6 | PORTUGAL | PÚBLICO, QUA 24 ABR 2013 Memorização está de volta como um dos motores da aprendizagem Nuno Crato defende que o novo programa de Matemática para o ensino básico se traduz numa “modernização do currículo”. A associação de professores repete que se trata de “voltar atrás 40 anos” NUNO FERREIRA SANTOS Educação Clara Viana Os princípios que norteiam o novo programa de Matemática para o ensino básico, que foi ontem apresentado em conferência de imprensa, funcionam, em simultâneo, como uma impressão digital e uma linha de fronteira. Como era de esperar de uma equipa nomeada pelo ministro Nuno Crato, que foi sempre um adversário declarado da corrente que dominou os programas das últimas décadas, os autores do novo programa, os mesmos que elaboraram as metas curriculares para esta disciplina, são adeptos da importância da memorização e do conhecimento abstracto, que dizem ter sido descurados no ensino da disciplina. “A memorização não é antagónica da compreensão, antes pelo contrário”, defendeu Carlos Grosso, professor do ensino básico e secundário e um dos autores do novo programa, na conferência de imprensa de ontem. E um dos objectivos gerais do novo programa é precisamente o de “relacionar a memorização com o aumento da disponibilidade de recursos cognitivos”, frisou. Por exemplo, a possibilidade de compreender e resolver bem um problema matemático é muito maior quando um aluno sabe a tabuada de cor. “Não há entendimento possível. Estamos a falar de coisas diferentes”, declarou ao PÚBLICO a presidente da Associação de Professores de Matemática (APM), Lurdes Figueiral, que voltou a repetir a acusação feita há uma semana, quando o ministério anunciou a revogação do programa elaborado em 2007: com as metas, que serão obrigatórias no próximo ano, e o novo programa, que também entrará em vigor na mesma altura, vai-se “voltar atrás 40 anos no ensino”. “Nós defendemos que a aprendizagem deve privilegiar a compreensão. A actual equipa do ministério acha que se devem mecanizar procedimentos e rotinas”, especifica. Isabel Festas, professora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e uma das coordenadoras da equipa das metas curriculares, apresentou Para o ministro Nuno Crato o novo programa dá “grande liberdade metodológica aos professores” Menos calculadoras Uso “nefasto” nos primeiros anos de escola F ilipe Oliveira, professor da Universidade Nova de Lisboa e um dos autores do novo programa e das metas curriculares de Matemática, admitiu ontem, numa conferência de imprensa destinada a apresentar o novo documento, que a utilização de calculadoras no 1.º e 2.º ciclo para resolver operações simples tem tido efeitos “muito nefastos”, já que o aluno “recorre a uma espécie de caixa mágica onde lhe aparecem os resultados sem que chegue a compreender” a operação realizada. O ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato, que sempre foi um crítico do uso da calculadora nos primeiros anos de escolaridade, considerou, pelo seu lado, que o programa ainda em vigor, aprovado em 2007, “continua a promover o uso da calculadora”, embora não seja tão benévolo como era o anterior, que está na sua base, e que estabelecia logo desde o 1.º ano “que o aluno tinha o direito de utilizar a calculadora” para resolver as operações mais simples. “Isto é antipedagógico. Deve haver alguns limites”, defendeu. “Não quer dizer que as calculadoras não devem ser usadas, mas com bom senso”, esclareceu Filipe Oliveira. Frisa que “os professores, melhor que ninguém, saberão quando o seu uso é nefasto ou vantajoso”. Carlos Grosso, outro dos autores do novo programa, realçou que à semelhança das metas curriculares o novo documento vai permitir também descodificar o que significa “compreender” e que passos são necessários para tal. C.V. ontem outra leitura. Como a nossa “memória de trabalho tem capacidade limitada, a memorização de factos e a automatização de procedimentos permite a compreensão e concentração em tarefas mais complexas”, disse, lembrando que “hoje em dia não basta fazer bem, é preciso também fazê-lo rapidamente”. As metas curriculares para esta disciplina, homologadas no ano passado e que definem o que um aluno deve saber nas diferentes etapas do seu percurso escolar, já o estabelecem ao definir, por exemplo, que um dos objectivos de aprendizagem no 2.º ano é o de “saber de memória as tabuadas do 2, do 3, do 4, do 5, do 6 e do 10”. No 3.º ano é a vez das tabuadas do 7, 8 e 9. Outra das mudanças previstas é a da inversão da tendência para a “excessiva contextualização” dos problemas. “É preciso partir do concreto, mas com a preocupação de alcançar o conhecimento abstracto das relações matemáticas. Não podemos estar sempre a desenvolver problemas demasiado contextualizados [envoltos numa história ou na descrição de situações do quotidiano] até porque as crianças acabam por se aborrecer com enunciados muito palavrosos”, defendeu Carlos Grosso. Para Nuno Crato, o novo programa traduz-se numa “modernização do currículo”, para além de que dá “uma grande liberdade metodológica aos professores, sendo ao mesmo tempo muito claro nos seus objectivos, que é o contrário do que acontecia”. “É inteiramente falso”, acusa Lurdes Figueiral, contrapondo que, “à semelhança das metas, este [programa] é totalmente descritivo e prescritivo do que os professores devem fazer”. Como se pode dar liberdade aos professores com normativos, como as metas, que têm listados “mais de 190 objectivos gerais e cerca de 900 descritores (objectivos de aprendizagem)”? questiona. E conclui: “Esta equipa vê os programas como uma lista de conteúdos, uma concepção que já não existe em nenhum país de referência.” António Bívar, professor da Universidade Lusíada e outro dos autores do novo programa, confirmou ontem que os conteúdos deste são iguais aos das metas curriculares. Quanto às razões que levaram à sua elaboração disse que vai permitir “desviar de problemas falsos como as alegadas incompatibilidades entre as metas e o programa de 2007”. “Assim esta questão deixa de criar problemas”, acrescentou. A APM anunciou em Março que iria interpor uma providência cautelar para travar a aplicação das metas curriculares da disciplina, alegando que estas contrariam o programa que está em vigor nas escolas. Já Crato justificou a adopção de um novo programa com o facto de, após este primeiro ano de aplicação ainda não obrigatória das metas curriculares, “subsistirem algumas dúvidas e incongruências pontuais” entre o que se encontra recomendado nestas e o que está recomendado no programa de 2007. Até ao dia 23 de Maio o novo programa estará em consulta pública. A APM irá elaborar um parecer, mas Lurdes Figueiral não tem expectativas em relação ao seu destino: “Vai ser completamente ignorado.” O MEC conta ter a versão final do novo programa, incluindo eventuais alterações na sequência da consulta pública, concluída a 11 de Junho, para que entre em vigor já no próximo ano lectivo.