Patrimônio Cultural Afro-Brasileiro
A
Antropólogo e professor da
Universidade stadual da Bahia
imposição do catolicismo a alguns reis africanos, sua submissão aos portugueses; a negação
de seus nomes; o esfacelamento de suas famílias; a política adotada pelos traficantes; a “árvore do esquecimento”; a pratica da divisão do Condes dos Arcos; a
demonização de suas culturas; a falta de amparo do Estado
brasileiro Republicano, as políticas de embraquecimento;
a “escola baiana de medicina” com suas teorias racistas a
perseguição policial amparada pelo discurso preconceituosos da imprensa, não foram capazes de impedir que as diversas culturas vindas do continente africano, não somente
se perpetuassem mas também se recriassem. Neste constante inventar, e em algumas vezes, por trás da “brincadeira de faz de conta”, apenas para lembrar um expressão
ainda hoje utilizada pelas nossas crianças negras, elementos simbólicos foram juntados a outros que não paravam
de chegar do continente africano.
O encontro das chamadas culturas negras no Novo
Mundo percorreu caminhos diversos e deu respostas imprevisíveis.
No catolicismo, o artista negro inovou ao trazer modificação na arte de talhar, não somente atribuindo sentimentos aos seres celestiais, mas lhes conferindo traços negros
ou de mulheres negras, ou ainda, enriqueceu o ouro brasileiro com moedas africanas, os búzios.
Na forma de trabalhar a terra, africanos, africanas e
seus descendentes, não somente inventaram Palmares,
uma sociedade real que conseguiu reunir brancos, negros
e índios, em torno de um sonho: a liberdade. O Brasil conheceu através dessa experiência de homens e mulheres
negras, a possibilidade de uma sociedade plural baseada
na posse coletiva.
No modo de organização, trouxeram um modelo antigo
inspirado nas civilizações que os europeus esfacelaram a
partir do contato com o Continente Africano e aqui quero evocar uma expressão a qual a professora Hildegardes
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Vianna se refere e dedica
algumas linhas: “O Quintal de Nagô”, ou utilizando
uma expressão bakongo: o
futu; uma ordem diferente
da privilegiada pela cultura branca ocidental onde
o forte não é separar, mas
juntar. Para algumas tradições bantu, o futu é isso.
Diversas vezes já tivemos
a oportunidade de ouvir
Makota Valdina explicar:
“ele é uma espécie de pacote onde Nganga Zambi
colocou tudo... Tudo! A separação veio depois”.
A mão negra modificou
não somente a arquitetura,
mas a comida, a linguagem, introduzindo alguns
provérbios, adivinhações,
histórias que desde cedo foram transmitidas através de
uma oralidade que ao invés
de concorrer com a escrita
inventou outras escritas que
podem ser encontradas gravadas no corpo de algumas
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pessoas, em cada traço que
compõe as tatuagens rituais
e nas formas diversas que
alternam-se entre as cores
e linhas que marcam os iniciados nas religiões de matrizes africanas, mas também o silêncio, o não dito,
o faz de conta...
Na religiosidade, estes
homens e mulheres, profundamente conhecedores
de suas tradições, se não
fizeram sínteses de mundos
africanos, nos deixaram
mundos construídos a partir de sínteses baseadas nas
suas vivencias e nos seus
sentimentos.
São, pois, estes universos que estamos chamando de patrimônio, palavra
emprestada do latim patrimoniu, com o significado
de herança paterna, bens
de família. Para as religiões tradicionais africanas
este conceito é algo muito
amplo, pois diz respeito ao
próprio mundo. O mundo é
uma dádiva dos ancestrais e
é da relação com estes que
depende a harmonia das
coisas. As cidades, os reinos, as pessoas, a natureza
são pedaços do sagrado. Há
mitos que falam exatamente isso como o que diz que
“Olorum ia retirando partes
do seu corpo e jogando sobre as águas e as coisas iam
se formando.”
O patrimônio cultural
afro-brasileiro pode ser
chamado também de elemento fundante da própria
humanidade se assumirmos
que o Continente Africano não somente nos legou
as primeiras pessoas, mas
também a medicina, a tecnologia, as universidades, a
filosofia, etc, diferentemente do que nos acostumamos
a ouvir até certo tempo
atrás. Portugal e Espanha,
ao lado de outros países invasores se depararam com
civilizações que já haviam
tido contato com a Ásia e
com as Américas. Esta é
uma história que temos que
contar mais.
Precisamos falar mais
também sobre Chico Rei,
Dom Obá, “o Cabra”,
aquele artista que se paresentou no Cristo morto
que esculpiu a pedido de
um senhor, que representou sua agonia nas pedras
de rubi que em seguida
colocou na obra. Nossas
crianças precisam ouvir
mais sobre a Zeferina
do Quilombo do Urubu,
Acotirene e tantas outras
mulheres que começaram a história no Brasil.
A tradição institui um
tempo, às vezes o recria,
inventa. Ela faz isso através de ritos capazes de
fazer, por exemplo, comidas brasileiras serem
apreciadas por ancestrais
africanos. O rito muda
até os tipos e as características das folhas. E
quem tem esse saber não
revela; quem sabe não
conta porque o rito ao
mesmo tempo que descobre, encobre uma série
de coisas. E aqui quero
evocar velhos tios e tias
que não somente tinham o
poder de “encantarem-se”,
transformar-se em pedras,
peixes, aves, mas também
de estarem em dois lugares
ao mesmo tempo.
Patrimônio tem a ver
com Memória e esta se não
pode ser sempre algo viva,
depende dos vivos para está
sempre atualizada. Sem dúvida alguma, o maior patrimônio são as pessoas, ou
trazendo presente o velho
provérbio, os que nascem é
que são sempre vivos.
A fim de ilustrar este fato
me permitam evocar o final
de uma fala de uma sacerdotisa jeje mahin da cidade
de Cachoeira ao interromper a sua biografia. Após
quase duas horas de entrevista, com a sua voz falhando por causa da sua idade,
Luiza Franquelina da Rocha como ela costumava se
apresentar ou Gaiaku Luiza
falou: É um pouco da minha história. Se você quiser venha a noite. Gosto
mesmo é de falar a noite.
A Noite eu conto mais.
Eu fico aqui em cima sozinha...
Na maioria das vezes
homens e mulheres negras têm ficado sozinhos.
Ainda está para ser feita
a historia de Mãe Cecília
do Bonocô, “a grande vidente da Rua da Liberdade” a qual Edson Carneiro apenas se deu o trabalho de escrever esta linha;
Joãozinho da Goméia,
Eduardo de Ijexá, Nezinho do Portão, Bernadino da Paixão, Tio Anacleto, Zé do Vapor, Dona
Baratinha, Gaiaku Luiza
e tantos outros. Pessoas que vivem na memória de seus filhos, filhas,
amigos e amigas como
verdadeiros Baba tundê.
Pais e mães sempre presentes, retornados.
Oxalá, a história destas pessoas, suas estratégias de luta nos motive
a fazer cada vez mais a
fazermos um grande ajô,
união, um encontro baseado em caminhos baseados
em relações mais justas
que se efetivam em praticas políticas como estas.
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47 - Fundação Cultural Palmares