, da mesma fo r ma que atravé s do te mpo e do espaço me nsurá veis e das re gras d o raciocínio para se refugiar no mundo subterrâneo, donde provém e onde a ima gina mos, inte mporal, perma ne nte e imó vel na sua co mp letude. Veloz como o relâ mpago, a serpente visível surge se mpre de uma abertura escura, fenda ou racha, para cuspir a morte ou a vida antes de voltar para o invisível. Ou então abandona esta aparência masc ulina para se tornar fe minina : enro la-se, e nlaça, aperta, sufoca, e ngole, digere e dor me. Esta serpente fê mea é a invisível serpente -princípio que reside nas camadas profundas da 472 Idem, p. 594 e 595. 336 consciê ncia e nas ca madas profundas da terra. É enigmática, secreta, não se pode prever as suas decisões, repentinas co mo as sua s meta morfose s. [...] […] A serpe nte visíve l só aparece, portanto , co mo breve encarnação de uma Grande Serpente Invisível, causal e ate mporal, senhora do princípio vital e de todas as forças da natureza. É um velho deus primeiro que e ncontra mos no ponto de partida de todas as cosmogé nese s, antes q ue as religiões do espírito a destronassem. 473 Podemos a assistir associações contraditórias, desde tempos muito antigos: No Antigo T esta me nto encontra mos m uita s referências a serpentes venenosas na Terra Santa que, segundo a opinião popular, se alime nta va m de pó. Os Israelitas associavam serpentes e espíritos maus. Ela era símbolo do mal e da desgraça, da falsidade, da astúcia, constituindo por isso um perig o morta l. Contudo, entre os Orientais, muitas serpentes eram adoradas como de usa s da fecundidade. Por isso, no T e mplo se adorava a serpente de bronze. O próprio Cristo, pendurado na árvore da morte, a Cr uz, é a serpente que dá a vida, vencendo a serpente q u e s e p e n d u r a r a n a « á r v o r e d a v i d a ». V e r G é n e s i s , 3 , 1 e s s . 474 Tradi ci onal m ent e c onot ada com o Di a bo, o pecado, o m al – i m agem vei cul ada p el a Igr ej a C at ól i ca – a serpent e est á pr esent e em i núm eras l endas, qu er de ca ráct er rel i gi oso, l i gad a à S e nho ra, que r pagão, associ ada às m ouras enc ant adas. Tant o num caso co m o no out ro, el a fa z l em brar out ras fi gur as de m i t ol ogi as m ai s ant i gas. «Porque a ntes de E va foi Lilith », lê -se num texto hebraico. […] Lilith era uma serpente; foi a primeira e sposa de Adão […] Deus criou Eva e depois Lilith para se vingar da mulher humana de Adão, instou -a a provar o fruto proibido e a conceber Caim, 473 474 Idem, p. 595. António Bárbolo Alves, ob. cit., nota 18, p. 36. 337 ir mão e assassino de Abel. […] Ao longo da Idade Média, o sentido da palavra layil , que e m hebraico é o mesmo que «noite », foi-se transfor ma ndo. Lilith deixou de ser uma serpente para se tornar um espírito nocturno. Por vezes é um anjo que rege a procriação dos home ns; outras veze s são de mónios que assalta m os que dorme m sozinhos ou os que anda m pelos ca minho s. Na ima ginação popular co s tuma a ssumir a for ma de uma mulher alta 475 e silenciosa, de soltos cabelos negros. É i gual m ent e di fí ci l não nos l em bra r m os dos Na gas, qu ando deparam os com ser pent es, associ ad as a m ouras enc ant ad as, que vi vem nas profunde z as, supost am ent e e m pal áci os enc ant ad os, com o A C obri nha do Barranco (em bor a pequ e ni na e dourad a) ou A Moura do Ri o Seco e t odas as out ras que apare cem , em “ e pi sódi os l endári os”, sob a for m a dest e ani m al , co m ou sem cabel o: Os Naga s pertence m às mitologia s do Indostão. T rata -se de serpentes, ma s costuma m a ssumir a for ma humana. […] Habita m debaixo da terra, em fundos palácios. 476 Mas o m esm o se pode di z er dos Y INN: Segundo a tradição islâmica, Alá fez os anjos com a luz, os Yinn co m o fogo e os home ns co m o pó [.] Há que m a fir me que a matéria dos segundos é um esc uro fogo se m fumo. Fora m criados dois mil anos ante s de Adão, ma s a sua estir pe não alcançará o dia do Juízo Final. Al -Qaz wini de finiu -os como «gra ndes animais aéreos de corpo transparente princípio, capazes mostra m-se como de assumir nuvens ou várias c omo f o r m a s ». altos A pilares indefinidos; depois, se gundo a sua vontade, a ssume m a figura de um ho me m, de um c hacal, de um lobo, de um leão, de um escorpião ou de uma se rpente. […] Podem atr avessar uma parede maciça ou voar pelos ares ou tornar-se de repente invisíveis. […] 475 476 Jorge Luís Borges, ibidem, p.128. Idem, p.145. 338 A sua morada mais co mum são as ruínas, as casas desabitadas, as cisternas, os rios e os desertos. 477 C ont udo a fi gura da serp ent e p redo m i nan t e nas T err a s da S enhora de O fi ú sa, é, sem dúvi da, o Ur oborus: Agora o oceano é um mar ou um sistema de mares; para os Gregos era um rio circular que rodeava a terra. Todas as águas fluíam dele ou não tinham nem embocadura, nem fontes. Era ta mbé m um de us ou um titã, talvez o ma is antigo, porque o Sonho, no décimo quar to livro da Ilíada, lhe cha ma orige m dos deuses; na Teogonia de Hesiodo, é o pai de todos os rios do mundo, que são três mil, e que precedem o Alfeu e o Nilo. Um ancião de barba comprida era a habitual personificação; a huma nidade ao fim de séculos enco ntrou um símbolo melhor. Heraclito tinha a fir mad o que na circunferê ncia o princípio e o fim são um único ponto. Um amuleto grego do século III, conservado no M use u Britânico, dá a ima ge m que melhor pode ilustrar esta infinitude : a serpente que mord e a sua caud a, ou como dirá ad miravelme nte Martínez Estrada, «que co meça no fim d a s u a c a u d a » . U r o b o r o s ( « o q u e d e v o r a a s u a p r ó p r i a c a u d a ») é o no me téc nico deste mo nstro, de que os alquimistas depois muito se serviram. 478 J á nos referi m os, ant eri orm ent e, ao «c a m i nho da serpe nt e » “encont r ado” po r F ernanda F raz ão e Gabri el a Morai s. V ej am os o que di z em est as a ut oras sobre a su a rel a ção com as m ouras encant ad as: […] Ora, falando do binó mio mo uras/mito e aliando -o ao culto da fertilidade, é de sublinhar o facto de a serp ente ter sido, sob este ponto de vista , uma das referênc ias funda mentais para o ho me m primitivo, talvez a «ima ge m de mar ca » da T erra -Mãe. Quase todas as gra nde s cosmogé nese s do mundo tê m a serpente como símbolo primordial. Pelas sua s características, e ste a nimal fornece à imaginação huma na todas as a ssocia ções possíveis. Está 477 478 Idem, pp. 205 e 206. Idem, p.201. 339 intimamente ligada a este simbolismo da fertilidade, por exe mplo, pelo gra ndioso espectáculo que o ferece quando irro mpe das covas, hibernar, no dealbar relaciona-se da Prima vera; com o igualmente mundo por subterrâneo, o nele mundo gerador de tesouros preciosos, como a ve getação, tão essencial para uma sociedade regeneração e de de recolecção; cura, porque é ta mbé m muda de símbolo pele e de parece rejuvenescer; a ssim, a ele ta mbé m e ain da se alia o poder de curar todas as enfer midades, até a da idade e do envelhecimento; por outro lado, move -se à vontade nas águas e os seus mo vime ntos sinuoso s faze m le mbrar o correr dos rios e dos ribeiros, avistados na paisagem, ou relaciona -se facilmente com a chuva fertilizadora da terra; ma s, igualmente, os seus sa ltos repentinos faze m-na parecer ter asas, ou le mbra m o raio que ateia o fogo, a primeira grande descoberta que mudou a História da Humanidade. Mostra -se , assim, ser senhora de todos os a mbi entes gerados pela T erra -Mãe, terra, água, ar e fogo, os ele me ntos que os ho me ns gostaria m de poder dominar para me lhor sobreviver. 479 E depoi s de t erm os t ent ado, pel o m enos, ver que ex i st e um a rel aç ão ent re a se r pent e e t odas as e nt i dades m í t i cas e rel i g i osas anal i sadas, não pod em os dei x ar de fal ar na rel aç ão ent re a serpent e e a m ul her: Epifania da Lua, a serpente constitui o paradigma do símbolo selé nico não só ma is pleno co mo mais persiste nte, sobrevive ndo mesmo às mutações que transformara m a s alegor ias lunare s e m divindades cristãs co mo Santa Marta ou a Virge m Maria. A relação simbiótica c om a cobra, criatura ao mesmo te mpo ctónica e matriz arcana de um selenismo remanescente, torna a mo ura participante de um fértil co mple xo simbólico donde ta mbé m pa rticipa m água, leite e rege neraç ão, fecundidade e erotismo, telurismo e fertilidade. Na verdade, a relação mulher / serpente reveste aspectos multifor mes, ne m se mpre imediata me nte perceptíveis co mo ta l, 479 Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., pp. 31 e 32. 340 mas cuja permanê ncia um pouco por todas mediterrâneas constitui um facto indubitável. as sociedades 480 E Aurél i o Lopes d escrev e um a cren ça segundo a qual “s e se ent err arem os c abel os arran cados a um a m ul her que se enco nt ra sob a «i nfl uênci a da Lua » (pe rí odo m enst rual ), el es t rans for m ar -s e- ão em s erpent es” (n a E uropa C ent r al ), ap re sent ando com o “dec adênci a do m i t o” o fact o de, no nosso paí s, haver cri anç as que “ acr e di t avam ai nda rec ent em ent e que os cabel os ar ra ncados com rai z que caí ssem em pequen as poç a s de á gu a se t r a nsform avam em p equenas cobras”. 481 P odem os acres cent a r que, no b arl av ent o al garvi o, não há m ui t os anos , ai nda se ac red i t ava (e não er am as cri anças ) que os ca bel os de um a m ul her ( em qu al quer al t ura do m ê s) , at i rados à ru a e nquant o es t i vesse a chover ( de prefe rênci a , que chove s s e bast ant e ), s e t rans form av am em serpent es. P arece -nos um bom ex em pl o da ex t ensão da propa ga ção d e um m i t o pri m ordi al , ai nda que “ em dec adên ci a”. Se dividir mos o reino animal e m a nimais de Deus e a nimais do Diabo, a serpente é o Ani -Mal por excelência: incorpora e aceita to dos os male s e todos os medos da humanidade, ao me smo te mpo que projecta, també m, noções mais elevadas co mo as de sabedoria e poder. A letra S co m que a esc reve mos parece desenhar o seu corpo e reproduzir -lhe o mo vimento ond ulatório. O próprio som da palavra co m que a no mea mo s, é qua se ono matopaico. Animal minimal, ela é, antes d e mais, a linha, e qua ndo a linha se cur va e se fecha, torna -se o círculo e símbolo de perfeição. […] […] Razões ma is do que suficiente s para a tornar aquilo que ela é: uma for ma in crivelmente simples numa rede co mplexa de sentidos poderosos e contraditórios. 480 481 482 482 Aurélio Lopes, ob. cit., pp.23. Aurélio Lopes, ob. cit., pp.21 e 22. Maria Teresa Meireles, B. I. da Serpente, pp. 3 e 4. 341 P arece -nos, ai nda, p ert i nent e, apr esent ar a segui nt e ci t aç ão, que i l us t ra a rel aç ão, vi st a pel o Hom em , da serpent e com a p ró pri a vi da e com a pal avra qu e a desi gn a: A serpente não aprese nta, portanto, um arquétipo, mas sim um co mple xo arquetípico ligado à fria, pega josa e subterrânea noite das origens: todas as serpente s possíveis for ma m juntas uma única primordial multiplicidade que não pára primordial, de se uma indivisível desenroscar, não Coisa acaba de desaparecer e renascer (KEYM, 20). Mas o que será esta Coisa primordial senão a vida na sua latênc ia, ou, como diz Ke yserling, a camada mais profunda da vida? Ela é o reservatório, o potencial, donde provêm todas as manifes tações. A vida do sub mundo deve reflectir -se, precisa me nte, na consciê ncia diurna sob a forma de serpente, acrescenta e ste autor, e precisa: os Caldeus utilizavam uma só palavra para vida e para serpente. T emos a mesma observação e m René Gué no n. O simbolis mo da serpente está efectivamente ligado à própria ideia de vida; em árabe, a serpente é el-hayyah e a vida é el -hayat (GUES, 159), e acrescenta, o que é importantíssimo, que ‘El -Hay, um dos principais no mes divinos, se deve traduzir nã o por o vivo, co mo se faz frequentemente, mas sim por o vivificante, aquele que dá a vida ou que é o próprio princípio da vida. 483 A serpent e t orna -s e, assi m , m ui t as vez es, por t odos est es m ot i vos, um “ani mal sagrado”, o que nos rem et e, i m edi at am ent e, para o processo de t ot em i z ação que, pel os vi st os, rem ont a , pel o m enos, à Ant i gui dad e Ori ent al , m ai s pro pri am ent e ao ant i go Egi pt o. Le culte des animaux, ou zoolâtrie, a stupéfié les voyageurs grecs et ro mains. Ce culte prend, e n e ffe t, une importance capitale à la fin de l’Egypte antique. À l’origine, chaque division territoriale, chaque nome possède son totem, l’animal qui incarne la divinité protectrice du groupe. Pour cette raison, les dieux humanisés gardent par la suite un aspect animal. À l’époque 483 J ean Chevalier, « Introdução », Gheerbrant, ob. cit.,p. 595. in Jean Chevalier e Alain 342 tardive, on élève et ado re des animaux près des sanstuaire s, par exe mple des ibis et de s babouins prés des te mp les de T hot, des vaches prés du temple d’ Hathor à Denderah, etc. À Bubastis, dans le Delta, la dée sse Bastet est la déesse -cha t. Un cito ye n romain fut lync hé po ur y a vo ir tué quela ue matou. Le plus c é l è b r e r e s t e t o u t e f o i s l e t a u r e a u A p i s , i n c a r n a t i o n d e P t a h , «s o n â me ma gnifique ». À le ur mort, les anima ux sa crés sont mo mifié s; le Serapeum de Memp his e st une imme nse galerie funéraire où reposent les corps des taureaux Api s. Fraz er cont a -nos com o o 484 t ot em i smo , e em part i cul ar a cons a gra ção d a se r pent e, se m ant eve na Ant i gui d ade C l á ssi ca, na Europa, m ai s conc re t am ent e, na Gr éci a. L’hypothèse, suivant laquelle les anciens rois de Thèbes et de Delphes avaient pour animal c onsacré le serpent ou le dragon et prétendaient même à une certaine parenté avec lui, se trouve quelque peu sanctionnée par la tradition, qui veut qu’à la fin de leur existe nce Cad mus et sa fe mme Har mo nie aient quitté T hèbes et soient allés régner sur une trbu d’Enchéléens ou hommesanguilles en Illyrie, où tous deux finirent par être transformés en serpents ou dragons. Aux yeux d l´homme primitif, une anguille est une serpent d’ea u, on ne peu do nc guère a dme ttre que se soit par hasard que le tueur de serpe nts ait régné par la suite sur une tribu d’hommes-anguilles et soit devenu lui -même serpent à la fin. Bien plus, d’après un récit, sa fe mme Har mo nie éta it fille du dragon mê me qu’il a vait tué. La traditio n s’adapterait donc 484 AA. VV., MÉMO LAROUSSE encyclopédie générale visuelle et thématique, Paris, ed. Larousse, 1989, p.291: “O culto dos animais, ou zoolatria, deixou assombrados os viaja ntes gregos e romanos. O culto adquire, com efeito, uma importância capital no fim do Egipto antigo. Na origem, cada divisão territorial, cada nome possuía o seu totem, animal que encarna a divindade protectora do grupo. Por esta razão, os deuses humanizados mantêm um aspecto animal. Na época tardia, criam se e adoram-se animais perto dos santuários, por exemplo íbis e babuínos perto dos templos de Thot, vacas perto do templo de Hathor em Dendera, etc. Em Bubastis, no Delta, a deusa Bastet é a deusa -gato. Um cidadão romano foi linchado por ter matado um gato. O mais célebre, contudo, continua a ser o touro Apis, encarnação de P tah, «a sua alma magnífica». Quando morrem, os animais sagrados são mumificados; o Serapeum de Memphis é uma imensa galeria funerária onde repousam os corpos dos touros Apis.” (Tradução nossa). 343 parfaite me nt avec l’hypothèse se lon laquelle le dragon, ou serpent, était l’a nima l sacré de la vieille maison ro ya le de T hèbes, et le royaume passait à qui tuait son prédécesseur et en épousait la fille. Nous avons vu qu’il y a de bonnes raisons de croire que ce mode de succession a u thr ône était courant dans l’Antiquité. 485 Mas o fi nal dest a hi st óri a vai ao encont ro do ci cl o que t em os vi ndo a veri fi car , a o fi m e ao cabo, em t odas as out r as: o c i cl o vi da / m ort e / vi da, ou, se preferi rm o s, nasci m ent o / m ort e renasci m ent o, ai nda que num a out ra fo r m a. L’histoire de la meta morphose finale de Cad mus et d ’Har mo nie en serpents constitue p eut -être un ve stige de la cro yance que les â mes des reines et des rois défunts de T h èbes transmigraient da ns le corps de serpents, tout co mme le s rois cafres se changeaint, à leur mort, e n boas constrictors ou e n serpe nts noirs venime ux. E n fait, l’idée que les â mes des morts vo nt habiter le corps de serpents est três répandue en Afrique et à Madagascar. 486 485 James George Frazer, ob. cit., p.71: “A hipótese, segundo a qual os antigos reis de Tebas e de Delfos tinham como animal sagrado a serpente ou dragão e pretendiam mesmo ter um certo parente sco com ele, encontra-se um pouco comprovada pela tradição, que diz que no fim da sua existência Cadmus e a sua mulher Harmonie deixaram Tebas e foram reinar numa tribo de homens -enguia, em Ilíria, onde ambos acabaram transformados em serpentes ou dragões. Aos olhos do homem primitivo, uma enguia é uma serpente de água, por isso não se pode admitir que tenha sido por acaso que o matador de serpentes tenha reinado em seguida numa tribo de homens -enguia e se tenha tornado ele próprio serpente no final. Mais a inda, de acordo com um relato, a sua mulher Harmonie era filha do próprio dragão que ele tinha matado. Por conseguinte, a tradição adaptar -se-ia perfeitamente à hipótese segundo a qual o dragão, ou serpente, era o animal sagrado da velha casa real de Tebas, e o reino passava para quem matasse o seu predecessor e casasse com a sua filha. Vimos que há boas razões para acreditar que este modo de sucessão ao trono era corrente na Antiguidade.” (Tradução nossa). 486 Ibidem: “A história da metamorfose final de Ca dmus e de Harmonie em serpentes constitui talvez um vestígio da crença em que as almas das rainhas e dos reis defuntos de Tebas transmigravam para o corpo de serpentes, tal como os reis cafres, à hora da morte, se transformavam em jibóias ou em serpentes pretas venenosas. De facto, a ideia de que as almas dos mortos vão habitar o corpo de serpentes está muito difundida em África e em Madagáscar.” (Tradução nossa). 344 / 2.2.10.2. O PROMONTÓRIO SACRO Pensamos que, tal como no caso da serpente, também sobre o Cabo ainda há algumas coisas a dizer, que não tinham cabimento no referimos (e relacionem capítulo muitas com as em que ficarão primeiramente por temáticas dizer, mas, abordadas a ele nos embora neste se trabalho, pensamos que não têm nele cabimento). S obre a “sant i dad e do l ugar ”, esc l arec e J osé Lei t e de Vas conc el l os o se gu i nt e: T emos por conseguinte de considerar três pontos: a) reunião nocturna dos deuses; b) inviolabilidade do recinto da reunião; c) interdiccção de grand es s acrifícios, co m p er missão porém de libações. Vejamos cada um separ adame nte. a) Em toda a parte o povo acredita na existência nocturna de conciliabulo s mysteriosos: a noite e stá se mpre povoada de espíritos e avejões. É de noite que surgem as bruxas; que as feiticeira s se a ssocia m co m o Diabo; que os medos opprime m os ho me ns. Co m a luz do sol, com os resplendores da manhã, os seres fa ntásticos so me m -se, e a natureza volta ao sossego e regularidades habituaes. […] b) Se no te mpo de Arte midoro se deixava de ir de noi te ao Cabo, não era por devoção para com deuses lá reunidos, era por medo! Com effeito, ainda hoje em certas aldeias de Portugal não s e s a e d e n o i t e s ´ z i n h o , p o r c a u s a d a s f e i t i c e i r a s . «P a r u n e espèce d’accord tacite, il est entendu que l aterre appartient , de j o u r , a u x v i v a n t s , l a n u i t , a u x m o r t s ». 487 […] As le ndas do Cabo Sa grado pertence m pois a uma cate goria conhecida e bem definida. c) […] se realizaria m no Sacro Promontorio liba ções, para as quaes era precisa agua. 487 Le Braz, La légende de la mort, 3ª edição, tomo I, 41 -42, apud José Leite de Vasconcellos, RELIGIÕES DA LUSITÂNIA na parte que principalmente se refere a Portugal , vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1913 (reimpressão fac-similada da 1ª ed., Vila da Maia, 1981), p. 211. 345 As libações co nsistia m principalme nte, c o mo é sabido, e m offerecer ás divindades certos liquidos que, conforme as circunstanc ias, se derra mava m nos altares, ou se espalha va m na s agua s, etc. Este s liquidos eram: vinho puro ou misturado com agua; leite; sa ngue; azeite; hydro mel; e outros. As libaç ões podiam fazer parte de sacrifícios mais co mple xos, ou constituíre m, co mo aq ui parece ser o caso, sacrifíc ios por si mesmas. O que Arte midoro affir ma co m relação a interdicção de sacrifícios no sacrifícios, i. Cabo é, dever -se-há sa ngrentos, por entender, opposição […] a grandes libações, ou sacrifícios mais simp le s. T alvez se imagina sse que o sangue das victimas manchava a pureza santa do logar. Segundo a ordem de ideias que aqui tenho exposto, as libações de que aqui se trata seriam em honra dos espírit os ou deuses do oceano. 488 E sobre os “m ol edros” , grupos de “pedras sa gradas ” que, quando são d esl oca das, vol t am par a o s eu l ugar, t ece o m es m o aut or os segui nt es com ent ári os, avent and o hi pót eses prová vei s, na i m possi bi l i dade de um a ex pl i cação act u al sob re cul t os t ão a nt i gos: Várias te m sido as hypothese s e mittidas para explicar a natureza e significação das pedras de que fala Artemidoro. Uns consideram-nas mo nume ntos funerários, e principalme nte dolme ns; outros, co mo o Sr. Alo mon Reinach, pedras balouç antes. M overs relaciona a s pedras do Promontorio com o culto dos bétylos, mas expõe a sua ideia muito concisamente, e de fugida, […] O culto dos bétylos encontra -se «parto ut où s’est fait sentir l’influe nce de la Phenice » 489 .[…] Explicar com precisão em que é que consistia o costume notado por Arte midoro torna -se difficil. Podem pôr -se porém de parte as hypotheses do s dolmens e das pedras balouçante s: co m 488 José Leite de Vasconcellos, RELIGIÕES DA LUSITÂNIA na parte que principalmente se refere a Portugal, vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1913 (reimpressão fac -similada da 1ª ed., Vila da Maia, 1981), pp. 207 a 212. 489 Perrot & Chipiez, Histoire de l’art, III, 59, apud José Leite de Vasconcellos, RELIGIÕES DA LUSITÂNIA na par te que principalmente se refere a Portugal, vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1913 (reimpressão fac-similada da 1ª ed., Vila da Maia, 1981), p. 203. 346 dolme ns não condize m as palavras do geographo grego; pedras balouçantes não póde admittir -se que lá as houvesse aos grupos de três e quatro. A hyp othese dos bétylos é te ntadora, e m virtude de elles terem orige m phenicia, e haver existido no Promontorio um sa ntuário de Héracles, e, co mo parece […], um de Krono s, – santuários, que, segundo todas as probabilida des, devem da mesma sorte attribuir -se aos Phenicios; mas seria a influencia phenicia de tal modo fecunda e poderosa, que, ainda alguns séculos depois de extinctos os cultos d’aquelles deuses no Promontorio, e anniquilados os sa ntuários, ficaria da antiga religião teste munho tão vivaz co mo o que a cerimo nia descrita por Arte midoro nos revela? […] Nestas apresentadas noticias em [alusão ELAP/M às 23] deslocações temos de das distinguir pedras, vários ele me ntos: as pedras são verdadeiramente objectos mági cos, pois cada uma representa um soldado nella encantado ; tornam para o seu sitio, como nas le ndas das fundações das igrejas e ermidas as ima gens achadas pelos pastores (ideia que já ascende á antiguidade clássica); D. Sebastião figura ahi, em virtude de u ma adaptação posterior ao séc. XVI, devida talvez á influencia sebastianistica dos frades de S. Vicente e á lenda muito vulgarizada segundo a qual o mysterioso aventureiro desthronado devia vir das bandas do oceano. Por um lado, estes moledros asse melha m-se a os montíc ulos cha mados fie is de Deus, co mme morativos de mortes; por outro lado faze m le mbrar certas superstições e m que com as pedras se relaciona a ideia de casa me nto, ou segundo as quaes certos personagens são metamorphoseados em rochas. 490 491 490 Nota 3: “«Les menhirs des environs de Quiberon sont des soldats pétrifiés par Sainte Hélène» ( Revue Archéologique, ibidem). As pedras dos moledros não podem comparar -se a menhires; mas quis notar a coincidencia de, tanto em Quiberon como em S. Vicente, os soldados estarem transformados em pedras.”, in José Leite de Vasconcellos, RELIGIÕES DA LUSITÂNIA na parte que principalmente se refere a Portugal, vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1913 (reimpressão fac similada da 1ª ed., Vila da Maia, 1981), p. 2 06. 491 José Leite de Vasconcellos, RELIGIÕES DA LUSITÂNIA na parte que principalmente se refere a Portugal , vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1913 (reimpressão fac-similada da 1ª ed., Vila da Maia, 1981), pp. 202 a 206. 347 2. 2. 11. P A S S A G E N S : Em i núm eras l end as, os encant am ent os e d esenc ant am e nt os dão -se (ou deve rão dar -se) na noi t e de S. João , si m boli z ando o s ol s t í ci o de verão : O simbolismo do s so lstícios c ha ma a ate nção p or não coincidir com o carácter geral das estações corresp ondentes. Com efeito, é o solstício de Inverno que abre a fase ascendente do ciclo anual; e o solstício de Verão é que abre a fase descendente; daí o simbolismo greco -latino das portas solsticiais representado pelas duas faces de Jano e, mais tarde, pelos dois São João , o do Inverno e o do Verão. É fácil constatar que é a porta do Inverno que introduz na fase luminosa do ciclo, e a porta estival na sua fase de obscurecimento. […] O solstíc io de Verão (24 de Junho) marca o apogeu do percurso solar; o Sol e st á no zé nite, no ponto mais alto do céu . Este dia foi escolhido para celebrar a festa do Sol. Na medida e m que Cristo é co mpara do com o Sol, ele é representado pelo Câncer solsticial. Daí todo um simbolismo de Cristo cronocrátor, que gover na o te mpo, na art e romana ( CH AS, 497 s). 492 Tam bém j á vi m os c om o os percursos c ost um am desemboca r em l ugar es si m ból i cos, com o grut as ou pal áci os . Há, no ent ant o, i núm eras “port as” ( de cast el os, sobr et u do, m as t am bém de vi l as, e m es m o de casas ) qu e, obvi am ent e, se ab rem o u se fe cham : A porta simboliza o l ugar de passage m e ntre dois estados, entre dois mundos, entre o conhecido e o desconhecido, a luz e as trevas, o tesouro e a penúria. A porta abre-se para um mistério. Mas tem um valor di nâmico, psicológico; pois não só indica uma passage m, como ela própria convida a atravessá -la. É o convite à viagem para um além... 492 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit., p. 614. 348 A passa ge m à qual ele convida é, na maioria das vezes, na acepção simbólica, do domínio profano ao domínio sagrado. […] A porta te m ta mbé m um significado esc atológico. A porta como lugar de passage m, e partic ular me nte de che gada, torna -se muito naturalme nte o símbolo da iminência do acesso e da possibilidade do acesso a uma realidade superior inver sa me nte, da ef[ u]são de dons celestes sobre a terra). (ou, 493 Nas l endas d e mour as encant adas , o s c asos m ai s evi dent es são a s aí da do govern ad or com o fi m de encant ar as fi l has ( L M 40 , LM 5 0, L3 M 3 – nas duas pri m ei ras, o carpi nt ei ro, após a cena do ci nt o, correu pa ra cas a, “ onde s e fechou be m aferrol hado ”), o al m ocreve de E st ói que recup e ra a vi são sent ado n o poi al de sua casa ( LM 38 , LM 48 e LM 13 ), a l avrador a de L M 52 e LM 8 , que “ ao t r anspôr a port a ol hou pa ra t r á s e vi u que t odos os m ouros e m our as s e t i nham t ransform ado em di versos ani m ai s”, e o enc ant am ent o d a fi l ha do gove rn ador do c ast e l o de Faro, “no m om ent o em que”, nos braços do s eu am ado, “at r aves sava” a port a do na scent e, m ai s t arde cham ada “do Arco do R epous o” ( L M 49 e LM 10 ) . Em E LAP / M 9 , o casal d e i dosos s ai do C ant o do La re do e vol t a a ent rar po r “um a fend a que ha vi a ent re doi s pene dos”. Em LM O 1, o c art ei ro b at e à po rt a do “p res um í vel pai do garot o”, e é aí que est e o encont ra “est endi do” e “m ort o”. Em LM O 2, a m ort e bat e à port a e, com o nenhum dos el em ent os do casal se di spões a i r abri l a, “i nvest i u pel o post i go”, l evando “os doi s vel hos consi go ”. 2. 2 . 1 2. O U T R O S S Í M B O L O S : Que o sonho é “um a const ant e da vi da / t ão concr et a e d efi ni da / com o out ra coi sa qual quer” j á o poet a nos di sse. Mas referi a -s e Ant óni o Gedeão ao “devanei o”, ao “s onho acordado ” que l eva o hom em a est ab el e c er m et as, obj e ct i vos a al c ança r, norm al m ent e 493 Idem, pp. 537 e 538. 349 decorr ent es do t i po de vi da que l eva, podendo ser a const rução de um ut ensí l i o que lhe perm i t a cort ar m el hor as pel es com que se ves t e, ou o envi o de um a sonda a Mart e, que l he t ra ga ves t í gi os de vi da naquel e p l an et a , ex i st ent es a doi s met ros de profundi d a de. Est e “sonhar a corda do” encont ram os, s obret udo, em “Di no rah” e “O Abi sm o dos En cant ados”, poi s é pr ópri o quer dos apai x onados, quer dos que ans ei a m por se apai x onare m . Tam bém Ant óni o so nhava com a m oura da S er ra d e Mon chi que, t ant o acordado, com o a dorm i r. A verdade é que há vári os t i pos de s onho : Os exemplos de sonhos são inumeráveis; tentou -se várias vezes classificá -los. As investigações psicanalíticas, etnológicas e parapsicológicas dividira m os sonhos n octurnos, para maior comodidade no estudo, num deter minado núme ro de categorias: 1. o sonho profético ou didáctico, aviso mais ou menos disfarçado sobre um ac ontecime nto crítico , pa ssado, presente ou futuro; a origem destes sonhos é muitas vezes atribuída a um poder celeste; […] 4. o sonho visionário, que transporta àquilo que H. Corbin cha ma o mundo das imagens e que pressupõe no ser huma no, num deter minado nível da consciência, poderes que a nossa civilização ocidental talvez tenha atrofiado ou paralizado , poderes acerca dos quais H. Corbin encontra testemunhos entre os místicos iranianos; trata -se aqui, não de presságio, nem de viagem, mas sim de visão; 5. o sonho pressentimento, que faz suspeitar ou privilegiar uma possibilidade entre mil… 6. o sonho mitológico, que reproduz algum grande arquétipo e reflecte uma angústia fundamental e universal. 494 494 Idem, p. 617. 350 Out ras persona gens sonharam a dorm i r, e o sonho de D. Za rol ha, que se rep et i u, t ant o pode pert ence r à pri m ei ra cat e gori a enunci ada, com o à ú l t i m a. O bei j o é, habi t ual m ent e, um a ct o rev el ador d e uni ão, d e am or at é; pode t am b ém r epresent ar t r ai ção, devi do ao c él ebr e “ bei j o de J udas a J esus”. Nest as l endas, em bor a com m enos gravi d ade, não dei x a de ser consi de rado com o um a t rai ç ão do bei j ado aos “s agrados s acram ent os”, poi s apar ece com o u m roubo “dos san t os ól eos recebi dos no bapt i s m o”. Em L M 60 : “– O que el l a queri a era t i r ar m e os sant os ol eos, que r ec ebi no m eu bapt i sm o”; em L M 8 (e LM 5 2): “C onhec eu a m ul her pel os t r aj es que t i nha n a sua presenç a m ouros e m ou ras encant adas, di spost os t odos a roubar -l he os sant os ól eos por i nt erm édi o do bei j o f at al ”; em L M 21 : “Eu, p orém que nunca t ent ei i l udi r ni nguém , qui s ex pl i car ao J oão Bent o a s i gni fi ca ção do bei j o e di sse -l he que d epoi s de r eceb er as ri quez as nada m ai s t i n ha que faz er senão i r à i gr ej a e pedi r ao seu p ri or que l he t ornasse a un gi r com os ól eos do bapt i sm o que eu l hos arran car a com o b ei j o”; em L M 43 ( e LM 2 7 ), n ã o há ref erên ci a ao b apt i sm o, m as o “bei j o de fo go” dado pel o m ou ro rev est e -se d e um car áct er m al éfi c o, não i dent i fi cado. A úni ca ex cepção é L M 44 ( e LM 25 ), em que D. Za rol ha , ao bei j ar o sapo, t em acesso ao t acho do t esouro, fi c ando ri quí ssi m a (perde um ol ho, m a s supost am ent e pel a sua hesi t a ção i ni ci al , o que não est á di re ct am ent e rel a ci onado com o bei j o). Símbolo d a união e d a adesão mútuas que na Antiguidade assumiu um significado espiritual. [...] A este respeito, Georges Vadja cita um texto de Zohar r e l a t i v o a o b e i j o d i v i n o : «Q u e e l e m e b e i j e c o m b e i j o s d a s u a boca» Porque é que o texto utiliza esta expressão? Com efeito, beijo significa adesão de espírito a espírito . É por isso que o órgão corporal do beijo é a boca, ponto de saída e fonte do sopro. É também pela boca que se dão os beijos de amor, unindo 351 (assim) inseparavelmente espírito a espírito. É por isso que aquele cuja alma sai ao beijar, adere a um outro espírito, a um espírito do qual nunca mais se separará; esta união chama-se beijo. [...] […] Símbolo de união, o beijo guardava, polivalência, (DAVS). de facto, a a a mb iguidade , das inú meras for ma s d e união 495 Em quase t odos os encant am ent os que presenci amos ( LM 39 , LM 40 , LM 41 , LM 45 , LM 46 , LM 47 , LM 50 , LM 51 , L M 53 , LM 3, LM 6 , LM 11 , LM 12 e LM 17 ), os m ouros “desenha m no ar uns s i nai s m i st eri osos” e “o si gn o S am ão”: O selo de Salomão forma uma estrela de seis ponta s, composta de dois triângulos equil áteros entrecruzados. Esta figura é uma verdadeira so ma d o pensa me nto her mético. [...] […] O selo de Salomã o aparece então como a síntese dos opostos, e a expressão da unidade cósmica, ao me smo te mpo que a sua co mp le xidade. O selo de Salo mão engloba ta mbé m, se mpr e segundo as tradições her mética s, os sete metais de base, isto é, a totalidade dos metais, be m co mo os sete planeta s que re sume m a totalidade do céu. [...] […] A redução do múltiplo ao uno, do imperfeito a o perfeito, sonho dos sábios e dos filósofos, está expressa no selo de Salomão. 496 Ou ent ão, “ uns si na i s m i st eri osos” e “si nai s cabal í st i cos”: Na sua essênc ia, a Cabala é um ensina me nto esotérico centrado num sistema de símbolos considerado reflectir o mistério de Deus e do universo, e para o qual o cabalista tem de encontrar a cha ve. Ao nível teórico, essas c have s per mite m -lhe compree nder as dime nsões espirituais do universo, enqua nto, ao 495 496 Idem, p. 119. Idem, p. 593. 352 nível prático, lhe permitem usar os poderes associados a estas di mensões para fins mágicos (isto é, para os processos da transfor mação física, psicológica ou espiritual). 497 Ao m esm o t em po, ent oam “um as prec es” e pronunci am “u m as pal avras esqui si t as, i ncom preensí vei s”: A magia acredita no poder da palavra enquanto expressão de uma vontade, força e energia capaz de modificar a própria realidade – a palavra é um eco da vontade e do poder de quem a possui. […] Nos contos, a própria palavra age sobre a matéria e torna-se um poder em si ecoando, deste modo, o i m a g i n á r i o v e r b a l d a m a g i a . 498 Est as refer ênci as r e m et em , i gual m ent e, para o “poder m á gi co” que é t radi ci on al m e nt e at ri buí do à pal avra : Quaisquer que sejam as crenças e os dogmas, a palavra simboliza de uma for ma geral a ma nifestação da inteligê ncia na linguagem, na natureza dos seres e na criação contínua do universo; ela é a verdade e a luz do ser. Esta interpretação geral e simbólica não exclui em nada uma fé precisa na realidade do Verbo divino e do Verbo encarnado. [...] A palavra é o símbolo mais puro da manife sta ção do ser, do ser que se pensa e que se exprime ele próprio ou do ser que é conhecido e comunicado por um outro. 499 Adal bert o Al ves di z , a respei t o dos poet as árab es: O poe ma árabe tinha, desde os te mpos ma is primitivos, anteriores ao Islamismo, um car ácter encantatório. O poeta, pelo poder da palavra, era considerado um ser te mível que podia 497 Jack Tresider, in Os Símbolos e o seu Significado, Lisboa, Editorial Estampa, 2000, pág. 172. 498 Maria Teresa Meireles, A Palavra e os seus ecos, p. 17. 499 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, ob. cit.,p. 502. 353 proporcionar a desgraça ou a ventura, consoante invectivasse ou elogiasse. 500 Doral i ce Al cofor ad o , a propósi t o dos proce ssos m á gi cos dos encant am ent os no c ont o po pul ar , afi rm a o segui nt e : As meta morfose s ma te rializa m a transgressã o dos limite s entre palavra e coisa com que um mod o de pensa mento, utiliza ndo -se de operações predomina nte me nte sensíve is, busca apreender abstracções como imagens, como coisas. O sobrenatural se instala a partir do mo mento e m que a s palavra s passam a ser coisas. 501 E Gabri el J aner Mani l a cri a um a anal o gi a que se rel aci ona com o con t ex t o das nossas l endas: A palavra cria, ince ssa nte me nte, mundos paralelos. E circula e m nós regida por leis compará veis às da água: tal co mo a água nas profundidades da terra, mete -se por nós adentro, insta la-se na no ssa ima ginação, fá -la reviver, realiza uma viage m através da nossa me mó ria. T al como a lingua ge m [água? ], traznos os ele me ntos necessários à sobr evivê ncia. 500 501 502 502 Adalberto Alves, ob. cit., pág. 31. Doralice F. Xavier Alcoforado, ob. cit., pág. 75. Gabriel Janer Manila, ob. cit., p. 23. 354 2.3. AS ARTES MÁGICAS E OS DESENCANTADORES DE TESOUROS Parece-nos óbvio que todos os elementos analisados têm em comum reminiscências de antiquíssimos cultos pagãos. Em que consistiam esses cultos é o que hoje ignoramos. Mas talvez não completamente, pois, partindo desta permissa, concluímos que também os rituais mágicos estavam ligados a estes cultos, quer fossem ritos ligados à fertilização, quer o fossem à regeneração e, consequentemente, todos associados à vida, morte e renascimento. Ora, embora aparentemente os rituais mágicos nada tenham a ver com o ciclo da vida, a verdade é que mesmo os alquimistas não procuraram só a pedra que transformasse o chumbo em ouro, pois consta que também a “fonte da juventude” fazia parte dos seus objectivos. Assim, e ao que parece, os indivíduos que se dedicavam à busca de conhecimentos ocultos da maioria “juntavam o útil ao agradável” e, enquanto a alma percorria o seu ciclo, não desleixavam proporcionarem a procura de tesouros prazeres do corpo que capazes de lhes só o ouro pode comprar. Depois de termos analisado tamanha profusão de motivos separadamente, como era necessário, não podíamos deixar de dar um exemplo de como, pelo menos alguns deles, pode m conjugar-se na tentativa de alcançar um mesmo objectivo , como é o caso dos rituais mágicos para desencantar tesouros, que interessavam inclusivamente alguns clérigos, dispostos a correrem altos riscos, pondo em perigo a própria vida, como aconteceu ao Reverendo Padre frey José de S. João de Deos, denunciado à Inquisição por um seu amigo, supostamente “íntimo”, qual ao confiou talvez o seu maior segredo. Referimo-nos ao trabalho de Maria Benedita Araújo, sobre o 355 percurso da Clavicula Salomonis (cuja autoria é atribuída ao próprio rei Salomão, revelando “a essênc ia da sabedoria” que “o Senhor depusera sobre ele, em sonhos”) , “a obra magna da magia”, livro proibido em Portugal desde o século XVI, juntamente com outros, considerados de idêntico perigo (por exemplo, a “igualmente famosa Chyromantiæ”), fazendo parte de várias listas, a mais famosa e actualizada das quais era o Index Librorum Prohibitorum. 503 Dizia-se, na carta de denúncia daquele Padre: […] um caderno que tinha 30 meias folhas ou mais, tendo em cada uma delas uma figura, diferentes umas das outras, redondas umas, quadradas outras, com letras dentro, outras com cruzes, tendo em cima o titulo do que significavão e abaxo da figura a bênção que se fazia e a oração que se dizia, mas tudo escrito em latim, que não o entendi pelo não saber, mas mostrou-me outro coaderno que seria 8 meias folhas com a explicaçam do que continha todo o outro coaderno, dizendo que umas figuras ensinavam a dquirir siencias, outras, fortunas no militar, outras em se conseguir dezejos amorosos, etc e a figura numero 30 ou 31 dizia o modo como se descubriam tesouros escondidos e no coaderno da explicasam para se saber aonde estavam os tisoiros, diz que era necessario matar-ce em certo tempo um cabrito que estivesse sam, com huma espada de 3 quinas com cabo de cristal e depois de morto se esfolaria, tirando-se-lhe a pelicola em sima da qual se diriam as tres missas do natal e se fariam umas varas fabricadas de certos metais, que depois de benzidas e dita a oração como se lia ao pé da figura numero tantos, era este instromento o que desco bria o tisouro, pois para ele caminhava a criatura e caia no cham aonde estava oculto, que assim o experimentara ele [..]. 504 503 V. Maria Benedita Araújo, “Ler em Portugal no século XVII – O percurso de um livro proibido ”, in Lindley Cintra – Homenagem ao Homem, ao Mestre e ao Cidadão , org. de Isabel Hub Faria, Lisboa, Edições Cosmos, Fac uldade de Letras da Universidade de Lisboa, 1999, pp. 310 a 330. 504 Maria Benedita Araújo, ob. cit., p. 316. 356 E, segundo Maria Benedita Araújo, foram igualmente queimados pelo Santo Ofício livros de alquimia, nigromancia e astrologia. […] No caso citado evidentemente de (Clavicula um livro Salomonis), ou tratava-se «cuaderno» muito consultado por todos os que pretendiam achar tesouros, ser bem sucedidos nos negócios e no amor, triunfar na política ou na guerra. Ensinava portanto as operaçõe s mágicas mais diversas, desde o levantamento de figura, atar, ligar e desligar, provocar a morte de inimigos, restituir a saúde abalada pelo uso de preparação dos pentáculos, meios preternaturais, bem como a instrumentos facas, cutelos indispensáveis de à arte, sacrifícios, selos planetários, invocações de entidades, entre muitos outros segmentos. Não era uma obra de leitura fácil, destinava -se aos iniciados nas ciências esotéricas. Por outro lado, encontrava-se relacionado com o Sefer Raziel de Eleazer de Worms, que, por sua vez, se encontrava repleto de fórmulas e invocações. Por outro lado, o valor atribuído às letras e colocava-o aos números, principalmente em conexão com a às Cabala, primeiras, igualmente desenvolvida pelos judeus sefardis e que entusi asmava do mesmo modo muitos cristãos. 505 Tal como nas lendas de mouras encantadas, havia toda uma série de preceitos a respeitar, nem sempre fáceis de executar, pelo que só os aptos, persistentes e, por isso mesmo, merecedores, conseguiam alcançar os seus objectivos. Não era fácil, porém, realizar todos estes sonhos, não obstante mágica a necessária complicada, 505 posse daquele para obrigava, maravilhoso a obtenção entre livro. de outros A técnica resultados era segmentos, ao Maria Benedita Araújo, ob. cit., p. 321. 357 sacrifício de animais com os instrumentos adequados, à manipulação do sangue e dos «perfumes», ao jejum e purificação do operador. […] que deveria seguir para tal as regras das conjugações dos astros e assegurar -se do concurso das entidades que presidiam aos círculos e aos planetas. Garantia assim a consecução da finalidade pretendida pela potenciação Considerava-se das que, forças na subtis invocação da dos natureza. demónios, os caracteres gregos e hebreus presentes nos pentáculos e no grande círculo mágico, permitia ao operador entrar em contacto com os espíritos infernais sem se expor a uma morte certa. Na realidade, conforme asseverava a crença, a invocação demoníaca não era matéria fácil, como pensavam as pessoas mal informadas. Daí, que tantas e tantas tentativas séculos XVII e de pacto XVIII e ocorridas no testemunhadas decurso por numerosa documentação não obtivessem qualquer resultado… Esta podem autora descreve, relacionar-se com ainda, o outros contexto dos 506 pormenores das nossas que lendas (algumas, pelo menos) e, consequente mente, com a simbologia dos motivos estudada. Segundo a magia salomónica, o primeiro cuidado a enfrentar seria respeitar planetárias influíam na a tabela realização do sol. As horas da operação e havia tabelas secretíssimas, mas que o rei expunha a Roboã o [seu filho] no correctamente. maus, que seu Testamento Seguiam-se presidiam ao os dia e que nomes da dos semana. permitiam anjos agir bons Seriam, e entre outros, e para o domingo, por exemplo, Cassiel, Gabriel, Anael, Samael, Rafael. Além disso, o opera dor deveria preparar os instrumentos para as mencionadas operações, mantendo sempre o domínio de si próprio e dos espíritos que acorriam ao seu espíritos impuros e chamado. Haveria que afastar os aproveitar para a arte os espíritos divinos e puros. Os utensílios considerado[s] de maior 506 Maria Benedita Araújo, ob. cit., pp. 322 e 323. 358 importância eram o «estilete», que servia para imolar as vítimas, e a «faca», para as despedaçar. Eram destinados unicamente a estas finalidades e seriam cuidadosamente guardados. A «taça» para a recolha do sangue deveria ser nova, exorcizada e preparada com fumigações das ervas planetárias. Deveria ser igualmente purificada, por uma cerimónia apropriada, assim como todo o material presente no sacrifício, desde os panos brancos que envolviam as paredes e operador. E, a mesa, à vestimenta também branca do 507 como seria de esperar, não podiam faltar outros elementos, como a palavra, a oração, os caracteres mágicos, os “selos de Salomão” e, finalmente, toda a natureza: A «oração », em língua latina, invocava os nomes santos de Deus e dos anjos para quem abençoassem aquele instrumento preparado em honra do Senhor. O operador conservava-o depois muito limpo até ao momento de ser usado para gravar os caracteres mágicos. Caso raro, era desnecessário purificá-lo com sangue de cordeiro ou de uma pomba branca. Na magia salomónica toda a natureza participava da divindade e fazia parte dela. O homem, colocado no vértice da escala hierárquica, encontrava-se relacionado com o cosmos e participava de todo o universo. Apontavam-se os quatro elementos e os Anjos que a estes presidiam: Cherub, Seraph, Tarsis, e Ariel, Anjos cabalísticos. Seguiam-se as quatro estações com os seus respectivos príncipes, entre os quais se citava Carascasa, Staran e Comissoros. Igualmente indicados, os planetas, os Anj os que assistem diante de Deus, as pedras, as ervas, os pássaros e os «animais terrestres» correspondentes a cada um deles. Os «incensos» apontados revelam, entre outros, o aloés para Júpiter, o estoraque destinado a Marte, o louro, que incensava Vénus. 507 Maria Benedita Araújo, ob. cit., p. 323. 359 Qualquer utilização falha, dos por mais «per fumes» quer insignificante, na simbologia quer na ou nas operações, inactivava todo o trabalho. […] Seguiam igualmente os «pentaculos» ou pantáculos de Salomão, desenhos ou gravuras ensinadas por Deus ao Grande Rei para atrair toda a boa fortuna e afastar as influências nefastas. Protegiam ao mesmo tempo a apropriação do nome dos Anjos e sua utilização pelos não 508 iniciados. Este último parágrafo vem lançar luz sobre um antigo enigma, um conseguido problema encontrar para o resposta: qual é não ponto t ínhamos assente ainda entre os estudiosos (referimo-nos, mais concretamente, ao Dicionário de Símbolos, mas também a outros livros, quer se destinem a interpretar símbolos, quer não) que o “Selo de Salomão” é a estrela de seis pontas, ou seja, resultante de dois triângulos invertidos, que, como é do conhecimento geral, sempre foi símbolo do povo Judeu; também é tradição (pensamos que em todo o país, mas no Algarve, seguramente) oferecer aos recém-nascidos, para protecção, um conjunto de amuletos em ouro (para colocar num fio ou numa pulseira) , em número de cinco, de que fazem parte uma mão a fazer uma “figa”, um corno, um coração, uma meia-lua e um pentagrama; acontece que, no Algarve, pelo menos antigamente e até não há muito pouco tempo, o popularmente chamado “Signo Samão” (no falar algarvio) era o pentagrama, isto é, a estrela de cinco e não a de seis pontas. Quando nos deparámos com esta questão, depois de interrogarmos várias pessoas, tentando sem sucesso obter um a resposta diferente, não encontrando outra hipótese de explicação, acabámos por pensar que teria havido, algures no tempo, uma confusão qualquer. Afinal, a “confusão” parece ser apenas, provavelmente, a designação genérica dos vários 508 Maria Benedita Araújo, ob. cit., p. 326. 360 desenhos que constituem “os pentáculos de Salomão”, ou mesmo a utilização da expressão “pentáculo” ou “pentáculos de Salomão” associada a rituais mágicos (nas lendas de mouras encantadas, é comum o encantador fazer “uns sinais cabalísticos” e o “signo Samão”) , propagada pelos livros que ensinavam estas práticas, como é o vários caso da Clavicula Salomonis. 361 CONCLUSÃO Dum ponto verdadeira, de mas vista nós científico, somente a história pudemos não entender é esta propriedade do mito num tempo em que a ciberné tica e os computadores apareceram no mundo científico , dando-nos o conhecimento das operações binárias, que já tinham sido postas em prática de uma maneira bastante diferente, com objectos ou seres concretos, pelo pensamento mítico […] perante o qual permanecíamos completamente cegos antes de a ideia das operações binárias se tornar um conceito familiar para todos. 509 Se quisermos encontrar uma atitude comum a todas as narrativas e episódios que analisámos, não é difícil, sem dúvida, aventar a hipótese de que todos os entes míticos do maravilhoso popular algarvio estão, muito provavelmente, relacionados com cultos ancestrais dos mortos. Mas recordemos também os rituais da água que se recolhe para beber ou para libações, na véspera de S. João, em busca dos seus milagres curativos e fecundadores. Água retirada das mesmas fontes onde se diz que estão as mouras encantadas. Águas, fertilidade e regeneração, a cobra e as mouras encantadas, todos mitemas do mesmo conjunto. E os exemplos das aparições neste contexto são, evidentemente, às centenas. 510 Água, terra, ar e fogo; fertilidade e regeneração; tempo e ciclicidade; nascimento, vida, morte e renascimento. E se as mouras são, como dissemos, criaturas de uma idade primeva, reminiscência de uma Estória antes da História, as suas manifestações consubstanciaram durante 509 510 Claude Lévi-Strauss, ibidem, pp. 37 e 38. Fernanda Frazão e Gabriela Morais, ob. cit., p. 34. 362 séculos uma alimentou segunda férteis idade. Idade imaginários em que populares e a fantasia tradicionais. Hoje, contudo, os seres do bestiário popular vão cedendo lugar ao inexorável racionalismo co ntemporâneo naquilo que podemos chamar a terceira das idades de uma existência mística e milenar. Os lugares recônditos são-no cada vez menos, e o mistério adquire agora outros contornos e cenários. Os enriquecimentos possuem hoje outras explicações. […] A moura, vínculo arquétipo unificador da com perenidade um passado da natureza, primevo, perde inevitavelmente a sua razão de ser. A sua essência vai -se 511 diluindo conforme se esvaem as crenças respectivas. Podemos, tradicionais então, a que talvez, deduzir ainda hoje que todos podemos os ritu ais assistir estão entreligados, assim como entre as personagens míticas e as religiosas existe uma ligação ancestral que dificilmente se deixa entrever nas diversas formas que têm assumido ao longo dos tempos. Poder-se-á dizer, assim, que só a mudança permanece. Que real não é apenas aquilo que se mant[é] m igual a si próprio, mas ainda o que se transforma ciclicamente,dando origem a novas formas, mas conservando o mesmo elemento essencial e o mesmo desígnio. Afinal, neste complexo fecundante e fertilizante associado aos ciclos da natureza, crucial durante milénios para a sobrevivência de sociedades que daí esperam a abundância desejada e quantas vezes prometida, não é de admirar que tal desígnio essencial se perpetue, enquanto mudam, no configurações. tempo e no espaço, roupagens e 512 Foi Ferdinand de Saussure quem nos mostrou que a linguagem é feita de elementos indissociáveis, que são, 511 Aurélio Lopes, B. I. das Mouras Encantadas, 2ª ed., Lisboa, Apenas Livros Lda., 2004. p.28. 512 Aurélio Lopes, Personagens Florais, p. 19. 363 por um lado, o som, e, por outro, o significado. E o meu amigo Roman Jakobson acaba de publicar um pequeno livro intitulado Le Son et le Sens, como as duas inseparáveis faces da linguagem. Temos o som, e o som tem um significado, e não há significado sem som para o veicular. Na música, é o elemento sonoro que predomina, e no mito é o significado. 513 Para finalizar, apenas me ocorrem as palavras do nosso muito estimado orientador, num artigo dedicado à Professora Doutora Maria de Lurdes Belchior, que tivemos o prazer de contar entr e os no ssos «mestres »: A nível do imaginário colectivo, onde e como nos situarmos? É difícil dizer…, embora julguemos que também neste aspecto prosseguimos iguais a nós mesmos. Sobretudo, esperamos… […] continuamos a aguardar uma intervenção sobrenatural através de não poucas a frequentes mensagens do Divino, ou, melhor, cremos no «deus ex-machina», que poderá concretizar-se na personagem «enviada» co m missão especial, no «Desejado » carismático… […] […] Eclécticos que sempre fomos, herdeiros da mística e da acção dos Templários e dos Cavaleiros da Ordem de Cristo, incapazes do exercício organizador ou planificador da razão, actores marcados por signo astrológico tão bem estudado por Pessoa (cremos que é o signo sempre de –, Peixes) hão-de temos confiar forçosamente numa sempre de ser adiada os que era de grandeza, continuação da efémera hegemonia passada, que parece ser-nos garantida quer pela Santa da Ladeira ou outros iluminados, para os problemas circunstanciais, quer por Nossa Senhora de Fátima, para a realização dos nossos compromissos em relação ao Bem e ao Ma l, quer ainda por um 513 D. Sebastião, para a nossa afirmação de esperança Claude Lévi-Strauss, ibidem, pp. 75 e 76. 364 perante o futuro… Como, aliás, queria Bandarra e todos os seus glosadores… 514 514 João David Pinto-Correia, Repensar A Nossa Identidade Cultural, Lisboa, Apenas Livros Lda., 2005, pp. 14 e 15. 365 BIBLIOGRAFIA BIBLIOGRAFIA PRINCIPAL AA.VV., Vilas e Aldeias do Algarve Rural, Faro, ed. Globalgarve / Alcance / In Loco / Vicentina, 2ª ed., 2003. AA.VV., TAVIRA do NEOLÍTICO ao SÉCULO XX, II JORNADAS de HISTÓRIA – ACTAS, Tavira, ed. Clube de Tavira, 1993. BARRETO, J. Mimoso, O ALGARVE, Lisboa, Plano d e Educação Popular, Col. Educativa, série E, Número 8, ed. Ministério da Educação Nacional, Direcção -Geral da Educação Permaente, 1972. CARRIÇO, Silva, Memória das Coisas , Monchique, Editor Associação “O Monchiqueiro” grupo de Din amização Cultural, 1995. CORRÊA, Fernando Calapez, Livro das Visitações da Ordem de Sant’Iago na Igreja Matriz de Aljezur (1605 -1846), ed. 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António, Sermão de Santo António, ed. 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Maria de Jesus Duarte (ti Bia) com 91 anos, tem a 4ª classe, moradora em Casais LCS 1 = [A Aparição de Santo António] recolhida em 04/02/2007 do sr. Filipe Marque com 92 anos, tem a 4ª classe, nasceu em Monchique ELAP/M 1 = [Os dois Coelhinhos Brancos] recolhida em 14/04/2007 da sra. Maria Patrocínio Castilho Santos (D. Bibi), com 73 anos, tem a 4ª classe, nasceu em Albufeira ELFeB 1 = [Histórias de Almas Penadas e de Bruxarias], recolhida em 14/04/2007 LFeB 1 = Três casos de bruxaria / 1 [A morte do irmão] recolhida em 14/04/2007 LFeB 2 = Três casos de bruxaria / 2 [“Uma coisa muito agarrada à matéria”] recolhida em 14/04/2007 LFeB 3 = Três casos de bruxaria / 3 [A professora da Fuzeta] recolhida em 14/04/2007 381 LU 1 = [Casas assombradas em Olhão – o palacete do Conde de Olhão] recolhida em 14/04/2007 LU 2 = [Casas assombradas em Olhão – o cinema] recolhida em 14/04/2007 da sra. Ana Paula Santana licenciada, com 50 anos, nasceu em Portimão ELM 1 = [A “Pedra Mourinha”] recolhida em 16/08/2011 ELAP/M 2 = [A Costureirinha] recolhida em 16/08/2011 ELAP/M 3 = [A origem do nome de Odelouca] recolhida em 16/08/2011 LCD 1 = [As rochas da praia dos Três Irmãos] recolhida em 16/08/2011 do sr. José Conceição Casinha Nova licenciado, com 76 anos, nasceu em Burgau LU 3 = [Casa assombrada em Lagos] recolhida em 14/08/2010 ELAP/M 4 = [Fogos fátuos / Almas penadas] recolhida em 14/08/2010 ELAP/M 5 = [Campainhas / Almas penadas] recolhida em 14/08/2010 382 ELFeB 2 = [Um feitiço] recolhida em 14/08/2010 VERSÕES INÉDITAS Ouvidas na infância, por José Conceição Casinha Nova e passadas a escrito a partir de 1998 ELAP/M 6 = Num almanxar em Burgau ELAP/M 7 = Nas Quatro Estradas ELAP/M 8 = Na Toca do Rabo, em Burgau ELAP/M 9 = Junto ao Canto do Laredo, em Burgau LLO 1 = [Bernardino, o lobisomem] E L L O 1 = No Val e de Bur gau ELMO 1 = [Desabafo] LMO 1 = [A morte do carteiro] LMO 2 = [Amor eterno] LMO 3 = [Tentando fugir da Morte] 383 VERSÕES EDITADAS A l c o u t i m – C a p i ta l d o N o r d e s t e Al g a r v i o ( S u b s í d i o s p a r a u ma Mo n o g ra f i a ) ( d e An t ó n i o M i g u e l As c e n s ã o Nu n e s ( J o s é Va r z e a n o ) LM 1 = [A Moura do Castel o da Vila] [pp. 134-135] LM 2 = [A Moura do Castelo Velho ] [pp. 146-147] ELM 2 = [As mouras de Alcoutim ] [pp. 145] A L G AR V E – Re f l e x o s Et n o g r á f i c os d e u ma Re g i ã o ( d e Ad é r i t o F e r n a n d e s Va z ) ELM 3 = [Carneiros que desaparecem ] [p. 50] ELFeB 3 = [Feiticeiros bons em Santa Rita ] [pp. 51-52] ELAP/M 10 = [Alma penada (mosca)] [p. 52] A L M AN S I L Mo n og r a f i a e Me mó r i as ( d e C r i s t ó v ã o G u e r r e i r o No r t e ) ELAP/M 11 = [Na ponde de Carcavai ] [p. 74] ELAP/M 12 = [Nos cruzamentos] [p. 74] ELAP/M 13 = [O cão preto] [pp. 74 -75] ELD 1 = [Ataques do Diabo] [p. 75] 384 A M o n o g r a fi a d e Al v o r ( d e At a í d e Ol i v e i r a ) LCJC 1 = [A imagem do Senhor Jesus ] [pp. 190-192] LCJC 2 = [O salvamento dos pescadores] [pp. 194-196] LCJC 3 = [O terramoto de 1755] [pp. 198 -199] LCJC 4 = [A barba da imagem] [pp. 200 -201] LCJC 5 = [A imagem sua sangue] [p. 202] LCJC 6 = [O castigo do Senhor Jesus] [pp. 202-203] LFeB 4 = [A bruxa que matou o marido] [pp. 206-208] LFeB 5 = [A bruxa que curou o marítimo] [pp. 214-215] ELFeB 6 = [Engano nas horas] [pp. 208] ELAP/M 14 = [A alma que não requereu] [pp. 210-211] LAP/M 1 = [A missa pedida pela avó ] [pp. 213-214] As Mouras Encantadas e os Encantamentos no Algarve (de Ataíde Oliveira): LM 3 = A Moura Cássima (=> 8; => 18) [pp. 61-70] XXX LM 4 = [Os primos encantados] [pp. 74-77] LM 5 = [A Moura do sítio da Canada] [p. 82] LM 6 = A Moura de Salir / 1 [pp. 103-109] LM 7 = A Moura de Salir / 2 [pp. 110-113] LM 8 = A Moura de Querença [pp. 132-133] LM 9 = [O Mourinho de Paderne] [pp. 144 -145] LM 10 = A Moura de Faro / 1 [pp. 147-150] LM 11 = A Moura de Faro / 2 [pp. 152-154] LM 12 = A Moura de Faro / 3 [pp. 154-155] LM 13 = O Encantamento de Estoi [pp. 158-161] 385 LM 14 = A Moura de Olhão (=> 37; => 70) [pp. 165 -167] LM 15 = [O Mourinho de Olhão] [pp. 167 -168] LM 16 = O Abismo dos Encantados [pp. 175-177] LM 17 = O Poço de Vaz Varela [pp. 183-185] LM 18 = A Moura do Castelo de Tavira [p. 194] LM 19 = A Moura de Alcoutim [pp. 203-204] LM 20 = A Moura de Vaqueiros [pp. 205-206] LM 21 = A Moura de Giões [pp. 207-215] LM 22 = A Moura de Pêra [pp. 229-230] LM 23 = A Encantada de Porches [pp. 231-232] LM 24 = A Cobrinha do Barranco [pp. 239-241] LM 25 = O Tacho do Tesouro [pp. 243-244] LM 26 = O Forno da Cal [pp. 247-250] LM 27 = O Palácio sem Portas [pp. 251-253] LM 28 = A Fonte de Espiche [pp. 261-262] ELM 4 = [Numa cadeira de prata] [pp. 71 -72] ELM 5 = [Na Fonte da Moura / 1] [p. 72] ELM 6 = [Na Fonte da Moura / 2] [pp. 72 -73] ELM 7 = [Fonte das Romeirinhas / 1] ELM 8 = [No Torrejão] ELM 9 = [No sítio do Vale / 1] ELM 10 = [Em Apra] [p. 73] [p. 77] [pp. 77 -78] [p. 78] ELM 11 = [Na Fonte das Romeirinhas / 2] [pp. 78 -79] ELM 12 = [No Pombal] [pp. 79] ELM 13 = [Na Corredoira] [pp. 79] ELM 14 = [No Cabeço de Câmara] [p. 81] ELM 15 = [Na Fonte das Romeirinhas / 3] [p. 82] ELM 16 = [No sítio do Vale / 2] [p. 84] ELM 17 = [Na porta Miradela do castelo] [p. 84] ELM 18 = [No sítio do Vale de Cães] [pp. 84 -85] ELM 19 = [Reuniões dos encantados] [p. 85] ELM 20 = [Na Fonte do Mouro] [p. 85] 386 ELM 21 = [Na casa da testemunha] [pp. 85 -86] ELM 22 = [Na Quinta do Pombal] [p. 87] ELM 23 = [Perto da igreja de Santa Ana] [pp. 87-88] ELM 24 = [Perto da Fonte Cássima] [p. 88] ELM 25 = [Touro caiu dentro da fonte] [p. 89] ELM 26 = [O rebanho de perus] [pp. 89 -90] ELM 27 = [A Moura do Serro da Pena] [pp. 113 -114] ELM 28 = [Na Fonte M ourena] [p. 115] ELM 29 = [A Moura nos muros do castelo] [p. 116] ELM 30 = [A Moura com um archote aceso] [pp. 116 -119] ELM 31 = [Na Fonte do Ouro] [p. 119] ELM 32 = [A cobra do Ribeiro Seco] [p. 120] ELM 33 = [ A Igrejinha dos Soidos ] [pp. 123-124] ELM 34 = [No sítio do Farrobeirão] [pp. 124 -125] ELM 35 = [No sítio dos Braganções] [p. 125] ELM 36 = [Em Benafim] [p. 125] ELM 37 = [No sítio dos Mortorios] [p. 125] ELM 38 = [A Moura do Ameixial] [pp. 127 -128] ELM 39 = [No sítio da Corte do Ouro] [p. 128] ELM 40 = [Mouros encantados em pedras] [p. 128] ELM 41 = [Na Cova dos Mouros] [pp. 129-130] ELM 42 = [No Lugar da Amendoeira] [pp. 130 -131] ELM 43 = [Mouros de Querença] [p. 132] ELM 44 = [Albufeira: na furna do Xurino] [p. 142] ELM 45 = [No sítio da Patã] [p. 142] ELM 46 = [Paderne: no castelo] [p. 144] ELM 47 = [Paderne: mourinho] [p. 144] ELM 48 = [Faro: mouros do castelo] [p. 150] ELM 49 = [Faro: na Rua da Parreira] [p. 150] ELM 50 = [Faro: figos fora da época] [p. 151] ELM 51 = [Faro: o mourinho generoso] [pp. 151 -152] ELM 52 = [Faro: no Rio Seco] [p. 155] ELM 53 = [Os Mouros de Alportel] [pp. 163 -164] ELM 54 = [Em Moncarapacho/1] [p. 171] 387 ELM 55 = [Em Moncarapacho/2] [pp. 171 -172] ELM 56 = [Em Moncarapacho/3] [p. 172] ELM 57 = [No pego Bum -Bum / 1] [pp. 172-173] ELM 58 = [No pego Bum -Bum / 2] (=> 93) [p p. 172-173] ELM 59 = [A Moura de Moncarapacho] [p. 173] ELM 60 = [No serro de S. Miguel] [p. 173] ELM 61 = [No Monte do Tesouro] [pp. 173 -174] ELM 62 = [Fátima e José Peso Duro] [p. 186] ELM 63 = [Fátima e o Cativo] [pp. 186 -187] ELM 64 = [Fátima e José Gigante] [p. 187] ELM 65 = [Fátima oferece figos] [pp. 187 -188] ELM 66 = [A dama do corcel alazão] [p. 188] ELM 67 = [Fátima continua a apare cer] [pp. 188-192] ELM 68 = [Castro Marim: no Castelo] [p. 199] ELM 69 = [Mouro encantado em sapo] [pp. 199 -200] ELM 70 = [No sítio da Espalhosa] [p. 200] ELM 71 = [A luta de D. Ana Faísca] [pp. 200 -201] ELM 72 = [Os nove mouros encantados] [p. 201] ELM 73 = [A Moura de Vaqueiros] [p. 205] ELM 74 = [Na prisão de Silves] [pp. 221 -222] ELM 75 = [No Castelo de Silves] [pp. 222 -223] ELM 76 = [No P ego do Pulo] [pp. 223 -224] ELM 77 = [O cemitério dos mouros] [pp. 224 -225] ELM 78 = O encantamento do Algôs [p. 227] ELM 79 = [Em berço de ouro] [p. 233] ELM 80 = A Fonte Coberta / 1 [p. 245] ELM 81 = A Fonte Coberta / 2 [pp. 245 -246] ELM 82 = [O Mourinho de] Bensafrim [pp. 255 -256] ELM 83 = O Touro da Carapetola [p. 245] ELAP/M 15 = [O homem que batia no chão] LMIA = [A Torre de Bias] [p. 89] [pp. 179 -180] 388 ELFeB 7= [As bruxas de Boliqueime] [p. 136] ELFeB 8= [O virtuoso de Giões] [pp. 207 -208] ZB 1 = A Zorra Berradeira [pp. 235-236] G/J 1 = Gens ou Jens [pp. 237-238] Cidade de Mil Tesouros (de Maria José Guerreiro Pinheiro) LM 29 = A Moura Encantada do Castelo de Tavira LM 30 = Lenda do Poço Vaz Varela [pp. 22 -23] [pp. 23-24] Contos Populares e Lendas (de José Leite de Vasconcellos) LCNS 1 = Senhora dos Milagres [p. 507] LCS 2 = São Cipriano [pp. 545 -547] LCS 3 = São Vicente [pp. 591-592] ZB 2 = A Zorra de Odelouca [p. 599] LCD 2 = A Mulher Morta LCD 3 = O Busto de Faro [p. 604] [p.615] LPD = Lameira [p. 863] LM 31 = [O Cinto da Moira] [pp. 742 e 743] LM 32 = A Velha Barbaças [pp. 743 e 744] 389 ELM 84 = [Os Dois Moirinhos] [pp. 782 -783] ELM 85 = O Menino dos Olhos Grandes [p. 797] TE 1 = [Em Castro Marinho] [p. 824] TE 2 = [Em Val de Bois] [p. 825] Da Memória do Povo: recolha da literatura popular concelho de tradição oral do de Portimão (de Margarida Tengarrinha) LFeB 6 = O Baile das bruxas no Vale de Botas [p. 25] LFeB 7 = Os Bois presos no Cagorro [p. 26] LFeB 8 = A Levitação de José Perpétuo [pp. 29-30] LFeB 9 = A Brux a Inácia da Córte [pp. 31-32] LFeB 10 = Os Bruxedos da Carembicha [pp. 33-36] LFeB 11 = As Bruxas da Quinta da Rocha [pp. 37-38] LFeB 12 = A Viúva dos Montes de Alvor [pp. 40-41] LFeB 13 = A Sorte da Água para descobrir a bruxa [ pp. 42 -4 3 ] ELFeB 9 = As Bruxas da Várzea do Farelo [pp. 27-28] ELFeB 10 = A Vingança das Bruxas [p. 28] ELFeB 11 = As bruxas de Alvor [p. 39] ELFeB 12 = Pedro nas mãos das Bruxas [pp. 39 -40] ELFeB 13 = As Bruxas que vinham de Santaré m [p. 44] LLO 2 = O João do Serro, Lobisomem [pp. 36 -37] LLO 3 = [Lobisomens de Alvor / 2] [pp. 41 -42] ELLO 2 = Lobisomens de Alvor [1] [p. 41] LCNS 2 = Lenda da Senhora do Verde [pp. 6 3-64] LCNS 3 = A Pègada da Nossa Senhora na Fonte junto da Ermida [p. 64] 390 LCNS 4 = Nossa Senhora e o Linguado [p. 72] LCNS 5 = A Promessa à Nossa Senhora [p. 73] LCJC 7 = A Lenda do Senhor Jesú s de Alvor [1] LCJC 8 = [A [p. 65] Lenda do Senhor Jesú s de Alvor / 2] [p. 66] LCD 4 = Lenda dos três Irmãos de Alvor [pp. 66 -67] LCD 5 = Lenda do Sítio da Mulher Morta [ pp. 68-69] LAP/M 2 = A Alma Penada de Odelouca [pp. 67 -68] LAP/M 3 = A Lenda do Canto das Almas [pp. 73 -74] ELD 2 = Lenda da Mina dos Mouros [p. 71] ELM 86 = A Lenda do Barretinho Encarnado ENIGMAS – [pp. 71-72] LUGARES MÁGICOS DE PORTUGAL – Cabos do Mundo e Finisterras (de Paulo Pereira) LCNS 6 = Capela de Nossa Senhora da Rocha [p. 146] LCS 4 = «M ila gre s de S. Vicente da dos a públicoem Lisboa por Mestre Estê vão chantre da Sé olisiponense» [pp. 161-162] LCS 5 = São Vicente na Grande Tradição [p. 170] 391 Lendas de Portugal (de Gentil Marques): LM 33 = Lenda do Bolo Branco LM 34 = Lenda de Algoz [vol. III, pp. 69-74] [vol. I, pp. 345 -351] LM 35 = Lenda da Moura da Serra de Monchique LM 36 = Lenda do Falso Juramento [vol. III, pp. 313 -317] [vol. III, pp. 273-278] LM 37 = Lenda da Moura Floripes (=> 14; => 70) [vol. III, pp. 371 -376] LM 38 = Lenda do Almocreve de Estoi [vol. III, pp. 209-215] LM 39 = Lenda da Castelã de Salir [vol. III, pp. 247 -252] LM 40 = Lenda da Fonte Cassima [vol. III, pp. 185-193] LM 41 = Lenda do Abismo dos Encantados (=> 65; => 69) [vol. III, pp. 171 -174] LM 42 = Lenda dos Corvos de São Vicente [vol. IV, pp. 157-162] LM 43 = Lenda do Manto de Santo António [vol. IV, pp. 205-210] LM 44 = Lenda do Senhor da Verdade [vol. IV, pp. 243-249] Lendas Portuguesas (de Fernanda Frazão): LM 45 = O Convite da Mirra [vol. 5, pp. 117 -122] LM 46 = O Senhor Jesus de Alvor [vol. 5, pp. 123 -131] LM 47 = Lenda da Praia da Rocha [vol. 5, pp. 133 -139] LM 48 = A Cobrinha do Barranco [vol. 6, pp. 67-71] LM 49 = O Palácio sem Portas [vol. 6, pp. 25-29] LM 50 = O Tacho do Tesouro [vol. 6, pp. 77-80] LM 51 = O Cinto da Moura [vol. 6, pp. 45-47] LM 52 = As Mouras do Rio Seco / 1 [vol. 6, pp. 85-88] 392 LM 53 = As Mouras do Rio Seco / 2 [vol. 6, pp. 88-90] LM 54 = O Encantamento de Estoi [vol. 6, pp. 37-44] LM 55 = A Moura do Arco do Repouso [vol. 6, pp. 31-36] LM 56 = A Moura Cassima [vol. 6, pp. 11-24] LM 57 = A Moura de Salir [vol. 6, pp. 63-66] LM 58 = A Moura de Querença [vol. 6, pp. 81-83] LM 59 = O Poço do Vaz Varela [vol. 6, pp. 57-62] LM 60 = Dinorah [vol. 6, pp. 73-75] Livro das Visitações da Ordem de Sant’Iago na Igreja Matriz de Aljezur (1605 -1846) (de Fernando Calapez Corrêa) LSC = As Santas Cabeças [pp. 211-213] ELSC 1 = [Declaração de 1713] [p. 214] ELSC 2 = [Declaração de 1846] [p. 215] Loulé Cidade de Mil Encantos (de Maria José Guerreiro Pinheiro) LM 61 = A Moura Cássima [pp. 23-27] LM 62 = A lenda dos dois primos [pp. 28 -29] LM 63 = A Moura de Salir [pp. 29 -30] ELM 87 = A Lenda da Fonte da Moura [pp. 27 -28] ELM 88 = Outra Lenda [p. 28] ELM 89 = A Lenda do Amei xial [p. 29] LCNS 7 = [A donzela que resistiu ao fidalgo] [p. 60] LCNS 8 = [A construção da Capela da Senhora da Piedade] [p. 60] LCNS 9 = Lenda da Senhora da Piedade [pp. 63 -64] 393 Memória das Coisas (de Silva Carriço) ELAP/M 16 = [A velha, o burro e o cão] [pp. 198 -199] ELAP/M 17 = [O cão da Cruz do Peso] [p. 200] LFeB 14 = [ O tio Manel e a b rux a] [p. 199] ELFeB 14 = [As bruxas e as encruzilhadas] [ p. 200] Mexilhoeira Grande – Ensaio Monográfico (de Helga Maria Lopes Rosa) LCNS 10 = Lenda da Senhora do Verde (=> 2) [p. 159] LCNS 11 = A pegada da Nossa Senhora da Fonte junto da ermida (=> 3) [pp. 159 -160] LCD 6 = Lenda do sítio da Mulher Morta (=> 2) ELD 3 = Lenda da Mina dos Mouros (=> 1) [p. 160] [p. 160] Monografia da Luz de Tavira (de Ataíde Oliveira): LM 64 = A Fonte do Arroio [/O Pego Escuro] (=> 66) [pp. 219-221] 394 Monografia de Estoi (de Ataíde Oliveira) LM 65 = A Fonte do Canal (=> 41; => 69) [pp. 141 -142] Monografia de Estombar – Concelho de Lagoa (de Ataíde Oliveira) ELM 90 = [No sítio da Horta] [p. 174] E LM 91 = [ Nas ca vernas da M ex ilhoeirinha] [p. 175] ELAP/M 18 = [Pancadas no soalho] [pp. 175 -176] ELAP/M 19 = [O tesouro dentro da furna] [p. 176] TE 3 = [O tesouro do Convento do Praxel] [p. 176] ZB 3 = [A Zorra Berradeira] [pp. 177-178] G/J 2 = Gens ou Jens [p. 178] Monografia de São Bartolomeu de Messines (de Ataíde Oliveira): LCS 6 = [O templo de São Bartolomeu] [pp. 157 -158] LM 66 = [“ Pego Escuro] (=> 64) [pp. 158-160] LM 67 = [O Pego da Carriça] [pp. 160 e 161] LM 68 = [O Encantamento] [pp. 161-163] 395 Monografia do Algoz (de Ataíde Oliveira) LFeB 15 = [ O homem que trocou a o r ação] [pp. 2 02-203] ELFeB 15 = [Bruxaria no Hospital] [p. 203] LCNS 12 = [A ermida da Senhora do Pilar] [p. 208] LCNS 13 = [A fonte da Senhora do Pilar] [pp. 210 -211] ELM 92 = [Na Azinhaga das Quintas] [p. 209] Monografia do Concelho de Loulé (de Ataíde Oliveira LCNS 14 = [A Senhora das Portas do Céu] [pp. 198-199] ELM 93 = [Na Cova de Pelles] [p. 200] Monografia do Concelho de Olhão (de Ataíde Oliveira) LM 69 = [A Fonte do Canal] (=> 41; => 65) [pp. 43-44] LM 70 = [A Moura Floripes] (=> 14; => 37) [pp. 227 -228] ELM 94 = [Companheiro Importuno] [p. 228] ELM 95 = [Mourinho do Pego Bum -bum] (=> 57) [p. 228] ELM 96 = [No Monte do Thesouro] (=> ??) [p. 228] ELM 97 = [As mouras de Pechão] [p. 228] ELFeB 16 = [A morte da Bruxa] [p. 233] 396 Monografia do Concelho de Vila Real de Santo António (de Ataíde Oliveira) ELAP/M 20 = [A Cabrinha] [pp. 213 -214] O ALGARVE (de J. Mimoso Barreto) LCD 7 = [O Monte de Trigo] [p. 75] LCD 8 = [Branca Flor] [p. 76] O Livro de Alportel – Monografia de uma Freguesia Rural – Concelho (de Estanco Louro) ELAP/M 21 = Os medos [pp. 376 -377] ELAP/M 12 = Os espíritos [p. 377] Passinhos de Nossa Senhora (de Fernanda Frazão) LCNS 15 = [Santa Maria de Daro] [pp. 58 -59] LCNS 16 = [Nossa Senhora do Carmo, da Fuzeta] [p. 59] LCNS 17 = [A Senhora da Orada, De Albufeira] LCNS 18 = [Nossa Senhora das Angústias] [pp. 59 -60] [pp. 61 -62] 397 RELIGIÕES DA LUSITÂNIA (de José Leite de Vasconcellos) ELAP/M 23 = [As pedra voltam para os moledos] [p. 205] ELAP/M 24 = [Soldados transformados em pedras][p. 205] ELAP/M 25 = [Reunião dos deuses no Promontório][p. 207] ELAP/M 26 = [Na Praia do Direito] [p. 207] ELAP/M 27 = [“Pantasmas” na praia] [p. 208] ELAP/M 28 = [“Pesadelo” na gruta] [p. 208] ELAP/M 29 = [Em Beliche Velho] [p. 208] ELAP/M 30 = [Luzinhas em S. Vicente] [p. 208] ELAP/M 31 = [Culto de mortos no Cabo [p. 209] LAP/M 4 = [O leixão de S. Vicente] [pp. 214-215] Subsídios para a Monografia de Monchique (de José António Guerreiro Gascon) ZB 4 = [A Zorra de Odelouca] [p. 367] TAVIRA do NEOLÍTICO ao SÉCULO XX, II JORNADAS de HISTÓRIA – ACTAS (AA.VV.) ELM 98 = As Moiras [p. 82] UM ALGARVE OUTRO contado de boca em boca (de Glória Marreiros) ZB 5 = A Zorra de Odelouca [1] [p. 82] ZB 6 = A Zorra de Odelouca [2] [pp. 82 -83] LCD 9 = [O domingo é dia santo] [p. 83] 398 Viagens do Diabo em Portuga l (de Fernanda Frazão) ELD 4 = O homem das Sete Dentaduras [p. 147] LD 1 = A casada com o Diabo [pp. 147 -148] Vilas e Aldeias do Algarve Rural (AA.VV.) ELD 5 = [No Barranco do Demo] [p. 50] LMID 1 = Coração de Plátano [p. 50] LM 71 = As Mouras de Paderne [pp. 63 -64] LM 72 = A Moura do Ameixial [pp. 113 -114] LM 73 = [A Moura da Cerca das Alcarias] [p. 134] ELM 99 = Lenda das Mouras de Querença [pp. 107 -108] LCS 7 = [S. Bento em Alcaria Queimada] [pp. 133 -134] ELFeB 17 = [O curandeiro de Alcaria Queimada] [p. 134] 399