Artigo
Cooperação para o Desenvolvimento entre o Brasil e Cabo Verde: Possibilidades e
Limites
Cláudio Alves Furtado
Resumo:
O texto aborda osconceitos de ‘cooperação’ e ‘desenvolvimento’ que se relacionam em termos de
complementaridade, de justaposição ou de determinação em uma perspectiva, e de outra,
questiona-se a existência de uma eventual precedência em termos de influencia e determinação
entre eles. A história do desenvolvimento, inserida no projeto de cooperação internacional, pode
ser situada, com todas as limitações que os marcadores históricos comportam, na pós-segunda
guerra mundial, num contexto em que o projeto de modernidade ocidental se amplifica. Para os
países africanos, a cooperação para o desenvolvimento emerge, enquanto discurso político, em
decorrência do processo de descolonização com uma narrativa, em regra consensualmente
assumida, de que os aportes provenientes dos países do norte devem ser positivamente
valorizados, quando não cruciais, para a construção e consolidação dos novos Estados.
Palavras chaves: Desenvolvimento, cooperação, descolonização, globalização.
Abstract:
The text explores the concepts of 'cooperation' and 'development' that relate in terms of
complementarily, juxtaposition or determination perspective, and another, question the existence
of any precedence in terms of influence and determination between them. The history of
development, included in international cooperation projects can be located, with all the
limitations that the historic markers behave in the post-Second World War, in a context in which
the project of Western modernity is amplified. For African countries, development cooperation
emerges as political speech, due process of decolonization with a narrative, usually consensually
assumed that the contributions from the countries of the North should be positively valued, if not
crucial, to the construction and consolidation of new states.
Keywords: Development cooperation, decolonization, globalization
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Introdução
O título do texto comporta dois conceitos, duas categorias ou, ainda, dois signos
linguísticos extremamente polissêmicos, sobretudo porque se encontram completamente
imersos no discurso e na vida quotidiana e, quando colocados num determinado quadro teóricoconceptual e pretendendo possuir propósitos analítico-interpretativos, nem sempre o
conseguem, pois não foram suficientemente expurgados os riscos daquilo que Pierre Bourdieu e
outros (2004) denominaram do fazer uma sociologia espontânea.
Com efeito, ‘cooperação’ e ‘desenvolvimento’ possuem uma história e, quiçá, uma préhistória, que poderá, inclusive, nos interpelar à, como diria Foucault (2005), realização de uma
arqueologia do saber. Referindo-nos, antes, aos dois signos linguísticos atrás referidos, urge
colocar duas ordens de questões. A primeira pode ser desmembrada em duas reflexões. A
primeira centra-se no fato de se os dois termos se relacionam em termos de complementaridade,
de justaposição ou de determinação. A segunda procura questionar a existência de uma eventual
precedência em termos de influenciação/determinação entre eles. Se sim, coloca-se o
questionamento de quem precede quem e porquê. Se não, que relação(ões) possível(is)
pode(m), então, existir entre eles.
A segunda ordem de questões nos remete à dimensão conceptual, ou seja, pensar as
palavras “cooperação” e “desenvolvimento” enquanto portadoras de alguma capacidade
heurística, enfim, de, no quadro de uma abordagem teórica, concorrerem para explicar um
determinado fato, fenômeno ou uma dada realidade.
É aqui que procuro situar o lugar da minha fala, clarificando, como afirmam os
antropólogos, o locus do sujeito epistêmico. Esta explicitação é fundamental para tornar
inteligível o conteúdo da minha narrativa, não significando, contudo, nem a sua eventual
(in)coerência nem a clarividência e razoabilidade das argumentações.
Assim, a comunicação pretende, a partir do sul geográfico e epistêmico, como afirma
Boaventura Sousa Santos (2009), analisar, no contexto de um mundo globalizado e multipolar, os
sentidos explícitos e implícitos que perpassam os discursos político-diplomáticos que permeiam
as relações de cooperação entre o Brasil e o continente africano.
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Esta análise tem em conta, por um lado, que o mundo atual fez emergir no cenário
internacional novos e importantes atores, mitigando o papel e a força política dos atores
clássicos (estados, organizações internacionais e sector privado) e, por outro, assiste-se ao
aumento progressivo de organizações políticas e econômicas regionais supranacionais, ao
alargamento da intervenção das Organizações Não Governamentais podendo-se, mesmo dizer, a
emergência de uma sociedade civil transnacional (SCHEREN-WARREN, 2002).
Da mesma forma, a globalização da economia mundial no quadro da hegemonia
neoliberal tem feito com que, de forma majoritária, os estados nacionais se vejam enfraquecidos
na sua capacidade de regulação. Mais ainda, tem-se assistido a uma globalização dos fluxos
financeiros internacionais, limitando as capacidades dos estados de definir políticas
macroeconômicas autônomas, de forma particular as políticas financeiras e monetárias, e a uma
diminuição da ajuda pública ao desenvolvimento.
Podendo, embora, parecer um paradoxo, apesar da multiplicidade de centros decisionais
e de atores envolvidos no processo de tomadas de decisão a nível global, persistem ainda
gargalos e pontos de estrangulamento que tendem, ainda que sob alguma capa de
democraticidade e multipolaridade, a centrar e centralizar as decisões mais cruciais e
estruturais para todas as nações nas mãos de atores que, tradicionalmente, têm dominado o
cenário internacional. Os impasses verificados na reforma do Sistema das Nações Unidas e das
Instituições de Bretton Woods (Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial) são disso um
exemplo.
Cooperar para quê? Desenvolver o quê?
A história do desenvolvimento, inserida no projeto de cooperação internacional, pode ser
situada, com todas as limitações que os marcadores históricos comportam, na pós-segunda
guerra mundial, num contexto em que o projeto de modernidade ocidental se amplifica.
Para os países africanos, a cooperação para o desenvolvimento emerge, enquanto
discurso político, em decorrência do processo de descolonização com uma narrativa, em regra
consensualmente assumida, de que os aportes provenientes dos países do norte (geográfico)
devem ser positivamente valorados e valorizados como importantes, quando não cruciais, para a
construção e consolidação dos novos Estados.
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Não se deve esquecer, como assinala Tandika Mkandawire, que “o desenvolvimento - a
erradicação da(..) ignorância, pobreza e doenças – eram uma componente central da agenda
nacionalista” ( 2005:13). Neste sentido, para os nacionalistas africanos, forjadores das
independências, a modernização e o direito à industrialização são essenciais “se a África
quisesse escapar da dominação e da humilhação sofridas nas mãos do Ocidente e atingir a
‘autodeterminação e independência’” (idem).
A incapacidade endógena de mobilização de recursos financeiros e humanos que
pudessem suportar os custos e os desafios do “desenvolvimento”, a lógica instalada no sistema
econômico mundial favorecedor do desenvolvimento desigual, como sustentou Samir Amin
(1973), ou de uma economia de dependência na formulação de Fernando Henrique Cardoso
(1971), ou ainda, de um desenvolvimento desigual (André Gunder Frank, 1991), conduzem à
necessidade/obrigatoriedade de busca de fontes de financiamento nos países ocidentais
industrializados e, na maior parte dos casos, as antigas potências colonizadoras.
A narrativa discursiva do “Norte” para fundamentar a implementação de políticas e
projetos de cooperação assenta-se, não poucas vezes, em argumentos de natureza moral. Neste
quadro, e de forma particular, a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) é assumida como uma
necessidade de, na tradição humanista da civilização ocidental, apoiar os processos
conducentes ao respeito pelos direitos humanos, a concretização do ideário de justiça social eo
combate às clivagens e desigualdades entre o Norte e o Sul.
No fundo, a cooperação apresenta-se, altruisticamente, como o financiamento do
desenvolvimento, no caso em análise, dos países africanos. Ou seja, os “cooperantes”, em regra
as antigas potências colonizadoras, fazem, através dos projetos de cooperação, aquilo que não
fizeram durante os vários séculos de ocupação e de dominação colonial. Contudo, a contra face
desse discurso legitimador da cooperação para o desenvolvimento constituiria a prova de que o
antigo discurso legitimador do empreendimento colonial (levar a civilização, a fé e os bons
costumes) ou terá falhado ou então nada mais foi do que uma grande falácia.
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Contudo, existem pensadores, ainda que minoritários, que enxergam a cooperação como
uma operação, potencial e idealmente, conjunta, realçando o princípio das vantagens mútuas
decorrentes dos projetos de cooperação (cf. Relatórios das Comissões Brandt em 1980 e
Brundtland em 1987), configurando-se o que no jargão diplomático, hoje em desuso, se
denomina de “cooperação mutuamente vantajosa”.
Neste contexto, não se pode, de forma ingênua, considerar a cooperação ou a ajuda ao
desenvolvimento como uma prestação social, assente em valores morais e humanitários. Antes,
devemos considerá-la assente no princípio da dádiva em que um dar, implica um receber, mas
também um retribuir. Ao dom contrapõe-se um contra dom, na acepção dada pelo antropólogo
francês Marcel Mauss (1974). O que acontece, amiúde, no domínio das relações internacionais é
o escamoteio deste caráter de dádiva que a cooperação intrinsecamente comporta. Os atores do
sul, sejam eles estatais ou não, acabam por, acriticamente, legitimar os discursos hegemônicos
sobre a cooperação para o desenvolvimento, reproduzindo o status quo, na medida em que
aceitam a as diversas formas de que se reveste a copperação para o desenvolvimento (ajuda
pública ao desenvolvimento, assistência técnica e humanitária, empréstimos concessionais, etc)
como se fossem de fato uma oferta, um donativo.
A desconstrução deste tipo de discursos se nos afigura essencial não apenas para um
efetivo entendimento das relações internacionais, como também para que se proceda à
(re)construção de um novo paradigma de cooperação assente numa real perspectiva de troca,
mutuamente vantajosa, com base no respeito ético pelos posicionamentos e prioridades de todos
os atores envolvidos, estatais ou não-estatais.
Neste momento, como sublinha Adebayo Olukoshi relativamente às crises sociais e a
estagnação econômica do continente africano
As respostas que cada um de nós pode trazer a esta grande questão
passa obrigatoriamente por uma confrontação com verdades
desagradáveis sobre o
nosso continente: os fundamentos econômicos de nossos Estados, a
justificação da nossa dignidade enquanto seres humanos, inseridos
numa globalização feroz, na qual as regras do jogo se repousam na
supremacia econômica e militar que os Africanos não puderam
assegurar ao longo do tempo” (OLUKOSHI, 2010:8)
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( tradução livre).
Com efeito, sem ser afro-pessimista, é forçoso reconhecer que, num mundo globalizado, a
situação do continente africano, com poucas exceções, conheceu agravamento progressivo
desde a década de setenta do século passado. Da euforia das independências seguiram-se, como
afirma Tandika Mkandawire (2005), a desilusão e o desencantamento dos anos 1970 e 80 e,
finalmente, nos dias de hoje uma situação que oscila entre o renascimento e a resignação.
Na verdade, o continente africano
“De 30 por cento nos anos sessenta, sua participação no comércio
mundial passou, hoje, a 2 por cento. Os problemas sociais continuam a
sacudir o continente com taxas de pobreza mais elevadas do mundo (os
30 países mais pobres do planeta estão situados em África) e graves
problemas de educação e de saúde (epidemia de AIDS) que emperram
toda estratégia de desenvolvimento dos recursos humanos” (BAZIKA &
NACIRI, 2010; 1).
Não obstante o fluxo de ajuda ao desenvolvimento, a situação econômica e social dos
países africanos globalmente deteriorou. O que explicaria tal fato? A resposta a esta questão,
dada a sua complexidade, exige um nível de profundidade analítica que não constitui objeto da
minha reflexão. Igualmente, ela demanda uma abordagem holística, considerando a
multiplicidade de fatores e variáveis envolvidos, e uma postura ética no sentido de evitar, por um
lado, juízos de valor e, por outro, a imputação de responsabilidades a ‘outros’, ilibando o ‘nós’.
Rapidamente, contudo, gostaria, a partir do locus a partir do qual que decidi colocar-me,
de inventariar, de uma forma esquemática e telegráfica, alguns elementos importantes para o
entendimento da crise do desenvolvimento do continente africano e da cooperação para o
desenvolvimento.
Em primeiro lugar, deve-se apontar o fato de que, na maior parte dos países, o quadro
institucional se tem revelado inadequado, com uma estrutura governamental decalcada de
modelos ocidentais, sofrendo, via de regra, de macro-encefalia. Em segundo lugar, o modelo de
democracia liberal assumido e implementado tem produzido realidades democráticas, no
mínimo, sui generis, com uma débil diferenciação entre o estado e a sociedade civil. A realização
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efetiva de um novo ator social, o cidadão, encontra limitações várias. Em terceiro lugar, e em
decorrência dos fatores atrás referidos, constata-se, em muitos casos, o não respeito dos direitos
humanos e problemas de governança, com o aumento/institucionalização da corrupção, a
instabilidade política e, por vezes, a emergência de uma economia de renda ou de uma burguesa
de compradores (PESTANA, 2005; SANTOS, 2005).
É verdade que a partir dos anos 90 do século passado, no âmbito do processo de
aprofundamento das reformas econômicas que se iniciaram com os programas de ajustamento
estrutural nos anos oitenta, com a mudança de sistemas e regimes políticos um pouco por todo o
continente, e do crescimento das condicionalidades ligadas às ajudas financeiras internacionais
(primeiro, a good governance das instituições de Bretton Woods e, mais recentemente, a
accountability), reformas institucionais e políticas tiveram lugar com resultados, contudo,
mitigados.
Embora nos pareça que o desenvolvimento econômico tenha uma forte correlação com a
qualidade do quadro institucional de um país, muitas reformas assumidas pelos estados
africanos tiveram como objetivo essencial:
“(…) Dar uma certa imagem ao exterior em termos de estabilidade
econômica e política mais do que empreender reais transformações.
Quando, na verdade, “ o arranque do desenvolvimento econômico e
social em África deve ao contrário ser um processo endógeno pois o
desenvolvimento apenas pode vir do interior.” (BAZIKA & NACIRI, 2010).
É precisamente esta dimensão e esta necessidade de reformas e de definição das
prioridades de desenvolvimento serem sentidas, assumidas, definidas e implementadas
endogenamente que não têm sido adequadamente apreendidas por todos os atores
intervenientes.
Na primeira década do século XXI, tem-se vivido um ambiente econômico e político
internacional caracterizado pelo declínio da ajuda pública ao desenvolvimento, bem como a
redução e o processo de exclusão do tratamento diferencial de que dispunham os países do sul,
nomeadamente através da imposição dos dispositivos do livre-comércio da Organização Mundial
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do Comércio e dos Acordos de Parceria Econômica com a União Europeia no âmbito dos Acordos
de Cotonou.
Neste contexto, a necessidade de profundas reformas é tão mais necessária quando se
vive um contexto mundial de crise financeira e de crises políticas e societárias profundas nos
países do Magrebe árabe e do médio oriente, cujos contornos e dimensões não são ainda claros e
cujo impacto na economia política africana começa a visualizar-se, mas de extensão e duração
desconhecidas.
Parece evidente que as reformas empreendidas e patrocinadas pelas Instituições de
Bretton Woods falharam, de entre outras razões, pelo seu caráter exógeno. O desconhecimento
das dinâmicas de funcionamento dos Estados e das sociedades africanas e sua relação com o
desenvolvimento explicam, em parte, tal fato.
Ao analisar uma situação em concreto em que o comportamento das pessoas,
aparentemente, conflitavam com o sistema legal formal, Appyah sublinhou, para o caso ganês,
mas extensível aos demais estados africanos, que
“o sistema legal era o de Gana, o sistema de um Estado nacional póscolonial independente. Mas, era, em essência, o sistema colonial, com
suas normas impostas pelos britânicos” (2010:26).
Quer o filósofo ganês mostrar que todo o ordenamento jurídico-político dos estados póscoloniais é um decalque dos modelos das antigas potenciais colonizadoras estando, não raras
vezes, numa profunda dissonância com a formação social da qual deveriam emergir. Antes, estas
formações sociais são erigidas como meros epifenômenos.
Neste contexto, pensar o desenvolvimento do continente africano, par le bas, como
sublinha Achile Mbembe (2000), e o lugar da cooperação para a sua concretização impõe, a meu
ver, a busca astuciosa de respostas para três questões/problemáticas que, de forma integrada,
poderão conduzir a políticas adequadas para os Estados Africanos. Estas questões são as
seguintes:
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Primo: Que Estado devemos ter e qual o seu papel como impulsionador do desenvolvimento? É
preciso, pois, refletir sobre a ideia do Estado minimalista sugerido pelo neoliberalismo. Nos
últimos anos, os países que conseguiram um desenvolvimento econômico robusto e sustentado e
com ganhos sociais evidentes, tal como o Brasil, o Estado, nas suas dimensões federal, estadual
e municipal, desempenharam e continuam desempenhando um papel fundamental.
Secundo: Que industrialização promover e que estratégias de industrialização? Esta questão é
por demais importante. Como diriam os nacionalistas e pan-africanistas dos primórdios dos
Estados Nacionais, a industrialização é um direito e uma condição para o desenvolvimento.
Contudo, já não se podem conceber estratégias de industrialização que possam significar a
destruição ambiental e o comprometimento das gerações futuras. Nesta mesma problemática se
deve pensar e equacionar toda a problemática da integração econômica africana, retomando as
propostas constantes da Nova Parceria Econômica para África (NEPAD).
Tertio: Considerando o endividamento dos Estados africanos, como assegurar, a um só tempo, a
independência e a autonomia para a formulação de políticas e estratégias de desenvolvimento
efetivamente endógenas, e a mobilização de recursos para a sua implementação.
Certamente, outras questões, não menos legítimas nem menos importantes, poderão ser
formuladas. Contudo, nos parece que as que foram arroladas permitem, estamos certos, recobrir
grande parte dos questionamentos que tal problemática poderá colocar.
Brasil e África: Que Cooperação para que Desenvolvimento?
A cooperação entre países resulta, do ponto de vista dos atores estatais, dos respectivos
interesses políticos e econômicos que são mutantes, acompanhando as inflexões que as relações
internacionais conhecem.
As políticas de cooperação resultam de uma confluência de fatores, nomeadamente os
interesses geoestratégicos, econômicos e os de natureza estritamente políticos. O peso relativo
de cada um desses fatores depende de contextos bem concretos e que mudam no tempo.
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Na última década, o Brasil tem acordado uma importância acrescida à cooperação para o
desenvolvimento e que se traduz no aumento do envelope financeiro destinado a esta atividade e
na relevância institucional do órgão encarregue de promover e gerir os dossiers de cooperação: a
ABC (Agência Brasileira de Cooperação).
A cooperação para o desenvolvimento brasileira concentra-se essencialmente na América
Latina e em África. De uma forma global, e segundo dados do IPEA, o volume anual de recursos
para a cooperação passou de cerca 485 milhões de reais em 2005 para aproximadamente 724
milhões em 2009, um crescimento de 49%.
Cooperação brasileira para o desenvolvimento: volume anual de recursos
segundo modalidade, 2005-09
Modalidade
de Em milhões de Reais apreços constantes de 2009
cooperação
2005
2006
2007
2008
2009
Assistência
1.4
6.5
35.7
31.1
87.0
67.2
63.4
74.0
44.4
39.0
40.0
61.5
97.7
607.0
501.2
479.1
495.1
719.9
640.5
645.9
724.4
humanitária
Bolsa de estudo 70.9
para estrangeiros
Cooperação
35.1
Técnica
Contribuições para 378.3
organismos
multilaterais
Total
485.8
Fonte: IPEA et al. (2010) Cabral, 2011
Na verdade, o grosso desse, somente cerca de 68,3%, destina-se às contribuições para os
organismos multilaterais de que o Brasil é Estado-Membro. Apenas cerca de 98 milhões de reais,
ou seja, 13,5%, destinam-se à Cooperação Técnica. De ressaltar que esses dados se referem à
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cooperação na sua globalidade e não apenas com a África, em relação ao qual não dispomos de
informações desagregadas.
Em todo o caso, cabe ainda ressaltar que a educação, particularmente o ensino superior e
o intercâmbio acadêmico, tem tido um relevo significativo nas estratégias e políticas de
cooperação do Brasil. Com efeito, do volume total de recursos alocados para o setor entre 20052009, 44,4 milhões de reais se destinaram ao financiamento de bolsas de estudo,
particularmente o PEC-PG, o que representa 6,1% do total do volume de recursos para a
cooperação.
O aumento do volume dos recursos destinados à cooperação está intimamente associado
ao crescimento econômico sustentado que o Brasil tem vindo a conhecer, permitindo que as
receitas públicas cresçam, aumentando a possibilidade de alocação de recursos em setores
como a política externa e a cooperação. Acrescem ainda as novas ambições políticas do Brasil no
quadro das relações internacionais, querendo aumentar a sua capacidade de influenciar as
decisões regionais e mundiais.
Um estudo do Banco Mundial e do IPEA sobra a cooperação Brasil-África afirma que
A África é a prioridade do governo brasileiro em termos de número e
valor de projetos internacionais. Em 2009, 50% dos projetos de
desenvolvimento internacional do Brasil, administrados pela ABC, eram
destinados a países africanos. Em 2010, o percentual aumentou para
quase 60%, totalizando mais de US$ 22 milhões. (Banco Mundial &
IPEA, sd.)
Centrando a análise na cooperação com o continente africano, e partindo do princípio de
que as relações de cooperação não constituem uma oferta de uma mão única, deve-se pensar e
analisar as relações entre o Brasil e os países africanos situando-as no seu contexto sociopolítico
e sua historicidade deve ser elucidada, condição sine qua non de sua adequada compreensão.
Ouve-se, amiúde, que o Brasil é o segundo país mais negro do mundo, sendo ultrapassado
apenas pela Nigéria e as religiões de matriz africana são mobilizadas, a um só tempo, para
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legitimar a dimensão negro-africana da cultura e identidade brasileiras e para justificar a
necessidade de uma maior e efetiva aproximação ao continente africano.
Aliás, não se deve esquecer que o primeiro Embaixador Negro, Raimundo Santiago
Dantas, foi acreditado no Ghana, então presidido por Kwane Nkrumah em meados dos anos
sessenta do século passado.
Na verdade, a partir da Política Externa Independente de Jânio Quadros em 1961 assistese a uma inflexão diplomática do Itamaraty num momento de forte e rápida descolonização das
então colónias inglesas e francesas de África, mas num momento em que a política colonial
portuguesa, com Oliveira Salazar e Marcelo Caetano, se torna mais inflexível com a emergência
de movimentos nacionalistas e independentistas e o reforçar da política do “orgulhosamente
sós”, de Lisboa.
Como sugere Luiza Reis (2010:142), referindo-se ao início de intercâmbio estudantil
entre o continente africano e o Brasil, de forma particular com a UFBA/ Centro de Estudos AfroOrientais,
O contexto dessa experiência no país tem relação com o auge dos processos de
descolonização observados no continente africano e com novos direcionamentos da
política externa brasileira, através da Política Externa Independente (1961) que,
apostando na África como novo espaço para negociações, previa ações para a
multilateralização da economia, buscando o fortalecimento das relações Sul-Sul.
Neste contexto, a aproximação cultural, via educação ou através da participação do
Brasil nos Festivais de Arte Negra organizados nos anos sessenta seja na Nigéria seja no Senegal,
serviria como catalisadora para alavancar uma cooperação de natureza econômica, essa sim, o
objetivo final da atividade diplomática.
Aliás, é comum encontrar-se nos discursos políticos e diplomáticos brasileiros e também
africanos, a asserção segundo a qual existem, como referido anteriormente, fortes afinidades
culturais entre o Brasil e o continente africano e que a potenciação das relações culturais pode
constituir um forte impulsionador das ações e relações político-diplomáticas.
O Embaixador José Vicente Pimental (2005:5) sublinha que
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Elemento essencial na formação econômica e na construção da
identidade nacional, as relações com o continente africano são
responsáveis por páginas expressivas da história de nossa diplomacia e
configuram ponto de apoio estratégico da inserção internacional do
Brasil.
Por sua vez, um estudo Banco Mundial e do IPEA (sd: 44), já mencionado, refere que
Dois discursos de solidariedade convergem para justificar a nova
reaproximação do Brasil com a África. O primeiro enfatiza as afinidades
culturais e históricas diretas com o povo negro do continente africano e
as transferências culturais. O segundo privilegia as afinidades étnicas e
culturais com os países lusófonos da África. As possibilidades criadas
pela comunidade linguística continuam sendo um aspecto específico da
política externa do Brasil para a África no século XXI, conforme
demonstra as iniciativas para ampliar a Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa, que prevê cooperação social e cultural com países
como Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e
Príncipe.
Se isso, como apontou Reis (2010), acontecia já desde meados dos anos sessenta, ela
tende a ganhar maior relevância e organicidade nos últimos anos. Com efeito, estas ações se têm
dado nos dois sentidos. No continente africano, junto às Embaixadas Brasileiras têm estado a
funcionar, em muitos países, com particular realce para os países africanos de Língua
Portuguesa, os Centros Culturais. Estes Centros, além de cursos, exposições e conferências,
organizam e promovem intercâmbios entre artistas dos países onde se encontram instalados e os
brasileiros. Na direção oposta tem vindo a aumentar a presença de artistas (músicos, atores e
artistas plásticos) e escritores africanos que viajam para o Brasil.
No entanto, dois são os eixos centrais de qualquer ação diplomática no domínio da
cooperação: o reforço dos laços políticos (concertação político-diplomática), ou seja, a
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mobilização de parcerias para a implementação das políticas internacionais do país cooperante e
o reforço das relações econômicas, financeiras e comerciais, seja para aumentar a exportação
seja para internacionalização das empresas.
No mais das vezes, esses eixos centrais, que constituem os fins da ação diplomática, são
discursivamente e eufemisticamente denominados ora de “ajuda ao desenvolvimento”, “parceria
especial”, ora, como no caso brasileiro, de “diplomacia solidária” que se expressa como aponta
Lídia Cabral da seguinte forma:
“A solidariedade entre povos, o respeito à soberania e a não
interferência nos assuntos internos dos países parceiros destacam-se
como
princípios
basilares
da
cooperação
brasileira,
sendo
frequentemente mencionados pelas entidades do governo envolvidas na
cooperação. Estes princípios decorrem das relações históricas entre os
países do designado Sul e invocam o legado do Movimento dos Países
Não Alinhados” (CABRAL, 2011:7), ainda que o Brasil prefira a
denominação “ diplomacia solidária”. (IPEA et al, 2010 apud CABRAL,
2011:8)
Esta designação, mais atual e politicamente correta, inscreve-se na denominada
cooperação Sul-Sul e que pretende e almeja ser uma cooperação horizontal. Esquece-se, no
entanto, que as relações Sul-Sul são também elas Norte-Sul, considerando o peso econômico e
político diferenciado dos atores em confronto.
Resultam, ainda, desse posicionamento político-discursivo, os princípios da abordagem
demand driven, ou seja, que a cooperação deve assentar-se na resposta às demandas dos
parceiros e que inclui ainda o princípio da não condicionalidade. Isto é, da não imposição de
condições na troca de prestação da ”assistência ao desenvolvimento”.
No entanto, o discurso da não condicionalidade não tem tido totalmente uma tradução
prática. Na verdade, se não existem condicionalidades políticas, significando que o Brasil
coopera com todos os regimes políticos, a cooperação brasileira impõe, nomeadamente, que a
assistência técnica (expertise), as tecnologias e os equipamentos a adquirir no âmbito dos
projetos de cooperação devem ser brasileiros. Isto é, a cooperação, mesmo quando não
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estritamente econômica e financeira, objetiva também impulsionar a exportação brasileira e a
internacionalização dos recursos humanos especializados.
Este posicionamento do Brasil é também uma prática rotineira no domínio global da
cooperação para o desenvolvimento não havendo, por conseguinte, nesta constatação qualquer
reprovação, mas, tão somente, mostrar que “na prática, o discurso diplomático é outro”.
Não interessa aqui fazer uma história das relações de cooperação entre o Brasil e os
países africanos. No entanto, parece fundamental assinalar que os anos 2000 marcam uma
importante inflexão na política externa brasileira em relação ao continente africano. Sem
descurar as relações privilegiadas com a América Latina e, de maneira particular, com o
continente sul-americano, o Governo Lula, desde o seu primeiro mandato, fez da África uma das
prioridades de sua política externa.
Tal opção política traduziu-se no fato do Brasil manter, neste momento, 37 Embaixadas
no continente africano contra 17 em 2002. De igual modo, a presença de embaixadas africanas
no Brasil conheceu um incremento passando de 16 para 33, representando a maior concentração
de embaixadas do Hemisfério Sul (cf. Banco Mundial & IPEA, sd: 19)
Em termos de visitas de Estado, o então presidente Lula fez um total de 28 visitas ao
continente africano nos seus dois mandatos, sendo um deles para protagonizar a Cimeira entre o
Brasil e os Países da CEDEAO (Comunidade Econômica dos Estados da África do Oeste) e que se
realizou na ilha do Sal, em Cabo Verde, em Julho de 2010.
Por sua vez, o Ministro Brasileiro de Relações Exteriores Celso Amorim realizou 67 visitas
recobrindo 31 dos 51 países que compõem o continente africano (Banco Mundial & IPEA, sd.).
Em contrapartida, o Brasil, no mesmo período receber a visita de 48 chefes de Estado e membros
de Governo de 28 países. (Banco Mundial & IPEA, sd.)
Esta relevância da África na diplomacia brasileira parece estar tendo continuidade, ainda
que menor intensidade, no Governo da Presidente Dilma Rousseff que, no primeiro ano do seu
mandato, fez uma visita à África do Sul, Moçambique e Angola, estando previstas novas
deslocações ao continente africano para este ano.
No nível da cooperação entre os governos, entre os atores estatais, a cooperação
brasileira recobre diversas áreas, sendo executada de forma descentralizada, com envolvimento
de instituições em nível dos Estados da Federação. De realçar, ademais, que, de forma crescente,
alguns estados têm vindo a encetar missões de aproximação ao continente africano, dinamizando
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e encabeçando missões empresariais. O Governo do Estado do Ceará, por exemplo, tem feito
várias missões a Cabo Verde bem como de representantes do setor empresarial, estando prevista
para breve uma nova missão empresarial que busca, por um lado, criar mecanismos que facilitem
a criação de uma linha marítima regular entre as cidades de Fortaleza e Praia e, por outro, a
criação de um hub de produtos industriais brasileiros que seriam reexportados para os países da
CEDEAO.
Retomando a reflexão sobre a cooperação entre os atores estatais, convém pensar sobre
os seus contornos e dimensões. O fato do Brasil e dos países africanos terem, no cenário
internacional, posições político-diplomáticas próximas, aliadas às aspirações do Brasil,
enquanto potência econômica e política emergente, de ter assento permanente no Conselho de
Segurança das Nações Unidas bem como um maior protagonismo em outras organizações
multilaterais, como as agências especializadas das Nações Unidas, o FMI e o Banco Mundial,
têm, sem dúvida alguma, estimulado as aproximações.
Aliás, a recente eleição do brasileiro José Graziano da Silva para o cargo de Diretor Geral
da FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations) mostra como uma plataforma
de cooperação com os países do Sul, particularmente os africanos, foi decisivo. Aliás, é também
na decorrência dessa parceria que, logo após a sua tomada de posse no cargo de Diretor Geral da
FAO, o governo brasileiro perdoou a dívida externa de alguns países da região do SAHEL em
África, transformando a dívida em recursos que devem ser utilizados no domínio da segurança
alimentar.
Ademais, a África tem tido uma forte centralidade nas políticas de Cooperação do Brasil
na última década, concentrando a grande parte dos projetos. Com efeito,
A África é atualmente a principal região destinatária de projetos de
cooperação técnica brasileira, tendo em 2010 representado 57% do
total da execução orçamental desta modalidade de cooperação (Cabral,
2011:21)
Como sublinha Lídia Cabral (2011:25)
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De acordo com informação do Ministério da Fazenda, foram já
perdoadas as dívidas de Cabo Verde, de Moçambique e da Nigéria, e
está em negociação o perdão/renegociação das dívidas da GuinéBissau, República do Congo, Senegal, Tanzânia e Zâmbia. O perdão ou
renegociação da dívida é uma condição para poder avançar com novos
empréstimos por parte das instituições bancárias brasileiras e há,
portanto, interesse, dadas as oportunidades de investimento que se
apresentam na África, em desbloquear a situação.
Grosso modo, a cooperação entre o Brasil e os países africanos concentram-se em cerca
de 3 setores-chave: educação, agricultura e segurança alimentar, e saúde. Outros setores podem
ser agregados nomeadamente o meio ambiente, a segurança, a administração pública e a
energia.
Gostaria, no entanto, de centrar a útima parte desta reflexão no domínio da educação. O
Brasil intervém no ensino superior e no ensino profissionalizante. No primeiro caso, dois
instrumentos importantes estão à disposição dos parceiros de cooperação do Brasil: O Programa
de Estudantes Convênio-Graduação (PEC-G), cujas bases foram estabelecidas num primeiro
protocolo em 1965, para ser alterado em 1967, tendo conhecido uma terceira mudança em
1973, precisamente para se coadunar com a nova política africana do Brasil; o Programa de
Estudantes Convênio Pós-Graduação (PEC-PG).
Segundo dados do Censo de 2010 do IBGE existiam no Brasil um total de 1.693
estudantes africanos, sendo 243 na Graduação e 1.630 na Pós-Graduação, o que indicia uma
forte concentração na formação avançada dos recursos humanos dos países africanos e que
resulta também do fato de, mais recentemente, a grande parte dos países africanos possuir
Universidades que garantem a formação no nível da graduação, apresentando, contudo,
carências em professores qualificados, pós-graduados.
Por outro lado, a aposta na Pós-graduação resulta da política e da necessidade de uma
maior diversificação dos estudantes estrangeiros nos Programas de Pós-Graduação e da
exigência de internacionalização das universidadesbrasileiras e desses programas.
Convém ainda referir a criação da Universidade de Integração da Lusofonia AfroBrasileira como um dos elementos dessa política de cooperação com o continente africano,
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considerando-se a sua institucionalização como nascendo “ nos princípios de cooperação
solidária”.
Aliás, uma informação institucional da UNILAB, refere, relativamente à sua criação, que:
Em parceria com outros países, principalmente africanos, a Unilab desenvolve
formas de crescimento econômico, político e social entre os estudantes,
formando cidadãos capazes de multiplicar o aprendizado.
Ainda no quadro da internacionalização das universidades brasileiras e seus programas
de pós-graduação, tem se vindo a registrar o apoio na implementação de programas de pósgraduação (mestrados e doutoramentos) em alguns países africanos, nomeadamente
Moçambique e Cabo Verde, através da mobilidade de docentes. Seria uma versão
internacionalizada do MINTER (Mestrado Interinstitucional) e do DINTER (Doutoramento
Interinstitucional).
No domínio da pesquisa, pode-se ressaltar dois programas que foram importantes para o
intercâmbio de pesquisadores e que têm vindo a permitir o estabelecimento de importantes redes
colaborativas entre pesquisadores africanos e brasileiros. São os programas Pro-África e CPLP,
ambos do CNPq. Não tendo o número de projetos financiados no âmbito desses dois programas, o
que interessa relevar é o seguinte: por um lado, assiste-se a um incremento na realização de
intercâmbios entre pesquisadores e instituições de pesquisa brasileiros e africanos e, por outro,
tem aumentado as pesquisas sobre o continente africano, permitindo um maior e melhor
conhecimento dos dois lados do autêntico.
Mais ainda, esses empreendimentos de pesquisa científica podem contribuir de forma
efetiva para a desconstrução de uma imagem de uma África homogênea, de um continente-país,
de guerras, doenças, e pouco mais. Poderiam, assim, contribuir para desmontar a “invenção da
África”, na acepção de Achile Mbembe (1988) .
Do outro lado do atlântico esse tipo de ações de cooperação permitirá, também, a
desconstrução de uma visão estereotipada de um Brasil das novelas, do futebol e do carnaval. É
verdade que os intercâmbios entre docentes, pesquisadores e estudantes não constituem uma
condição suficiente para a desmontagem de visões estereotipadas existentes dos dois lados do
Atlântico, no entanto, são, sem dúvida alguma, uma condição necessária.
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Sem pretender desvalorizar ou subvalorizar o bem fundado e o altruísmo das ações de
cooperação no domínio da educação e da ciência, deve-se, por um lado, ressaltar que existem
interesses dos atores/instituições que as promovem e executam e que, em algum momento e por
algumas circunstâncias, apresentam denominadores comuns.
O sector privado e a cooperação entre o Brasil e o Continente Africano
Não queria e nem poderia terminar a minha reflexão sem uma referência à cooperação
entre os atores não estatais. Na verdade, o objetivo mais importante da diplomacia,
particularmente da diplomacia econômica, é o estabelecimento de relações entre os sectores
privados dos países cooperantes no intuito de aumentar os fluxos comerciais e de capital.
Acompanhando a dinâmica da atividade diplomática, as trocas comerciais entre o Brasil
e continente africano, o fluxo de investimentos privados brasileiros em África e a presença de
empresas brasileiras no continente têm vindo a conhecer um forte incremento nos últimos anos.
Com efeito, depois de um período de retração econômica nos anos noventa do século transato,
resultante, nomeadamente, do impacto negativo das políticas de ajustamento estrutural,
definidas e monitoradas pelo Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, o continente
africano começou a ter uma curva ascendente em termos de crescimento econômico, o que tem
feito aumentar a demanda interna por investimentos, tanto públicos quanto privados. Neste
contexto, as economias africanas tornaram-se apetecíveis para os investidores externos. Aliás,
estimativas econômicas da Global Economic Prospects apontam para uma taxa de crescimento
do PIB de 4,7% para a África Subsaariana em 2010, projetando essa taxa para 5,3% em 2011 e
de 5,5% em 2012, superior ao 1,7% registrado em 2009.
O estudo do Banco Mundial e do IPEA (sd: 33), citando a Standard Bank (2010) já
referido, considera que
Sem abandonar seus parceiros tradicionais, a África vem abrindo suas
fronteiras para os novos mecanismos Sul-Sul emergentes. O comércio
dos países do BRIC original com a África aumentou quase dez vezes de
2000 e 2009, passando de US$ 16 bilhões para US$ 157 bilhões,
enquanto o comércio mundial apenas triplicou no mesmo período
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(passando de US$ 13,1 trilhões em 2000 para US$ 32,5 trilhões em
2008).
Acrescenta ainda o mesmo estudo que
Segundo a OCDE (2010b), os países em desenvolvimento — em
particular as economias emergentes do grupo do BRICS — vêm
aumentando
o
investimento
direito
na
África
Subsaariana,
principalmente em setores essenciais como mineração e infraestrutura,
apesar de percepção de que a África ainda representa um ambiente de
alto risco para os negócios. Esses investimentos contribuem para o
crescimento
econômico
mediante
a
criação
de
empregos,
aprimoramento da capacidade da mão-de-obra e acesso a novas
tecnologias. (BM&IPEA, sd: 33)
Informações veiculadas pela Folha de S. Paulo, citando a FIESP (Federação das
Indústrias do Estado de S. Paulo), afirmam que “A corrente de comércio entre África e Brasil deve
chegar a US$ 60 bilhões em seis anos, o triplo do que foi registrado em 2010 (US$ 20,6
bilhões)”, o que denota a dinâmica nas relações comerciais.
Empresas como a Odebrecht, a Petrobras, a Vale, a Andrade Gutierrez e a Camargo Corrêa
têm uma presença cada vez mais forte no continente. De acordo com o Itamaraty
(…) em 2010, 19% da receita anual da construtora Andrade Gutierrez
teve proveniência na África, superando a receita proveniente de outras
regiões onde a empresa opera fora do Brasil, como a América Latina e
Europa (MRE 2011).
Esta dinâmica do crescimento econômico em África, apesar da crise financeira mundial
que teve início em 2008, constitui uma tendência a perdurar a médio e longo prazo,
transformando, assim, o mercado africano apetecível e concorrencial para os investidores
privadores externos. Com efeito, os investimentos nas infraestruturas básicas, indispensáveis
para alavancar o crescimento econômico, demandam importantes investimentos, exigindo a
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mobilização de importantes envelopes financeiros. De outro lado, essas mesmas infraestruturas
constituem uma possibilidade para as empresas e serviços se instalarem no continente.
Todavia, e voltando à cooperação entre o Brasil e o continente africano no domínio
econômico e financeiro, impõe-se um aprofundamento do conhecimento mútuo e das
especificidades recíprocas para, mais facilmente, se poder chegar a uma plataforma
colaborativa.
Não se deve esquecer que, tradicionalmente, os países africanos têm o grosso de suas
relações econômicas, financeiras e comerciais com os países europeus, particularmente as
antigas potências colonizadoras. Contudo, cada vez mais, os países africanos têm procurado
diversificar e alargar seus parceiros de cooperação, devendo ressaltar-se os países árabes e,
mais recentemente, a China.
É, no quadro de um mundo globalizado e competitivo, que as relações econômicas e
comerciais entre o Brasil e África devem colocar-se, significando, antes de tudo, o
aprofundamento do conhecimento mútuo dos respectivos mercados e de se ultrapassar os
desconhecimentos e os preconceitos que, muitas vezes, bloqueiam as possibilidades de
colaboração.
De igual modo, impõe-se implementar medidas institucionais facilitadores do fluxo de
investimentos e das trocas comerciais, nomeadamente um quadro de proteção de investimentos,
a existência de linhas de financiamento às exportações e diminuição/eliminação das barreiras
alfandegárias e a resolução dos problemas de transportes. Basta dizer que, hoje, produtos
exportados do Brasil para Cabo Verde duram cerca de 55 dias quando o transporte poderia seria
possível em oito dias a partir de Fortaleza.
Parece, no entanto, que existem sinais que buscam contornar essa situação. O
Presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social existir uma orientação
política do Governo brasileiro para que o Banco que preside passe a priorizar o continente
africano, vale dizer os investimentos e o financiamento da exportação brasileira para a África.
Considerações finais
Em jeito de conclusão, poderíamos dizer que a cooperação, no sentido etimológico do
termo, impõe e exige uma relação de parceria e de troca entre sujeitos jurídica e politicamente
iguais, ainda que com interesses específicos diversos, nem sempre ou raramente explicitados.
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A condição de cooperação é o conhecimento mútuo. Significa que a mistificação do outro
obstaculiza qualquer possibilidade de estabelecimento de possibilidades de relações de
cooperação que pretendam ser sustentáveis.
As relações Brasil - África são antigas e remontam ao final da descolonização e à
emergência dos primeiros estados pós-coloniais, ainda que conhecendo oscilações. Com efeito, e
de forma equivocada, muitos consideram que o fato do Brasil ter contado, na sua formação, com
aportes de africanos constitui de per si a condição de realização de ações de cooperação.
È verdade que as afinidades ou as comunalidades culturais e identitárias podem facilitar
a compreensão e o entendimento. Contudo, não me parece evidente que seja uma condição
suficiente e nem que seja o caso nas relações entre o Brasil e o continente africano. Com efeito,
os atores das relações de cooperação têm sido, historicamente, da parte do Brasil, sujeitos que
pouca ou nenhuma identificação cultural com África possuem, a não ser na retórica discursiva. O
que significa que as relações de cooperação se baseiam e se fundamentam em objetivos
nacionais e/ou setoriais devidamente identificados sejam eles econômicos, militares,
geoestratégicos ou político-diplomáticos.
O grande problema é que os discursos tendem a sublimar as reais motivações da
cooperação, refugiando-se em eufemismos como “cooperação para o desenvolvimento”,
“cooperação solidária”, “ajuda pública ao desenvolvimento”, de entre outros. Retomando, uma
vez Marcel Mauss, todo o dar pressupõe e exige um receber e um retribuir. No domínio da
cooperação para o desenvolvimento não se dá de forma diversa. Quando tal acontece, ou, mesmo
antes disso, tem-se presente o que se quer de volta. Muitas vezes, aliás, a cooperação para o
desenvolvimento revelou ser cooperação para o subdesenvolvimento, uma vez que os fluxos de
ajuda eram bem menores que o pagamento, apenas, dos juros da dívida externa.
Deve-se, contudo, referir que na última década assiste-se a um aprofundamento das
relações de cooperação entre o Brasil e o continente Africano, nos dois sentidos, e que resulta do
lado brasileiro de uma nítida inflexão da política externa do Itamaraty reforçando as relações de
cooperação Sul-Sul e, do lado africano, da necessidade de diversificar os seus parceiros,
minimizando a dependência das antigas potências colonizadoras e com a União Europeia.
Essa inflexão tem-se traduzido não apenas num alargamento de áreas e domínios de
cooperação, do maior envolvimento dos atores estatais e não estatais, como também em termos
de qualidade e de seu aprofundamento.
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É verdade, contudo, que o nível de conhecimento das realidades brasileira e africana por
parte dos atores e dos cidadãos ainda permanece frágil, pouco sistêmico e sistematizado,
favorecendo ainda leituras e visões estereotipadas mútuas, o que nem sempre facilita o diálogo,
a confiança mútua e a cooperação.
O reforço da cooperação inter-universitária, o intercâmbio de docentes, pesquisadores e
estudantes, a exploração de linhas conjuntas de pesquisa, nomeadamente de pesquisa
comparativa, pode ser um bom começo para a inversão dessas tendências.
Aliás, o Conselho Nacional para o Desenvolvimento das Ciências Sociais em África
(CODESRIA) e a CLACSO, em parceria com a Associação de Estudos Asiáticos Políticos e
Internacionais (APISA), possuem um programa colaborativo de formação avançada e de pesquisa
comparativa e que visa precisamente reforçar a cooperação sul-sul no domínio da pesquisa em
ciências sociais.
Os Congressos Luso-afro-brasileiros de ciências sociais (CONLAB) também se inscrevem
nesta mesma linha e com a criação da Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas
em Língua Portuguesa pode-se - espera-se - dar um salto qualitativo nessas redes colaborativas.
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