Dose
Responsabilidade dela
Não tenho certeza se tomei o remédio. Acredito que se eu
tivesse tomado, provavelmente já teria feito algum efeito. Não
tenho paciência para essas coisas. Por mim, deixaria como está.
Mas estou certo de que ela vai notar. Ela vai querer saber. Ela vai
conferir a quantidade. Ela sempre sabe a quantidade. Sempre
sabe se está certa ou não. Sabe mais do que eu. Mas saber mais
do que eu não é lá grande coisa.
E se eu tomar agora? E se eu já tiver tomado? Não dá para
descuidar. Eu deveria ter prestado mais atenção. Agora já foi.
Ela que descubra. Ela que reclame mais uma vez. Que
importa? Se ela faz questão de conferir, é porque eu não sou
mesmo confiável. Se não dá para confiar em mim, isso passa a
ser problema dela, responsabilidade dela. Ela me acostuma mal
me tratando sempre assim. Como quer que eu seja diferente?
Como posso ser diferente se sempre me acham incapaz para
qualquer coisa? Qualquer coisa como, por exemplo, tomar um
remédio na hora certa. Mas se eu fosse tão ajustado, tão ciente
de tudo, nem precisaria tomar esse maldito remédio.
Com essa chuva ela vai demorar. O trânsito fica caótico.
Um nó. As pessoas não sabem dirigir na chuva. É inacreditável.
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Quando eu dirigia, não tinha problema nenhum. Podia estar
chovendo, caindo o céu, o que fosse, eu andava para todo lado.
Nunca tive medo de chuva. Nunca tive medo de nada. Tem
gente que detesta dirigir de madrugada. Eu não.
“O que foi dessa vez?”
As últimas vezes que eu fiquei sozinho foram tranquilas. Mas ela
chegava logo. Ela não demorava tanto. O baralho já não me distrai como antes. De vez em quando os números se misturam e
me dá uma grande aflição. Não posso contar isso para ninguém.
Cada vez tenho menos coisa para contar para os outros. Tenho
medo de ser julgado. Não dá mais para errar. Qualquer besteira
e eles vão dizer que é por causa do remédio. Ou por causa do
problema que eu tenho. Ninguém mais acredita que pode ser
só um pequeno deslize, um simples engano, que pode acontecer com qualquer pessoa, todo dia. As pessoas normais também se enganam e se esquecem das coisas. As pessoas normais
também acordam diferentes alguns dias e ninguém se importa.
Dão risada e seguem a vida. Ninguém se afasta das pessoas que
esquecem onde deixaram o carro no estacionamento do shopping. Tiram sarro umas das outras e continuam levando a vida
normalmente. Normalmente. Eu não posso me esquecer de
nada. Estou proibido de esquecer. Impedido de errar.
Eu poderia ligar para ela. Mas tenho medo. Tenho medo de
que ela pergunte: “O que foi dessa vez?” Odeio quando ela pergunta isso. É uma violência. É como se eu sempre tivesse uma
coisa ruim para contar para ela. Ela poderia ser mais carinhosa,
mais compreensiva. Poderia se interessar pelas minhas coisas.
Poderia ter mais interesse por mim. Não quero que ela cuide de
mim, quero que ela tenha interesse. É bem diferente.
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Escapam palavras
Gostaria de poder contar para alguém sobre os sons que ouço
vindos da rua. Eles se transformam em pequenas melodias. É
bonito. Se eu soubesse tocar algum instrumento, mostraria que
músicas são essas. Elas ficam só para mim. Não posso dividir
com ninguém. Bem que eu gostaria.
E tem as palavras. As palavras que vêm na minha cabeça
e que escapam da minha caneta. Não consigo guardar quase
nada. Minha memória está piorando. Tenho medo de acordar
um dia completamente esquecido de tudo.
É melhor eu tomar o remédio. Gostaria tanto de ser ela.
Tenho muita vontade de estar no lugar dela. Vou tomar o remédio que ela toma. O vidro todo.
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Falta pouco
Já passei pelo terceiro pedágio. Todos eles reclamam e querem
que eu pague com dinheiro trocado. Eu já nem respondo. Se eu
tivesse troco, daria com prazer. Mas não tenho e é para isso que
você está aí, idiota, para trocar o dinheiro para mim.
Ainda tenho tempo antes de reabastecer. Tempo para quê?
Agora, tanto faz se o carro derrapar, capotar, ficar em pedaços,
tanto faz. O certo é que demorariam muito para identificar o
corpo. Não tenho um único documento. São três, quatro, cinco
horas que estou dirigindo. Nem sei mais. Quando avisto uma
placa, olho fixo para a pista. O olho escorrega, quer ler, mas
eu consigo me controlar. Já não sei onde estou. É maravilhoso.
Sinto o pé adormecido. Antes de anoitecer tudo deve ter acabado. Cada caminhão que eu ultrapasso me faz inventar uma
história. O motorista, sua família, suas dúvidas e dívidas.
Cada um vira um filminho e todos têm uma desgraça no
final. Um perdeu os pais. O outro chegou antes do combinado
em casa e flagrou a mulher com o amante. Um perdeu o freio
e passou por cima de três carros: ninguém sobreviveu. Outro
acendeu o cigarro e o tanque explodiu. Um reagiu ao assalto
e teve os miolos espalhados pela boleia. Tenho preguiça de
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continuar com as histórias. Também tenho preguiça de parar. É
um vício. Difícil parar.
No meu lugar, qualquer um teria feito o mesmo. Por isso
estou aqui, tão longe. O rádio sintoniza estranhas estações.
Cada uma mais tagarela que a outra. Ouço notícias esquisitas,
de lugares que não conheço. Os endereços são curiosos e ridículos. Como alguém pode se interessar por essas cidades miseráveis? Como pode alguém morar aqui? Para que continuam
vivendo? Com o que se alimentam? Como foram seus casamentos? Fizeram festa? As mulheres já estavam grávidas? Será
que alguém que saiu daqui pensa um dia em voltar? Paisagens
horríveis, planas, abafadas, um horizonte reto, a enorme monocultura. Que enjoo que me dá. A estrada sem buracos é um
sonífero.
Ninguém gosta de ter o nome achincalhado, ridicularizado,
avacalhado. Se eu não pensei antes de agir, problema deles. Que
pássaro será aquele? De que adianta saber o nome se em seguida
vou esquecer. Melhor deixar para lá. Uma coisa a menos para
levar comigo. Antes de partir, deveríamos começar por nos desfazer das lembranças.
Agora já falta pouco. Pensei que precisaria de mais coragem. É o contrário. Sinto que tenho cada vez menos vontade e
empenho. É assim que se toma uma decisão. Falta muito pouco.
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Perfeição
No começo foi muito bom. Bom demais. Eu deveria ter desconfiado. Ele era um encanto. Surpreendente. Fazia o que eu
queria sem eu ter que pedir. Adivinhava. Era mágico. Todos
notavam e me parabenizavam. Falavam do tamanho da minha
sorte em ter alguém como ele ao meu lado, assim, para sempre.
Seu olhar, sua voz, seus pequenos encantos, como o jeito de me
abraçar no cinema, no sofá, em qualquer lugar em que estivéssemos sentados lado a lado. Era um abraço que abrigava, envolvia, dava calor e desejo, dava segurança. Sua mão não parava
de fazer carinho. Não era mania. Não se tratava daquelas mãos
nervosas que denunciam ansiedade e perigo. Seus dedos eram
leves, percorriam livres a minha pele como um grupo de pequenos exploradores. Eu era tateada. Nunca conheci ninguém que
tenha sido tateada como eu. Cada pedaço da minha pele era de
seu conhecimento. Mãos de sabedoria. Ele me conhecia de cor.
Eu me perdia cada dia mais. Fazia planos e sonhava. Ah, como
eu sonhava. Aceitou-me como eu era. Compreendeu tudo sem
eu ter que dizer muita coisa. As crianças ficaram satisfeitas.
Fomos aceitos e o aceitamos. Mesmo as questões que eu tinha
com as crianças foram se desfazendo. Eles já não me questionavam como antes, não ameaçavam ir morar com o pai por causa
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de qualquer desentendimento que tínhamos. Foi-se criando
harmonia entre nós. Tudo estava certo. Não havia mais problemas na minha vida. Eu tinha chegado lá. Depois de algumas
tentativas complicadas, e até violentas, eu tinha chegado a ele.
E com ele permanecia. E com ele ficaria, para sempre. É tudo o
que se quer. Tudo o que se deseja quando se conhece alguém. A
perfeição. A queda foi bruta. Descomunal. Eu me acostumei a
chegar em casa crente. Chegava carregada das minhas certezas.
Acreditava. Guardava comigo cada palavra que ele havia dito a
cada dia que tínhamos passado juntos. Carregava em mim seu
livro de promessas e compromissos. Suas palavras completaram
as lacunas que se abriram ao longo de anos de variação. Cada
fenda recebeu sua porção de frases. Tudo se encaixava. Tudo
sarava, curava, cicatrizava. Tudo ficava novo, renovado, remoçado, reajustado, revigorado, equilibrado. Ele sabia. Ele me
conhecia. Ele me conduziu com seu talento, com sua aptidão. E
eu depositei meus votos e minha confiança em suas mãos, em
seu modo de ver o mundo, em seu mundo. Foi quando comecei a prestar mais atenção. Parecia se tratar de uma coisa sem
importância, uma bobagem. Mas, a partir daquele momento,
eu fiquei alerta. Notei que o jornal estava praticamente intocado. Era como se tivesse acabado de chegar da banca. Só um
caderno, um único caderno tinha sido aberto e mexido. Notei
que ele tinha feito as palavras cruzadas. Mas não estavam completas, só começadas. Muitas coisas sem completar. Alguns
rabiscos corrigindo uma ou outra letra que tinha sido escrita de
forma incorreta. Ele tinha errado a letra. Ele não sabia como se
escrevia aquela palavra. Não eram coisas complexas. Só palavras
cruzadas de um jornal diário. Assuntos banais, cotidianos, coisas que encontramos em outros passatempos parecidos, outros
jogos do gênero. Coisas óbvias. Não tive como evitar e no dia
seguinte percebi que acontecera a mesma coisa. O jornal que
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não foi lido e a página de palavras cruzadas com mais quadrados vazios que preenchidos. Erros, novamente os erros. Eu não
queria bisbilhotar, mas a curiosidade foi mais forte. Demorei
para sair de casa esperando que ele fosse primeiro para a rua.
Dei uma desculpa qualquer falando de roupas, sapatos, acessórios e casacos. Coisas sem importância e que eu sabia que ele
não teria o menor interesse. Eu queria ficar sozinha em casa.
Depois que ele saiu fui para a área de serviço e vi a pilha de jornais da semana do mesmo jeito daqueles dois dos últimos dias.
Assustei-me. Nos dias que se seguiram procurei notar outras
coisas. A sua postura. Eu nunca tinha notado. Ele ficava curvado quando sentava. Mesmo andando, seus ombros se projetavam para a frente. Tentei entender o que acontecia e vi que os
sapatos estavam gastos de uma maneira desigual. Seus sapatos
eram disformes. A lateral estava afinada por causa da forma
com que pisava no chão. Então encontrei as multas. Ele guardou na gaveta os vários avisos das infrações que cometeu dirigindo. Coisas diferentes. Excesso de velocidade, parar em local
proibido, não usar o cinto de segurança. E os livros. Percebi que
os livros de casa eram todos meus. Ele não tinha nenhum livro.
Nenhum livro era seu. Nenhum. Eu nunca o tinha visto lendo
um livro. Então, o barulho que fazia com a boca quando estava
sentado vendo televisão. O barulho começava e em seguida ele
cochilava. Eu nunca tinha notado. Ele cochilava e eu não tinha
percebido nenhuma vez. Como pude não perceber antes? O
barulho. Não me lembrava daquele barulho com a boca. Mas ele
existia e foi ficando pior, foi ficando mais irritante que nunca.
Eu não suportava. Notei que o que dizia para mim eram frases
feitas. Uns jargões idiotas. Um monte de lugares-comuns. Que
idiotice. Quanta bobagem. Foi quando me dei conta de que sempre íamos visitar seus parentes. Fui boba e deixei que essa rotina
parecesse natural e ainda dei a entender a ele que eu concordava
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com aquilo, que eu até gostava de fazer aquelas estúpidas visitas.
Aquele seria o momento. Fui tão burra por deixar passar aquele
momento. Tudo teria sido evitado. Não sei se descobri tarde. Foi
um verdadeiro choque. Sem querer eu o ouvi falando com as
crianças. E ele estava dizendo tudo aquilo, todas aquelas coisas
que eu nunca tinha notado. Ele estava ensinando-os a ser como
ele era. Ele não tinha o direito de fazer isso. Ele não poderia
ter feito isso. Ele ensinou a eles as suas ideias. Eu tenho culpa
também. Devia ter sido mais perspicaz e percebido que ele não
tinha capacidade para isso. Ele não estudou para isso. Ele não
tinha formação para ensinar nada aos meus filhos. Tive que
explodir. Tantos anos procurando educá-los para a vida. Mas
não para qualquer vida, como era a vida dele. Uma vida medíocre. Eles seriam educados para vencer. Educados para a felicidade, o sucesso. E ele dizendo aquelas coisas simples, bobas,
ridículas. E fui eu que fiz com que as crianças confiassem nele.
A minha explosão foi tão grande que as crianças se assustaram.
Não importa. Era preciso. Ele não tinha o direito de fazer aquilo
com as crianças, com as minhas crianças. Morri de medo de
que eles entendessem o seu fracasso e o aceitassem. Tive que
expulsá-lo imediatamente. Foi a única saída. O advogado ajudou bastante, mas estou certa de que o juiz se convenceu por
causa de tudo que eu falei. Eu sei que tenho razão. Sei da minha
responsabilidade nisso tudo, mas estou fazendo o possível e o
impossível agora. O tratamento vai dar certo. Tenho certeza.
São terapeutas renomados. Mesmo que eu gaste uma fortuna,
eles serão curados. As crianças esquecerão que ele existiu em
nossas vidas. E eu também, um dia.
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Vargas
Sim, largar a louça na pia para lavar mais tarde é uma rotina na
minha vida. Portanto, nenhuma razão para que aquilo me deixasse tão alterado. Não foi esse o motivo de eu sair gritando pelo
corredor do andar, fazendo as portas dos outros apartamentos
se entreabrirem para fechar em seguida por medo, muito medo.
Até o senhor estranho do 111 mostrou as caras.
A vizinha do 113, que mora sozinha e sempre me encontra
no elevador, tem certeza de que ele, o estranho, mexe com as
empregadas do nosso andar. Quem contou a ela foi o porteiro
da tarde. Ele confirmou que uma delas já reclamou com o zelador. Um senhor estranho, maníaco e covarde.
Eu bufava pelo corredor enquanto fazia grande alvoroço,
pisando duro de um lado para o outro. Por fim, entrei de volta
no meu apartamento, não sem antes bater a porta com força,
ecoando a minha raiva por todo o prédio e fazendo com que o
molho de chaves se estatelasse no chão.
Digamos que a louça empilhada não poderia ter me deixado tão puto da vida. Foi só a gota d’água. O monte de louças
não teria sido o motivo. Era o monte de louças também. Mas
era a série de coisas que, por coincidência, aconteceu quase ao
mesmo tempo.
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