A África tem história? Profª. Drª. Marina de Mello e Souza * A presença do homem na terra é dividida entre um período pré-histórico – no qual era mínima a elaboração da vida em sociedade, das linguagens simbólicas e da comunicação entre os homens – e um período histórico – no qual a organização social e as linguagens são mais complexas ou, de forma mais estrita, no qual o homem deixa registros escritos sobre sua existência. Apesar da oralidade ser um elemento importante na sua origem, pois as primeiras histórias a serem escritas registraram o que antes era apenas contado, a partir do movimento da Ilustração (final do século XVIII) passou-se a considerar a existência de registros escritos um fator indispensável para a reconstrução dos acontecimentos passados, ou seja, para se fazer história. É nesse contexto que alguns pensadores, como Hegel, declararam a África um continente desprovido de história, tomando a ausência de fontes escritas como indicador da inexistência de ação humana de caráter histórico, aproximando-a da natureza e afastando-a da cultura. Essa afirmação se inseria também num contexto ideológico, no qual as sociedades humanas eram vistas a partir de uma escala que partia de um estágio mais primitivo para outro mais civilizado (conforme uma concepção de história linear que ia das sociedades menos desenvolvidas para as mais desenvolvidas), sendo este percurso entendido através do aprimoramento técnico-científico alcançado pelo mundo europeu ocidental. Portanto, a indagação acerca da existência de história nas sociedades africanas deve ser entendida a partir do contexto ideológico no qual foi primeiro formulada. A concepção de África como um continente desprovido de história era coerente com a noção do que seria história em vigor no século XIX e parte do XX. Mas, ao longo deste, esta idéia foi modificada, não está mais a construção da história restrita às fontes escritas, aos eventos importantes e às personagens que estiveram à sua frente. A aproximação de outras disciplinas - como geografia, arqueologia, antropologia e lingüística – trouxe a possibilidade de incorporar novos métodos de pesquisa, tornando relativa a necessidade de fontes escritas. Resquícios materiais podem ser analisados com a ajuda da arqueologia; características culturais, pelas análises antropológicas e lingüísticas. Também a incorporação, ao campo da história, do interesse pelos acontecimentos da vida cotidiana e das pessoas comuns ajudou a derrubar as barreiras que separavam o conhecimento histórico das realidades africanas. Não só a história das pessoas comuns que viveram na África passou a ser considerada, mas também a dos grandes chefes, que mudaram o rumo das sociedades em que viveram. Portanto, a África tem história como qualquer outra parte da Terra que tenha abrigado seres humanos que viveram em grupos, desenvolveram formas de sociabilidade, expressões culturais particulares e passaram por processos de transformação ao longo do tempo – que são a matéria-prima da história. Continente com enorme diversidade interna, tanto geográfica quanto cultural, abrigou histórias ainda pouco conhecidas entre nós devido aos vários preconceitos que predominaram até muito recentemente. Séculos de tráfico de escravos africanos, regime de trabalho escravista e tratamento do negro como inferior, o que era fundamentado pelo pensamento teórico de então, deixaram as sociedades africanas à margem do conhecimento acerca da história da humanidade produzido a partir da Europa. Habitada por grupos caçadores e coletores (nem por isso desprovidos de história), por sociedades sem estado centralizado, por grupos organizados em federações de aldeias, em estados com graus variados de centralização, em impérios que congregavam diferentes estados, tem uma história muito rica e que em vários lugares e momentos se articulou de forma intensa com as histórias de povos de outros continentes. Hoje os historiadores sabem que a história da África tem enorme potencial para ser trabalhado, e não só devido à riqueza de temas e problemas a serem tratados como também devido às inovações metodológicas a ela relacionadas. Assim como sabem que mesmo dentro das sociedades africanas que desconheciam a escrita existiam, e existem, pessoas cuja principal função é armazenar e transmitir o conhecimento acumulado sobre o grupo. São profissionais da memória, fazem a crônica das chefias, contam os mitos, as genealogias, as migrações, contam aos mais jovens o que aconteceu aos mais velhos, aos antepassados, aos ancestrais. São muitas as formas de registrar e transmitir a história, e cada sociedade tem sua maneira e seus especialistas em manter vivo o passado no presente das pessoas. Assim, a sociedade ocidental, desenvolvida principalmente a partir da Europa, tem uma determinada maneira de organizar e contar o passado e as sociedades africanas convivem com outras formas de lidar com a história. Portanto, respondendo em uma breve frase, a África tem história (se numa imagem generalizante tomarmos em conjunto todos os povos que nela habitaram), e sua história se articula com a da humanidade e do conhecimento que o homem desenvolve sobre o mundo em que vive. A África é parte do planeta e os povos africanos parte da história da humanidade. Indicações de leitura: Hernandez, Leila Leite – A África na sala de aula. Visita à história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005. Lopes e Arnaut, Ana Mônica e Luiz – História da África. Uma introdução. Belo Horizonte: Crisálida, 2005. Oliver, Roland – A experiência africana. Da pré-história aos dias atuais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. Silva, Alberto da Costa e – A enxada e a lança. A África antes dos portugueses. Rio de Janeiro e São Paulo: Nova Fronteira e EDUSP, 1992. - A manilha e o libambo. A África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Fundação Biblioteca Nacional, 2002. - A história da África e sua importância para o Brasil, in Um rio chamado Atlântico. A África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Ed. UFRJ, 2003. Souza, Marina de Mello e – África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2006. * Departamento de História – FFLCH/USP