Núcleo de Consciência Negra na USP Cotas para que te quero? Wania Sant´Anna* Quem defende as cotas para afro-descendentes no Brasil o faz por um simples e objetivo motivo: dar fim às injustiças sociais e a discriminação racial no Brasil. Este é o princípio que orienta os argumentos de defesa. Afirma-se nesse princípio três fatos incontestáveis à história brasileira: a população afrodescendente não goza, e jamais gozou, das mesmas oportunidades desfrutadas pela população branca; a prática da discriminação racial e do racismo constituem fenômenos presentes no cotidiano da população afro-descendente; e, finalmente, a prática de privilégios e discriminação lesam tanto o destino como os direitos dos seres humanos. Dito isso, as cotas para afro-descendentes e para estudantes da rede pública de ensino na Universidade Estadual do Rio de Janeiro devem ser – como foram e estão sendo – amplamente discutidas junto à população fluminense e nacional. Para aqueles que consideram a medida legislativa, aprovada em 2001, como fruto de ação demagógica por parte de deputados estaduais, dois lembretes: Primeiro, eles foram eleitos e a lei foi votada favoravelmente por 69 deputados contra, apenas, um voto desfavorável. O segundo lembrete tem a ver com um acontecimento internacional, a III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância (Durban, África do Sul, 2001). Para a comunidade afro-descendente organizada 2000 e 2001 foram anos de ampla mobilização e discussão sobre a situação dos negros no Brasil. Interessados em ter uma participação qualificada, como aconteceu, naquela Conferência Mundial os debates organizados pelo governo e pela sociedade civil foram capazes de produzir um conjunto variado de sugestões que visaram oferecer aos afro-descendentes no Brasil um horizonte mais digno do ponto 98 20 de novembro - Dia da Imortalidade de Zumbi de vista social, econômico, político e cultural. A instituição de políticas de ação afirmativa e a introdução do sistema de cotas para o alcance desse ideal estiveram, como outras estratégias, no centro dos debates. Assim, as cotas não nascem do vazio, mas de um debate, em âmbito nacional e internacional, que leva em consideração o histórico quadro de precariedade e vulnerabilidade que afeta, sobremaneira, 45% da população brasileira. No que diz respeito aos resultados contidos na Declaração e Plano de Ação da III Conferência, realizada em Durban, cabe também lembrar que o Brasil se comprometeu a empreender esforços no sentido de cumprir as suas orientações e, em 2005, apresentar, como reza o protocolo das Nações Unidas, os resultados preliminares de suas iniciativas. Então, como se tem afirmado no linguajar popular, é preciso ter “muita calma nessa hora”. Não restam dúvidas sobre o fato de um assunto tão sistematicamente negligenciado como é a posição social dos afro-descendentes no Brasil fazer emergir paixões contidas há séculos. Mas de um ponto de vista mais objetivo é preciso ter clareza de onde se quer chegar, por que se quer chegar e como chegar. No caso das cotas na UERJ valeria a pena argumentar que o debate instaurado está sinceramente interessado em contribuir nas reflexões sobre a utilização dos recursos públicos, nos resultados efetivamente obtidos na formação de estudantes oriundos da rede pública de ensino e, também, na formação de estudantes pertencentes a uma classe social cujo perfil, em tese, poderia dispensar o regime de gratuidade plena. Sobre alocação adequada, racional e socialmente justa dos recursos públicos nada ou pouco se tem falado a respeito. Isso tem ocorrido ainda que em tempos difíceis da economia mundial e a despeito deste ser um debate central. É impressionante que o mérito dessa questão seja subjugado ao mérito de outro caráter: o da habilidade de um estudante ter conseguido, a bom termo, honrar o investimento que sua família fez em sua formação ao ter lhe proporcionado condições que um conjunto imenso de famílias não foi capaz de dar aos seus filhos. Afinal, sejamos honestos, bons colégios, cursos de 99 Núcleo de Consciência Negra na USP línguas estrangeiras, acesso às salas de cinema, teatro e artes, colônias de férias, viagens familiares e escolares, aquisição de jornais, revistas, material didático de bom e moderno conteúdo, manejo regular de equipamentos como computador e acesso a redes de informação disponíveis pela internet, ambiente domiciliar dotado de infra-estrutura adequada à realização das tarefas escolares é uma questão de classe e não, exata ou exclusivamente, de mérito. Toda sorte, deixemos de lado essas questões e nos concentremos no caráter, agora, injusto do acesso à universidade pública. Obviamente, os mais sensatos e interessados na promoção da população afro-descendente no Brasil não deixarão de se curvar à necessidade de corrigir estratégias. No entanto, atenção, corrigir não significa eliminar as estratégias. A sociedade brasileira não pode mais ignorar os precários indicadores sociais da população afro-descendente e acreditar que o tempo e a instituição de políticas sociais de cunho universalistas irão sanar as profundas desigualdades existentes entre brancos e negros no Brasil. Os mais originais e aprofundados estudos sobre o perfil racial das desigualdades sociais no Brasil demonstram isso de forma incontestável. Quem tiver o cuidado – e a responsabilidade social – de ler as análises do IPEA sobre a realidade e o futuro educacional de brancos e afro-descendentes no Brasil, irá deparar-se com informações tais como o fato de um jovem branco de 25 anos ter em média, mais 2,3 anos de estudo que um jovem negro da mesma idade, e ser essa “intensidade de discriminação racial a mesma vivida pelos pais desses jovens” e “a mesma observada entre os seus avós”!!! Os mais detalhistas encontraram cálculos, cuidadosamente elaborados, que alertam sobre o fato de que se não houver nenhum tipo de intervenção de impacto nesse assunto custará mais um século para que os afro-descendentes venham a desfrutar do mesmo perfil escolar que, hoje, exibe a população branca. O país é jovem, muitos dizem isso, mas não temos esse tempo para gastar. Precisamos agir já. Os ativistas contra o racismo – legitimamente atuantes em seus direitos de associação, liberdade de expressão e defesa 100 20 de novembro - Dia da Imortalidade de Zumbi dos interesses da comunidade afro-descendente – têm, há décadas, argumentado que os problemas educacionais enfrentados por essa comunidade possuem ao menos três dimensões fundamentais: acesso, permanência e conteúdo. Acesso como crítica à precária disponibilidade e qualidade dos serviços de educação oferecidos às camadas populares – seu principal cliente. Permanência como observação cautelosa às frágeis ou inexistentes políticas de manutenção dos alunos em salas de aula ou apoio sistemático à superação das dificuldades enfrentadas por suas famílias em mantê-los nos bancos escolares. Conteúdo como denúncia às insidiosas interpretações sobre a contribuição dos afro-descendentes à sociedade brasileira, os valores e história do continente africano e, finalmente, os princípios degradantes contidos na prática do racismo e da discriminação racial que afetam de forma aviltante o cotidiano dos afro-descendentes. Os ativistas contra o racismo têm uma perfeita visão sobre os males que afetam a comunidade afro-descendente bem como uma acurada interpretação sobre como esses males também atingem negativamente a sociedade brasileira. Portanto, o debate sobre as cotas para afrodescendentes e egressos do ensino público na UERJ não pode, e não deve, ser travado sem que esses aspectos sejam levados seriamente em conta. Vivemos em uma sociedade marcada pelo tratamento inadequado de questões históricas. A uma parcela substantiva da população têm sido, sistematicamente, negado o acesso a mecanismos que podem, de forma substantiva, alterar a sua posição social e não existem motivos, legais ou morais, que nos impeçam de forma objetiva, solidária, democrática e responsável nos furtar à essa tarefa. * Historiadora, professora universitária, pesquisadora das relações raciais no Brasil, Conselheira do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, Ex-Secretária de Estado de Direitos Humanos do Rio de Janeiro. 101