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FRANCISCA SIQUEIRA DE OLIVEIRA
(Dona Juraci)1
TAXISTA
15 ANOS DE TRABALHO
Idade: 64 anos, nascida em Icó, Ceará.
Filhos: Nilza
Nasci em Icó, no Ceará. Quando eu estava com doze anos de idade, minha
família deixou Icó e foi morar em Pedra Branca. Alí passamos muitos anos. Nesse
tempo, meu tio Abraão morava em Fortaleza e eu sempre vinha para cá passar
uns tempos com ele. Depois de alguns anos, apareceu lá em Pedra Branca um
batalhão do Exército para abrir estradas e eu comecei a namorar com um
sargento. Resolvemos fugir e eu, com dezesseis anos, fui morar com esse
sargento no Maranhão. Vivemos juntos por quase um ano. Mas eu acabei não
gostando e saí do Maranhão para Fortaleza.
Em Fortaleza, fui morar com uma amiga, conhecida do meu tio Abraão. Com o
tempo eu fui me adaptando e conheci um rapaz. Ele decidiu me dar um serviço: “Juraci, a cabeça desse trabalho é sua!” Nesse tempo, eu já tinha esse apelido:
Juraci. Esse rapaz fez um bar para mim e eu comecei a trabalhar no bar. Foi um
desafio! Eu tinha uns dezessete anos, mas enfrentei.
Com o passar do tempo, comecei a desgostar do serviço no bar. Estava ficando
abusada! Era difícil ficar agüentando aborrecimento de bêbado, essas coisas...
Mas o período do bar foi muito bom, porque foi com ele que eu pude reencontrar
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Depoimento à Josenira Unias, na manhã do dia 15 de janeiro de 2003, na XXXX. Transcrito em 07 de maio
de 2004.
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minha família, depois de muitos anos que estive afastada. Comprei uma casa e
trouxe meus pais e irmãos para morarem em Fortaleza.
Mas eu tinha muita vontade de deixar de trabalhar no bar. Então pensei: “- Sabe
de uma coisa? Eu vou comprar uma vaga de táxi para mim. Quero mudar de vida”.
Logo comprei um fusquinha, pus uma vaga em cima dele e saí para trabalhar no
táxi. Só que eu era precavida: não deixei o bar. Eu achava que era melhor ver se
dava certo o trabalho na praça antes de fechar o bar.
Logo na primeira semana com o táxi, fui assaltada. Foi em um sábado. Eu havia
saído da festa de aniversário de uma amiga e ido à avenida Beira Mar, porque
gostava de fazer ponto por ali. Quando deu a meia noite, resolvi voltar para casa,
no Monte Castelo. Peguei um passageiro que desceu na rua Tristão Gonçalves,
no centro da cidade. Era meu caminho para casa. Mas quando o passageiro
desceu do carro, três rapazes fizeram sinal e embarcaram. Eles iam para o
Conjunto Ceará.
Naquele tempo, não tinha tanto assalto quanto tem hoje. Eu ia trabalhar cheia de
jóias, relógio, essas coisas. Rodava a noite todinha. Às vezes eu pelejava para
chegar cedo em casa, mas não dava. Tinha muito passageiro. Para conseguir
parar, tinha que desligar o luminoso. Por isso, eu não tinha medo.
Enfim, fui levar os três rapazes para o Conjunto Ceará. No caminho, percebi que
eles não estavam com boas intenções. Eles me perguntavam o que faria se eu
encontrasse um passageiro que quisesse me assaltar e faziam insinuações. Eu
respondi: “- Ora, se alguém vier me assaltar, eu entregarei tudo sem reagir. Me
deixando viva, não tem problema. Não dá para uma mulher brigar com um
homem. As coisas que ele levar, Deus traz de volta...”
Nestas alturas a gente ia lá pela rua José Bastos, e, neste tempo, por aqueles
lados tinha uma churrascaria que era movimentada. Quando chegou perto da
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churrascaria, tive vontade de parar o carro. Mas, não sei porquê, não parei.
Estávamos chegando perto de lugares mais desertos. Um dos rapazes perguntou:
“- Então a senhora não reagiria a um assalto?” Foi o bastante. Quando chegamos
ao Conjunto Ceará, eles pediram para que eu entrasse em uma rua bem deserta.
Eu pensei: “- Eita! Lá vem o assalto!”. Eles pediram para que eu parasse perto de
uns bueiros, a uns trinta metros da primeira casa. Eles desceram e um deles ficou
na frente do carro, enquanto o outro, junto da janela me perguntava quanto fora a
corrida. Olha, era o momento de eu escapar. Mas eu não tinha experiência na
praça. Fui responder o preço e ele puxou uma faca dizendo: “- É um assalto. Não
faça nada. Não grite. Desça do carro e vá embora que nós não te machucaremos.”
Eu desci do carro. Estava de sapato alto, com salto Luís XV, daqueles bem
fininhos. Saí correndo no rumo da primeira casa e eles foram embora com o carro.
Fiquei muito assustada e quando cheguei à casa, comecei a empurrar porta e
gritar: “- É um assalto! É um assalto!” Acho que eu deveria ter pedido socorro. A
casa era modesta, de taipa e a porta era de tábua. Mas o homem dentro pensou
que eu estivesse querendo assaltar e não abriu a porta.
Então voltei para pista, morrendo de medo. Já eram duas horas da manhã, e eu
estava sozinha. Escondi minhas jóias e saí andando. O salto do sapato quebrou,
mas eu nem percebi. Então passou um táxi e fiz sinal. O motorista me
reconheceu: “- Juraci! O que aconteceu?”
Contei. Ele me levou à delegacia do Conjunto Ceará e demos parte do assalto.
Depois fui para casa. No mesmo dia fui à para a Ordem Social, para registrar a
queixa. Foi só então que eu percebi que estava com um salto de sapato quebrado!
No dia seguinte, o pessoal da polícia telefonou, dizendo que havia encontrado o
carro nos lados do Bar do Avião e que os ladrões somente tinham levado o tocafitas. Deixaram o dinheiro que eu tinha conseguido naquela noite, inclusive a
devolução de um empréstimo que eu tinha feito a um amigo. Acho que eram uns
vinte e dois cruzados... Era bastante dinheiro!
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O dinheiro estava escondido! Sabe aquela malazinha de couro por onde passa a
alavanca do câmbio, no fusquinha? O dinheiro estava todo enroladinho alí dentro!
O guarda da policia que me acompanhou para pegar o carro ficou surpreso: “Quem iria adivinhar que tinha dinheiro aí dentro?”. Só sei que salvei o dinheiro,
mas fiquei muito traumatizada! Naquela noite cheguei a decidir que não ia
continuar trabalhando no táxi.
Era somente a primeira semana de trabalho e eu já pensando em desistir... Foi em
1982. Mas continuei trabalhando, depois que a cabeça esfriou. Só que eu estava
muito assustada! Ficava com medo de qualquer passageiro que entrasse no
carro... De vez em quando, lembrava do assalto e pedia para o passageiro descer:
“- Por favor, pegue outro carro, porque eu estou passando mal...” Eu estava
cismada mesmo. Inventava que estava com cólica, ou que ia assistir à novela...
Na época estava passando os “Irmãos Coragem” na televisão. Depois fui a um
médico e ele me receitou um calmante.
Mas jamais deixei de desconfiar. Principalmente de passageiros homens. De
mulher eu não tinha medo, não. Das mulheres, eu sentia mesmo era o preconceito
com meu trabalho. Aliás, acho que as maiores inimigas das mulheres são as
próprias mulheres! Levei muito nome de “sapatão” das mulheres. Eu parava no
sinal e já ouvia: “-Olhe a sapatão!”. Uma vez, cheguei a descer do carro de tanta
raiva que senti. Foi no sinal da Rua Senador Pompeu. Desci do carro e enfrentei a
moça que havia me xingado: “- Olhe, estou trabalhando. Sapatão é a sua mãe!” E
fui embora, danada da vida. Ainda bem que hoje não tem mais disso.
Com os homens era mais fácil. Tinha até passageiros que preferiam pegar táxi
com motorista mulher. E os colegas me respeitavam muito também... Eu era
amiga de todos eles, graças a Deus. Até hoje gosto muito de meus colegas.
Ontem mesmo eu fui à eleição do sindicato e revi todos os meus amigos. Foi
muito bom.
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È que quando eu comecei, não tinha mulheres trabalhando na praça em Fortaleza.
Fui a primeira taxista da cidade! Depois de mais ou menos um ano, entraram mais
duas moças. E depois entrou mais uma, trabalhando no rádio táxi. Lembro do
nome dela: Celina. Hoje, ela está com um mercantil. A Augusta, que entrou na
praça depois de mim, ainda continua a trabalhar. A Augusta é minha amiga “das
antigas”.
Mas vamos lá: Fiquei com o fusquinha só um pouco. Depois veio o plano cruzado
e eu tirei um Voyage. Eu estava certa da profissão: vendi o bar e passei a
trabalhar dia e noite para pagar a prestação do carro novo. Minha família me deu
apoio. Eu não morava com meus pais, mas todos os dias passava por lá e ajudava
nas despesas da casa deles. Depois, pude ainda montar um barzinho para meu
pai. Eu tinha preocupação com minha família. Sustentei meus pais e irmãos por
muito tempo.
Eu saía de casa às sete horas da manhã para trabalhar e almoçava no Centro. No
fim da tarde, voltava para casa, tomava banho e descansava um pouco. Mais ou
menos às 21 horas eu saía de novo e trabalhava a noite toda. Todos os dias eram
assim. Naquela época, a praça era boa, tinha muito passageiro. Hoje em dia, está
muito pior. Tem vezes que eu vou até o Conjunto Esperança e volto sem pegar
nenhum passageiro. Venho batendo e volto batendo...
De dia, eu ficava no Centro. Estacionava sempre em frente às Casas Americanas
ou à Mesbla. À noite, eu gostava de ficar na Avenida Beira Mar, em frente ao Hotel
Beira Mar. Eram pontos bons. Eu levava passageiros para qualquer canto da
cidade. Mas, se meu coração cismasse com assalto, eu dispensava a corrida.
Uma vez, peguei um passageiro com o Voyage lá na Barra do Ceará. Fiquei com
medo de assalto, porque já era tarde e nós estávamos indo para um lugar que não
tinha nenhuma casa por perto. Era assim: o assaltante pegava o táxi e levava para
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um lugar que eles chamavam “cheiro do queijo”. Era um lugar isolado, onde o
assaltante pedia para descer. Lá já estavam mais uns dois esperando. Então
comecei a pensar: “- E agora? O que eu vou fazer?” E estaquei o carro na rua! O
rapaz estranhou: “- O que aconteceu?”. Eu disse que o carro tinha parado e só ia
pegar de novo se empurrássemos. Ele saiu para empurrar, mas quando rodeou
para a traseira do Voyage, eu liguei o carro e saí correndo. Ele ficou lá atrás,
acenando com a mão, me esculhambando...
Muitas vezes, eu ia deixar passageiros à noite, e quando voltava, via umas pedras
espalhadas na rua. Porque era assim: os assaltantes levavam a gente para longe,
ou então, eles colocavam umas pedras no meio da pista para que o motorista
parasse o carro quando estivesse sozinho. Eu vi isso acontecer várias vezes, mas
sempre andei com o farol bem aceso. Eu via de longe a pedra na estrada. Então
voltava e fazia outro caminho.
Acho que com o tempo na praça, aprendi a me defender. Uma vez, levei dois
passageiros para Caucaia. O pessoal do ponto até se admirou: “- Juraci, tu és
doida!” Eu tive um pouco de medo, mas era bobagem, porque os rapazes eram
muito certinhos. Quando chegamos em Caucaia, eles me pagaram e disseram: “Olhe, agora tire este luminoso e não pare para ninguém”. Eles estavam
preocupados comigo. Voltei e não parei para ninguém.
Outra vez ainda, eu estava em um posto de gasolina e peguei um passageiro.
Esse era assaltante mesmo, procurado pela polícia e tudo mais... Ele morava ali
na rua José Bastos, quase na esquina da rua que vai ao Panamericano. Era
véspera de Natal, e ele, mesmo fugindo da polícia, queria encontrar com sua mãe.
Entrou no carro e puxou conversa comigo. Queria saber porque eu trabalhava até
na véspera de Natal. “- Sabe o que é, meu filho? Eu trabalho o tempo todo porque
estou devendo este carro”. Então ele me avisou: “- Mas não faça mais isso. Eu
sou assaltante e podia lhe tomar esse carro. Mas não roubo gente pobre. Roubo
banco, firma cheia de dinheiro. A polícia está no meu pescoço e até prometeu um
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bom dinheiro para quem me denunciasse. Não vou lhe assaltar, mas se a senhora
me denunciar, eu mando matar!”
“- Deus me livre! Ave Maria! Não vou fazer isso não!”. Ele me disse até seu nome,
mas não me lembro mais. Quando chegamos à sua casa, ele pagou a corrida em
dobro e sugeriu que eu fosse para casa, que parasse de trabalhar de noite. Mas
eu ainda rodei muito naquela noite. Tinha cada um...
E assim eu ia levando a vida. Quando veio outro plano do Governo, tirei um
Santana de luxo. Mas não tive sorte com esse carro, porque muita gente pôs olho
gordo. Naquela época, não era fácil conseguir um carro novo, porque a procura
era muito grande. Esse Santana, só consegui tirar por intermédio de um amigo.
Era lindo, todo equipado... causava inveja. E um motorista, quando viu o carrão,
veio logo dizendo que o Voyage estava novo e que eu deveria ceder o Santana
para ele. Ele me pagaria bem. Mas eu queria o Santana e neguei a proposta.
Então veio a praga: “- Olhe, você não vai ceder para mim, mas também não vai
ganhar nada com ele.”
Acho que a praga pegou. Eu ganhava dinheiro no Voyage para gastar no Santana
novo! Aluguei o Santana para um motorista e só me dei mal... Esse motorista
rodava, rodava e dizia que não tinha feito dinheiro. Era ladrão. E eu ainda com
Voyage, ganhando para pagar a prestação do Santana. Depois ele deu uma
batida e quase acabou com o carro. E lá fui eu gastar mais dinheiro para
consertar. Vendi uma jóia para recuperar o carro. Quando eu estava dirigindo, o
carro abusava, não ia direito, dava problemas. E olhe que ele chamava atenção
em todos os lugares, de tão bonito que era.
Eu não usava uniforme, mas sempre ia trabalhar toda arrumada e usava muita
jóia. Então, um dia subiu um passageiro na avenida Heráclito Graça. Quando
paramos no sinal da Assunção, apareceu um rapaz para limpar o vidro do carro. È
muito fácil esses limpadores serem assaltantes. O passageiro ia no banco da
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frente, ao lado do meu. E o limpador puxou o cordão de ouro que eu estava
usando. Quebrou o cordão e saiu correndo. Mas eu já sabia me defender. Eu
deixei o carro no sinal aberto e taquei o pé nas carreiras atrás dele gritando pela
rua “- Pega ladrão! Pega ladrão!”. Então lá em frente ao Coração de Jesus um
soldado da polícia pagou o rapaz. Lá atrás, aquele congestionamento enorme,
porque eu tinha deixado o carro na pista.
O cordão estava na mão dele. Sorte minha que ele não passou para outro, no
meio da correria. Eu tinha até esquecido de tirar a chave do contato! Se o
passageiro fosse ladrão, poderia ter levado o carro! O guarda ainda quis que eu
fosse dar parte na Ordem Social. Mas eu não fui, porque me dei conta da
buzinada que os carros estavam fazendo lá atrás e porque me lembrei do
passageiro. Ele tinha ficado me esperando dentro do carro! Quando eu cheguei,
ele disse: “- A senhora é doida!”
Não deu certo com o Santana. Ainda hoje acho que foi por causa da praga. Foi aí
que o Orlando, um motorista amigo meu que já morreu, me aconselhou a vender o
Santana e ficar só com o Voyage. E eu vendi, afinal, ele só me dava prejuízo.
Fiquei rodando com o Voyage mais um bocado de tempo. Depois resolvi
descansar e deixei de trabalhar na praça. Então vendi o carro.
Depois de um tempo em casa, voltei para o táxi. Precisava comprar um carro e
colocar uma vaga, porque tinha vendido a minha junto com o Voyage. E tinha um
homem na Praça do Ferreira que estava doido para vender um carro velho que
tinha lá. Era um Corcel II, daqueles antigos. O carro era ruim, mas ele tinha a
vaga. E como eu queria voltar a trabalhar, precisava da vaga. Ele queria mil e
quinhentos pelo carro e mais mil pela vaga. Topei o negócio, apesar de achar que
o carro não valia. Empenhei uma jóia e consegui o dinheiro. E comecei tudo de
novo.
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Era um Corcel velho, mas me deu muito dinheiro. Olhe só: tive dois carros novos e
acabei dirigindo um Corcel velho. Eu queria comprar um carro novo e para isso ia
juntando dinheiro. Passei muito tempo com o Corcel II. Às vezes ele dava o prego,
mas eu andava com uma pedrinha dentro do carro. Quando ele parava, eu
levantava o capô, batia na lataria e ele pegava de novo! Cansou de acontecer isso
comigo! De madrugada, de dia, nos cantos desertos...
Tinha um passageiro engraçado. Lembro de um dentista, que eu sempre ia deixar
no Montese. Uma vez, o pneu furou e eu saí do carro para trocar. Eu trocava
pneu, fazia algumas coisinhas no carro. Só não entendia de mecânica e quando
dava prego, tinha que chamar o reboque... Mas quando eu ia me abaixando para
trocar o pneu, perto de uns matos, o dentista brincou: “- Dona Juraci! Olhe aí uma
cobra de duas cabeças...” Eu dei um pinote e ele desatou a rir. Até hoje esse
dentista conta essa história nos táxis que pega por aí.
Nessas alturas, meu irmão João, que morava em João Pessoa foi assaltado e
levaram o carro dele. Era um Monza novinho. Naquele tempo, tinha muito
assaltante atrás de carros novos. Eu telefonei para o João e pedi para que viesse
trabalhar comigo: “- A gente pode trabalhar junto. Você junta o dinheiro para a
entrada de um outro carro.” Ele estava desesperado e veio para Fortaleza. Deixou
a família na Paraíba. Trabalhamos juntos por uns dois ou três anos. Eu pagava
todas as despesas dele, porque queria que ele conseguisse o dinheiro para um
carro novo. Eu não deixava ele gastar nada. Até mesmo quando a mulher dele
vinha para Fortaleza para visitá-lo, tudo corria por minha conta.
Deu certo. Ele conseguiu juntar o dinheiro e voltou para João Pessoa. Lá,
comprou um Santana. E eu continuei com o carro velho.
Com o Corcel, eu ganhei dinheiro como folha de pau. Era melhor do que com
carro novo. Então deu para comprar um Gol e continuei trabalhando. Mas depois
de tanto tempo, adoeci da coluna e já reclamava da dor no corpo. Acho que essas
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dores apareceram porque eu dirigia demais! Era dia e noite. Às vezes, eu chegava
em casa ás três horas da manhã, merendava e ia descansar. Mas às sete horas,
já estava de pé de novo, porque não conseguia mais dormir. E saía de novo para
trabalhar. Era na Bandeira Um e na Bandeira Dois. A Bandeira Dois funciona das
dez da noite às cinco da manhã. A tarifa é maior, mas não chega a ser o dobro da
Bandeira Um. Se fosse... seria bom. Do jeito que a praça está ruim...
Eu queria deixar de dirigir, só que pensei: “- Não dá para arrendar o Gol, porque já
vi que não dá certo.” Resolvi vender o carro e colocar o dinheiro na poupança,
porque naquela época tinha juros bons. E fiquei vivendo em casa, com o dinheiro
dos juros dos dois carros – o Corcel e o Gol.
Quando o Presidente Collor fez o plano, quase fiquei doida com o dinheiro parado
dentro do banco. Depois, quando pude pegar o dinheiro, era muito pouco. Cheguei
até a escrever uma carta para ele, pedindo que devolvesse tudo. Ele disse que
devolveria, mas até agora não vi a cor do dinheiro! Fiquei sem nada.
O João também vendeu seu Santana para colocar o dinheiro na poupança e se
deu mal. Só que ele trabalhava em uma clínica em João Pessoa, e conseguiu se
segurar com o salário. Ele tinha uma vida muito boa, ganhava bem. Trabalhava na
praça só nos finais de semana. Mexia com política também. Ele conseguiu
comprar um Palio. Como eu estava doente, aluguei minha vaga por duzentos reais
e fui passar uns tempos com ele na Paraíba. Nós éramos muito unidos. Quando
eu queria voltar, ele não deixava: “- Não, Baixota – ele me chamava de Baixota –
Você só vai voltar para Fortaleza nas minhas férias.” E com isso, acabei passando
quase um ano em João Pessoa.
Ele tinha vontade de comprar um Astra. Ele disse que queria ficar com o Palio e
deixar o Astra comigo. Só não queria que eu trabalhasse de noite. Ele comprou o
Palio em 2003, com o plano do governo. Custou vinte e quatro mil reais. Em
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janeiro, ele entrou em férias do serviço e disse que poderíamos voltar para
Fortaleza.
Um dia antes da viagem, eu saí com irmã Rosinha para comprar uma mala. Nós
sairíamos para Fortaleza às quatro horas da manhã do dia 20 de janeiro. O João
estava com o Astra e disse que nos esperaria para levar para casa, depois que
comprássemos a mala e que eu pagasse meu cartão de crédito. Marcamos
encontro no ponto de táxi. Ás seis horas da tarde, ele estava estacionado no
ponto. O Astra estava na frente, pronto para fazer uma viagem. Mas o João estava
nos esperando e deixaria de fazer a corrida para nos levar. Minha irmã achou que
não. Achou que deveríamos esperar ele voltar da viagem, para não perder a
corrida. Eu ainda insisti para irmos com ele, porque a gente ia cedo no outro dia.
Mas minha irmã é gananciosa. Então, eu e Rosinha resolvemos pegar o ônibus e
deixar o João fazer a corrida.
Porque não pegamos o táxi dele? Ainda me pergunto. Quando atravessamos a
rua para pegar o ônibus foi a última vez que vi meu irmão. Esperamos pelo João
em casa até às onze horas da noite. Ligamos para o celular, mas estava fora de
área. Então pensamos que ele viria nos pegar às quatro da manhã, como estava
combinado. Só que ele não apareceu. Foi aí que eu tive certeza: mataram meu
irmão.
Acusei a Rosinha. Disse que ela fora culpada por não querer pegar o táxi dele.
Mas ainda esperamos mais um pouco. Cinco, seis horas e ele não chegava. Então
ligamos para a casa dele e o filho caçula, o Diego, disse que ele não tinha voltado
da noite anterior.
Eu estava desesperada. Telefonei para a Irmã Célia, diretora da Casa da Criança,
a clínica onde ele trabalhava, querendo notícias. Ela disse que iria procurá-lo e
mandou o carro da clínica nos pegar em casa. A Irmã Célia foi para o Necrotério e
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disse que chegou a reconhecê-lo pelos pés. Ele estava lá desde a meia noite.
Tinham assaltado o Astra! Isso fez um ano agora, em 20 de janeiro.
Foi um sofrimento enorme! No período que passei em João Pessoa, perdi dois
irmãos: um de câncer e o João. Eu não podia ficar mais por lá. Estava sem ânimo,
sem gosto para nada. Então voltei para Fortaleza.
Hoje eu ainda saio com o táxi. Mas é só um pouquinho, quando dá vontade. De
vez em quando, chego até a ganhar um dinheirinho. Tenho um carro e resolvi dar
vaga para meu sobrinho: o Luciano, filho de um irmão que morreu. A vaga vai ser
o meio de vida do Luciano, já que eu não tenho mais coragem de rodar na praça.
Ele trabalhava na entrega de pizza, mas acho que vai ser taxista. Com o tempo,
ele me pagará as prestações do carro. E não foi difícil conseguir um carro. A irmã
do Luciano conseguiu comprar um Peugeot na concessionária, sem entrada,
porque ela trabalha lá. Tomara que ele se dê bem. Eu ainda aconselho: “- Luciano,
faça como eu. Sempre que der, troque o carro por um mais novo.”
Uma vaga de táxi é difícil de se conseguir, por isso, acho que dei um bom
presente para meu sobrinho. Para começar, para ter vaga, é preciso se
sindicalizar. O Luciano vai ter que fazer isso, pois por enquanto, tudo ainda está
no meu nome. Quando eu comecei a trabalhar na praça, já existia o Sindicato dos
Taxistas e eu fui logo me filiar.
Eu gostava do Sindicato. Naquele tempo, o presidente era muito bom para nós.
Era o Seu Manoel Lopes. Ele foi o fundador do sindicato e fez muita coisa, mas,
como sempre, muitos olhos cresceram para cima dele. Afinal, era um negócio que
podia dar muito dinheiro para quem fosse desonesto.
Depois do Seu Manoel, o Sindicato teve outros presidentes, mas acho que não
fizeram nada por nós. O Martim, que foi presidente antes desse homem que está
agora, eu conhecia lá da praça em frente à Mesbla. Ele vivia lá, com um Fiat
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antigo... Depois que entrou para a presidência do Sindicato, comprou um mercantil
e mais um monte de vagas nos hotéis por aí. Saiu muito bem do Sindicato. Acho
que é por isso que tem tanta disputa lá dentro.
Ontem eu estive no sindicato para a eleição. Fui para votar. Tinha a chapa 1 e a
chapa 2. Na chapa 2 tinha dois amigos meus, lá do mercado de São Sebastião.
Eu pensei: “- Olha, faz tanto tempo que esse pessoal peleja para comer da
rapadura e ainda não conseguiu...” Não votei neles, não. E não votaria mesmo se
tivesse visto que eles estavam lá. Na saída, encontrei os dois atacando os
motoristas: “- Juraci, em quem você votou?” Não menti. Disse que tinha votado na
outra chapa: “- Votei na chapa 1, porque o pessoal dessa chapa já está com a
barriga cheia e não vai comer tanto. Vocês da chapa 2, como estão com muita
fome, vão entrar com unhas e dentes e não vão fazer nada!” Um deles nem
negou: “- Pois nós não vamos só lamber: vamos comer a rapadura todinha!”. Eu
disse que achava que a chapa 1 ia vencer. E o Vicente, candidato da chapa 1, é
uma pessoa bem legal. Acho que ele poderá fazer alguma coisa pelos taxistas.
O maior perigo é a insegurança. Na época do Governador Gonzaga Mota, nós
fizemos muita passeata por segurança. Mas até hoje, os taxistas correm muito
risco. Às vezes, os policiais param o carro em uma blitze. Vasculham o táxi
todinho, pedem documentos, olham tudo. Mas não vistoriam o passageiro! Ele
pode ser um ladrão, pode estar até armado, que os guardas não olham. Por isso,
se eu pudesse fazer alguma coisa pela profissão, eu colocaria uma viatura da
polícia no final de cada rua para quando os taxistas passassem, vistoriar tudinho.
Depois do primeiro assalto, eu sempre fiquei atenta com segurança. Cheguei a
comprar um rádio para colocar no carro. Só para ficar mais segura, porque com o
rádio, você fica se comunicando com a Central. Eles sabem onde você está,
sabem se pegou passageiro. Mas eu vendi o rádio e até hoje me arrependo disso.
Sabe que eu andava com uma peixeirinha no carro? Levava também um pedaço
de pau embaixo do banco. Era para me defender e também para ajeitar alguma
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coisa no carro, se fosse preciso. Graças a Deus, nunca precisei usar a peixerinha.
Era difícil; quando eu ia passar pela blitze os guardas paravam...
Uma coisa boa que aconteceu foi o gás natural. Meus carros eram a álcool,
porque gasolina ninguém agüenta, não. Naquele tempo, com muitos passageiros
na praça, se tivesse carro com gás natural, a gente ganharia muito.
Minhas lembranças do tempo do táxi são felizes. Foi um período onde tudo
aconteceu direitinho, apesar do assalto. Eu nunca tive um acidente! Só uma vez,
em um sábado, um homem bateu no meu carro, mas foi só isso! Eu era tão
cuidadosa que tinha um passageiro no ponto da Mesbla que esperava para viajar
comigo. Ele dizia: “- Gosto de andar com a Dona Juraci porque ela é tranqüila, não
corre, não dá vexame”. Esse cuidado é importante. Eu mesmo não gosto de andar
de táxi com motoristas que tem aquela ganância de chegar logo para pegar outra
corrida.
Eu gostava muito de trabalhar em táxi. Só não rodo mais porque a coluna já não
agüenta tanto, mas, se eu fosse mais nova, juro que faria tudo de novo! É uma
profissão que não exige muito: é só ser honesto, fazer tudo direito e ter força de
vontade. Só que antigamente era melhor. Hoje, as topics e as moto-táxis
acabaram com a praça. Na minha época, ou se andava de táxi, ou de ônibus.
Então tinha muito passageiro na rua. Hoje, a praça está vazia! Veja só: para
chegar ao Conjunto Ceará ou para chegar à Caucaia nas topics, o passageiro
gasta só um Real. Os passageiros de táxi diminuíram demais.
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