VITALIDADE URBANA EM JANE JACOBS Ednaldo Ferreira Silva Neto Universidade Estadual da Bahia - UNEB Maria das Graças Lima de Souza Palacios Universidade Estadual da Bahia - UNEB RESUMO Este artigo é uma tentativa de apresentar de forma concisa o trabalho de Jane Jacobs, Morte e Vida de Grandes Cidades Americanas, a crítica detalhada que esta autora desenvolve sobre o planejamento urbano moderno, criando sua própria teoria do urbanismo. Palavras-chave: Jane Jacobs. Planejamento. Diversidade. Vitalidade ABSTRACT This article is an attempt to present concisely the work of Jane Jacobs, Death and Life of Great American Cities, the detailed critique that the author develops on the traditional urban planning, creating his own theory of urbanism. Keywords: Jane Jacobs. Planning. Diversity. Vitality. 1 INTRODUÇÃO Morte e Vida de Grandes Cidades Americanas é um ataque aos fundamentos do planejamento urbano e da reurbanização modernos. É com estas palavras que Jane Jacobs começa seu livro que, apesar de ter sido publicado em 1961, ainda se mostra atual. Ao longo do trabalho ela demonstra como o planejamento urbano tem sido prejudicial às cidades e pobre em diversidade. Como se tem gasto muito dinheiro com conjuntos habitacionais para a população de baixa renda que se tornam núcleos de delinquência e vandalismo. Empreendimentos para classe média monótonos, repetitivos, padronizados, sem vida urbana. Centros cívicos evitados por todos, exceto desocupados, sem melhores opções de lazer. Estudando o funcionamento detalhado de alguns bairros de cidades americanas, Jacobs leva em conta seus órgãos mais vitais. Para ela, suas ruas e calçadas. Ela mostra como os moradores criam relações com a vizinhança e estas com os bairros e distritos. Explica como estas relações influenciam diretamente na vitalidade urbana, que depende da diversidade, característica das grandes cidades. Por fim, estabelece quatro itens que, combinados, ajudam gerar a diversidade e, consequentemente, a vitalidade urbana: A diversidade de usos, os edifícios antigos, o tamanho das quadras, e a necessidade de concentração. As cidades têm como característica uma diversidade de usos complexa e densa. O planejamento deve catalisar e nutrir estas relações funcionais, ou relações de usos (JACOBS, 2000, p.13). Para entender melhor, recorramos aos exemplos da autora: 1. A área do Morningside Heights, na cidade de Nova York, possui extensas áreas livres distribuídas em playgrouds, gramados, campus. Está num terreno elevado, com uma bela vista do rio. Com pelo menos três instituições de ensino respeitáveis, hospitais e igrejas. Não tem indústria e o zoneamento é bem definido, evitando “usos incompatíveis”. Mesmo assim, rapidamente a área se transformou numa zona de cortiços do tipo que fazem as pessoas temer as ruas. Parte da área degradada foi demolida e construíram um Shopping Center e um conjunto habitacional com áreas livres e paisagismo agradável. Depois disso, a área decaiu mais ainda. 2. O exemplo contrário a Morningside Heights é o North End. Distrito tradicional de Boston, com população de baixa renda em uma área industrial onde todos os tipos de atividades de trabalho e comércio estão misturados com as residências. O distrito tem uma alta densidade, poucas áreas verdes e quadras curtas. O North End é um lugar com ruas vivas, crianças brincando nas calçadas, gente fazendo compras, gente passeando, onde se sente o clima de alegria, bem estar e companheirismo e onde os índices de delinquência são baixos. Quando analisa as intervenções feitas sob influência das ideias dos planejadores ortodoxos, começando por Ebenezer Howard1 e a famosa Cidade-Jardim, Jacobs constata que “Ele detestava não só os erros e os equívocos da cidade, mas a própria cidade” (Ibid., p.16). A ideia central de Howard era criar cidadezinhas autossuficientes, descentralizando e desadensando-as. Ele compreendeu que a melhor maneira de lidar com a cidade grande e suas funções era selecionar e separar os usos simples (residenciais, comerciais, industriais e de lazer) e dar-lhes uma independência relativa. (Ibid., p.16-18). E ainda: Busca(va) a harmonia entre as atividades urbanas e rurais, a compatibilidade entre o crescimento das cidades e o direito do homem de viver em proximidade com a natureza num espaço coordenado de forma a oferecer condições sanitárias e belos jardins. [...] Concebendo-a como uma unidade autônoma, busca(va) o equilíbrio com o campo através da ruralização da cidade e da urbanização do campo; em escala interna busca o equilíbrio entre as funções de habitação, indústria e mercado, política, social e recreativa. [...] O seu modelo propõe uma conglomeração que consiste em seis cidades menores (32.000 habitantes) ligadas a uma maior (58.000 2 habitantes) que seria central, ligando-se às demais por via férrea . Além de Howard, Patrick Geddes3, segundo Jacobs, pensava no planejamento de cidades em termos de regiões inteiras. Para ele, as cidades jardins de Howard poderiam ser distribuídas racionalmente em grandes territórios. Imaginemos uma grande região onde pequenas cidades convergem para um único centro urbano (o centro regional). Agora, imaginemos os corredores que ligam estas cidades a este centro regional, percorrendo grandes reservas verdes que, por sua vez, separam cada um dos distritos destas cidades. Conforme Jacobs, esta padronização por extensas áreas levaria ao fim das grandes cidades, das metrópoles. Jacobs classifica, nesta mesma linha, pensadores como Lewis Mumford, Clarence Stein, Catherine Bauer e Henry Wright. São os descentralizadores. Segundo eles, a solução para as cidades cheias, sujas e malcheirosas do século XIX seria reduzi-las, dispersando as empresas e a população em cidades menores e separadas (Ibid., p.19). Já nos anos de 1920, Le Corbusier planejou uma cidade imaginária denominada Cidade Radiosa (Ville Radieuse). Composta basicamente por arranha-céus dentro de um parque. A densidade era muito alta (296 habitantes por mil metros quadrados), a população era distribuída nestes arranha-céus. Dessa forma, 95% do solo estariam livres para circulação. As pessoas de alta renda ficariam nas moradias mais baixas e luxuosas, ao redor de pátios, com 85% de áreas livres. Em uns e outros lugares haveria restaurantes, museus, teatros. (Ibid., p. 21-22) A cidade dos sonhos de Le Corbusier fez grande sucesso. Foi inspiração para inúmeros projetos de conjuntos habitacionais e até mesmo cidades, como é o caso de Brasília. Segundo Jacobs Le Corbusier: “[...] procurou fazer do planejamento para automóveis um elemento essencial do seu projeto, e isso era uma ideia nova e empolgante nos anos 20 e início dos anos 30. [...] Reduziu o número de ruas, porque „os cruzamentos são inimigos do tráfego‟. [...] Manteve os pedestres fora das ruas e dentro dos parques. [...] sua concepção, como obra arquitetônica, tinha uma clareza, uma simplicidade e uma harmonia fascinantes. Era muito ordenada, muito clara, muito fácil de entender. Transmitia tudo num lampejo, como um bom anúncio publicitário”. (JACOBS, 2000, p23) Outra vertente do planejamento urbano que Jacobs aborda é o Movimento City Beautiful cuja proposta era embelezamento: monumentos com design clássico, edifícios românicos e renascentistas, pesados e grandiosos. Estes edifícios monumentais eram separados do resto da cidade e agrupados para parecerem maiores ainda. Nos Estados Unidos representou a popularização da arquitetura clássica. A meta era a difusão da Cidade Monumental. Mas o resultado da The World‟s Columbian Exposition, em Chicago sede da Feira em 1893, foi um Centro Monumental, desenhado por Daniel Burnham. Estas obras, malgrado a monumentalidade, não tiveram muito sucesso. Invariavelmente a cidade normal à sua volta decaía. As pessoas ficavam visivelmente longe deles. A ideia era separar certas funções públicas e culturais e descontaminá-las da cidade real. (JACOBS, Op. Cit. p. 25) Jacobs demonstra que todas estas propostas de planejamento urbano, apesar das suas diferenças, compartilhavam um mesmo ponto de vista: a separação dos usos e funções da cidade e a utilização de áreas verdes como uma utopia de recuperação da vida próxima da natureza. Ela defendia as altas densidades das metrópoles. Não a metrópole de Le Corbusier, mas a cidade tradicional. É a partir desta crítica que Jacobs fundamenta sua própria teoria do urbanismo. Vamos a ela. 3 O FUNCIONAMENTO DAS CIDADES: CALÇADAS As ruas da cidade têm vários fins além do tráfego de veículos. Da mesma forma que as calçadas têm outros papéis além de acolher pedestres. As ruas e calçadas de uma cidade são seus órgãos mais vitais. Se parecem interessantes, a cidade parecerá interessante. Se as ruas são seguras, a cidade estará livre da violência e do medo. A calçada que funciona é uma barreira ao crime. Precisa ser movimentada de noite e de dia por diferentes populações no caminho para o trabalho, casa ou lazer. Enquanto isso, os proprietários e vizinhos mantêm os olhos sobre as ruas. Jacobs denomina isso sistema de vigilância cidadã. Isso só se torna possível se existir uma boa diversidade de usos nos edifícios ao redor. A calçada por si só não é nada. A segurança urbana é função das ruas da cidade grande e suas calçadas. Se as ruas não são seguras, serão evitadas. As pessoas prudentes e tolerantes, então, demonstram bom senso de evitar ruas onde possam ser assaltadas (Ibid., p. 30-31). Diminuir a densidade populacional das cidades não garante segurança alguma contra o crime. Jacobs nos dá o exemplo de Los Angeles, que tem altos índices de criminalidade apesar da baixa densidade de população e de moradias por área. Principalmente crime contra a pessoa, tipo que leva a população a temer as ruas. Não queremos dizer, com isso, que as baixas densidades (população dispersa) influenciam na criminalidade. Mas as baixas densidades são características dos subúrbios4, não das metrópoles. (Ibid., p.32-33) Certas vias públicas não dão oportunidade à violência. Todos sabem: uma rua movimentada consegue garantir a segurança. Uma rua deserta, não. A rua segura e preparada para receber qualquer tipo de pessoas, inclusive desconhecidos, que são numerosos nas grandes cidades, precisa: Ter nítida a separação entre o espaço público e o espaço privado, [...] não podem misturar-se, como normalmente ocorre em subúrbios ou em conjuntos habitacionais. [...] Devem existir olhos para a rua, [...] os edifícios [...] devem estar voltados para a rua. Eles não podem estar com os fundos ou um lado morto para a rua e deixá-la cega. [...] A calçada deve ter usuários transitando ininterruptamente, tanto para aumentar na rua o número de olhos atentos quanto para induzir um número suficiente de pessoas de dentro dos edifícios da rua a observar as calçadas. [...] Há muita gente que gosta de entreter-se, de quando em quando, olhando o movimento da rua (JACOBS, 2000, p. 35-36). Um dos requisitos básicos para a vigilância cidadã é um número substancial de estabelecimentos e de outros locais públicos. Lojas, bares, confeitarias, padarias e restaurantes. Estabelecimentos comerciais variados levam as pessoas a circularem onde eles existem e a presença de pessoas atrai outras pessoas. Uma rua viva tem usuários e espectadores. Jacobs nos dá um exemplo do bar que existe em sua rua, que contribui para manter a rua movimentada até às três da manhã. Além disso, os comerciantes e lojistas contribuem para a tranquilidade e a ordem. Detestam roubos, vidraças quebradas e, principalmente, que seus clientes se sintam inseguros. São ótimos vigilantes, guardiões das calçadas (Ibid., p.37-42). Os moradores e proprietários dos edifícios da rua realizam rituais diários, dando movimento e vida às calçadas. Além destes, os transeuntes que trabalham ou estudam por perto contribuem para esse movimento. Por exemplo, os estudantes a caminho da escola, comerciantes abrindo suas lojas, pessoas passeando com seus animais de estimação, moradores a caminho do trabalho, mães passeando com crianças. Além disso, em distritos interessantes, com potencial turístico desenvolvido, temos a presença dos visitantes. Estes grupos dão movimento às ruas em vários horários do dia. Mas, principalmente, a presença destas pessoas atrai outras pessoas (Ibid., p. 52-53). Além da questão da segurança, as calçadas e outros lugares públicos são responsáveis por reunirem pessoas que não se conhecem socialmente de maneira íntima, privada. E que muitas vezes não se interessam em conhecerem-se desta maneira. Numa cidade grande não levamos todo mundo que conhecemos para casa. A privacidade é característica da metrópole, ao contrário das coletividades pequenas. A maioria da população considera a privacidade preciosa. Mas se os contatos entre os habitantes das cidades se limitassem à convivência na vida privada, a cidade não teria serventia. Estes contatos feitos nas ruas são fundamentais, pois revelam uma compreensão da identidade pública das pessoas. Uma rede de respeito e confiança mútuos (Ibid., p.59-60). Na cidade grande existem figuras públicas que estão em contato frequente com um amplo círculo de pessoas. São pessoas que cuidam de lojas, bares, restaurantes, padarias ou coisa parecida. Jacobs ilustra com o exemplo do dono da confeitaria de sua rua, a quem os moradores podem recorrer para dar um recado, deixar uma chave, uma encomenda ou pedir informação. Dessa forma, o dono da confeitaria é uma figura pública responsável, de boa vontade e que não se envolve com assuntos pessoais alheios. Além das figuras públicas que ficam ancoradas nas calçadas, como no caso do confeiteiro, temos outras mais formais, como os diretores de associações de bairros, padres, músicos, famosos moradores locais etc. (Ibid. p.64-74). Os contatos nas ruas, apesar de aparentemente despretensiosos, despropositados e aleatórios, constituem a mudança a partir da qual pode florescer a vida pública exuberante da cidade. Mas a vida na rua só surge quando existem oportunidades concretas, tangíveis. Estas oportunidades são as mesmas necessárias para cultivar a segurança. Se elas não existirem, os contatos públicos nas ruas também não existirão (Ibid., p.75-78). E ainda, Jacobs atribui às calçadas a capacidade de integrar as crianças ao meio urbano, de forma que elas aprendam como viver nas cidades. Ela nos esclarece com o exemplo de crianças que estudam numa creche em St. Louis (Missouri, EUA). Na hora de ir embora, algumas relutavam, enquanto outras saíam tranquilamente. Um documentarista de St. Louis descobriu que todas as crianças que não queriam ir embora moravam num conjunto habitacional próximo, com playgrounds e jardins. Ao voltarem pra casa, as crianças passavam por um corredor polonês de valentões, e eram saqueadas e espancadas nos jardins do conjunto. As crianças que iam para casa sem reclamar moravam em cortiços antigos de ruas próximas. Estas gostavam de voltar pra casa, conheciam os caminhos e ruas mais seguras. Se necessário, podiam recorrer a algum comerciante conhecido. Parques, jardins, playgrounds e áreas livres, cultivados, ainda hoje, pela maioria dos planejadores, arquitetos e urbanistas, como vimos, não garantem nada (Ibid., p.82). Neste esquema, as crianças saem do alcance da vigilância dos adultos para onde o número destes é baixo ou inexistente. O contrário acontece nas ruas, mais especificamente nas calçadas. Onde as crianças brincam sob os olhos dos adultos que passam, aparecem nas janelas, tomam conta da loja ou estão por perto conversando. É claro que nem todas as calçadas tem essa espécie de vigilância. Calçadas pouco usadas não a oferecem. Na verdade, este é um elemento fundamental para a educação das crianças nas cidades, a vigilância. Os pátios construídos no centro das superquadras, herança dos planejadores da Cidade Jardim, se mostram deveras entediantes. Nenhuma criança, mesmo antes de completar seis anos de idade, vai querer permanecer voluntariamente ali. Talvez esta seja uma boa opção para crianças menores acompanhadas com os pais. Mas, na maioria das vezes, nem mesmo os adultos frequentam este tipo de pátio protegido da rua. Ainda, temos outro problema grave causado por este tipo de construção. Os pátios exigem que os edifícios estejam voltados para eles. Assim, os fundos dos prédios e as paredes cegas ficam virados para a rua. (Ibid., p.87). Jacobs defende que as crianças da cidade precisam de lugar para brincar e aprender as noções do mundo, praticar esportes, conviver coletivamente. Estes lugares precisam estar próximos às residências. Também, as calçadas devem propiciar esta recreação informal. Quando transferimos a diversão para lugares genéricos como os playgrounds, desperdiçamos o dinheiro onde poderíamos investir em atividades específicas, como piscinas, pistas de skate, quadras de esportes etc. Devemos lembrar que áreas verdes e equipamentos não cuidam de crianças. É necessária uma grande quantidade de adultos para fazê-lo. Nas calçadas diversificadas e vivas, os adultos fazem isso enquanto se ocupam de suas outras atividades. E é aí onde as crianças aprendem com pessoas comuns as lições sobre segurança, obediência e os princípios fundamentais de uma vida urbana próspera. Mas, para isso, as pessoas devem assumir um pouco de responsabilidade pública pelos outros. Jacobs ilustra isso com um bom exemplo: Quando o Sr. Lacey, o chaveiro, dá uma bronca num de meus filhos que correu para a rua e mais tarde relata a desobediência a meu marido quando ele passa pela loja, meu filho recebe mais que uma lição de segurança e obediência. Recebe também, indiretamente, a lição que o Sr. Lacey, com quem não temos outras relações que não a de vizinhos, sente-se em certo sentido responsável por ele (JACOBS, Op.cit. p. 90). Os ensinamentos que os moradores da cidade passam para as crianças são rapidamente assimilados por elas. Por outro lado, as pessoas pagas para cuidar de parques e playgrounds não têm condições de dar estas lições de urbanidade às crianças. As calçadas com mais de 10 metros de largura são capazes de abrigar qualquer recreação infantil, árvores para dar sombra e ainda, o tráfego de pedestres, com comodidade. É comum nas grandes cidades a largura das calçadas serem diminuídas em função da largura da pista para carros. Isso despreza a condição de elemento imprescindível para a segurança e vitalidade urbanas. Erroneamente, são consideradas como espaço de passagem de pedestres e acesso aos prédios. Ainda há os que as confundem com estacionamento para veículos, quarto de dormir, lojas, enfim, se apropriam do espaço das calçadas sem nenhum escrúpulo, restringindo ainda mais os diversos usos a que as calçadas se prestam. 4 FUNCIONAMENTO DAS CIDADES: PARQUES Os parques de bairros são elementos que contribuem (ou não) para a vitalidade urbana. Jacob inclui nesta categoria as praças e pátios públicos, que são os tipos mais numerosos de parques urbanos das cidades americanas. Estes são considerados um presente dado à população carente da cidade. Estes parques precisam de vida, isto é, as pessoas devem querer estar neles, atribuindo-lhe utilidade. É isto que faz um parque bem sucedido. Eles podem se constituir em elementos maravilhosos do bairro ou em vazios urbanos desvitalizados, destruídos, decadentes, sem uso, desprezados e perigosos. Para entender como as cidades e seus parques influenciam-se mutuamente precisamos acabar com a confusão entre os seus usos reais e os fantasiosos. Os parques não são os “pulmões das cidades”. Na verdade, Jacobs afirma que são necessários cerca de 12 mil metros quadrados de árvores para absorver a quantidade de dióxido de carbono que quatro pessoas liberam ao respirar, cozinhar e aquecer a casa. Na verdade, são as correntes de ar e não os parques que evitam que a cidade sufoque (Ibid., p. 99, grifo nosso). Outra falsa convicção sobre os parques é pensar que eles são capazes, por si só, de estabilizar o valor dos imóveis ou funcionar como âncora da comunidade. O exemplo de Filadélfia é útil para esclarecer isso. Projetada pelo governador da Pensilvânia no período colonial, a cidade possui uma praça central, onde há a prefeitura e quatro praças equidistantes, residenciais. Todas elas tiveram destinos diferentes. A mais conhecida é um ótimo parque, bem sucedido e muito frequentado. A segunda é um parque de submundo. Juntam-se sem tetos, desempregados e indigentes em meio a cortiços, pensões, estabelecimentos religiosos, estúdios de tatuagem, casas de shows e lanchonetes. Os frequentadores não são bem vistos, mas o lugar não é perigoso, entretanto o parque nunca funcionou como área de valorização dos imóveis à sua volta. A terceira praça virou um local evitado pelos trabalhadores dos escritórios que existem à sua volta. Inclusive na hora do almoço. Tornou-se um problema grave de tráfico e crime. A quarta praça foi reduzida, transformada numa rotatória e, ao redor, edifícios no modelo City Beautiful apareceram. Não é muito convidativo ir a pé até a praça. Trata-se de um lugar para ser visto do automóvel que passa, embora receba algumas pessoas em dias de sol. Isso ilustra o desempenho instável dos parques urbanos e sua vizinhança. Nos conjuntos habitacionais, os parques e áreas livres não foram capazes de valorizar a vizinhança ou ao menos estabilizá-la, quem diria melhorá-la5 (Ibid., p.100-102). A grande questão é: por que é tão frequente vermos parques vazios? Por que não existem parques onde há gente? Os parques vazios não implicam apenas em dinheiro mal gasto e oportunidades perdidas. Além disso, eles podem ter efeitos negativos nos bairros e nas cidades. Sofrem do mesmo problema das ruas cegas. Suas ameaças se espalham pela vizinhança, fazendo com que a população evite também as ruas que margeiam estes parques. Jacobs defende que os parques urbanos são diretamente afetados pela maneira como a vizinhança interfere neles. Podemos compreender melhor se observarmos a variedade dos usos dos edifícios à volta de um parque urbano. Estes edifícios e suas atividades devem proporcionar uma boa variedade de usuários que entram e saem em horários diferentes. Dessa forma eles utilizarão o parque em horários diferentes, pois seus compromissos diários são diferentes. Isso dá ao parque uma sucessão complexa de usos e usuários. Por outro lado, qualquer uso específico e predominante que impõe um horário limitado aos frequentadores faz com que os parques sejam usados apenas em algumas horas do dia. Por exemplo, onde predomina o uso residencial, o grande contingente de usuários adultos são as mães. Os parques não podem ser frequentados apenas por mães ou por funcionários de escritórios (Ibid., p.107). Na verdade, os parques urbanos precisam de quatro elementos em seu projeto para que sejam potenciais lugares de vida urbana coletiva: a complexidade, a centralidade, a insolação e a delimitação espacial. A complexidade diz respeito à diversidade de usos e, consequentemente, aos motivos que as pessoas têm para frequentar os parques em horários diferentes6. Ainda, se o espaço puder ser visualizado num relance, o parque será pouco estimulante para usos e estados de espírito diversificados. Não haverá motivos para frequentá-los várias vezes. Os bons parques tem um lugar reconhecido por todos como um centro. As pessoas se esforçam para criar um centro, um local de destaque nos parques. Os centros mais agradáveis servem de palco para as pessoas. Da mesma forma, o sol faz parte do cenário para as pessoas. É claro que deve também haver uma sombra para os dias quentes de verão. Um edifício que corta a passagem da luz de um parque pode comprometê-lo seriamente. Entretanto, a existência de construções à volta de um parque urbano cria uma forma definida de espaço, de modo que ele se destaca como elemento importante do cenário. Os frequentadores não procuram um parque feito para os edifícios e sim para eles mesmos. (Ibid., p.112-116 grifo nosso) Alguns parques pequenos, que não tem condições de receber pessoas, podem servir como um agrado aos olhos. Eles devem transmitir uma impressão de frescor e refrigério na selva de pedra urbana. Entretanto, estes parques que servem somente para agradar os olhos precisam estar em lugares onde possamos vê-los. Ao cumprir sua função, devem fazê-lo com beleza e intensidade. As pessoas buscam, nos parques, elementos indispensáveis e não genéricos. Quadras de esportes, uma concha acústica e até uma piscina pública representam bem estes elementos. Vista magnífica e paisagismo agradável não funcionam como artigos de primeira necessidade. Mas sim a natação, a pescaria, a música, o esporte ao ar livre, o boliche, as bancas de tiro etc. Até aqui falamos do funcionamento da cidade do ponto de vista de seus elementos vitais: suas ruas, calçadas e parques. Agora abordaremos o que Jacobs nos diz sobre os usos dos bairros. Quanto a estes, para se tornarem bem sucedidos, precisam estar em dia com seus problemas, de forma que eles não prejudiquem o seu sucesso. (Ibid., p. 123) 5 FUNCIONAMENTO DAS CIDADES: BAIRROS Primeiramente, não devemos achar que escolas, parques e moradias limpas conseguem criar bairros dignos. Não existe nenhuma relação entre boa moradia e bom comportamento. Da mesma forma, não se pode depender de escolas, apesar de serem importantes para a recuperação de bairros ruins e a criação de bairros de sucesso. Um bom prédio escolar também não garante a educação e em bairros ruins, elas acabam arruinadas. Por outro lado, também está na moda supor que famílias de classe média ou de classe alta possam construir bons bairros e famílias pobres não. Como mostra a literatura brasileira sobre marginalidade, a maior parte dos habitantes das favelas são trabalhadores e pacíficos7. Mas só este dado também não garante a segurança e o bem estar do bairro. Como, então, podemos criar bairros prósperos ou oferecer condições para que o sejam? Jacobs diz que devemos pensar o bairro como órgãos autogovernados. O que é diferente de bairros autossuficientes. O primeiro diz respeito à autogestão formal ou informal da coletividade, ou seja, os próprios moradores se sentem responsáveis pelo seu bairro e se empenham em troná-lo próspero e agradável através de ações coletivas e até mesmo individuais. Já o bairro autossuficiente é o modelo da teoria urbanística ortodoxa, ou seja, o bairro deve ser voltado pra si, como se eles não fizessem parte de um organismo maior que é a cidade. Isto talvez se aplique a comunidades e povoados pequenos, não às grandes cidades. Para perceber como estes bairros autossuficientes são prejudiciais às cidades, recorremos a um exemplo de Jacobs: Dentro dos limites de uma cidadezinha ou de uma vila, os laços entre os habitantes se cruzam e voltam a se cruzar, o que pode resultar em comunidades fundamentalmente coesas [...] Porém, uma coletividade de 5 mil ou 10 mil moradores de uma metrópole não possui esse mesmo grau natural de interrelacionamento [...] Nem mesmo o planejamento de bairros, por mais agradável que tente ser, consegue mudar esse fato. Se conseguisse, seria à custa da destruição da cidade, convertendo-a numa porção de cidadezinhas (JACOBS, op. cit., p. 126). Na verdade, os moradores das grandes cidades circulam por ela e costumam escolher, em toda cidade e até fora dela, o trabalho, o médico, o lazer, os amigos, as lojas e, em certos casos, até mesmo a escola dos filhos. Eles não se prendem à região do bairro. A vantagem das cidades é justamente a variedade de opções e oportunidades. Estas escolhas dos moradores constituem e sustentam a maioria das atividades culturais e empresas da cidade. Com isto Jacobs quer dizer que a falta de autonomia tanto econômica quanto social nos bairros é natural e necessária, pois estes bairros são integrantes da cidade8. Para Jacobs os bairros precisam também prover meios de autogestão civilizada. Ela localiza três tipos de organizações, cada uma com uma função diferente, mas que se complementam: 1 – A cidade como um todo; 2 – a vizinhança de rua e; 3 – distritos extensos de 100 mil habitantes ou mais. O primeiro deles, a cidade, é o local ideal para reunir pessoas com interesses específicos. Aqui, os moradores vêm em busca de música, teatro, trabalho etc. Um dos maiores êxitos da cidade é formar comunidades com interesses em comum9. Do lado oposto da escala, estão as ruas e as vizinhanças que elas formam. Num bairro, as vizinhanças devem ter meios efetivos de pedir auxilio diante de um problema de grandes proporções que a própria rua não consiga resolver. Contudo a vizinhança não é uma unidade separada e o seu tamanho varia até mesmo para as pessoas do mesmo lugar. Algumas pessoas vão mais longe, ficam mais tempo na rua ou têm conhecidos que se encontram mais longe. É claro que existem os casos da vizinhança isolada, com limites definidos, é o caso das quadras longas, que sempre tendem ao isolamento físico. Na verdade, as vizinhanças formam um contínuo físico, social e econômico. Na mesma perspectiva, Carlos (2001, p. 35) afirma que: [...] são as relações de vizinhança, o ato de ir às compras, o caminhar, o encontro, os jogos, as brincadeiras, o percurso reconhecido de uma prática vivida/reconhecida em pequenos atos corriqueiros e aparentemente sem sentido que criam laços profundos de identidades habitante-habitante e habitante-lugar. Por fim, o terceiro tipo que propicia a autogestão é o distrito. A função principal de um distrito bem sucedido é servir de mediador entre as vizinhanças e a cidade como um todo. Com isto, queremos dizer que, apesar de indispensáveis, a vizinhança não tem força política, diferente da cidade como um todo. Neste sentido, os distritos podem ajudar a implantar os equipamentos urbanos onde eles são mais necessários para os bairros. Ele deve ajudar a traduzir a vivência real das suas ruas e vizinhanças em políticas, diretrizes e metas municipais. Para isso, o distrito precisa ser grande e forte para brigar na prefeitura, para ter força na vida da cidade como um todo. Ainda, devem preservar o lugar que é utilizado não apenas por moradores, mas também pelos trabalhadores, fregueses e visitantes. Quando uma rua luta sozinha contra um dos maiores problemas da cidade grande, o tráfico, por exemplo, ela nunca conseguirá resolver. Mesmo os cidadãos mais influentes que uma vizinhança possa ter não dão conta de resolver estes grandes problemas. Esse é um ponto importante. Se as ruas não contarem com cidadãos influentes e engajados na vivência coletiva, a rua ficará totalmente indefesa. E isto nós, como vimos, conseguimos através das calçadas, onde as pessoas estabelecem redes de contatos influentes. Para funcionar bem e ser capaz de se autogerir, o distrito precisa vencer o isolamento dos bairros que o compõem. Este é um problema político, social e, principalmente, físico. Neste último caso, precisamos acabar com o ideal de bairro planejado. O bairro ideal da teoria do planejamento é grande demais para funcionar como vizinhança e pequeno demais para ser um distrito. Se as três únicas formas de organização – a cidade como um todo, as vizinhanças e os distritos – demonstram ter funcionalidade proveitosa para a autogestão, o planejamento deve, portanto, almejar quatro metas (Ibid., p.141): 1- As ruas precisam ser vivas e atraentes; 2- O tecido urbano dessas ruas precisa formar a malha urbana mais contínua possível por todo o distrito; 3- Os parques, praças e edifícios públicos devem ser utilizados de forma que produza complexidade e multiplicidade de usos; 4- Enfatizar a identidade da área para que funcione como distrito. Se as três primeiras metas forem atingidas, a última se fará naturalmente. A maioria das pessoas se identifica com os lugares da cidade quando passam a utilizá-los. Para isso, as pessoas devem sentir-se atraídas por coisas que se mostram úteis, interessantes e convenientes. As pessoas não buscam, nas cidades, locais idênticos aos outros. As diferenças é que propiciam a interação de usos e, assim, a identificação das pessoas com uma área maior que a vizinhança. Os centros de atividades nascem em distritos vivos e diversificados. Os estabelecimentos comerciais, culturais e as diferentes paisagens também ajudam o distrito na construção de sua identidade. Outro ponto fundamental para a formação de um distrito efetivo é a relação ativa entre as pessoas, geralmente líderes, que ampliam sua vida pública local para além da vizinhança. Estas pessoas conhecem outras bem diferentes, que moram em partes diferentes da cidade. Isto faz com que as correntes de comunicação e mobilização fiquem mais curtas. Os presidentes de associações comunitárias são o ponto de partida desta rede de ligações. Além destes, temos as pessoas que investem muito tempo em relacionamentos significativos com outras pessoas. Se estes relacionamentos, que levaram anos para se desenvolver, forem rompidos de repente, pode ocorrer todo tipo de estrago nos bairros. Com isto, Jacobs quer dizer que os distritos incipientes ou ligeiramente instáveis estão sempre sendo seccionados, subdivididos ou convulsionados por políticas públicas urbanas equivocadas. Para ilustrar este tema, recorremos à citação de um pastor que a autora utilizou: Até mesmo um gueto, depois de anos nessa condição, constrói um estrutura social, que gera uma estabilidade maior, mais lideranças, mais grupos para ajudar a solucionar os problemas públicos [...] Quando se inicia o despejo dos cortiços em determinada área, ele não só destrói casas malcuidadas; ele desenraiza os 10 moradores. Desfaz igrejas. Arruína comerciantes . (JACOBS, op. cit., p.150-1) De tempo em tempo, as pessoas trocam de emprego, de local de trabalho, ampliam suas amizades e interesses, a família aumenta ou até mesmo os gostos se alteram. Se estes tipos de pessoas vivem em distritos atrativos, diversificados e não monótonos e, ainda, se elas gostam do lugar, estas pessoas podem permanecer independentemente destas mudanças. É diferente com as pessoas do interior que precisam mudar para grandes cidades em busca de novas oportunidades. Os moradores urbanos não precisam fazer isto. O importante é compreendermos os princípios que fundamentam o comportamento das cidades, assim podemos aproveitar de vantagens e pontos fortes em vez de atuarmos contrariamente a eles. Aqui, abordamos principalmente o funcionamento social das cidades, entretanto, existe ainda outra dimensão que ajuda a produzir as ruas e distritos cheios de vida, a dimensão econômica. É isto que iremos abordar agora. 6 FUNCIONAMENTO DAS CIDADES: DIMENSÃO ECONÔMICA Jacobs começa falando de “geradores de diversidade”. Como vimos antes e já sabemos, a diversidade é natural às grandes cidades. Com isto queremos chegar a um ponto que toca o planejamento moderno: considerar os usos da cidade um de cada vez e separados um do outro. Um equívoco fatal para as cidades. Pois as combinações ou as misturas de usos são fenômenos fundamentais das cidades. A questão é: como as cidades podem sustentar uma mistura tão grande de usos que se estenda por todo o seu território, de modo a preservar a própria civilização? As cidades são geradoras naturais de diversidade e, além disso, são organismos produtores de novos empreendimentos e ideias de toda espécie. Elas são o centro econômico natural de imensa diversidade de empresas. Quanto maior a cidade, maior a variedade de seus produtos e de pequenos fabricantes. Lembremos que estamos falando aqui de grandes metrópoles. As grandes empresas têm estabilidade para se estabelecerem em qualquer lugar. Isso não acontece com as pequenas empresas. “As cidades de pequeno porte e os subúrbios, por exemplo, são o lugar ideal para supermercados enormes e não para mercearias”. As pequenas empresas dependem da grande diversidade de outras empresas urbanas. Sendo assim, a diversidade urbana permite e estimula mais diversidade. Então a cidade é o lócus ideal das pequenas empresas, e estas por sua vez são consideradas grandes absorvedoras de mão de obra. (Ibid., p.159) O comércio de varejo, as instalações culturais e de entretenimento recebem benefícios que só as cidades grandes podem oferecer. Isso porque a população urbana é tão grande que elas fazem uso de uma grande diversidade e alternativas nesses ramos. Mercearias, confeitarias, padarias finas, lojas de produtos estrangeiros, cinemas de arte etc., têm muito mais chances quando se estabelecem nos locais cheios de vida e atraentes das grandes cidades. Lembremos que tamanho e diversidade não são as mesmas coisas, mas a diversidade inclui variações de tamanho das empresas e das cidades. Quatro condições são imprescindíveis para gerar uma diversidade vivaz nas ruas e distritos: 1 – O distrito e seus bairros ou vizinhanças devem atender a mais de uma função principal. De preferência mais de duas. Isso deve garantir a presença de pessoas nas ruas em horários diferentes e que estejam nos lugares por motivos diferentes e, ao mesmo tempo, utilizem a infraestrutura existente; 2 – as quadras devem ser curtas, tornando as ruas e esquinas numerosas. A finalidade é ter mais oportunidades de virar esquinas e ter mais contato com a vizinhança; 3 – o distrito deve ter uma boa variação de edifícios com idades diferentes. Incluir boa porcentagem de prédios antigos e esta mistura deve ser bem compacta, o que estimula o contato entre as pessoas e faz crescer pequenos empreendimentos urbanos; 4 – a densidade de pessoas deve ser suficientemente alta. Tanto a densidade fixa, de moradores, quanto a densidade flutuante, ou seja, trabalhadores, visitantes, fregueses, transeuntes etc. A articulação destas condições é essencial ao pensamento da autora. Juntas, elas criam combinações de usos economicamente eficazes. É importante deixar claro que estas quatro condições estão relacionadas com a diversidade e vitalidade, não com a vocação do distrito. 6.1 Usos Principias Combinados Se as ruas, parques e praças não tiverem movimento de pessoas, eles não vão desaparecer. Já as empresas de bens de consumo provavelmente fechem se permanecerem vazias a maior parte do dia. Ou, para sermos mais realistas, elas nem chegam a abrir. Estes estabelecimentos, assim como os parques, precisam de gente. A existência de movimentação que traz segurança à rua depende de uma base econômica. Isso se configura nos usos principais combinados. Os moradores de um distrito ou bairro podem manter sozinhos um comércio pequeno, e em número limitado. Já os funcionários de bancos, hospitais, pequenas fábricas, gráficas e escritórios conseguem garantir um movimento razoável nos restaurantes e lanchonetes, pelo menos na hora do almoço. Um distrito deve oferecer diversidade não apenas para os seus moradores, mas também para as pessoas que nele circulam. Sendo assim, os trabalhadores e moradores juntos conseguem gerar mais do que a soma de duas partes. Os empreendimentos que somos capazes de manter atraem gente para as calçadas. Isso ocorre também à noite, neste caso, com os moradores do distrito. Além dos trabalhadores, atraem ainda os visitantes, pessoas que querem espairecer. Para entender melhor usos combinados, vamos recorrer a um exemplo que Jacobs nos dá do distrito de Manhattan. O centro comercial deste distrito atrai uma quantidade imensa de frequentadores para uma área muito compacta. Pode-se alcançar qualquer ponto a pé. Os usuários representam uma demanda impressionante de refeições, serviços culturais e outros artigos de varejo. Contudo, muitos cinemas, lojas, mercearias de artigos finos etc. fecharam suas portas. Os empreendimentos se mudavam para a zona central de Manhattan, de uso misto, onde estavam os clientes que já tinham feito seus contatos pessoais de negócio, como os bancos e firmas de advocacia. Por outro lado, ao redor dos edifícios de escritórios que compõem o centro comercial de Manhattan existe uma área estagnada e decadente, com vazios e vestígios de indústrias. Aí vive muita gente. Gente que deseja tanto a diversidade urbana que chega a ser impossível não se mudar em busca dela em outros lugares. Aqui nos deparamos com um lugar que tem gente em busca de diversidade e tem também uma quantidade razoável de vazios onde a diversidade pode florescer. Pra saber o que está errado, atentemo-nos ao que diz Jacobs: Basta aparecer em qualquer loja comum e observar o contraste entre a multidão da hora do almoço e a monotonia nos outros horários. Basta observar a quietude mortal que se abate sobre o distrito depois das cinco e meia e nos sábado e domingos 11 inteiros (JACOBS, op. cit., p.170). Ou seja, as atividades dos empreendimentos deste lugar se resumem a duas ou três horas por dia. Para manterem-se abertos, alguns estabelecimentos conseguem cobrir suas despesas e tirar algum lucro das multidões da hora do almoço. Outros conseguem isso mantendo suas despesas fixas (como o aluguel) abaixo do normal. É esta a razão de se instalarem em prédios antigos e decadentes. Mas aproveitarmo-nos inescrupulosamente disso, é deixar a cidade entregue ao nada. Já que sabemos que a raiz do problema é o desequilíbrio de horários de uso, precisamos fazer algo para melhorar isso. A estratégia é estimular a presença de pessoas nos momentos em que o distrito mais precisa delas para equilibrar os horários de uso. Para isso, deve haver usos que atraiam visitantes nos períodos em que as ruas estão vazias. Os turistas e gente da própria cidade completam este perfil de frequentadores. Se o distrito consegue atrair público novo, consegue ser atraente também para os moradores e trabalhadores. Estes novos usos devem combinar com o perfil do distrito, como praias, gastronomia, arquitetura histórica etc. À medida que o distrito fica mais animado, inclusive à noite, o uso residencial vai surgindo espontaneamente. O uso residencial deve necessariamente ser consequência da vitalidade, e não a sua causa. Aqui estamos tratando de dois tipos de diversidade. A diversidade de usos e a diversidade derivada. A primeira, diversidade de uso, corresponde aos usos principais como as moradias, os escritórios, as fábricas, certos locais de diversão, recreação e, de certa forma, os museus, bibliotecas e galerias de arte para uma porcentagem apreciável de usuários. Já a diversidade derivada se aplica aos empreendimentos que surgem a partir da presença de usos combinados. Se esta diversidade derivada servir aos usos principais isolados, ela será ineficiente. Por outro lado, se isso ocorre com os usos principais combinados, e as outras três condições para a geração da diversidade forem favoráveis, a diversidade será exuberante. Se a diversidade derivada florescer satisfatoriamente e contiver quantidade suficiente de elementos incomuns ou singulares, ela poderá tornar-se – e na verdade se torna – ela própria, por acumulação, um uso principal. [...] Entretanto, é raro a diversidade derivada tornar-se, por si só, um uso principal. Para ter perenidade e vitalidade para crescer e mudar, ela deve preservar seu alicerce de usos principais combinados. (JACOBS, op. cit., p. 178) Sabendo da importância da combinação de usos, devemos identificar que tipo de uso ou usos os distritos necessitam. As áreas centrais das grandes cidades têm ou tinham as quatro bases sustentadoras da diversidade. Por isso se tornaram o centro da cidade. Hoje estas áreas geralmente só têm três delas e passaram a voltar-se predominantemente para o uso principal do trabalho. Depois do horário comercial, estes centros se tornam lugares desertos. Estas áreas precisam de usos que ofereçam movimento após estes horários12. 6.2 Quadras Curtas A segunda condição para a diversidade é de que as quadras sejam curtas. As pessoas que moram em quadras longas precisam andar grandes distâncias para chegar a lugares que poderiam estar mais próximos, caso tivessem mais oportunidades de virar a esquina. Vizinhanças separadas não permitem o entrosamento entre os moradores. As quadras muito grandes isolam seus moradores em pequenos guetos. Além disso, se precisarmos andar muito para pegar ônibus, chegar ao comércio das ruas próximas ou encontrar um parque, é bem capaz que passemos anos sem andar pelas quadras vizinhas. Isso implica nos trajetos que são possíveis de se fazer ao caminhar pela vizinhança. E ao fazê-lo, os moradores entram em contato com a vizinhança. No campo econômico isso se configura como uma maior oferta de pontos viáveis para o comércio. Os empreendimentos pequenos e específicos precisam de cruzamentos maiores de pedestres para atrair fregueses ou clientes. As quadras longas neutralizam as vantagens que as cidades propiciam a estes empreendimentos. Nos distritos que conseguem sair da pobreza e se tornam prósperos, as ruas não são feitas para desaparecer. Pelo contrário, onde é possível, elas se multiplicam. As ruas numerosas e quadras curtas são valiosas para propiciar uma articulação de usos combinados e complexos entre os usuários do bairro. Elas representam a forma como estes usuários chegam ao seu objetivo através do trajeto que eles fazem. Estes objetivos não podem ser limitados por um zoneamento repressivo ou construções padronizadas que embarram o livre desenvolvimento da diversidade. Fica claro que as ruas numerosas ajudam a gerar diversidade à medida que ela atrai usuários diversificados. 6.3 Prédios Antigos “As cidades precisam tanto de prédios antigos, que talvez seja impossível obter ruas e distritos vivos sem eles”. (Ibid., p. 207) Jacobs se refere tanto aos grandes e vistosos prédios antigos quanto aos mais simples, de baixo valor, incluindo alguns que já estão deteriorados. Se uma cidade ou distrito tem apenas prédios novos, só será atração para empreendimentos que tenham condições de arcar com custos de prédios novos. Ao observar as cidades, veremos que somente atividades bem estabelecidas, que têm giro alto e são padronizadas ou subsidiadas conseguem arcar com custos das construções novas. Redes de lojas, de bancos e de restaurantes se instalam em prédios novos. O contrário acontece com boas livrarias e antiquários. Os estúdios, galerias, lojas de instrumentos musicais e materiais artísticos e cafés conseguem se sair muito bem em prédios antigos. Isso porque os novos edifícios geralmente ainda não saldaram o capital investido para sua construção, isto é, requerem uma renda maior do que a necessária para se instalar num prédio antigo. A diversidade nasce da mistura de empresas de rendimentos altos médios e baixos. Único mal dos prédios antigos é a sua deterioração. Entretanto, uma área não é fracassada por ser velha. Ela envelheceu porque fracassou. Por alguma razão, seus moradores ou suas empresas não tiveram condições de bancar novas construções. Um distrito bem sucedido se torna canteiro de novas construções ou reformas. Ano após ano, os prédios antigos são substituídos por novos ou reformados. Com o passar do tempo, temos uma mistura de edifícios com várias idades e vários tipos. E o que era novo acaba se tornando velho, em meio à variedade. Áreas extensas construídas ao mesmo tempo são incapazes de abrigar a diversidade. Inclusive de abrigar uma diversidade comercial considerável. O lado bom do comércio de rua é aquele em que as construções de idades diferentes se misturam. As grandes lojas e os supermercados estão se instalando em locais onde a mistura de prédios de idades diferentes é grande. Até mesmo para uso residencial estes prédios antigos se mostram interessantes. Essa utilidade do antigo não representa apenas o charme arquitetônico. Os prédios antigos quase nunca são desprezados pelas famílias de classe média ou alta que procuram bons preços num distrito movimentado. Nestes distritos, os prédios antigos estão em alta. Mas aqui Jane Jacobs pensa nos hábitos culturais da classe media norteamericana. Isso pode não ser válido para o Brasil e a Bahia onde o fetiche do novo e do moderno é muito forte. 6.4 Grande Concentração A quarta e última condição é a necessidade de concentração, ou seja, de alta densidade. Sabemos que uma quantidade imensa de pessoas se concentra nos centros das cidades, sem isso não haveria centros com a diversidade típicas destes. Esta relação entre concentração de pessoas e diversidade de usos às vezes não é levada em conta em distritos residenciais. Sabemos que as moradias ocupam grande parte da maioria dos distritos urbanos. Estas precisam usar intensamente o solo urbano. Isto não quer dizer que todo mundo precisa morar em prédios altos com elevador. Isso seria o fim da diversidade. Também é necessário esclarecer que diversidade e superlotação não são sinônimas. A diversidade se dá também em distritos onde as moradias não sejam superlotadas. A superlotação é incômoda. Ninguém vive assim porque quer. Também não podemos pensar que as altas concentrações populacionais, necessárias para ajudar a gerar diversidade nos bairros, sejam sempre o resultado da densidade habitacional. É preciso complementar isso com outros usos, de modo que haja distribuição de pessoas nas ruas em várias horas do dia. Estes outros tipos de uso também devem ocupar intensamente o solo urbano, o que também vai contribuir para a concentração da população. Mas Jacobs acha que as densidades habitacionais são tão importantes para a maioria dos distritos urbanos que ela dedica todo o capítulo ao assunto. Em vários exemplos de distritos prósperos, ela observa que todos eles têm altas concentrações populacionais, como o North Beach-Telegraph Hill, o Russian Hill e o Nob Hill em São Francisco, Rittenhouse Square na Filadélfia e o Brooklyn Heights, em NY. Entretanto, quais densidades urbanas seriam adequadas? A densidade é muito alta ou muito baixa quando elas impedem a diversidade em vez de promovê-la. Voltamos novamente à observação. Este número pode ser conseguido observando as partes da cidade com rica diversidade urbana. O que Jacobs usa para fazer este cálculo é a quantidade de moradias por acre. Em alguns distritos, a concentração de aproximadamente 25 moradias por mil metros quadrados tem condições de manter a vitalidade. Menos que isso, certamente vai comprometer a diversidade do distrito. Já em outros, este número de 25 habitações pode ser insuficiente para manter a diversidade. As densidades habitacionais urbanas devem subir até onde for necessário para estimular a diversidade potencial máxima do distrito. Tampouco esta densidade pode ser tão alta a ponto de inibir a diversidade. Isso ocorre porque em algum momento, para acomodar tantas moradias no solo, recorre-se à padronização, acabando com a diversidade de idade e tipos de edifícios. Para não tornar as taxas de ocupação intoleráveis, o que ocorre ao se aproximarem dos 70%, as quadras precisam ser curtas e as ruas devem ser numerosas. Isso serve para acrescentar áreas livres em forma de ruas. Se colocarmos parques públicos em lugares movimentados, estaremos também acrescentando outro tipo de áreas livres. Outra opção é inserir edifícios não residenciais em áreas residenciais, ou seja, misturar e combinar os usos. Isto surte o mesmo efeito das ruas e parques, diminui o total de moradias à proporção das construções não residenciais O que não pode aliviar estas altas densidades urbanas são terrenos residenciais livres. Pois, os outros elementos, apesar de aliviarem, por um lado, também atraem pessoas para o distrito, para o trabalho, lazer ou consumo. Isso, como já falamos, é a densidade flutuante que se expressa nas pessoas andando pelas ruas em horários diferentes e com propósitos diferentes. Já as áreas livres, terrenos baldios ou subocupados representa a falta de pessoas, que poderiam circular no distrito. Tanto moradores quanto trabalhadores e visitantes. É importante, então, dar uso a estas áreas e ocupá-las densamente. REFERÊNCIAS CARDOSO, Ceila C. EPUCS, um plano moderno para Salvador. In: SEMINÁRIO PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL E NA EUROPA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL?, UFSC, 2006, Florianópolis. CARLOS, Ana Fani Aalessandri. Espaço-tempo na metrópole: fragmentação da vida cotidiana. São Paulo: Contexto, 2001. HOWARD, Ebenezer. Cidades-Jardins de amanhã. São Paulo: Hucitec, 1996. JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. Martins Fontes, São Paulo; 1ª edição, 2000. MAFFESOLI, Michel. O tempo das Tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro. Forenses Universitária, 1987 PALACIOS, Marcos. A festa e o lúdico na configuração da sociedade contemporânea. In: Textos de Cultura e Comunicação. Salvador Revista do Departamento de Comunicação da UFBA. nº 37/38, Dezembro, 1997. PERLMAN, Janice E. O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro. Paz e Terra, 2002. 1 Ebenezer Howard(1850-1928) idealiza as cidades jardim inspirado nos criadores das “cidades industriais limpas”, W. H. Lever e G. Cadbury.É dele as bases teóricas usadas por Raymond Unwin e Barry Parker ao projetar Letchworth, a primeira cidade-jardim, patrocinada pela Garden City Association. 2 Retirado da palestra da Profª Ceila Cardoso, “EPUCS, um plano moderno para Salvador‟. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 23 a 25 de outubro de 2006. 3 Patrick Geddes (1854-1932) era escocês e escreveu “Cidades em evolução”, Papirus, 1994, Campinas. Ele pensava a cidade como inseparável da sua região. 4 Nos Estados unidos, o termo é usado para designar áreas ao redor das grandes metrópoles. Elas abrigam famílias de classe média e alta, onde em geral, os índices de qualidade de vida e segurança são maiores que os das áreas residenciais centrais. Possuem baixa densidade populacional, com habitações baixas e com baixo coeficiente de aproveitamento dos terrenos e edificações isoladas no meio dos lotes. No Brasil refere-se a áreas que não possuem infraestrutura urbana básica (energia, água, esgoto) e equipamentos sociais. 5 No caso brasileiro em geral e baiano em particular os espaços verdes tendem a ser cimentados e transformados em estacionamento para carros. E os poucos parques que existem em Salvador não oferecem segurança alguma. 6 Para descansar, jogar, ler, trabalhar, brincar, passear, encontrar conhecidos ou se entreter com a presença de outras pessoas. 7 Ver PERLMAN, Janice E. O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro. Paz e Terra, 2002. 8 Salvador parece estar indo na contramão do que Jacobs observou. Alphaville e o Le Parc, na Av. Paralela, Horto Bela Vista, em construção na Rótula do Abacaxi. Além destes, tem-se Villas do Atlântico, em Lauro de Freitas. 9 Ver: MAFFESOLI, Michel. O tempo das Tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro. Forenses Universitária, 1987; PALACIOS, Marcos. A festa e o lúdico na configuração da sociedade contemporânea. In: Textos de Cultura e Comunicação. Revista do Departamento de Comunicação da UFBA. Nº 37/38, Salvador, Dezembro, 1997. 10 Realocamentos de populações para longe das suas comunidades originais, quebrando assim a rede de contatos que já existia. Isso dificulta a autogestão. Redes de relações de bairro são capital social urbano insubstituível. 11 Tentando trazer para a nossa realidade, vejamos, por exemplo a Av. Sete, a Rua Carlos Gomes etc. 12 O exemplo clássico é o Comércio, em Salvador. Recentemente, nos últimos três anos, faculdades privadas voltadas para os estudantes de baixo poder aquisitivo se instalaram nesta área em belos e solenes edifícios. Então, as noites,que costumavam ser desertas no Comércio, hoje tem outros usos.