contraditório
Medicamentos não sujeitos a receita médica fora das farmácias
Maria Dulce F. Cotrim
“O medicamento
não pode ser tido como
uma mercadoria qualquer”
Professora da Faculdade de Farmácia
da Universidade de Coimbra
A venda de medicamentos não sujeitos a prescrição
médica fora das farmácias e o aumento significativo
do número de medicamentos que podem ser cedidos
sem receita médica é algo que se pratica já em alguns
–desconhecimento de possíveis interacções com outros medicamentos
–armazenamento incorrecto ou excessivamente longo dos medicamentos
países como o Reino Unido ou os Estados Unidos, mas
mesmo nestes países e depois de aplicada há vários
anos, a medida ainda não é consensual.
Assim, torna-se importante destacar o entendimento
de que a saúde deve ser considerada como um valor e
um bem público e, portanto, um direito de todos.
“Ao ser implementada esta política, o
governo adopta a lógica de que o processo
de comercialização de medicamentos
obedece às mesmas estratégias de mercado
aplicadas a outros produtos que não
mantêm qualquer vínculo com a saúde”
Não poderia, sob pena de desrespeitar o meu compromisso enquanto farmacêutica e sócia da Ordem dos Farmacêuticos, desconsiderar o papel do Estado na garantia
do direito dos cidadãos à saúde e apresentar o meu veemente protesto quanto à venda de medicamentos em supermercados e outros estabelecimentos congéneres e os
seus reflexos sobre as condições de saúde da população
portuguesa, sem previamente aferir da necessidade, da
viabilidade e da adequabilidade da venda nesses locais.
Ao ser implementada esta política, o governo adopta
a lógica de que o processo de comercialização de me-
O medicamento não pode ser tido como uma merca-
dicamentos obedece às mesmas estratégias de merca-
doria qualquer, à disposição dos consumidores e sujeito
do aplicadas a outros produtos que não mantêm qual-
às leis de mercado e a sua venda fora das farmácias
quer vínculo com a saúde e desconsidera o direito dos
tem riscos para a saúde pública e é um retrocesso na
doentes à assistência de cuidados farmacêuticos en-
política de saúde em Portugal, favorecendo a autome-
quanto conjunto de acções desenvolvidas no âmbito
dicação. A Organização Mundial de Saúde (OMS) reco-
dos cuidados de saúde. Além disso, esta medida con-
nhece a automedicação como um problema, e alerta
duz à utilização dos medicamentos como instrumentos
para os seguintes riscos:
de ampliação de mercado, garantia de maior lucro e
institucionalização da automedicação como estratégia
–diagnóstico incorrecto
–retardar o reconhecimento das doenças, com possível agravamento
Ao colocarmo-nos contrários à venda de medicamentos fora das farmácias, salientamos que a nossa
–tomar medicamentos de modo errado
posição nada tem de impedimento ao acesso da popu-
–dosagem inadequada ou excessiva
lação aos medicamentos. Todavia, a nossa compreen-
–uso do medicamento por período curto ou prolonga-
são é de que acesso significa acesso ao medicamento
do demais
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para a garantia de maior acumulação de capital.
apropriado, para uma finalidade específica, em dosa-
–risco de dependência dos medicamentos
gem correcta, por tempo adequado e cuja utilização
–possibilidade de efeitos indesejados graves
racional tenha como consequência a resolução de pro-
–possibilidade de reacções alérgicas
blemas de saúde.
oirótidartnoc
Medicamentos não sujeitos a receita médica fora das farmácias
“O lugar dos medicamentos
é na farmácia de oficina
ou comunitária”
Mário Frota
Presidente da Associação Portuguesa
de Direito do Consumo
O DL 134/2005, de 16 de Agosto, no intuito de pro-
exigir que nestas últimas a dispensa se opere sob a
mover uma concorrência efectiva entre os vários canais
supervisão de farmacêutico, fórmula frouxa que é sus-
de distribuição e dispensa, autorizou que os medica-
ceptível de permitir o mais completo abandono e um
mentos de uso humano não sujeitos a receita médica
mero pró-forma que “justifique” a ausência dos farma-
(obrigatória) pudessem ser “vendidos ao público nas
cêuticos no circuito.
farmácias” de oficina.
O processo não permite uma melhor distribuição geo­
O diploma em epígrafe estabelece, no seu artigo 1º,
gráfica nem a horários mais confortáveis, não favorece
que tais especialidades se acham sujeitas ao regime de
os meios mais isolados por não propiciar a sustentabili-
garantia e fiscalização de qualidade e segurança dos
dade das empresas, nem garante, ao invés do que pre-
medicamentos fornecidos em farmácia.
tendeu sustentar-se, preços mais acessíveis, como se
O artigo subsequente, sob a epígrafe “Supervisão”,
define que tal “venda” só pode ser feita por farmacêutico ou técnico de farmácia ou sob a sua supervisão.
Estabeleceu-se uma cunha no denominado monopó-
apurou em inquérito recentemente promovido.
O lugar dos medicamentos é na farmácia de oficina
ou comunitária, devendo aí reforçar-se a cultura própria
do farmacêutico e de um espaço de saúde pública con-
lio farmacêutico, o que
•não enobrece o legislador;
•não permite que a concorrência funcione deveras;
•confere foros de “banalidade” a um produto susceptível de merecer peculiares cuidados;
•ademais, poderá não haver rigor científico na classificação dos medicamentos como sujeitos ou não
sujeitos a prescrição clínica, já que fármacos com
o mesmo princípio activo surgem nas listas dos
“Não é pelo facto de, eventualmente,
se afrontar a lei nas farmácias
que se impõe a sua destruição.”
“Que se discipline, com rigor, o ambiente
nas farmácias, mas não se descaracterize.”
medicamentos sujeitos imperativamente ao receituário;
•razões de política legislativa com ponderações de
índole económica se acham historicamente na génese da bipartição conceitual medicamentos sujei-
tra todos os artifícios, sugestões e embustes.
Não é pelo facto de, eventualmente, se afrontar a lei
nas farmácias que se impõe a sua destruição.
“Não se matam pulgas a tiros de caçadeira”.
tos e não sujeitos a receita médica – não há, ao que
Que se discipline, com rigor, o ambiente nas farmá-
se afirma, medicamentos absolutamente inócuos:
cias, mas não se descaracterize – na sua genuinidade
daí que a farmacovigilância se imponha;
– tais espaços consagrados à saúde pública.
•por tais razões não deveria haver dispensa de me-
O medicamento não é um produto indiferenciado,
dicamentos em espaços distintos dos das farmá-
inócuo, insusceptível de pôr em risco a integridade físi-
cias.
ca e a saúde dos cidadãos.
O que o diploma original cria é uma dicotomia en-
Farmácia de Louvain-en-Wolluve, a aspirina mata todos
Como afirmava o decano da Faculdade de Medicina e
tre farmácias autênticas e “farmácias” dissimuladas ao
os anos muita gente…
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contraditório
Medicamentos não sujeitos a receita médica fora das farmácias
José António Rousseau
“A venda de medicamentos
não sujeitos a receita médica
na moderna distribuição”
Presidente da Associação Portuguesa de
Empresas de Distribuição
O panorama da venda de medicamentos não su-
Por outro lado permitiu que o consumidor encontre
jeitos a receita médica (MNSRM) alterou-se a 16 de
estes medicamentos a preços mais reduzidos que os
Agosto, data em que foi publicado o Decreto­‑Lei n.º
praticados nas farmácias. De acordo com um estudo
134/2005. Tendo entrado em vigor a 16 de Setembro de
efectuado pelo INFARMED, a liberalização da venda de
2005, este diploma veio permitir que a venda deste tipo
MNSRM veio provocar uma redução de 5% no preço
de medicamentos seja feita fora das farmácias, desde
destes medicamentos, sendo que os preços praticados
que cumprindo um conjunto de requisitos que vieram
continuavam a ser, em Julho deste ano, mais baixos
a ser regulamentados pela Portaria n.º 827/2005, de
fora das farmácias.
14 de Setembro.
A segurança – tão questionada por alguns quando
Segundo os últimos dados publicados pelo INFAR-
da liberalização da venda de MNSRM – não foi de for-
MED (Agosto de 2007), as vendas de MNSRM fora das
ma alguma posta em causa, não existindo até à data,
farmácias representam cerca de 6% do mercado de
e como expresso nos considerandos do Decreto-Lei n.º
MNSRM, dos quais 3,1% correspondem à quota de mer-
238/2007, notificações de problemas de segurança
cado dos Espaços Saúde pertencentes às empresas as-
para o consumidor. Há, no entanto, ainda, obstáculos
sociadas da APED.
de relevo que impedem o mercado de funcionar em
“A liberalização da venda de MNSRM
permitiu garantir ao consumidor dois tipos de vantagens:
• Uma maior disponibilidade de locais de venda
• Preços mais competitivos”
A liberalização da venda de MNSRM permitiu garan-
plena concorrência, nomeadamente uma evidente difi-
tir ao consumidor dois tipos de vantagens: uma maior
culdade de os novos canais conseguirem concorrer em
disponibilidade de locais de venda e preços mais com-
plano de igualdade com as farmácias. Esta situação é
petitivos, conforme se comprova a seguir:
particularmente relevante nas questões relacionadas
Permitiu por um lado uma maior acessibilidade a
estes medicamentos por parte da população. Actual-
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com as condições de aquisição de medicamentos à indústria.
mente encontram-se licenciados pelo INFARMED, fora
É convicção do sector da distribuição moderna que
do canal farmácia, cerca de 573 pontos de venda, dos
a anunciada intenção do governo de alargar progres-
quais 98 correspondem a associados da APED. Estes lo-
sivamente a lista de MNSRM, a confiança dos consu-
cais encontram-se em funcionamento em horários mais
midores nos novos espaços de venda e uma inevitável
alargados que os praticados no canal farmácia, não ha-
diluição das distorções de mercado que ainda impen-
vendo a cobrança de qualquer tipo de taxas associadas
dem sobre a distribuição criarão condições acrescidas
ao horário de funcionamento, ao contrário do que se
para um reforço progressivo da quota de mercado des-
passa nas farmácias.
te sector.
oirótidartnoc
Medicamentos não sujeitos a receita médica fora das farmácias
“A política do medicamento
deve ser definida no interesse
dos utentes/consumidores”
Jorge Morgado
Secretário Geral da DECO
A perspectiva de um mercado único europeu e a
dos mediante um acompanhamento profissional que
promoção da livre concorrência sem restrições consti-
esclareça as respectivas características e os termos da
tuem desideratos da União Europeia reiterados recen-
sua utilização. Da mesma forma, outros medicamentos
temente no Tratado de Lisboa. Tais objectivos implicam
existirão que são susceptíveis de serem comercializa-
necessariamente a respectiva replicação ao nível dos
dos em diferentes pontos de venda e em doses dife-
diferentes Estados membros que integram a União e
renciadas, especificamente concebidas para fazer face
ao nível das diferentes políticas sectoriais, nas quais se
a uma doença súbita e que atenuem os sintomas do
inclui a política do medicamento. É fundamental gerar
paciente até a intervenção do médico.
nos mercados nacionais, e por inerência no mercado
Importa, pois, discutir estas possibilidades e avaliar
europeu, as condições essenciais para que se prossi-
igualmente a respectiva eficácia, concebendo mecanis-
gam os objectivos referidos, o que significa definir e
mos próprios de avaliação anual que permitam aferir da
conceber políticas que eliminem as restrições e re-
adequação das medidas a adoptar, mormente no que
movam os entraves ao desenvolvimento da livre con-
se refere à satisfação dos interesses dos consumidores
corrência. Ora, tais condições devem ser fomentadas
e à protecção da saúde e integridade física.
também ao nível das políticas de saúde, mormente da
política de medicamento, a qual tem sido objecto de
algumas alterações recentes, mas que persiste muito
condicionada e pouco adequada ao desenvolvimento
“Na perspectiva da DECO nada obsta à
prossecução de tal propósito concorrencial”
de uma concorrência livre e transparente.
Na perspectiva da DECO nada obsta à prossecução
A política do medicamento deve ser definida no in-
de tal propósito concorrencial, desde que assegurados
teresse dos utentes/consumidores, devendo contribuir
os elevados padrões de qualidade e segurança que se
para a promoção da coesão social e do acesso univer-
exigem. Tanto mais que a definição da lista de medi-
sal, o que significa assegurar a possibilidade de acesso
camentos que não necessitam de prescrição médica
aos medicamentos por parte de todos os cidadãos, no-
possui natureza exclusivamente técnica, o que reduz os
meadamente no plano financeiro, bem como minimizar
riscos de contra-indicações. Além disso, a DECO sem-
as dificuldades territoriais no acesso, designadamente
pre preconizou a realização de campanhas informativas
no que se refere aos pontos de disponibilização dos me-
regulares que promovam o uso adequado e racional
dicamentos em diferentes regiões do país.
desta medicação, alertando igualmente os consumidores para os perigos subjacentes à automedicação.
A DECO considera que, mais do que a mera política
de preços, os desafios suscitados por um mercado ca-
Tal como as questões atrás mencionadas, outras
racterizado por uma concorrência leal e transparente
existem que devem ser discutidas, privilegiando a
são susceptíveis de se repercutir na qualidade do ser-
DECO uma postura tecnicamente pró­‑activa e de dis-
viço prestado e na melhoria da acessibilidade ao produ-
cussão em detrimento do dogma e do fundamentalismo
to, promovendo a adequação das quantidades e diver-
imobilista. Por isso, admite-se que, no âmbito de tal dis-
sificando os pontos de venda. Todavia, essa realidade
cussão técnica, surjam conclusões que determinem a
ainda está distante, mas, uma vez superados os infun-
necessidade de alguns desses medicamentos vendidos
dados receios iniciais de insegurança, importa agora
sem receita médica apenas poderem ser comercializa-
desenvolver o precedente e aprofundá-lo.
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reticências...
“Loucura” saudável,
precisa-se!
Salvador Massano Cardoso
Professor de Epidemiologia
e Medicina Preventiva
No decurso do Verão li o livro O Pecado de Dar­
pótese de sofrer de hipomania, substituída mais tarde
win, de John Darnton, de uma penada. Romance ima-
pela depressão.
ginativo, bem escrito e sedutor, consegue prender a
Esta abordagem tem como objectivo ilustrar que
atenção de qualquer um, mais pelo enredo do que pro-
certas doenças mentais desempenham um papel im-
priamente pelo conteúdo científico. Um aspecto em-
portante na evolução humana. Desde que não sejam
blemático do livro tem a ver com a descrição da do-
ultrapassados certos limites, a bipolaridade, sobretu-
ença de Darwin depois do seu regresso a Inglaterra.
do durante a fase de hipomania, pode-se acompanhar
As crises de que padecia, diversificadas e frequentes,
de manifestações de criatividade extraordinária. Não
revelam um comportamento depressivo e hipocondría-
há campo do conhecimento humano que não tenha
co muito grave. As causas das suas maleitas têm sido
beneficiado desta particularidade, desde a música,
alvo de especulação e de análises interessantes. São
passando pela pintura, literatura, poesia, ciência, até
várias as explicações para que o cientista adoecesse
à própria política. Claro que o inverso também pode
desta forma, relacionando­‑a com o longo tempo que
ser verdadeiro, como é o caso da destruição, das ma-
demorou a escrever a sua obra­‑prima A Origem das Es­
nifestações maléficas, e até de comportamentos ge-
pécies, precisamente vinte e dois anos! Interpretações
nocidas.
É pena que os portugueses não sejam mais “loucos” saudáveis.
Convém, no entanto, não confundir “loucura” com tolice,
porque o que abunda por aí são tolos, às carradas.
psicanalíticas e conflitos entre a sua educação formal
No fundo, uma boa dose de “loucura” é benéfica
e os achados que estão na base da teoria evolucionista
para qualquer sociedade, ao propiciar maior criativida-
constituem algumas. Mas há quem aponte outras, tam-
de, ao estimular o desenvolvimento e ao produzir mais
bém muito interessantes. É o caso da hipótese de so-
riqueza.
frer de doença bipolar ou ter sido vítima de uma picada
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É pena que os portugueses não sejam mais “loucos”
de um insecto denominado vinchuca na Argentina ou
saudáveis. Convém, no entanto, não confundir “loucu-
bicho-barbeiro no Brasil, responsável pela transmissão
ra” com tolice, porque o que abunda por aí são tolos, às
da doença de Chagas.
carradas. Muitos portugueses, também, andam depri-
Um dos aspectos mais relevantes da personalidade
midos, o que faz com que a criatividade diminua ainda
de Darwin, enquanto jovem, prendia-se com um vigor
mais. Neste momento, por exemplo, os utentes do SNS
impressionante, ao ponto de surpreender os próprios
consomem psicofármacos como se fossem tremoços,
gaúchos das pampas argentinas. “Nunca se cansava,
na ordem dos trinta por cento! Bem precisávamos de
não perdia o sentido da curiosidade ou o do maravi-
uma epidemia de “hipomania saudável”, mas nem vê­
lhoso”. Uma stamina invejável. Há quem coloque a hi-
‑la, quanto mais senti-la...
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“O medicamento não pode ser tido como uma mercadoria qualquer”