PAULO FREIRE: REFLEXÕES SOBRE CURRÍCULO, FORMAÇÃO DE PROFESSORES, EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E MOVIMENTOS SOCIAIS Coordenadora: Targélia F. B. de Souza Albuquerque Expositoras: Marilene A. Amaral Bertolini, Maria Aparecida Zanetti e Sônia Fátima Schwendler CONSTRUINDO CURRÍCULO PARA O ENSINO FUNDAMENTAL: UMA PERSPECTIVA FREIREANA Marilene A. Amaral Bertolini268 O que é currículo? Segundo SILVA(1999), qualquer texto sobre currículo, que se preze, inicia com uma boa discussão sobre o que é, afinal ‘currículo’. Considerei importante introduzir esta discussão, para delimitar( ou ampliar?!) o campo de análise e para deixar claro que tomo o conceito de currículo para além das ‘grades’, e, portanto para além da seleção e organização do conhecimento na escola. A discussão da qualidade da educação no contexto atual, considerando principalmente os pilares da Política Educacional em marcha, quais sejam, a descentralização financeira, avaliação e a Reforma Curricular, via PCN’s, tem dado a questão do Currículo uma relevância maior nos discursos educacionais. Por outro lado, a teorização crítica no Brasil, conforme análise de MOREIRA(2000), tem alcançado uma amplitude que, em suas palavras: “Da restrita visão de currículo como lista de disciplinas e conteúdos, passa-se a uma visão de currículo que abrange praticamente todo e qualquer fenômeno educacional. Ou seja, o currículo torna-se tudo ou quase tudo.(p.75) A discussão do conceito de currículo torna-se portanto importante, pois indica sob de que ponto de vista se está falando, o que se está priorizando. O trabalho de GOODSON(1995), apresenta uma discussão importante do conceito de currículo, mostrando, através da história do currículo, como este se constitui como um artefato, uma invençaõ social e histórica, sendo que a sua definição envolve prioridades sócio-políticas, constituindo-se como um processo social de preferências e privilégios. Silva(1999) nos alerta para o fato de que o que o currículo é, depende, precisamente, da forma como é definido pelos diferentes autores e teorias, ou seja, uma definição não nos revela o que é, essencialmente, o currículo, mas, o que determinada teoria pensa que o currículo é. O que o autor destaca é que, o que é mais importante não é tanto o conceito que se toma para se definir o que é o currículo, mas as questões que se busca responder. Conforme analisa o autor, a questão central de qualquer teoria do currículo é: o que ensinar? Esta pergunta não envolve apenas a seleção e organização de conteúdos, mas, fundamentalmente, o tipo de ser humano desejável para um determinado tipo de sociedade. 268 Professora do Departamento de Planejamento e Administração da UFPR. Doutoranda da PUC/SP. 359 O que vai diferenciar uma teoria tradicional de uma teoria crítica(e pós-crítica), é a questão do poder. Para as teorias tradicionais, a resposta ao o que ensinar já está dada e portanto a preocupação central será em como ensinar. Já as teorias críticas e pós-críticas adotam uma atitude indagativa de por quê ensinar. Partindo da premissa de que uma teoria se define pelos conceitos que utiliza para conceber a realidade, SILVA(1999) sugere que as teorias críticas de currículo, ao deslocar a ênfase dos conceitos simplesmente pedagógicos de ensino e aprendizagem, avaliação, planejamento, eficiência, objetivos, para os conceitos de ideologia cultura e poder, classe social, relações sociais de produção, currículo oculto, resistência, emancipação, nos permitiram ver a educação sob uma nova perspectiva. Considerando estes conceitos ele faz uma outra categorização com as teorias mais recentes de currículo denominadas ‘pós-críticas’ por efetuarem um outro importante deslocamento na nossa forma de conceber o currículo. Conceitos como identidade, alteridade, diferença, subjetividade, significação e discurso, saber/poder, representação, gênero, raça, etnia, sexualidade, multiculturalismo, caracterizam o pensamento ‘pósmoderno’ em educação e currículo. Vários autores , apontam para o fato de que, o movimento reconceptualista que surgiu na década de 701, tendo como preocupação central identificar e ajudar a eliminar os aspectos que contribuíam para restringir a liberdade dos indivíduos e dos diversos grupos sociais,269 teve como uma das fontes de inspiração, o pensamento de Paulo Freire. GIROUX(1989) analisa o fato de que a questão central em torno da qual a Nova Sociologia da Educação desenvolveu sua crítica da escolarização tradicional, bem como o seu próprio discurso teórico, é tipicamente freireana: Como tornar a educação significativa de forma a torná-la crítica e, espera-se, emancipadora?(p.147) Nesta época, exilado, Paulo Freire como “cidadão do mundo”, acaba semeando suas idéias pelo mundo, falando sobre a relação entre educação, política, imperialismo e libertação. “Considerado como o filósofo inaugural da pedagogia crítica, Freire conseguiu proceder a uma reorientação global da pedagogia, direcionando-a no sentido duma política radical de luta histórica, perspectiva que desenvolveu como projeto de vida....Aquilo que hoje é denominado ‘política de libertação’ tem vital significação para ativistas da educação no mundo todo, e para o que Paulo Freire contribuiu de modo pioneiro e fundamental”(Mclaren, 1999,p.16,17). Ainda segundo o mesmo autor, o trabalho de Freire continua a ser assumido principalmente por grupos marginais de educadores, que trabalham fora da corrente educacional dominante. Entendo que Paulo Freire, sua vida e obra, o colocam como “cidadão do mundo”, preocupado com um projeto humano de libertação. É neste sentido que problematizo as contribuições de Freire para uma teoria do currículo. 269 Este movimento não se constituiu em um bloco único, mas é a partir dele que se vai caracterizar a matriz curricular conhecida como Nova Sociologia da Educação, constituindo-se na primeira corrente sociológica voltada para o estudo do currículo. 360 1. Educação , Currículo e Emancipação no contexto das teorias críticas e pós-críticas: A educação se constitui hoje em um dos pilares da reforma cultural, necessária em tempos de globalização, de avanços na ciência e tecnologia. Estes avanços colocam desafios para se responder aos problemas da contemporaneidade, situados entre o interesse de sobrevivência do grande capital e o interesse das maiorias. Na educação, a qualidade total, como princípio da Nova Direita, investe contra os interesses qualitativos e quantitativos de uma educação articulada à transformação e a democratização, transformando o Sistema Educacional em um mercado educacional regulado pelos princípios de competição e concorrência, desconsiderando as condições concretas em que as escolas públicas existem. Com a Reforma Educacional em marcha, começa a circular alguns significados que impulsionam cada vez mais as escolas a se organizarem pela lógica do mercado. Os princípios desta Reforma, quais sejam: financiamento como desresponsabilidade do Estado, o controle pela avaliação centralizada e a reforma curricular via PCNs, chegam ao ‘chão da escola’ não somente através de normas, decretos, diretrizes, mas também a partir dos significados que se vão construindo na vida cotidiana, com ênfase muito grande no individualismo, na competitividade, onde a própria vida se decide no mercado, e onde o tempo de existência se torna tempo de consumo. A educação neste modelo não é tratada de forma diferente de qualquer outro serviço ou mercadoria. O resultado destas práticas discursivas é a recodificação tanto das instituições, das atividades quanto das relações: os alunos e os pais se tornam “consumidores” ou “clientes”, e os cursos se tornam “pacotes” ou “produtos”, e, os professores vistos como meros reprodutores de propostas curriculares impostas de cima para baixo. A compreensão da educação em favor da emancipação permanente dos seres humanos, considerados como classe ou como indivíduos, se põe como um que-fazer histórico em consonância com a também histórica natureza humana.(Freire,1991,p.72). A escola neste sentido, não é apenas local de transmissão de uma cultura incontestada, unitária, mas terreno de luta, de encontro, de possibilidades. Como indicam o pensamento de Freire, a escola é o lugar onde se ensina não só conteúdos programáticos, mas se ensina a ‘pensar certo’, a tolerância, o ‘profundo respeito pelo outro’. Neste sentido, o pensamento de Paulo Freire continua a representar uma alternativa teoricamente renovada e politicamente viável(Giroux,1998). Como sugere Barreto(1998), a obra de Paulo Freire, sua vida, seu pensamento formam um desafio a antropologia e epistemologia modernos. 2. Paulo Freire e Currículo: algumas aproximações Paulo Freire não desenhou especificamente uma teoria do currículo, contudo, o seu pensamento traz alguns conceitos que são fundamentais para uma teorização sobre o currículo, sobre a escola, quais sejam: sua concepção de homem como um ser de relações, criador e transformador do mundo, da educação como ato de conhecimento, conhecimento com ‘feições de beleza’, emancipador; a dialogicidade e a problematização, o conceito de cultura(ou culturas?!) como arena de lutas e contradições, identidade, alteridade, poder, enfim, um vasto campo conceitual para se discutir questões de currículo. O que une estes e outros conceitos que Freire desenvolve é, exatamente o que dá a ‘cor’ ou o ‘tom’ da sua obra: como afirma SCOCUGLIA(1997), o fato de tomar o oprimido como categoria central 361 discursiva e a denúncia da ‘desumanização opressora’ como caminho político de emancipação.(p.103) Uma Teoria Curricular de inspiração freireana necessariamente deverá contemplar eixos centrais do pensamento de Paulo Freire, quais sejam: o que, como, para que, para quem, a favor de quem? A questão dos conteúdos é uma das questões centrais que vem dominando as discussões curriculares tanto na ótica de algumas teorias quanto nas políticas públicas, e mesmo nas escolas: quais os conteúdos que são relevantes frente a contemporaneidade, aos desafios postos pela globalização. Para Freire, a escola ensina muito mais que conteúdos, ensina uma forma de ver o mundo. Neste sentido, o que ensinar não poder estar desvinculado de outras questões que precisam ser feitas no ato de educar: quem educa? Por que educa? O que ensina? Como ensina? A quem serve, contra quem e a favor de quem? A partir destas questões ele, sem desconsiderar o ensino, propõe que o ato educativo se organize a partir da aprendizagem, ou, dos sujeitos(professor e aluno). Com isto ele faz um deslocamento interessante para se pensar a organização curricular na escola, que não seja pelo viés dos conteúdos mas das relações que se possam estabelecer no entorno do ato educativo; a vida cotidiana da escola como um todo diz respeito ao ato educativo. Conforme Mclaren(1999) a pedagogia freireana situa a análise da vida cotidiana no centro do currículo. Freire entende que não se muda a cara da escola por portaria, por pacotes pensados por uma dúzia de iluminados , para ser aplicado nas escolas. Aqui ele aponta para a noção do currículo como uma construção teórico/prática, sendo imprescindível a participação, a dialogicidade no processo de elaboração curricular. Para Giroux(1997) com quem Freire compartilhou a perspectiva de uma pedagogia radical, libertadora, a linguagem da educação é contextual e deve ser compreendida em sua gênese e desenvolvimento como parte de uma rede mais ampla de tradições históricas e contemporâneas, de forma que possamos nos tornar auto-conscientes dos princípios e práticas sociais que lhe dão significado. Tomando a linguagem como prática de significação, Giroux(1997) coloca a necessidade de se analisar as condições históricas de construção de um discurso. Para ele, nenhum projeto teórico está pronto, e cada ensaio tem que ser lido de novo pela compreensão que pode trazer ao momento presente. Neste sentido, tomando a educação como prática de significação, o pensamento de Paulo Freire pode ajudar a escola a contribuir na construção de outras subjetividades, inconformistas, que pervetam os sentidos impostos pelo capitalismo sob a ótica de valorar a tudo por sua qualidade de troca. Sob a perspectiva freireana, a luta por significados é uma luta política, reafirmando-se portanto a urgente politicidade da educação. Para Freire, os homens e as mulheres fazem a história que é possível, não a história que gostariam de fazer ou a história que, às vezes, lhes dizem que deveria fazer. Neste sentido, os limites e possibilidades de uma teorização curricular freireana, são dados não somente pelos aspectos teóricos que levanta, mas sobretudo pelas condições concretas de realização. Destacando o caráter prático de suas idéias, Freire coloca a necessidade de que o seu pensamento seja reinventado na prática e não ‘aplicado’ como receita. “Quanto aos outros, os que põem em prática minha prática, que se esforcem por recriá-la, repensando também meu pensamento. E ao fazê-lo, que tenham em mente que nenhuma prática educativa se dá no ar, mas num contexto 362 concreto, histórico, social, cultural, econômico, político, não necessariamente idêntico a outro contexto.”(Freire, 1982,p.17). “Aliás, não tenho nem quero seguidores! Quero recriadores curiosos sobre o que criei, com minha curiosidade espistemológica!”(FREIRE,1998) 2.1 Construindo propostas concretas para as escolas: a relação teoria-prática Uma das grandes questões para as teorias críticas que discutem questões sobre o currículo, tem sido a necessidade de transformar suas críticas em propostas concretas para as escolas. Moreira(1998, 2000)), discutindo a atual crise da teoria curricular crítica, aponta que, na opinião dominante dos especialistas de currículo, os avanços teóricos afetam pouco a prática docente: embora conferindo maior prestígio ao campo no meio acadêmico, as discussões travadas dificilmente chegam à escola, deixando de contribuir, como se desejaria, para sua maior renovação. Aqui me parece que a questão central é a da relação teoria-prática. Qual o papel da teoria? Segundo Silva(1999), a noção do termo ‘teoria’, traz, em geral, implícita, a suposição de que a teoria ‘descobre’ o ‘real’, de que há uma correspondência entre a ‘teoria’ e a ‘realidade’: a teoria representa, reflete a realidade. Uma teoria do currículo começaria por supor que existe, ‘lá fora’, esperando para ser descoberta, descrita e explicada, uma coisa chamada ‘currículo’. “O currículo seria um objeto que precederia a teoria, a qual só entraria em cena para descobri-lo, descrevê-lo, explicá-lo.”(Silva,1999.p.11). Ainda, segundo o autor, da perspectiva do pós-estruturalismo, é “ impossível separar a descrição simbólica, linguística da realidade – isto é, a teoria – de seus ‘efeitos de realidade’. A teoria não se limitaria pois a descobrir, a descrever, a explicar a realidade: a teoria estaria irremediavelmente implicada na sua produção. Ao descrever o objeto, a teoria, de certo modo, inventa-o. O objeto que a teoria supostamente descreve é, efetivamente, um produto de sua criação. Neste sentido, segundo o autor, faria mais sentido falar não em teorias mas em discursos ou textos. A partir destas discussões, Silva(1999) levanta uma questão: a noção de discurso, nos dispensaria de fazer o esforço de separar, asserções sobre a realidade de asserções sobre como deveria ser a realidade. Ou seja, estaríamos ‘livres’ da responsabilidade de ter que traçar afirmações sobre como as coisas deveriam ser. Esta foi a lógica que permeou grande parte das teorias educacionais críticas, o que legou a escola, um peso muito grande em tentar se aproximar do ideal do que ‘deve ser’. A oposição teoria-prática também é objeto de reflexão para Freire. Para ele a educação é um ato de conhecimento, é uma teoria de conhecimento posta em prática. “A educação na visão de Freire torna-se tanto ideal quanto referencial de mudança a serviço de uma nova espécie de sociedade. Enquanto ideal, a educação refere-se a uma forma de política cultural que transcende os limites teóricos de qualquer doutrina política específica, enquanto ao mesmo tempo liga a teoria e prática social aos aspectos mais profundos de emancipação.”(Giroux,1997) Em sua conversa com Carlos Torres(Freire,1991), coloca a questão da relação teoriaprática como uma de suas lutas permanentes – “a de não me deixar seduzir pela tentação das 363 dicotomias em que nos perdemos e já não podemos compreender o mundo”. Ressalta o perigo de separar mecanicamente o mundo da teoria, ‘casto’ das academias, do mundo da prática. Não há como reduzir uma à outra. Para Freire, a própria tarefa de refletir sobre a prática é uma tarefa teórica ou práticoteórica: “Por isso, quanto mais penso criticamente, rigorosamente, a prática de que participo ou a prática de outros, tanto mais tenho a possibilidade, primeiro, de compreender a razão de ser da própria prática, segundo, por isso mesmo, me vou tornando capaz de ter prática melhor. Assim, pensar minha experiência como prática inserida na prática social é trabalho sério e indispensável”.(Freire 1991,p.106,107). Veja que, mesmo considerando o valor de instrumentais teóricos que auxiliem a reflexão da prática, Freire coloca a importância de que estes instrumentais tenham como referência a própria prática, e que a teoria esteja ‘molhada’ na prática. Entendo que o que Freire anuncia é a necessidade do reencontro entre a teoria e a prática, fertilizando-se e enriquecendo-se a prática. A partir da sua preocupação em não cair na dicotomia teoria-prática, fico imaginando que para caracterizar o seu pensamento neste aspecto não seria melhor dizer prática-teoria-prática. creio que é fundamental considerar que os educadores fazem ou estão fazendo a educação que podem, e não aquela que a teoria deseja que façam ou diz que devem fazer. Nesta relação prática-teoria-prática tanto os teóricos quanto os professores precisam desvelar juntos a prática para, teorizando-a também juntos, poder em transformá-la. O rompimento com o dito distanciamento entre a academia e a realidade é essencial. 2.2. A teoria do conhecimento em Freire: do ensinar e do aprender No pensamento de Paulo Freire o ensinar e o aprender constituem-se numa ‘relação curiosa’ sendo que o papel do educador não é o de discursar sobre o conhecimento, mas é o de aguçar a curiosidade, causar inquietação , sem a qual o conhecimento não se dá. O ato de conhecimento, se dá numa triangulação enriquecedora entre educador, educando e o conteúdo. Portanto o ensinar e o aprender, não é uma relação direta sujeitoobjeto, mas se prolonga, sendo, no fundo, uma relação sujeito-objeto-sujeito: “... a relação de conhecimento não termina no objeto, ou seja, a relação não é a do sujeito cognoscente(ou a do sujeito que conhece) com o objeto cognoscível( ou com o objeto que pode ser conhecido). Essa relação se prolonga a outro sujeito, sendo, no fundo, uma relação sujeito-objeto-sujeito, e não sujeito-objeto.”(Freire,1982,p.114) Tomando a educação como ato de conhecimento, Freire chama o ensinar e o aprender como um ciclo de conhecimento: o momento quem que se produz o conhecimento inexistente, em que se cria o conhecimento que ainda não existe; e o momento em que conhece o conhecimento que já existe. A situação educativa é uma prática de relação ativa entre educador e educando, sendo que o professor também é um aprendiz. Freire, já na década de 80, nos seus escritos, aponta a perspectiva de que o processo pedagógico, em sendo dialógico, não seja concebido mais a partir da relação ensinaraprender. Conforme Olmedo(1993), citado por Streck(2001), a contribuição original de Paulo Freire é exatamente a ruptura epistemológica entre o ‘eu penso’ pelo ‘nós pensamos, 364 correspondendo ao rompimento com a episteme popular moderna do indivíduo e à aproximação da episteme popular da relação.(Streck,2001,p.29) A partir da noção da teoria do conhecimento em Freire a interdisciplinaridade tem sido colocada como típica no pensamento freireano, não somente como método pedagógico, mas como uma atitude do professor, exigência da própria natureza do ato pedagógico. Contudo ao reinventar o pensamento de Paulo Freire sob a ótica do currículo, novas categorias fazem-se necessárias a essa reelaboração crítica, considerando os diversos avanços na discussão da teoria do conhecimento, bem como, considerando as diversas formas de opressão, a necessidade de resistência e de luta no seio da sociedade capitalista. Neste sentido, buscando resgatar a complexidade do ato educativo, do ato de conhecimento, problematizo aqui a possibilidade de se pensar o desenho curricular fundamentado em Paulo Freire, sob a ótica da transversalidade, como possibilidade à organização do currículo. Frente aos desafios postos hoje pela contemporaneidade, vários autores vêm tecendo considerações sobre o desafio de pensar transversalmente o currículo, no sentido de se operar outras lógicas, outros cortes possíveis, buscando não apenas reduzir o novo ao velho(‘reformar’), mas buscar transcender os limites do que temos como possível. Sob a perspectiva da possibilidade da transcendência, da atualidade, da criticidade e do pensamento de Paulo Freire é que me parece necessário, instigante, e, fundamentalmente apaixonamente “recriá-lo” sob a ótica do currículo. Delinea-se a esperança e a possibilidade como futuro, no resgate do pensamento freireano, contribuindo para a construção de uma ‘linguagem de possibilidade’, de esperança, que orientem aos professores resignificar suas práticas, a (re)construir o sentido da escola. Na sua trajetória, Freire ampliou e revisou os seus princípios, na constante busca da coerência de um projeto crítico de educação. Neste sentido não se limitou e nem se deixou aprisionar pelas categorias modernas, mas buscou exercer a sua liberdade e capacidade de ousar e arriscar-se a construir outras categorias no seio da luta com os oprimidos. Conforme aponta Silva(1993), um projeto crítico em educação centra-se fundamentalmente sobre 2 eixos: primeiro: o exame dos nexos entre educação/escolarização e as estruturas e processos pelos quais se constroem a desigualdade e a estrutura social; segundo, no desenvolvimento de formas alternativas de educação, currículo e pedagogia que representem uma superação das opressivas formas existente. Para Santos(1996),um projeto educativo emancipatório visa recuperar a capacidade de espanto e de indignação e orientá-la para a formação de subjetividades inconformistas e rebeldes. O pensamento de Paulo Freire, situa-se nesta perspectiva de um projeto críticoemancipador, pela defesa dos princípios da participação, problematização e dialogicidade, pela perspectiva de libertação, de emancipação. No computo do pensamento freireano estes eixos não são apenas instrumentos e/ou estratégias para se alcançar resultados; antes se constituem como fundamento e exigência da natureza humana, da opção por uma sociedade mais justa e democrática; propiciam tanto uma compreensão do nível macro de análise da sociedade capitalista e seus determinantes na escola, quanto no nível micro, do que a escola é, do que a escola pode ser. Neste sentido, o pensamento de Freire, continua útil, por propiciar uma ênfase grande na dimensão social da pedagogia, sendo que, a grande contribuição pessoal/profissional de se trabalhar com o seu pensamento é a possibilidade de estimularmo-nos a sermos mais humildes e reflexivos em nossas justificativas pedagógicas. 365 Referências Bibliográficas: BARRETO, Vera. Paulo Freire para educadores. São Paulo, Arte & Ciência, 1998 FREIRE, Paulo. Sobre Educação: diálogos(Paulo Freire e Sérgio Guimarães) – Rio de Janeiro,Paz e Terra, 1982 _________ A educação na cidade. 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SCOCUGLIA, Afonso Celso. A história da idéias de Paulo Freire e a atual crise de paradigma. João Pessoa, Ed. Universitária/ UFPB, 1997 SilVA, Tomaz Tadeu. Documentos e Identidades: uma introdução às teorias do currículo.Belo Horizonte:Autêntica,1999. STRECK, Danilo(org) Paulo Freire: ética, utopia e educação, Petrópolis,RJ:Vozes,1999 __________Pedagogia no encontro de tempos.Petrópolis, Vozes 2001 366