A BIOGRAFIA DE LUIZ GAMA NO ENSINO: UM PROJETO INTERDISCIPLINAR ENTRE A HISTÓRIA E A LITERATURA NA FORMAÇÃO DOS CIDADÃOS Maria Eunice Silva¹ Jeanne Silva2 1. Departamento de História, Universidade Federal de Goiás – Catalão - Goiás. E-mail: [email protected] 2. Departamento de História, Universidade Federal de Goiás – Catalão - Goiás. E-mail: [email protected] Recebido em: 28/11/2014 – Aprovado em: 16/01/2015 – Publicado em: 31/01/2015 RESUMO Este artigo teve o objetivo de apresentar uma pesquisa em que se discute o uso metodológico das biografias no Ensino. O exemplo escolhido é o de Luiz Gama, que após ser vendido como escravo pelo pai se tornou um advogado defensor dos escravos e crítico da sociedade escravocrata do século XIX no Brasil. Exemplo de homem de ação, que lutou pelos direitos de sua classe, deixando inúmeras Cartas, Escritos e Poesias, de onde podemos extrair análises que permeiam a reflexão do passado e do presente. A interdisciplinaridade é feita mostrando a estreita relação que fazemos entre a História e a Literatura enquanto ciências, mas acima de tudo demonstrando novas práticas no Ensino que recupere a História das lutas e da ação em torno dos direitos humanos e das ações portadoras de sentidos aos sujeitos históricos. PALAVRAS-CHAVE: Biografia, Ensino de História, Literatura THE BIOGRAPHY OF LUIZ GAMA IN TEACHING: AN INTERDISCIPLINARY PROJECT BETWEEN HISTORY AND LITERATURE IN THE FORMATION OF CITIZENS ABSTRACT This article is intended the research conducted by the author which discusses the methodological use of biographies in the Teaching of History. The example chosen is that of Luiz Gama, who began his life as a slave sold by his father and became a defense attorney of slaves; criticized the slave society of the nineteenth century in Brazil. Example of a man of action, who fought for the rights of his class, leaving numerous Letters, Writings and Poems, from which we can extract analyzes that permeate the thinking of the past and present. Interdisciplinary is made showing the close relationship between what we do History and Literature as science, but above all demonstrating new practices in the teaching of history to recover a history of fights and action around human rights and actions of the carriers of meaning to historical subjects. KEYWORDS: Teaching of History, Literature, Biography. INTRODUÇÃO A biografia ao longo de sua edificação tem-se mostrado, enquanto documento uma fonte significativa de informação para a pesquisa histórica. Gênero literário de ENCICLOPÉDIA BIOSFERA, Centro Científico Conhecer - Goiânia, v.11, n.20; p. 8 2015 caráter popular, mas que consegue dialogar com várias áreas do conhecimento, permitindo estabelecer um diálogo com o cotidiano, de pessoas públicas ou não, através das suas histórias de vidas. Sendo um gênero que possui uma escrita simples, desperta o interesse tanto de leitores quanto de historiadores dispostos a acompanhar ou conhecer fatos marcantes da vida de alguns personagens que, de certa forma, se destacaram na sociedade de suas respectivas épocas. A palavra biografia tem por significado, a escrita de uma história de vida, derivação que vem de várias línguas ocidentais e que, segundo (SILVA, 2013, p.13), “[...] já era empregada na antiguidade clássica, de onde vem o modelo ainda utilizado. O que evidencia que o interesse em relatar e ler histórias de vida, sempre esteve presente nas sociedades”. Outra autora que comunga com SILVA (2013) é BORGES, (2006 p.205), para ela esse interesse em descrever as histórias de vida nasce “no mundo grego antigo, ao mesmo tempo em que surge a história como forma de conhecimento”. Já a História como ciência só é reconhecida, no século XIX, com a escola positivista, (VIEIRA et al., 1995, p.13). A biografia, durante sua milenar existência, sofreu modificações importantes na forma de ser concebida, até ganhar um lugar de destaque na historiografia atual. Em recente obra o historiador francês FRANÇOIS DOSSE (2005) analisou as transformações sofridas pela biografia sugerindo três fases no percurso da mesma: Uma primeira que chama de “idade heróica”, na qual a biografia transmitia modelos, valores para as novas gerações; uma segunda fase, a da “biografia modal”, em que a biografia do indivíduo teria valor somente para ilustrar o coletivo (a sociedade do biografado em tempos e em espaços diversos); e uma terceira e ultima fase, a atual que chama de “idade hermenêutica”, momento em que a biografia tornouse terreno de experimentação para o historiador, aberto a várias influencias disciplinares (DOSSE, 2005 citado por BORGES, 2006, p.207). Foi nessa terceira fase que a biografia ganhou status de gênero historiográfico, recapturando o interesse dos historiadores pelo seu valor informativo, fato este que permitiu ao historiador visualizar traços e características do período em que viveu o biografado. Esse retorno da biografia é resultado da ampla renovação historiográfica, ocorrido a partir da terceira geração da Escola dos Annales, e do retorno da história política que vem acontecendo nas últimas décadas, mostrando interesses pelos chamados “excluídos” dos processos históricos. MATERIAL E MÉTODOS Esta pesquisa está sendo construída a priori através de levantamentos bibliográficos sobre o tema biografia e ensino de história, para em seguida fazer-se, a análise da biografia de Luis gama e sua obra, a fim de entendermos e explicarmos, em que medida essa análise poderá ser útil no ensino de história. Será recortado dentro dos escritos do próprio Luiz Gama, fatos e dados importantes de sua vida e de seu posicionamento frente a sociedade em que viveu, construindo assim ima metodologia comparativa, mostrando a importância do biografado para a atualidade, ENCICLOPÉDIA BIOSFERA, Centro Científico Conhecer - Goiânia, v.11, n.20; p. 9 2015 relacionando passado e presente, para que os alunos compreendam o processo histórico apresentado, permitindo aos mesmos uma aproximação direta com o documento histórico. Desta forma, ao trabalharmos com a biografia de Luiz Gama, pretende-se que os alunos entendam o papel do indivíduo na História. Mostrando as perspectivas metodológicas sobre o uso da biografia no ensino de História, através de oficinas a serem ministradas em sala de aula. RESULTADOS E DISCUSSÕES Como pontos conclusivos desse trabalho, tomamos esta biografia como ilustração do contexto histórico do personagem, pois, a vida de Luis Gama está repleta de fatos que traduzem a realidade da sociedade em que atuou. Lembrando que, só podemos “tomar uma biografia para discutir determinado contexto histórico na medida em que trabalhamos esse contexto” (SILVA, 2013, p.17) com nossos alunos, pois o biografado é só um pretexto para acessarmos o passado, uma chave para abrirmos um outro tempo histórico e assim, acessar também o presente. Com reflexões que nos permitam comparações entre o que foi e o que é, entre o que poderia ter sido e o que podemos fazer. Essa construção temporal e esse trânsito entre duas temporalidades é que resulta esse trabalho compreensivo e reflexivo. Desta forma ao trabalharmos uma biografia e usá-la como ferramenta conectiva entre o passado e o presente estamos tecendo uma abordagem interdisciplinar com a literatura, pois, nos permite a utilização e confronto de alguns escritos de autoria do próprio biografado, que informam sobre sua posição diante de uma sociedade aristocrata, revelando os conflitos de interesse que permeava a realidade social em que o mesmo vivia, um gênero literário a favor da formação do individuo através de uma visão do passado. Relegada pela historiografia em alguns momentos e evocada em outros, a biografia nunca deixou de ser um instrumento capaz de contemplar a importância de se compreender um individuo durante sua existência. Sendo assim, o ressurgimento desse gênero historiográfico se justifica na medida em que coloca e retrata personagens comuns, não só as grandes personalidades, os grandes vencedores, mas também daqueles que foram por diferentes motivos, excluídos ou suprimidos da história oficial. Com a popularização da biografia e dos sujeitos, o profissional de história tem ampliado o uso desse tipo de fonte, para as aulas de história, como suporte para compreender à relação passado e presente, colocando questões onde os alunos possam perceber que o fato histórico resulta da ação de todos os indivíduos e não de uma minoria privilegiada. Demonstra também que as ações individuais podem colaborar para a manutenção ou mudanças dos acontecimentos históricos. No caso exemplificado de Luiz Gama, o mesmo se tornou conhecido por sua trajetória sui generis, de uma pessoa comum, que nos anos de sua juventude fora vendido pelo pai como escravo e que anos mais tarde se tornara um advogado e defensor dessa mesma classe marginalizada. Luiz Gama nos oferece uma riqueza de detalhes de sua vida pela própria atuação em defesa dos escravos e pela sua própria vida, pela superação criativa e inventiva de seus próprios obstáculos à sua época histórica. Reconhecido na historiografia como o iniciador da luta pela libertação dos escravos em São Paulo, na década de 1850, onde começou sua atuação, num momento histórico em que quase ninguém se atrevia a fazer isso. “Um radical! [...]. ENCICLOPÉDIA BIOSFERA, Centro Científico Conhecer - Goiânia, v.11, n.20; p. 10 2015 Defendia o que achava justo sem se importar com as conseqüências que pudessem se reverter contra ele” (BENEDITO, 2006, p.14). Nasce livre, mas é escravizado aos dez anos de idade, aos dezessete se alfabetiza, consegue sua liberdade aos dezoito, se ingressando no serviço público, neste mesmo ano, aproximando-se do mundo jurídico e das letras, estas que foram suas armas na luta por um Brasil sem rei e sem escravos. Se fez advogado, abolicionista, poeta e republicano. Soube aproveitar as oportunidades que apareciam, características que podem ser percebidas durante toda a sua trajetória. Um combatente árduo que transformou: “toda sua ascensão profissional em uma batalha constante contra a escravidão e acima de tudo, mais que uma batalha, guerra sem trégua e sem concessões” (LESSA, 1982, p. 06). Assim, a luta de Luiz Gama se faz atual, ao despertar no aluno a reflexão sobre o nosso posicionamento frente aos diferentes desmandos e arbitrariedades de nossa sociedade atual, de como podermos lutar (individual e coletivamente) contra os preconceitos, as desigualdades e injustiças sociais, de como pode ser a nossa busca e ações pela construção do que ainda não sabemos bem como intitular de “democracia”. Além de possibilitar outras leituras afirmativas, para superar as imagens fragmentárias, estáticas e negativas que estamos acostumados a ver, por exemplo, nos livros didáticos, que sempre trazem a imagem de um escravo negro submisso, sem inteligência, amarrado ao tronco e apanhando, e onde a Lei Áurea, é lida num contexto de ingenuidade e alienação, como um gesto de bondade da Princesa Izabel. Precisamos romper com este tipo de historiografia despolitizada e preconceituosa, devolvendo aos sujeitos históricos seu caráter de luta e enfrentamento social das desigualdades. A história de Luis Gama mostra que o passado é construído de lutas, de conflitos e de resistências. Assim, ao escolher a biografia do Luis Gama, demonstramos que ensinar história tem ligação com o presente, pois o que esperamos de nossos alunos e alunas é que sejam cidadãos de seu tempo, empenhados na luta por uma sociedade mais igualitária, na qual vemos em Luiz Gama um exemplo, e sua biografia um instrumento valioso para nossas reflexões. Assim o documento trabalhado nesta pesquisa é a biografia de Luís Gama que se encontra na coleção produzida pela revista Caros Amigos, intitulada REBELDES BRASILEIROS: Homens e mulheres que desafiaram o poder, Fascículo, III. Editora, Casa Amarela, São Paulo, 2009. Consideramos como fonte secundária, os escritos do próprio Luiz Gama, tais como, poemas e cartas, que em conjunto informam e dão a conhecer a vida do biografado. Esta coleção teve como coordenador pedagógico Isteván Jancsó, professor do departamento de História da Universidade Federal de São Paulo. A revista Caros Amigos, fundada em 1997, possui uma orientação marxista, com maior circulação em São Paulo. Desde então, tenta praticar um jornalismo crítico e independente das forças de poder vigente, seja ele político-partidário ou econômico. Informa e interpreta o significado dos fatos, do cotidiano, sejam eles, nacionais ou internacionais, para que o leitor tenha maior capacidade de julgamento sobre os assuntos por ela retratados. Já a autora do documento, Renata Chinelatto Consigliere, ao biografar Luiz Gama teve a intenção de mostrar, de forma simples e concisa, como homens e mulheres engajados, nas questões sociais de seu tempo, vivenciaram suas lutas com dignidade, sem temer o poder. E mostrar também que, propositalmente, vários desses homens e mulheres foram “esquecidos” pela memória nacional. Para nós, ENCICLOPÉDIA BIOSFERA, Centro Científico Conhecer - Goiânia, v.11, n.20; p. 11 2015 historiadores, esse esquecimento é claro, pois sabemos que a Memória também é local de disputa, como afirma Pierre Nora ao demonstrar que eleger os heróis nacionais é uma questão política, com finalidades bem demarcadas de que esquecer outros é uma escolha de implicações também políticas (NORA, 1993), como é o exemplo de Luis Gama e outros. Criando um tipo de história onde muitos tentam manipular, contando apenas a versão dos vencedores em detrimento dos ditos oprimidos ou perdedores, como afirma EDGAR DECCA (1982). Consigliere, nesta biografia realizada para a revista, enfoca os principais eventos no qual o biografado esteve inserido, trazendo sua história individual, particular. Além das biografias de Luiz Gama e Bento Gonçalves, a autora também, se dedica a escrever textos que integram livros voltados para o ensino de jovens e adultos do ensino fundamental II, como, “Ética e Cidadania”, que compõem o livro – EJA Educação de Jovens e Adultos – Integrado - Ensino Fundamental – 4. Ciclo, Lançado pela editora, Ática, São Paulo, 2010. O que demonstra o envolvimento da autora com o tipo de trabalho que realiza, ou seja, voltado à educação e ao ensino, buscando a recuperação de homens mulheres como sujeitos históricos lutando contra a opressão do poder dominante. Pelas obras já publicadas por Consigliere, percebe-se que há na autora uma preocupação com o resgate do cidadão, tentando de diferentes formas de posicioná-lo dentro da sociedade, seja pelo novo conceito de “heróis” nacionais ou pela publicação de obras destinadas a formação educacional. Também nessa vertente, a partir de 1980, grandes nomes da história cultural francesa, como os historiadores, Georges Duby e Jacques Le Goff, biografaram os “grandes homens”, mas com uma abordagem diferente da positivista. Os italianos Giovani Levi e Carlo Ginzburg, vão-se interessar em biografar indivíduos comuns, que vinham de classes marginalizadas da sociedade. Tanto a história cultural de Duby e Le Goff, como a micro-história de Levi e Ginzburg e ainda, a do marxista Hobsbawm, vem influenciando historiadores brasileiros em seu fazer historiográfico. A exemplo da revisão da “segunda edição do Dicionário histórico brasileiro, feita pela Fundação Getúlio Vargas em 2001; projeto que cataloga os principais personagens da História política brasileira”(SILVA, 2013, p.13). É a partir dessas reflexões que a biografia se abre a novas possibilidades, permitindo assim, levá-la à sala de aula como instrumento facilitador para compreensão do homem e sua trajetória histórica dentro da sociedade em que está inserido. CONCLUSÃO Estamos numa fase da pesquisa onde a aplicabilidade dos resultados se apresenta ainda de forma parcial, sendo construídos nesse estágio da pesquisa os questionários, os métodos e a formulação das atividades que serão aplicadas e operacionalizadas na Escola junto aos alunos, a fim de comprovar as diferentes possibilidade e contribuições de uma visão do passado na construção do pensamento contemporâneo, usando como ferramenta uma biografia, no caso, a de Luiz Gama. Serão desenvolvidas atividades, que permitirão os alunos relacionarem os obstáculos vivenciados pelo biografado Luiz Gama em seu tempo histórico em comparação aos obstáculos e dificuldades vivenciados pelos alunos em sua realidade local de modo a se estabelecer as comparações. De forma que se possa constatar a eficácia da biografia enquanto fonte documental e metodológica, para o ensino de História. ENCICLOPÉDIA BIOSFERA, Centro Científico Conhecer - Goiânia, v.11, n.20; p. 12 2015 REFERÊNCIAS BENEDITO, M.L.G.: O libertador de escravos e sua mãe libertária, Luiza Mahin. São Paulo. I.ed. Expressão Popular, 2006. BORGES, V.P. Grandezas e misérias da biografia. In: PINSKY, Carla Bassanezi. (org.) Fontes Históricas. São Paulo: contexto, p. 202-233. 2006. DECCA, E. 1930: O Silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1982. LESSA, O. Inácio da Catingueira e Luiz Gama: Dois poetas negros contra o racismo dos mestiços. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1982. NORA, P. “Entre memória e História: a problemática dos lugares”. Trad. Yara AunKhoury. In: Projeto História, n.10, Programa de Pós Graduados em História da PUC/SP, São Paulo: EDUC, dez, 1993. p. 7-28. SILVA, K. V. Biografias. In: PINSKY, Carla Bassaneze. (org.) Novos Temas nas aulas de História. 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