ESTADO DE DIREITO NÃO PODE SER REFÉM DA BARBÁRIE
CÉZAR BRITTO, FLÁVIA PIOVESAN e GILDA PEREIRA DE CARVALHO
Há contradição entre os depoimentos sobre o caso do morro da Providência. Questões centrais
merecem maior apuração e elucidação.
EM 20 de junho, a Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana
(CDDPH), criada com o objetivo de acompanhar as investigações referentes à morte dos três jovens
do morro da Providência, realizou reuniões com autoridades militares da Companhia do Comando
Militar do Leste, com o delegado da 4ª Delegacia de Polícia, responsável pela condução do
inquérito, e com familiares das vítimas e lideranças comunitárias.
O mandato da comissão é acompanhar as investigações; cooperar com o trabalho investigativo;
monitorar e demandar respostas; e propor medidas para evitar a repetição de graves violações a
direitos humanos.
O episódio alcança acentuada gravidade e complexidade. No total, 46 disparos foram efetuados,
resultando na execução de Wellington Gonzaga Ferreira, 19, morto com 26 disparos; David Wilson
da Silva, 24, morto com 18 disparos; e Marcos Paulo Campos, 17, morto com dois disparos, tendo
sido o primeiro a morrer, em tentativa de fuga. Os corpos foram encontrados no lixão de Gramacho.
Além das marcas de tiros, os corpos evidenciavam sinais de tortura.
Os três jovens retornavam de um baile funk quando foram abordados pelos militares. Acusados de
crime de desacato, foram levados ao Comando Militar do Leste, lá recebendo a ordem de soltura.
Contudo, em desobediência, foram detidos por 11 militares, que os entregaram a traficantes do
morro da Mineira, vinculados a uma facção inimiga da que atua no morro da Providência.
Em missão ao Rio de Janeiro, a comissão constatou a flagrante contradição entre os depoimentos de
membros do Exército, da Polícia Civil e dos familiares das vítimas e de lideranças comunitárias.
Questões centrais merecem maior apuração e elucidação:
a) a mãe de Wellington afirma ter visto o filho machucado no quartel, mas os depoimentos dos
militares negam tal versão;
b) há informações contraditórias acerca do tempo de permanência dos três jovens sob o poder do
Exército, no Comando Militar do Leste;
c) há visões antagônicas a respeito da presença do Exército no morro da Providência -para o
Exército, 75% da comunidade seria favorável, ao passo que a primeira demanda de líderes
comunitários a esta comissão foi a imediata retirada das tropas;
d) registros do Exército apontam que, de dezembro de 2007 até o momento, na realização do projeto
Cimento Social, teriam ocorrido apenas 11 registros de crime de desacato, mas integrantes da
comunidade denunciam a violência sistemática do Exército, marcada por hostilidades, abusos,
intimidações diárias, em um estado de exceção permanente;
e) é necessário um esclarecimento a respeito da promíscua relação entre as Forças Armadas e o
crime organizado (relatório da CPI do Tráfico de Armas aponta que, no Rio, 22% das armas
apreendidas com criminosos pertencem às Forças Armadas);
f) há dificuldade para responsabilizar militares por eventual abuso, em virtude da falta de
identificação dos membros do Exército;
g) é necessário o exame de balística das armas do Exército e dos celulares, bem como o exame do
corpo de delito dos jovens assassinados;
h) a punição daqueles que efetivamente executaram os jovens. No sentido de cooperar para a
investigação dos fatos, a comissão decidiu colher os depoimentos dos membros da comunidade, a
partir de uma atuação articulada entre instituições jurídicas (OAB, Defensoria Pública, Ministério
Público, entre outras), a fim de que novos elementos sejam considerados para a melhor elucidação
do caso.
Decidiu, ainda, realizar um estudo dos casos de crime de desacato registrados, a fim de avaliar a
dinâmica dos fatos. O sistema interamericano de direitos humanos tem demandado dos Estados que
revisitem e até eliminem de sua ordem jurídica a figura do crime de desacato, por violar parâmetros
protetivos internacionais.
Ao lado dessas medidas, outras se somam, como a garantia de reparação aos familiares das vítimas,
diante do reconhecimento explícito da responsabilidade do Estado; a prestação de apoio psicológico
aos familiares das vítimas; e a proteção aos familiares e às testemunhas ameaçadas.
Se questionável na ordem jurídica democrática é a existência do instituto do crime de desacato,
legado do regime autoritário, inquestionável e inadmissível é que tal crime seja punido com a pena
de morte, sumariamente executada mediante parceria das Forças Armadas e com o crime
organizado.
O Estado de Direito requer respostas, demandando rigorosa investigação e punição dos
responsáveis e a reparação da grave violação. O Estado de Direito não pode ser refém da barbárie.
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