REVISTA ELETRÔNICA DE HISTÓRIA DO BRASIL http://www.rehb.ufjf.br ISSN 1519 - 5759 [email protected] Publicação Semestral Universidade Federal de Juiz de Fora Departamento de História Arquivo Histórico da UFJF Clio Edições Eletrônicas Juiz de Fora - MG - Brasil Revista Eletrônica de História do Brasil Volume 6 - Número 2 - Jul.- Dez. 2004 1. História do Brasil 2.Periódicos Eletrônicos: História UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA Reitor: Profa. Dra. Maria Margarida Martins Salomão Vice-Reitor: Prof. Paulo Ferreira Pinto Pró-Reitora de Pesquisa: Profa. Dra. Cláudia Maria Ribeiro Viscardi Revista Eletrônica de História do Brasil Editora Carla Maria Carvalho de Almeida Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL) Departamento de História Campus Universitário 36036-330 Juiz de Fora - MG Fone: (32) 3229-3109 Os direitos dos artigos publicados nesta edição são propriedade dos autores. Esta obra pode ser obtida gratuitamente no endereço web da revista, pode ser reproduzida eletronicamente ou impressa, desde que mantida sua integridade. Conselho Editorial Profa. Drª. Carla Maria Carvalho de Almeida (UFJF) ([email protected]) – Organizadora deste número Profa. Dra. Cláudia Maria das Graças Chaves (UFV) ([email protected]) – Organizadora deste número Profa. Dra. Cláudia Ribeiro Viscardi (UFJF) Prof. Galba R. Di Mambro (UFJF) Profa. Dra. Patrícia Falco Genovez Prof. Dr. Renato Pinto Venâncio (UFOP) Conselho Consultivo Adriano S. L. da Gama Cerqueira (UFOP) Américo Guichard Freire (CPDOC / UFRJ) Ângelo Carrara (UFJF) Beatriz Helena Domingues (UFJF) Carlos Fico (UFRJ) Douglas Cole Libby (UFMG) Jairo Queiróz Pacheco (UEL) Marcelo Carlos Gantos (UENF) Manolo Florentino (UFRJ) Maria de Fátima Silva Gouveia (UFF) Maria Leônia Chaves de Rezende (UFSJ) Helen Osório (UFRS) Rodrigo P. Sá Motta (UFMG) Valéria Marques Lobo (UFJF) Vera Lúcia Puga de Souza (UFU) William Summerhill (UCLA) Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: Departamento de História e Arquivo Histórico da UFJF, 2004, volume 6, número 2, juldez, 2004, 199 p., http:// www.rehb.ufjf.br. ISSN 1519-5759 1. História do Brasil 2. Periódicos Eletrônicos: História Webmaster & logo da REHB Márcio de Paiva Delgado SUMÁRIO Apresentação 05 DOSSIÊ: ESTUDOS DE HISTÓRIA ECONÔMICA E SOCIAL A Crise do Portugal dos Felipes e a restauração no Reino e no ultramar 08 Edval de Souza Barros A participação dos homens de negócio no mercado de bens urbanos do Rio de Janeiro na primeira metade do século XVIII Antonio Carlos Jucá de Sampaio Dinâmica produtiva em Minas Gerais: o sistema econômico em funcionamento no termo de Mariana (1750-1850) Carla Maria Carvalho de Almeida 43 58 O mercado colonial e as reformas ilustradas: as “vantagens comparativas” Cláudia Maria das Graças Chaves 92 Campanha da princesa: formação e expansão de uma vila no Império Marcos Ferreira de Andrade 104 Permutas matrimoniais: reflexões sobre o comportamento sócio-econômico de uma elite agrária 132 Mônica Ribeiro de Oliveira A presença camponesa em uma região agroexportadora no período escravista: Juiz de Fora (1870-1888) Sonia Maria de Souza 145 JOVENS PESQUISADORES O pequeno comércio e o perfil de seus agentes em Minas Gerais: Camargos (1718-1755) Flávio Rocha Puff 168 Produtores de alimento em uma economia agroexportadora: Os camponeses e suas estratégias de sobrevivência (1870-1888) Ana Paula Pereira Costa 186 APRESENTAÇÃO O atual volume reforça a iniciativa dos editores do número anterior, no sentido de tornar a revista uma publicação de dossiês temáticos. Nesta edição, todos os artigos refletem os principais desafios que se colocam hoje para a história econômica e social. Quase todos os autores que deram contribuições a este número são pesquisadores do Laboratório de História Econômica e Social (LAHES), grupo de pesquisa institucionalmente ligado à UFJF. O objetivo maior do LAHES é envolver professores e alunos de diversas universidades em um amplo debate sobre a possibilidade de se conjugar nos estudos de história econômica e social, metodologias já solidamente constituídas (quantificação e seriação), com outras mais verticalizadas e só mais recentemente incorporadas a esta área (micro-história, prosopografia, network analysis, por exemplo). A diversidade de temas e enfoques metodológicos dos textos aqui apresentados expressa tal orientação. Os artigos estão dispostos em ordem cronológica. Abre este número o artigo do Prof. Edval de Souza Barros que analisa A Crise do Portugal dos Filipes e a restauração no Reino e no Ultramar. Neste texto, tratando de uma temática à primeira vista clássica da história política, o autor cruza as fronteiras da história social na medida em que analisa a centralidade das negociações entre a monarquia e os setores sociais privilegiados e das redes clientelares para a definição da arquitetura dos poderes em Portugal. A partir do levantamento das escrituras públicas de compra e venda, o Prof. Antônio Carlos Jucá de Sampaio analisa no texto seguinte A participação dos homens de negócio no mercado de bens urbanos do Rio de Janeiro na primeira metade do século XVIII. Para o autor, a análise das características estruturais e das modificações conjunturais do mercado carioca de bens urbanos deve servir não somente para lançar luz sobre a natureza desse mercado, mas, sobretudo, para estabelecer um elemento a mais para a compreensão da sociedade fluminense de então. No artigo Dinâmica produtiva em Minas Gerais, a Profª. Carla Almeida parte das formulações teóricas propostas pelo investigador polonês Witold Kula para tentar estabelecer as características centrais do sistema econômico predominante nas Minas Gerais no período de 1750 a 1850. Nesse típico trabalho de história agrária, a autora transita por temáticas como: diversificação econômica, produção extensiva e hierarquia social excludente, utilizando como fonte os inventários post-mortem. No texto seguinte a Profª. Cláudia Chaves analisa as propostas de reformas administrativas e econômicas introduzidas por D. Rodrigo de Souza Coutinho na América Portuguesa. Lançando mão de memórias e relatos de época a autora se centra na discussão acerca das propostas compensatórias para a extinção do monopólio do sal. O trabalho conjuga a história do pensamento econômico com uma análise da prática política, na medida em que demonstra como os projetos de racionalização econômica e administrativa entravam na disputa de interesses coloniais na América Portuguesa. Em mais um trabalho típico de história agrária, o Prof. Marcos Ferreira de Andrade nos apresenta o artigo sobre a formação e a expansão do termo de Campanha da Princesa. Utilizando um diversificado conjunto de fontes (inventários post-mortem, listas nominativas, assentos paróquias, atas da câmara), o autor apresenta dados sobre as principais atividades econômicas, a estrutura social e demográfica este importante município do Sul de Minas na primeira metade do século XIX. Permutas matrimoniais: reflexões sobre o comportamento sócio-econômico de uma elite agrária, é o título do sexto artigo deste volume de autoria da Profª. Mônica Ribeiro de Oliveira. Neste artigo a autora conjuga metodologias da mais clássica história econômica com a noção de estratégias sociais tão cara à antropologia e à micro-história . Centrando sua atenção na Zona da Mata mineira no período de 1780 a 1870, analisa a atuação da elite econômica da região que tinha como mecanismos fundamentais para a manutenção do poder e do status de grandes proprietários, a constituição de redes de matrimônio, de compadrio e o sistema de herança. Fechando a primeira seção da revista, temos o texto da Profª. Sônia Souza, A presença camponesa em uma região agroexportadora no período escravista: Juiz de Fora (1870-1888). Utilizando como fontes principais os inventários post-mortem, as listas nominativas de população e as escrituras de compra e venda, o texto procura demonstrar a busca camponesa pela autonomia frente aos grandes fazendeiros locais. O artigo apresenta uma sólida análise teórica sobre o conceito de campesinato lançando mão tanto de autores clássicos, quanto de textos mais recentes que discutem essa questão. A noção de estratégia ao modo de Giovanni Levi perpassa todo o trabalho. Finalmente na seção Jovens Pesquisadores, os textos de Flávio da Rocha Puff e Ana Paula Pereira Costa, fecham a revista apresentando resultados empíricos interessantes das respectivas pesquisas de Iniciação Científica que os originaram. Flávio Puff, utilizando os registros de almotaçaria, coima e fianças, analisa o pequeno comércio e traça um perfil dos seus agentes em Minas Gerais na primeira Metade do século XVIII. Ana Paula Pereira analisa os camponeses da Zona da Mata Mineira no final do século XIX e suas estratégias de sobrevivência. A REHB mantêm a centralidade de seu compromisso com a divulgação de trabalhos científicos relativos à História do Brasil, produzidos em âmbito nacional e internacional, visando a difusão e a qualidade do ensino e da pesquisa histórica. Mantêm ainda seu compromisso com a divulgação de resultados de pesquisas empíricas realizadas por jovens investigadores. Carla Maria Carvalho de Almeida Cláudia Maria das Graças Chaves 8 A CRISE DO PORTUGAL DOS FELIPES E A RESTAURAÇÃO NO REINO E NO ULTRAMAR Edval de Souza Barros Resumo: Este artigo trata da crise política que culminou no fim do Portugal “agregado” à Monarquia Hispânica do ponto de vista das relações entre os agentes políticos e dos problemas que legou ao novo regime após 164, tanto no Reino, quanto no Ultramar. Ele faz parte de um trabalho mais amplo sobre o papel e o lugar do Conselho Ultramarino na arquitetura dos poderes do “Portugal bragancista” entre 1643 e 1661 e nas relações deste com as Conquistas Ultramarinas. Palavras-chave: 1. História de Portugal; 2. Monarquia Hispânica; 3. Conselho Ultramarino; 4. Política. Abstract: This article deals with the political crisis that led up to the end of the Spanish rule over Portugal in 1640. It focuses on the different political actors as well as on issues faced by the newly established regime in Portugal and in the overseas colonial territories in the aftermath of Spanish rule. It is part of a broader ongoing study on the political and institutional role of the Conselho Ultramarino (overseas board) in Portugal and in the overseas colonial territories between 1643 and 1661. Key words: 1. Portugal history; 2. Spanish monarchy; 3. Conselho Ultramarino; 4. Politics. 1. A dinâmica política do Portugal do último Filipe: a crise dos canais de comunicação no Reino1 Embora possa parecer uma observação de senso-comum, a crise do “Portugal dos Filipes” foi uma crise política, ou seja, decorreu das opções dos agentes detentores de poder e da dinâmica conflituosa que estas desencadearam. Ao afirmar este aparente senso comum, contudo, procuro enfatizar os problemas que a mesma legou ao novo regime em Portugal após a ruptura de 1o de Dezembro, sem perder de vista o quadro mais amplo no qual se desenvolveu. Para resumir a linha de argumentação, podemos reduzi-lo a dois aspectos, um, de ordem econômica e fiscal, e outro, de ordem propriamente política. Tradicionalmente, o segundo aspecto tem sido atrelado imediatamente ao primeiro, como seu desdobramento natural. Embora ambos tenham pesado nas opções à disposição do novo regime instalado em Lisboa a partir de 1641, cada um deles constitui na verdade uma dimensão distinta, embora inter-relacionadas, de um processo que assume seus traços mais característicos a partir de 1627. A primeira dimensão, que se traduziu na transferência da elite dos financistas portugueses para Madri, na esteira do fracasso da Companhia Portuguesa 1 Este artigo é constituído de partes do 1o e 2o capítulos de minha tese de doutorado, “Negócios de tanta importância”: o Conselho Ultramarino e a disputa pela condução da guerra no Atlântico e no Índico (1643-1661). Rio de Janeiro, PPGHIS/UFRJ, 2004. Gostaria de agradecer aos membros da banca de defesa, Maria Fernanda Bicalho, Maria de Fátima Gouvêa, Manuel Salgado Guimarães e Pedro Cardim pelas críticas e comentários. Gostaria de agradecer particularmente a Jacqueline Hermann, minha orientadora, por insistir na importância da “agregação” portuguesa à Monarquia Hispânica para a compreensão da política no período pós-restauração. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 9 das Índias Orientais, não será objeto de atenção deste trabalho2. Centrarei minha atenção na segunda, e menos valorizada dimensão, da crise do “Portugal dos Filipes” - o processo de solapamento do “Estatuto de Tomar” -, do ponto de vista dos canais de comunicação e das formas de representação entre as diferentes instancias de poder, primeiro no próprio reino, depois no ultramar. Apenas a partir desta abordagem torna-se possível inquirir o lugar e papel do Conselho Ultramarino na arquitetura dos poderes que constituíam o Portugal seiscentista, análise desenvolvida em outro trabalho3, já que tal crise, ao resultar na ascensão do duque de Bragança ao trono português e na irrupção da chamada “Guerra de Restauração”, conformou o leque de alternativas políticas e institucionais à disposição do novo regime. Entre 1628 e 1633, configura-se o período de viragem definitiva dentro do conjunto de equilíbrios e tensões estabelecido pelo Estatuto de Tomar. A partir da regência de D. Catarina, durante a menoridade de D. Sebastião, membros da fidalguia portuguesa4 viram-se cooptados pelos Habsburgos e tiveram importante papel nas negociações que por fim venceram as últimas resistências à aceitação institucional de Filipe II5 de Castela como rei de Portugal6. Verdadeiros “lobbys” familiares organizaram-se em torno de três linhagens aristocráticas com larga folha de serviços à Monarquia Hispânica desde o primeiro Filipe de Portugal, responsáveis pela coordenação das atividades que ligavam a corte habsburgo ao reino português através do 2 Em minha tese de doutorado desenvolvo ambos os aspectos, o econômico–fiscal e o político, e argumento mais extensamente em favor da periodização escolhida. Deixo de fazê-lo aqui apenas por limitações de espaço. Para os interessados, conferir a tese supracitada, pp. 13-47. 3 Cf. nota 1. 4 Ao longo do texto, o termo fidalguia será empregado como sinônimo da primeira nobreza do reino, ou aristocracia, a qual abarcava os descendentes de linhagens reconhecidas como tais, mesmo que não portadoras de títulos nobiliárquicos, e os “cabeças” de Casas tituladas (os Títulos) e seus parentes diretos. A pequena nobreza, cujo alcance torna-se cada vez mais amplo ao longo do século XVII, corresponderá aos que possuem graus de nobreza conferidos pela Coroa, como os inscritos na Casa Real e os que recebem brasão de armas, e que podem legá-la aos seus descendentes, mas não necessariamente aos que a reivindicam em função dos cargos ocupados a serviço do rei, como os desembargadores. Por sua vez, empregaremos o termo anódino de elites locais para referirmos aos que participam do governo camarário, auto-denominados “nobreza da terra”. Para as distinções em pauta, cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder Senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: HESPANHA, Antonio Manuel (Coord.) O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa, Editorial Estampa, 1992, pp. 333-338. 5 Por questões de conveniência, adotarei a nomenclatura castelhana para referir-me aos Habsburgos de Portugal. Portanto, Filipe II de Castela, ao invés de Filipe I de Portugal, e assim por diante, posto que me interessa particularmente as relações entre o reino lusitano e a Monarquia Hispânica, além de ser a convenção adotada pela historiografia internacional. 6 Como Bouza Álvares não nos deixa esquecer, o reconhecimento institucional via Cortes de Tomar, resultado daquelas negociações junto à aristocracia e demais grupos sócio-políticos portugueses, foi acompanhado pela invasão do Reino pelas tropas do duque de Alba, adicionando um elemento de violência que a partir daí condenou o Portugal dos Filipes a ser refém de representações contraditórias, as quais ora enfatizavam o caráter contratual e jurado da agregação à monarquia hispânica, ora apontavam para a dimensão de conquista que tornava os acordos de Tomar mera concessão graciosa do monarca, e portanto, revogáveis. Tais representações, por outro lado, eram elaboradas e difundidas sem respeito algum à naturalidade daqueles que o faziam. Para o caráter ambíguo dos acordos de Tomar, Cf. ÁLVARES, Fernando Bouza. Como se tivesse sido de fumo: Memória e juízo do Portugal dos Filipes ante a Restauração de 1640. In: Portugal no Tempo dos Filipes: política, cultura e representações (1580-1668). Lisboa, Edições Cosmos, 2000, pp. 187-200; Para uma análise dos arbítrios, memórias e tratados sobre a natureza da agregação portuguesa à monarquia hispânica, cf. SCHAUB, Jean-Frédéric. Discours su la crise politique portugaise. In: Le Portugal au Temps du ComteDuc D’Olivares (1621-1640). Madrid, Casa de Velázques, 2001, pp. 91-122. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 10 Conselho de Portugal e da representação vice-real (ou de juntas governativas)7. Apesar dos conflitos que se manifestaram ao final do reinado de Filipe II - agravados pela política de seu sucessor, Filipe III -, o reconhecimento por parte da monarquia e seu valido, o duque de Lerma, da necessidade de reconhecer e prestigiar aqueles grupos de interesse permitiu que as tensões fossem canalizadas pelos canais reconhecidamente legítimos de negociação ou absorvidas pelas redes clientelares que os mesmos controlavam em Portugal e Madri8. A ascensão, em 1621, do conde de Olivares (depois conde-duque), se num primeiro momento apontou para a manutenção, ou mesmo reforço, deste padrão de equilíbrio instável, mas operacional9, resultou, a médio prazo, no rompimento daquelas linhagens com um regime que terminou por estimular a multiplicação de pólos de comunicação e agenciamento, à revelia dos interesses das lideranças tradicionais10. Incapaz de atrair para sua órbita os mais influentes membros da elite política portuguesa em Madri, Olivares passou a recorrer aos Títulos residentes em Portugal, os quais identificaram nas dificuldades fiscais da Monarquia Hispânica uma oportunidade de se alçarem, e a suas famílias, ao seleto grupo que tradicionalmente dominava a política portuguesa desde Filipe II. Configura-se um quadro cada vez mais complexo, em meio aos esforços para reaver as rendas da Coroa ilegalmente apropriadas (responsabilidade da Junta da Fazenda) e garantir a arrecadação de recursos extraordinários, como os empréstimos forçados. O envio do marquês de Castelo7 Seriam eles: o grupo dos Borja-Aragão, cujo parentesco o conectava ao duque de Lerma, e que era liderado à época por Carlos Borja-Aragão, conde de Ficalho e duque de Villahermosa, Presidente do Conselho de Portugal; os “Silva maiores”, ao qual pertencia D. Diego da Silva e Mendoça, conde de Salinas e marquês de Alemquer, afastado do governo vice-real quando da ascensão de Olivares ao valimento; os “Silva menores”, ao qual pertenciam o 5o conde de Portalegre, D. Diogo da Silva, (nomeado para o governo de Portugal em 1623, e abandonando o mesmo em 1627), e D. Manrique, 1o marques de Gouveia; e a Casa dos marqueses de Castelo Rodrigo, pai e filho. O primeiro, D. Cristóvão de Moura, favorito de Filipe II e duas vezes vice-rei durante o reinado de Felipe III; o segundo, Manoel de Moura, desafeto de Lerma e, de início, aliado de Olivares. Cf. ÁLVARES, Fernando Bouza. Op. cit., pp. 202-203. Cf. tb. OLIVEIRA, Antonio. Poder e Oposição Política em Portugal no Período Filipino (1580-1640). Lisboa, Difel, 1990, pp. 139-140. 8 Sobre o valimento de Lerma e, em particular, os negócios portugueses, cf. FEROS, Antonio. Kingship and Favoritism in the Spain of Philip III, 1598-1621. Cambridge, Cambridge University Press, 2000, pp. 160-161; p. 217. Cf tb., BENIGNO, Francesco. La sombra del rey: Validos y lucha política en la España del siglo XVII. Madri, Alianza Editorial, 1994. 9 Tais medidas consistiram na conservação do Conselho de Portugal; na opção pela junta governativa como forma de ligação entre o poder régio e o reino português (que, em princípio, incorporaria um maior número de membros da fidalguia portuguesa ao centro político, permitindo contornar os conflitos oriundos da indicação de um natural do reino, ao invés da nomeação de um membro da família real, como acordado em Tomar); e na adoção de uma política de distribuição de mercês aos membros da alta aristocracia portuguesa (o conde de Portalegre é feito fidalgo da câmara do Rei e nomeado membro da junta governativa em 1623; Manoel de Moura, marquês de Castelo Rodrigo, recebe o título de grande). Ver: SCHAUB, Jean-Frédéric. Op. cit., pp. 139-140. 10 Sobre as modalidades de mediação institucional no âmbito do espaço político “imperial” da Monarquia Hispânica, Antonio Manuel Hespanha traça 3 modelos constitucionais de integração como soluções para representar junto das periferias as decisões políticas do centro: a) o Vice-reinal, com a qual se segue utilizando as mediações já existentes, como os conselhos, a administração periférica real e os senhores; b) O Comissarial, onde a comunicação se dá por meio de órgãos político-administrativos ad hoc (juntas) ou de “validos especializados”, que, por sua vez, tem no interior do reino sua própria rede de “criaturas” (em detrimento do poder dos grupos políticos mais poderosos); c) O Oligárquico, em que a monarquia procura uma ligação direta com as oligarquias locais (o grupo senhorial e as elites urbanas, principalmente a das grandes cidades), utilizando sua influência para, independentemente da administração formal (ou à sua custa), governar o reino. Cf. HESPANHA, Antonio Manuel. Revoltas e revoluções: a resistência das elites provinciais. Análise Social, vol. 28 (120), 1993, pp. 84-85. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 11 Rodrigo, em 1628, para negociar diretamente junto às câmaras do reino a implementação de tais medidas dá o sinal de alerta para os grupos governantes tradicionalmente incumbidos de desempenharem este papel11. A importância estratégica do apoio daqueles grupos e de suas “criaturas” nos Conselhos portugueses expressa-se de maneira taxativa pelo insucesso repetido da Junta da Fazenda e demais mecanismos “novos” de alcançarem seus objetivos. Sem o endosso do Desembargo do Paço e demais tribunais não é possível pôr ao serviço da máquina fiscal os corregedores e mais ministros, essenciais para, nas diferentes localidades do reino, viabilizarem as ações dos oficiais das juntas. De fato, estas ocupam espaços intersticiais no conjunto da constituição político-institucional, e apesar da autonomia que pretensamente gozam no papel, não dispõem de jurisdição sobre os oficiais régios12. As iniciativas fiscais, portanto, mais do que se acumularem uma sobre as outras, se alternam sem resultados palpáveis. O bloqueio político-institucional assim configurado entre 1628 e 1633 desemboca numa disputa selvagem pela oportunidade de assumir o papel de intermediário e agente de inovações fiscais. A corte em Madri vê-se inundada de arbítrios oferecidos por figuras de proa da aristocracia portuguesa, ávidas por explorar a incapacidade do valido de concretizar seu tão acalentado projeto de uma renda fixa que garantisse à Coroa, da parte do reino português, 500 mil cruzados anuais13. 11 Sobre D. Manuel de Moura, marquês de Castelo-Rodrigo, e a natureza de sua missão em Portugal, cf. ELLIOT, John . The Count-Duke of Olivares. The Statement in an Age of Decline. New Haven, Yale University Press, 1986, pp. 36, 311, 319; ÁLVARES, Fernando Bouza. A Nobreza portuguesa e a corte de Madrid. Nobres e luta política no Portugal de Olivares. In: Portugal no Tempo dos Filipes: política, cultura e representações (1580-1668), pp. 220-221; SCHAUB, Jean-Frédéric. Op. cit., p. 174. 12 Idem, pp. 153-160. 13 A partir de 1628, o jogo político reorganiza-se em torno de três grupos que disputam o poder: os Castros, os Ataídes e os Mascarenhas. O primeiro é representado pelo conde de Basto, D. Diogo de Castro, membro da primeira junta governativa nomeada por Olivares em 1621; o segundo, por D. Antonio de Ataíde, conde de Castro Daire, recém nomeado governador ao lado de Nuno de Mendonça, conde de Valdereis; o terceiro, por Jorge de Mascarenhas, conde de Castelo Novo (futuro marquês de Montalvão), homem de confiança de Olivares, já tendo ocupado a presidência da Companhia de Comércio, da Câmara de Lisboa, e da Junta da Fazenda. Cada um dos “cabeças” dos três bandos, por sua vez, era representado em Madri por seu respectivo filho: Miguel de Castro, filho de D. Diogo de Castro; D. Jerônimo de Ataíde, filho de D. Antonio de Ataíde, e Jerônimo de Mascarenhas, filho de D. Jorge de Mascarenhas, responsáveis – todos – pela apresentação de expedientes para a consecução da renda fixa de 500 mil cruzados. Em meio à confusão política que se seguiu à disputa pelo favor régio, Miguel de Castro denuncia os demais e recomenda a instituição de uma “junta de inspeção dos ministros do Reino”. Esta ocasião propicia uma aproximação entre os Castro e Diogo Soares, secretário de Estado do Conselho de Portugal, da qual resultou a nomeação do conde de Basto como vice-rei de Portugal com a promessa de um marquesado, enquanto Miguel de Castro recebeu a diocese de Viseu, os cargos de comissário da bula da cruzada e de reitor da universidade de Coimbra, e a nomeação para o Conselho de Portugal em Madri e para o Conselho de Estado em Lisboa. Lourenço Pires de Castro, outro filho do conde de Basto, foi nomeado presidente do Desembargo do Paço. Todas estas mercês em retribuição da promessa de implementar o programa de renda fixa e o desempenho das tenças. Por sua vez, D. Jorge de Mascarenhas perdeu todas as suas atribuições. Quando o novo vice-rei pediu para se retirar, o conde de Castelo Novo voltou à carga ”avec une impressionante batterie d’arbitrios financiers”. Em troca, exigiu – além de variadas mercês – a direção dos negócios portugueses. O veto da equipe formada por Olivares e Soares, que já haviam se resolvido pela princesa Margarida de Mântua, indispõe definitivamente os Mascarenhas contra o regime olivarista, passando D. Jorge a ser um inimigo feroz do grupo Soares. Ibidem, pp. 165-171. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 12 Ao mesmo tempo em que os Títulos procuram se apropriar do governo português e acumular mercês para si e seus parentes, personagens de escalão inferior, mas com experiência relativa aos trâmites e especificidades dos negócios portugueses, tornam-se peças chaves em meio à selva institucional gerada pela proliferação de mecanismos fiscais. A mais importante delas surge exatamente neste momento. Diogo Soares, ex-secretário do Conselho de Fazenda português, assessor do marquês de Castelo-Rodrigo durante sua permanência em Portugal, surge aos olhos de Olivares como o homem prático em condições de, com suas “inteligências”, contornar o bloqueio imposto pelos magistrados portugueses e reunir, em torno de si, os efetivos humanos capazes de finalmente concretizar o projeto de renda fixa14. Sua atuação não deixa de causar estragos de imediato: o conde de Villahermosa, presidente do Conselho de Portugal em Madri, vê-se questionado em sua afirmação de que a Coroa de Portugal não dispõe de rendas capazes de financiar o socorro de Pernambuco; por outro lado, o arbítrio de Soares, que sugere o empréstimo forçado de 500 mil cruzados entre as pessoas de maior cabedal, e a amortização em 20% do capital destinado ao pagamento dos juros, força a retirada intempestiva (e temporária) do conde de Basto, e sua substituição no governo do reino pelos condes de Castro Daire e de Valdereis, no mesmo momento em que se conjeturava a indicação de D. Carlos, irmão de Filipe IV, para o vice-reinado15. As disputas no interior da nobreza portuguesa tornavam as juntas governativas gargalos que estrangulavam as relações entre a Corte e Lisboa, pois estas mesmas juntas prestavam-se melhor aos interesses das facções de nobres locais, enquanto, como já mencionado, o Conselho de Portugal, caixa de ressonância dos interesses nobiliários, contrapunha-se às iniciativas de Olivares. O valido não tinha outro recurso senão afastá-lo cada vez mais das deliberações que afetavam na prática o reino lusitano, preferindo tratar os negócios portugueses em particular nos seus aposentos, onde se reunia com o secretário de Estado do Conselho de Portugal, Diogo Soares. O retorno ao governo vice-real, em 1633, traduzia-se numa tentativa de conter os atritos jurisdicionais entre diferentes modelos de representação e comunicação que emperravam a máquina do governo e dar empuxo à implementação do projeto de “renda fixa”, agora sob a 14 O projeto de “renda fixa”, cujo objetivo era obter para a Coroa, todos os anos, 500 mil cruzados, assumiu primeiro a forma da imposição da meia anata em 1631, à qual, três anos depois, se acrescentou a universalização do real d’água para o conjunto do reino (agora a título de imposto permanente e não de contribuição negociável e temporária) e a apropriação do quarto do cabeção das sisas para a amortização dos títulos da dívida. 15 O programa da renda fixa foi apresentado em 14 de junho de 1631; em 19 de Setembro, Diogo Soares foi nomeado para a Secretaria de Estado do Conselho de Portugal. Defendendo-se em 1643 das acusações que lhe são feitas de ser responsável por bombardear a Corte de arbítrios sobre exacções e impostos extraordinários, Soares lembrava que à época de sua chegada em Lisboa, o conde de Castelo Novo apresentara um projeto para estender o imposto do real d’água sobre o azeite, que antes dele o conde de Portalegre havia sugerido em 1626 a venda massiva de juros - que no seu entender liquidaria o patrimônio da Coroa -, e que iniciativas como a repressão ao contrabando, o imposto sobre o sal e as meias anatas haviam precedido sua chegada à Corte; Sobre Diogo Soares, ver: Jean SCHAUB, Frédéric. Ibidem, pp. 149-152; Cf. tb. ÁLVARES, Fernando Bouza. Op. cit., pp. 230-232 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 13 supervisão de Diogo Soares. Ao novo vice-rei, o conde de Basto, cabia convocar uma junta de representantes dos três Estados, a título de Cortes com finalidade exclusivamente tributária. Caso bem sucedida, esta nova forma de representação traduziria à perfeição as três linhas de força atuantes na conformação da “agregação” portuguesas à Monarquia Hispânica16. Entretanto, realizada a eleição dos deputados e iniciados os debates, prestou-se mais a mobilizar o descontentamento reinante, dando ensejo a boatos e rumores desconcertantes. A câmara de Lisboa, por sua vez, deixava clara sua oposição. Incapaz de garantir o consenso mesmo em âmbito tão reduzido, o conde de Basto se vê forçado a renunciar, aproveitando a oportunidade para postar-se como mais um afeito ao “partido popular”, como já fizera antes o conde de Portalegre em 162717. Assim, saldavam-se quatorze anos de tentativas por parte de Olivares de cooptar as Casas aristocráticas: a cada volta no parafuso, alijando novos segmentos da elite política, que ou se opunham à sua interferência nos assuntos portugueses, ou apresentavam-se como aliados, mas jogando alternadamente com a possibilidade de posicionar-se como membros do “partido popular” ou “parcialidade infecta”18, compensando o fracasso junto à corte em Madri com o prestígio junto ao Reino. Mas sem que estas divisões ao nível das representações impedissem a luta pela participação política nos limites da concepção “agregacionista” defendida pelos mesmos. O fracasso e defecção de D. Diogo de Castro, após o grande investimento feito por Olivares em torno de sua família, provavelmente convenceram o valido a abandonar a estratégia de cooptação seletiva tentada até então. A indicação da princesa Margarida de Mântua, que tinha por qualificação para tal tarefa apenas o parentesco com Filipe IV, seria a conseqüência natural do impasse a que chegara sua política em Portugal. Ao atender uma exigência dos portugueses em relação às Cortes de Tomar (a de um vice-rei com sangue real), Olivares procuraria compensar o fracasso das “Cortes reduzidas” e criar a legitimidade necessária para a continuidade do projeto de renda fixa. E, eventualmente, impedir a multiplicação de nódulos de 16 Segundo Hespanha, a quebra das antigas concepções sobre as formas de representação em Portugal, baseadas numa matriz “atomista”, em que nenhuma das partes do Reino pode se fazer representar por qualquer outra, se manifestava a partir de 3 linhas de força: a) a audição do Reino para fins tributários deve restringir-se ao universo dos que vão contribuir; b) o universo dos que contribuem – e, logo, que devem consentir – é um universo hierarquizado, dotado de uma cabeça, de membros e de outras extensões menores; à cabeça cumpre dar exemplo e fazer as diligencias e contactos com os membros; a estes representar (implicitamente) o resto do corpo; c) ao lado das Cortes, há outros órgãos que asseguram a participação/representação do reino e velam pela salvaguarda dos seus foros e jurisdições – os conselhos e os tribunais. Conferir: HESPANHA, Antonio Manuel. O Governo dos Áustrias e a o Modernização da Constituição Política Portuguesa. Penélope, n . 2, fev. 1989, p. 52. 17 Em meio às manifestações de descontentamento que grassaram em torno das “Corte reduzidas”, certos elementos da nobreza chegaram mesmo a defender os direitos do duque de Sabóia (não o de Bragança) ao trono de Portugal. Conferir OLIVEIRA, Antonio de. Op. cit., pp. 141-144. Cf. tb. Fernando Bouza Álvares, Op. cit., p. 227. 18 Para a definição de “populares” e “parcialidad infecta”, Cf. Conferir OLIVEIRA, Antonio de. Op. cit. p. 27; pp. 227-238; Cf. tb. ÁLVARES, Fernando Bouza. Op. cit. p. 226. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 14 insatisfação que as juntas governativas geravam, à medida que as famílias a que pertenciam os governadores e seus aliados, desavindos com Madri, optavam pela oposição. Por outro lado, sem maiores apoios em Madri, a princesa Margarida assumia o governo refém das criaturas que Olivares elevara ao poder e que não possuíam ligações com a nobreza do Reino. Pelas instruções secretas que recebera, via-se atrelada à figura do marquês de Puebla, primo de Olivares, ex-presidente do Conselho da Fazenda de Castela que caíra em desgraça. A comissão encarregada ao marquês, de compartilhar com a vice-rainha o conhecimento de todos os despachos do reino português, tornava-o um valido formal da mesma, mas ao qual faltavam os laços de amizade e confiança que constituíam a fonte de seu poder e prestígio. Em Madri, Diogo Soares incorporava funções da Secretaria de Fazenda do Conselho de Portugal, concentrando em suas mãos os principais canais de comunicação com a nova governação do reino, para profundo desagrado de Villahermosa e dos demais conselheiros. Duplicando a relação imposta por Olivares entre a vice-rainha e o marquês de Puebla, Diogo Soares conseguiu nomear seu cunhado, Manuel de Vasconcelos, para a Secretaria de Estado em Lisboa, responsável pelo despacho da correspondência entre Margarida de Mântua e o Conselho de Portugal19. A multiplicação de validos não poderia deixar de embaralhar por completo o jogo político português, não fosse pelo comportamento do marquês de Puebla, que enxergava a sua estadia em Lisboa como uma oportunidade de recuperar seu crédito e negociar seu retorno ao centro do poder em Madri. Sua atuação agressiva terminou por incompatibilizar o conde de Miranda, presidente do Conselho de Fazenda20. Enquanto o grupo Soares-Vasconcelos consolidava-se, apropriando-se de, ou dispensando de maneira agressiva, as mercês que garantiam sua base política em Portugal21, o marquês de Puebla confrontava-se com o fracasso na constituição de uma rede paralela que atendesse os interesses de Olivares22. A existência de dois pólos olivaristas em torno do novo governo vice-real, de arquitetura à saída demasiado complexa, teve exatamente o efeito oposto ao pretendido por Olivares, trazendo a disputa para um círculo ainda mais restrito, o próprio núcleo governativo em Portugal. Em finais de 1635, Madri era obrigada a reconhecer que a coexistência de dois canais paralelos de comunicação havia resultado na paralisação do governo vice-real, e a melhor “inteligência” dos negócios portugueses demonstrada 19 Cf. SCHAUB, Jean-Fréderic. Op. cit. pp. 176-183. O conde de Miranda era elemento-chave no esquema de financiamento das armadas e terminou por retirar-se ofendido com a constante interferência nos assuntos do Tribunal, sendo uma das principais, a nomeação de um cliente do marquês de Puebla, Francisco de Valcárcel, para o dito Conselho. Cf. Idem , pp. 190-191. 21 Ibidem, pp. 211-222. 22 Como ficou claro na disputa pela montagem dos consórcios para financiar o socorro de Pernambuco, em 1637 (um duro golpe para quem fora presidente do Conselho de Fazenda em Castela e acreditava poder mostrar sua eficiência particularmente neste âmbito), ao final vencida pelos que haviam preferido se associar a Francisco Leitão, homem de ligação de Diogo Soares junto às câmaras, o que o tornava suas ofertas mais credíveis aos negociantes da Praça de Lisboa. Ibidem, pp. 191-193. 20 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 15 pelo eixo Soares-Vasconcelos fez pender a balança a seu favor. Vendo frustradas suas pretensões de desempenhar o papel de valido “oficial” em Lisboa, Puebla opta por agir como seus predecessores nobiliárquicos e passa ele mesmo a postar-se como porta-voz das queixas “populares”. Ao seu redor, constitui-se um pequeno círculo de desafetos de Diogo Soares em Portugal, ao qual compareciam os condes de Castelo Novo e Atouguia, e Francisco de Lucena, secretário do Conselho de Estado em Lisboa 23. Olivares agora se via completamente dependente da equipe de Diogo Soares em Portugal, tanto para obter os atrasados das contribuições e empréstimos forçados até então lançados, quanto para levar a cabo a imposição da meia-anata, do aumento do quarto do cabeção das sisas e do real d’água, que constituíam o núcleo do projeto de “renda fixa”. Sem maiores compromissos com a nobreza portuguesa, mas atuando a partir dos mesmos referenciais pelas quais esta se pautava, seu sucesso apareceu aos olhos dos grupos aristocráticos que disputavam o controle da intermediação entre os interesses locais em Portugal e o centro da monarquia uma ameaça inédita ao seu poder, posto que, até então, as disputas davam-se exclusivamente entre as Casas e seus aliados nos tribunais e juntas ad hoc. Às facções anti-olivaristas em Madri e à parcialidade “popular” em Portugal não deve ter escapado que o poder do grupo Soares-Vasconcelos assentava-se sobre bases demasiado frágeis, por alicerçado apenas sobre o favor do Conde-Duque. Quando dos levantamentos de 1637-38, a omissão da nobreza patenteava seu descontentamento, mas não uma opção pelo confronto direto24. Quando este se deu, em 1638, no curso das acusações feitas por Cid de Almeida e pelo conde de Linhares25, seguiu caminhos institucionais que indicavam a aposta destas facções no recurso a instrumentos tradicionais de oposição. De fato, as representações equivalentes de “populares” e “parcialidad infecta” amalgamavam sob a mesma denominação constelações díspares de interesses que não atuavam de maneira concertada. Se a primeira interessava a membros da nobreza portuguesa como forma de evidenciar sua capacidade de influenciar amplos segmentos da alta magistratura e do oficialato letrado, das oligarquias concelhias e do clero, a segunda interessava tanto a Olivares quanto ao grupo Soares-Valadares. À Olivares, permitia encobrir os desacertos anteriores de sua política de cooptação em favor das necessidades do fisco. A Diogo Soares e Miguel de Vasconcelos, prestava-se a evidenciar sua importância aos olhos do valido como último ponto de apoio que possuía em Portugal, 23 Parece claro que o parentesco com Olivares e o descrédito que isto acarretaria em Madri, onde o conde-duque se via sob cerrada oposição dos Títulos desde 1632 pelo menos, lhe impedia de destituir Puebla, que continuaria em Portugal até 1640. Para a atuação política do marquês de Puebla, cf. Ibidem., pp. 194-200; Cf. tb. OLIVEIRA, Antonio de. Op. cit.pp. 149-155. Sobre a oposição nobiliárquica a Olivares em Castela e sua reação à prisão de Dom Fradique de Toledo, Cf. ELLIOT, John. Op. cit. pp. 477-480; Cf. tb: BENIGNO, Francesco. Op. cit. pp. 152-158. 24 Cf. OLIVEIRA, António. Op. cit. pp. 203-225. 25 Cf. ÁLVARES, Fernando Bouza. Op. cit. p. 233. Cf. tb. SCHAUB, Jean-Fréderic. Op. cit. pp. 202-211. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 16 representação aparentemente confirmada pelos eventos de 1637 e pela oposição cerrada que lhes fazia um espectro extremamente alargado de interesses. A defecção de Puebla, definitiva a partir de 1636, os levantes de 1637-1638 - indicando que a nobreza recusava-se a cumprir seu papel de intermediária junto ao povo em benefício de Madri -, e as denuncias lançadas contra o esquema Soares-Vasconcelos, radicalizaram as posições. Em 1624, Olivares havia apresentado a Filipe IV três estratégias para obter a anuência da elite política portuguesa. Até 1633, as ações de Olivares limitaram-se à primeira, que privilegiava a cooptação26. A partir de 1638, contudo, a segunda opção, a de impor a negociação a partir da intervenção armada, adquiriu cada vez mais adeptos, ao mesmo tempo em que arbítrios e memoriais apontavam para uma crítica acirrada do Estatuto de Tomar como um erro da monarquia, ou como uma concessão graciosa de Filipe II que não constrangia o poder régio ao seu cumprimento27. A imobilidade da nobreza lusitana abriu passagem para a mobilização de tropas castelhanas na fronteira do Alentejo e do Algarves, enquanto em Madri uma reforma do governo desmontava definitivamente Tomar, com a dissolução do Conselho de Portugal e a convocação daqueles identificados com a “parcialid infecta” para uma Junta Grande na qual se discutiria em novos termos a “agregação” de Portugal à Monarquia Hispânica28. De fato, a convocação prestava-se a coagir os opositores à política olivarista, dobrando sua resistência, com a prisão e isolamento dos mesmos dando lugar às acusações29. Em 1639, a lista de convocados presentes em Madri incluía na quase totalidade as personalidades mais atuantes e influentes na política portuguesa durante o valimento do conde-duque. Portugal via-se decapitado da sua elite política, criando um vácuo de poder que pretendia ser ocupado por Olivares e seus validos portugueses, seguros de que com a detenção dos convocados, o reino permaneceria imobilizado até serem concluídas as mudanças pretendidas. Neste ínterim, a ameaça de uma expedição naval francesa obrigava à mobilização militar em Portugal. Falto de legitimidade em circunstancia que demandava o apelo às armas e às câmaras, e sem a mediação dos Títulos e seus clientes e associados, Olivares tentou empregar o 26 A terceira, nunca posta em prática, era a ida de Filipe IV ao Reino para negociar pessoalmente a concessão de tributos e donativos. Cf. ÁLVARES, Fernando Bouza. Op. cit. p. 217. 27 Cf. ÁLVARES, Fernando Bouza. “Como se tivesse sido de fumo. Memória e juízo do Portugal dos Filipes ante a Restauração de 1640”, pp. 192-200. 28 Note-se que esta junta igualmente atentava contra o estabelecido em Tomar, posto que transferia a deliberação de assuntos referentes a Portugal para fora do Reino, cujo único foro legitimo de discussão era o Conselho de Portugal. De qualquer maneira, nem este poderia deliberar sobre o assunto, posto que as Cortes eram o único fórum reconhecido de discussão sobre questões referentes à “agregação”, parte da constituição política do Reino. Cf. Oliveira, Antonio de . Op. cit. pp. 232-240; Cf. tb. SCHAUB, Jean-Frédéric. Op. cit. pp. 230-233. 29 Cf. OLIVEIRA, Antonio de. Op. cit. pp. 233-240; Cf. tb. SCHAUB, Jean-Frédéric. Op. cit. pp. 230-232. Claro que havia espaço para negociações, mas que supunham o afastamento temporário do centro político, como no caso de Fernando de Mascarenhas e Jorge de Mascarenhas: o 1o, enviado para o Brasil juntamente com o conde de Atouguia, na o fracassada Armada de 1638; o 2 nomeado Vice-Rei do Brasil com o título de marquês de Montalvão em 1639. Cf. OLIVEIRA, Antonio de. Op. cit. pp. 236-238; SCHAUB, Jean-Frédéric. Op. cit. pp. 232-233; p. 235. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 17 prestígio da mais importante Casa de Portugal: a do Ducado de Bragança, que até então ficara à margem da política de facções dos últimos vinte anos, embora tivesse associados diretamente ligados à oposição que se fazia ao grupo Soares-Vasconcelos30. Desde antes da “agregação”, as estratégias de representação da Casa de Bragança apontavam para a construção de um espaço de relativa autonomia em relação à Coroa e de primazia frente aos demais poderes em Portugal. Mesmo a vitória de Filipe II na disputa pela Coroa com a duquesa D. Catarina não impediu que seus titulares continuassem perseguindo a concessão de privilégios e mercês que a reforçassem, além de privilegiarem os casamentos com os Grandes de Castela, quando as outras opções (com membros da Casa Real ou dentro de sua própria linhagem), não se apresentavam disponíveis ou não eram interessantes31. O próprio Olivares, seguindo o exemplo de seu antecessor, o duque de Lerma, dera grande atenção às negociações matrimoniais dos seus membros, não sem interesses pessoais32. Apesar do aparente isolamento dos Bragança, contudo, a crise de 1637-1638 não deixou de estimular rumores sobre a “preeminência” que estavam alcançando em Portugal e da “eventualidade de os Duques (sic) de Bragança se colocarem à frente do Reino”, o que não deixaria de contar com a aprovação das Províncias Unidas e da França33. Olivares pareceu não ter dado ouvidos a estes rumores, ou se deu, sua reação foi radicalmente distinta da que reservava aos demais Títulos, pois enquanto se dedicava a desmobilizar as facções nobiliárquicas que lhe faziam oposição, favoreceu as três Casas Ducais (Bragança, Aveiro e Caminha) com uma nova rodada de mercês34. O especial favorecimento concedido à Casa de Bragança apenas reforçou sua imagem, apesar da aparente passividade de D. João, característica que provavelmente mais atraía Olivares. A tentativa de associar o duque de Bragança ao governo crepuscular de Margarida de Mântua redundou em completo fracasso, tanto pela atuação do marquês de Puebla, associado ao mestre de campo geral das tropas 30 Como Francisco de Lucena, que fora secretário do Conselho de Portugal e participara da comissão, enviada em 1628, para negociar o pagamento de contribuições atrasadas junto às câmaras. Diretamente ligado à Casa de Bragança, Lucena perdeu definitivamente seu lugar de Secretário de Estado do Conselho de Portugal em 1631 para Diogo Soares; Nomeado como Secretário das Mercês do Conselho de Estado em Portugal, viu-se mais uma vez preterido quando da nomeação de Miguel de Vasconcelo, que substitui Filipe de Mesquita na Secretaria de Estado, passando a compor o círculo de insatisfeitos que se reuniu em torno do marquês de Puebla e que em 1637 constava, entre outros, do conde de Castelo Novo e do conde de Atouguia, Luís de Ataíde. Para as “criaturas” da Casa de Bragança em Madri, cf. ÁLVARE, Francisco Bouza. “A nobreza portuguesa e a corte de Madrid”, p. 223; para os cargos ocupados por Francisco de Lucena, ver: LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de. La Revolucion de 1640 en Portugal, sus fundamentos sociales y sus caracteres nacionales. El Consejo de Portugal: 1580-1640. Tese de Doutorado, inédita, Universidad Complutense de Madrid, 1988, pp. 580 e 592. Para a comissão atribuída a Lucena e sua posterior associação com Puebla, cf. SCHAUB, Jean-Frédéric. Op. cit. pp. 150-151; pp. 198-199. 31 Cf. SOARES, Mafalda. A Casa de Bragança, 1560-1640: práticas senhoriais e redes clientelares. Lisboa, Editorial Estampa, 2000, pp. 13-44. Para alguns exemplos de casamentos entre membros da Casa Ducal e Grandes de Castela, ver ÁLVARES, Fernando Bouza. Op. cit. pp. 219-220. 32 Além de participar das negociações para o casamento de D. João II de Bragança com D. Luiza de Guzmán (Gusmão), Olivares teria chegado a um acordo com D. Teodósio II, alguns anos antes, para casar o jovem D. Duarte de Bragança, irmão de D. João, com sua filha, D. Maria. Idem, p. 221. 33 Ibidem, pp. 216-217. 34 Cf. SCHAUB, Jean-Frédéric. Op. cit. p. 232. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 18 castelhanas em Portugal, interessados em torpedear a iniciativa de Soares-Vasconcelos, quanto pelo fato de D. João aceitar o comando com a condição de reportar-se apenas ao Conselho de Guerra em Madri, escapando assim ao controle dos dois secretários. A iniciativa serviu apenas para retirar D. João de Bragança de seu isolamento em Vila Viçosa, e dar-lhe uma visibilidade inédita, manifesta na recepção popular quando de sua viagem à Lisboa para presidir, com a vicerainha, uma reunião extraordinária do Conselho de Guerra, ao fim não realizada por questões de protocolo e pelo boicote de seus membros35. Além disso, o comando das tropas serviu para por o duque em contato direto com as lideranças locais responsáveis pelas levas que deveriam compor a força de defesa sob sua supervisão. O quadro que se afigura no início de 1640, portanto, é bastante complexo. Por um lado, do ponto de vista dos canais de comunicação entre os poderes periféricos e o centro – como definiria Antonio Manuel Hespanha – há um completo curto-circuito36. Em ondas sucessivas, Olivares alijara desde as famílias mais tradicionais até as que adquiriram maior preeminência política durante a década de 1620 e início da década de 1630. O núcleo olivarista do governo em Lisboa estava dividido entre duas facções que, sem condições de implementar qualquer linha de ação efetiva, ainda são capazes de se anular reciprocamente. O golpe político de Olivares37, ao retirar as principais lideranças do reino, apenas conseguiu desfazer qualquer esperança de saída negociada, levando a uma radicalização entre aqueles que passaram a atribuir a crise exclusivamente ao valido e seus representantes, e os que enxergavam a defesa de um Portugal “agregado” e não anexado à monarquia um erro de interpretação das reais intenções de Filipe II. Em Portugal, os remanescentes das facções atingidas por Olivares apenas agravavam a instabilidade, enquanto a crise política forçara os membros mais competentes da facção SoaresVasconcelos a retornarem a Madri para participarem das discussões sobre o futuro do Portugal “agregado”, privando-a de importantes redes de informação e controle. Entre 1638 e 1640, portanto, o Portugal de Tomar deixara de existir, mais nenhum outro surgira para substituí-lo. As possibilidades de resolução da crise, entretanto, permaneciam em aberto, exatamente porque a luta ainda girava, ao nível das representações, em torno das questões referentes a Tomar (o retorno à situação anterior à década de 1630 ou o seu abandono completo). 35 Cf. Cf. SCHAUB, Jean-Frédéric. pp. 235-239. Cf. HESPANHA, António Manuel. “Revoltas e revoluções: a resistência das elites provinciais”, pp. 81-88. 37 “on appellera coup d’État l’action qui decide quelque chose d’important pour le bien de l’Etat et du prince, l’acte extraordinaire auquel un gouvernment a recours pour ce qu’il conçoit être le salut de l’État: action décisive, extreme, violente, par laquelle non seulement le prince tranche et amène à une conclusion et à un résultat définitifs ce qui est en jeu dans une situation et un context particuliers, mais encore – et c’est là la valeur des qualificatifs “extraordinaire” ou “extreme”, - pose son acte aux “limites”de son pouvoir: d’où sa violence, qui introduit la question fondamentale de sa justification et de sa légitimé” na definição de Louis Marin, a partir de sua leitura da obra de NAUDÉ, Gabriel. Considerations politiques sur les Coups d’État .In: Pour une théorie baroque de l’action politique. Paris, Les Éditions de Paris, 1988, p. 19. 36 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 19 O caráter “inovador” ou “extraordinário” da política fiscal de Olivares, o bloqueio comercial imposto pela guerra e a presença de tropas castelhanas em Portugal eram medidas que, se capazes de gerar instabilidade, não parecem ser suficientes para explicar o levante de dezembro de 1640. Até 1638-39, a oposição se fazia não à “agregação” de Portugal à Monarquia Hispânica, mas sim à tentativa por parte de Olivares de contornar os grupos que se arrogavam o legítimo direito de intermediar as relações entre a Corte em Madri e o Reino, intermediação sobre a qual se fundava o equilíbrio estabelecido em Tomar38. As soluções encontradas por Olivares não eram consideradas por aquelas elites uma “ameaça” per si, desde que pudessem participar de sua elaboração e execução. As estratégias nobiliárquicas de acumulação e consolidação de poder e influência eram as mesmas para todos os participantes deste jogo, e as diferentes configurações em seu interior passíveis de ser absorvidas pelo sistema político, desde que o princípio geral – o monopólio da participação para os grupos aristocráticos e seus associados – fosse garantido ao conjunto de seus membros. Não é tanto a interferência de Olivares junto ao modelo institucional tradicional, nem a ameaça de relegar as Cortes a um papel secundário ou inexistente, que levaria a aristocracia portuguesa à oposição, como não levou a castelhana, submetida a uma pressão idêntica, se não maior 39. E sim a ameaça do seu alijamento, e o desrespeito ao princípio de que a aristocracia era responsável pela distribuição do fardo fiscal, mas a ele não devia ser submetida proporcionalmente. Isto seria solapar o pilar que sustentava as relações entre a nobreza e o Rei o da gratuidade das prestações e contra-prestações que informavam o sistema de mercês – e só poderia encontrar a mais resoluta oposição por parte de seus principais beneficiados40. Lembrando o caráter extremamente hierarquizado daquela sociedade, e deixando de lado a imagem de que a elite política portuguesa não encontrava correspondência por parte de Madri na distribuição de mercês e títulos, a pressão fiscal deve ser posta sobre o pano de fundo de uma configuração muito variada e desigual de poderes41 afetados e diversamente capazes de atuar na 38 “Na realidade, todo o Portugal dos Filipes estava assente num regime de boas obras para as elites do reino”; “Na sua gênese, e também no decurso do seu funcionamento prático, o Portugal dos Filipes só se tinha tornado possível graças à colaboração das suas elites nobiliárquicas”. Cf. ÁLVARES, Fernando Bouza. Op. cit. p. 218. 39 O que não excluía uma oposição política bastante explícita ao regime de Olivares pelos Grandes de Castela, de modo bastante semelhante ao comportamento nobiliárquico português. Cf. BENIGNO, Francesco. Op. cit. , pp. 152-158. 40 Porque seria transformar as relações de fidelidade e afeto, que geravam dons de natureza aberta à negociação, em uma fria relação fiscal - questionando o caráter não-retornável das mercês, uma das principais bases de sustentação, quando não a principal, da nobreza. Tal caráter, por sua vez, traduzia-se na noção de “mérito”, que distinguia a relação da fidalguia com a Coroa dos demais grupos sociais. Para uma análise do papel desta noção na construção das representações nobiliárquicas, Cf. SMITH, Jay M. The Culture of Merit: Nobility, Royal Service, and the Making of Absolute Monarchy in France, 1600-1789. Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1996, pp. 11-123. 41 Claro que, se ao nível das representações, tais sujeitos de poder podiam ser considerados equivalentes enquanto “personas” distintas, o poder de barganha de cada um deles em contextos específicos de interação e negociação não eram idênticos, o que permitia um leque muito amplo de soluções dentro de um mesmo campo semântico. Tal diversidade não deixava de ser compatível com os pressupostos da jurisprudência casuística que regulava essas interações e conformava aquelas representações. De contrário, seria supor uma a-historicidade que não corresponderia às transformações por que passam as relações políticas durante um arco de tempo demasiado longo que compreenderia o Baixo Medievo e a Idade Moderna. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 20 defesa de seus interesses. A partir de ramificações que se entrecruzavam ou se sobrepunham, a atuação particular de cada membro da elite política poderia significar para os poderes locais resultados bastante distintos quanto ao impacto de políticas fiscais homogeneamente distribuídas. O que implicava, para a manutenção de uma certa estabilidade, a alternância entre os membros desta mesma elite que permitisse evitar polarizações em detrimento de segmentos demasiado alargados no âmbito de incidência das demandas tributárias. O fracasso sucessivo das diferentes medidas fiscais e econômicas de Olivares deveu-se mais à incapacidade por parte dos esquemas políticos por ele elaborados de reunirem suficiente apoio em tempo hábil do ponto de vista das necessidades de Madri do que a um bloqueio concertado por interesses genericamente afetados. Não foi a alternância no poder entre as diferentes famílias e casas nobiliárquicas, mas a alternância demasiado rápida, a partir de 1621, que impediu o estabelecimento de rotinas compatíveis com o caráter “extraordinário” das instituições e formas de comunicação postas em prática até 1628. A partir de então, a tentativa de superar os lentos procedimentos de negociação que pressupunham a intermediação nobiliárquica resultou no recurso ao contato direto com os interesses que em princípio pertenciam à área exclusiva de atuação da aristocracia. Como resultado, esta se tornava cada vez mais insegura quanto ao seu papel, por incapaz de traduzir suas ofertas de arbítrios e serviços em resultados efetivos e, conseqüentemente, sofrendo o risco de perder a legitimidade auferida pela distribuição seletiva de proteção frente aos novos agentes comissariais que escapavam ao seu controle. Ao bloqueio que cada um dos membros da aristocracia alçados ao governo sofria dos interesses contrariados, restava a retirada e a oposição pública, passando a representar, na seqüência, os mesmos interesses que haviam anteriormente combatido. Esta contradição entre busca de legitimidade pela nomeação de elementos da nobreza para o governo e simultâneo recurso ao contato direto via juntas e comissões terminou no beco sem saída de um esquema praticamente limitado à segunda opção, e na proliferação de conflitos e facções que inicialmente se limitavam aos grupos com antigas e consolidadas conexões na Corte. Configurada a crise que desembocou no golpe de 1638, a elite nobiliárquica portuguesa se viu obrigada a apostar na possibilidade de por em xeque a política olivarista em sua própria defesa, na esperança de que o colapso das relações entre a Corte e o Reino forçassem a retomada dos canais costumeiros de negociação e a renovação das mercês e privilégios. O apelo ao Estatuto de Tomar, em meio ao debate que se seguiu a 1638, dá a entender que esta mesma elite não concebia nenhuma outra alternativa viável. Tanto como Olivares, deve ter sido tomada de surpresa pela iniciativa de um grupo de nobres da pequena nobreza aparentados ou ligados à Casa de Bragança que em fins de 1640, após a perda da Armada espanhola na costa da Inglaterra, e com a irrupção da revolta catalã, tentou um contra-golpe arriscado para transformar Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 21 um duque em rei. O apoio prestado pela primeira nobreza do reino remanescente em Portugal a ato político de proporções tão desmesuradas se deveu principalmente à esperança de que, como rei, D. João não passasse de um duque, e governasse através daqueles que se consideravam os legítimos governantes do reino42. Parte destes Títulos, contudo, se recusaram a aceitar o novo monarca, corroborando a tese de que não se tratava de uma questão “nacional”, passível de identificação com o conjunto da primeira nobreza do Reino: de fato, depois de três gerações, seus membros eram produtos da política habsburgo e se integravam às redes de poder da Monarquia Hispânica. Talvez não acreditassem na possibilidade de preservar sua preeminência frente a um rei presente, esperando que a crise da última década pudesse ser ainda contornada a seu favor. Com uma base de apoio bastante reduzida, sob observação de parte da nobreza e contestado por outra, que não lhe reconhecia como legítimo rei em nome da miragem de Tomar, sem que uma e outra fossem na verdade grupos estanques, visto estarem ligadas por relações de parentesco a serem forçosamente levadas em conta, D. João IV herdou tanto as contradições e soluções correspondentes geradas pela “agregação” de Portugal à Monarquia Hispânica, quanto os resultados da política de Olivares, principalmente a partir de 1627 (no que diz respeito aos negociantes) e 1633 (no tocante à nobreza). Seria com este legado que enfrentaria os desafios dos anos imediatamente seguintes. 2.O Contra-golpe bragancista e a constituição de um novo modelo político no Reino Os últimos meses de 1640 assistiram aos eventos que desembocaram no contra-golpe de 10 de Dezembro. Ter-se tratado de uma conjuração é um fato que não deve ser elidido por, ao fim, ser bem sucedida43. Poucos, àquela altura, imaginaram uma solução tão arriscada para as tensões bastante explícitas que medravam no eixo Madri-Lisboa. Quando Olivares concluiu que convocar seus opositores à Madri poria termo aos dilemas gerados pelo esquema dissonante de governo então vigente, a divergência em torno da “justiça” de suas decisões não implicou uma discordância quanto à adequação dos meios aos fins. O afastamento dos “cabeças” das facções aglutinadas sobre a denominação de “partido popular”, e a dissolução do Conselho de Portugal, 42 Sobre a origem dos fidalgos que participaram do golpe de Dezembro de 1640. Cf. VALLADARES, Rafael. La Rebelión de Portugal, 1640-1680: Guerra, Conflicto y Poderes en la Monarquia Hispanica. Madrid, Junta de Castilla y León, 1998., pp. 225-226. 43 Ao invés de adotar o termo conjurados, D. Luis de Meneses prefere o termo “confederados”. Cf. Conde da Ericeira. História de Portugal Restaurado. Porto, Livraria Civilização Editora, 1945 (ed. original, Lisboa, 1678-1689), vol. 1, pp. 113-119. Prefiro os termos conjurados e conjuração para explicitar o caráter político da ação de 1o de Dezembro, limitada a um pequeno número, fundada sobre o segredo, sob a égide de um príncipe e com o objetivo de alterar por meios extraordinários – violentos e/ou inesperados – uma certa forma de governo. Sobre o papel fundamental do segredo na definição do golpe de estado, cf. MARIN, Louis. Pour une théorie baroque de l’action politique. In: NAUDÉ, Gabriel. Considerations politiques sur les Coups d’État (1639), pp. 22-25. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 22 substituído por uma junta governativa mista que se esperava facilmente manipulável, visavam interromper a proliferação incontrolável de conflitos provocada pelas intervenções anteriores, e que desembocara na elaboração de um discurso cada vez mais polarizado entre os topoi das “liberdades do Reino” e da “tirania castelhana”44. Estas medidas, contudo, resultavam no abandono do Estatuto de Tomar e na redefinição unilateral dos princípios que regulariam, a partir de então, as relações entre Portugal e a Monarquia Hispânica. A ameaça que pairava sobre o “Portugal agregado” não parece, todavia, ser suficiente para explicar o sucesso – mesmo que a título precário – do contra-golpe de 1o de Dezembro de 1640. A não ser que se entenda o apoio que recebeu como o último recurso da parte de segmentos incapazes agora de encetar qualquer iniciativa concertada contra o unilateralismo hispânico. O pequeno número de envolvidos justifica-se, obviamente, pela necessidade de segredo própria a ações “extraordinárias” desta natureza. Mas que nesta conjura participassem basicamente pessoas do círculo de relações da Casa de Bragança e pequenos fidalgos sem maior expressão apenas reflete uma opção não-alinhada com os interesses daquelas facções45. Ao terem preferido manter-se ao lado de Filipe IV, os membros do “partido popular” e das mais prestigiosas famílias portuguesas responsáveis pela existência do “Portugal agregado” testemunhavam não só o caráter “radical” daquela iniciativa, mas também a estreita base de apoio com que contou no âmbito dos grupos nobiliárquicos para sua realização46. D. João de Bragança e os conjurados, portanto, apostavam suas fichas no impacto desnorteante causado pela sua iniciativa, obrigando aos que não participassem diretamente do golpe a rapidamente assumirem uma posição. Posto que a ação dos conjurados imobilizou rapidamente os principais mandatários do poder habsburgo em Portugal (o secretário de Estado, a vice-rainha, o mestre de campo geral das tropas castelhanas), não haveria outra alternativa para além da aceitação tácita do fato consumado, na falta de qualquer outro pólo efetivo de poder. A procissão que se seguiu imediatamente ao golpe pode ter visado mais à desmobilização do povo miúdo, sempre arriscado a fugir ao controle, do que à legitimação dos atos perpetrados. Mas a comoção popular que varreu Lisboa naquele dia só adquiriu relevância política na medida em que seus representantes institucionais foram convencidos a se postarem ao lado dos rebelados47. A 44 ÁLVARES, Fernando Bouza. “Como se tivesse sido de fumo. Memória e juízo do Portugal dos Filipes ante a Restauração de 1640”, pp. 193-201. 45 Consulte-se os nomes dos envolvidos na organização e realização do golpe de 1o de Dezembro citados por Ericeira. Entre os Títulos, menciona apenas o marquês de Ferreira, e os condes de Vimioso e da Atouguia (que recém herdara a Casa de seu pai, falecido). Ver Conde da Ericeira. Op. cit. pp. 119-122. 46 “(...) os quais [os populares] consideravam que a queda de Diogo Soares era suficiente para que Portugal retomasse a obediência ao seu rei”. Cf. ÁLVARES, Fernando Bouza. “A Nobreza portuguesa e a corte de Madrid. Nobres e luta política no Portugal de Olivares”, p. 238; para uma listagem dos Títulos e demais fidalgos que permaneceram fiéis aos Habsburgos, Cf. Idem, pp. 251-256. 47 Como no caso dos representantes dos misteres na Câmara, da Casa dos Vinte e Quatro e do Juiz do Povo de Lisboa, que na verdade acreditavam tratar-se de um movimento de muito maiores dimensões; o presidente (conde de Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 23 “cabeça” tendo tomado posição, o Reino seguiu-lhe - não sem alguma deliberação -, o alinhamento entre centro e periferia correndo por conta das oligarquias concelhias48. Apenas num segundo momento, a nobreza juntou-se à rebelião, reassumindo o papel de intermediária e condutora das negociações canalizadas pelas Cortes, imediatamente convocadas. O sucesso do golpe, portanto, parece ter assentado tanto no apoio de uma parcela da nobreza sem expressão política até então, e que poderia enxergar na iniciativa dos conjurados uma oportunidade de ampliar seu peso político e correspondente poder de barganha, quanto das oligarquias concelhias, imprescindíveis para a consolidação do novo regime e que nos últimos anos haviam permanecido à deriva em função da incapacidade de Lisboa e Madri concertarem canais de comunicação capazes de alinhá-las aos seus interesses. Aqui também, a ascensão de uma nova dinastia parecia-lhes como uma possibilidade inestimável de garantir posições vantajosas de negociação frente à nova corte, em nome de interesses por vezes muito localizados, e cuja representação as principais câmaras – as do “primeiro banco”, e, mais do que todas, a de Lisboa - haviam parcialmente monopolizado a partir do reinado de Filipe III49. Os relatos que se seguiram procuraram retratar sob uma ótica plena de implicações estamentais o papel que se acreditava cabia ao povo no desenrolar dos acontecimentos e, mais do que seu apoio, a intervenção divina que, esta sim, legitimava o levante contra um rei jurado em Cortes50. Uma narrativa posterior enfatizaria sem maiores rodeios que o Portugal dos Bragança se postava atrás da nobreza, pronta a demonstrar sua importância estratégica como intermediária entre o novo rei e as oligarquias camarárias sob seu controle ou influência51. Cantanhede) e os demais vereadores do Senado da Câmara de Lisboa, por sua vez, preferiram “cerrar as portas do Tribunal” até serem persuadidos por “seus filhos” a formarem procissão ao lado do Arcebispo. A mesma hesitação demonstraram os Desembargadores da Casa da Suplicação, Cf. Conde da Ericeira. Op. cit. p. 114; p. 124. 48 A chegada das cartas comunicando as novas da aclamação em Lisboa geralmente eram entregues aos vereadores das câmaras, os quais se reuniam a portas fechadas antes de comunicarem o ocorrido aos demais moradores. Mesmo quando tal não acontecia, e a notícia se difundia antes das câmaras tomarem alguma posição, a reunião era realizada a portas fechadas, e só após era realizada oficialmente a aclamação. Cf. VALLADARES, Rafael Valladares. Op. cit. p. 30. 49 HESPANHA, António Manuel. A Restauração Portuguesa nos Capítulos das Cortes de Lisboa de 1641. Penélope, nos 9/10, 1993, pp. 40-49. 50 Jean-Fréderic Schaub identifica três matrizes conjugadas nos relatos da Aclamação de D. João IV. A 1a remeteria à a ação eletiva da nobreza no ato da deposição e execução do “tirano” Miguel de Vasconcelos; a 2 , à revolta anti-fiscal na qual se inseriria a ação popular no linchamento do moribundo pós-defenestração; a 3a, à intervenção divina durante a procissão encabeçada pelo Arcebispo de Lisboa. Pode-se, contudo, reduzi-las, à luz do debate que se seguiu, ao binômio entre eleição e aclamação, posto que a participação popular nos mesmos relatos, como aponta o dito autor, devia restringir-se a um papel subordinado, expiando, pelos nobres, a violência, tanto atual quanto simbólica, do ato político cometido por estes últimos. Cf. SCHAUB, Jean-Fréderic. Le Premier Décembre 1640, Récit des Origines. In: Le Portugal au Temps du Comte-Duc D’Olivares (1621-1640), pp. 31-36. 51 “Acabado o acto das Cortes, ordenou El-Rei que em três conventos se juntassem divididos os Três Estados: em S. Domingos o eclesiástico; a Nobreza em Santo Elói; em S. Francisco os Procuradores dos Povos. Depois de Algumas conferencias, que de uma parte a outra se comunicavam, manejando os trinta da Nobreza, que sempre se costumam eleger, facilmente todas as materias, não havendo animo algum que não se achase disposto a obrar as maiores finezas”. Cf. Conde de Ericeira. Op. cit. p. 144. O negrito é meu. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 24 As Cortes de 1641, além de legitimarem do ponto de vista do Reino as ações de Dezembro de 164052, evidenciaram a grande capacidade de articulação da aristocracia frente às oligarquias concelhias, cujos interesses pulverizados dificultavam uma ação concertada53. Ambas, entretanto, traziam para a mesa de negociações as demandas não de um Portugal congelado em 1578, com a morte de D. Sebastião, mas de um que se espelhava em Tomar e que a partir dele reagia às iniciativas de Madri no que tocava aos diferentes corpos do Reino54. A boa vontade com que os três Estados responderam ao chamado dos conjurados e do duque de Bragança viabiliza, assim, a reabertura de canais de negociação tradicionais, sem que formas mais “modernas” pudessem ser descartadas. De fato, as Cortes de 1641 e 1642 aprovaram medidas que mais não fizeram que retomar a agenda herdada do Portugal “agregado” sob a direção do novo regime, pouco atentando para o ineditismo da situação em que se encontravam. Contudo, a guerra apontava para a manutenção de um certo conjunto de experiências acumuladas no período imediatamente anterior e que as Cortes se viram forçadas a reconhecer. Essas experiências incluíam tanto a manutenção de uma carga fiscal acrescida quanto de expedientes capazes de viabilizá-la. A criação da Junta dos Três Estados, separada do Conselho da Fazenda ou de qualquer instancia governativa, e respondendo apenas a El-Rei, punha ao serviço da nova dinastia as mesmas estratégias de intermediação que Olivares tentara até então implementar em Portugal, mas que desta vez contavam com a aceitação - votada em Cortes - dos grupos dirigentes. A alegação de que tal instrumento esvaziava a jurisdição dos Conselhos palatinos não se vez ouvir como era usual, indicando que o problema não era o caráter “inovador” ou “moderno” das instituições em tela, mas sim sua inserção legítima num espaço que estava longe de ser preenchido de maneira contínua55. A diferença, no caso, era que agora as “inovações” incorporavam os reais detentores do poder e garantiam às oligarquias concelhias 52 A convocação das Cortes foi o ato por excelência da confirmação por parte do Reino de seu apoio ao golpe de 1o de Dezembro. Como só um rei poderia convocar Cortes, o envio dos procuradores e a apresentação de petições por parte dos três Estados consumaram a aceitação de D. João IV como seu legitimo monarca, concluindo o processo político iniciado pelo juramento que a nobreza, clero e a cidade de Lisboa fizeram em 15 de Dezembro. Cf. CARDIM, Pedro. Cortes e Cultura Política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa, Edições Cosmos, 1998, p. 110. Cf. tb. Conde da Ericeira. Op. cit. pp. 137-138. 53 Segundo Hespanha, “à parte a preocupação com a guerra iminente – que é clara, sobretudo nos concelhos da raia (que compõem um terço do número de terras com assento em cortes) -, as pretensões dos povos visam, antes de mais, aumentar ou recuperar privilégios locais e resolver problemas comunitários, no plano de uma micro-política em que os problemas globais mal cabem”. Cf. HESPANHA, António Manuel. Op. cit.p. 50. 54 Cf. Idem, pp. 34-40. 55 O que não significou posteriormente o surgimento de críticas, “pois sem fazer desaparecer completamente a ficção de que os diversos corpos do reino davam o seu consentimento a novos tributos, a Junta dos Três Estados convertia-se num expediente mais agilizado para lidar com a problemática fiscal, sobretudo porque essa junta foi completamente controlada pela Coroa”. Cf. CARDIM, Pedro. Op. cit. pp. 102-103. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 25 maior margem de controle sobre as formas de distribuição do fardo fiscal56. A criação quase imediata de um Conselho de Guerra, por sua vez, não pareceu gerar maiores oposições. Mesmo contrariando a lógica clientelar reinante57, o conselho garantia que as disputas pelas nomeações se manteriam em patamares razoáveis - conservando o ideal de mérito que legitimava a concessão de mercês -, e que a fidalguia seria seu próprio árbitro. Ter por evidente que a guerra justificaria o acréscimo ao conjunto da polissinodia portuguesa de mais um tribunal, sem se perguntar porque até 1578 ele não fora necessário, apesar das freqüentes iniciativas portuguesas no norte da África e da convivência tensa com um vizinho tão poderoso como Castela, não ajuda a pensar a continuidade de práticas políticas entre o “Portugal agregado” e o que se propunha “Restaurado”. Por outro lado, as tarefas de coordenação atribuídas ao novo tribunal podem ser contrastadas com a resistência por parte das populações locais, organizadas em torno das ordenanças (um legado anterior a Tomar), a lutarem para além dos limites bastante limitados de seus concelhos, pulverizando espacialmente uma guerra que se queria “do Reino”58. Aqui, também, práticas políticas tradicionais eram conciliadas com inovações institucionais oriundas de uma tradição mais hispânica que propriamente “portuguesa”. A menção à Junta dos Três Estados e ao Conselho de Guerra não é feita ao acaso. O “Portugal Restaurado” traz para suas fronteiras uma guerra que até então se fazia longe, no Ultramar ou nos campos de Flandres e da Itália. D. João IV e seus seguidores vêm-se perante um dilema que operará ao longo de todo o conflito: como garantir a autonomia do reino sem gerar um tirano? Ou seja, como conciliar o discurso legitimista, em defesa dos privilégios e liberdades das “personas” e “repúblicas” que compõem o corpo político do Reino, com as necessidades prementes de financiamento de uma guerra de proporções inéditas? Olivares passara quase um quarto de século tentando obter a soma anual de 500.000 cruzados, sem qualquer sucesso perante a resistência de um Reino que se dizia exausto. Aclamado o novo rei, as despesas da guerra, rapidamente calculadas, atingiam proporções bem maiores. 56 No caso da Câmara de Lisboa, estipulava-se que “a cobrança e arrecadação della [da contribuição], se fará em cada freguezia, por um Fidalgo, um homem Nobre, outro de negócios, outro do Povo, official, os quaes a Camara nomeará, e um Clérigo nomeado pelo Prelado; havendo os Ecclesiásticos de entrar na mesma contribuição, como parece justo e inexcusavel”, Alvará sobre a cobrança do milhão e 800$000 cruzados para a guerra [Lisboa, 16/06/1641] In: ANDRADE E SILVA, José Justino de. Collecção Chronológica da Legislação Portuguesa. Lisboa, 1854. [daqui para frente, CCLP], vol. 6 (1641-1647), pp. 80-81 (o negrito é meu); para as demais câmaras do Reino – às quais se comunicava o Alvará supracitado, a título de exemplo – se recomendava proceder na cobrança “com todo o cuidado, igualdade, e fidelidade, que é necessario – e o dinheiro, assim como se cobrar, ireis remettendo à ordem dos Deputados do serviço destes Reinos, para se empregar no sustento da gente de guerra, a que está aplicado”, Carta Régia sobre a cobrança das contribuições de guerra [Lisboa, 26/06/1641], In: CCLP, vol. 6 (1641-1647), p. 89. 57 Para a prática dos Mestres de Campo nomearem seus parentes, clientes, ou criados como capitães e alferes, em detrimento tanto da disciplina militar, pela falta de castigo, quanto do mérito dos serviços prestados e da qualidade das pessoas que se dispunham a prestá-los, cf. COSTA, Fernando Dores. Formação da Força Militar durante a Guerra da Restauração. Penélope, no 24, 2001, p. 104. 58 COSTA, Fernando Dores. As forças sociais perante a guerra: as Cortes de 1645-46 e de 1653-54. Análise Social, no 161, 2002, pp. 1150-1160. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 26 Procurando angariar apoio da parte das “repúblicas” e do oficialato, tanto o real d’água quanto o aumento da quarta parte do cabeção das sisas e a meia-anata foram suspensos59. Os conjurados podem ter, de início, considerado que as rendas reais seriam suficientes para conter o primeiro avanço castelhano, enquanto tratados diplomáticos garantiriam a recuperação das alfândegas e os contratos para pagamento de tropas e aquisição de armas. Não havendo nenhum financista para aconselhá-los quando da concepção do golpe, estas expectativas rapidamente se demonstraram demasiado otimistas. Estipulados os efetivos necessários para garantir uma extensa fronteira, e abandonado (temporariamente) o sistema fiscal anterior, é à inovação, posto que negociada, que se recorre. Nas Cortes de 1641, o montante consentido pelos três estados atingiu 1.800.000 cruzados anuais, na esperança de que a guerra não fosse além de 1644. Alguns meses mais tarde, uma correção nos prognósticos elevava-o para 2.400.000 cruzados, já sobre a forma da “décima”60. Tal sangria fiscal escapou às expectativas mais otimistas do conde-duque. As tensões geradas por tamanha carga fiscal, contudo, não irrompem sobre a forma de levantes, mas pelos canais institucionais de costume61. Tendo recebido regimento definitivo apenas em 164662, a Junta dos Três Estados começa a funcionar já em 164163. A falta de um regimento não a impediu, entretanto, de distribuir uma rede de oficiais cuja intervenção ao nível local atualizava os mesmos conflitos de uma década antes. A perda da documentação referente a este órgão não permite saber como tais conflitos foram resolvidos, mas é possível que a dependência frente às elites locais gerasse da parte da Coroa respostas mais conciliadoras ou que adiassem tomadas de posição insatisfatórias64. Uma tal hipótese parece razoável, tendo em vista conflitos semelhantes entre o Conselho de Guerra e as elites locais em áreas limítrofes da 59 Cf. “Portaria sobre abolição de certos tributos” [Lisboa, 27/02/1641], In: CCLP, vol. 6 (1640-1647), p. 74. Cf “Alvará para lançamento e cobrança da décima e mais subsidios para a guerra [endereçado à Câmara de Lisboa]” [Lisboa, 05/09/1641]. In: CCLP, vol. 6 [1640-1647), pp. 100-102; “Carta da Camara de Lisboa às do Reino, sobre contribuições para a guerra” [Lisboa, 07/09/1641], idem, p. 103; “Alvará [de esclarecimento] para lançamento e cobrança das décimas” [Lisboa, 06/10/1641], ibidem, p. 107; “Alvará [de esclarecimento] para lançamento e cobrança das décimas” [Lisboa, 14/10/1641], ibidem, p. 109. Cf. tb. “Provisão do Arcebispo de Lisboa sobre a contribuição dos Eclesiásticos para a guerra & Instruções sobre o mesmo assunto” [Lisboa, 15/11/1641], ibidem, pp. 111-112. 61 Em Consulta do Conselho da Fazenda [sem data] sobre a cobrança das décimas, D. João IV considerava, em seu o despacho de 10 de Junho de 1642, que: “em muitas das cousas q nesta consulta se apontão, faltou ao Cons certa notiçia do estado dellas, & porq dezejo, e procuro a Conservação e defença de meus Rnos e Vassallos cõ a menor ro oppreção, e dispendio seu, q seja possivel, tendo por çerto, quando seja necess mais, contribuirão de boas vontades me pareçeo, por agora mandar assentar, e cobrar as Decimas na forma declarada no Alvará de q vay incluza a copia, e se ellas não bastarem se trattara dos outros meos que pareçerem mais suaves, e convenientes”. Cf. A.N.T.T./Ministério do Reino, Consultas do Conselho da Fazenda, livro 161, fls. 128-128v. 62 “Regimento das décimas” [Lisboa, 28/04/1646]. In: CCLP, vol. 6 (1640-1647), p. 472 incluso no “Regimento das décimas” [Lisboa, 09/05/1654]. In: CCLP, vol. 7 (1648-1656), pp. 302-311. 63 “Sobre a forma em q se ha de fazer a Receita e despa do dro q offerecerão a S. Mgde os tres Estados Eclesiástico, Povo, e nobreza [e] a cada hu dos gres se inviou este papel” [Lisboa, 06/03/1641], Decreto ao Conselho da Fazenda, A.N.T.T./Ministério do Reino, Consultas do Conselho da Fazenda, livro 161, fls. 195v-196. “Em hu papel dos deputados do serviço do Rno” [Lisboa, 27/04/1641], Idem, fl. 204v. “[Sobre] as Décimas” [Alcantara, 21/10/1641], ibidem, fl. 227v. 64 Dependência reforçada pelo dispositivo imposto pelas Cortes de que a décima valeria apenas por três anos, ao fim dos quais haveria de ser novamente votada pelos três Estados. 60 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 27 fiscalidade, como as requisições de víveres ou de cavalos para o exército65. Além disso, o recrutamento de oficiais ao nível local e a participação das oligarquias camarárias pode ter reduzido a tensão provocada pela distribuição das quotas fiscais pelo conjunto da população. A busca por legitimação da parte do novo regime também impôs a manutenção do status quo ante, preservando-se as nomeações e mercês concedidas pelos Filipes66. Algumas modificações apontavam, entretanto, para a necessidade de incorporar novos e velhos aliados, fosse pela reforma dos Tribunais, como no caso do Conselho da Fazenda67, a criação de outros, como o de Guerra, ou o reforço de alguns cargos, como o de secretário de Estado, entregue ao antigo servidor da Casa de Bragança, Francisco de Lucena, seis dias após o 1o de Dezembro68. Neste último caso, o poder de intermediação detido pelo secretário de Estado foi rapidamente reconhecido como uma ameaça à participação colegiada da fidalguia no governo. A queda de Lucena, tramada nas cortes de 164269, reafirmava, após a demonstração do poder régio na repressão à conspiração de 164170, a intenção da aristocracia de deter o controle sobre as principais iniciativas em detrimento dos assessores diretos de D. João IV que não pertenciam as suas fileiras. A reforma de 1643, que dividiu a Secretaria de Estado em duas, possivelmente respondia a pressões para se evitar tamanho acúmulo de poder nas mãos de um único indivíduo, diversificando os canais de comunicação junto ao rei. A Secretaria de Estado, contudo, continuaria detendo grande poder dadas suas atribuições quanto à política externa e seu papel de ligação entre os Conselhos e a pessoa real71. 65 Cf. COSTA, Fernando Dores. Op. cit. pp. 1160-1168 Cf. “Decreto sobre a confirmação de mercês feitas pelo Governo de Castela” [Lisboa, 10/01/1641] In: CCLP, vol. 6 (1640-1647), p. 13. 67 Cf. “Decreto pelo qual se reforma o Alvará de 20 de Novembro de 1591, para haver três Vedores da Fazenda” [Lisboa, 07/01/1641]. In: CCLP, vol. 6 (1640-1647), p. 13; De fato, apenas dois são nomeados: Dom Miguel de Almeida para a repartição da Índia e Contos; e Henrique Correa da Silva e Brito para a do Reino e África. Cf. “Decreto sobre as res a repartições que ha de ter cada hum dos V da Faz [Lisboa, 13/02/1641], in A.N.T.T./Ministério do Reino, Consultas do Conselho da Fazenda, Livro 161, fls. 196v-197; Um mês depois, a nomeação de apenas dois Vedores é prorrogada por todo o ano de 1641, mas com uma curiosa inversão nas atribuições: Dom Miguel de Almeida passa a ser responsável pela repartição do Reino e África e Henrique Correa da Silva pela da Índia e Contos. Cf. Decreto “sobre as repartições a que tocão aos vedores da Faz ” [Lisboa, 14/03/1641], Idem, fl. 197v. Apenas em 1642 a repartição das armadas é atribuída ao marques de Montalvão. Ver Decreto “sobre o Marques de Montalvão” [Lisboa, 12/02/1642], Ibidem, fl. 247. 68 A carta patente menciona ter sido feita a nomeação já no dia 6 de Dezembro de 1640. Cf. “Carta patente de nomeação de Francisco de Lucena para Secretário d’Estado” [Lisboa, 31/01/1641]. In: CCLP, vol. 6 (1640-1647), p. 73. 69 Cf. Conde da Ericeira, opus cit., vol. 1, p. 409. Cf. Também, MELO, D. Francisco Manuel de. Tácito Português. Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1995, pp. 159-174. 70 Organizada em torno do Arcebispo de Braga, D. Sebastião de Matos de Noronha, e incluindo o marquês de Villa-Real e seu filho, o conde de Caminha, o Inquisidor-Geral e o comerciante Pedro de Baeça, a conspiração foi descoberta e desbaratada. Embora sem maiores conseqüências, iniciou um período de suspeitas que se prolongaria por todo o reinado de D. João IV, e que atingiu diversos membros da fidalguia, como por exemplo D. Jorge de Mascarenhas, conde de Castelo Novo e marquês de Montalvão, e Matias de Albuquerque, posteriormente conde de Alegrete. Cf. Conde da Ericeira. Op. cit. vol. 1, pp. 296-322. 71 No caso em particular, pelo sucessor de Francisco de Lucena, Pedro Vieira da Silva, antes Procurador da Fazenda Real. Cf. “Alvará sobre a Divisão e organização de Secretarias de Estado” [Lisboa, 29/11/1643]. In: CCLP, vol. 6, (16401647), pp. 226-227. Referências a Pedro Vieira da Silva em MELO, D. Francisco Manuel de. Op. cit. p. 172. Sua indicação para Procurador da Fazenda Real em Decreto para o Conselho da Fazenda [Lisboa, 22/12/1640], A.N.T.T./Ministério do Reino, Consultas do Conselho da Fazenda, Livro 161, fl. 174. 66 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 28 A indicação de Lucena para a Secretaria de Estado manifestava uma tendência paralela da parte do poder real de angariar algum espaço de manobra frente aos interesses dos Títulos. Os laços pessoais e de fidelidade à Casa de Bragança informaram assim algumas nomeações, baseadas mais na proximidade ao novo rei do que ao poder ou prestígio dos favorecidos72. Constata-se, neste sentido, uma certa preferência pelo reduzido grupo que participou da conjuração, escolhidos para o governo dos exércitos de fronteira ou para as embaixadas73. De fato, as embaixadas e os governos de fronteira multiplicaram oportunidades de reconhecer e mobilizar os serviços tanto de letrados quanto de fidalgos. No caso dos comandos de fronteira, monopólio da fidalguia, a nomeação para o Exército do Alentejo garantia uma forma geralmente reconhecida de regular o jogo político na Corte, flexível o bastante para contemplar um número razoável de pretendentes em espaços de tempo relativamente curtos74, contrabalançando tanto as intrigas palacianas em torno das nomeações, quanto o descontentamento daqueles que permaneciam tempo “demasiado” longe da Corte, com custos políticos evidentes75. A construção das bases de sustentação do novo regime parece, portanto, recorrer a uma dupla estratégia. Por um lado, reconhecendo o poder dos Títulos e arbitrando as disputas que irrompem no seio da fidalguia pelos postos de comando na fronteira e pelas posições de precedência no Paço. Por outro, consolidando um círculo de servidores pessoais que sirva de contrapeso aos rumores e intrigas palacianas, por meio de seu conselho privado, e que possa catalisar a insatisfação dos Tribunais e Títulos, sem que a pessoa real seja por isso alvo de suas críticas. Ao contrário do período anterior, contudo, o recurso a diferentes pontos de apoio, como os antigos servidores da Casa de Bragança, alguns oficiais da Casa Real76 e letrados guindados por seus serviços ao secretariado ou aos Tribunais régios (sem falar do pequeno núcleo de fiéis 72 Um exemplo claro da importância destes laços pessoais é dado pela relação entre D. João IV e seu secretário pessoal Antonio Paes Viegas. Segundo D. Luis de Meneses, “Antonio Pais Viegas, antigo e fidelíssimo secretário da casa de Bragança, fiava El-Rei os maiores negócios, e porque era impedido da gota o mandava levar ao Paço em uma cadeira. Com entendimento e zelo aconselhava a El-Rei e lhe inculcava para os postos os sujeitos de maior capacidade”. Cf. Conde da Ericeira. Op. cit. p. 294. Cf. tb. MELO, D. Francisco Manuel de. Op. cit. p. 172. 73 Sem pretensão à exaustividade, dentre os que são mencionados por D. Luis de Meneses como participando do golpe de 1o de Dezembro foram nomeados, para o governo de Armas, D. Álvaro Abranches, Antonio Teles [da Silva] (nomeado Mestre de Campo General do Alentejo ao lado do conde de Vimioso, e depois Governador Geral do Brasil), D. Jerônimo de Ataíde (conde de Atouguia, posteriormente Governador Geral do Brasil), Fernão Teles de Meneses, D. Gastão Coutinho, D. João da Costa, João Saldanha de Souza, Manuel de Melo, Martim Afonso de Melo, e Rodrigo de Figueiredo. Para embaixadas, D. Antão de Almada (Inglaterra), Francisco de Melo, Monteiro-Mór (França), Tristão de Mendonça (Países Baixos). Tomé de Sousa, Vedor da Casa de D. João IV, é nomeado membro da Junta dos Três Estados. Cf. Conde da Ericeira. Op. cit. vols. 1 e 2, passim. Sobre Antonio Teles da Silva, cf. MELO, D. Francisco Manuel de. Op. cit. pp. 146-150. D. Miguel de Almeida, por sua vez, foi nomeado Vedor das Repartições do Reino do Conselho da Fazenda, cf. nota 67 acima. 74 A alta rotatividade dos Governadores de Armas durante a Guerra de Restauração fica bastante clara da leitura do “Portugal Restaurado”. 75 Sobre as implicações de uma nomeação para o Governo de Armas, cf. Fernando Dores Costa, “Formação da Força Militar durante a Guerra da Restauração”, pp. 108-109. 76 Como por exemplo, D. João Rodrigues de Sá, Conde de Penaguião, Camareiro-mór de D. João IV e um dos conjurados de 1640. Cf. Conde da Ericeira. Op. cit. p. 294. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 29 envolvidos no golpe de 1o de Dezembro), inviabiliza o monopólio de poder por parte de um favorito – que a nobreza parece ter identificado precocemente em Lucena – e pulveriza a oposição, tornando um rei frágil o árbitro final das decisões, nem que seja por aparente omissão. Assim, a instabilidade do regime Bragança, do ponto de vista interno, é compensada pelo retorno ao governo presencial, o qual torna possível remeter todas as disputas, em última análise, à pessoa real. De tal maneira que, a partir dos finais da década de 1640, D. João IV encontrava-se seguro o suficiente a ponto de ignorar os Conselhos – inclusive o Conselho de Estado -, e dispensar a convocação de Cortes para fins fiscais77. Embora outros fatores, contingentes, tenham gerado instabilidade para além dos primeiros anos, como a morte do Príncipe herdeiro, e a regência de D. Luisa de Gusmão. 3. A Restauração no Ultramar: as Conquistas confrontadas com o Portugal dos Bragança A “Restauração” encontrou na retomada de canais tidos por “tradicionais” de comunicação entre centro e periferia, e na afirmação do poder da aristocracia envolvida na disputa pelos cargos palatinos e de guerra, uma solução temporária, mas razoavelmente eficiente, para a instabilidade que marcou os seus primeiros anos. A guerra, tanto do ponto de vista econômico quanto político, amarrou os fios soltos do novelo desfiado por Olivares, permitindo à nova Casa real contornar os conflitos internos inerentes ao novo regime. Contudo, as disputas e soluções de compromisso que levaram à consolidação do poder de D. João de Bragança como rei de Portugal resultaram principalmente de questões restritas aos limites do Portugal continental. E quanto ao Ultramar? A análise dos capítulos gerais das Cortes de 1641 serve como introdução ao problema78. Os três Estados praticamente não trataram do Ultramar. Como já mencionado por António Manuel Hespanha, se algum interesse referente à “Restauração” é expresso, ele o é na medida em que se relaciona, ou com a preservação de uma monarquia “natural”, ou com as providencias relativas à guerra que se avizinha e à defesa do Reino79. Enquanto o Estado dos Povos – que poderia em princípio atender aos interesses ligados ao comércio atlântico – não se manifesta sobre o assunto, 77 Conferir PRESTAGE, Edgar. O Conselho de Estado de D. João IV & D. Luisa de Gusmão. Edição do Arquivo Histórico Português, 1919, pp. 9-10; p. 14. 78 Cf. “Capítulos Geraes apresentados a El-Rei Dom João IV, nas Côrtes celebradas em Lisboa com os tres Estados do Reino, em 28 de Janeiro de 1641 – Respostas dadas por El-Rei, em 12 de Setembro de 1642 – Replicas, Respostas, e Declarações dellas, em 1645”. In: CCLP, vol. 6 (1641-1647), pp. 26-61. Cabe observar que as respostas régias mencionadas acima são dadas aos capítulos de 1641 na seqüência de sua apresentação, sendo que as de 1642 e 1645 tratam apenas de alguns capítulos que a Coroa achou por bem reconsiderar ou reafirmar. Nestas últimas não se incluem os capítulos tratados. 79 HESPANHA, Antonio Manuel. Op. cit. pp. 34-37. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 30 o da Nobreza e o do Clero dedicam, respectivamente, apenas um capítulo ao problema80. A nobreza pede que o novo rei mande “tratar [as Conquistas] com o cuidado e remedio, que o estado dellas pede”. Para ela, trata-se de prosseguir e aumentar “o serviço de Deus, e bem commum das almas, com a glória e reputação” alcançadas pela “Nação Portuguesa em suas Conquistas”81. O clero, por sua vez, mistura no mesmo capítulo tanto “a conservação da Índia, e Conquistas deste Reino”, quanto a “segurança da costa delle”. A simultaneidade de referências acaba permitindo uma ênfase eminentemente “reinol” na proposta de “haver Galés e Armadas neste porto”, para cuja despesa se aplicariam os direitos do anil, do pescado e do consulado82. O Reino responsabiliza-se apenas pela sua defesa, não mais. Os 2.400.000 cruzados destinam-se apenas aos exércitos da fronteira e às fortificações necessárias. O custeio de uma armada capaz de proteger o litoral do Reino (e que efetivamente será constituída) correrá por impostos tradicionais, como o consulado e o pescado. Nenhuma sugestão é feita quanto à formação de uma força naval capaz de garantir os diferentes circuitos de navegação no Atlântico, ou ao envio de socorros para a Índia. A resposta que D. João IV dá a ambos os capítulos apenas reflete esta justaposição entre poder naval e prioridades defensivas. Ao responder ao capítulo do clero, o “rei” remete-se às que foram dadas anteriormente aos capítulos 5, 6, e 29 da nobreza. Os capítulos 5 e 6 (registrados juntos) tratam exclusivamente da Armada de alto bordo que deveria andar pelas costas do Reino, e cujo financiamento correria – exclusivamente – pelos direitos do consulado. Posto nestes termos, a Coroa aprova-o sem problemas83. Mas quanto ao capítulo 29, a resposta é tão evasiva quanto a lembrança é genérica: ao “rei” apenas pareceu “muito bem” o que lhe era lembrado, prometendo aplicar-lhe “todo o cuidado e poder que o Reino e tempo dér logar”84. Deve-se lembrar que enquanto as Cortes se reúnem e votam suas petições, a nova Casa real busca ansiosamente despachar embaixadas aos países do Norte85 e avisos às Conquistas 80 Tenha-se em conta que o estado dos povos apresentou 108 capítulos gerais, o da nobreza 36 e o do clero 20: um total de 164 capítulos gerais. 81 “Capítulo XXIX do estado da nobreza”. In: CCLP, vol. 6 (1640-1647), pp. 50-51. 82 “Capítulo XVII do estado do clero” . In: CCLP, vol. 6 (1640-1647), p. 56. O negrito é meu. 83 “Capítulos V e VI do estado da nobreza” . In: CCLP, vol. 6 (1640-1647), p. 45. 84 “Capítulo XXIX do estado da nobreza” . In: CCLP, vol. 6 (1640-1647), pp. 50-51. O negrito é meu. 85 “Tenho nomeado pa hirem por secretros das embaixadas que envio a França, a Chrvão Soares de Abreu, a Inglaterra [fl. 175] a Anto de Souza de Maçedo, e a Olanda a Anto de Souza de Tavares, e hey por bem q a cada hu delles, haja ajuda de custo, por esta ves, para se embarcar duzentos mil rs, e de ordenado cada mez emqto durar a embaixada, çincoenta mil rs (...)”. Decreto para o Conselho da Fazenda “Sobre Embaixadores” [Lisboa, 27/12/1640], A. N.T.T./Ministério do ro co Reino, Livro 161, fls. 174v-175. “Tenho nomeado para hirem por meus embaixadores à França o Mont mor Fran de Mello, a Inglaterra, Dom Antão de Almada, e a Olanda Tristão de Mendonça, e hey por bem q cada hum delles haja de custo desta vez pa se aprestar, tres mil cruzados, e de ordenados em qto durar a embaxada quinhentos ttzdos [fl. 175v] cada mez (...)”, Decreto para o Conselho da Fazenda “Sobre Embaixadores” [Lisboa, 27/12/1640], Idem, fls. 175-175v. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 31 Ultramarinas, e especialmente à Índia86 - percebendo-se, por trás desta ultima iniciativa, a tentativa de cooptar em Lisboa os interesses dos homens de negócio que “tratão na Índia” e enviar algum socorro militar87. À grande esperança de uma cessação imediata de hostilidades com os Países Baixos, e à regularização dos intercâmbios mercantis com os países do Norte, associa-se a certeza sobre a resposta dos poderes locais no ultramar aos recentes sucessos no Reino88. Esperanças e certezas generalizadas entre aristocracia e clero, que parecem enxergar apenas o risco imediato de um bloqueio naval hispânico à Lisboa89. Mesmo as medidas de emergência para reorganizar a fazenda real apontam principalmente para as necessidades do Reino, procurando-se atualizar os contratos já realizados90, e captar recursos com objetivo de 86 Já em 14 de Dezembro de 1640, D. João IV despachava favoravelmente uma consulta do Conselho da Fazenda sobre “as ordens q se passão para o Reyno de Angola, e Ilha de Cabo Verde & São Thomé, para boa arrecadação da fazda Real, e da dos vasallos” [Lisboa, s.d], A.N.T.T./Ministério do Reino, Livro 161, Consultas do Conselho da Fazenda, fl. 1. Em 27 seguinte era à Índia que se ordenava o concerto, apresto e provimento de um navio (tratava-se de um ra ro patacho) “de man que infalivelmente possa sair deste Porto ate 6 de jan , q vem”, Ver: Decreto para o Conselho da Fazenda “Sobre avizo para a Índia” [Lisboa, 27/12/1640], Idem, fl. 175. O despacho de 29 de Dezembro de 1640 informava que avisos para Angola, Ilhas de Cabo Verde e Madeira, e às mais Conquistas já haviam sido mandados. Cf. ra lo ro Consulta “sobre os avisos q se devem enviar a Angola, Ilhas do Cabo Verde e Mad , p capitão Diogo Mont e na sua caravella” [Lisboa, s.d.], Ibidem, fl. 3v. Em 4 de Janeiro, D. João IV respondia à consulta do Conselho da Fazenda sobre “o modo como se devem enviar ao Brazil os avizos da devida recuperação de V. Mgde a estes Reynos” informando que assy se ordenara pla Secretra. Cf. Ibidem, fl. 5. 87 “Posto que a necessidade de q ha de sustentar e deffender estes Reynos haja mister todo o cabedal e sustançias da fazda Real delles, e q se lance mão de tudo o mais q licitamente se puder fazer: todavia considerando q importa igualmte socorrer o estado da Índia tenho rezoluto, q se faça nesta monção de março cõ a nao nova, e outro navio de bom porte, te enviando em ambos até quatrocentos homens, de mais de g do mar. (...)”. to o “E q ao cabedal q hão de levar para a compra da Pimenta se vera no Cons o papel incluso q sobre Elle se me deu, & conferindo o q contem e tratandosse de dispor cõ os homens de negço q tratão na Índia, e cõ os mais q tinhão em ro a Castella as correspondencias q agora lhe faltão, de que enviem a Índia d p se fazer por sua conta a carga da Pimenta te tos das naos, ou p della, Pagando os dr q for justo (...)”, Decreto para o Conselho da Fazenda “Sobre a nao nova e galeão q ham de hir a Índia” [Lisboa, 05/01/1641], A.N.T.T./Ministério do Reino, Consultas do Conselho da Fazenda, Livro 161, fls. 178-178v. A limitação de recursos impede o envio do galeão, e a nau agora devia seguir viagem ao lado ro o do patacho mencionado. O projeto de recorrer à praça de Lisboa, tratando “p cõ os homens de neg de mayor cabedal a o & mais confidençia (...) p q tudo esteja prestes por todo o mes de fr ”, entretanto, permanece de pé. Ver Decreto para o Conselho da Fazenda sobre o “Pataxo q se mandara hir a Índia” [Lisboa, 12/01/1641], Idem, fls. 181v-182. 88 Como se viu nas notas acima, a respeito do envio de uma nau com cabedal para a pimenta e de uma pequena força de 400 homens, que não seriam suficientes para forçar a entrada em Goa caso se acreditasse que esta permanecia fiel aos Habsburgos. O mesmo se pode dizer da consulta que procurava dispor sobre a arrecadação da fazenda real e dos vassalos em Guiné, S. Tomé e Angola, citada à nota 86. Para o Brasil, procurava-se obrigar aos mestres de duas caravelas que estavam carregando no porto de Lisboa a levarem a quantidade de mantimentos que “boamente puderem a respeito de seus portes”, porque era de grande importância mandar-se “aquelle estado em todas as embarcações q no de quaesquer portos do R partirem para elle sal farinhas, bacalhao, vinhos, aseites & outros mantimentos”. Cf. Decreto para o Conselho da Fazenda sobre “Mantimentos para o Brasil” [Lisboa, 21/01/1641], A.N.T.T./Ministério do Reino, Livro 161, fl. 184v. Vale lembrar que o navio de aviso encarregado de levar as notícias da aclamação à Bahia só chegou em 15 de fevereiro de 1641. Em Angola, por outro lado, as notícias só chegaram em abril. Cf. SERRÃO, Joel. História de a Portugal. vol. 5 (1640-1750). Lisboa, Editorial Verbo, 1982 (2 edição), p. 98; p. 107. 89 No que não estariam equivocados. Em meados de fevereiro de 1641, uma “Junta de Guerra de Extremadura e Algarves”, criada especialmente para lidar com a sublevação de Portugal, recomendava a Filipe IV um ataque frontal em que uma Armada bloquearia a costa enquanto o exército penetraria por Elvas e Ayamonte, repetindo 60 anos depois a a estratégia de Filipe II quando da 1 invasão de Portugal. Descartada esta possibilidade em favor da concentração de esforços na Catalunha, era ao bloqueio econômico que se recorria, visando impedir a comunicação do Reino com as colônias e negando-lhe o acesso à prata. Neste caso, também com recurso ao corso. Cf. VALLADARES, Rafael. Filipe IV y la Restauración de Portugal. Málaga, Editorial Algazara, 1994, pp. 31-38; pp. 95-161. 90 Cf. Consulta “Sobre o provimento de Pólvora e Armas pa o Rno e chamar pa isso os assentistas“ [Lisboa, s.d.], com despacho régio favorável, em Lisboa, a 17 de Dezembro de 1640, in A.N.T.T./Ministério do Reino, Consultas do Conselho da Fazenda, Livro 161, fl. 2; Consulta “sobre se guardarem ao Contratador das terças todas as leis provisões e regimentos que em favor della são passadas”, com despacho régio favorável, em Lisboa, a 10 de Janeiro de 1641, in Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 32 complementar os tributos em curso91, enquanto não se dá início à coleta da contribuição votada em Cortes. Certezas à parte, e apesar da importância do Ultramar para o fisco régio, tudo ficava pendente de decisões que escapavam ao controle do novo centro político. Obviamente, no que diz respeito às Conquistas, D. João IV tinha a guerra a seu favor. Tanto no Índico, quanto no Pacífico e no Atlântico, vinte anos de conflitos contínuos cobraram um alto preço sobre os interesses locais. Uma mudança de regime prometia a paz que os Filipes se mostraram tão relutantes em aceitar. Mas sessenta anos de pertencimento à Monarquia Hispânica tinham que ser pesados na balança. Pernambuco não contava mais politicamente, e dele não se esperaria nada enquanto os embaixadores não comunicassem os resultados das primeiras negociações. Mas a Bahia e o Rio de Janeiro, teriam as mesmas queixas sobre o último Filipe que os povos do Reino? A remota Índia e o Extremo Oriente, que motivos teriam para abandonar sua fidelidade aos Habsburgos em favor de um rei igualmente distante, mas não mais de uma extensa monarquia, e sim de um reino pequeno e sem recursos? Cabe observar que, ao contrário do que sucedera às elites locais do Reino, Madri havia pedido pouco às duas principais câmaras do Brasil durante o período do conflito. Havia, antes de tudo, o precedente da Armada de 1625, que prontamente acudira aos apuros da Bahia. De fato, a rápida reação da Coroa fora uma importante causa na mudança da estratégia neerlandesa. Pernambuco pareceu então muito mais interessante, porque capitania donatarial, e sem os recursos defensivos com que contava a Bahia, capitania régia92. Apesar da proximidade do inimigo, decorreriam oito anos antes que a Bahia sofresse um novo ataque, outra vez repelido graças às medidas preventivas adotadas pelo governador-geral, reconhecidas pelos neerlandeses quando se viram perante os muros de Salvador93. Além da tentativa de impor uma contribuição sobre o açúcar, em 1631, estendida a todo o Estado do Brasil e abandonada devido à resistência das elites locais, nenhum outro tributo foi imposto pelos Habsburgos, correndo o esforço de guerra Idem, fl. 7; Consulta “sobre se remover o contrato das terças do Rno a Jorge Frz de Oliveira”, com despacho régio de 1o de fevereiro de 1641, in Ibidem, fl. 12v-13; Consulta “sobre se ajustar contas cõ os assentistas do socorro do Brazil e se lhe remover o Contrato do Consullado q por arrendamento lhe foy dado em consignação”, com despacho régio de 13 de fevereiro de 1641, Ibidem, fl. 15. 91 Cf. Consulta “sobre correrem as meas annatas que estão paradas, e se ordenar aos tribunaes do Paço, Fazda e Consciencia, como se ha de continuar este dirto até outra ordem de V. Mgde”, com despacho favorável de D. João IV de 14 de Dezembro de 1640, in A.N.T.T./Ministério do Reino, Consultas do Conselho da Fazenda, Livro 161, fl. 1v; Consulta “sobre correrem os direitos do Real dagoa 4a parte do cabeção das çizas, e meas annatas, e se extinguirse as da juntas do dezempenho e da faz ” com despacho favorável de D. João IV em 17 de Dezembro de 1640, in Idem, fl. 1v’; Consulta “sobre a Meza da Consa fazer Relação das Comendas e bens Eccos q neste Rno tem pas moradoras em Casta tos para se darem ao sustento dos lugares de África em lugar dos 34 q que tinhão de consignação nos Portos secos”, com despacho favorável de D. João IV de 17 de Dezembro de 1640, in Ibidem, fl. 2; Consulta “Sobre se haver de continuar com a cobrança da ultima imposição do sal que se cobravão para a coroa de Castella e sobre se haver de dar despacho logo a oito navios que estão no porto da villa de Setuval”, com despacho favorável de D. João IV de 20 de Dezembro de 1640, in Ibidem, fl. 2v. 92 Sobre a precariedade das defesas de Pernambuco, Cf. BOXER, Charles. The Dutch in Brazil. Oxford at the Clarendon Press, 1957, p. 32; p. 39 93 BOXER, Charles. Idem, p. 87. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 33 quase que exclusivamente por conta dos pernambucanos e da Coroa 94 . De fato, estes socorros podem ter sido a única causa de contrariedade para a população de Salvador, devido à necessidade de prover o sustento de milhares de soldados e os distúrbios advindos de seu aquartelamento temporário na cidade95. Os conflitos entre os chefes militares castelhanos e italianos e o governador-geral pouco devem ter afetado os interesses dos senhores de engenho. Na verdade, a tomada de Pernambuco pode mesmo ter trazido ganhos inesperados para esses últimos. Ambas as capitanias passavam por dificuldades devidas ao endividamento dos senhores de engenho e à queda do preço do açúcar no mercado internacional pelo menos desde o início da década de 162096. A destruição provocada pela guerra nos canaviais e engenhos pernambucanos gerou uma escassez de oferta que só pode ter favorecido os produtores baianos97. Escápula quase exclusiva de açúcar a partir de 1635, quando os neerlandeses concluem suas operações militares ao redor da mata pernambucana, inviabilizando o uso dos pequenos portos de escoamento ao sul e ao norte do Recife, a Bahia passa a receber melhores preços pelo seu açúcar98. Apesar da atuação agressiva do corso, a resposta rápida dos armadores e mestres de navios à alta dos custos de transporte permitiu manter o circuito açucareiro ativo. Mesmo os comerciantes, que poderiam se considerar os principais prejudicados, elaboraram estratégias capazes de contornar a elevação dos fretes99. O quadro seria mais favorável caso o governador geral não interviesse, retendo os navios em Salvador entre 16341636, enquanto despachava cartas de corso contra os neerlandeses100. De qualquer maneira, deve-se ter em conta que o fechamento do mercado pernambucano ao tráfico negreiro desviou a oferta para os portos de Salvador e do Rio de Janeiro. Se a guerra permanecesse restrita ao Nordeste do Brasil, poucas seriam as queixas de suas elites locais. Dificuldades comerciais à parte, parece então ter sido a investida holandesa de 1638, o fracasso da tentativa de restauração de Pernambuco, em janeiro de 1640, e a destruição do 94 Sobre o financiamento da Guerra em Pernambuco e a tentativa de impor um tributo sobre o açúcar em 1631, Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada: Guerra e Açúcar no Nordeste: 1630-1653. Rio de Janeiro, Toopbooks, 1998 (2a edição), pp. 180-185. 95 BOXER, Charles. Op. cit., p. 91. 96 MELLO, Evaldo Cabral de. . Op. cit. pp. 88-91; SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, pp. 153-157. 97 Idem, pp. 157-158. 98 Para as operações militares que finalizaram a conquista da Várzea pernambucana em 1635, cf. BOXER, Charles. Op. cit. pp. 53-54; pp. 58-60; Sobre a importância dos pequenos portos do sul do Recife para o escoamento do açúcar e o impacto da razia holandesa sobre a produção, Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. Op. cit. pp. 95-102. 99 A partir dos anos vinte, estas estratégias consistiriam: a) no rearranjo da rede portuária, com o aproveitamento dos recursos navais dos portos do norte; b) no recurso a navios de maior calado, como as urcas estrangeiras; c) na verticalização do setor de transporte, com investimentos de comerciantes, que se cotizavam na compra de espaços na armação dos navios; d) no aumento das viagens sem escalas. Tudo em função das expectativas de lucros geradas pela alta do preço do açúcar causada pela desestruturação da produção açucareira pernambucana e pelo aumento da procura por transporte. Cf. COSTA, Leonor Freire. O Transporte no Atlântico e a Companhia Geral do Comércio do Brasil (1580-1663). Lisboa, CNCDP, 2002, passim. 100 Idem, p. 71. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 34 recôncavo levada a cabo por Jan Conerliszoon Lichthart, logo em seguida, que fizeram a balança pender em favor de um rompimento com Madri. Tanto o ataque a Salvador quanto a Armada do Conde da Torre apontavam para a impossibilidade de convivência pacífica entre o Brasil holandês e os territórios de Sua Majestade Católica no Brasil. A perda de uma armada tão poderosa e a tanto custo aprestada augurava, por sua vez, um longo período de abandono por parte de Madri e Lisboa101. A iniciativa do marquês de Montalvão, ao aceitar negociar uma trégua com os neerlandeses à revelia de Madri, corresponderia, neste sentido, às expectativas dos senhores de engenho baiano102, e mesmo às esperanças dos que haviam abandonado Pernambuco entre 1630 e 1637 103 . A “Restauração” encontraria então uma elite local interessada em manter as vantagens comparativas recentemente obtidas, na certeza de que o acesso exclusivo aos escravos angolanos inviabilizaria a concorrência neerlandesa em Pernambuco, a braços com a reconstrução do sistema produtivo. Não se sabe o conteúdo da carta enviada por D. João IV ao marquês de Montalvão. Mas caso confirmasse as tréguas negociadas entre o vice-rei e Nassau, e anunciasse a intenção de estabelecer uma paz duradoura com os Países Baixos, não haveria mais motivos – aos olhos da elite local - para arriscar-se por Madri na defesa de interesses que não lhe diziam diretamente respeito. A deposição e posterior prisão de Montalvão, atribuída à atrapalhada intervenção de um jesuíta, deveu-se provavelmente a disputas locais, nas quais as ligações entre o vice-rei e os inacianos da Bahia podem ter tido algum peso. Mas o papel destes últimos nos eventos da aclamação provavelmente foi menos relevante para a tomada de posição da elite local do que no Rio de Janeiro. A situação das “Capitanias do Sul” era muito mais complicada104. A notícia da aclamação encontrou-as em pé de guerra, devido às disputas entre os jesuítas e os preadores de índios, e 101 Angústia bem expressa no sermão do Padre Vieira, que ao se referir ao fracasso da expedição do conde da Torre, lamentava: “perderam os derrotados e tristes conquistadores o mar, perderam a terra, perderam a empresa, perderam a esperança, e nós que neles a tínhamos fundado também a perdemos”; Passagem que permite João Lúcio de Azevedo observar que “A muitos acudia a idéia que valia a pena deixar Pernambuco já perdido (...) aos holandeses, para se poder conservar a Baía”. Após a razia holandesa no recôncavo, esta angustia daria lugar ao desespero, quando, já tendo concluído que “Deus não quer a restauração do Brasil”, Antonio Vieira ameaçava a divindade, prognosticando-lhe o arrependimento certo por permitir acabar-se “no Brasil a cristandade católica”. Cf. AZEVEDO, João Lúcio de. História de António Vieira. Lisboa, Clássica Editora, 1992 (3a edição), vol. 1, pp. 40-43. 102 Para as negociações entre Nassau e Montalvão, Cf. BOXER, Charles. . Op. cit. pp. 98-100. 103 Para uma narrativa dos eventos que levaram à fuga de parte dos moradores da Várzea de Pernambuco entre 1635 e 1637, Cf. Idem, pp. 58-71. Sobre a “colônia pernambucana” na Bahia, Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. . Op. cit. p. 389; pp. 392-395. Cf. tb. SCHWARTZ, Stuart. . Op. cit. pp. 57-58. 104 É usual na discussão deste tópico, a relação de São Paulo com a Coroa durante a “Restauração”, fazer-se menção a “Aclamação de Salvador Bueno”. Embora a reconstrução historiográfica deste evento possa atribuir-lhe alguma plausibilidade, como argumenta Rodrigo Bentes Monteiro (inserindo-o no quadro de tensões que marcaram a conjuntura de crise que levou à aclamação do outro rei, em Portugal), o completo silêncio a respeito do evento nas consultas do Conselho Ultramarino, apesar do envio de letrados para devassar do governo de Salvador Correia de Sá e da expulsão dos jesuítas (dada a gravidade da matéria), me convence que ele deve ser situado de fato no plano das possibilidades históricas. No mais, prefiro ficar com Charles Boxer e admitir que, para além do campo da história das representações políticas, onde adquire relevância e significado, já correu muita tinta sobre este episódio. Cf. MONTEIRO, Rodrigo Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 35 apenas a intervenção de Salvador Correia de Sá impedira que o Rio de Janeiro seguisse os paulistas na expulsão daqueles105. Além disso, o próprio governador e outros membros da elite local tinham fortes conexões com a região do Rio da Prata, através do contrabando e do tráfico de escravos106. E no Rio de Janeiro, duas facções se digladiavam pelo poder local107. Que vantagens poderia trazer um novo rei neste quadro? Para os paulistas, aparentemente muito poucas, já que os jesuítas apoiavam a Casa de Bragança e podiam contar com o seu favor108. Para os envolvidos no circuito de contrabando entre Rio, Angola e Buenos Aires, a ruptura poderia ser contornada pela conivência das autoridades espanholas, permitindo a continuidade do comércio ilegal 109 . Para as facções em disputa no Rio de Janeiro, um novo rei dependente do apoio local prometia perspectivas promissoras sobre as chances de sucesso na defesa de seus respectivos interesses. De imediato, portanto, o Rio de Janeiro teria pouco a perder ao se posicionar ao lado da Casa de Bragança, e um importante grupo de pressão, como os jesuítas, muito a ganhar. Como Salvador Correia de Sá sempre se pusera ao lado dos interesses daquela ordem, a gratidão dos inacianos contaria pontos junto ao novo rei, apoio de que Salvador Correia muito necessitava frente à oposição que sofria na capitania110. Tanto na Bahia quanto no Rio de Janeiro, um conjunto diverso de fatores pareceu ter pesado na decisão dos respectivos poderes locais de apoiar o novo regime. No caso da Bahia, a expectativa de uma paz que conservasse sua recém-adquirida primazia no mercado açucareiro. No caso do Rio de Janeiro, a aposta na manutenção do triângulo negreiro e os interesses dos Bentes. O Rei no Espelho: a monarquia portuguesa e a colonização da América, 1640-1720. São Paulo, Hucitec, 2002, pp. 33-72. Compare-se, por exemplo, com os eventos de uma outra conquista, bem mais remota que São Paulo, como Macau, onde as informações, apesar de ambíguas, pelas versões, não permitem dúvida a respeito da existência de conflitos reais em torno da separação de Portugal da monarquia hispânica e seus efeitos nas relações entre portugueses e espanhóis no Extremo Oriente. Cf. VALLADARES, Rafael. Castilla y Portugal en Ásia (1580-1680): declive imperial y adaptación. Leuven, Leuven University Press, 2001, pp. 71-72. 105 BOXER, Charles. Salvador Correia de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola (1602-1686). São Paulo, Cia Editora Nacional/EDUSP, 1973, pp. 139-147. 106 Cf. ALENCASTRO, Luis Filipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo, Cia das Letras, 2000, pp. 109-110. 107 BOXER, Charles. . Op. cit. pp. 152-153. 108 Para as relações entre os jesuítas e os Bragança, Cf. VALLADARES, Rafael. . Op. cit. pp.27-35; Cf. tb. ALDEN, Dauril. The Making of a Enterprise: The Society of Jesus in Portugal, Its Empire, and Beyond, 1540-1750. Stanford, Stanford University Press, 1996, pp. 91-109. 109 Lisboa, por sua vez, sinalizava que poderia consentir com a continuidade das ligações entre Angola, Rio de Janeiro, e Buenos Aires, pois liberou o comércio de escravos entre a Guiné e as Índias de Castela em 2 de Fevereiro de 1641. Cf. “Alvará sobre o comércio das Conquistas com as Índias Ocidentais de Castela” in CCLP, vol. 6 (1641-1647), p. 458. Sobre a participação dos governadores e outros funcionários régios de Buenos Aires no contrabando, Cf. MOUTOUKIAS, Zakarias. Contrabando y Control Colonial en el Siglo XVII. Buenos Aires, Centro Editor de América Latina, 1988, pp. 98-118. 110 Segundo Boxer, a decisão de Salvador Correia de Sá ao receber os despachos de Montalvão poderia ter sido tomada sob pressão ou influência dos jesuítas, e neste caso, embora Boxer não faça a relação, haveria de se perguntar porque a posição dos inacianos teria pesado tanto nas considerações do Governador, posto que, até então, eram aqueles que dependiam do seu apoio para lidar com o descontentamento dos moradores da capitania do Rio de Janeiro. Cf. BOXER, Charles. . Op. cit. pp. 158-159. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 36 jesuítas e de Salvador Correia de Sá, cada um visando um adversário distinto: os primeiros, os paulistas; o segundo, a oposição dos desafetos na capitania do Rio de Janeiro. Aqui, o apoio recíproco entre ambos pareceu jogar um papel fundamental em favor dos Bragança e em detrimento dos paulistas, que se mostraram tão alheios ao poder do novo monarca, como haviam sido insubmissos ao dos Habsburgos111. Em ambos os casos, contudo, as apostas fizeram-se a partir de horizontes muito limitados. A tomada de Angola, poucos meses depois, jogou um balde de água-fria sobre as possibilidades de preservação dos interesses mais gerais, tanto da Bahia quanto do Rio de Janeiro. O fracasso na conclusão de uma paz duradoura com os Países Baixos prognosticava um futuro, ironicamente, muito menos promissor do que aquele provavelmente antevisto quando dos eventos da aclamação. O primeiro Bragança não tinha condições, como os Habsburgos haviam tido até então, de apoiar o esforço de contenção dos neerlandeses ao Nordeste. Sem a ameaça do envio de armadas de socorro, os navios neerlandeses tinham o Atlântico aberto perante si, e a W.I.C não precisava temer de imediato uma excursão naval que surpreendesse Recife desguarnecido. O precedente fora dado pela tomada de Angola, na seqüência da débâcle do poder naval hispânico em 1640, e nada garantia que a W.I.C não atentaria contra as praças remanescentes do Brasil, como fizera em 1638 e em 1640. Portanto, ao invés de serem apenas a retaguarda dos combates entre neerlandeses e pernambucanos, a Bahia e o Rio de Janeiro viam-se agora na linha de frente de uma guerra desigual. E quanto a Goa e Macau? Ao contrário do Brasil, o Estado da Índia fora objeto de uma intervenção muito mais intensa por parte dos Habsburgos, que assistiu seu auge nos primeiros anos da década de 1630. Dada a capitalidade de Goa112, a composição de sua câmara sofrera freqüentes interferências do poder régio durante o século XVI, visando ampliar o controle da 111 Que os paulistas provocaram dores de cabeça aos Habsburgos, fica evidente numa carta do conde de Chichón, vicerei do Peru, a Filipe IV, ao sugerir que o rei comprasse a capitania de São Paulo. Para o vice-rei, o comportamento insubordinado dos paulistas, em seus ataques às missões do Paraguai, só poderia se dever ao fato de estar aquela capitania em mãos de ”señores particulares”. Cf. VALLADARES RAMÍREZ, Rafael. El Brasil y las Indias españolas durante la sublevación de Portugal (1640-1668). Cuadernos de Historia Moderna, n. 14, 1993, p. 153. Serenados os conflitos de 1640, os paulistas demonstraram sua indiferença às demandas do novo regime quando, em 1648, se recusaram a participar dos esforços para recuperar Angola. Cabe observar que a expectativa dos jesuítas quanto a uma possível reversão da situação estabelecida em 1640 não se concretizou. Embora o Conselho Ultramarino tenha dado parecer favorável aos inacianos em 1646, e D. João IV o tenha aprovado, a situação não apresentou mudança significativa. Quando finalmente se chegou a um acordo entre os inacianos e os paulistas, foram os últimos que ditaram as condições. Apesar de Boxer se referir à volta dos jesuítas a São Paulo em 1653 como “triunfante”, estes nunca mais a recuperaram a influência que detinham na capitania antes da expulsão. Cf. Consulta “Sobre os Padres da Comp de Jezus serem restetuidos a sua Igreja q tem na Villa de São Paulo”, AHU, Consultas Mistas do Conselho Ultramarino, Cód. 23 [Lisboa, 16/05/1646], fls 341-341v; BOXER, Charles. . Op. cit. p. 267; p. 316; MONTEIRO, John. Negros da Terra: Índios e Bandeirantes na Origem de São Paulo. São Paulo, Cia das Letras, 1994, pp. 146-147. 112 Segundo Catarina Madeira dos Santos, a capitalidade de uma cidade se define, a partir dos quinhentos, pelo exercício de um domínio sobre um reino ou corpo político, correspondendo, ao nível da atuação política do príncipe, pela instauração de uma corte que o expressa simbolicamente. Cf. SANTOS, Catarina Madeira dos. “Goa é a chave de toda a Índia”: perfil político da capital do Estado da Índia (1505-1570). Lisboa, CNCDP, 1999, pp. 29-92; pp. 153-197. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 37 Coroa sobre os vereadores e torná-los mais receptivos às demandas por contribuições para a defesa do Estado da Índia, principalmente a Oeste de Cabo Comorim113. Nesta região, as oportunidades de ganho eram monopolizadas por fidalgos associados aos comerciantes vinculados à Rota do Cabo, e o comércio, mais intensamente controlado pelos capitães de fortalezas e outros funcionários régios114. Sua contrapartida foi a diáspora de lançados em direção ao Leste, e a criação de comunidades de comerciantes independentes ao longo do Golfo de Bengala e Extremo Oriente, as quais se tornaram válvulas de escape para os descontentes ou para os que não conseguiam integrar os circuitos oficiais de comércio regulados pelas carreiras controladas pela Coroa115. Contudo, a pressão sobre os fidalgos em Goa e sobre as rotas de comércio a Leste se manteve em equilíbrio relativamente tenso, mas razoável, até a 2a década do século XVII, período em que a Coroa conseguia financiar a defesa do Índico por meio do envio de galeões e prata, deixando aos fidalgos e ao clero uma parte considerável das rendas geradas localmente. Mas o envio de galeões para o Índico significava uma enorme imobilização de recursos alienados dos teatros bélicos da Europa e Atlântico Norte. As necessidades defensivas do Estado da Índia pareciam favorecer, deste modo, uma maior integração de esforços entre portugueses e hispânicos no Oriente, a partir das respectivas capitais em Goa e Manila, e das guarnições sediadas em Malaca e Molucas116. Com a queda de Ormuz, em 1622, e a penetração inglesa no Golfo Pérsico e Surat, abria-se um flanco perigoso a Oeste do Cabo Comorim, região que, até então, fora poupada das investidas neerlandesas, limitadas ao Arquipélago Indonésio e Golfo de Bengala. Uma versão da União de Armas entre as forças de Castela e de Portugal para a defesa do Oriente passou a estar na pauta política em Madri117, mas esta pressupunha uma maior intervenção régia nos assuntos internos do Estado da Índia, e era vista com suspeita, tanto pelos fidalgos portugueses, temerosos de perderem influência, quanto pelos comerciantes ligados às rotas intrasiáticas – no Golfo de Bengala e Extremo Oriente - que escapavam ao fisco. O governo do conde de Linhares (1629-1635) marcou o ápice da política habsburgo de reforma do sistema fiscal do Estado da Índia, com o objetivo de provê-lo – por meio de seus próprios recursos, que se 113 BOXER, Charles. Portuguese Society in the Tropics: The Municipal Councils of Goa, Macau, Bahia and Luanda, 1510-1810. Madison, University of Wisconsin Press, 1965, pp. 12-15, pp. 18-22. 114 SUBRAHMANYAM, Sanjay. O Império Asiático Português, 1500-1700: uma história política e econômica. Lisboa, DIFEL, 1995, pp. 305-349. 115 Idem, pp. 351-379; cf. tb., do mesmo autor: SUBRAHMANYAM, Sanjay. Comércio e Conflito: A Presença Portuguesa no Golfo de Bengala, 1500-1700. Lisboa, Edições 70, 1994, pp. 35-63; pp. 85-109; pp. 111-139; BOYAJIAN, James. Portuguese Trade in Ásia under the Hasburgs, 1580-1640. Baltimore, John Hopkins University Press, 1993, pp. 146165. 116 VALLADARES, Rafael. Castilla y Portugal en Ásia (1580-1680), pp. 53-55. 117 Sobre o projeto de uma “União de Armas” entre os diversos domínios da Monarquia Hispânica, cf. ELLIOT, John. Op. cit., pp. 244-277. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 38 sabia disponíveis em mãos de interesses particulares – com os meios defensivos necessários para conter o avanço neerlandês no Golfo de Bengala 118 . A Companhia da Índia inseria-se nesta política de fortalecimento do poder regulatório da Coroa, e sofreu a oposição cerrada daqueles interesses119. Além disso, as iniciativas fiscais de Linhares também afetaram o clero120, e particularmente os jesuítas, ameaçando suas rendas, em nome da defesa do patrimônio régio, de modo muito semelhante ao conflito que opôs eclesiásticos e oficiais da Coroa em Portugal pela disputa das capelas alienadas – em princípio, ilegalmente -, à Igreja, e que terminou por resultar na expulsão do Coletor Apostólico121. Tanto em Portugal quanto na Índia, os jesuítas confrontaram Madri, sendo que na Índia, além da ameaça que pairava sobre seu patrimônio, pesava a concorrência das demais ordens, instrumentalizada pelos Habsburgos para fragilizar o padroado régio da Coroa portuguesa em favor de missionários estrangeiros, geralmente de ordens rivais, como os capuchinhos e os dominicanos. As perdas da Etiópia, em 1632122, e do Japão, em 1639123, importantes campos de atuação inaciana e objetos de propaganda pró-jesuítica na Europa124, forneceram munição para as demais ordens em suas tentativas de consolidar posições no Oriente, e justificaram – em função da redução do número de missionários portugueses – o envio de estrangeiros, cujo número aumentou mesmo no interior da própria organização jesuítica125. A crise por que passou a ordem jesuíta na Ásia, durante a década de 1630, apenas acirrou sua oposição a qualquer iniciativa que pusesse em riscos as missões remanescentes e o controle que exercia sobre o espaço oriental. Como os Habsburgos se aproximavam da Propaganda Fide para furar o bloqueio ao acesso de missionários estrangeiros – leia-se italianos e espanhóis – erigido pelo clero regular português no Estado da Índia e no Extremo Oriente, os jesuítas portugueses facilmente identificaram Madri como o inimigo a ser atacado e desmobilizado126. Tal oposição fica evidente na participação que os jesuítas tiveram durante as negociações da Trégua com os Ingleses na Ásia, assinada em 1635. A pressão exercida por estes e pela Câmara de Goa forçou o principal representante da política habsburgo de reforma no Estado da 118 DISNEY, Anthony. The Fiscal Reforms of Viceroy Count of Linhares at Goa, 1629-1635. Anais de História de AlémMar, vol. III, 2002, pp. 259-275. 119 DISNEY, Anthony. A Decadência do Império da Pimenta. Lisboa, Edições 70, 1981, pp. 169-174. 120 Cf. BETHENCOURT, Francisco. O Estado da Índia. In: BETHENCOURT,Francisco Bethencourt e CHAUDHURJ, Kirti. História da Expansão Portuguesa: Do Índico ao Atlântico (1570-1697). Lisboa, Temas & Debates, 1998, p. 312. 121 ALDEN, Dauril. Op. cit. pp. 98-99; pp. 438-439. 122 Idem, pp. 154-157 123 BOXER, Charles. The Christian Century in Japan, 1549-1650. Manchester, Carcanet Press, 1993 (1a ed. 1951), esp. “Jesuitas and Friars”, pp. 137-187; “Sakoku, or the Closed Country”, pp. 362-397. 124 CURTO, Diogo Ramada. Cultura Escrita e Práticas de Identidade. In: BETHENCOURT,Francisco Bethencourt e CHAUDHURJ, Kirti. História da Expansão Portuguesa: Do Índico ao Atlântico (1570-1697). Lisboa, Temas & Debates, 1998, pp. 469-477; VALLADARES, Rafael. Op. Cit. pp. 27-35. 125 Idem, pp. 59-60. 126 Sobre a Propaganda Fide, cf. BOXER, Charles. A Igreja e a Expansão Ibérica. Lisboa, Edições Setenta, 1989 (ed. americana, 1978), pp. 102-105. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 39 Índia, o conde de Linhares, a encetar negociações com os ingleses, frente à premente necessidade de concentrar recursos escassos na defesa de Malaca, sem consultar Lisboa ou Madri127. Esta vitória dos interesses locais do Estado da Índia contra a Coroa indicava que qualquer opção política da parte da elite local, dos comerciantes, e dos jesuítas, passaria por manter à distância o poder régio. O sucessor imediato de Linhares aparentemente preferiu adotar uma política conciliatória, postando-se ao lado dos nobres descontentes e do clero na crítica aos “abusos” do conde e a sua venalidade128. Mesmo assim, este comportamento não foi suficiente para reduzir a prevenção contra Madri, que de fato – numa medida radical característica do último ano dos Habsburgos em Portugal – ameaçou liberar o comércio das Conquistas portuguesas aos vassalos do Rei Católico129. Do ponto de vista daqueles grupos, um rei mais fraco seria muito mais desejável para a preservação dos seus interesses – aparentemente compatíveis com o avanço dos neerlandeses e a presença inglesa no Golfo Pérsico – do que um rei forte o suficiente para contrariá-los. Macau surgira como resultado da diáspora portuguesa a partir de Malaca. Sua existência dependia da exploração das rotas comerciais que integravam a China à Indonésia e ao Japão. Durante um terço de século, Macau foi praticamente ignorada pelo Estado da Índia, e apenas em 1583 a colônia portuguesa foi oficialmente reconhecida por Goa130, com a criação de uma câmara e a concessão dos privilégios da Câmara de Évora. Mesmo após, a colônia de Macau continuou gozando de grande autonomia nos assuntos internos, fazendo-se a Coroa presente apenas pela administração da carreira do Japão, vendida pelo vice-rei a nobres ou cedida a terceiros (câmaras, nobres, clero) que por sua vez as arrendavam. Este sistema permitia aos moradores de Macau concorrerem pela compra das viagens, preservando seus interesses131. Somente na década de 1620, a Câmara de Macau se viu forçada a aceitar a interferência de Goa nos assuntos internos, pela precariedade de sua posição frente aos neerlandeses. Até então, o capitão-mor da nau do Japão exercia as funções de governador apenas durante os meses em que aguardava a monção em Macau. A nomeação pelo vice-rei de um capitão-mor trienal, a partir de 1623, responsável pela defesa da cidade, e compartilhando com a câmara o papel de representante do poder régio no Extremo Oriente, tornou-se uma constante fonte de atritos, fosse porque, sem recursos próprios, o capitão-mor tinha que recorrer às rendas da câmara ou à comunidade mercantil, fosse porque sua posição permitia-lhe imiscuir-se nas 127 ALDEN, Daurin. Op. Cit. pp. 171-175; DISNEY, Anthony. Op. Cit. pp. 182-188. SUBRAHMANYAM, Sanjay. O Império Asiático Português, pp. 232-233; pp. 331-332. 129 VALLADARES, Rafael. Op. Cit. pp. 63-64. 130 BOXER, Charles. Op. Cit. pp. 43-46. 131 SOUZA, George Bryan. A Sobrevivência do Império: Os Portugueses na China (1630-1754). Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1991, pp. 31-36. Cf. tb.: BOXER, Charles. The Great Ship from Amacom: Annals of Macao and the Old Japan Trade, 1555-1640. Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1963, pp. 8-11. 128 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 40 operações comerciais com o Japão132. Mas a câmara ainda reservava para si a captação das rendas oriundas das demais rotas mercantis do Mar da China, e seu poder de barganha permanecia relativamente preservado. Os conflitos mais sérios se originaram, como na Índia, das reformas fiscais encetadas pelo conde de Linhares. A nomeação de administradores para as viagens do Japão, Manila, e Macassar, significava uma intromissão direta da Coroa nas fontes de renda da câmara, e uma ameaça aos interesses dos comerciantes particulares. Em contrapartida, a Coroa se responsabilizaria pelos custos de manutenção da guarnição, até então arcados pela câmara, o que resultava na redução do potencial de negociação da elite local. A tensão apenas poderia ser agravada pela perda do mercado Japonês. A expulsão dos portugueses do Japão reforçou os vínculos informais entre Macau e Manila. À intensificação da presença régia nos assuntos locais correspondeu uma maior integração de Macau ao circuito da prata que ligava-a às Filipinas e ao México133. Do mesmo modo que no caso da Índia, um poder fraco em Lisboa contemplaria os interesses mercantis em Macau e permitiria a manutenção dos vínculos com a sua única fonte de abastecimento de prata. A ruptura com Madri seria aceitável apenas nestes termos, e durante os dois primeiros anos após 1640, Macau gozou de uma autonomia que não desfrutava há vinte anos. A chegada da notícia da Aclamação, levada por um importante membro da comunidade macaense, coberto de mercês da parte do novo rei134, e o temor por parte da Coroa de que Macau se pusesse ao lado dos Habsburgos pareciam prometer uma maior margem de negociação à elite local135. Assim, não foi unicamente a ameaça neerlandesa que levou quatro das mais importantes câmaras ultramarinas a se postarem ao lado dos Bragança em 1641-42, mas uma configuração muito diversificada de interesses locais que esperavam, por intermédio do novo regime, garantir vantagens recentemente adquiridas, como no caso da Bahia, resolver disputas internas, como no caso do Rio de Janeiro, ou aproveitar-se de uma Coroa que se afigurava menos apta a ameaçar os interesses das elites locais, como no caso de Goa e Macau. E no tocante ao Rio de Janeiro e Macau, conivente com a manutenção de ligações comerciais que a guerra – em princípio – inviabilizava. Acostumadas a uma intervenção muito mais ativa da Coroa nos assuntos locais, Goa e Macau se opuseram sistematicamente aos esforços reformistas da década de 1630. Este comportamento leva a crer que as elites locais acreditavam ser possível lidar – por seus próprios meios – com a presença inglesa e neerlandesa no Índico e no Pacífico. Apesar das queixas de 132 SOUSA, George Bryan. Op. Cit. pp. 36-37. BOYAJIAN, James. Op. Cit. pp. 236-237. 134 Cf. CURTO, Diogo Ramada. Op. Cit. pp. 477-480. 135 Cf. VALLADARES, Rafael. Op. Cit. pp. 67-72. 133 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 41 Sevilha, Macau e Manila continuavam desviando a prata mexicana para os circuitos do Mar da China, e os fidalgos e clero em Goa preferiam preservar suas fontes de renda, e delegar o esforço defensivo exclusivamente ao poder real. Como em Portugal, as demandas por contribuições encontraram a partir da década de 1620, na Índia, as mesmas respostas: exaustão dos povos e falta de recursos para prover a defesa. Mas ao contrário das elites locais em Portugal, a Aclamação não resultou de imediato na criação de canais capazes de mobilizar os recursos até então negados136. O agravamento da situação a partir de 1635 provavelmente serviu apenas para que os interesses locais cerrassem fileiras contra qualquer iniciativa neste sentido. No Atlântico, ao contrário, a situação era mais promissora e a integração com Lisboa mais forte. Obviamente, a Bahia e o Rio dependiam da manutenção dos vínculos comerciais com Portugal para o escoamento do açúcar e a aquisição de cativos137. Mas a boa vontade com que ambas reconheceram o novo rei sem saber que destino seguiria Angola aponta para fatores de ordem política que não se esgotam na esfera da circulação, mais evidentes no Rio de Janeiro do que na Bahia. De qualquer modo, mesmo neste último caso, a importância acrescida que esta última adquirira para a Coroa prometia que os interesses locais seriam ouvidos e apreciados, o que pode não ter acontecido durante os longos governos que marcaram a década de 1630138, basicamente preocupados em apoiar as tropas que lutavam em Pernambuco e fustigar a várzea por meio de expedições de razia após a sua retirada definitiva. Como o Reino não se dispunha a desviar recursos para o ultramar, era aos interesses locais que a Coroa deveria apelar para conter a investida neerlandesa, enquanto uma paz duradoura não fosse negociada. Contudo, os interesses de comunidades tão distintas como Goa e Bahia, Rio de Janeiro e Macau demandavam canais capazes de negociar sua aquiescência e garantir sua lealdade. Com a guerra prestes a irromper na fronteira com Castela, e a necessidade de continuamente transigir com as demandas das elites concelhias e da aristocracia no Reino, o sistema polissinodal podia ter alcançado o limite de sua capacidade para dar conta da agenda ultramarina. A criação do Conselho de Guerra, por outro lado, apontava para um modelo de gestão capaz de conciliar os interesses locais e atender as expectativas da fidalguia disposta a pegar em armas pelo novo regime. Uma solução semelhante poderia parecer igualmente 136 Na verdade, a correspondência de D. João IV com o vice-rei da Índia, conde de Aveiras (1640-1645), entre 1641 e 1643, deu grande atenção ao embarque da pimenta e o provimento das naus, para os quais solicitava o emprego das rendas disponíveis. Cf. A.N.T.T./Documentos Remetidos da Índia, Livros 48 (1640-1644), 49 (1641-1642), 50 (16411644), 52 (1643). Apenas a partir de finais de 1643, D. João IV começa a tratar das petições dos interesses locais. Idem, Livro 53 (1643), Livro 54 (1644). 137 Cf. ALENCASTRO, Luis Filipe de. Op. Cit. pp. 11-41. 138 Apenas dois governadores-gerais foram nomeados ao longo da década: Diogo Luís de Oliveira, de 1627 a 1635, e Pedro da Silva, de 1635-1639. Fernando de Mascarenhas, conde da Torre, ocupou o Governo apenas durante a estadia da Armada de Restauração em Salvador, e o marquês de Montalvão não chegou a completar o primeiro ano do seu vice-reinado. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 42 adequada para as Conquistas, onde parte daquela mesma fidalguia era considerada fundamental na condução do esforço de guerra e as elites locais prometiam um leque bastante pulverizado de questões a serem cuidadosamente ponderadas. Todavia, se a guerra de fronteira mobilizava a fidalguia do Reino, o Ultramar não mereceu desta a mesma atenção. Á Índia se tornara ao longo dos últimos 150 anos a reserva de um grupo pequeno de famílias que ocuparam quase a metade das nomeações para o cargo de vice-rei ou governador-geral139, e se parecia interessar a alguém, além delas, era à pequena nobreza do Reino. Por sua vez, a nomeação para um cargo nas Conquistas do Atlântico, embora menos distantes, significava um afastamento ainda demasiado longo da Corte, sem as compensações em termos de prestígio e mercês que a Índia garantia. Ao contrário do Conselho de Guerra, que atendia imediatamente aos interesses da fidalguia, um Conselho para as partes ultramarinas não tinha o mesmo apelo e provavelmente não contaria com o mesmo apoio. Seria uma iniciativa exclusivamente da parte do pequeno grupo de conselheiros que cercava D. João IV e dependeria exclusivamente da aprovação régia para desincumbir-se das suas atribuições. Edval de Souza Barros é doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor substituto de História Ibérica e História da América Colonial na Universidade Federal de Ouro Preto e pesquisador associado ao LAHES (Laboratório de História Econômica e Social) da Universidade Federal de Juiz de Fora. 139 As famílias dos Castro, Coutinho, Mascarenhas, Meneses e Noronha. Cf. SUBRAHMANYAM, Sanjay and THOMAZ, Luiz Filipe. Evolution of Empire: The Portuguese in the Indian Ocean during the sixteenth-century. In: TRACY, James (Ed). The Political Economy of Merchant Empires. Cambridge, Cambridge University Press, 1991, p. 325. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 43 A PARTICIPAÇÃO DOS HOMENS DE NEGÓCIO NO MERCADO DE BENS URBANOS DO RIO DE JANEIRO NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII Antonio Carlos Jucá de Sampaio Resumo: Este texto busca analisar tanto as características estruturais quanto as diversas conjunturas por que passou o mercado carioca de bens urbanos entre 1700 e 1750. Trata-se de tema inédito não só na historiografia brasileira como latinoamericana. Nosso interesse maior, porém, não é com o estudo do mercado em si, mas sim na sua utilização como um elemento a mais para a compreensão da sociedade fluminense de então. Entre os resultados obtidos, destacamos a importância da atuação da elite colonial nesse mercado (representada em nosso estudo por senhores de engenho e homens de negócio), e conseqüentemente das transformações sofridas por esta, sobretudo a separação entre suas frações agrária e mercantil. Palavras-chave: 1. Mercado Colonial; 2. Hierarquização Social; 3. Bens Urbanos. Abstract: This text looks for to analyze as much the structural characteristics as the several conjunctures why passed the carioca market of urban goods between 1700 and 1750. It is unpublished theme not only in the Brazilian historiography as Latin-American. Our larger interest, however, it is not with the study of the market in itself, but in his/her use as an element the more for the understanding of the fluminense society of then. Among the obtained results, we detached the importance of the performance of the colonial elite in that market (acted in our study by plantation owners and business men), and consequently of the suffered transformations for this, above all the separation among their agrarian and mercantile fractions. Key Words: 1. Colonial Market; 2. Social Hierarchization; 3. Urban Goods. Introdução1 O estudo do mercado de bens urbanos no período colonial é, sem dúvida, empresa das mais difíceis para o historiador. A maior dificuldade é a inexistência de estudos semelhantes, seja para o Brasil seja para a América espanhola colonial, que nos permitam estabelecer uma base comparativa a partir da qual possamos realizar generalizações mais seguras. Há, sem dúvida, trabalhos de grande qualidade sobre a história urbana do Brasil e, no que interessa mais de perto aqui, do Rio de Janeiro. Entretanto, estes estão mais voltados à análise dos aspectos fundiários dessa história do que dos econômicos em sentido mais estrito2. Exceção a esse quadro encontramos em trabalho recente de Nireu Cavalcanti3, no qual o autor analisa o mercado imobiliário carioca no início do século XIX. Entretanto, a forma fragmentada como utiliza os dados 1 Agradeço ao CNPq o financiamento da pesquisa que originou este artigo. Exemplo deste tipo de abordagem encontramos no trabalho de Fania Fridman: FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do rei. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Garamond, 1999. 3 CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista. A vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 276-283. 2 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 44 não lhe permite ir além da superfície do seu objeto, sem chegar a construir verdadeiramente uma imagem do que seria esse mercado nos estertores do período colonial. Além disso, ao contrário do que se verifica no setor agrícola, não há informações qualitativas com as quais possamos cotejar os dados obtidos através das escrituras. O mercado urbano estava muito longe de ser uma preocupação das autoridades coloniais. Além disso, não contamos com dados que nos ajudariam a entender melhor esse mercado, pela influência que têm sobre ele, tais como: as diversas conjunturas mercantis da cidade no período (inclusive do tráfico de escravos), a atuação econômica de grupos sociais significativos, como os artesãos e os pequenos mercadores, etc. também faltam informações mais precisas sobre a evolução demográfica da cidade no período, o que é sem dúvida fundamental para compreendermos esse mercado. Por tudo isso, o estudo apresentado abaixo possui um caráter algo ensaístico. Mas é exatamente na sua originalidade que se encontra talvez a sua maior qualidade, e espero que anime a realização de novas pesquisas sobre o tema. A opção pela primeira metade do século XVIII vincula-se com uma visão já consagrada na historiografia brasileira, para a qual esse período é marcado por significativas transformações na sociedade colonial geradas pela descoberta do ouro no interior da América portuguesa4. Em trabalho anterior, eu mesmo confirmei tal perspectiva. Mais ainda, percebi que uma das características mais significativas desse período foi o surgimento de uma elite mercantil claramente diferenciada dos demais grupos sociais, e que se estabeleceu rapidamente no topo desta sociedade5. Tal fato fez com que me voltasse para o estudo desse grupo social específico, visto a partir de então como chave fundamental para compreender a sociedade colonial em sua totalidade. O texto apresentado aqui é um resultado parcial desses esforços. A expansão urbana de uma cidade colonial: o Rio de Janeiro no império português A fundação da cidade do Rio de Janeiro situa-se nos marcos da disputa entre Portugal e França pelo que era então o sul da nascente América portuguesa. Sem dúvida, o Rio possuía uma localização estratégica para garantir o domínio lusitano no Atlântico Sul. Não só pela sua localização geográfica como também pela importância de controlar a baía de Guanabara. Personagem fundamental da história fluminense, a baía tem sido, no entanto, relegada a segundo 4 Talvez o melhor exemplo da importância dada à descoberta do ouro esteja em: BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1963. 5 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c.1650 – c.1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, cap. 1. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 45 plano pela maioria dos historiadores. Essa não era, no entanto, a opinião dos homens da época, que reconheciam sua importância estratégica num mundo regido pela navegação à vela. Encontramos exemplo desse reconhecimento nos viajantes, os quais quase sempre descrevem a baía em tons bastante favoráveis antes de se referirem à cidade. O autor anônimo do “L’Arc-enCiel”, que esteve no Rio em 1748, é um bom exemplo a esse respeito. Segundo ele, “a baía é, talvez, a maior e a mais cômoda que há no mundo. As montanhas que a envolvem protegem as embarcações dos ventos e impedem as agitações marítimas. Pode-se ancorar em toda a sua extensão (...)” 6. M. De La Flotte, com evidente exagero, afirma que a baía “é capaz de conter muitos milhares de navios” 7. Todas essas vantagens fizeram Alberto Lamego considerar o Rio de Janeiro pertencia à categoria das “capitais naturais” 8. Contudo, a transformação dessa vantagem estratégica natural numa vantagem econômica, bem como do insignificante centro urbano aí criado no século XVI em algo mais do que um simples ponto de apoio no interior do Império Ultramarino Português não estava garantida de saída. Dependia, isso sim, da criação de condições que assegurassem o desenvolvimento da capitania. Embora fundada em 1565, a cidade só ganha contornos definitivos dois anos depois, com sua transferência para o morro do Castelo9. Entretanto, se razões de defesa levaram os primeiros povoadores a aí se localizarem, motivos mais prosaicos, como as exigências do comércio e a necessidade de água, fizeram com que rapidamente o povoamento se espraiasse pela planície. Essa descida, no entanto, só ocorreu após a derrota definitiva dos tamoios e a certeza de que os espanhóis não invadiriam a cidade, o que ocorreu com a União Ibérica, em 158010. Ao longo do século XVII, a ampliação do controle lusitano sobre o território permitiu tanto a consolidação do núcleo urbano quanto a ocupação rural da capitania, sobretudo no entorno da baía de Guanabara11. Por outro lado, esse espraiamento inicial não significou uma expansão contínua do núcleo urbano. De fato, a cidade teve que ser conquistada ao mar: (...) o exagüamento em tal maneira precedeu as construções que a área da cidade permaneceu quase a mesma por mais de um século, quando em 1769 poucos quarteirões ultrapassavam a Praça do Rocio, atingindo o Campo de Santana. E a população da cidade quadruplicara no tempo dos Vice-Reis. É que o traçado original das ruas sobre aterros fora em sua maior parte concluído ao raiar do setecentos (...) e durante o correr deste século (...) a população ia 6 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho (Org.) Visões do Rio de Janeiro Colonial: antologia de textos, 1531-1800. Rio de Janeiro, José Olympio/EDUERJ, 1999, p. 81. 7 Idem, p. 103. 8 LAMEGO, Alberto R. O homem e a Guanabara. Rio de Janeiro, IBGE/CNG, 1964, p. 163. 9 Há uma vastíssima bibliografia sobre a fundação da cidade. A narrativa mais recente está em: CAVALCANTI, Nireu. Op. Cit., p. 21-29. 10 FRIDMAN, Fania. op. cit., p. 18. 11 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. op. Cit, cap. 1. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 46 apenas construindo prédios ao longo de ruas já existentes e penosamente levantadas sobre pântanos.12 Em outras palavras, o crescimento demográfico da cidade significou mais o adensamento da ocupação de um perímetro urbano que já se encontrava definido, em suas linhas gerais, no início do século XVII, do que propriamente uma expansão do mesmo. Os estudos de Eduardo Barreiros mostram um crescimento considerável da urbe carioca ao longo da segunda metade do seiscentos, sobretudo através do aumento do número de ruas, tornando assim mais complexa a sua malha urbana. No século XVIII, esse crescimento foi ainda maior, incentivado pela ocupação das regiões mineradoras e os vínculos destas com o porto carioca13. Em 1710, a população da cidade seria talvez de 12.000 habitantes14, número que subiu para 29.147 em 174915, um aumento superior a 140% em aproximadamente quatro décadas. Entretanto, a cidade transformou-se também qualitativamente neste período. Obviamente, tais transformações tinham ligação direta com seu novo papel no interior do império português, como notou o governador Antônio Brito de Menezes: A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro [é] opulenta mais que todas as do Brasil, por razão do seu largo comércio, e serem os seus gêneros os mais preciosos16. Opulência que não passava despercebida dos estrangeiros. Em meados do século XVIII, M. de La Flotte, por exemplo, descreve a cidade como a principal do Brasil. Ainda segundo ele, “a aparência da cidade, construída em forma de anfiteatro, revela muita opulência” 17. Naturalmente, todas estas transformações refletiam-se no mercado de bens urbanos. As tabelas abaixo buscam capturar as características desse mercado tão específico através tanto da análise de seu comportamento diacrônico quanto de seus aspectos estruturais mais evidentes, como o grau de concentração das operações e a participação no mesmo de senhores de engenho e homens de negócio. 12 LAMEGO, Alberto R. op. cit., p. 163-171. BARREIROS, Eduardo Canabrava. “A cidade do Rio de Janeiro de sua fundação aos fins do século XVII”. In: RIHGB, n° 288. Rio de Janeiro, IHGB, 1970, pp. 199-209. 14 SILVA, Francisco Carlos T., “A morfologia...”, p. 117. Esse número também é dado por Alberto Lamego: LAMEGO, Alberto R. op. cit., p. 308. Pessoalmente, consideramos essa estimativa bastante modesta. Jonas Finck, em 1711, estimou que a cidade contava com 4.000 “cidadãos” e 8.000 negros para sua defesa, além de soldados e marinheiros. Ainda que consideremos essa estimativa exagerada, e que parte desse “efetivo” vivia de fato no entorno rural da cidade, esses números sem dúvida indicam uma população bem superior à estimativa mais aceita, já que não engloba mulheres e crianças. De tudo isso, o que fica é uma grande incerteza em relação à veracidade de quaisquer desses números: FRANÇA, Marcel Carvalho de França. Visões ..., p. 70. 15 LISBOA, Baltazar da Silva. op. cit., p. 176. Este número refere-se aos paroquianos das diversas freguesias. O número mais divulgado, de 24.397, refere-se somente às pessoas adultas. Repare-se que mesmo o número maior não representa a população total da cidade, pois só eram considerados paroquianos aqueles aptos a comungar, portanto acima dos 7 anos de idade. 16 AN, Correspondência dos governadores do Rio de Janeiro – Códice 80, Vol. 1, p. 40 (Março de 1718). 17 Apud: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho (Org.) Visões do Rio de Janeiro Colonial: antologia de textos, 1531-1800. Rio de Janeiro, José Olympio/EDUERJ, 1999, p. 103. 13 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 47 TABELA 1 Valores médios e medianos dos diversos tipos de propriedades urbanas (1681-1750) 1681-1700 1711-1720 1721-1740 1741-1750 Média geral 127$988 640$581 730$544 715$377 Mediana geral ¹ 87$500 300$000 320$000 400$000 Sobrado - valor médio Sobrado - mediana 297$500 2:548$667 2:473$792 2:148$719 255$000 2:800$000 2:400$000 1:680$000 Casas ² - valor médio 176$953 527$417 463$788 646$422 Casas - mediana 132$000 450$000 350$000 450$000 Terreno - valor médio 24$833 164$442 147$573 196$808 Terreno - mediana 17$500 93$340 107$500 145$400 Fonte: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do 1° e 2° Ofícios de Notas do Rio de Janeiro. OBS: 1- A média geral inclui outros tipos de propriedades urbanas, sobretudo lojas e benfeitorias, para alguns períodos; 2 – Casas térreas. TABELA 2 Variação percentual dos valores médios entre os diversos períodos (1681-1750) 1680 a 1710 1710 a 1720 1720 a 1740 Média geral 400,5 14,04 -2,08 Mediana geral ¹ 242,86 6,67 25 -2,94 -13,14 998,04 -14,29 -30 Casas ² - valor médio 198,05 -12,06 39,38 -22,22 28,57 -10,26 33,36 15,17 35,26 Sobrado- valor médio 756,69 Sobrado - mediana Casas - mediana 240,9 Terreno - valor médio 562,19 Terreno - mediana 433,37 Fonte: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do 1° e 2° Ofícios de Notas do Rio de Janeiro. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 48 TABELA 3 Participação dos diversos tipos de propriedades no total das vendas urbanas (1681-1750) T.P.¹ 1681-1700 N % 8,8 Sobrados 7 43 53,8 Casas 37,5 Terrenos 30 0 0 Outros 80 100 Total ² 1711-1720 N % 12 17,1 35 50 23 32,9 0 0 70 100 1721-1740 N % 20 17 52 45 40 35 3 2,6 115 100 1741-1750 N % 20 11,1 113 62,4 44 24,3 4 2,2 181 100 Fonte: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do 1° e 2° Ofícios de Notas do Rio de Janeiro. OBS: 1 - T.P.: Tipos de propriedades. TABELA 4 Participação dos senhores de engenho e dos homens de negócio nas compras de bens urbanos (1681-1750) Períodos 1681-1700 1711-1720 1721-1740 1741-1750 SE ¹ 599$000 4:324$000 2:950$000 800$000 % 5,9 9,9 3,5 0,6 HN ² 990$000 6:606$673 28:030$790 24:344$865 % 9,7 15,1 33,4 18,8 Fonte: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do 1° e 2° Ofícios de Notas do Rio de Janeiro. OBS: 1 – Participação dos senhores de engenho; 2 - Participação dos homens de negócio em relação ao valor total transacionado. TABELA 5 Participação dos senhores de engenho e dos homens de negócio nas vendas de bens urbanos (1681-1750) Períodos 1681-1700 1711-1720 1721-1740 1741-1750 SE 195$000 5:515$000 4:551$760 450$000 % 1,9 12,6 5,4 0,4 HN 274$000 2:320$000 16:240$000 20:680$000 % 2,7 5,3 19,3 16,0 Fonte: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do 1° e 2° Ofícios de Notas do Rio de Janeiro. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 49 TABELA 6 Concentração do valor total das vendas nas 10% maiores (1681-1750) Períodos 1681-1700 1711-1720 1721-1740 1741-1750 Valor 3:620$000 17:160$000 39:971$760 57:291$075 % 35,36 39,12 47,58 44,25 N 8 7 11 18 % 10 10 9,56 9,94 Fonte: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do 1° e 2° Ofícios de Notas do Rio de Janeiro. TABELA 7 Concentração do valor total das vendas nas 50% menores (1681-1750) Períodos 1681-1700 1711-1720 1721-1740 1741-1750 Valor 1:563$000 4:306$569 8:536$412 18:055$420 % 15,27 9,82 10,16 13,94 N 42 35 58 92 % 52,5 50 50,43 50,82 Fonte: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do 1° e 2° Ofícios de Notas do Rio de Janeiro. TABELA 8 Participação das diversas formas de pagamento nas vendas urbanas (1681-1750) Formas de pagamento à vista, em dinheiro a prazo, em dinheiro em açúcar em dívidas Outros 1681-1700 67,74 19,35 0,00 3,23 9,68 1711-1720 72 18,67 0,00 2,67 6,67 1721-1740 77,78 13,49 0,00 1,59 7,14 1741-1750 78,87 10,31 0,00 5,67 5,15 Fonte: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do 1° e 2° Ofícios de Notas do Rio de Janeiro. A primeira coisa que nos chama a atenção ao analisarmos o comportamento dos preços dos bens urbanos neste período é sua rápida elevação em relação ao padrão seiscentista. Na média geral esses valores aumentam nada menos que 400%. Crescimento sem dúvida impressionante, e que corrobora a noção, generalizada desde Antonil, de que o início do século Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 50 XVIII é marcado por uma inflação galopante, fruto da corrida às Minas18. Naturalmente, esse não é um fenômeno que fique restrito a tais transações. Se tomarmos o conjunto das escrituras públicas do Rio de Janeiro, veremos que entre a década de 1690 e a de 1710, seu valor médio aumenta de 349$824 para 1:120$204, numa variação de mais de 220%19. Outros preços igualmente importantes para a economia fluminense sofrem variações significativas no período, ainda que de menor monta. O açúcar branco eleva-se de $950 em 1687 para 2$066 em 1710, numa variação de 117,47%20. Já os escravos adultos tiveram seus preços médios majorados em 135,25% entre o final do século XVII e a década de 171021. Se todos esses dados demonstram que a alta era mesmo generalizada, eles apontam também para o fato de que tais variações não eram uniformes. Em outras palavras, isso significa dizer que por baixo de um movimento geral de elevação dos preços causado tanto pelo abrupto fluxo de ouro quanto pela rápida ocupação das regiões mineradoras, havia movimentos particulares, que faziam com que alguns preços variassem mais ou menos do que outros. E entre os preços que mais variaram encontramos exatamente os bens urbanos. Como explicar isso? A primeira razão é o rápido crescimento da população urbana, já visto acima. Verifica-se que esse é um processo que não se interrompe então. O aumento da população e, conseqüentemente, da demanda pressionava o preço dos imóveis urbanos para cima. A segunda razão para essa valorização é o fortalecimento do capital comercial na praça do Rio, como podemos ver nas tabelas 4 e 5. Já nessa primeira década (para nós) do século XVIII, os homens de negócio mostram uma relativa importância no mercado urbano, respondendo por 15,1% de todas as compras urbanas, e por somente 5,3% das vendas. Números consideráveis para um grupo social ainda recente na cena carioca. Se aprofundarmos ainda mais nossa análise, veremos que dentre os bens urbanos também há diferenças nítidas de variação de preços. Dentre eles destacam-se os sobrados, cuja elevação atinge mais de 750%. Esse comportamento tem ligação, é claro, com o desenvolvimento da urbe carioca. Mas também se associa com o comportamento da elite mercantil. A ligação entre essa elite e os sobrados é bastante clara. Tanto aqui quanto em Portugal, eram em sobrados que os negociantes viviam e comerciavam 22. Nos dois únicos inventários post- 18 ANTONIL, João Antônio Andreoni. Cultura e opulência do Brasil. São Paulo/Brasília, Melhoramentos/INL, 1976, pp. 167-173. 19 Para uma descrição pormenorizada das transformações ocorridas na capitania fluminense na passagem do século XVII para o XVIII, ver: SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de.op. cit., cap. 1. 20 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. op. cit., p. 113. 21 Idem, p. 121. 22 Segundo Jorge Pedreira, um dos termos equivalentes a “homem de negócio” na sociedade portuguesa era o de “mercador de sobrado”: PEDREIRA, Jorge M. V. Os homens de negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822): Diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1995 (Tese de doutorado), p. 64-66. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 51 mortem de homens de negócio que encontramos, há a presença dessas construções 23 . Em nossas escrituras essa ligação também se evidencia: os negociantes aparecem como compradores em quatorze das cinqüenta e duas transações envolvendo tais bens, registradas ao longo de toda a primeira metade dos setecentos (26,9% do total), e respondem por quase um terço do valor total 24 . Já como vendedores, surgem em apenas seis escrituras (11,5%) 25 . Não seria errôneo afirmar que havia uma forte pressão por parte da elite mercantil carioca sobre a oferta de sobrados. Tal fato contribuía, naturalmente, para a elevação dos preços. Sobretudo porque essa elite torna-se responsável, ao longo da primeira metade dos setecentos, pela própria liquidez da sociedade colonial, o que aumentava muito sua capacidade de influência sobre os preços, ainda mais num mercado restrito como o de tais bens 26. Também resulta dessa pressão o aumento proporcional da oferta de sobrados no mercado de bens urbanos. De uma participação pouco inferior a 9% no total de imóveis transacionados no final do século XVII, os sobrados passam a 17% no início da centúria seguinte. Não obstante, essa pressão exercida pelos negociantes distribui-se de forma desigual ao longo do período. Das quatorze escrituras de compra a que nos referimos acima, nada menos que onze situam-se entre 1711 e 1740 (aproximadamente um terço das 32 escrituras do período). Já na década de 1740, encontramos somente três transações em que participam homens de negócio (15% do total). Assim, há uma considerável diminuição da atuação dos negociantes, o que acabou por se refletir nos preços dos sobrados. É interessante notar que também a oferta de sobrados diminui na década de 1740, o que parece indicar uma diminuição da demanda pelos mesmos. As casas térreas e os terrenos, por sua vez, apresentam comportamento bastante semelhante entre si, e distinto do que encontramos para os sobrados. Após uma forte valorização inicial, tais bens tendem a perder valor nas décadas de 1720 e 1730, recuperando-se no último decênio do nosso período. A explicação para esse comportamento é virtualmente impossível, devido à nossa atual falta de conhecimentos sobre as características desse mercado. O fato é que não podemos relacioná-lo diretamente, por exemplo, com a participação no mesmo da elite mercantil. Vejamos: a princípio, a queda ocorrida a partir da década de 1720 poderia ser creditada à diminuição da participação dos homens de negócio na compra desses bens, em relação à década de 1710. 23 AMSB, cód. 13, doc. 1059: Inventário de Antônio Pimentel (1711) e AMSB, cód. 13, doc. 284: Inventário de Francisco de Seixas da Fonseca (1730). 24 Em números: os homens de negócio adquiriram sobrados no valor de 33:328$770, sendo que o valor total relativo a esse bem no período 1711-1750 foi de 112:295$420. Lembremos que se trata de números mínimos, dado o sub-registro dos negociantes cariocas. 25 Devido aos seus elevados valores, essas cinco escrituras respondem por 22,4% do valor total transacionado (25:120$000). 26 A esse respeito, ver: SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de.op. cit., cap.4. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 52 Nessa, os negociantes eram responsáveis por 30% do valor das transações. Depois, esse percentual cai para 9,8%. Ocorre que, na década de 1740, a participação se mantém praticamente inalterada (9,6%), o que não impede um forte aumento de preços. A nosso ver, tal fato demonstra uma forte independência desse mercado urbano mais amplo frente à atuação da elite urbana. Por isso mesmo, é provável que suas variações de preços reflitam as flutuações mais gerais da economia, até porque os números de casas e terrenos transacionados são bem mais significativos do que os dos sobrados. Nesse sentido, a tendência geral de alta durante a primeira metade do século XVIII muito provavelmente é reflexo do contínuo crescimento da urbe carioca que pressionava os preços dos bens urbanos para cima. Cabe aqui uma observação acerca do comportamento dos preços dos terrenos no período estudado. Na virada do século XVII para o seguinte, tais preços sobem consideravelmente, ainda que menos do que os dos sobrados. No entanto, como esses perdem valor a partir de então, os terrenos acabam por se constituir nos bens de maior valorização, se analisarmos nosso período como um todo. Entre 1681 e 1750 seus preços variaram nada menos que 692,53%, contra 622,26% dos sobrados e 265,31% das casas. Tais dados mostram, melhor que quaisquer outros, a pressão exercida pelo conjunto da população carioca sobre o solo urbano. Por outro lado, a diminuição da oferta de terrenos na década de 1740 parece indicar o esgotamento da ocupação do perímetro “tradicional” da cidade, limitado a oeste pela então denominada rua da Vala. De fato, seus limites são largamente ultrapassados a partir da segunda metade do século XVIII27. Talvez a mais importante característica estrutural do mercado carioca de bens urbanos fosse sua forte concentração, facilmente perceptível nas tabelas 6 e 7. Por estas, vê-se que em qualquer época pelo menos um terço do valor total concentrava-se nas transações envolvendo valores mais elevados. Mais impressionante ainda é a baixa participação da metade menor das transações no valor total. Em momento algum essa participação ultrapassa a barreira dos 15%, que por sinal somente é alcançada na primeira década do nosso estudo. Essa concentração é confirmada pela análise da média e mediana gerais. Repare-se que elas são quase sempre muito diversas das médias e medianas parciais e é exatamente nessa discrepância que encontramos sua maior utilidade. Ao se mostrarem inúteis como elementos de medição das tendências do mercado em questão, elas apontam para a grande dispersão dos valores encontrados. Em outras palavras, o fato de que os índices mais gerais pouco retratem o nosso objeto demonstra o caráter concentrado do mercado de bens urbanos, uma vez que os valores reais encontrados no mesmo situam-se quase sempre bem abaixo ou bem acima da média. Além disso, a diferença entre as médias e as medianas, tanto as gerais quanto as parciais, 27 BARREIROS, Eduardo Canabrava. op. cit. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 53 também apontam para o mesmo caráter concentrado. Como a mediana nos fornece o valor acima e abaixo do qual estão 50% da amostra, uma diferença muito grande entre esta e a média (em favor desta última) aponta para a existência de uma forte concentração28. Neste sentido, o estudo da diferença entre média e mediana gerais mostra uma tendência a longo prazo de aumento da concentração. No final do século XVII essa diferença era de 46,27%, mas nos setecentos ultrapassa 100%, fechando o período estudado acima de 75%. O século XVIII é marcado, portanto, por um aumento na concentração das transações de bens urbanos. Estaria essa maior concentração vinculada à atuação dos homens de negócio? Em parte sim, já que o aumento da concentração dá-se paralelamente ao aumento da participação dos negociantes cariocas no mercado urbano (ver tabela 4). Por sua maior capacidade de acumulação de capital, esse grupo tendeu a realizar investimentos mais vultosos em bens urbanos, e essas autênticas transformações de escala nos valores transacionados refletia-se no grau de concentração verificado no mercado. Outro fator que contribuía para tal concentração era a forma de pagamento nas transações de bens urbanos. Analisando a tabela 8 vê-se que em qualquer período o pagamento em dinheiro era absolutamente majoritário, sendo que o pagamento à vista tende a crescer no século XVIII, ao mesmo tempo em que o feito a prazo diminui. Se a esses somarmos os pagamentos em dívidas29, veremos que a participação no mercado de bens urbanos dependia do difícil acesso à moeda, acesso esse em grande medida controlado pelos negociantes. Esse quadro é bastante diverso do existente nas transações de bens rurais. Nestas predominava o pagamento a prazo e, no século XVII, também em açúcar, que fazia então as vezes de moeda30. Logo, atuar no mercado urbano era apanágio para poucos, e a elevação de preços no século XVIII contribuiu para agravar essa tendência. Neste sentido, é bastante ilustrativa a participação dos senhores de engenho tanto na compra quanto na venda de imóveis urbanos. Em relação às compras, vemos que apesar de uma elevação na participação na década de 1710, essa tende a cair continuamente a partir daí, atingindo irrisórios 0,6% do valor total na última década estudada. Mesmo a elevação no início do século XVIII deve ser vista com cuidado. Do valor total, 2:900$000 (67%) referem-se à compra de 28 Mesmo essa comparação entre mediana e média ainda é algo imperfeito para o estudo da concentração de um dado mercado, já que a mediana é sempre um número mais elevado do que os 50% menores. Portanto, a comparação entre os dois índices deve ser vista só como um indicativo a mais do fenômeno da concentração. Sobre mediana, ver: NICK, Eva e KELLNER, Sheilah R. de O. Fundamentos de estatística para as ciências do comportamento. Rio de Janeiro, Renes, 1971, pp. 47-53. 29 Pagamentos em dívidas são aqueles em que o vendedor transfere para o comprador uma propriedade em troca do abatimento de uma dívida anterior. Tais operações são, por isso mesmo, bem menos “opcionais” do que pode parecer à primeira vista. 30 Sobre o mercado de bens rurais, ver: SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Op. Cit., cap. 2. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 54 um sobrado por Antônio Dias Delgado31. Por outro lado, entre 1711 e 1740 os membros da elite agrária aparecem como vendedores líquidos, ou seja, vendem mais do que compram. Em outras palavras, a elite agrária desfazia-se se suas propriedades urbanas. Ruralizava-se, enfim. Na década de 1740 tal elite encontrava-se destituída de qualquer significado econômico no mercado de bens urbanos da urbe carioca. Por outro lado, o fenômeno da concentração no mercado de bens urbanos não se limita somente à distribuição dos valores transacionados. Ele também se faz presente no controle exercido por um pequeno número de indivíduos e instituições sobre o solo urbano. Os dados que encontramos, retirados das próprias escrituras, mostram não só que uma parte razoável das propriedades vendidas encontrava-se situadas em terrenos de terceiros, como também que o grau de concentração da propriedade urbana aumentou consideravelmente no século XVIII. TABELA 9 Porcentagem dos terrenos aforados em relação ao total de vendas de bens urbanos e chácaras (1650-1750) Período 1650-1670 1671-1700 1711-1730 1731-1740 1741-1750 Total 138 156 103 106 202 Aforados 13 15 17 11 37 % 9,42 9,62 16,50 10,38 18,32 Fontes: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do Primeiro e Segundo Ofícios de Notas do Rio de Janeiro (1650-1750), AN e AGCRJ. Nesta tabela, são considerados terrenos aforados aqueles em relação aos quais se declara, durante a transação, o pagamento de foro a terceiros. Os números apresentados não devem ser vistos como indicadores do real grau de concentração dos “chãos” da cidade. Em primeiro lugar, porque um indivíduo ou uma instituição podia possuir várias propriedades urbanas sem aforá-las. Em segundo, há que se considerar que boa parte das propriedades das diversas instituições estava, a princípio, fora do mercado. Ordens religiosas, como a de São Bento, buscavam acima de tudo assegurar para si fontes permanentes de renda. Assim, suas propriedades dificilmente eram postas à venda 31 32 32 . De qualquer forma, o fato de que pelo menos AN, CSON, L. 25, f. 27 (1717). FRIDMAN, Fania. op. cit.. p. 78ss. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 55 1/10 das propriedades vendidas em qualquer período estivessem situadas em terrenos sujeitos a foro mostra o quanto o espaço urbano encontrava-se apropriado e controlado. No século XVIII há um evidente incremento da proporção de terrenos aforados em relação ao total. Se agregarmos ainda mais os nossos dados, veremos que para toda a segunda metade do século XVII a proporção de terrenos aforados em relação ao total foi de 9,52%. Já para a primeira metade dos setecentos, esse índice aumenta para 15,82%. Uma variação percentual de nada menos de 66,2%. Embora o Senado da Câmara seja, até o final do nosso período, o principal aforador presente nas escrituras 33 , o século XVIII vê um aumento do número de aforadores privados, além do crescimento da participação de outras instituições, como a Ordem Terceira de São Francisco. Esse fato aponta para um controle cada vez maior do solo urbano por um número reduzido de instituições e indivíduos. Na verdade, trata-se da consolidação de uma tendência que se manifesta desde o início da ocupação (e formação) da urbe carioca. De fato, desde sua fundação (ou refundação, em 1567), a cidade viu sua área ser monopolizada, através de concessões feitas pelos sucessivos governadores, por um pequeno número de indivíduos, fato que era sem dúvida facilitado pelas características físicas do sítio urbano. O resultado foi uma considerável concentração da propriedade fundiária urbana. Entre os maiores proprietários estavam as instituições religiosas, como a Santa Casa da Misericórdia, a Ordem de São Bento, Jesuítas etc. Somente os beneditinos possuíam, entre 1651 e 1750, 85 propriedades na urbe carioca, sendo 37 terrenos e 48 casas de aluguel 34. Já os jesuítas possuíam, em 1759, 70 prédios e um terreno que rendiam a considerável soma de 6:551$040 35. Entretanto, mesmo quando a propriedade estava concentrada nas mãos de instituições, freqüentemente eram pessoas ligadas a estas que se beneficiavam de tal concentração, fazendo as vezes de intermediários entre tais instituições, por um lado, e o restante da população por outro. Tal era o caso na década de 1770 quando, segundo denúncia enviada ao rei, havia um autêntico monopólio por parte de alguns indivíduos do aforamento de terrenos pertencentes ao Senado da Câmara. Tais pessoas pagavam valores extremamente baixos por tais aforamentos, e os arrendavam para terceiros por quantias muito mais elevadas, alcançando consideráveis lucros com tais diferenças 36. 33 Na década de 1740, das 37 escrituras que fazem referência ao pagamento de foro, nada menos de 19 têm como aforador o Senado da Câmara (51,35%). 34 FRIDMAN, Fania., op. cit., pp. 63s. 35 CAVALCANTI, Nireu O. A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: as muralhas, sua gente, os construtores. Rio de Janeiro, UFRJ, 1997 (Tese de doutorado), p. 102. 36 BICALHO, Maria Fernanda Baptista. “A Cidade e o Império: o Rio de Janeiro na dinâmica Colonial Portuguesa. Séculos XVII e XVIII.” São Paulo, USP, 1997 (Tese de doutorado), pp. 393-405. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 56 Não possuímos, infelizmente, quaisquer informações semelhantes para a primeira metade do século XVIII. Mas o aumento verificado no número de propriedades situadas sobre terrenos aforados já indicava a tendência de concentração da propriedade do solo urbano, cujas conseqüências seriam explicitadas quase três décadas após o fim do período que estudamos. Como pano de fundo desse processo, está o forte crescimento da cidade ao longo de todo o período, que tornava cada vez mais interessante o controle sobre a propriedade (ou, pelo menos, sobre o acesso) do solo urbano. Para finalizar esse texto gostaríamos de ressaltar duas conclusões de grande importância para o nosso trabalho, retiradas do estudo do mercado de bens urbanos da cidade do Rio de Janeiro. Em primeiro lugar, a análise da evolução da participação de senhores de engenho e homens de negócio neste mercado demonstra a existência de uma divisão setecentista entre elite agrária e elite mercantil. É evidente que esta divisão não deve ser compreendida enquanto uma separação radical entre os dois grupos. Em outras palavras, não significa dizer que negociantes e elite açucareira não estabelecessem alianças entre si. De fato, parte dos negociantes setecentistas (uma parte bastante reduzida, é verdade) transformou-se, em algum momento, em proprietária de engenhos, através de compras e/ou de casamentos com mulheres pertencentes à elite agrária 37 . Entretanto, e no que pese a ressalva, não se pode negar a existência então de uma clara distinção entre os dois grupos. Sua origem é sobretudo econômica, pois reflete a separação clara que então se estabelece entre a atividade mercantil e a agrária. Essa separação significa principalmente a criação de uma esfera própria para a atividade mercantil, bem como para a acumulação de capital. Por outro lado, o estabelecimento dessa distinção no século XVIII joga poderosas luzes sobre nosso entendimento da forma de atuação da elite seiscentista. Quando vemos que, concomitantemente a essa distinção ocorre a diminuição da participação de senhores de engenho no mercado de bens urbanos, temos uma demonstração clara de que sua participação ao longo dos seiscentos pode ser creditada à atuação na esfera mercantil. É nessa esfera que eles acumulavam os recursos necessários. Nesse sentido, é importante que relembremos que a compra de bens urbanos dependia do acesso a dinheiro em espécie. Uma mercadoria rara e cara no seiscentos, cuja posse vinculava-se em muito à participação nos circuitos mercantis. O segundo aspecto que queremos ressaltar é a forte concentração verificada em tal mercado. Na falta de índices mais precisos relativos à distribuição da riqueza, o estudo do 37 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de.op. cit., cap. 2. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 57 mercado de bens urbanos nos dá como que um reflexo, ainda que imperfeito, dessa mesma concentração. E o quadro que surge daí aponta para o caráter estrutural da mesma, já que esta faz sentir sua forte presença ao longo de todo o período. Mais ainda, ela cresce no século XVIII, paralelamente ao desenvolvimento da atividade mercantil na urbe carioca. Isso demonstra que os benefícios de tal desenvolvimento concentraram-se nas mãos de poucos. Em outras palavras, seu principal efeito foi o reforço do caráter excludente da estrutura social colonial. Antonio Carlos Jucá de Sampaio é Professor Adjunto de História do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador associado ao LAHES (Laboratório de História Econômica e Social) da Universidade Federal de Juiz de Fora. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 58 DINÂMICA PRODUTIVA EM MINAS GERAIS O sistema econômico em funcionamento no termo de Mariana 1750-1850 Carla Maria Carvalho de Almeida Resumo: Este trabalho se insere no bojo das indagações acerca do caráter da sociedade colonial e, mais especificamente, da economia mineira no período pós-auge minerador. Elegemos o termo de Mariana como espaço a ser trabalhado, devido às suas características privilegiadas de localização. O marco temporal de 1750 a 1850 foi escolhido por abarcar o momento de auge minerador e também o período considerado pela historiografia tradicional como de “decadência” e “estagnação” da economia mineira. Tendo os inventários postmortem como fonte privilegiada, o objetivo central da pesquisa foi perceber, ao longo do período, as alterações das unidades produtivas da região. Palavras-chave: 1. Minas Gerais; 2. Escravidão; 3. Economia Colonial. Abstract : ThisThis paper is within the inquiries concerning the character of Brazilian colonial society; more specifically, the post-boom mining economy of Minas Gerais. The region of Mariana was chosen because of its privileged location. The time period of 1750-1850 was selected because it begins at the time of the economic boom and includes the years considered by tradicional historiography to cover the decline and stagnation of the economy of Minas Gerais. Using post-mortem inventories as a primary source of information, the objective this investigation was to observe the changes in the productive units. Key words: 1. Minas Gerais; 2. Slavery; 3. Colonial Economy. O objetivo deste trabalho é discutir o caráter e a forma de funcionamento da economia mineira no período de 1750 a 1850 que compreende três distintas etapas da economia mineira: um primeiro subperíodo de auge-minerador (1750-1770); uma segunda fase de acomodação evolutiva (1780-1810), quando então a economia da região sofreu um processo de diversificação da produção com tendências para a auto-suficiência; e finalmente um último subperíodo (18201850), caracterizado pela consolidação da economia mercantil de subsistência1. Elegemos o termo de Mariana como objeto de investigação por várias razões que nos pareceram torná-lo um espaço privilegiado para esta análise. Dentre outras razões, destacam-se: a situação geográfica do termo, com seu território situado parte na região Metalúrgica-Mantiqueira e outra parte na Zona da Mata; a característica de ser um município de fronteira aberta com amplas possibilidades de expansão; a concomitância histórica entre as atividades de mineração e a produção agropecuária desde os primórdios da colonização; e finalmente, a importância da sede do município como centro religioso, educacional e administrativo do seu entorno. 1 Esta subdivisão do período maior (1750-1850) em distintos subperíodos foi estabelecida em minha dissertação de mestrado a partir da análise de diversos índices (crescimento demográfico, crescimento da produção e dos rendimentos) aliados a fatores históricos conjunturais. ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Alterações nas unidades produtivas mineiras: Mariana - 1750-1850. Niterói, 1994. Dissertação (Mestrado em História) - UFF. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 59 Privilegiamos como fonte os inventários post-mortem, que nos possibilitaram ter uma visão do movimento dessa sociedade se desenrolando no tempo e, conseqüentemente, de suas alterações e permanências. Para abarcar o período de 1750-1850 tomamos como amostragem todos os inventários existentes no arquivo da Casa Setecentista de Mariana2 para os anos terminados em zero, ou seja, nossa amostragem é de dez em dez anos. Dessa forma, trabalhamos com um total de 366 inventários3. Para a análise mais detalhada desta documentação estabelecemos uma classificação que dividia inicialmente os inventários em: unidades produtivas, comércio e/ou crédito, urbanos e/ou serviços, e não enquadráveis. Na classificação de unidades produtivas4 enquadramos todos os inventários que incluíam propriedades que desenvolviam algum tipo de atividade criadora de riqueza mesmo que, paralelamente, o inventariado houvesse se dedicado a outro tipo de atividade, por exemplo, ao comércio. Num segundo momento, separamos as U.P. por tipo de produção a que se dedicavam. Assim, existiam unidades produtivas de agricultura, de pecuária, de mineração, de agropecuária, de agricultura e mineração, e finalmente de agropecuária e mineração. Outras fontes sobre as quais nos debruçamos de forma menos sistemática foram: os livros de registros de aguardente existentes no Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana5; os Relatórios de Presidentes da Província6 (de Minas Gerais) para os anos de 1833 a 1855; e alguns relatos de contemporâneos e viajantes estrangeiros. Os pressupostos teóricos mais gerais que orientam esta investigação têm seus fundamentos alicerçados na tendência historiográfica que, para a análise da realidade colonial brasileira, sem desconsiderar os fatores externos que influíam sobre a mesma, privilegia as determinações internas sobre o seu funcionamento. Com essa orientação inicial, a definição de sistema econômico elaborada por Witold Kula nos pareceu bastante adequada para nortear as nossas indagações. Para Kula: Sistema econômico é um conjunto de relações econômicas internamente ligadas, que precisamente por estarem ligadas surgem mais ou menos simultaneamente, e também quase simultaneamente cedem lugar a outras relações. O aparecimento dessas relações, que se podem datar empiricamente, permitem definir os limites cronológicos de um sistema econômico. A construção de uma teoria de um sistema econômico consiste em definir (mais uma vez empiricamente) o conjunto mais rico possível de relações que nele aparecem e em explicar os nexos recíprocos existentes entre essas relações7. 2 Daqui para frente C.S.M. Evidentemente este número diz respeito a todos os inventários do período referido que foi possível consultar. Por estarem em péssimo estado de conservação, alguns poucos autos não puderam ser manuseados. Quase todos são do século XVIII, concentrando-se principalmente nos anos de 1750 e 1770 do II ofício. Alguns foram eliminados da amostragem por estarem incompletos ou por terem sido iniciados em um ano e terminados só muito tempo depois. Precisamente 42 autos não puderam ser incluídos na amostragem. 4 Daqui para frente, U.P. 5 Daqui para frente AHCMM. 6 Daqui para frente: RPP. 7 KULA, Witold. Teoria econômica do sistema feudal. Lisboa: Editorial Presença, 1979, p. 172. 3 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 60 Para que se possa construir a teoria do sistema econômico é necessário também levar em consideração que todos os atos econômicos são socialmente determinados e, dessa forma, têm caráter reiterativo e apresentam determinadas relações que se manifestam com uma certa regularidade. Se se consegue provar a existência e a regularidade de tais relações pode-se, então, elaborar uma teoria para este sistema econômico8. Além disso, deve-se ter em mente que cada sistema econômico segue uma lógica própria de funcionamento e, portanto, tem uma racionalidade que lhe é peculiar. Não se pode partir de um conceito de racionalidade capitalista, por exemplo, para avaliar em que medida o sistema feudal é racional. Tal atitude só poderia nos conduzir a conclusões anacrônicas. Kula sugere que se parta de uma racionalidade metodológica e não objetiva para analisar tais sistemas. Seria necessário levar em conta o que é racional do ponto de vista das possibilidades de escolha do sujeito atuante, ou seja, os conhecimentos, as técnicas disponíveis e as chances de se poder comparar as alternativas possíveis9. A proposta de Kula para a elaboração de um modelo exige ainda, que se tenha a realidade empírica como ponto de partida e de destino. É dela que se poderá extrair os elementos que farão parte da teoria e também nela é que se poderá comprovar a eficácia do modelo. Sem ter a pretensão de propor um modelo acabado para a economia mineira, achamos que é possível e pertinente tomar as indagações propostas por W.Kula como roteiro para definir um quadro em que se moveria a economia da região de Mariana. Neste sentido, deveríamos responder a quatro ordens de problemas10: a) a primeira ordem de problemas que a análise deve se colocar diz respeito às "(...)leis que regulam a magnitude da produção social e sua aquisição (O que determina a escolha da tecnologia e, especialmente, a escolha entre os métodos intensivos e extensivos de produção? O que determina até que ponto a sociedade aproveita os meios de produção e as forças produtivas?)". b) a segunda indagação a ser feita deve tratar das "(...)leis que regulam a alocação de forças produtivas e os meios de produção e, especialmente, os excedentes de produção (esse é, principalmente, o problema da aplicação produtiva ou não produtiva desses excedentes, os fatores que determinam o consumo, o desperdício, o consumo de luxo __ e o investimento)". 8 Idem., p. 167. Idem., p. 166. 10 Idem., pp. 11-12. KULA, Witold. Da tipologia dos sistemas econômicos. In: FOURASTIÉ, Jacqueline. et.ali. Economia. a 2 ed. Rio de Janeiro: FGV, 1979, p. 111. 9 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 61 c) deve-se em seguida dar conta das "(...)leis que governam a adaptação da economia às circunstâncias cambiantes, isto é, a dinâmica a curto prazo". d) a última ordem de indagações que deveríamos tentar desenvolver diz respeito às leis da evolução a longo prazo. As primeiras duas ordens de problemas estão relacionadas aos aspectos estruturais ou aos pressupostos de funcionamento do sistema econômico em questão. Discutiremos estas questões no ponto 2 deste artigo. A terceira "lei" diz respeito às variáveis internas que intervêm no funcionamento da estrutura econômica. Delas trataremos no ponto 3. A última ordem de fatores se refere às variáveis externas que influiriam no sistema, podendo levá-lo, juntamente com as anteriores, no limite, ao desaparecimento. Infelizmente tais questões não serão por nós analisadas neste trabalho, já que demandariam um estudo que fosse além de 1850 e que analisasse as implicações da lei de terras e o fim do tráfico legal como mecanismos de abalo do sistema; e a degradação cumulativa causada pela produção extensiva e a abolição da escravatura como os seus possíveis detonadores finais, já que entendemos que as principais bases da economia eram a disponibilidade de terras virgens apropriáveis e mão-de-obra barata. 1. Principais produções de Minas Gerais Antes de examinarmos mais de perto o processo de produção propriamente dito, convém inicialmente nos referirmos aos principais produtos presentes na economia mineira, principalmente no período pós-auge minerador sobre o qual recairá mais detidamente a nossa atenção. No relatório de 1854, o presidente da província apresentava um quadro da situação dos municípios mineiros, elaborado a partir das informações prestadas pelas Câmaras Municipais "em cumprimento das circulares de 4 e 28 de novembro e 29 de dezembro de 1853 a respeito do gênnero d'indústria porque mais se distingue a população, número de fazendas de creação, ou de cultura, engenhos de mineração, ou de qualquer outra espécie bem como do estado da indústria e seo desenvolvimento nestes últimos tempos". Dos 22 municípios para os quais há informações, todos têm a presença de algum tipo de cultura ou produção agrícola, sendo que em 15 deles a agricultura constava como uma das atividades de destaque e em 8 a pecuária aparecia conjugada Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 62 a esta11. Portanto, podemos afirmar que, por volta de meados do século XIX, a província era primordialmente uma região de produção agropecuária. Os principais produtos cultivados em Minas eram, em ordem de freqüência, o milho, o feijão, e o arroz. Eram muito freqüentes os engenhos de moer cana e, embora parte da produção fosse exportada para o Rio de Janeiro, seu destino parece ser quase sempre a produção de aguardente e açúcar para abastecer o mercado interno provincial. No caminho que vai de Vila Rica para o Tijuco, mais ou menos à altura do Morro de Santa Ana, John Mawe encontrou uma tropa com "grande número de burros carregados de açúcar destinado a Vila Rica e que, no caso de não ser aí vendido, vai para o Rio de Janeiro"12. O café e o algodão também eram cultivados em alguns municípios. A produção de aguardente em Minas Gerais era muito freqüente desde o período inicial da ocupação da região e, embora em 1714 a coroa houvesse proibido a construção de novos engenhos na comarca de Vila Rica, isto não se efetivou e o que se viu foi o constante crescimento do número de engenhos e alambiques na região das minas nas primeiras duas décadas do século XXVIII13. Como já foi dito anteriormente, em Mariana o número de U.P. com presença de alambique foi crescente durante todo o período por nós analisado e passou de 5% para 6%, atingindo 19% no último subperíodo. A região de Mariana teve uma importante produção de aguardente que, pelo seu volume, muito provavelmente era em parte enviada para outros mercados. Através dos "livros de registros para manifestos das aguardentes" existentes no Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana, foi possível fazer um levantamento desta produção por um período de dez anos (tabela 1)14. Mariana produziu neste intervalo uma média anual de barris de cachaça que variou de 6.118 a 11.409, sendo que os distritos que registravam a maior produção eram Furquim, Barra Longa, Sumidouro e Piranga. 11 Provavelmente este número era muito maior, mas o quadro não é muito completo. Por exemplo: em Mariana a pecuária não aparece ao lado da agricultura, mas pelos inventários sabemos da freqüência e importância dela na economia da região. 12 MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1978, p. 143. 13 MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira, Brasil-Portugal, 1750-1808. 3a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 111. 14 A documentação existente no AHCMM tem registros da produção de aguardente para o período de 1774 a 1808, num total de 23 livros. No entanto, é entre os anos de 1782 e 1800 que ela é mais completa, sendo que os registros para o ano de 1788 são muito imprecisos e dispersos. Por isto não incluímos na tabela que montamos os dados sobre este ano. O registro era feito semestralmente. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 63 TABELA 1 Produção anual de aguardente em Mariana de 1782 a 1792 BARRIS TOTAL DO IMPOSTO No DE REGISTROS 1782 8.348 669,220 71 1783 6.985 556,120 68 1784 6.118 486,860 71 1785 6.814 545,120 72 1786 6.387 509,360 70 1787 6.428 516,400 73 1789 9.792 783,360 74 1790 10.176 814,360 84 1791 10.425 812,200 89 1792 11.409 832,720 89 ANO Fonte: Livros de registros para manifestos das aguardentes – AHCMM. O milho (farinha de milho, angu e canjica), o feijão e a carne de porco constituíam a base da alimentação da população em Minas Gerais. Em sua viagem pela província, Mawe visitou a fazenda do Barro de propriedade do Conde de Linhares, situada no termo de Mariana. Dela fez uma descrição detalhada e deu a conhecer os hábitos alimentares tanto dos escravos quanto dos homens livres que lá viviam. Os escravos eram alimentados no almoço com farinha de milho misturada com água quente, dentro da qual colocavam pedaços de toucinho15. À noite era-lhes dada uma porção de feijão. Quanto à alimentação dos administradores da fazenda, diz ele: Eis o seu trivial: ao almoço , feijão preto misturado com farinha de milho e um pouco de torresmo de toucinho frito ou carne cozida; ao jantar, um pedaço de porco assado; derrama-se água em um prato de farinha de milho; colocam tudo amontoado na mesa e aí põem também um prato de feijão cozido (...) na ceia só comem hortaliças cozidas e pequeno pedaço de toucinho para lhes dar gosto16. Ao contrário do Nordeste, do Rio de janeiro e de São Paulo, onde a farinha de mandioca era a base da alimentação, em Minas Gerais a farinha de milho era muito mais importante. 15 Idem., p. 139. Suponho que Mawe se referia ao que hoje é conhecido como prato típico da região: bambá ou bambá de couve. 16 Idem., p. 138. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 64 Somente no sertão (deserto do rio São Francisco) a farinha de mandioca substituía a de milho17. Sobre a importância da farinha de milho na dieta alimentar dos mineiros e sobre seu processo de elaboração, novamente é Mawe quem nos informa: A farinha de milho, alimento principal, me pareceu de tão bom paladar e tão nutritiva que tive a curiosidade de conhecer seu preparo. Fazem a princípio molhar os grãos na água; depois , quando inchados e ainda úmidos tiram-lhes a película externa; reduzem-nos a pequenos grãos. Colocam, então, a farinha em frigideiras de cobre levadas ao fogo, e agitam-na constantemente até que esteja seca e boa para ser comida; aqui a empregam como sucedâneo do pão, tão comumente como no Rio de Janeiro, em São Paulo e em outros lugares, a farinha de mandioca18. Além disso, o milho era fundamental para a pecuária da região. Segundo Saint-Hilaire, o milho era cultivado por todos os agricultores, não só por ser importantíssimo para a alimentação da população, mas também "(...) porque ele é para os animais de carga, o que é para nós a aveia, e é empregado também para engordar as galinhas, e sobretudo os porcos"19. De acordo com o quadro do relatório do Presidente da Província, a pecuária era a atividade mais lucrativa e a que mais compensava exportar. O mecanismo de articulação entre agricultura e pecuária parece ser o seguinte: uma produção agrícola diversificada e efervescente para abastecer principalmente o mercado mineiro, conjugada a uma grande exportação de gado vacum, porcos em pé, toucinho e algum açúcar e café. Vejamos as observações feitas pelo Presidente da Província sobre algumas localidades: Desemboque: (...)não existem engenhos de mineração mas somente alguns de moer canna para o consumo do paiz. Que os habitantes sendo creadores e agricultores empregão todos os seus cuidados neste gennero d'indúsdria, creando em grande escala gado vacum, cavallar, ovelhum, cabrum, e suino de que vendem annualmente considerável número de cabeças; cultivão milho, feijão, arroz, algodão e outras especies de plantações, cujos produtos consomem-se no paiz(...) Tamanduá: (...)a creação de gado faz parte da pequena exportação que faz, sendo a de porcos e pannos d"algodão a que mais avulta(...) Piumby: A creação de porcos para o mercado é o maior forte dos fazendeiros, os productos de canna fabricão-se somente para o consumo do município, em razão da difficuldade do transporte para outros mercados. Uberaba: Sobre este município o Presidente informa que tem um solo fertilísssimo e se planta milho, feijão, arroz e cana mas que não se exporta por falta de estradas. Acrescenta que a exportação do gado vacum e suíno constitui a principal riqueza do município. Abre Campo(distrito de Mariana): (...)tem vários terrenos minerais, porém a população em geral só cuida da cultura. Calcula-se exportar anualmente para o Espírito Santo, Campos, Ouro Preto e 17 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1975, p. 106. Embora haja um grande número de inventários com a presença de "forno de cobre de torrar farinha de mandioca", nunca encontrei uma única referência a plantações de mandioca. É possível que tais fornos fossem usados para fazer farinha de milho ou então que a produção daquela tivesse caráter tão doméstico que não valia a pena declará-la. 18 MAWE, John. Op. cit., p. 139. 19 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 106. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 65 Mariana mais de 5 mil arrobas de toucinho para cujos lugares são igualmente enviados os produtos da cana.20 Percebemos por estas informações que os produtos que melhor suportavam os altos custos de transporte e que, portanto, valia a pena exportar para distâncias mais longas, eram porcos e açúcar. Era muito comum a conjugação do cultivo de produtos agrícolas tipicamente destinados à subsistência (milho, arroz e feijão), paralelamente à produção de gêneros exportáveis. Apesar de existir esta concomitância, no caso dos inventários analisados é muito difícil definir em que medida os primeiros eram para o consumo interno da fazenda e os segundos para o mercado, ou viceversa. Pelos inventários de Mariana percebemos que praticamente inexistia a produção especializada de culturas tipicamente voltadas para exportação. O cultivo da cana-de-açúcar, café, algodão ou, muito ocasionalmente, do fumo, era quase sempre feito conjuntamente com a agricultura de subsistência. De qualquer forma, aumentou gradativamente o número de unidades produtivas com produção agrícola que se dedicavam aos dois tipos de cultura (tabela 2). TABELA 2 Percentual de U.P. agrícolas com presença de culturas só de exportação, só de subsistência e mistas21 Mariana - 1750-1850 Período Total de U.P. U.P. c/produção de exportação # U.P. c/produção de subsistência % # U.P. c/produção mista % # % 1o 16 - - 15 93,8 1 6,2 2o 56 2 3,6 42 75,0 12 21,4 3o 108 3 2,8 46 42,6 59 54,6 Fonte: Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M. #: Números absolutos. De acordo com o quadro apresentado pelo Presidente da Província no relatório do ano de 1854, Mariana tinha como atividades principais a agricultura e a mineração, e possuía 313 20 R.P.P. 1854. Consideramos somente o número de U.P. com atividades agrícolas para as quais foi possível estabelecer o tipo de produto cultivado. 21 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 66 fazendas22, 307 engenhos de cana, 14 engenhos de socar formação aurífera e 19 de serrar madeira. Também existiam 11 fábricas de ferro, 1 de cêra, 1 de louça branca e 1 de chá. Além disso, há referências à fabricação de cangalhas em Sumidouro e de panelas de pedra e "outros vasos" em Cachoeira do Brumado. Em Paulo Moreira "faz-se com alguma perfeição obras de seleiro". Já o distrito de Ponte Nova, além de se dedicar à agricultura, "exporta madeira de qualidades apreciáveis". Embora o relatório não mencione a "indústria têxtil" como atividade importante em nenhum dos distritos, é interessante lembrar que em Catas Altas mais de um terço dos chefes de domicílio (34,4%) tinham como profissão alguma atividade relacionada a esta produção23. Nos dez distritos do município de Mariana que vêm descritos separadamente neste relatório, a pecuária era citada como atividade importante em pelo menos quatro: Sumidouro, Inficionado, Cachoeira do Brumado e Abre Campo24. Vale lembra que por esta época muitas localidades antes pertencentes ao termo haviam sido transformadas em municípios independentes ou desmembradas e passadas a integrar outra jurisdição. 2. Traços estruturais do sistema econômico 2.1. Forma extensiva de produção Depois desta explanação, resta-nos agora tentar compreender como se organizava a produção destes artigos. O sistema econômico em questão tinha como característica estrutural uma forma extensiva de produção baseada, principalmente, na mão-de-obra escrava. São por demais conhecidos os relatos de viajantes e contemporâneos que descrevem a "irracionalidade" das técnicas rudimentares e "primitivas" da agricultura que era praticada. Enfatizam sempre a não utilização do arado e fertilizantes no cultivo. O trabalho agrícola se reduzia a roçar e derrubar o mato, ajuntar a madeira e queimá-la, fazendo as cinzas o papel de fertilizante. Em seguida, cavavam-se buracos onde lançavam as sementes e cobriam-os com terra. A partir daí pouquíssimos trabalhos eram necessários e variavam de acordo com a cultura. Ao lado das queimadas, o sistema de pousio constituía a principal prática agrícola da região. Normalmente, depois de se fazer duas colheitas consecutivas em um terreno virgem, deixava-se a terra descansar de cinco a sete anos, até que o mato crescesse o suficiente para ser 22 Fazendas refere-se somente aos estabelecimentos com mais de 11 escravos as menores não vem contabilizadas já que, nas palavras do Presidente: "por falta de meios não se deve considerar como fazendas"(.R.P.P. 1854). Portanto, o número de propriedades agrícolas ou agropecuárias existentes no município era na realidade muito maior do que o apresentado pelo relatório. 23 Fiandeiras, tecedeiras e rendeiras constituíam as profissões de 25,3% dos chefes de domicílio; costureiras e alfaiates representavam mais 9,1%. 24 Relatório do Presidente da Província de 1853. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 67 novamente queimado. Neste estágio, "depois de uma única colheita, deixa-se a terra repousar novamente; novas árvores aí tornam a crescer, e se continua da mesma maneira até que o solo fique inteiramente esgotado. As espécies de bosque que se sucedem às matas virgens denominam-se capoeiras"25. Pelos quadros 1 e 2 (em anexo no final do artigo) montados a partir dos inventários, percebemos que, durante todo o período analisado (ou seja, de forma reiterativa), tanto nas grandes unidades produtivas quanto nas pequenas, ou, tanto naquelas que plantavam unicamente milho, feijão e arroz quanto nas que se dedicavam à cana-de-açúcar, os instrumentos utilizados eram sempre os mesmos, consistindo em: machados, foices, enxadas, cavadeiras e alavancas. Além disso, pela descrição dos bens imóveis feita nos inventários podemos constatar que praticamente todas as U.P. agrícolas tinham a presença de capoeiras, comprovando a prática do sistema de pousio na agricultura da região. Este era o caso do inventário do Capitão Antônio Álvarez Ferreira que em 1750, além de terrenos minerais, possuía 58 escravos e várias roças em porções de terras descontínuas, formadas por capoeiras e matos virgens. Cultivava-as com o auxílio exclusivo de foices, enxadas, machados e alavancas. João Martins de Medeiros era um pequeno agricultor que em 1810, ao morrer, deixara uma propriedade com 8 cativos e uma única "porção de terras de cultura quase reduzidas a samambaia com algumas restingas de mato virgem e capoeiras". Nesta porção de terra plantava-se milho e feijão, utilizando também foices, enxadas, machados e alavanca. Na fazenda do Capitão Joaquim Gomes Pereira, que era formada por uma "sesmaria de terras de cultura com capoeiras e matos virgens", em 1820, com 61 escravos, plantava-se milho, arroz, café e cana (para produzir aguardente e açúcar), utilizando-se somente de foices, enxadas, machados e alavancas26. Dos 366 inventários da nossa amostragem, nenhum tinha a presença de arado. Ou seja, independentemente do tamanho da fazenda, do cultivo e do período, a agricultura desenvolvida na região de Mariana baseava-se num mesmo tipo de sistema de uso da terra: aquele que prescindia de instrumentos de trabalho agrícola mais elaborados, principalmente por ter na constante incorporação de terras virgens e, portanto, mais férteis, o seu elemento central para a manutenção ou aumento dos níveis de produção. Se partirmos das noções de intensificação da agricultura e freqüência de cultivo de Ester Boserup27 para compreendermos a predominância destes rústicos instrumentos na técnica agrícola da época, perceberemos que tal prática nada tinha de "ignorância" ou de outras 25 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 90. Todos os casos citados serviram para a montagem dos quadros 1 e 2 em anexo. 27 BOSERUP, Ester. Las condiciones del desarrollo en la agricultura: la economia del cambio agrario bajo la presión demográfica. Madrid: Editorial Tecnos, 1967. 26 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 68 expressões pejorativas que se possa querer atribuir-lhe. Segundo a autora, os instrumentos de trabalho utilizados na atividade agrícola são determinados pelo sistema de uso da terra em questão que, por sua vez, é definido pela relação terra disponível/densidade populacional. Quanto maior for a freqüência com que se necessite cultivar um mesmo solo, maior será também a necessidade de se aplicar técnicas mais complexas. Neste sentido, em uma região com tanta abundância de terras virgens como era a de Mariana e onde, portanto, o tempo de pousio podia ser razoavelmente grande, não havia razão para que se desenvolvesse uma agricultura mais intensiva que implicaria, necessariamente, em um maior dispêndio de mão-de-obra. Prova da disponibilidade de terras virgens apropriáveis é o fato de praticamente todos os inventários28 referentes a unidades produtivas agrícolas ou agropecuaristas terem a presença de porções de mato virgem. Ademais, cerca de um terço de todas as unidades produtivas incluíam mais de uma porção de terra (tabela 3), o que demonstra a facilidade e a prática usual de se adquirir ou incorporar constantemente novos trechos à fazenda principal29. TABELA 3 Porcentagem de U.P.(de mineração, agricultura ou mistas) com presença de mais de uma porção de terras Período N total de U.P. No de U.P. com mais de uma porção de terra 1750-1770 21 6 28,6% 1780-1810 81 27 33,3% 1820-1850 153 43 28,1% o % de U.P. com mais de uma porção de terra Fonte: Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M. O comentário de Ester Boserup sobre a resistência dos agricultores em aderir a um sistema de cultivo mais intensivo, até mesmo quando incentivados por alguns governos, explica bem a existência de um cálculo racional motivando tal atitude: Tales objeciones son frecuentemente interpretadas como falta de interés en acrecentar la producción global, pero se puede sugerir que quizá sea más plausible explicarlas como el resultado de una comparación bastante racional entre el trabajo adicional necesario y la probable mejora de la 28 Vide os exemplos dos quadros 1 e 2 em anexo. Estas várias porções de terra podiam ou não, serem contíguas ao terreno original. A continuidade ou não de tais terras poderia ser importante para discutir outras questões, no entanto, o que nos importa discutir neste caso é o fato da possibilidade de incorporação de novas áreas ao terreno original, não sendo relevante a sua localização. 29 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 69 producción que se conseguirá. Entonces puede ser que esté basado en sólidos razonamientos económicos más bien que en la indolencia, lo que induce a las comunidades de cultivadores según el sistema de barbecho largo a rehusar el abandono del fuego y del hacha, cuando se les ofrece ayuda para el cambio al cultivo de arado, y preferiem irse a otro lugar del bosque, donde haya sitio para seguir practicando el sistema del barbecho largo30. As observações de Saint-Hilaire são exemplares quanto ao mecanismo que motivava os agricultores da região de Mariana a fazerem o mesmo tipo de cálculo sugerido por Boserup e explicam por quê, no nosso caso específico, era extremamente racional, e prática comum, a opção por este tipo de produção extensiva. Os comentários de Saint-Hilaire sugerem-nos até que surpreendente seria se os homens da época não fizessem tal opção: O interesse que o lavrador tem em conservar sua terra é a melhor garantia dos esforços que fará para bem cultivá-la: esse interesse não o possuíam os primeiros habitantes do Brasil, e mal o sentem seus atuais descendentes. Uma região imensa se lhes oferecia aos olhos; às vezes um homem subia a uma elevação e exclamava: "tudo que avisto me pertence"; e em tempos recentes ainda se viu recompensar por uma doação de vinte e quatro léguas de terras, sobre ambas as margens de um rio navegável, algumas obscuras vitórias alcançadas sobre índios tímidos. Homens que podiam dispor à vontade de um território imenso, não tinham nenhuma necessidade de tomar precauções para poupar o pedaço de terra em que acabavam de colher alguns grãos31. Além disso, nas condições do relevo e do tipo de cultivo praticado na região de Mariana, o uso do arado é que seria, de fato, irracional. Quando se pratica uma agricultura de coivara, o terreno aclarado (ou queimado) permanece com muitos resíduos e pode ser perfeitamente trabalhado pela cavadeira e pela enxada. Já o uso do arado exige uma superfície mais plana e sem obstáculos para dar bons resultados. Quanto à possibilidade de aumento da produtividade e, portanto, dos lucros que uma prática agrícola mais intensiva promoveria, as argumentações de Boserup nos parecem mais uma vez muito pertinentes e aplicáveis ao nosso caso. Sobre esta questão, argumenta que a complexificação das técnicas serve mais para compensar as deficiências de um solo mais freqüentemente cultivado do que propriamente para aumentar o volume da produção. Por tudo isso, existindo terras virgens disponíveis, não se passará a outro sistema de cultivo. O aumento dos rendimentos será preferencialmente incrementado mediante o acréscimo de novas áreas (virgens) altamente produtivas, com pouca inversão de tempo de trabalho ou pouco dispêndio de força de trabalho. Como bem observou João Luís R. Fragoso, estávamos diante de um sistema de uso da terra "em que a disponibilidade das matas substituía a existência de um trabalho adicional na refertilização dos solos ou de um longo período de pousio"32. Portanto, a reprodução da unidade produtiva estava diretamente vinculada à possibilidade de incorporação de matas virgens à 30 BOSERUP, Ester. Op. cit., p. 113. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., pp. 89-90. 32 FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Sistemas agrários em Paraíba do Sul (1850-1920). Rio de Janeiro: 1983. Dissertação (Mestrado em História) - UFRJ, p. 75. 31 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 70 fazenda __ o que funcionava como condição sine qua non para a reprodução ampliada do sistema econômico. Embora condenando o "exagerado" número de queimadas feitas no sistema de cultivo agrícola praticado na província de Minas, John Luccock demonstrou uma profunda sabedoria e senso de alteridade quando disse: "este processo, porém, é velho e aceito e, portanto, deve ser o melhor, e essas impressões hão-de perdurar até que as necessidades imperiosas da sociedade exijam uma transformação"33. Por volta de 1835 os efeitos negativos deste tipo de agricultura já se faziam sentir e preocupavam o presidente da província. A população em crescimento e o esgotamento das terras pareciam-lhe exigir providências urgentes: A facilidade , com que entre nós pode adquirir-se grande êxtensão de terras, e a sua natural fertilidade, são parte para que se tenhão conservado como que esquecidos os recursos, com que a Arte costuma tornal-as productivas. O fogo, e o machado, estes dous agentes de destruição, são os que se empregão quasi exclusivamente na cultura das terras, e d'aqui nasce que ellas parecem tornar-se estereis, passados alguns annos, e os possuidores julgão-se na necessidade de abandona-las como inuteis, quando ellas podião continuar a dar-lhes as mesmas, ou ainda maiores vantagens pelo emprego de forças artificiais. Esta consideração, não menos que o progressivo aumento da população, a par da qual devem caminhar as providencias agrarias, exige que se olhe com muita seriedade para um objecto, cuja importancia é manifesta n'uma Provincia agricola34. Ou seja, o Presidente da Província tocava nos pontos exatos que poderiam levar a uma transformação no sistema agrícola: incremento da população e esgotamento das terras (ou para ser fiel às idéias de Ester Boserup, aumento da freqüência de cultivo). No entanto, o antigo sistema perduraria ainda por longos anos __ com certeza até 1850 __ e, provavelmente, ultrapassaria os limites do século XIX. Cabem ainda aqui alguns comentários sobre a mineração, em cuja atividade, também se praticaram formas de exploração extensivas. Embora se possa dizer que nesse setor tenha havido um certo grau de intensificação das técnicas de produção, esta não foi além da construção de canais ou da passagem do sistema da bateia para o de escavação. A própria crise da mineração é uma prova concreta da produção extensiva como traço estrutural do sistema econômico em questão. Afinal, a crise da mineração na região não foi deflagrada por uma crise de demanda no mercado internacional pelo produto, nem pela escassez do ouro, mas sim, pelo esgotamento das "terras e águas minerais" de fácil exploração. O ouro ainda existia em abundância na região. O que não existia eram capitais suficientes para se investir numa forma de produção mais intensiva, como a que se tornara necessária. Prova disto é o relativo sucesso das companhias estrangeiras que se instalaram na região no século XIX. 33 LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1975, p. 294. 34 R.P.P., 1835, pp. X-XI. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 71 Para a mineração praticada na região, a incorporação de novas terras era tão, se não até mais, importante quanto para a agricultura. O percentual de unidades produtivas especializadas na mineração que possuíam mais de uma porção de "terras e águas minerais", seguiu os mesmos padrões das demais U.P., ficando em torno de 30% das propriedades. Também pelo quadro com exemplos de U.P. agropecuaristas e mineradoras em anexo, percebemos como era comum um único proprietário ter mais de um terreno apropriado para a exploração mineral. Na mineração, a produção tinha caráter ainda mais extensivo e predatório, já que, neste tipo de atividade, não é possível nenhuma prática equivalente ao pousio para a agricultura, por exemplo. Quando o ouro de fácil extração se esgotava, não adiantava deixar a terra em descanso para, anos mais tarde, retornar a produzir. Só restava ao minerador abandonar aquela terra ou usá-la para outros fins, para a produção agropecuária por exemplo, que muitas vezes já era desenvolvida paralelamente à atividade extrativa. Outra prova da forma extensiva de produção na mineração são os baixos investimentos em instrumentos de trabalho e equipamentos nas unidades produtivas que se dedicavam à mineração. Mesmo no caso da construção de canais e, às vezes, de galerias, que à primeira vista pareceriam exigir custos de inversão muito altos, na verdade tais gastos faziam parte da atividade normal de uma unidade produtiva mineradora, não se constituindo em nenhum gasto não previsível ou em uma inovação técnica diferenciadora35. Nas propriedades que se dedicavam à mineração, tanto quanto nos demais tipos de U.P., o grosso dos investimentos produtivos se concentrava na mão-de-obra escrava. É sobre esta questão que versará o próximo ponto. 2.2. Concentração das inversões produtivas Já vimos como a possibilidade de fácil acesso a terras virgens era importante para a reprodução do sistema econômico e se constituía num dos seus traços estruturais. Debruçar-nosemos agora sobre outro dado fundamental para o funcionamento da economia escravista mineira: a possibilidade de constante incorporação de mão-de-obra a baixos custos. Ao contrário do que acontece no capitalismo, em que as grandes inversões de capital na produção e as alterações tecnológicas são fundamentais para a reprodução ampliada da economia, no sistema econômico em questão (não-capitalista), esta era feita de forma extensiva: incorporando constantemente mais terras e mão-de-obra. Dependia fundamentalmente, portanto, 35 CARMAGNANI, Marcello. Formación y crisis de un sistema feudal: América Latina del siglo XVI a nuestros dias. 3a ed. México: Siglo Veintiuno Editores, 1980, p. 42. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 72 de uma fronteira aberta e de uma oferta elástica de mão-de-obra. João Fragoso, muito adequadamente, preferiu chamar este processo de reprodução extensiva36. Os mecanismos que possibilitaram o fornecimento de escravos a baixos custos durante praticamente todo o período colonial, foram muito bem explicados por João Fragoso e Manolo Florentino no livro O Arcaísmo como projeto37. Em nosso caso específico, percebemos que a oferta de cativos a baixos custos foi constante na região de Mariana de 1750 até 1850. Pela tabela 4 percebemos que o preço médio dos escravos chegou mesmo a declinar à medida que houve uma possibilidade para o crescimento vegetativo da população escrava e, portanto, maiores contingentes do plantel podiam ser repostos internamente. Só nos anos finais do período houve aumento nos preços, o que ocorreu devido ao fim do tráfico legal. TABELA 4 Variação do preço médios de escravos saudáveis com idade entre 20 e 30 anos em Mariana Ano Números absoluPreço médio em Preço médio em tos de escravos mil-réis libras 1750 33 169.136 47.577 1760 12 161.667 45.476 1770 24 101.625 28.586 1780 28 101.214 28.471 1790 60 107.250 30.169 1800 83 116.554 32.786 1810 62 128.171 38.291 1820 84 157.083 33.707 1830 114 310.281 29.477 1840 66 407.273 52.606 1850 72 519.583 62.133 Fonte: Inventários do I e II Ofícios da C.S.M. 36 FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Op. cit., 1983, p. 91. FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, c.1790-c.1840. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993. Principalmente o ponto 3 do segundo capítulo. 37 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 73 Os preços dos cativos em Mariana variaram muito pouco em relação aos praticados no Rio de Janeiro, ficando, no máximo, 9% mais caros que na Corte38. Além disso, se considerarmos que, até pelo menos 1850, o número de não-proprietários de escravos permaneceu sem sofrer alterações, chegaremos à conclusão de que, apesar de ter seu preço aumentado nas últimas décadas da nossa análise, o escravo não se tornou em Mariana uma mercadoria de acesso muito mais difícil. Ou seja, a possibilidade de aquisição deste tipo de mão-de-obra permanecia ainda bastante difundida entre a população da região. Num sistema econômico como o analisado, que se baseava numa forma de produção extensiva, no qual o crescimento ou a manutenção dos níveis de produtividade eram dados pela fertilidade do solo (terras virgens) e pelo aumento da área cultivada, as inversões produtivas39 do excedente se concentrariam majoritariamente na aquisição de mão-de-obra e nos imóveis. No capitalismo, os investimentos em equipamentos e instrumentos de trabalho constituem uma grande parte das inversões. No caso do sistema econômico vigente em Minas Gerais neste período, os instrumentos de trabalho representavam pouquíssimo, nunca ultrapassando os 1,37% do total da riqueza de todos os inventários e representando no máximo 1,8% da riqueza total das unidades produtivas. O grosso das aplicações produtivas era feito nos escravos e nas terras. Os escravos nunca representaram menos que 22,26% da riqueza total, sendo que nas U.P. este percentual ficou sempre acima dos 35%. Nas unidades produtivas os bens imóveis nunca representaram menos que um quarto da riqueza, chegando a compor 46,3% desta no último subperíodo (tabela 5). 38 Dados mais consistentes sobre este ponto foram apresentados no capítulo 2 de minha dissertação de mestrado. ALMEIDA, Carla M. C.de. Op.cit. 39 Consideramos investimentos na produção a soma dos valores dos escravos, dos instrumentos de trabalho, da colheita, do rebanho e dos bens imóveis. Infelizmente, não foi previsto pelo tipo de banco de dados que elaboramos para trabalhar com os inventários, separar os imóveis não diretamente ligados à fazenda (imóveis na cidade,por exemplo). Mesmo assim, não nos parece que tal fato cause grandes distorções, já que, ao tomarmos exemplos isolados estas propriedades tem um pequeno peso dentro do total dos imóveis. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 74 TABELA 5 Composição (%) da riqueza nos inventários de Mariana (por subperíodos) Só U.P.40 Todos os inventários 1o 2o 3o 1o 2o 3o Dinheiro - 5,65 3,54 - 0,8 2,7 Metais 1,56 1,09 0,14 3,2 0,7 0,2 Comércio 0,03 6,58 1,66 - 1,5 0,8 Jóias 0,68 1,31 1,18 1,3 1,3 1,0 Móveis 1,42 2,02 1,62 2,5 1,9 1,4 Instrumentos 0,76 1,35 1,37 1,4 1,8 1,8 Imóveis 15,70 17,28 25,26 28,5 25,5 32,4 Colheitas 0,12 0,55 0,60 0,2 1,0 0,8 Rebanho 0,76 3,40 4,27 1,5 3,3 5,7 Escravos 22,26 26,13 37,26 41,6 35,4 46,3 Divs. ativas 52,41 34,50 22,78 19,7 26,6 6,7 Outros 4,30 0,14 0,32 0,1 0,2 0,2 TOTAL: 100 100 100 100 100 100 Ativos Fonte: Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M. Para fazer uma avaliação mais detalhada e abrangente sobre a alocação dos investimentos produtivos nesta economia, pareceu-nos fundamental analisar separadamente os inventários relativos a unidades produtivas, ou seja, aqueles que se dedicavam de fato a algum tipo de atividade criadora de riqueza. Além disso, também fizemos uma separação entre as U.P. com e sem a presença da mineração, para tentar estabelecer possíveis diferenças na aplicação dos recursos que se relacionassem aos distintos tipos de produtos. Para isto, elaboramos as tabelas 6, 7 e 8. 40 Foram excluídos destes cálculos os autos 2155 e 2719, respectivamente de 1790 e 1820, que destoavam enormemente do conjunto. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 75 TABELA 6 Percentual que as inversões produtivas (e dentro destas os escravos) ocupavam no total da riqueza das U.P. por subperíodo em Mariana41 Subperíodo No de U.P. Inversões Produtivas Total da riqueza* total* % Escravos em relação às inversões produtivas total* % o 1 21 75.082,347 54.978,924 73,2 31.232,500 56,8 2o 81 189.269,612 126.696,664 66,9 67.081,600 52,9 3o 152 682.497,434 594.428,831 87,1 315.735,239 53,1 Fonte: Inventários do I e II Ofícios da C.S.M. * Valores em mil-réis. TABELA 7 Percentual que as inversões produtivas (e dentro destas os escravos) ocupavam no total da riqueza das U.P. c/ mineração por subperíodo em Mariana Subperíodo No de U.P. Total da riqueza* Inversões Produtivas total* Escravos em relação às inversões produtivas % total* % 1o 13 57.343,696 41.617,325 72,6 23.008,500 55,3 2o 28 106.601,662 66.327,333 62,2 33.989,200 51,2 3o 22 136.339,720 108.744,114 79,8 39.495,410 36,3 Fonte: Inventários do I e II Ofícios da C.S.M. * Valores em mil-réis. 41 Também excluídos os autos 2155 e 2719. O mesmo procedimento foi seguido na elaboração das tabelas 7 e 8. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 76 TABELA 8 Percentual que as inversões produtivas (e dentro destas os escravos) ocupavam no total da riqueza das U.P. sem mineração por subperíodo em Mariana Subperíodo No de U.P. Inversões Produtivas Total da riqueza* total* % Escravos em relação às inversões produtivas total* % 1o 8 17.738,651 13.361,599 75,4 8.224,000 61,5 2o 53 82.667,950 60.369,331 73,0 33.092,400 54,8 3o 130 46.157,714 485.684,717 88,9 276.239,829 56,9 Fonte: Inventários do I e II Ofícios da C.S.M. * Valores em mil-réis. Comparando os investimentos que são feitos diretamente na produção (ou na fazenda) com os que são aplicados fora dela, constatamos que as aplicações produtivas nunca chegaram a representar menos que 67% do total da riqueza, chegando a atingir 87% no último subperíodo. Esta grande concentração dos investimentos na produção perpassa todo o período e todos os tipos de unidades produtivas (com ou sem mineração, no caso). Por exemplo: nas U.P. com presença da mineração, este número variou entre 62,2% e 79,8%, e naquelas em que a mineração estava ausente, oscilou entre 73% e 88,9%, ficando portanto este percentual muito alto em todos os subperíodos e tipos de U.P. Tais dados demonstram o caráter reiterativo e, conseqüentemente, estrutural deste aspecto do sistema econômico. À primeira vista, tais constatações poderiam sugerir uma grande preocupação com o aumento da produtividade. No entanto, apesar das inversões produtivas serem extremanente elevadas, elas não eram feitas visando mudanças técnicas. Pelo contrário, o grosso das inversões eram feitas em escravos e bens imóveis, ou seja, em mão-de-obra e área a ser trabalhada. Na média geral de todas as propriedades, os escravos sempre representaram mais da metade dos investimentos produtivos, havendo algumas variações entre as com e as sem produção mineral. Considerando que estamos frente a uma economia que depende da incorporação constante de terras virgens e mão-de-obra para se reproduzir, taxas tão elevadas de investimento na produção devem ser entendidas como sendo necessárias mais para garantir o nível da produção do que propriamente para aumentá-la. Prova disto é que, como já vimos, não há nenhuma alteração nas técnicas de produção ou nos instrumentos de trabalho utilizados durante todo o período. Além dos instrumentos de trabalho empregados com mais freqüência terem sido Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 77 os mesmos, desde 1750 até 1850, eles nunca representaram mais do que 1,6% do monte geral das U.P. e chegaram a representar, no máximo, 2,5% dentro do total da riqueza produtiva. É importante lembrar que baixo nível técnico, concentração majoritária dos investimentos em escravos e mão-de-obra, são traços estruturais encontrados para outras regiões com tipos de produção bastante distintos. Estou me referindo especificamente ao trabalho de João Fragoso sobre o sistema agrário de Paraíba do Sul. É interessante como as nossas constatações estão tão próximas e confirmam as afirmações de Fragoso: Em outras palavras, retomando o gráfico no 3 e o quadro 14 se eles nos demonstram a pequena participação dos "investimentos" em equipamentos no valor da fazenda, por outro lado, eles também nos informam que os "investimentos" e, portanto, que o sobre-trabalho extraído dos escravos se convertia principalmente em terras e em força de trabalho, cujo o valor relativo em conjunto representava nunca menos que 50% do total da fazenda. E se a isso combinamos à persistência, no tempo, dos instrumentos de trabalho agrícolas (...) e do sistema de uso da terra (...), isto é, do baixo nível técnico por eles representados, infere-se que o sobre-trabalho invertido na lavoura assumia aspectos quantitativos não gerando uma mudança técnica, mas antes a "repetição de um processo de produção", o que caracteriza a reprodução desse sistema como extensiva42. É possível que estejamos frente a uma mesma forma ou lógica de produzir que, com pequenas alterações regionais, estaria presente em grande parte do território (ou pelo menos da região centro-sul) e de todo o período colonial brasileiro. À medida que novos estudos regionais forem sendo produzidos, talvez possamos estabelecer melhor, os limites de abrangência deste sistema econômico. 2.3. Hierarquia social excludente A concentração da riqueza em muitas ou poucas mãos nos revela em que medida uma sociedade é mais ou menos justa, ou até que ponto há possibilidades de ascensão social em seu seio43. Ao analisarmos alguns indicadores de como estava distribuída a riqueza entre os inventariados de Mariana que a nossa amostragem abarca, chegamos a outro traço estrutural do sistema econômico: a existência de uma hierarquização social extremamente acirrada e excludente e que se perpetuava ao longo do tempo. Pelas tabelas 9 e 10 verificamos que há uma diminuição do número percentual de inventariados na faixa de grandes fortunas ao longo do tempo acompanhada de um aumento proporcional da quantidade de riqueza que detêm. Isto significa que embora tenha diminuído o 42 FRAGOSO, João Luís R. Op. cit., 1983, p. 91. Na sociedade escravista este conceito de justiça é muito relativo na medida em que grande parte da riqueza é constituída por homens (escravos). De qualquer forma, estamos nos referindo especificamente aos homens livres, ou seja, à possibilidade de uma maior ou menor eqüidade entre eles. Obviamente quando falamos aqui em ascensão social estamos também nos referindo exclusivamente aos homens livres. 43 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 78 número de grandes fortunas declínio __ ou seja, o nível de riqueza da economia como um todo estava em __ , a concentração da riqueza tendeu a aumentar, já que, apesar do número de proprietários da maior faixa de fortunas ter caído pela metade do primeiro para o segundo subperíodo, o percentual de riqueza concentrado nesta faixa se manteve o mesmo. Se considerarmos que no último subperíodo tanto a porcentagem da riqueza quanto a dos inventariados caiu pela metade, constataremos que o perfil desta faixa permaneceu proporcionalmente igual ao anterior. TABELA 9 Distribuição dos inventariados e dos montes por faixas de tamanho de fortuna (números absolutos em libras) e subperíodo Total Invs. Soma total dos montes até 1000 Libras Montes Invs. 1o 34 42.725,868 1.146,388 25 9.184,823 5 22.394,657 4 2o 128 99.659,038 8.589,251 108 20.539,229 14 50.530,558 6 3o 204 127.695,574 7.437,388 173 48.663,152 28 31.595,034 3 Sub 1001 a 3000 Libras Montes Invs. + 3000 Libras Montes Invs. Fonte: Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M. TABELA 10 Distribuição dos inventariados e dos montes por faixas de tamanho de fortuna (números percentuais) e monte-mor médio subperíodo Sub. Monte médio 1o 45,855 26 73 1.836,964 22 15 5.598,664 52 12 o 64,715 29 84 1.467,087 20 11 8.421,759 51 5 o 74,204 37 85 1.737,969 38 13 10.531,678 25 2 2 3 Até 1000 Libras % riqueza % invs. 1001 a 3000 Libras monte médio % riqueza + de 3000 Libras % invs. monte médio Fonte: Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 % riqueza % invs. 79 Ao verificarmos que entre 1780 e 1810 somente 5% dos inventários detinham mais da metade da riqueza e entre 1820 e 1850 somente 2% concentravam um quarto do total dos montes, e que, além disto, durante todo o período a enorme maioria da população inventariada (73 a 85%) nunca possuiu mais do que 37% da riqueza, concluímos que estamos frente a uma sociedade extremante excludente em que a possibilidade de alçar vôos em termos de ascensão social foi vedada à grande maioria das pessoas livres. Além disso, comparando os dados da tabela 11 com os resultados encontrados por João Fragoso para o Rio de Janeiro, percebemos que essa hierarquia social excludente não foi uma especificidade de Minas Gerais mas antes, um traço comum a várias regiões coloniais. Enquanto em Mariana 10% dos inventariados detiveram entre 52,4% e 63,7% da riqueza, Fragoso demonstrou que no Rio de Janeiro, entre 1797 e 1860, "mais de 60% dos montes-brutos são retidos por 9,1% a 14,0% dos inventariados"44. A tabela 10 nos permite também avaliar que faixas de tamanho de fortunas foram mais ou menos afetadas pela crise da mineração. Embora diminuindo numericamente, os homens mais ricos da região ficaram, em média, ainda mais ricos, já que dentro da faixa de fortuna mais alta o monte-mor médio aumentou gradativamente, ao passo que nas demais faixas a tendência foi de um declínio constante do valor médio do monte. A faixa de fortuna intermediária (ou os médios possuidores de riqueza) é que sofreu menos alterações no valor dos seus níveis de riqueza, tendo o seu monte-mor médio oscilado entre os valores de 1.467,087 (2o subperíodo) e 1.836,964 libras (1o superíodo). Entre 1750 e 1770 um inventário da maior faixa de fortuna implicava em média 13 vezes mais riqueza que um da menor faixa. No último subperíodo esta disparidade chegou a ser de 38 por 1, ou seja, um homem rico tinha em média 38 vezes mais riqueza do que um inventariado da menor faixa de fortuna! Tais dados nos permitem afirmar que, à medida que avançamos no tempo, entre os homens livres, os mais ricos ficaram cada vez mais ricos, os mais pobres cada vez mais pobres, e os possuidores de faixas médias de fortuna, relativamente estáveis. Em outras palavras, os níveis da desigualdade entre as pessoas livres aumentaram muito no decorrer do período e tenderam para uma extrema polarização da riqueza e da pobreza. Outro fator de comprovação da existência e persistência de uma hierarquização social dos livres tão excludente na região de Mariana, é a concentração das dívidas ativas em pouquíssimas mãos. 44 FRAGOSO, João Luís Ribeiro Fragoso. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992, pp. 254-255. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 80 TABELA 11 Percentual da riqueza e das dívidas que os 10% de inventariados mais ricos detinham e da % que as dívidas ativas representavam na composição de suas fortunas Subperíodo 1o % da riqueza total detida pelos 10% mais ricos 52,4 % do total das dívidas detida pelos + ricos % das dívidas na riqueza dos + ricos 76,1 76,1 2o 63,6 79,8 43,3 3o 53,7 82,3 35,0 Fonte : Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M. Embora quase todos os inventariados possuíssem dívidas ativas e fosse muito comum a conjugação de algum tipo de atividade comercial (empréstimos, casa de comércio, existência de tropas para comercializar a produção, dentre outras) com a atividade produtiva dentro das empresas, a concentração do crédito em poucas mãos confirma as observações de Fragoso e Florentino sobre o predomínio do capital mercantil na economia colonial. Ou seja, o fato dos 10% de homens mais ricos da região deterem no mínimo 76,1% e no máximo 82,3% da soma de todas as dívidas ativas existentes, e destas nunca terem representado menos que 35% de suas fortunas, revela que o capital mercantil foi mais lucrativo que o produtivo e que, à grande maioria da população livre estava vedado o acesso em níveis significativos a este tipo de rendimento. As observações dos autores são conclusivas para o caso que estudam e nos parecem aplicáveis ao que encontramos em Mariana: Ora, sabendo-se que os níveis de rentabilidade do agro são inferiores aos obtidos no comércio, podemos formular a seguinte tese: a dinâmica de funcionamento do mercado não capitalista, no caso do Brasil, conduzia os mais pobres homens livres ao investimento nas atividades de menor lucratividade, com o que perpetrava-se a pobreza e a reiteração temporal da altíssima diferenciação social __ do poder, enfim. A única possibilidade de reversão desta tendência seria o acesso das menores fortunas à esfera mercantil, opção definitivamente vedada aos pobres45. 45 FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 78. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 81 3. A dinâmica a curto prazo 3.1. Tendência à diversificação econômica O sistema econômico em funcionamento na região de Mariana entre os anos de 1750 e 1850, desenvolveu uma estratégia de resistência às conjunturas econômicas desfavoráveis que consistiu em uma tendência à diversificação da unidade produtiva visando, não só uma redução dos custos de reprodução __ e, portanto, ao aumento dos lucros __ , mas também a uma menor dependência do mercado. Numa economia que tem sua "taxa de lucro" definida pela diferença entre o preço de custo e o preço de venda dos produtos, a diminuição dos custos monetários é fundamental para o perfeito funcionamento da unidade produtiva e, segundo Witold Kula, esta é uma tendência geral dos sistemas econômicos não-assentados no trabalho assalariado. Analisando as unidades produtivas da economia feudal polonesa, Kula fala da tendência à "naturalização máxima" (produção interna à U.P. do maior número possível de bens necessários ao domínio) para a "comercialização máxima". Vejamos: A produção deve, pois, manter-se a si mesma e satisfazer as necessidades do consumo corrente do pessoal e da família do proprietário, e todo o dinheiro obtido através da venda do maior excedente possível deve destinar-se à compra de artigos de luxo. Naturalmente, quanto maior fosse o número de artigos produzidos na reserva em substituição dos que normalmente se adquiriam, maior seria o "nível de luxo" dos bens adquiridos a troco de moeda corrente sonante. Tratar-se-ia pois de uma tendência para a "naturalização" máxima em ordem a alcançar a comercialização máxima: fórmula que, por mais paradoxal que pareça, corresponde fielmente à realidade ou, pelo menos, às intenções do nobre46. No nosso caso, além dos cálculos de caráter exclusivamente econômico, achamos que a "naturalização máxima" visava à "comercialização máxima", não necessariamente de artigos de luxo mas, principalmente, de: escravos, símbolo de status para seu possuidor; e terras, motivada pelo ideal aristocratizante da elite colonial47. Em Minas Gerais é possível também que parte do excedente fosse destinado ao financiamento de obras de arte e/ou à construção de igrejas. Em uma sociedade onde todas as categorias sociais estavam ligadas a uma irmandade48 que, quase obrigatoriamente, devia construir templos para seus santos padroeiros, este talvez pudesse ter sido o destino de parte do excedente produzido. Só temos condições de aventar esta questão como hipótese. Estudos mais detalhados sobre este assunto poderiam trazer novas luzes sobre a esterilização de parte dos excedentes neste tipo de investimento. Além disso, a grande tributação imposta pela coroa, 46 KULA, Witold. Op. cit., 1979, p. 132. Sobre a aquisição de propriedades rurais como parte de um ideal aristocratizante da elite colonial ver: FRAGOSO, João e FORENTINO, Manolo. Op. cit., cap. IV. 48 Sobre a questão da vinculação dos diversos seguimentos sociais às irmandades ver: BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986. 47 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 82 principalmente sobre a produção de ouro, muito provavelmente influía nos cálculos econômicos dos proprietários e funcionava como mais um fator de influência na tendência à diversificação das U.P.. Ou seja, se era necessário aos produtores mineiros da época esterilizarem parte do seu excedente em obras de arte e tributação, tornava-se ainda mais fundamental reduzir os seus custos de reprodução com vistas a compensar os gastos "necessários" com mais estas "despesas". Essa necessidade de redução dos custos de reprodução da empresa se agrava ainda mais quando se depende em grande parte do mercado para repor o seu principal "meio-deprodução", no nosso caso, o escravo. Não podendo estar completamente independente do mercado para sua reprodução, as unidades produtivas tentavam reduzir ao máximo essa dependência, produzindo internamente os demais bens necessários à sua sobrevivência. Assim, quanto mais diversificada, mais lucrativa era a empresa e maiores eram as suas possibilidades de resistir às crises ocasionadas pelas flutuações do mercado. Minas Gerais levaria ao limite esta tendência das economias não-capitalistas no sentido de que conseguiu até, reproduzir internamente parte da sua força-de-trabalho. É interessante perceber que a tendência à diversificação aumentou na medida em que a produção de ouro entrou em crise. Ou seja, à medida que a economia mineira passava a se apoiar como atividade principal na agropecuária, a qual, como é sabido, gerava níveis de rendimentos muito menores que a mineração, a diversificação da U.P. passou a ser fundamental como estratégia para compensar as baixas nas taxas de rendimentos. Por isso, ao longo do período em questão, verificamos um aumento no número percentual de propriedades com presença de teares, roda de fiar, alambique, grade de fazer telha, tenda de ferreiro, etc. As unidades produtivas diversificadas sempre foram capazes de concentrar a maior parte da riqueza. Embora fossem sempre em menor número nos parece significativo, o fato das U.P. diversificadas, terem concentrado nunca menos que 71% da riqueza total das U.P. (tabela 12). Ademais, tiveram sempre o valor do monte-mor médio mais elevado que as especializadas (tabela 13). A diferença entre os valores do monte médio de uma U.P. especializada e uma diversificada ficou em torno de 2 por 1 a favor desta última. Ou seja, uma propriedade que se dedicasse a mais de uma atividade, possuía aproximadamente duas vezes mais riqueza que uma U.P. especializada. Quando consideramos o valor do monte médio por cada tipo de U.P. separadamente (tabela 14), percebemos que, quanto mais diversificada a U.P., maiores índices de grandeza ela demonstrava, já que quase sempre o valor do monte-mor médio era maior naquelas que concentravam mais atividades produtivas. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 83 TABELA 12 Subperíodo % da riqueza concentrada nas U.P.especializadas e diversificadas (por subperíodo) – Mariana Total da riqueza U.P. Especializadas U.P. Diversificadas das U.P. soma dos montes % soma dos montes % 75.082,347 14.209,403 19 60.872,944 81 2o 189.269,612 55.096,448 29 134.173,164 71 3o 682.497,434 136.012,776 20 546.484,668 80 o 1 Fonte: Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M. TABELA 13 Monte-mor médio em mil-réis nas U.P. especializadas e diversificadas (por subperíodo) – Mariana U.P. especializadas U.P.diversificadas o Subperíodo Monte médio n de inventários Monte médio no de inventários 1o 1.776,175 8 4.682,534 13 2o 1.530,457 36 2.981,626 45 3o 2.428,799 56 5.692,549 96 Fonte: Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M. TABELA 14 Monte-mor médio em mil-réis por tipo de U.P. e subperíodos e número médio de escravos em Mariana Tipos de U.P. 1750-1770 1780-1810 o Monte-mor médio o n médio escravos 1820-1850 n médio escravos Pecuária 359,854 2 758,370 6 1.178,045 2 Agrícola 1.847,134 6 907,930 7 2.669,687 7 Mineradora 2.153,671 14 3.838,885 8 2.131,353 4 Agropecuária 3.330,087 20 2.325,291 9 5.209,315 11 Agrícolamineradora Agropec.mineradora 3.998,013 20 4.050,573 19 9.017,085 14 5.555,521 24 3.739,912 20 8.028,743 15 Fonte: Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M Obs.: Excluídos das tabelas 13 e 14, os autos 2155 e 2719. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 Monte-mor médio no médio escravos Monte-mor médio 84 Também o número médio de escravos (tabela 14) nas unidades produtivas diversificadas foi, em todos os subperíodos, bem maior do que nas especializadas, sendo que, entre estas, o número médio tendeu a ser maior nas exclusivamente mineradoras, só sofrendo alteração no último subperíodo quando tal atividade já tinha caráter subsidiário dentro da economia como um todo. As propriedades que se dedicavam exclusivamente à pecuária foram as que apresentaram durante todo o período o menor número de escravos. Tais dados confirmam duas tendências já tradicionais dentro da historiografia: uma que constata a existência de maiores plantéis nas produções voltadas para a exportação, e outra que diz que a pecuária era a atividade que necessitava de menor contingente de mão-de-obra. O monte-mor médio tão baixo nas U.P. especializadas na pecuária nos sugere também que, de modo geral, estas eram propriedades que pouco comercializavam sua produção e que, quando o faziam, tinham como objetivo adquirir bens (agrícolas principalmente) necessários à sobrevivência dos seus membros. Ou seja, quando chegavam a comercializar os seus excedentes era mais no sentido de uma troca pelos alimentos que necessitavam do que propriamente para auferir lucros. As poucas U.P. exclusivamente pecuaristas realmente voltadas para o mercado também não conseguiam ter grandes lucros. As duas maiores propriedades exclusivamente dedicadas à pecuária existentes na nossa amostragem tinham os valores de seus montes enquadrados na menor faixa de fortuna com que estamos trabalhando (sucessivamente 312,651 e 626,872 libras). O que explica tão baixos níveis de riqueza é incapacidade destas U.P. em produzir internamente pelo menos parte dos bens necessários a sua auto-reprodução. Explicando melhor. Ao terem que recorrer ao mercado para suprirem todas as suas necessidades, principalmente de alimentos (arroz, feijão e milho49), mesmo tendo um rebanho comercializável, estas unidades produtivas não conseguiam ter grandes lucros porque parte dos rendimentos alcançados com a comercialização de seu excedente era destinado à compra dos bens necessários para sua reprodução. A produção pecuaristas que, se destinando ao mercado, não só provincial como também do Rio de Janeiro, conseguia ser consideravelmente lucrativa era aquela desenvolvida conjuntamente com a produção agrícola. Basta ver que o valor do monte-mor médio das fazendas de agropecuária chegou a ser, entre 1750 e 1850, nove vezes maior que os da pecuária. No último subperíodo, embora houvesse diminuído, esta diferença ainda era muito significativa, tendo as U.P. agropecuaristas monte médio 4,5 vezes maior que as de pecuária (tabela 14). Estas 49 Como já foi visto, no caso do milho além de fazer parte da dieta alimentar dos livres e dos escravos envolvidos na fazenda, era também fundamental na engorga do rebanho, o que tornava a sua não produção um fator agravante no que diz respeito ao aumento dos custos de reprodução da U.P. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 85 considerações nos parecem definitivas para provar que a tendência à diversificação econômica foi uma estratégia bem sucedida do produtor para reduzir custos e, conseqüentemente, tornar as propriedades mais lucrativas. Outro dado importante a considerar é o fato de ter crescido o número percentual de U.P. com presença de tropas50. Se os lucros da empresa advêm da diferença entre o preço de custo e o de venda do produto, a medida em que o produtor cuida ele mesmo da comercialização da produção, os rendimentos podem aumentar. Este é também mais um indicador de que as unidades produtivas tenderam para a diversificação tanto dos tipos de produtos quanto das atividades de possível desenvolvimento pela mesma. Para concluir, concordamos com João Fragoso e Manolo Florentino quando afirmam que existiu na colônia um tipo de estrutura produtiva que tinha sua dinâmica definida, pela constante incorporação de terras, alimentos e mão-de-obra a baixos custos, o que lhe possibilitava uma relativa autonomia em relação ao mercado exterior, e cujo "sentido" era a perpetuação de uma diferenciação social excludente51. 50 Os dados numéricos sobre esta questão já foram citados no capítulo II. de qualquer forma, o percentual de inventários com tropas passou de 3%, para 17% e 18% sucessivamente ao longo dos períodos. 51 FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. Op.cit. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 86 QUADRO I Quadro com exemplos de U.P. dedicadas à agropecuária Mariana 1750-1850 Ano No Plantel e Monte-mor 1750 No 1 16 cativos 4:799$308 IMÓVEIS Nome do inventariado e descrição dos imóveis -ANTÔNIO GONÇALVES PEREIRA -1 morada de casas c/quintal na cidade -1 sítio de roça, com casas de vivenda e senzalas, tudo coberto de capim, com capoeiras e restingas de mato virgem que levarão 60 alqs. de planta e 15 de milho plantado, sito na Varge. Edificações -paiol -moinho corrente e moente -roda de ralar mandioca c/eixo de ferro e mais aportes Instrumentos de trabalho e equipamentos Tipo de Produção -milho Rebanho -foices 12 -enxadas 13 -machados 4 -alavancas 1 -forno 1 -tachos 3 -carros 2 -cavalos 6 -suínos 31 -foices 5 -enxadas 6 -machados 4 -forno 1 -tachos 4 -bois de carro 8 -cavalos 3 -caprinos 3 -bovinos 5 -foices 7 -enxadas 7 -machado 1 -carapina 6 -tachos 2 -bovino 1 -suinos 8 -foices 16 -enxadas 12 -machados 5 -alavanca 1 -carapina 16 -grade de fa zer telha 1 -alambique 1 -tachos 2 -tachas 2 -formas de açúcar -pipa de guardar cachaça -foices 8 -enxadas 3 -machados 3 -cavadeira 1 -aparelho de ferrar 1 -carapina 2 -tachos 2 -roda de fiar 1 -tear 1 -carro 1 -cavalos 2 -muares 27 -juntas -JOÃO DE SOUZA SILVA 1750 No 2 17 cativos 2:477$653 -1 sítio de roça c/capoeiras q/levarão 30 alqs., c/restingas de mato virgem casas de vivenda e senzalas cobertas de telha, árvores de espinho e bananal. Sito na paragem do Pissarrão, Freg.de São Sebastião. -moinho corrente e moente - JOÃO FERREIRA TEIXEIRA LEAL 1770 No 3 28 cativos 2:713$299 1800 No 4 25 cativos 7:925$288 1810 No 5 15 cativos 4:641$915 -1 roça que consta de terras de planta, matos virgens e capoeiras. Com casas de vivenda térreas cobertas de telha e senzalas cobertas de capim. Sita no Corgo do Araújo Freg. do Furquim. -JOSÉ CARDOSO MACHADO -1 morada de casas no arraial de S. Sebastião coberta de telha de sobrado, c/a loja -1 rancho de telha p/a tropa no arraial -1 fazenda c/terras de planta, capoeiras e matos virgens, casas de vivenda e senzalas cobertas de telha sita na paragem de São Domingos, Freg. do Sumidouro. -1 fazenda chamada da Mutuca com rancho de capim, terras de planta, capoeiras e matos virgens, no caminho que vai p/ o R.J. -5 quarteirões de cana nova e outro de vez. -MARIA DA COSTA DE OLIVEIRA -1 morada de casas de sobrado c/quintal, sitas no arraial da Espera -1 fazenda c/casas de vivenda coberta de telha c/uma sesmaria de terras de planta, matos e capoeiras. Sita no Ribeirão da Lage, Aplicação da Espera. -engenho de água de cana -paiol -moinho -paiol -moinho -monjolo -cana -algodão -milho (550alqs.) -arroz (50alqs.) -feijão (8alqs.) -açúcar (17arrobas, +312 vendidas no RJ) -aguardente ( 6 barris) -milho (300alqs.) Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 de boi 3 -bovinos 25 -suínos (vários) -juntas de boi 2 -cavalos 2 -muares 11 -bovinos 6 -suínos: de seva 11 de pasto 40 87 -JOÃO MARTINS DE MEDEIROS 1810 No 6 8 cativos 1:472$475 -a parte q/tem nas casas da Piranga -1 porção de terras de cultura quase reduzidas a samambaia c/algumas restingas demato virgem e capoeira, c/casas de sobrado coberta de telha e senzalas cobertas de capim. -paiol -moinho -monjolo -milho (600alqs.) -feijão (10alqs.) -foices 12 -enxadas 9 -machados 3 -alavanca 1 -carapina 8 -tachos 3 -carros 2 -juntas de boi 3 -muares 11 -bovinos 6 -suínos: de pasto 20 -engenho corrente e pertences -2 moinhos -2 paióis -monjolo -chiqueiro -milho (1500alqs.) -arroz (120alqs.) -açúcar (40arrobas) -aguardente (26 barris) -café -foices 32 -enxadas 37 -machados 8 -alavancas 3 -carapina 35 -tenda de ferreiro 1 -forno 1 -alambique 1 -tachos 5 -tachas 3 -carros 4 -carretões 2 -juntas de boi 12 -muares 2 -bovinos 8 -suínos: capados 25 d/pasto 125 -moinho -paiol -engenho de bois -arroz -cana -milho (200alqs.) -açúcar mascavo (20arrobas) -foices 18 -enxadas 13 -machados 3 -alavanca 1 -carapina 17 -formas de açúcar 12 -alambique 1 -esfriadeiras 2 -grade de rapadura 1 -coxos de garapa 3 -pipa para aguardente 1 -tachos 5 -tachas 2 -carros 3 -tear 1 -juntas de boi 6 -bovinos 4 -suínos: capados 10 de pasto 60 -CAPITÃO JOAQUIM GOMES PEREIRA 1820 No 7 61 cativos 10:466$208 -1 sesmaria de terras de cultura com capoeiras e matos virgens. -1 fazenda sita na mesma sesmaria c/casas de vivenda assobradadas e senzalas cobertas de telha c/ quintal, bananal e cafezal -1 canavial c/2alqs. de planta c/parte do mesmo a cortar-se -1 feijoal de 3alqs.de planta e 1 quarta -CAETANA CORREA DE MAGALHÃES 1830 No 8 15 cativos 8:155$461 -1 sesmaria de terras c/capoeiras. Mato virgem que se diz serem sobras da dita sesmaria. Com casas de vivenda e senzalas cobertas de telha. -1 roça de 7 e 1/2alqs. de milho novo plan tado na cana nova e arrozal. -1 corte de cana p/se moer no presente ano q/levará 3quartas de planta de milho. -1 dito que levará 1/2 quarta de planta que está nascendo no presente. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 88 - MANOEL LUÍS PEREIRA 1850 No 9 5 cativos 3:892$900 -20alqs. de terras de planta boas e más. - Uma morada de casas de vivenda. -1 porção de terras -Mais 2 alqueires que foram de Manoel da Silva Filgueiras. -paiol -moinho c/pouca água -engenho de bois c/alguns pertences -monjolo -seva p/porcos -cana -milho -arroz -foices 6 -enxadas 6 -machados 2 -alavanca 1 -cavadeira 1 -tachos(as) 5 -forma/açúcar 2 -carros 3 -tear 1 -carapina 1 -cavalo 1 -bovinos 16 -suínos 22 -1 porção de cana plantada de novo -1 roça de milho muito inferior de dois alqueires e meio de planta. -1 porção de cana mais velha. -1 arrozal inferior que dará oito alqueires. Fonte: Inventários da C.S.M.: No 1: I Ofício - códice 29 - auto 720 - Local: Mariana (Varge) No 2: I Ofício - códice 156 - auto 3261 - Local: Freguesia de São Sebastião No 3: I Ofício - códice 80 - auto 1698 - Local: Freguesia do Furquim No 4: I Ofício - códice 65 - auto 1400 - Local: Arraial de São Sebastião No 5: I Ofício - códice 114 - auto 2371 - Local: Freg. de Sto.Ato. da Itaberaba (Aplicação da Espera) No 6: I Ofício - códice 149 - auto 3119 - Local: Freguesia da Pomba (Distrito de Sra. das Dores) No 7: I Ofício - códice 93 - auto 1943 - Local: Freguesia da Barra Longa No 8: I Ofício - códice 140 - auto 2917 - Local: Freguesia de São Caetano No 9: II Ofício - códice 35 - auto 817 - Local: Freguesia do Inficionado Observações: 1) forno: refere-se sempre a forno de cobre de torrar farinha. 2) carapina: indica todos os instrumentos de carpinteiro, ferreiro e pedreiro. 3) todos os tachos foram incluídos como equipamentos por ser difícil separar os de uso exclusivamente doméstico dos demais. 4) Freg.: Freguesia 5) alqs.: alqueires. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 89 QUADRO II Quadro com exemplos de U.P. dedicadas à agropecuária e mineração Mariana 1750-1850 Ano No Plantel Monte-mor 1750 No 1 58 cativos 17:622$720 IMÓVEIS Nome do inventariado e descrição dos imóveis -CAPITÃO ANTÔNIO ÁLVAREZ FERREIRA -1 morada de casas q/servem de venda ao pé da capela de Santo Antônio. -1 morada de casas q/servem de loja e (...)na mesma paragem. -1 morada de casas térreas cobertas de telha c/seu quintal no arraial de Guarapiranga. -1 sítio de roça e lavra c/terras minerais e água metida, casas de vivenda e senzalas cobertas de telha. -Umas terras de roça c/capoeiras q/ levarão 35alqs. de planta e mato virgem de uma e outra parte do rio Piranga c/terras minerais,corgo de águas metidas q/(...) datas de terras minerais tirada de um ribeirão pertencente às mesmas terras. Edificações Tipo de produção -paiol -moinho -engenho -roda e caixão (...) e o mais necessário de serviço -ferragem de roda e caixão Instrumentos de trabalho e equipamentos Rebanho -foices 5 -enxadas 10 -machados ? -alavancas 5 -almocafres 8 -tachos 4 -forno 1 -cavalos -caprinos -bovinos -suinos -foices 7 -enxadas 7 -machados 3 -alavanca 1 -marrão 1 -carapina 3 -tachos 4 -forno 1 -cavalos 2 -junta de boi 1 -bovinos 7 -suínos 18 1 5 2 9 -2 datas de terras minerais no rio da Guarapiranga. -2 datas de terras minerais no rio da Guarapiranga, acima da cachoeira. -Umas capoeiras q/levarão 150alqs.de planta c/restingas de mato virgem sitas no corgo chamado o Angú que faz barra no rio Pirapetinga. -1 posse de roça com terras de matas virgens sita no ribeirão do (Turvo) q/faz barra no rio Chopotó, a qual pela vizinhança do gentio por hora não se lhe pode dar valor algum. 1770 No 2 17 cativos 7:057$283 -LICENCIADO JOÃO FRANCISCO NOGUEIRA -1 morada de casas térreas cobertas de telha com quintal no arraial de São Sebastião. -1 rancho de capim quase a cair com quintal, bananal e laranjeiras no dito arraial. -1 roça sita na Freg. de São Caetano q/(...) de capoeira já em sambambaia c/rancho de capim e quintal. -Umas datas de terras minerais sitas no Escalvado, Freg. de São Caetano serão 50 datas de terras. -monjolo -milho (? alqs.) -feijão (20alqs.) Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 90 -10 datas de terras minerais e águas minerais no rio da (...) Freg. de São Sebastião, com terras de planta. -MANOEL PEREIRA MALLEDO 1790 No 3 15 cativos 8:621$065 -1 morada de casas no arraial de Barra do Bacalhau c/sua loja, bananal e pasto cercados, c/água dentro. -paiol -milho (2000alqs.) -arroz (30alqs.) -1 morada de casas térreas cobertas de telha c/quintal no dito arraial. -1 roça chamada do Machado c/terras de planta, capoeiras e matos virgens c/terras minerais e águas metidas, casas de vivenda e senzalas cobertas de telha, sita na paragem da Barra do Bacalhau. -1 sítio c/terras inferiores de planta, c/casas de vivenda cobertas de telha,c/preguiça e 10alqs. de milho plantado na paragem do córrego Santo Ato. nas vertentes de Teixeira. 70 cativos 6:520$460 -milho (800alqs.) -feijão (40alqs.) -1 morada de casas de sobrado cobertas de telha, c/quintal, árvores de espinho e bananal cercado de pau de braúna no arraial de São Caetano. -Uns chãos que foram casas velhas que se demoliram. -1 sítio na Freg. de Furquim c/terras de planta safadas e minerais no veio do rio e fora dele c/um rancho coberto de telha. -1 sesmaria de terras de planta, capoeiras e matos virgens nas cabeceiras do Bom Retiro, Freg. do Furquim. -1 sítio na Ressaca, Freg. de São Caetano, c/águas e terras minerais, regos metidos e terras minerais no veio do rio, um rancho de telha e senzalas cobertas de capim. -muares 10 -juntas de boi 2 -bovinos 11 -suínos: de seva 6 de pasto 42 -moinho -escaroçador de cana -ALFERES MANOEL DA COSTA SILVA 1800 No 4 -foices 10 -enxadas 10 -machados 6 -cavadeiras 2 -carapina 14 -tachos 8 -carros 2 -roda de fiar 1 -paiol -moinho corrente e moente -moinho corrente e moente Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 -foices 18 -enxadas 12 -machados 3 -alavancas 2 -carapina 11 -forno 1 -tear 1 -tachos 3 -almocafres 10 -tenda de ferreiro 1 -roda de minerar 1 -1 rodete c/15 ganchos de ferro -1caixão de ro da c/17 cavilhas de ferro -95chapas de ferro de rosários c/cavilha -cavalos 3 -muares 4 -juntas de boi 3 -bovinos 3 -caprinos 20 91 -LINO COELHO DE OLIVEIRA DUARTE 1800 No 5 25 cativos 8:349$150 -1 fazenda denominada Seringa c/casas de vivenda de sobrado, senzalas e casa de tenda cobertas de telha e mais rancho coberto de capim, pomar de café e horta, terreiro, tudo cercado de rachas de braúna, c/todas as terras de cultura e mineral pertencentes à mesma fazenda e assim mais o sítio comprado a (...) e também as terras denominadas Mato Dentro por (...) todas unidas à fazenda da Seringa. Freg. de Guarapiranga. -2 moinhos -engenho de água e bois -paiol -milho -cana -foices 8 -enxadas 10 -machado 1 -tenda de ferreiro 1 -alambique 1 -tachas -tacho 1 -carros 2 -cavalos 2 -muares 11 -juntas de boi 6 -bovinos 4 -suínos: de seva 9 de pasto 50 -foices 3 -machados 6 -cavadeiras 2 -alavancas 2 -carapina 7 -tachos 2 -cavalos -muares -bovinos -suínos -caprinos -1 canavial q/levará 3 quartas de planta de minho, quase toda muito nova. -1 roça de milho q/levará 6alqs. E promete pouco rendimento na colheita -ARCÂNGELA MARIA DE SOUZA 1840 No 6 11 cativos 6:320$280 -1 morada de casas no arraial de Camargos fronteiras ao cruzeiro. -moinho -1 morada de casas cobertas de telha c/chácara de café, árvores de espinho, bananal, cercada de (...) rego de água, situada na fazenda denominada de Domingos Mendes. -1 porção de terras de cultura que terá meia sesmaria que se compõe de vários capões de mato e campos de criar, terras minerais e seu rego. Fontes: Inventários da C.S.M: No 1: I Ofício - códice 36 - auto 843 - Local: Freguesia de Guarapiranga (Sto. Ato. do Rio Abaixo) No 2: I Ofício - códice 131 - auto 2737 - Local: Arraial de São Sebastião No 3: II Ofício - códice 76 - auto 1646 - Local: Freguesia de Guarapiranga (Barra do Bacalhau) No 4: II Ofício - códice 28 - auto 691 - Local: Freguesia de São Caetano No 5: II Ofício - códice 26 - auto 647 - Local: Freguesia de Guarapiranga No 6: I Ofício - códice 101 - auto 2107 - Local: Camargos Carla Maria Carvalho de Almeida é Professora Adjunta de História Moderna, Coordenadora do LAHES (Laboratório de História Econômica e Social) e Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 2 4 49 2 3 92 O MERCADO COLONIAL E AS REFORMAS ILUSTRADAS As “vantagens comparativas” Cláudia Maria das Graças Chaves Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar algumas das propostas de reformas administrativas e econômicas de inspiração fisiocrática para a América portuguesa e introduzidas por D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Especificamente, neste artigo, tratamos das propostas compensatórias para a extinção do monopólio do sal. Palavras-chave: 1. Fisiocracia; 2. Reformas administrativas; 3. Mercado colonial. Abstract: This article intend to analyze some of the proposals of administrative and economic reforms to Portuguese America introduced by D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Specifically, in this article, we discussed about the compensatory proposals for the extinction of the monopoly of the salt. Key words: 1. Physiocracy; 2. Administrative reform; 3. Colonial market. O final do século XVIII e o início do século XIX marcam uma fase importante de transformações na América portuguesa. Não se trata de uma “crise” do “sistema” colonial no que se refere à busca de uma independência política e econômica da colônia, mas à alteração do estatuto desta colônia em relação à metrópole, isto é, Portugal. O que viria a ser a chamada “opção americana”, reforçada com a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, começa a se delinear durante a década de 90 do século XVIII com a introdução das reformas ilustradas. Ainda que o projeto não tenha sido um todo coerente no que se refere à ampliação do espaço político da América dentro do Império português, as novas estratégias de governar redimensionaram as percepções territoriais lusitanas. O Império Luso-brasileiro parecia demonstrar um reforçado laço de união entre o que o Bispo Azeredo Coutinho preferia chamar de “mãe” e “filha”1. Neste contexto, o maior controle administrativo, mais racionalizado e eficaz, promoveria a melhor integração do território americano. Esta política tornou-se visível a partir do estreitamento de laços entre a intelectualidade colonial e metropolitana, sobretudo nos principais centros acadêmicos de Portugal como eram a Universidade de Coimbra e a recém criada Real Academia 1 O Bispo Azeredo Coutinho refere-se às obrigações da colônia em relação à metrópole. A colônia como filha deveria ser credora da metrópole, sua mãe, nos momentos de dificuldades econômicas enfrentadas por Portugal. Esses laços de parentesco deveriam ser retribuídos com a ampliação dos privilégios conferidos à colônia. “quanto mais os interesses e as utilidades da pátria mãe se enlaçarem mais com os das colônias suas filhas, tanto ela será mais feliz e viverá mais segura”. Ver COUTINHO, José da C. de Azeredo. Obras econômicas. Apresentação de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966, p.155. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 93 de Ciências de Lisboa2. O objetivo claro dessa ação era o de criar projetos de reforma mais adaptados às realidades políticas e econômicas do final do século. O melhor exemplo dessas mudanças foi a atuação de D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Como Ministro e Secretário de Estado da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, a partir de 1796, D. Rodrigo estimulou a confecção de projetos e Memórias de caráter reformista entre a elite metropolitana. O chamado reformismo ilustrado foi a tática da Geração de 90 ou dos bacharéis e cientistas brasileiros, muitos deles discípulos de Domingos Vandelli3. Esse período, segundo Maxwell e Silva (1986), caracterizou-se por uma reação metropolitana aos intuitos separatistas coloniais, que, por um lado, recrutava a elite intelectual brasileira para o levantamento das riquezas naturais e elaboração de propostas para melhorar as produções coloniais, inclusive aqueles envolvidos nas conjurações – como foi o caso de José Álvares Maciel e dos membros da Sociedade Literária do Rio de Janeiro -; por outro lado, procurava identificar os interesses materiais de uma elite rural brasileira. Ao agir dessa maneira, esperava-se combater as idéias de revolução e introduzir o pensamento reformista e ilustrado, que, com propostas racionais e científicas, sanariam os problemas econômicos e políticos da colônia, integrando os interesses dos colonos aos interesses metropolitanos. Essa fase também pode ser pensada como a fase do surgimento das idéias de um verdadeiro império luso-brasileiro ou, conforme definição dessa relação a partir de 1808 por Maria Odila Dias (1982), como a interiorização da metrópole. No plano prático, essa tendência se revela nas medidas administrativas adotadas. Tratava-se, segundo Dias (1968:117), de: solicitar aos governadores das capitanias relatórios sobre os processos de preparo e cultivo dos gêneros exportáveis; ordenar levantamentos de plantas nativas; explorações mineralógicas; premiar os lavradores mais industriosos; promover a 2 A Real Academia de Ciências de Lisboa é criada no ano de 1779, na mesma década em que a Universidade de Coimbra passa por uma importante reformulação de seus estatutos. A Real Academia será o espaço de construção de um novo saber econômico, cuja principal característica era o combate às idéias pombalinas e mercantilistas, por serem consideradas despóticas e inibidoras do desenvolvimento industrial de Portugal. Reunirá em sua volta os mais expressivos publicistas portugueses e brasileiros. Será a fase projetista e memorialista, cujos fundamentos centraramse na proposição de reformas econômicas para a sociedade do Antigo Regime. Os novos estatutos da Universidade de Coimbra surgem no ano de 1772 e são também conhecidos como “pombalinos”. Entre outras coisas, essa reforma levou ao aprofundamento do direito pátrio em relação ao Direito Romano considerado distante da realidade e contingências históricas de Portugal. Ver: SILVA, Nuno Espinosa. História do Direito Português. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000. 3 Italiano de origem, Domingos Vandelli é considerado o mentor e o principal intelectual da Real Academia de Ciências de Lisboa. Manteve importante correspondência com intelectuais da colônia. É bastante conhecida a correspondência de José da Silva Lisboa à Domingos Vandelli em 1781 sobre as informações gerais acerca da cidade da Bahia. Lisboa menciona uma caixa, contendo uma amostra dos vários tipos de plantas comuns na região, que ele teria enviado a pedido de Vandelli. Ver: “Carta muito interessante do advogado da Bahia, Jose da Silva Lisboa, Para o Dr. Domingos Vandelli, Director do Real Jardim Botânico de Lisboa, em que lhe dá notícia desenvolvida sobre a Bahia, descrevendolhe a cidade, as ilhas e vilas da Capitania, o clima, as fortificações, a defesa militar, as tropas da guarnição, o commercio e a agricultura, e especialmente a cultura da canna de assucar, tabaco, mandioca e algodão.. Dá também as mais curiosas informações sobre a população, os usos e costumes, o luxo, a escravatura, a exportação, as construcções navaes, o commercio, a navegação para a Costa da Mina, etc.” In: Anais da Biblioteca Nacional, 32, 1910.pp 494-506. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 94 introdução de arado e da cultura de novos gêneros; aumentar o comércio interno e o de exportações. Essas medidas nem sempre foram executadas, sobretudo as relativas à racionalização das formas de cultivo, como foi o caso do uso de arado e do bagaço de cana de açúcar nas fornalhas. A racionalidade européia sucumbe às razões dos cultivadores da América. Em carta endereçada à D. Rodrigo de Sousa Coutinho, O Vice-Rei do Brasil, Conde de Resende, expõe os argumentos dos brasileiros. “As respostas de algumas [cartas], que envio a V. Exa., contém as razões gerais em que se fundam os lavradores para se não aplicarem os usos acima indicados, sendo a primeira necessidade que eles têm de escolherem os terrenos montuosos para a plantação das mandiocas, e a segunda a precisão de fazerem novas e anuais derribadas de matos virgens, onde ficam grandes madeiras, cepos e raízes que embaraçam a passagem do arado; os que trabalham em fábricas de açúcar intentam persuadir que o fogo das canas moídas, ou do bagaço, não tem a necessidade necessária para a depuração do mesmo açúcar, como alguns, segundo dizem, já o experimentaram. Porém eu creio que quando se consiga dar às fornalhas outra forma diferente da atual, de cujos defeitos provavelmente procederá a falta de atividade que se observa no fogo do bagaço; quando os lavradores não puderem mais estenderem as suas derrubadas e forem constrangidos a beneficiar as velhas terras, e já cansadas; e quando finalmente se lhes faça onerosa a compra de escravos pelo excesso do preço, porque se vão reputando cada vez mais, então a necessidade os fará industriosos, e porão em usos aqueles mesmos recursos, que hoje lhes parecem impraticáveis”. 4 Na prática, o arado em terras topograficamente distintas das européias, acidentadas e com muitos tocos e raízes, assim como o uso do bagaço de cana em fornalhas inadequadas, revelava-se uma irracionalidade. Os agricultores brasileiros sabiam bem disso e por isso resistiam às mudanças. Por exemplo, recusavam-se a comprar os livros e folhetos que ensinavam as novas técnicas de cultivo, o que levou D. Rodrigo a aconselhar a sua distribuição gratuita5. Em Minas Gerais, a característica mais marcante dessas memórias será o destaque dado às soluções propostas para a decadência da mineração. Os principais autores são: José Viera Couto - Memória sobre a Capitania da Minas Gerais; Seu território, clima e produções metálicas (1799-1801); José Joaquim da Rocha - Geografia Histórica da Capitania de Minas Gerais; Memória Histórica da Capitania de Minas Gerais (1781); Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos Breve descrição geográfica, Física e Política da Capitania de Minas Gerais (1804); José João Teixeira Coelho - Instruções para o Governo da Capitania de Minas Gerais (1780); D. Rodrigo José de Menezes -Exposição sobre o estado de decadência da Capitania de Minas Gerais e os meios de remediá-la 1782; José M. de Sequeira - Memória sobre a decadência das três capitanias de Minas Gerais (1802); Basílio Teixeira de Sá Vedra - Informação da Capitania de Minas Gerais (1805). O tema decadência é recorrente em quase todos os textos. À semelhança do tratamento dado a essa questão pelos memorialistas portugueses, observa-se que se enfatiza 4 Carta de 12 de novembro de 1798. AHU, Rio de Janeiro, caixa 171, doc. 16. Ver: DIAS, Maria Odila Leite da Aspectos da Ilustração no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, (278): 105-170, 1978, p.158 e HOLANDA, Sérgio Buarque. Caminhos e Fronteiras. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1957. 5 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 95 muito a decadência econômica da Capitania como uma forma de ressaltar as suas potencialidades, principalmente no que diz respeito à agricultura. Dessa maneira, as Memórias, assim como a maioria dos projetos, apresentaram problemas relativos à economia colonial como eram os difíceis acessos internos, a escassez de moedas, a confusa tributação, a baixa produtividade agrícola, entre outras dificuldades, e as soluções indicadas para cada uma delas. Era uma forma inusitada de conhecer, diagnosticar e solucionar - pelo menos este era o plano - o conjunto de empecilhos à racionalização econômica e administrativa do império português. Os “projetos reformistas” animaram expedições, relatos e memórias sobre as possibilidades de integrar o território brasileiro, através da abertura de canais, estradas e pontes, o que, por sua vez, criaria as condições para melhorar e aumentar as produções comerciais e, conseqüentemente, incentivaria o povoamento e o aumento da população brasileira. Sobre os progressos efetivos de todas os planos e propostas elaborados, pouco se verificou na prática, mas esses relatos são importantes para a percepção de território, produção e população que se pretendia e se desejava para o Brasil. Nesse sentido, as observações e informações emitidas por pessoas que vivenciaram aquele período, seja através de relatos em jornais, seja através de memórias e projetos de intelectuais, chefes de expedições militares, administradores, cientistas e viajantes, são importantes para compor uma imagem do mercado colonial nas últimas décadas da América portuguesa. Essas informações, juntamente com a documentação estatística, derivada do desejo de racionalizar e sintetizar as informações a respeito do território brasileiro, tornam possível traçar um quadro das perspectivas políticas e econômicas que se vislumbravam para o futuro do “Estado do Brasil”6. Portanto, não se trata, aqui, de tentar mensurar a produção comercial para dimensionarmos a extensão do crescimento ou desenvolvimento interno do Brasil em suas últimas décadas coloniais e o início do período independente, mas, sim, correlacionar a produção estatística dessa produção com as análises de seus contemporâneos e da produção historiográfica mais recente sobre a questão A integração comercial nas últimas décadas do período colonial foi pouco quantificada por seus contemporâneos, embora tenha havido todo um esforço, ou pelo menos, um desejo, de estabelecer dados estatísticos sobre a produção, consumo e população de toda a América portuguesa. Entretanto, os relatos, Memórias e cartas administrativas constituem depoimentos sobre as relações comerciais estabelecidas entre regiões diversas que, ora enfatizam a fraca integração comercial entre capitanias, ora enfatizam o “avultado” comércio que existia entre elas. 6 Mesmo antes da elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, era corriqueiro o uso da expressão “Estado do Brasil”, em periódicos e documentos da Junta do Comércio, para definir a então América Portuguesa. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 96 No caso de Minas Gerais, a maior ênfase recai sobre a “volumosa” produção de gêneros de abastecimento que, na Capitania, produzia-se para vender não apenas em seu interior, mas também nas capitanias vizinhas. Não obstante, demonstra-se, em tais documentos, que essa produção sofreu os obstáculos derivados da dificuldade de acesso, de um equivalente universal de troca e de sua divisão interna recoberta por barreiras alfandegárias. A esse processo, pode-se acrescentar as diferenças regionais de Minas Gerais no que diz respeito às produções, suas especificidades e formas de acesso a mercados. Essas diferenças nem sempre diziam respeito apenas ao produto, mas às formas de comercialização e à qualidade do mesmo. Por exemplo, o gado criado e comercializado na Comarca do Rio das Mortes era de maior qualidade e chegava mais barato ao Rio de Janeiro e São Paulo do que o gado da Comarca de Sabará. Os primeiros eram isentos dos Direitos de entrada, por outro lado os da Comarca de Sabará deveriam pagar os Direitos por terem, em sua maioria, pastos salitrados, pois a Comarca do Rio das Mortes pagava pelo sal que vinha do Rio de janeiro. Dispor de pastos salitrados não se constituía em benefício para os pecuaristas, pois o salitre não era adequado para se dar ao gado, ademais, quando o gado era comercializado fora da Capitania, produzia-se custos maiores de transporte e de pouso para o restabelecimento do peso do animal7. Por este motivo, os criadores das Comarcas centrais de Minas sempre se queixavam do monopólio e altos custos do sal para àquelas regiões8. Aliás o sal e o monopólio dele sempre foram causa de protestos da grande maioria dos habitantes das Gerais, pois a população devia pagar os preços estabelecidos pelos contratos e mais tributos de transportes. Nesse sentido, as propostas de reformas econômicas para a solução deste e de outros problemas gerados pelos monopólios régios surgem no final do século XVIII e culminam na extinção do estanque do sal e do óleo de baleia em 1801. Tendo sido a Provedoria da Real Fazenda de Minas Gerais consultada a respeito da melhor forma de se cobrar os direitos do sal e do ferro - em função de uma carta da Rainha dirigida ao Senado da Câmara de Vila Rica em 1795 -, ponderam seus representantes a respeito 7 AHU, cx 100, doc. 21, rolo 89, APM. Todo o sal consumido em Minas era comprado no Rio de Janeiro por comerciantes mineiros diretamente das mãos dos contratadores do produto. Num documento de data imprecisa, possivelmente do final do ano de 1781, contratadores do sal no Rio pedem providências no comércio do sal para Minas Gerais. Alegam os contratadores que tinham tido imensos prejuízos em decorrência das “perturbações militares que sentiu o Brasil e a invasão, que na Ilha de Santa Catarina, Colônia, e vizinhanças do Rio Grande fizeram os inimigos” e da conseqüente diminuição do comércio decorrente do “temor que conceberam os negociantes de Minas, que não desceram ao Rio de Janeiro para traficar o referido gênero, que costumam conduzir com abundância para as mesmas Minas”. Com o excedente de sal não consumido e com o fim do sexênio do contrato, pediam os contratadores regulamentação específica para esses casos, pois eles não eram responsáveis pelos problemas e tinham a obrigação de manter reservas de sal para todas as eventualidades. AHU, documentos referentes ao Rio de Janeiro, caixa 126, doc. 3. 8 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 97 dos tributos e da proposta da criação de salinas e fábricas de ferro na colônia9. Diz o representante da Provedoria aos membros do Senado que a Capitania mineira não deveria ser responsabilizada pelo equivalente ao rendimento do contrato do sal, pois em Minas não se estabeleceria nenhuma salineira, mas apenas nas áreas costeiras. Implorava que não barganhassem com as salitreiras, pois era “um sal em si mesmo pernicioso”, ainda mais que a saca do salitre, correspondente a uma quarta (aproximadamente 9 litros), vendido nos sertões por 800 réis, equivalia a uma arroba do sal importado. Não valeria a pena investir no salitre, quando se poderia comprar o sal das costas brasileiras com maior vantagem. Sendo o sal brasileiro muito mais abundante que o importado de Portugal e tendo as capitanias produtoras de sal o interesse de comercializar com Minas Gerais, o custo do sal seria bem menor pelo preço e qualidade. Quanto à implantação de fábricas de ferro, o representante da Provedoria também não achava muito prudente pelos seus custos. Entretanto, dizia que os impostos sobre ferros e escravos deveriam ser aliviados por serem da maior importância para a economia local, jogando para outros produtos a compensação desse alívio. Para ele, a cachaça deveria sofrer um aumento de impostos por não ser de grande interesse, lembrando que isso não traria prejuízos aos comerciantes devido ao consumo excessivo da bebida. Já o vinho, usado com moderação, era considerado útil, mas não de primeira necessidade, podendo assim arcar com mais algum tributo. Outros produtos importados, como azeite, vinagre, azeitona e manteiga, deveriam, também, ter seus tributos aumentados. Produtos agropecuários que saíam de Minas não deveriam ter um tributo muito elevado, pelos altos custos de transporte, como o couro, a sola, o gado, o queijo, etc. “Os novos direitos que me lembram sobre o gado, queijos, toucinho, couros e sola, parecem-me que não farão de modo algum estancar o giro do nosso negócio atual porque a precisa necessidade que temos em nós mesmos de permutarmos aqueles gêneros próprios que sobejamente nos crescem dos usos e costumes ordinários nos obrigará a negociá-los com os nossos vizinhos assim como eles por uma regra de comparação são obrigados também a negociar conosco os seus supérfluos, e os outros que fazem exportar de países muito mais remotos porque conhecem a necessidade que deles temos. Este é o sistema das nações comerciantes ele as tem feito florescer com vantagens muito mais superiores às nossas e nunca elas foram mais opulentas senão depois que alcançaram estes conhecimentos práticos. Assim praticaram a muitos séculos os fenícios que sendo habitantes de uma terra estéril se arriscaram sobre um débil lenho a descrição dos ventos e das ondas a ir buscar a outros climas o que a natureza lhes negara no seu e deste modo penetraram o oceano e se fizeram conhecidos. Tais são, senhores, as vantagens de um povo industrioso vencendo os obstáculos da natureza para fazer tributárias as nações remotas sem usar a violência”.10 Enfim, desde que moderados, os impostos não poderiam ser a causa da ruína de nenhum comércio, desde que as regiões possuíssem seus diferenciais, suas “vantagens 9 SG Cx 29, doc. 23, APM. A permissão da criação de salineiras e fábricas de ferro na colônia deveria, é claro, vir acompanhada de uma indenização ao Real Erário equivalente a quase metade do contrato da época. Isto quer dizer que se o contrato era de 1$200 o alqueire do sal, a indenização corresponderia a 750 réis. 10 SG Cx 29, doc. 23, APM. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 98 comparativas”. Uma vez que um gênero se tornasse conhecido e seu consumo se efetivasse, ele se tornaria necessário. Dessa necessidade vivia o comércio, integrando regiões distantes. Além disso, se fossem aumentados os impostos dos gêneros de abastecimento que Minas produzia, quem arcaria com a maior parte deles seriam os vizinhos, que deles necessitavam. “O país [Minas] é fértil, ele produz tudo em tanta abundância que depois de nos prover do necessário, vai levar aos povos vizinhos o supérfluo. Eles dependem do nosso gado porque não tem em si mesmo sertões iguais aos nossos, pois que pelo estabelecimento das fábricas de açúcar que de dia em dia se tem erigido em Campos dos Goitacazes, único sertão que os provia em algum modo desse gênero, eles são precisados a procurarem este produto em nossa Capitania e em São Paulo. O mesmo procede a respeito do toucinho. O nosso queijo lhes era desconhecido e a sua introdução em poucos anos fez aparecer um novo ramo d’comércio deste gênero que hoje o fazem levar a Bahia, Pernambuco, Angola e a todas as outras nações com que comerciam. A navegação freqüente que há naquela cidade já dos nossos, já das nações estrangeiras obriga que assim como cresce a população, cresça o consumo de todos esses gêneros, que hoje estão na classe dos necessários para eles”. 11 Portanto, o parecer exposto apontava para que não se perseguisse a auto-suficiência em todos os gêneros, porque é da diversidade que vivia o comércio12. Entretanto, no que diz respeito às fábricas de ferro e às salitreiras, eram outros os interesses metropolitanos. Estimulados por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, os estudos geológicos da colônia tinham como objetivo dar a exata proporção de possibilidades para a exploração mineral. Em Minas Gerais, as fábricas de ferro foram estimuladas, principalmente, para o desenvolvimento das minerações e da agricultura. Os principais estudos realizados nessa área foram do Intendente Câmara e de José Vieira Couto. Em Carta de 1799 ao Governador de Minas Gerais13, D. Rodrigo elogia muito os trabalhos elaborados pelo “Doutor Couto” e pelo “célebre Câmara”14, com os quais, dizia, poderia estabelecer-se as fábricas de ferro e com as nitreiras naturais e artificiais, estabelecer fábricas de pólvora e fertilizantes. Não era, portanto, interesse de D. Rodrigo utilizar o salitre como substitutivo do sal para o gado, mesmo assim o representante da Provedoria temia que o incentivo à extração do salitre pudesse compensar, em Minas, o uso do sal. Quando foi abolido o monopólio em 1801, não desapareceram os problemas de fornecimento do sal ou de redução de seus custos, pelo menos, não até o estabelecimento e maior fornecimento de sal pelas salineiras de Cabo Frio. O término do estanque gerou novas 11 SG Cx 29, doc. 23, APM. Outro parecer da Câmara foi emitido com semelhante conteúdo no mesmo ano de 1795. SG 29, Cx 29, doc 25, APM. 13 SC 287, fl. 196-203, APM. 14 Em estudo sobre o Intendente Câmara, Marcos Carneiro de Mendonça (1945), diz que os trabalhos sobre mineralogia no Brasil foram injustos com Manuel Ferreira da Câmara Bethencourt e Sá, pois ele teria sido o precursor nos projetos de se instalarem fábricas de ferro no Brasil. Para ele, os estudos posteriores, como o de José V. Couto apenas foram complementares. Pela carta de D. Rodrigo, citada no texto, ele parece ter razão, pois D. Rodrigo demonstra ter inteira confiança no Intendente Câmara para os assuntos mineralógicos. Ele diz que submeteu todas as memórias do Doutor Couto a sua apreciação. A referência da obra é: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. O Intendente Câmara. Rio de Janeiro: Agir, 1945. 12 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 99 tarifas compensatórias exigidas pela Coroa15. Essas novas exigências deveriam ser analisadas pelas Mesas de Inspeção das alfândegas e das Juntas da Fazenda, mesmo antes do fim do monopólio. Em 1799, o Conde de Resende encaminha às Câmaras e Mesa de Inspeção da Capitania do Rio de Janeiro as novas propostas para a substituição dos contratos do sal e da pesca de baleias, os quais eram utilizados no pagamento dos fardamentos das tropas e despesas da marinha e fortificações16. Com a árdua tarefa de analisar as propostas de novas tarifas substitutivas do monopólio régio, respondem os representantes da Mesa de Inspeção do Rio de Janeiro, em abril de 1800, a solicitação do Conde de Resende. Tomando o máximo de cuidado e ponderando sobre todas as “luminosas providências” sobre a composição dos “fundos públicos”, os representantes tecem suas objeções sobre as cobranças propostas17. São cinco as propostas de novas tarifas compensatórias: capitação anual sobre os escravos de luxo das cidades; licença anual para fabricar e vender tabaco, aguardente e vinho; uma “leve” imposição sobre o açúcar, tabaco e couros a serem exportados; um “módico” imposto sobre as madeiras destinadas às construções de prédios urbanos; finalmente, uma revisão nas pautas da alfândega da Capitania do Rio de Janeiro para acompanharem o aumento dos preços dos produtos que por ela passam. A análise de cada uma dessas propostas interessa-nos pelas informações sobre os intercâmbios comerciais entre o Rio de Janeiro e Capitanias vizinhas. Igualmente interessante é o “malabarismo” contábil feito pelos representantes da Mesa Inspetora na tentativa de driblar todas as proposições feitas. Acrescentam, esses representantes, que era necessário tomar algumas providências para não haver aumento dos produtos que deixariam de ter contratos exclusivos. Pedem para que o carregamento do sal fosse feito como antes e com a mesma lotação dos navios, ainda que o dono das embarcações não se beneficiassem da terça parte do contrato e que fosse pago apenas o justo preço pelo transporte. Quanto ao óleo de baleia, pediam que as povos das capitanias marítimas fossem estimulados a utilizar, como faziam as capitanias de “serra acima”, especialmente Minas Gerais, que utilizavam o óleo de mamona para a iluminação e que poderiam exportar em grande quantidade. 15 Segundo Giffoni, a extinção do estanque do sal provocou a criação de novos impostos para substituir as rendas perdidas. Foram taxadas as produções de sal das marinhas do Rio Grande do Norte, Pernambuco e Cabo Frio em 1$000 por cada dez alqueires. Além disso, a distribuição e venda do sal ficou nas mãos das Câmaras para posterior remessa das rendas às Juntas da Fazenda. Por fim, o sal produzido no Brasil torna-se mais caro que o sal proveniente de Portugal logo após o fim do monopólio. GIFFONI, José Marcello. Sal: um outro tempero ao Império (1801-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1999, p.44. 16 AHU, documentos referentes ao Rio de Janeiro, Caixa 183, doc. 83, 1800. 17 AHU, documentos referentes ao Rio de Janeiro, Caixa 183, doc. 83, 1800. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 100 Ainda que parecesse impossível atender às disposições da Coroa, a Mesa consegue chegar ao valor proposto para sanar os prejuízos do fim dos contratos, ou seja, 163:069$446 réis anuais a partir de algumas “pequenas” modificações nas propostas feitas. Quanto à capitação dos escravos de luxo, iniciam com uma exposição sobre o emprego do trabalho escravo nas cidades e sua real utilidade, dizendo ser o luxo bastante relativo. Mesmo assim, considera que dos 14.400 cativos existentes na cidade - 4.018 eram pardos e 10.382 pretos – deveria se descontar os velhos acima de 70 anos e as crianças abaixo de 10 anos, sobrando 11.161 escravos de ambos os sexos. Deste cálculo, detalham os representantes que 1.132 eram mulatos, 1.477 mulatas, 4.530 pretos e 4.022 pretas, sendo que os mulatos eram oficiais mecânicos empregados por seus senhores, aos quais serviam nas horas vagas; os pretos eram empregados em trabalhos mais rudes em diversos trabalhos para seus senhores ou outros por aluguel; as pretas faziam os trabalhos domésticos e, principalmente, trabalhavam como quitandeiras nas ruas da cidade. Somente as mulatas poderiam ser classificadas como “de luxo” por serem bem educadas e viverem no interior das famílias e por serem “inúteis” na agricultura. Entretanto, ponderam os representantes, a maioria das mulatas pertencia às famílias mais pobres e o maior ônus sobre elas forçariam a sua venda e a elevação do seu preço a ponto de passarem a ser rejeitadas no mercado e ser mais fácil libertá-las do que mantê-las cativas. A única alternativa parecia ser cobrar um “módico” imposto anual sobre os escravos que trabalhavam como oficias mecânicos que seriam por volta de 2.000 e poderiam somar a quantia de 9:600$000 réis. Tomando cuidado para que isso não inibisse a prática dos mestres de utilizarem escravos para esse fim, pois senão a atividade poderia cair nas mãos de todo o tipo de “vadios”, que eram os pretos e pardos livres, já que os brancos pobres não exerceriam tais atividades por “um ridículo prejuízo de educação e exemplo”. Mais 2:400$000 réis poderiam ser cobrados dos proprietários ou usuários de seges e carruagens por serem “objetos de luxo” 18. Quanto à licença para fabricar e vender tabaco, aguardente e vinho, que seria a segunda proposta, dizem os representantes da Mesa que existia uma grande diferença entre a produção e o comércio do tabaco e aguardentes, mas, mesmo assim, poderiam ser cobrados 3:200$000 da produção de tabaco e 23:800$000 sobre a venda da aguardente. Consideram que a produção do tabaco era bastante diminuta na Capitania do Rio de Janeiro e, por isso, poderiam arrecadar tão pouco, mas não consideravam justo cobrar sobre a venda que era feita por “gente miserável que tira desse trafico uma módica subsistência”. Com a aguardente acontecia o contrário, pois a bebida produzida na Capitania era apenas produto das “fezes” ou melaço do açúcar, que era a principal produção e servia para pagar os prejuízos que os senhores de engenho tinham com os 18 AHU, documentos referentes ao Rio de Janeiro, Caixa 183, doc. 83, 1800. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 101 seus contratos. Já a venda, disseminada em várias tavernas, botequins e armazéns espalhados por todo o território, deveria ser taxada com um único valor, pois, mesmo vendendo mais ou menos, seria impossível saber qual a exata quantidade da bebida era vendida em cada estabelecimento. Se essa medida provocasse o fechamento de alguma casa ou a opção por não vender aguardente, consideravam os representantes da Mesa que isso poderia ser mais benéfico que o imposto que poderia ser gerado, pois esses estabelecimentos eram “uns freqüentíssimos escolhos muito perigosos em que naufragam muitos indivíduos, principalmente os escravos, (...) tudo os atrai, o hábito, o exemplo, a multidão das tavernas, o asilo e fácil compra que acham nelas os furtos e, sobretudo, a barateza da bebida”19. Já o vinho, assim como a aguardente do reino, deveria ser cobrado um imposto adicional dos importadores e isso representaria mais 29:641$200 réis. A terceira proposta de uma nova imposição sobre o açúcar, tabaco e couros foi a mais polêmica para a Mesa. Sendo o açúcar o “maior fiador do comércio do Brasil” e sendo produzido principalmente nas capitanias de Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro – além de algumas pequenas contribuições de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo – deveria ter uma módica e proporcional contribuição. No caso de se cobrar apenas dos produtores do Rio de Janeiro deveria ser levado em consideração que o senhor de engenho não tinha as práticas de um negociante que aumenta seus preços para compensar os novos custos, pois “o negociante não comprando o açúcar para o gastar, mas sim para o seu negócio, mede as ocasiões e os preços favoráveis para fazer seu emprego; o senhor de engenho, pelo contrário, há de forçosamente vender no fim da safra, ou pouco depois o seu açúcar, para acudir as suas precisões e para pagar ao negociante, que sempre lhe é credor”.20 Portanto, o açúcar deveria pagar, já que era necessário, apenas 38:000$000 anuais sobre os dízimos já pagos. Já o tabaco não deveria pagar nada, pois a grande parte do tabaco consumido no Rio de Janeiro vinha de Minas Gerais e de São Paulo, não sendo, portanto, justo uma cobrança adicional sobre o produto. Finalmente, o couro também deveria ter uma pequena taxa, pois o Rio de Janeiro não era grande criador, sendo que a carne consumida vinha através do gado vacum de Minas ou charque do Rio Grande de São Pedro. Do gado que chegava ao Rio e era abatido nos açougues da cidade, tirava-se o couro que sustentava a família dos trabalhadores desses estabelecimentos, mesmo assim consentiam em uma cobrança anual de 3:000$000 anual. Para suprir essa ausência de couros no Rio, deveriam cobrar anualmente 6:000$000 de todo o couro que saía de Minas, São Paulo e Rio Grande em direção ao Rio de Janeiro. 19 20 AHU, documentos referentes ao Rio de Janeiro, Caixa 183, doc. 83, 1800. AHU, documentos referentes ao Rio de Janeiro, Caixa 183, doc. 83, 1800. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 102 Quanto à quarta sugestão de um “módico” imposto sobre as madeiras utilizadas nos prédios urbanos, ponderam os representantes da Mesa que a madeira estava escassa e cara em função dos imprudentes desmatamentos e pela reserva de madeira de lei para a marinha real. Diziam que poucas casas de madeira eram erguidas no Rio de Janeiro, mesmo assim, eram todas térreas devidos aos altos custos de construção, além disso os capitalistas, homens mais afortunados que construíam a maior parte dos prédios para aluguel, não utilizavam a madeira como material para as edificações em razão de serem “pouco sólidas e muito singelas por dentro e no prospecto”. A solução seria a não cobrança sobre as madeiras e sua substituição pelo comércio do café, cuja produção vinha crescendo em larga escala no Rio de Janeiro, além do café que vinha de Minas Gerais e de São Paulo. Com ele, poderiam ser somados mais 8:250$000 réis. Finalmente, a estes valores se somariam 39:078$000 das reformas nas alfândegas do Rio de Janeiro, que era a quinta proposta. Com isso, tornava-se possível chegar à quantia de 163.069$446 que havia sido calculada como a meta a ser atingida. Mesmo cumprindo o dever, os representantes da Mesa de Inspeção sentem-se na obrigação de se eximirem de qualquer responsabilidade do projeto. “Este é o plano, esta é a regulação dos impostos que propõem esta Mesa; a qual não afiança a exatidão dos seus cálculos, muitos dos quais são inteiramente hipotéticos e muito menos apadrinha como ajustadas, claras e sólidas as suas idéias e razões: elas, contudo, tiveram por base principal o zelo do Real serviço do Príncipe Nosso Senhor e o bem da agricultura e do comércio.21 Os membros da Mesa de Inspeção parecem deixar claro o descontentamento com as novas cobranças e a descrença que elas pudessem se efetivar na prática, pois eram também, de certa maneira, representantes de negociantes e produtores locais. Ao finalizar o longo processo dizem que todas as arrecadações seriam mais fáceis e mais seguras se estivessem os contratos em mãos de negociantes residentes no Rio de Janeiro e submetidos à Real Junta da Fazenda daquela cidade. Entretanto, já era o ano de 1800 e algumas mudanças e reformas econômicas se concretizavam, o que não seria diferente com o contrato do sal que no ano seguinte foi, de fato, extinto. Nada ainda comparado às mudanças provocadas com o deslocamento da família real para o Brasil e a elevação da cidade do Rio de Janeiro à condição de Corte. Assim, muitos projetos foram traçados, um amplo leque de transformações para o Brasil podia ser vislumbrado. Parecia, na teoria, fácil realizar essas mudanças, na prática, porém, tornavam-se mais complicadas. Ao analisarmos detidamente todas as propostas apresentadas acima pudemos ver como os projetos de racionalização econômica e administrativa entravam na disputa de interesses 21 AHU, documentos referentes ao Rio de Janeiro, Caixa 183, doc. 83, 1800. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 103 coloniais na América. Era claro que cada alteração na forma de cobrança de tributos, mesmo com a justificativa de se incentivar e ampliar a atividade comercial, desdobrava-se em resistência política dos representantes dos principais setores econômicos envolvidos. A estratégia parecia ser a de opor um projeto “racional” à alternativas igualmente “racionais” de maneira a não ferir nenhuma das partes interessadas, nem a dos produtores e comerciantes coloniais e nem o Erário régio. O que estava realmente fora de questão era a simples supressão da cobrança de tributos por parte da metrópole, pois essa prerrogativa garantia as bases de sua dominação e competia aos reais vassalos da América portuguesa descobrir a melhor forma de pagar os seus “direitos” sem nenhum prejuízo aos cofres régios. Seja como for, a idéia de estabelecimentos de fábricas no Brasil, a extinção de monopólios do Estado e o incentivo de manufaturas, principalmente têxteis, apontaram para a necessidade de se esclarecer melhor o que se entendia, conceitualmente, por essas formas de produção. Isso, aliado à idéia de uma estreita ligação dos mercados de Portugal e Brasil, principalmente após os novos tratados de comércio, determinou a precisão dos termos produto nacional, comércio de importação e exportação, mesmo antes do estabelecimento do Reino Unido em 1815. As possibilidades para o estabelecimento de um mercado interno – no sentido de uma integração econômica dentro da América portuguesa – mentem-se estreitamente vinculados ao princípio de unidade imperial. Entretanto, é a partir desse primeiro passo em direção à integração que possibilitou a sua continuidade após a ruptura, sobretudo no que diz respeito às capitanias das “terras centrais” como eram as Minas Gerais. As bases do mercado interno colonial se tornaram mais fortes, delineando o que mais tarde seria a integração de um mercado efetivamente nacional. Cláudia Maria das Graças Chaves é Professora Adjunta de História da América da Universidade Federal de Viçosa e pesquisadora associado ao LAHES (Laboratório de História Econômica e Social) da Universidade Federal de Juiz de Fora. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 104 CAMPANHA DA PRINCESA Formação e expansão de uma vila no Império Marcos Ferreira de Andrade Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir alguns aspectos relativos à formação e expansão da vila da Campanha da Princesa e seu termo, informando sobre as principais atividades econômicas desenvolvidas na região, além de apresentar dados gerais sobre a estrutura social e demográfica. Essas notícias foram cotejadas a partir de várias fontes, tais como: inventários, listas nominativas, assentos paroquiais, atas de câmara, entre outras. Palavras-chave: 1. Escravidão; 2. Século XIX; 3. Sul de Minas. Abstract: This paper aims at discussing some aspects related to the formation and expansion of the village called Campanha da Princesa, as well as its ending. It will deal with the main economic activities developed in the region, besides presenting genera data on social and demographic structure. This information was checked against several sources, such as inventories, name lists, parish seats and town council records, among others. Keywords: 1. Slavery; 2. 9th Century; 3. Southern Minas Gerais. Convido o leitor, inicialmente, a conhecer um pouco da história de uma importante vila da província de Minas Gerais1, de grande destaque no cenário sócio-político e econômico do Império, região que deu origem ao que é hoje definido imprecisamente como o “Sul de Minas”.2 A noção de região adotada está muito próxima das reflexões propostas por Ciro Flamarion Cardoso, ou seja, foi definida “operacionalmente de acordo com certas variáveis e hipóteses, sem pretender que a opção adotada seja a única maneira ‘correta’ de recortar o espaço e de definir blocos regionais”, sem, contudo, se esquecer que toda delimitação geográfica não deixa de simplificar uma realidade mais complexa, além da relação entre homem e espaço estar em contínua transformação.3 1 Este texto é uma versão parcial do capítulo I de minha tese de doutorado intitulada Fortuna, família e poder no Império do Brasil: Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850), em fase de finalização no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. 2 Todos os memorialistas da região são enfáticos em afirmar que a cidade da Campanha é o “berço do Sul de Minas”, não só por sua importância política e econômica, mas também por ser a mais antiga da região e ter sido a sede da comarca do Rio Verde a partir de 1833. Ver VALLADÃO, Alfredo. Campanha da Princesa (1737-1821). Rio de Janeiro: Leuzinger S. A., 1937. vol. I e Campanha da Princesa (1821-1909). Rio de Janeiro: Leuzinger S. A., 1940. vol. II.; LEFORT, Mons. José do Patrocínio. Cidade da Campanha: monografia histórica. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1972.; VEIGA, Bernardo Saturnino da. Almanach Sul Mineiro. Campanha: Tipografia do Monitor Sul-mineiro, 1874. O mesmo almanaque foi reeditado, com algumas alterações, 10 anos depois. 3 CARDOSO, Ciro Flamarion S. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979. p. 73. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 105 1. Da ocupação das “Minas do Rio Verde” à emancipação da vila Nas primeiras décadas do século XVIII, a região mais ao sul da capitania de Minas Gerais era conhecida genericamente como as “Minas do Rio Verde”.4 Desde o início do Setecentos, essa área foi ocupada pelos paulistas que devassaram o território mineiro na busca desenfreada pelo metal precioso.5 As minas do Rio Verde, descobertas pelos paulistas nas primeiras décadas do século XVIII, foram mantidas na clandestinidade até 1737, quando uma expedição militar, chefiada pelo Ouvidor da Vila de São João del Rei, Cipriano José da Rocha, fundou o arraial e tomou posse da região. Segundo informações do ouvidor, em correspondência dirigida ao Rei, as minas estavam localizadas em “dilatados campos, que as findam vários córregos e ribeiros com muitos matos proveitosos [e] agricultura, e ainda que tarde, se plantou quase trezentos alqueires de milho em várias roças; em todos os córregos e ribeiros se acha[va] ouro”.6 A área ocupada correspondia a mais de 20 léguas e as indicações de que esse fenômeno já datava de algum tempo pode ser inferida pelas informações repassadas pelo próprio ouvidor, quando afirma que o local estava “povoado com praça e ruas em boa ordem e muito boas casas”7, faltando construir igreja e casa de intendência. As terras minerais foram repartidas e o trabalho de exploração do ouro ficou a cargo de, aproximadamente, sete mil negros. A princípio, o arraial foi batizado como São Cipriano, em homenagem ao ouvidor, e posteriormente, quando da construção da capela, passou-se a chamar arraial da Campanha do Rio Verde de Santo Antônio do Vale da Piedade, sob a jurisdição da comarca do Rio das Mortes. Os conflitos entre paulistas e os representantes legais da comarca do Rio das Mortes não cessaram com a chegada do ouvidor, muito menos com a criação do Arraial, aliás, perduraram por boa parte do Setecentos. O governo da capitania de São Paulo disputava o controle da área com a câmara da vila de São João del Rei. Esses conflitos se estenderam ainda por mais alguns anos. Tanto que em 25 de fevereiro de 1743, a câmara municipal da Vila de São João del Rei teve que ratificar o auto de ocupação de posse da área, porque um representante do governo paulista se encontrava na região, alegando o direito de posse sobre o arraial.8 Segundo o relatório da 4 Esta denominação aparece na carta do ouvidor Cipriano José da Rocha, datada de 27 de dezembro de 1737, quando comunica ao Rei sobre o descobrimento das referidas minas e a legalização da ocupação do território. 5 Para uma síntese desta discussão ver BOXER , Charles. A idade de ouro do Brasil: dores e o crescimento de uma sociedade colonial. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, pp. 57-110. 6 Carta do ouvidor da comarca do Rio das Mortes, Cipriano José da Rocha, datada de 09 de dezembro de 1737. Documento citado por VEIGA, José Pedro Xavier. Efemérides Mineiras (1664-1897). Belo Horizonte: Centro de Estudos Históricos, Fundação João Pinheiro, 1998. p. 913. 7 Idem 8 Auto de posse do Arraial de Santo Antônio da Campanha do Rio Verde (1743). Documento pertencente ao APM, transcrito numa coletânea intitulada “Memórias Municipais”. In: Revista do APM, ano I, fascículo 3º, julho a setembro de 1896, pp. 457-458. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 106 câmara, gastou-se 264 oitavas de ouro e muita gente armada para garantir a ocupação do local, pois D. Luiz Mascarenhas, então governador da capitania de São Paulo, tinha nomeado Bartolomeu Correa Bueno como superintendente da região.9 Como se tratava de uma área estratégica, de fácil acesso ao Rio de Janeiro e São Paulo, o que facilitava o extravio do ouro, a câmara decide pela criação do julgado do Sapucaí, em 1746, com o estabelecimento de um juiz ordinário com alçada no cível e no crime. Foi em fins do século XVIII, mais precisamente em 1795, que os moradores mais influentes do arraial decidiram reivindicar a criação da vila da Campanha da Princesa, com base numa série de argumentos que denotavam o grau de expansão demográfica e econômica do território pleiteado como termo da vila. Dentre os vários argumentos apresentados alguns merecem destaque como, a distância de 35 léguas da Vila de São João del Rei, as grandes custas pagas aos oficiais de justiça da Comarca do Rio das Mortes, o aumento da população de Campanha e seu termo, ultrapassando o número de 8.000 habitantes e a necessidade de implementação de obras públicas (pontes, chafarizes, calçamento de ruas, abertura de estradas).10 A câmara de São João del Rei se manifestou contrariamente à solicitação alegando que “os moradores daquele lugar [eram] a maior parte mulatos, escravos, e mestiços”11 e não eram “homens de nascimento e conceito”, dignos de exercerem os cargos de juizes e de vereadores. Continuando o seu arrazoado, a câmara afirma que ouro extraído era quase todo extraviado pelo acesso a caminhos e atalhos que levam ao Rio de Janeiro ou a Santos, e que não havia igreja decente no arraial. A região pretendida como termo de Campanha abrangia 10 freguesias (Lavras do Funil, Baependi, Pouso Alto, Santa Ana do Sapucaí, Camanducaia, Ouro Fino, Itajubá, Cabo Verde e Jacuí) e três julgados (Santana do Sapucaí, Itajubá e Jacuí). Como se pode perceber, a extensão do termo compreendia praticamente toda a área do que hoje se denomina como Sul de Minas. A preocupação real da câmara de São João del Rei se restringia, de fato, às significativas perdas de receita auferidas das lojas, vendas e criação de gado já abundantes na região.12 Para vencer a resistência da vila de São João del Rei e conseguir sua autonomia, alguns moradores, com extremo tato político, solicitam a criação da vila da Campanha da Princesa, homenageando duplamente a esposa do príncipe regente, futuro D. João VI, através do nome da vila e depois, separando a terça parte das rendas anuais auferidas pela câmara e enviando-a diretamente à 9 Idem. pp. 464-465. “Memórias Municipais” p. 460. 11 Idem. p. 461. 12 A própria Câmara reconhece a importância da região e das conseqüências negativas para a Vila de São João del Rei com a perda de receitas e manutenção de despesas. São citadas algumas despesas feitas com a ratificação da posse, em 1743 (264 oitavas de ouro), estabelecimento do julgado do Sapucaí (792 oitavas), destruição do quilombo do Rio Grande ( 500 oitavas); destruição do quilombo do Ambrósio (400 oitavas). Idem. p. 465. 10 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 107 princesa, em cofre em separado, para os seus alfinetes. Essa doação continuou sendo enviada mesmo depois que a princesa veio para o Brasil, com a Corte, em 1808.13 Em sinal de gratidão, o príncipe regente doou à princesa, D. Carlota Joaquina, o senhorio da vila. Sob protestos da câmara de São João del Rei, o arraial foi elevado à categoria de vila através do alvará de 20 de outubro de 1798, mas o auto de criação se deu mais de um ano depois, em 26 de dezembro de 1799.14 No ano de 1800, foi feita a demarcação do termo, tendo o Rio Grande como limite natural entre as duas vilas confinantes, a eleição e posse dos primeiros vereadores da câmara e do juiz de fora e a criação de vários cargos de escrivão de ofícios que atendessem às necessidades da câmara e da administração e justiça. As disputas entre as duas vilas ainda perduraram um pouco mais, já que a câmara de São João del Rei não concordava que as freguesias de Lavras do Funil, Baependi e Pouso Alto fizessem parte do termo da vila recémcriada. Depois de muita discussão, a câmara da vila da Campanha da Princesa resolve ceder o território da freguesia de Lavras do Funil, mantendo as outras duas freguesias sob sua jurisdição.15 Foi também neste ano que a câmara discutiu as formas de taxação para cobrir as despesas com construção da casa de câmara e cadeia, construção de pontes e chafarizes e calçamento das ruas. A documentação publicada pelo Arquivo Público Mineiro, intitulada “memórias municipais”, traz algumas informações, ainda que genéricas, sobre as principais atividades econômicas desenvolvidas na região e que farão a fortuna e a riqueza de alguns fazendeiros na primeira metade do século XIX. Os vereadores sugerem a taxação de um vintém de ouro por cada barril de cachaça que saísse dos engenhos, a mesma quantia por cada arroba de tabaco exportada. Também informam sobre a grande quantidade de cabeças de gado existentes nos largos campos da vila e seu termo, além da quantidade de toucinho que também é comercializado fora da vila e a necessidade de taxação dos mesmos.16 Tão logo D. João VI e sua comitiva se transferiram para a cidade do Rio de Janeiro, os vereadores da câmara da vila da Campanha se prontificaram a fornecer víveres para o abastecimento da Corte. Em fevereiro de 1808, a câmara já havia conseguido 730 cabeças de gado, 250 capados e outros gêneros. O toucinho seria enviado no lombo de burros, como já era de costume nesse tipo comércio. Seriam remetidas 200 cabeças de gado a cada viagem. A tropa, formada por 30 bestas muares e 50 cavalos ferrados, seria conduzida pelo tenente de milícias 13 14 15 16 Idem. pp. 527-537. Idem. pp. 469-470. Idem. pp. 508-511. Idem. p. 479. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 108 Joaquim Inácio Vilas Boas da Gama e dois soldados do destacamento, acompanhados de um ferrador e vários pedestres.17 Em dezembro de 1815, o juiz de fora e vereadores da vila solicitaram a criação de uma nova comarca, tendo a vila da Campanha como sede da mesma. Desta vez o foco de disputa desloca-se para o território que antes fazia parte da jurisdição da vila. Com a emancipação dos arraiais de Santa Maria de Baependi e São Carlos do Jacuí, os vereadores de Campanha se pautaram nos mesmos argumentos, evocados anos antes pela câmara de São João, quando Campanha pleiteou sua autonomia. A perda de território e de recursos só seria compensada com a criação da comarca. Outros argumentos, como a distância das vilas da região em relação a São João del Rei também foram mencionados e reivindicavam que as duas vilas recém-criadas e aquelas que fossem criadas posteriormente no seu território, ficariam sob a jurisdição da nova comarca. As vilas recém-criadas de Baependi e São Carlos do Jacuí foram consultadas e não aceitaram a criação de uma nova comarca, e muito menos, de ficar sob a jurisdição da vila da Campanha, alegando que não havia homens formados e com competência para preenchimento dos cargos. A câmara de Baependi ainda alegava que sofria vexames na administração da justiça quando ainda era arraial, daí a reivindicação de sua autonomia. Pertencer a nova comarca, representaria a submissão novamente.18 2. A vila da Campanha da Princesa: aspectos demográficos e econômicos Embora o período escolhido para análise se refira à primeira metade do século XIX, é importante apontar, como o termo a vila da Campanha foi se tornando um pólo de atração, especialmente na segunda metade do século XVIII. Infelizmente, não disponho de dados estatísticos populacionais para o século XVIII, mas considerando os números absolutos de batizandos por década, assim como fez Sheila de Castro Faria para a região de Campos dos Goitacases, no Rio de Janeiro, é possível identificar o aumento significativo do número de batizados, especialmente a partir da década de 1770.19 (ver quadro I) Já na primeira década do século XIX, esse número aumenta significativamente confirmando o que tem apontado a historiografia sobre o crescimento demográfico verificado na 17 Idem. p. 543. Idem. p. 557. 19 FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 170. A autora apresenta uma tabela contrapondo também o número de casamentos. Não pude estabelecer a mesma comparação, uma vez que não tive tempo hábil de coletar os dados dos assentos de casamento. 18 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 109 comarca do Rio das Mortes nesse período. Em 1821 a comarca detinha 41,6% do total de habitantes da Capitania, totalizando 213.617 pessoas.20 É justamente na primeira metade do século XIX, que o termo da vila da Campanha da Princesa, juntamente com outras vilas da comarca do Rio das Mortes, irá adquirir um maior dinamismo, atestados pelo crescimento populacional e pela importância de algumas atividades econômicas voltadas para o abastecimento interno e ligações mercantis com a Corte.21 Quadro I Número Absoluto de Batizados por Década Campanha – Baependi – Aiuruoca Décadas 1741-1750 1751-1760 1761-1770 1771-1780 1781-1790 1791-1800 1801-1810 Nº. 270 1.116 1.685 2.299 2.568 2.731 4.977 % 2% 7% 11% 15% 16% 17% 32% Total 15.646 100% Fonte: Registros Paroquiais de Batismo de Campanha (1741-1810). Arquivo da Cúria Diocesana da Campanha. Para o ano de 1824, existem alguns dados populacionais expressivos sobre as freguesias que compunham o Sul mineiro, visitadas por Dom Frei José da Santíssima Trindade, bispo de Mariana, entre 1820 e 1835. A região era composta pelas freguesias de Nossa Senhora da Conceição de Aiuruoca, Santa Maria de Baependi, Conceição do Pouso Alto, Santa Catarina, São Gonçalo e Santo Antônio da Campanha, atingindo um total estimado em 47.348 habitantes. As 20 MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal (1750-1808). 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 110. 21 O trabalho pioneiro a apontar a importância da região centro-Sul de Minas Gerais e suas ligações com abastecimento interno e da Corte foi elaborado por Alcir Lenharo. Este estudo será retomado em várias partes do trabalho, na medida em que as fontes forem analisadas. Cf. LENHARO, Alcir. As tropas da moderação. São Paulo: Símbolo, 1979. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 110 freguesias mais populosas eram as de Pouso Alto (13.516) , Aiuruoca (11.484), Campanha (8.788) e Baependi (7.560).22 Os dados referentes à população do termo da vila nem sempre são claros o suficiente para se perceber o comportamento demográfico da área investigada. Foi necessário partir de fontes diversas para traçar um quadro geral da população da vila e seu termo, considerando o número absoluto e o percentual de livres e de escravos. Em Minas Gerais, a primeira metade do século XIX será marcada pelo desmembramento, supressão e criação de novos distritos, vilas e comarcas, justamente em função do crescimento demográfico e das demandas de várias de localidades, como tive oportunidade de demonstrar para o caso de Campanha. Como bem constata Afonso Alencastro Graça Filho, as subdivisões jurídico-administrativas a que foram submetidas a capitania de Minas foram marcadas por extrema maleabilidade.23 Até 1833, a comarca do Rio das Mortes compreendia oito termos: Barbacena, Queluz, São José del Rei, São João del Rei (cabeça da comarca); Baependi, Campanha, São Bento do Tamanduá e São Carlos do Jacuí. Em 30 de junho daquele mesmo ano, foram criadas as comarcas do Rio Paraíbuna, agrupando os municípios de Barbacena, Baependi e Pomba, e a do Rio Sapucaí, tendo Campanha como cabeça da comarca, mais os termos de Pouso Alegre e São Carlos do Jacuí.24 Não estou partindo da subdivisão jurídico-administrativa para a delimitação do recorte espacial, uma vez que o próprio objeto transcende à geografia administrativa complexa, e muitas vezes confusa, das comarcas, vilas e distritos. Por outro lado, também é interessante apontar que as vilas escolhidas para estudo faziam parte do termo de Campanha, pelo menos até a década de 30 do Oitocentos. 22 TRINDADE, José da Santíssima, Dom Frei. Visitas pastorais de Dom Frei José da Santíssima Trindade (1821-1825). Belo Horizonte: Centro de Estudos Culturais. Fundação João Pinheiro; IEPHA/MG, 1998. p. 210-27. 23 Para maiores informações sobre as subdivisões jurídico-administrativas da comarca do Rio das Mortes, ver GRAÇA FILHO, Afonso Alencastro. A princesa do Oeste: elite mercantil e economia de subsistência em São João del-Rei (1831-1888). Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, tese de doutorado, 1998. Cap. 1. pp. 23-32. Esta tese foi publicada recentemente, pela Editora Annablume, mas estou tomando como base para considerações, o texto mimeografado. 24 Idem, p. 27. Para outras discussões sobre o assunto ver: MATOS, Raimundo J. da Cunha. Corografia Histórica da Província de Minas Gerais (1837). Vol. 1. Belo Horizonte, 1979. p. 88.; CARVALHO, Theophilo Feu de. Comarcas e Termos. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1922. p. 122. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 111 Quadro II População Livre e Escrava da comarca do Rio das Mortes e dos termos de Campanha e Baependi Ano 1821¹ Livres No. % Comarca do 138.517 66,1% Rio das Mortes Campanha 29.317 75% Baependi 19.012 64% Escravos No. % 71.147 33,9% 209.664 9.595 10.523 25% 36% 38.912 29.535 Campanha* 19.667 65% 10.673 35% 30.340 Baependi** T. de Campanha T. de Baependi 10.199 56% 7.987 44% 18.186 25.130 26.240 69% 60% 11.335 17.767 31% 40% 36.465 44.007 Área Total 1832² 1833/35³ *A população total do termo é de 36.467 habitantes. Não foram computadas as 6.217 pessoas para as quais não há informação sobre a condição. Os 1.647 forros foram incluídos entre a população livre. ** A população total do termo é de 19.671 habitantes. Os 320 forros foram incluídos entre a população livre. Fontes: 1) “População da Província de Minas Gerais – 1821”, de Silva Pinto, in MATOS, Raimundo José da. Corografia Histórica da Província de Minas Gerais (1837). BH/SP, Itatiaia/EDUSP, 1981, vol. 2; 2) 3) “Lista Nominativa dos Habitantes de alguns distritos do termo de Campanha e Baependi; 1831/32.” Banco de dados montado por equipe de pesquisadores do CEDEPLAR-UFMG, sob a coordenação da Prof.a Dr.a Clotilde Paiva. Original: Arquivo Público Mineiro; 3) APM. Mapas de População de 1833-35.25 25 Documentação pertencente ao APM, reproduzida e corrigida, quando houve erro na totalização, pelas pesquisadoras Clotilde Andrade Paiva e Maria do Carmo Salazar Martins - CEDEPLAR/UFMG. Essa documentação foi produzida por iniciativa do governo provincial mineiro, a partir de um decreto datado de 17 de julho de 1832, encarregando os Juízes de Paz dos diversos distritos da Província do preenchimento de um mapa padrão, constando os dados da população de seus respectivos distritos, discriminando a condição livre ou escrava, a cor (branco, pardo e preto), o estado civil e o sexo, segundo quatro faixas etárias distintas (até 15 anos, de 15 a 30 anos, de 30 a 60 anos, de 60 anos em diante). Tudo indica que os mapas começaram a ser preenchidos em 1833 (data de impressão constante dos mapas), se estendendo até o ano de 1835. Existem dados para 330 distritos da Província, representando 79,6% dos distritos existentes em Minas no período. Para uma análise mais geral dos dados para a Província de Minas confira MARTINS, Maria do Carmo Salazar. Revisitando a Província ... p. 12-29. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 112 Os dados apresentados no quadro acima, elaborado a partir de várias fontes, indicam que, na primeira metade do século XIX, houve um crescimento significativo da população na área, confirmando o dinamismo sócio-econômico da comarca do Rio das Mortes já apontado em vários trabalhos.26 Antes de proceder a análise dos dados é preciso considerar alguns aspectos relativos às fontes consultadas, que respondem à variação e discrepância de algumas informações de um período para o outro. Primeiramente, os dados referentes à população do termo de Aiuruoca não vêm em separado porque o mesmo pertencia ao termo de Baependi. Para o ano de 1832, encontra-se uma grande redução no número de habitantes do município, considerando o período anterior e posterior. A explicação está na ausência de alguns distritos importantes que pertenciam ao termo, que não constam das listas nominativas de 1832, incluindo a própria sede da vila. Já para Campanha, os números se mantêm praticamente iguais para a década de 30, considerando aquela parcela da população de 1832 para a qual não constam informações sobre a condição. Como já foi apontado no quadro I, a partir da década de 70 do Setecentos, verifica-se um crescimento significativo do número absoluto dos batizados, sinalizando que a área estava se tornando um pólo de atração de pessoas em virtude da expansão das atividades agro-pecuárias já consolidadas na região. O que mais chama a atenção neste quadro é o percentual significativo da população dos dois termos, considerando o total de habitantes da comarca do Rio das Mortes, denotando a importância estratégica e econômica da região, motivos pelos quais os moradores reivindicaram o status de vila, em 1795. A população dos dois termos respondia, aproximadamente, por quase 33% da população da comarca. O crescimento demográfico da região explica a oposição ferrenha da câmara de São João del Rei em relação à emancipação do arraial da Campanha do Rio Verde. O primeiro estudo demográfico sobre a população livre e escrava do termo de Campanha foi elaborado por Clotilde Paiva e Herbert Klein, considerando variáveis como a idade, sexo, origem, estrutura ocupacional e distribuição da população escrava entre os senhores. Embora a população escrava não ultrapassasse 30% do total da população da vila, destoando do restante dos municípios da província, cerca de 46% dos escravos eram de origem 26 Esse aspecto já foi salientado em trabalhos mais antigos, já citados. Estudos recentes, mais focalizados na comarca e fundamentados em extensa documentação regional, resultaram na elaboração algumas teses de doutorado de grande importância para se compreender o dinamismo econômico e populacional da comarca do Rio das Mortes. São os seguintes: GRAÇA FILHO, Afonso Alencastro. A princesa do Oeste: elite mercantil e economia de subsistência em São João del Rei (1831-1888). Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, tese de doutorado,1998. ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Homens ricos, homens bons: produção e hierarquização social em Minas Colonial, 1750-1822. Tese de Doutorado. Niterói: UFF, 2001; BRÜGGER, Silvia M. Jardim. Minas patriarcal – família e sociedade (São João del Rei, séculos XVIII e XIX). Tese de Doutorado. Niterói: UFF, 2002. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 113 africana e representavam 14% do total da população do município.27 Esse percentual é característico de regiões onde predominava a “grande lavoura” e a produção voltada para o mercado internacional.28 Outra indicação importante do quadro é o peso que a população escrava tinha no termo de Baependi. Desde a década de 20, os cativos ultrapassavam a cifra dos 35% em relação ao total da população. É especificamente neste termo que encontrei vários proprietários ultrapassando a faixa de 30 escravos, outros tantos acima de 50 e dois acima de 100 escravos, coisa rara no cenário provincial mineiro. Douglas Cole Libby, ao analisar em conjunto as listas nominativas de 1831/32, constata que dos quase 20.000 domicílios analisados, cerca de dois terços não possuíam escravos.29 Embora a posse de escravo fosse privilégio de apenas quase um terço da população livre, a grande maioria desses proprietários, ou seja, quase dois terços, possuíam de um a cinco escravos. Ainda que houvesse uma disseminação da propriedade escrava entre os pequenos proprietários, o índice de concentração dos cativos entre os proprietários médios e grandes era muito alto, formando o que Douglas Libby define como a “elite local” do sistema escravista.30 Para se entender o funcionamento de uma sociedade pautada no trabalho escravo é fundamental verificar como esta se estruturava, considerando a posse ou não de cativos. No caso de Campanha, em 1831/1832, cerca de 30% da população livre possuíam escravos,31 e aproximadamente dois terços dos proprietários possuíam de um a cinco cativos, confirmando o padrão encontrado para o restante da Província. A distinção mais importante fica por conta dos proprietários de nível médio e daqueles que estavam no topo da pirâmide social escravista, ou seja, os que possuíam 20 cativos ou mais. Embora juntos representassem pouco mais de um terço da camada proprietária, concentravam mais de dois terços da população escrava. Os senhores com 20 escravos ou mais concentravam sozinhos nada menos que quase um terço dos cativos. 27 Partindo das mesmas fontes e utilizando a base de dados elaborada por Clotilde Paiva, o total da população do termo vai além dos 35.000 encontrados pela autora, incluindo aqueles que não constam informação sobre a condição. O percentual da população escrava também é um pouco superior, atingindo a casa dos 35%. Isso pode ser explicado porque excluí do cálculo os 6.217 habitantes para as quais não consta informação sobre a condição. Agregando esse número ao conjunto da população livre, o percentual é semelhante ao encontrado por Clotilde Paiva. 28 Ver PAIVA, Clotilde e KLEIN, Herbet S. “Escravos e livres nas Minas Gerais do século XIX: Campanha 1831. São Paulo, Estudos Econômicos, 22(1):133-34, jan/abr. 1992.Idem (1992), p. 135. É o caso do município açucareiro de Itu, em 1829, onde os escravos africanos representavam 48% do total. Informações referentes à características da população escrava, bem como das principais atividades em que eles eram empregados, serão discutidos em capítulo específico da tese. 29 LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São Paulo, Brasiliense, 1988. p. 97. 30 Idem. p. 82. 31 PAIVA, Clotilde Paiva e KLEIN, Herbert (1992). p. 136. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 114 Quadro III Estrutura de posse de Escravos em Campanha - (1831/32) Faixas de escravaria Fogos % Escravos % 01 a 05 06 a 10 20 ou mais Total 1074 462 97 1633 66% 28% 6% 100% 2.504 4.500 3.204 10.208 25% 44% 31% 100% Fonte: APM. Lista Nominativas (1831-1832) do termo de Campanha. Quadro elaborado de acordo com a tabela 10 do artigo de PAIVA, Clotilde e KLEIN, Herbet S. Escravos e livres nas Minas Gerais do século XIX: Campanha 1831. São Paulo, Estudos Econômicos, 22(1):133-34, jan/abr. 1992. p. 145. Douglas Libby também constata que dos 6.583 domícilios que possuíam escravos, apenas 163 detinham escravarias superiores a 30 cativos. Unidades escravistas com mais de 100 escravos seriam uma raridade no cenário mineiro, não ultrapassando o número de seis domicílios.32 Apenas 42 domicílios em toda a província tinham posses entre 50 e 100 cativos. Embora esteja trabalhando com um período mais amplo e a partir de outro escopo documental, é interessante verificar o que os inventários têm a revelar sobre a estrutura de posse de cativos. O critério de escolha para definir como grande proprietário aquele senhor que possuía 20 escravos ou mais, está diretamente relacionado à minha pesquisa com as fontes. Pude verificar, nos inventários de Campanha, que a maioria das grandes unidades escravistas oscilavam em torno desse número, ou seja, dos 64 maiores proprietários, 35 (56%) possuíam de 20 a 29 escravos, concentrando 943 (40%) cativos. As unidades com mais de 30 escravos somavam 15 (24%), concentrando 588 (30%) escravos. Também havia um número expressivo de senhores com escravarias acima de 50 cativos. Eles eram 13 (20% ) proprietários que concentravam 826 (30%) dos cativos. Para Campanha, localizei apenas um proprietário que possuía acima de 100 escravos. (ver quadro V) Embora os inventários não sejam a melhor documentação para discutir estrutura de posse de escravos, o que importa destacar é que os níveis de concentração da propriedade escrava são muito expressivos e revelam a importância econômica da região na primeira metade do século XIX. Mais de 12% dos senhores detinham mais de 45% da escravaria do município, ou seja, 64 proprietários concentravam 2.357 cativos. 32 LIBBY, Douglas Cole. LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista... p. 98. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 115 Quadro IV Estrutura de posse de escravos em Campanha (1802-1865) Faixas de Escravaria 01 a 05 06 a 19 20 ou mais Total Nº. de Proprietários 222 216 64 499 % Nº. de Escravos 44% 611 43% 2.189 13% 2.357 100% 5.157 % 12% 42% 46% 100% Fonte: Inventários post mortem de Campanha. Centro de Memória Cultural do Sul de Minas CEMEC-SM Obs: Unidades não-escravistas: 59 O que primeiramente chama a atenção nos dados apresentados é que a comarca do Rio das Mortes apresenta unidades escravistas à altura das propriedades voltadas para agroexportação. Esta hipótese foi levantada por Afonso Alencastro de Graça Filho ao estudar a elite mercantil e a economia de subsistência em São João del Rei, no período de 1831 a 1888 e que também considero apropriada. Os dados que encontrei para o termo de Campanha são muito aproximados aos que o autor encontrou para o termo de São João del Rei. Dos 103 maiores fazendeiros sanjoanenses, 54 possuíam mais de 30 cativos. Aqueles que possuíam mais de 50 escravos totalizavam 22. Apenas dois tinham acima de 100 escravos33. A média de escravos entre os grandes proprietários de Campanha também é quase igual, ou seja, de 37 escravos, enquanto que para São João del Rei é de 36.34 É interessante comparar esses dados com algumas regiões escravistas do Império no sentido de perceber certas semelhanças com algumas áreas agro-exportadoras e diferenças com outras áreas voltadas para o abastecimento interno. Stuart B. Schwartz, ao classificar as ocupações no Recôncavo baiano segundo a riqueza em escravos, constata que 7,7% dos proprietários, ou seja, 165 senhores de engenho, possuíam em média 65 escravos.35 Evidentemente que aqui se trata de unidades escravistas voltadas para a agro-exportação e daí o número médio bem superior de escravos. Para o caso do Rio de Janeiro, na localidade do Capivary, Hebe de Matos encontra, para segunda metade do século XIX, os maiores proprietários com posses que oscilavam entre 20 e 30 escravos.36 A autora trabalhou com uma área que não se situava no vale do Paraíba fluminense, 33 GRAÇA FILHO, Afonso Alencastro. A princesa do Oeste... p. 125-128. Idem. p.125. 35 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Cia das Letras, 1988. p. 360-367. 36 MATTOS, Hebe. Ao sul da história. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 41. 34 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 116 embora os fazendeiros cultivassem café se tratava de uma economia voltada para o abastecimento interno. Renato Leite Marcondes, ao estudar a gestação da economia cafeeira no vale do Paraíba paulista, mais precisamente em Lorena, constata que em 1829 verifica-se um nível maior de concentração da escravaria entre aqueles proprietários que possuíam 20 escravos ou mais.37 Poderia enumerar mais alguns casos, mas considero que são suficientes para demonstrar que os dados encontrados para a comarca do Rio das Mortes e, particularmente para o termo de Campanha, são grandes indicadores da importância da mão-de-obra escrava nas fazendas daquela região, aproximando-as dos índices das áreas agro-exportadoras. Como podem ser caracterizadas as fazendas sul-mineiras? Quais os tipos de atividades econômicas mais comuns na região e que demandavam tanta mão-de-obra escrava? Na tentativa de responder a estas e outras questões, procurei fazer um mapeamento da economia local a partir da análise de 475 inventários para os quais foi possível identificar a atividade produtiva, entre 1802 a 1865. Mas antes disso é importante tecer algumas considerações sobre as fontes e a metodologia utilizada para esse tipo de investigação. Em primeiro lugar, devo lembrar que os inventários campanhenses estão subrepresentados, se considerarmos a importância sócio-econômica e política da vila e número total de documentos existentes para o século XIX. O acervo completo consta de 983 documentos.38 Em função disso, não pude estabelecer uma amostra por décadas, acabei optando por trabalhar com todos inventários existentes para a primeira metade do século XIX. Os inventários correspondentes ao século XVIII são inexpressivos e não ultrapassam 06 documentos, sendo que alguns se encontram bastante deteriorados. Também acabei optando por transcender um pouco o recorte cronológico final, não somente em função das razões já apontadas acima, mas também porque as fortunas acumuladas no momento da execução do inventário foram amealhadas na primeira metade do século XIX. As fontes cartoriais, mais precisamente os inventários, tem sido largamente usadas por historiadores e com propósitos e metodologias diversas. Muitas pesquisas, realizadas ao longo da década de 80, prestaram grandes contribuições para o estudo da estrutura agrária e econômica 37 MARCONDES, Renato Leite. A arte de acumular na economia cafeeira: vale do Paraíba, século XIX. Lorena/SP: Editora Stiliano, 1988. p. 89-91. 38 No final de 2002, divulguei em forma de cd-rom, um guia detalhado dos acervos históricos campanhenses, dentre eles a relação nominal dos inventariantes e inventariados no século XIX. Esse trabalho foi realizado em parceria com a Profa. Maria Tereza Pereira Cardoso, da UFSJ. Cf. ANDRADE, Marcos F. et. al. A vila da Campanha da Princesa: guia de fontes para a História do Sul de Minas. Campanha: Centro de Memória Cultural do Sul de Minas, 2002. (CDROM) Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 117 brasileira, calcadas nesse tipo de fonte.39 Do ponto de vista metodológico a análise desse conjunto de inventários se aproxima muito do procedimento e da percepção adotada por Sheila de Castro Faria, quando analisou a trajetória de indivíduos e famílias que tiveram seus bens inventariados na região dos Campos dos Goitacases, Rio de Janeiro, no século XVIII. Como bem percebe a autora, assim como uma fotografia, os inventários retratam um momento específico da vida material das pessoas, mas se tratados em conjunto, é possível “captar o(s) movimento(s). Pode-se, por exemplo, agregar inventários em grupos específicos e perceber trajetórias de vida que se assemelham, estabelecendo-se padrões de conduta e de produção”.40 Procurarei verificar quais eram as principais atividades econômicas desenvolvidas, considerando o número de escravos que cada grupo de proprietários possuía. O objetivo é traçar um mapeamento da economia local, bem do como dos seus principais agentes. Sempre que possível, procurarei ilustrar com alguma trajetória individual ou familiar. No quadro abaixo, procurei classificar as unidades produtivas por tipo de atividade. A classificação adotada permite perceber quais os tipos de atividades eram mais recorrentes entre os proprietários, indicando também o padrão das fazendas sul-mineiras. Mas antes disso gostaria de explicar os critérios para a classificação adotada. Optei por contabilizar os inventários considerando a atividade mais importante desenvolvida por cada proprietário, embora vários proprietários desenvolvessem atividades consorciadas. Um fazendeiro poderia ser dono de engenho, criar gado, produzir alimentos e ainda se dedicar ao pequeno comércio de loja ou ao comércio de tropas e ainda à mineração. Como bem lembra Kenneth Maxwell, a fazenda de Minas “combinava o engenho de açúcar com a mina, ou esta última com a pecuária”. O autor até cita como exemplo o caso de Alvarenga Peixoto, inconfidente, que possuía propriedades no arraial de São Gonçalo do Sapucaí, pertencente ao termo de Campanha, dedicadas à mineração, engenho de açúcar e criação de gado.41 Neste momento, o nosso objetivo é separar as atividades para se perceber a importância das mesmas na região e quantos proprietários estavam mais diretamente envolvidos na sua execução. O consórcio de atividades será verificado no momento em que formos discutir o que produziam as pessoas inventariadas, segundo o tipo de unidade (escravista 39 Alguns trabalhos merecem destaque pelas contribuições em termos metodológicos e uso extensivo destas fontes. Como trabalho pioneiro não deve ser esquecido a obra de MACHADO, Alcântara. Morte e vida do Bandeirante. 3. ed. São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. Dentre os vários estudos realizados na década de 80 e 90, destaco os seguintes: MELLO, Zélia Cardoso de. Metamorfoses da riqueza: São Paulo, 1845-1895. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1990; FRAGOSO, João Luís. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (179-18030). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992; MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia – século XIX: uma província no Império. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992; A Colônia em movimento: fortuna e família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 40 FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento... p. 225 41 MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa... p. 111. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 118 e não-escravista) e a faixa de escravaria. Portanto, considerei como agricultores todos aqueles indivíduos que tinham arrolado entre seus bens algum tipo de produção de alimentos (milho, feijão, arroz, mandioca...). Foram considerados pecuaristas todos aqueles que se dedicavam exclusivamente à criação de animais (gado, cavalos, bestas, porcos e ovelhas). Já os agropecuaristas são aqueles proprietários em que as duas atividades aparecem claramente consorciadas, ou seja, há menção de roças plantadas e mantimentos colhidos ou para colher, além de se dedicarem à criação de animais. O número de donos de lavras foi listado com o objetivo de se perceber o peso da mineração, principalmente no arraial de São Gonçalo da Campanha, mas nunca era uma atividade isolada, como será verificado. O mesmo caso se aplica aos inventariados que se dedicavam ao comércio e aos engenhos de açúcar. Dos 558 inventários analisados, não encontrei indicações claras que me permitissem inferir o tipo de atividade desenvolvida para 83 proprietários. Em alguns casos tratamse de inventários incompletos com a descrição somente de alguns bens e/ou escravos, em outros, parece indicar que os proprietários eram moradores na vila. Alguns deles é possível inferir que se dedicassem a ofícios mecânicos, tais como, ferreiro, sapateiro, marceneiro, devidos aos bens que são arrolados. Outros parecem que viviam do ganho de um ou mais escravos. Quadro V Número de Proprietários por Tipo de Unidade Produtiva Tipos de Unidade Produtiva Nº. de Faixa de Escravaria S/E Agrícola F1 (01 a 05) F2 (06-19) F3 ( + de 20) Proprietários % 6 3 1 10 2% Pecuarista 30 92 85 5 212 45% Agropecuária 8 51 67 20 146 31% 6 3 6 15 3% 7 5 3 18 4% 6 39 29 74 16% 168 202 64 475 100,00% Mineração Comércio 3 Engenho de Açúcar Total 41 Fonte: ver quadro IV Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 119 O que primeiramente chama à atenção é que a grande maioria dos fazendeiros do Sul de Minas se dedicava à produção de alimentos e à criação de animais. O percentual reduzido daqueles que se dedicavam exclusivamente à agricultura está explicado pelos critérios adotados para a elaboração do quadro. Embora alguns inventários dos pecuaristas não apresentassem produção de mantimentos no momento da realização do inventário, muitos deles possuíam sítios, fazendas, “terras de cultura e campos de criar”, como denominavam os inventários e que, certamente, cultivavam algum tipo de alimento, seja para a própria subsistência, bem como para o trato dos animais. Os estudos recentes para a comarca do Rio das Mortes apresentam quadros semelhantes.42 Talvez a grande diferença para o termo de Campanha esteja no peso e importância daqueles fazendeiros que também se dedicavam ao plantio da cana para a produção de açúcar e/ou aguardente. Por isso optei por demonstrar quantos proprietários dedicavam a esse tipo de atividade. Mais de 45% dos inventariados que se dedicavam a essa atividade estavam entre aqueles que detinham maior número de cativos. Considerando também os pequenos e médios proprietários, verifica-se que nada menos que 16% (74) do total dos inventariados que tiveram a atividade econômica identificada estavam envolvidos diretamente com o plantio de cana e a produção de açúcar e/ou aguardente. São números expressivos e que demonstram a importância que a produção de açúcar, rapadura e aguardente tinham na região. 3. Terras de Cultura e Campos de Criar Vi-me diante de uma enorme extensão de colinas arredondadas, cobertas unicamente por um capim acinzentado, entre as quais se viam aqui e ali tufos de árvores verde- escuros, como que jogados ao acaso. Entrei na região dos campos.43 Essa foi a primeira impressão que o botânico francês, Saint-Hilaire, teve da comarca do Rio das Mortes, em 1819, principalmente na área demarcada pelo Rio Grande, contrastando-se com a região das florestas. Segundo o autor, a serra da Mantiqueira era o limite natural entre essas duas regiões. Como o viajante cruzou o território mineiro algumas vezes, entre 1816 e 42 Este é o mesmo cenário encontrado por Afonso Alencastro Graça Filho, para o termo de São de João de Rei, entre 1831 e 1888. Ver especialmente o capítulo III. In: A princesa do Oeste... p. 113-159. Carla Maria Carvalho de Almeida, embora tenha verificado um pequeno decréscimo da atividade agropecuária no período de 1770-1822 para a comarca do Rio das Mortes, constata que era justamente nesta atividade que estavam concentrados o maior número de proprietários. In: Homens ricos, homens bons... p. 100-101. 43 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do Rio São Francisco. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Ed. USP, 1975. p. 45. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 120 1822, e percorreu trajetos distintos,44 possibilitou-lhe também destacar algumas diferenças marcantes em certas localidades da comarca, como por exemplo, Baependi e Aiuruoca. Informa que mais ao sul da Capitania, entre Baependi e Córrego Fundo, havia um trecho de quase nove léguas, inteiramente coberto de matas.45 A região próxima a vila de Aiuruoca era mais montanhosa e também possuía muitas matas. É justamente nesta parte do território mineiro que a atividade agropecuária irá adquirir grande expansão. “As terras de cultura e os campos de criar”, como denominam os inventários, irão garantir a sobrevivência de pobres e sitiantes e farão a fortuna de alguns grandes fazendeiros. O capitão Antônio Luiz Pinto, residente na freguesia de Santa Ana do Supucaí, pode ser considerado um grande agropecuarista. Além de se dedicar à agricultura, também era um importante criador de animais. Pelo seu inventário, realizado em 1836, ele possuía 24 escravos que, certamente, estavam ocupados nas atividades agro-pastoris. Em sua propriedade havia 55 vacas com cria, 111 ditas “solteiras”, 27 bois novos, 10 bois carros, 41 novilhos, 74 vitelos e vitelas, além de mais uma dezena de animais cavalares e algumas bestas arriadas. O número de porcos também era expressivo: 101, de criar, 17 sevados e 101 pequenos. Entre as culturas se destacava o cultivo de milho, com alguns alqueires já plantados e outros em ponto de colher.46 A importância que as atividades agrárias adquiriram na região pode ser constatada não só pelo número de proprietários qualificados como agricultores, pecuaristas e agropecuaristas, mas também pela produção de alimentos e pela criação de animais, como demonstra o quadro VI. O traço marcante é que todas as unidades produtivas (escravistas ou não) estavam diretamente ligadas à produção de alimentos e/ou à criação de animais. Antônio Martins Coelho, por exemplo, em 1834, quando realizou o inventário de sua esposa, Ana Inocência de Jesus, era um pequeno proprietário, dono de quatro escravos. Possuía algumas poucas vacas de criar, novilhas, bois e alguns animais cavalares, além de 15 carros de milhos. A atividade agropecuária também estava disseminada entre a população mais pobre. Aqueles que não possuíam nenhum cativo e apresentava poucos bens e possuía um sítio, ou parte de uma fazenda, ou mesmo não possuíam terras, criavam algum tipo de animal, geralmente gado, cavalo ou porco, como pode ser verificado pela tabela abaixo. Antônio Correia de Lemos, 44 Para ver os itinerários de viagem (mapas e roteiros) dos principais viajantes que cruzaram o território mineiro, principalmente Saint-Hilaire, ver GODOY, Marcelo. Intrépidos viajantes e a construção do espaço: uma proposta de regionalização para as Minas Gerais do século XIX. Belo Horizonte: Cedeplar/UFMG, 1996. (texto para discussão: 109) p. 78-98. 45 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do Rio São Francisco. Nota 2, p. 48. 46 Inventário post mortem do Capitão Antônio Luiz Pinto (1836). CEMEC-SM. Cx. 08. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 121 inventariado em 1835, dono de uma parte na fazenda São João, na freguesia de Douradinho, possuía duas éguas, uma vaca e uma novilha e dois capados. Quadro VI Produção Agrícola e Criações de Animais nas Unidades Produtivas do termo de Campanha (1802-1865) Produção Agrícola Milho Feijão Arroz Mandioca Unidades Escravistas Unidades NãoEscravistas Nº. % 3 2% 1 1% 25 30 1 15 4 7% 8% 2% 6% 3% F1 (01 a 05) 41 16 17 3 117 127 3 76 44 % Total % F3 (20 ou mais) 24% 23% 21% 30% F2 (06 a 19) 84 35 43 5 % Nº. % 50% 50% 54% 50% 40 19 19 2 24% 168 100% 27% 70 100% 24% 80 100% 20% 10 100% 33% 33% 5% 31% 31% 159 164 29 112 71 45% 43% 45% 46% 50% 56 59 31 39 24 16% 16% 48% 16% 17% Criação de Animais Gado vacum Cavalar Bestas Porcos Carneiros 357 380 64 242 143 100% 100% 100% 100% 100% Fonte: ver quadro IV Os gêneros agrícolas mais comumente encontrados nos inventários foram o milho, o feijão, arroz e mandioca. Os três primeiros itens faziam parte da dieta básica da população, além do milho servir para o trato de animais, como porcos e galinhas. Dados sobre a produção de mandioca pouco aparecem nos inventários, mas isto não quer dizer que a mesma não fosse largamente cultivada. Como a região se tornou o principal pólo abastecedor da Corte, especialmente após 1808, há de se compreender a importância que a cultura do milho Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 122 desempenhava na economia local47. Conforme demonstrou Roberto Martins48 e, mais recentemente, Cláudia Chaves, a exportação de milho em grão para o Rio de Janeiro ou São Paulo era muito pequena. Mas considero que a argumentação de Robert Slenes sobre a “exportação indireta desse produto, em lombo de porco”49 seja a mais adequada. De fato, o aumento do comércio de suínos (amimais vivos e toucinho) com o Rio de Janeiro pode ter intensificado o cultivo do milho nas fazendas sul-mineiras. Embora Saint-Hilaire,50 em passagem pela comarca do Rio das Mortes, tenha descrito sobre o costume de se utilizar tubérculos na alimentação dos porcos, a expressiva quantidade de inventários que apresentaram produção de milho demonstra o quanto era essencial o seu cultivo, garantindo assim o funcionamento e expansão dos empreendimentos agropastoris. (ver quadro VI) Outro aspecto que confirma a produção de gêneros voltados para o abastecimento é o número de bestas que havia em várias unidades escravistas. Certamente, muitas delas eram utilizadas para o comércio de produtos que interligavam a província de Minas ao Rio de Janeiro e vice-versa. Quase a totalidade das bestas arroladas, ou seja, 93% estavam nas mãos dos proprietários de nível médio e grande. Cerca de 48% dos grandes fazendeiros possuíam grande número de bestas e, muitas, arriadas, além das casas de tropa, descritas nos bens de raiz. Em 1833, D. Maria Antônia de Jesus possuía 55 vacas, 20 reses, 19 bois de carro, 25 garrotes e novilhas, além de nove bestas arriadas. Detinha uma escravaria de 28 cativos. Os indícios de que também se dedicava ao comércio de gêneros para o abastecimento, pode ser percebido pelos 84 queijos quer foram arrolados entre os bens do casal. A produção de milho também era significativa, ou seja, possuía 27 carros de milho no paiol.51 A importância da agropecuária no Sul de Minas já havia sido ressaltada pela historiografia, mas de forma bastante genérica. Caio Prado Júnior ao descrever a formação dos núcleos de povoamento do interior de Minas, mais precisamente ao Sul da capitania, na bacia do Rio Grande, onde se formaria a Comarca do Rio das Mortes, destaca o progresso da pecuária voltada para o comércio, desde meados do século XVIII. "O progresso da pecuária nesta região, favorecida por 47 Sobre o assunto ver: LENHARO, Alcir. As tropas da moderação... caps. III e IV. Afonso Alencastro Graça Filho discute a importância do cultivo e produção do milho na região de São João del Rei, chegando a defini-la como “a civilização do milho”. In: A princesa do Oeste...cap. III. 48 MARTINS, Roberto B. A economia escravista de Minas Gerais... p. ; CHAVES, Cláudia. Melhoramentos do Brazil: integração e mercado na América Portuguesa (1780-1822). Niterói, UFF, Tese de Doutorado, 2001. Ver as tabelas elaboradas a partir dos mapas de exportação e importação de Minas através dos principais registros que estão anexas ao final da tese. Dos 11 registros fiscais analisados somente três (Campanha do Toledo, Malhada e Rio Preto) apresentam alguma produção de milho em grão com destino a outras capitanias. p. 325-341. 49 Em resposta ao debate iniciado pelos irmãos Martins, Robert Slenes questiona o caráter “vicinal” da economia mineira oitocentista, especialmente no que se refere à desvinculação da economia voltada para o abastecimento interno do setor exportador. SLENES, Robert. Os múltiplos de porcos e diamantes... p. 481. 50 SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagens às nascentes do rio São Francisco. p. 52-53. 51 Inventário post mortem de D. Maria Antônia de Jesus(1833). CEMEC-SM. Cx. 06. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 123 condições naturais destacadas, foi rápido; e já em 1756 descia gado daí para São Paulo, concorrendo com o fornecimento dos campos do sul - Curitiba e Rio Grande".52 Desde o final da década de 70, os estudos têm demonstrado a diversidade da economia mineira desde as primeiras décadas do século XVIII, onde a agricultura, pecuária e mineração eram executadas em concomitância e o consórcio de atividades foi algo marcante no cenário mineiro, situação que se prolongou e se acentuou no século seguinte53, pelos menos para algumas regiões como a comarca do Rio das Mortes.54 4. Os Engenhos de Açúcar Havia uma quantidade expressiva de proprietários que se dedicavam ao cultivo de cana, produção de açúcar e/ou aguardente. E o mais interessante a destacar é que esses fazendeiros representam mais de 45% dos grandes proprietários da região. Clotilde Paiva e Herbet Klein mencionam um relatório fiscal da Província, datado de 1836, que demonstra a importância e o número de engenhos que existiam no termo de Campanha. O município ocupa o sexto lugar na produção açucareira, contando com a presença de 86 engenhos.55 Nos inventários analisados encontrei quase esse número, ou seja, nada menos que 74 proprietários ligados a esse tipo de atividade. (ver quadro V) Também, como já tive oportunidade de chamar a atenção esta atividade nunca estava isolada. Quase sempre um dono de engenho criava animais, seja de gado, muares, porcos e ovelhas, além de produzir mantimentos como arroz, milho e feijão. Para alguns também é possível indicar claras ligações com o comércio através de tropas, seja pelo número de bestas arriadas, ou por possuir casa para tropas e pouso para tropeiros. A relação entre os engenhos e casas de negócios também foi constatada por Clotilde Paiva.56 Este parece ser o caso do desembargador 52 PRADO JR, Caio Prado. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 57. Ver, entre outros: LENHARO, Alcir. As tropas da moderação...; MARTINS, Roberto B. A economia escravista de Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte, CEDEPLAR/UFMG, 1982. GUIMARÃES, Carlos Magno e REIS, Liana Maria. “Agricultura e escravidão em Minas (1700/1750). Revista do Departamento de História da UFMG, vol 1, n°2, 1986; LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São Paulo, Brasiliense, 1988.; SLENES, Robert. “Os múltiplos de porcos e diamantes: a economia escravista de Minas Gerais no século XIX”. Campinas: Cadernos IFCH/UNICAMP, n. 17, jun. 1985. 54 É o que têm mostrado as duas teses recentes já citadas. Ver: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Homens ricos, homens bons... p. 98-101.; GRAÇA FILHO, Afonso Alencastro. A princesa do Oeste... 55 PAIVA, Clotilde e KLEIN, Herbert. Escravos e livres nas Minas Gerais... p. 133. 56 Clotilde Paiva utiliza os relatórios de 1836 como fonte complementar em sua tese de doutorado. A autora analisa as informações existentes para 41 distritos com o objetivo de perceber a riqueza da “relação dos engenhos e das casas de negócio”. In: População e economia nas Minas Gerais do século XIX. São Paulo: FFLCH/USP, 1997. (tese de doutorado) . p. 77-85. Essa documentação já tinha sido objeto de investigação mais detalhada em outro artigo. Ver PAIVA, Clotilde e GODOY, Marcelo. “Engenhos e casas de negócios na Minas Oitocentista”. In: Anais do VI Seminário sobre a Economia Mineira. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, p. 29-52. 53 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 124 José Joaquim Carneiro de Miranda e Costa, inventariado em 1844. Figura de grande projeção na vila, uma vez que foi o primeiro juiz de fora da mesma, era dono de engenho e criava gado e produzia alimentos. Dentre os seus bens de raiz, além de fazenda de cultura e engenho, possuía uma venda à beira de estrada, que certamente servia para comercializar os produtos de sua fazenda, entre eles, a aguardente.57 Rodrigo Antônio de Lemos, morador no arraial de São Gonçalo da Campanha, teve seus bens inventariados no ano de 1850 e a produção de açúcar e aguardente representava a atividade principal de sua fazenda. Isso pôde ser constado tanto pelos utensílios e benfeitorias próprias de um engenho, bem como da produção de sua unidade agropastoril. Possuía 16 formas de fazer açúcar, tachos, várias pipas e um alambique. A produção de seu engenho também era expressiva: 164 arrobas de açúcar em formas, 20 ½ arrobas de açúcar branco, além de 105 barris de aguardente. Para garantir a produção desses gêneros foram arroladas várias lavouras de canas, em diversos estágios. Assim como em outras fazendas, percebe-se a diversificação das atividades. A produção de alimentos e a criação de animais, especialmente o gado vacum e suíno, faziam parte do seu empreendimento. Possuía 50 alqueires de arroz, 101 carros de milho no paiol, além de uma centena e meia de cabeças de gado bovino e 51 de suínos. A importância da riqueza acumulada por esse proprietário pode ser verificada pelo valor total dos bens avaliados, ou seja, 92.559$737 (noventa e dois contos, quinhentos e cinqüenta e nove mil, setecentos e trinta e sete réis). Evidentemente nem todos os inventários tem essa riqueza de detalhes e nem todos os senhores de engenho encontram-se nesse padrão, mas o número de proprietários com grande escravaria, e que se dedicavam a esta atividade, não é desprezível, conforme já foi demonstrado. Os proprietários de nível médio constituíam a maioria dos donos de engenho, ou seja, 39 (52%). Como apontam alguns estudos sobre a cultura canavieira em diferentes regiões da Colônia, esta é uma atividade que demanda maior contingente de escravos.58 Talvez aí esteja uma das razões para a média bastante expressiva de cativos por proprietário, considerando os níveis de concentração da mão-de-obra escrava em outras localidades. Parece-me que, mesmo na segunda metade do século XIX, os engenhos ainda representavam um papel essencial na economia sul-mineira, atestado pelo relatório elaborado pela câmara da vila da Campanha, no ano de 1857. Segundo este documento, a lavoura era a principal “indústria” a que se dedicavam os moradores do município, tendo como principais 57 Inventário post mortem do desembargador José Joaquim de Miranda e Costa (1844). Centro de Memória Cultural do Sul de Minas - CEMEC-SM. Cx. 16. Na relação de engenhos e casa de negócios de 1836, consegui localiza-lo como dono de um engenho movido por força animal e proprietário da única venda situada na estrada próxima à sua fazenda. Ver. APM. Seção Provincial. SP. PP 1/6. cx. 05. 58 Ver SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos….; FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento... Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 125 produtos o açúcar e a aguardente, o tabaco em rolo, os cereais, o gado vacum e suíno, nesta ordem de importância.59 5. O Cultivo do Tabaco A importância que teve o cultivo do tabaco no Sul de Minas, mais precisamente no termo de Baependi, é abordada de forma bastante genérica em vários trabalhos, pois ainda falta um estudo mais detalhado desta atividade na região, destacando o volume de produção, a importância do comércio e sua vinculação com o tráfico internacional,60 se é que ocorria. Também não terei condições de apresentar um estudo mais sistematizado e nem de oferecer muitas respostas para o “ciclo do fumo sul-mineiro”, como define Douglas Libby,61 mas certamente alguns inventários denotam a importância que atividade possuía na região e quantos proprietários estavam diretamente envolvidos na sua execução. Numa primeira leitura dos inventários pode-se perceber que a região da Freguesia de Santa Catarina, que mais tarde pertencerá à comarca de Cristina, apresenta um maior número de processos que contém lavoura de tabaco, que nos documentos aparece como “fumo em arroba”, “fumal” ou “fumo em rolo”. Algumas propriedades da freguesia do Lambari, mais próximas de Campanha, também apresentam alguma produção ou lavouras de tabaco. Dos 475 inventários analisados, consegui localizar 31 (6,5%) proprietários que possuíam produção de tabaco em arrobas ou em lavoura. Embora o número seja pequeno, é representativo quando se considera a faixa de escravaria. Mais de 60% (22) dos proprietários que apresentavam alguma produção de fumo estavam nas faixas médias e grandes de escravaria. Nenhum deles parece se dedicar exclusivamente à produção de fumo, aliás, como em outros casos, as atividades estavam sempre consorciadas. Em 1833, D. Ana Francisca de Jesus, por exemplo, residente na fazenda 59 Relatório da câmara municipal de Campanha, datado de 20/02.1857, em resposta à circular do Governo da Província sobre o estado da mineração, agrícola e fabril. APM. SP 655. 60 João Luís Ribeiro Fragoso relata sobre o comércio de fumo e tecidos grossos para escravos desenvolvido entre Airuoca, Baependi e Cristina e a praça mercantil do Rio de Janeiro. In: Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 25. 61 O autor destaca a inexistência de estudos mais sistematizados sobre assunto, ao analisar as obras de Kathleen Higgins e Laird W. Bergard sobre Minas Gerais. In: “Minas na mira dos brasilianistas: reflexões sobre os trabalhos de Higgins e Bergard”. In: BOTELHO, Tarcísio Rodrigues et al. História quantitativa e serial no Brasil: um balanço. Goiânia: ANPUH-MG, 2001. pp. 279-304. Também já havíamos chamado a atenção para esse aspecto em artigo em que analisamos o potencial das fontes regionais para a história do Sul de Minas. Ver ANDRADE, Marcos F. e CARDOSO, Maria Tereza P. “A vila da Campanha da Princesa: fontes para a História do Sul de Minas. Varia História. Belo Horizonte, Revista do Departamento de História da UFMG, julho de 2000. p. 218. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 126 Congonhal, no termo de Campanha, além de ser dona de engenho, criar gado e produzir milho, também possuía 32 arrobas de fumo.62 Segundo indicações de Bernardo Saturnino da Veiga, ainda na década de 80 do século XIX, o fumo constituía a principal produção da freguesia de Santa Catarina, seguidos pela produção de café e cana.63 A indicação da importância que esta atividade teve na localidade pode ser avaliada pelo inventário de D. Maria Bento Carneiro, realizado no ano de 1849. Além de grande agropecuarista e detentora da maior escravaria encontrada para o termo de Campanha, ou seja, mais de 100 escravos, era proprietária de algumas fazendas, possuía sociedade em outras tantas e também tinha residência na freguesia. A conexão entre a produção e provável comercialização do tabaco pode ser inferida pelo número de bestas arriadas, ultrapassando a três dezenas, e o alto valor de fumo em rolo. Embora não haja menção a quantidade em arrobas, sendo somente definida como “uma porção de fumo em rolos”, o valor extremamente alto demonstra que não era produção de pouca monta, ou seja, o fumo avaliado era de 4:408$490 (quatro contos, quatrocentos e oito mil, quatrocentos e noventa réis).64 Algumas informações prestadas pela câmara municipal de Campanha ao Conselho de Governo, no ano de 1825, trazem indicativos da importância de algumas atividades econômicas praticadas na região, particularmente o comércio de fumo. Os dados são apresentados de forma genérica, mas que se confrontadas com outras fontes, como, por exemplo, os inventários, são muito úteis. Os vereadores informam que dentre as culturas mais importantes que se desenvolvem em toda extensão do termo, destaca-se o plantio do milho, feijão, arroz, cana, fumo, mandioca, e carás. Alguns agricultores plantavam inhames que eram destinados à alimentação dos porcos. O algodão também era produzido razoavelmente nas terras próximas ao rio Verde. O cultivo do trigo, que em outras épocas era produzido em abundância e até exportado para o interior da província e também para São Paulo, foi abandonado pelos agricultores devido a problemas no seu cultivo, sendo a farinha substituída pelo polvilho e farinha de milho. Vários gêneros eram comercializados entre os termos e as outras províncias: ...deste Termo se exporta para o Termo de Baependi, milho, feijão, farinha, arroz, açúcar e aguardente de cana; e bem assim os moradores d’aquele Termo vem a este comprar muito fumo para exportarem para a Corte do Rio de Janeiro; e da mesma sorte se exportam toucinhos para a Província de São Paulo. Igualmente se importam para este Termo vindo da Corte do Rio de Janeiro e da Província de São Paulo, e Praça de Santos, farinhas de trigo, vinhos e mais gêneros da Europa65. (grifos meus) 62 Inventário post mortem de dona Ana Francisca de Jesus (1833). CEMEC-SM. Cx. 06. VEIGA, Bernardo Saturnino da. Almanak Sul-mineiro. p. 498. 64 Inventário post mortem de D. Maria Bento Carneiro (1849). CEMEC-SM. Cx. 22. 65 APM. “Memórias Municipais”. p. 625-626 63 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 127 Sobre a produção de fumo, a informação da câmara de Campanha é bastante curiosa, pois as freguesias de Baependi e Cristina são comumente citadas como as principais regiões produtoras, embora alguns inventários de Campanha indiquem o cultivo do tabaco em algumas propriedades do arraial do Lambari. Será que havia uma praça comercial em Campanha, onde esses gêneros, especialmente o fumo, eram comercializados e depois remetidos para o Rio de Janeiro? Essa hipótese parece bastante provável já que a cidade, no final da primeira metade do século XIX, era uns dos principais entrepostos comerciais localizados mais ao sul da comarca do Rio das Mortes.66 Na data em que a câmara apresenta o seu relatório, Baependi já era vila e havia uma série de freguesias, distritos e povoações sob a sua jurisdição. 6. O Comércio As indicações sobre as atividades comerciais podem ser inferidas por vias diversas nos inventários. No momento, interessa retratar aqueles inventariados que se dedicavam ao pequeno comércio, representado pelas casas de negócio, vendas, tavernas e boticas. Dos inventários analisados, apenas 18 (4%) possuíam algum tipo de estabelecimento comercial. Embora seja um número bem reduzido dada a importância sócio-econômica da região no período em estudo, acredito que esse número está subestimado pela sub-representação das fontes. Se confrontarmos esses dados com o Relatório Fiscal de 1836, a diferença é muito grande. Clotilde Paiva e Herbert Klein identificam o termo de Campanha como a região que detinha o maior número de estabelecimentos comerciais ou “vendas”. Dentre os 4.293 estabelecimentos registrados, nada menos que 471 (11%) estavam localizados no termo da vila.67 O capitão Antônio Lopes da Silva Araújo, residente na vila de Campanha, teve seus bens inventariados em 1833. Além de ser dono de uma botica, possuía cinco escravos, uma casa no largo da Matriz e outra na rua da Áustria. Também não exercia exclusivamente a atividade de comerciante. Criava um número razoável de cabeças de gado, ultrapassando a três dezenas e também outro tanto de potros e éguas, além de carneiros.68 Como foi visto no tópico anterior, em alguns casos, os donos de “vendas” à beira de estradas poderiam ser dos próprios fazendeiros e serviam de espaço para comercialização dos seus produtos. 66 Alcir Lenharo destaca as cidades de São João del Rei e Barbacena como principais entrepostos comerciais que interligavam Minas e a Corte. Considero que Campanha também faça parte desse circuito, principalmente pela sua importância estratégica e econômica no período em estudo. Cf. LENHARO, Alcir. As tropas da moderação... p. 89-90. 67 PAIVA, Clotilde e KEIN, Herbet S. “Escravos e livres nas Minas Gerais do século XIX...” p. 133. 68 Inventário post mortem do Cap. Antônio Lopes da Silva Araújo. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 128 Como constata Clotilde Paiva, os estabelecimentos comerciais mais sortidos tendiam a se concentrar nas áreas urbanas, já as vendas se localizavam na beira de estradas para atender aos viajantes e tropeiros. Algumas lojas poderiam se especializar na venda de “secos”, outras de “molhados”, ou tudo junto. Por “fazenda seca entende-se todo tipo de tecido (panos de algodão, linho, seda, etc...) e “fazenda molhada” eram os mantimentos e outros gêneros (carne seca, toucinho, farinha, milho, feijão, arroz, sal, fumo, queijos), assim denominados porque poderiam se descorar ou umedecer.69 O capitão Miguel Teixeira Vitorino, morador na cidade de Campanha, era um desses donos de lojas de “fazenda seca”. Na relação de seus bens inventariados em 1856, este possuía uma loja de comércio bastante sortida com vários tipos de artigos: sapatos, meias para homens e senhoras, suspensórios de algodão, luvas, agulhas, linhas, além de vários artigos em ferro, objetos para ferreiro e marceneiro. Enfim, seu estabelecimento era daqueles em que se podia encontrar quase tudo que era necessário para o uso doméstico ou mesmo para determinadas atividades de trabalho.70 A importância das atividades comerciais em Minas, bem como de seus agentes, já foi objeto de estudo de importantes trabalhos, tanto para o século XVIII, quanto para o XIX.71 7. A Mineração A economia sul mineira não se restringia às atividades agropecuárias voltadas para o abastecimento de certos mercados, especialmente o da Corte. A mineração ainda detinha alguma importância e desenvolvia algum atrativo nas primeiras décadas do século XIX, sendo praticada em diversos distritos da região, principalmente no arraial de São Gonçalo. No ano de 1814, são listados 42 mineradores e um contingente de 564 escravos que trabalhavam nas lavras, resultando numa média de 13 escravos por proprietário72. Também aqui se verifica a concentração de escravos nas mãos de um pequeno grupo de mineradores, ou seja, dos 564 cativos empregados na mineração, 250 (44%) estavam nas mãos de sete proprietários que detinham 20 escravos ou mais. Mas é preciso esclarecer que os mineradores que detinham maior 69 PAIVA, Clotilde. População e economia nas Minas Gerais do século XIX... pp. 81-83, especialmente a nota 43. Inventário post mortem do capitão Miguel Teixeira Vitorino (1856). CEMEC-SM. Cx. 31. 71 Ver, entre outros, CHAVES. Cláudia Maria das Graças. Perfeitos Negociantes: mercadores das Minas Setecentistas. São Paulo: Anablume, 1999.; FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas Setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999. PAIVA, Clotilde. População e economia nas Minas Gerais do século XIX...; GRAÇA FILHO, Afonso Alencastro. A princesa do Oeste... 72 Lista das lavras e os nomes dos senhores delas e o número de escravos que se empregam na mineração em todo o termo da vila da Campanha da Princesa, no ano de 1814. APM. Documentação microfilmada da Casa dos Contos, pertencente ao Arquivo Público Mineiro. Rolo 525. Planilha 20107. Item 01. 70 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 129 escravaria, quase sempre atuavam em sociedade. Destes sete maiores mineradores, somente dois não mineravam em sociedade. É o caso do capitão João Leite de Oliveira Bressane que possuía 60 cativos e uma lavra no Bairro Alto, na vila da Campanha. Já o capitão Manoel Ribeiro de Carvalho possuía 32 escravos e uma lavra no distrito da Lagoa, na freguesia de Aiuruoca.73 Os inventários que apresentaram menção explícita à exploração de jazidas minerais foram pouco expressivos. Apenas 3% (15) dos inventariados se dedicavam à mineração. Acredito que a hipótese da sub-representação dos inventários possa ser novamente colocada, pois segundo a relação dos mineradores de 1814, o número de pessoas que possuíam lavras de minerar era bem maior. O primeiro aspecto que pode ser destacado dos inventários é que a maior concentração de mineradores se verifica no período entre 1802 a 1842, ou seja, oito proprietários tinham alguma lavra e ainda exploravam o ouro. Como nos outros casos, a atividade sempre aparece consorciada com a criação de animais, produção de alimentos e mesmo o comércio. Outro ponto importante é que quase a metade dos donos de lavras possuía 20 escravos ou mais, confirmando a necessidade e a importância da mão-de-obra na exploração das jazidas. (ver quadro VI) Ainda na década de 50, irei encontrar alguns proprietários explorando terras minerais. O coronel José Francisco Pereira possuía morada de casas na localidade denominada Ouro Fala, pertencente à Freguesia de São Gonçalo da Campanha. Certamente o nome da paragem estava relacionado à abundância do ouro naquela área, em outros tempos. Além de criar alguns porcos, cabritos e produzir alguns alimentos como feijão, José Francisco também era dono de 26 escravos e possuía uma parte em uma lavra de ouro.74 Os viajantes Spix e Martius registraram suas impressões quando passaram pela região. Destacam a imponência das construções, embora muitas estivessem arruinadas, e que algumas pessoas ainda insistiam na atividade mineradora. Se não era tão abundante quanto em outros tempos, o fato de haver algumas pessoas que se dedicavam a tal atividade, demonstra que a mesma ainda poderia trazer alguma rentabilidade. Outras informações sobre a atividade mineradora no termo da vila puderam ser extraídas do relatório da câmara municipal, enviado ao Conselho de Governo da província, em 1856. Algumas lavras ainda eram exploradas no entorno da sede da vila da Campanha, mas era em São Gonçalo que se concentravam os principais mineradores. “A mineração tem neste município decaído do estado florescente de que por muitos anos gozara, a excetuar-se as lavras do Bairro- 73 74 Idem. Inventário post mortem do Coronel José Francisco Pereira (1856). CEMEC-SM, Cx. 31. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 130 Alto, próximas a esta cidade, as de S. Luzia, Palmital e S. José da Freguesia de São Gonçalo, nem uma outra se acha em pleno exercício”.75 Além das lavras em funcionamento, a câmara comenta que havia boas formações de terras minerais que, se devidamente exploradas, poderiam apresentar algum resultado positivo, mas que esse trabalho só poderia ser tentado por companhias mineradoras. Mas era principalmente no arraial de São Gonçalo que vários faiscadores ainda garantiam a sua sobrevivência e mobilizavam parte do comércio local. Embora os números apresentados não sejam tão esclarecedores sobre o peso que a mineração ainda exercia na economia sul-mineira, pelo menos são indicativos de que a atividade ainda exercia alguma atração. Parece que a mesma hipótese pode ser levantada para o termo de São João del Rei. Carla Maria Carvalho de Almeida, ao estudar a economia mineira através de um estudo comparativo por comarcas, constata que em São João del Rei, no auge dessa atividade (1750-1770), havia 42,9% de propriedades ligadas à mineração. No período em que autora denomina como de “reacomodação econômica” (1780-1822), esse percentual cai para 23,3%76, mas mesmo assim ainda havia um número significativo de pessoas que se dedicavam à exploração das lavras. Através do mapeamento geral dos inventários analisados pude constatar a importância do termo de Campanha no cenário sul-mineiro, seja pela diversidade das atividades praticadas ou pelo crescimento populacional verificado na primeira metade do século XIX, especialmente da população escrava. Também chama a atenção o nível de concentração posse de cativos na mão de alguns poucos senhores e o número de proprietários dedicados à produção de açúcar, rapadura e aguardente. As fazendas escravistas consorciavam diversas atividades. Ao mesmo tempo em que se criava gado, cavalos, porcos e ovelhas, se plantava arroz, milho e feijão, muitos desses produtos destinados ao comércio inter e intra-provincial. A atividade mercantil aparece nas “casas de negócios”, principalmente nos núcleos urbanos, mas também há indícios de que os fazendeiros negociavam ou intermediavam sua produção através do comércio de tropas. Clotilde Paiva chega a conclusões semelhantes ao analisar a economia mineira da região Sul Central, no século XIX, cujas atividades estavam centralizadas em torno de Campanha. “Registrou-se a produção do ouro e a presença de grandes fazendas diversificadas. Não há informações sobre o comércio intraregional, apenas referências secundárias ao comércio de bovinos com o Rio de Janeiro”.77 A escassez de informações sobre o comércio intraregional ou mesmo sobre o comércio de gado bovino com outras províncias, especialmente a Corte, salientado pela autora, talvez 75 Resposta da câmara municipal da Campanha à circular de 04/11/1856 ao Conselho de Governo sobre o estado da indústria de mineração, agrícola e fabril. APM. Seção Provincial. SP 655. 76 ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Homens ricos, homens bons... p. 98-99. 77 PAIVA, Clotilde. População e economia.... p. 121. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 131 possa ser explicada pelo universo de fontes investigado.78 Como estou trabalhando de forma mais detalhada sobre a região e a partir de conjunto diversificado de fontes, no qual se destacam os inventários, será possível detectar fortes indícios do caráter mercantil da economia sul-mineira e sua vinculação com outras províncias, especialmente as do Rio de Janeiro e de São Paulo. Marcos Ferreira de Andrade é Professor de História da Universidade do Estado de Minas Gerais – Unidade de Campanha –, Coordenador do Centro de Memória Cultural do Sul de Minas e Doutorando em História na Universidade Federal Fluminense. 78 A importância do comércio de gêneros voltados para abastecimento, seja no interior da Capitania ou mesmo com outras capitanias da Colônia já foi comprovado por Cláudia Chaves, ao analisar os mapas de importação e exportação de Minas. CHAVES, Cláudia M. G. Melhoramentos no Brazil... Ver especialmente o último capítulo. p. 274-319. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 132 PERMUTAS MATRIMONIAIS Reflexões sobre o comportamento sócio-econômico de uma elite agrária Mônica Ribeiro de Oliveira Abstract: This article analyses the formation and consolidation of the coffee-producing agrarian center developed in Minas Gerais between 17801870 and the network of socio-family relationships which were seeking strategies of power, maintenance and ascension to great land and slave ownership status within the emerging exportingagrarian center .This article also analyses the behaviour of the land market of the period. Key words: 1. Socio-family strategies 2. Minas Gerais ; 3. Land marked Resumo: Esse artigo analisa a formação e consolidação de um núcleo agrário exportador de café desenvolvido em Minas Gerais entre 1780-1870 e a sua rede de relações sócio-familiares,que buscavam através das redes de matrimônio, compadrio e sistemas de herança, as estratégias de manutenção do poder e ascensão ao status de grandes proprietários de terras e escravos no nascente núcleo agrárioexportador.Esse artigo analisa também a comportamento do mercado de terras do período. Palavras-Chave : 1.Estratégias sócio-familiares; 2. Minas Gerais; 3. Mercado de terras. No ano de 1856, Mariano Dutra de Moraes é listado como um dos maiores cafeicultores das Minas Gerais.Possuía 110 mil pés de café em duas dinâmicas propriedades. Estas reuniam, além de grande plantel de bestas, uma série de benfeitorias e 160 alqueires de milho. Sua riqueza era produzida e mantida por 113 cativos. Antes, em 1842, como chefe do Partido Liberal, liderou a Revolução Liberal na região. Mariano esmerava-se na extensão de suas benesses à população local, ao distribuir ínfimos e altos empréstimos; em seu inventário consta cerca de 99 devedores. De seu consórcio com Maria Antônia Claudiana de Moraes, filha de um dos maiores potentados da Mata mineira Antônio Dias Tostes, nasceram 13 filhos, dentre os quais 5 mulheres e 8 homens. Os filhos homens ajudavam a manter a prosperidade das fazendas, a realização de negócios na praça do Rio de Janeiro e em São João Del Rei, a compra de cativos e a venda do café.Contavam com a possibilidade de auferirem lucros com os dotes e possíveis trocas econômicas advindas dos matrimônios contraídos.Frente à impossibilidade de se envolverem com a administração dos negócios cabia às suas filhas os cuidados com a casa e com a mãe.Mariano sabia que teria de disponibilizar dotes, com valores bem mais reduzidos à época, Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 o que mesmo 133 assim representava dificuldade, principalmente quando recaía em momentos impróprios1; tinha que manter um consenso entre a austeridade de uma família de elite mineira e as novas possibilidades de consumo de luxo que se abriam com a proximidade da Corte e das elites fluminenses. Suas filhas sabiam que o matrimônio, como um entre outros negócios familiares, impunha-se como a única alternativa, o que afastava de vez os sonhos do “amor romântico”. Os efeitos de um bom casamento para o status das mulheres eram grandes e a premissa do afeto entre os cônjuges era desconsiderada.Mariano empenha-se então em sua realização, promovendo verdadeiros arranjos matrimoniais: Amélia casaria-se com seu tio Severino;Umbelina casaria-se com também seu tio Cassiano e Maria Gertrudes com seu primo Marcelino. Todos os cônjuges da família Tostes – de origem materna.O sogro de Amélia e Umbelina o Tenente Antônio Dias Tostes era também sogro de seus pai , Mariano Dutra de Moraes. Não constituía-se em mera coincidência, mas, de fato, seus três genros constavam entre seus devedores. Portanto, o núcleo familiar dos Dutra de Moraes com os Tostes estaria fortemente entrelaçado. Essa história acontecida na zona rural da cidade de Juiz de Fora elucida o comportamento dos extratos superiores das hierarquias sociais locais. Essas vivências sob o ponto de vista da microhistória remete-nos às diferentes manifestações do ideal arcaico de sociedade portuguesa nas terras brasileiras. Na periferia do Estado monárquico a família, o prestígio e a honra caminhavam juntos, atribuindo novos significados às práticas de Antigo Regime herdadas de nossos colonizadores2. A permuta matrimonial representava, antes de tudo, um princípio de reprodução social do próprio grupo, fazendo circular os bens materiais ou simbólicos, entre as mesmas famílias, assegurando sua estabilização no tempo e no espaço. A herança portuguesa de divisão igualitária da herança entre marido, mulher e filhos, apenas com a terça doada livremente, impunha apenas limites formais à livre disposição dos bens. Ante à hipótese da ameaça constante de fragmentação se interpunham estratégias matrimoniais, à produzir partilhas que conduziam à indivisão. Casamentos com laços de consangüinidade, bem como aqueles por aliança e parentesco ritual pode ser percebido em outras regiões3. Estudos mais recentes sobre a família destacam as maneiras pelas quais ela se estruturou e se modificou, como resultado do desenvolvimento 1 A conduta de reciprocidade tornava-se mais ostensiva quando as uniões eram intermediadas por dotes. Essa não era uma prática comum entre os matrimônios realizados, o que coaduna com as análises sobre o declínio do dote no século XIX. Na grande maioria dos inventários não era expressa a existência do dote e, quando este aparecia, sua composição era basicamente de bens de consumo, como enxovais, jóias, dinheiro e escravos domésticos. 1 NAZZARI, Muriel. Dotes paulistas : composições e transformações ( 1600-1870 ) . Revista Brasileira de História 9,no.17,set.de 1988-fev.de 1989,pp.87-100.O desaparecimento do Dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo,Brasil,1600-1900. 2 MATTOSO, José. (dir) História de Portugal. HESPANHA,A .M.(coord). O antigo regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. 3 METCALF, A. C. Families of planters, peasants and slaves: strategies for survival in Santana de Parnaíba, Brazil, 17201820. Texas, 1983; e FARIA, Sheila. C. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 134 econômico4. Muitos partem de análises demográficas descobrindo uma pluralidade de modelos e atitudes, onde a atuação feminina foi repensada, o patriarcalismo foi questionado, a noção de família extensa foi relativizada e novos grupos sociais passam a ser objeto de análise5. Portanto, a noção de uma organização familiar altamente diversificada, específica a cada período e a cada região, suscetível à influência de outros fatores como o econômico e o religioso, por exemplo, torna-se campo privilegiado para pesquisas e redescoberta de novas atitudes e comportamentos familiares. R. Grahan acentua a imensa importância da família e da casa, considerada como uma das mais resistentes heranças coloniais, além de "um agudo senso de hierarquia social e a prática constante de prestar favores em troca de obediência"6 . O autor destacou que as famílias representavam importante fonte de capital político, na medida em que dedicavam-se a aumentar sua propriedade ao longo de gerações sucessivas . Nesta mesma ótica insere-se o trabalho de Carlos Bacelar, dedicado ao estudo da família e do sistema sucessório entre os senhores de engenho do Oeste Paulista. O autor utilizou métodos da demografia histórica para a reconstituição das estratégias desenvolvidas pelas elites paulistas, no intuito da preservação de seu patrimônio e status. Seu trabalho revelou-se altamente inovador, ao perceber as transformações das estruturas familiares na longa duração, em um momento de montagem de um núcleo agrário.7 Uma outra referência que assinalou uma forma singular de concepção desta questão, foi a obra de Giovanni Levi. O autor utiliza-se da micro-história ao articular diferentes aspectos da realidade, nos tempos médios e curtos, sem contudo, abandonar as reflexões de longa duração8. Levi se debruçou sobre uma minúscula região do Piemonte italiano no contexto de construção da Idade Moderna, centrando seus estudos sobre as estratégias familiares e individuais, com uma instância particular sobre a lógica dos comportamentos econômicos e sobre o funcionamento do mercado de terras. Buscou apreender aspectos múltiplos da experiência coletiva, através da reconstituição em pequena escala.9 Os trabalho de Levi, tal como o de Bacelar, através de propostas metodológicas completamente distintas, partiram de preocupações e referenciais teóricos bastante semelhantes. Ambos propuseram a reconstituição histórica de uma dada comunidade onde as relações de mercado 4 KUSNESOF, E. Household Economy and Urban Development : São Paulo. 1765 to 1836. SAMARA, E. As mulheres, o poder e a família .São Paulo século XIX. São Paulo: Marco Zero e Secretaria de Cultura de São Paulo, 1989; SLENES, R. Na senzala uma flor: as esperanças e as recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; .KUSNESOF, E. Op. cit. ; RAMOS, D. A mulher e a família em Vila Rica do Ouro Preto: 1754-1838. In: História e População. Estudos sobre a América Latina. São Paulo, ABEP, 1990; FARIA,Sheila . Op. cit. 6 GRAHAM, R. Clientelismo e política no Brasil no século XIX. p. 27 7 BACELAR, C. Os Senhores da Terra: família e sistema sucessório entre os senhores de engenho do Oeste Paulista, 17651855. Centro de Memória-Unicamp: Campinas, 1997. 8 LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 9 REVEL, Jacques. Prefácio. In: LEVI, Giovanni. Op. cit. pp7-37 5 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 135 não eram dominantes e as atitudes de solidariedade e cooperação passaram a caracterizar o comportamento social. Perceberam a utilização de diversas estratégias sócio-econômicas, voltadas para a preservação do prestígio e do status, bem como, a função dos laços de parentesco consangüíneo e alianças nas organizações familiares. Estratégias sócio-econômicas como essas descritas informam as relações sociais entre as elites no nascente núcleo agrário cafeicultor da zona da Mata sul. Sua formação remonta ao final do século XVIII, ao decréscimo das oportunidades de exploração mineral e à transferência de recursos e grupos sociais das antigas áreas de ocupação de Minas para as áreas de ocupação mais recentes, como a zona da Mata10. Avançar sobre matos virgens, desbravar áreas inóspitas e enfrentar resistência nativa representavam atitudes próprias de um forte grupo empreendedor, embasado em sólidas alianças familiares e detentores não só de aporte econômico, mas de um capital político, capaz de enfrentar as dificuldades, multiplicar as oportunidades e perpetuar o status e a honra de antigas e importantes elites mineiras. A decisão de emigrar para os jovens da Comarca do Rio das Mortes devia-se, à ausência de oportunidades na terra natal e ao esgotamento dos recursos característico de uma região de ocupação mais antiga, cuja herança paterna não poderia beneficiar a todos, sem a fragmentação e o enfraquecimento do patrimônio.Quando nos referimos ao trânsito de elites dentro do espaço regional mineiro, fazemos menção, especificamente, à migração, dentro da Comarca do Rio das Mortes, de elementos provenientes de dois de seus principais termos: São João Del Rei e Barbacena. A trajetória percorrida por grande parte dessas fortunas partiu da propriedade de vastas terras, envolvidas com a produção de gêneros e, principalmente, criação de animais para a praça carioca, com o controle autônomo do transporte e comercialização dos produtos. Esse esquema próprio de comercialização propiciou enormes fontes de acumulação de capitais, pois, além de controlarem a negociação dos próprios produtos, muitos atuaram como intermediários de outras empresas menores, ao mesmo tempo em que ofereceram oportunidades de crédito. A distribuição de pequenos financiamentos, por sua vez, possibilitou uma outra enorme fonte de acumulação, perceptível na composição das maiores riquezas da região. Posteriormente, foram esses grupos que se fixaram nas fronteiras da Mata Mineira, profundamente articulados com as redes mercantis da província em direção ao Rio de Janeiro e que se dedicaram à montagem de grandes empresas cafeeiras na primeira metade do século XIX.Ao se fixarem nos municípios que se tornariam os pioneiros do café, continuaram estabelecendo suas linhas de crédito com o interior e seus contatos com a praça carioca, conseguindo manter, dessa 10 Patrícia F. Genovês em tese de doutorado recentemente defendida analisa, através do levantamento da intrincada rede de parentesco que configurou a atuação de Minas no cenário do Segundo Reinado, o papel das estratégias políticas na defesa do nome de família, o apreço imperial, a política de prestígio e o luzir dos brasões que caracterizavam o Antigo Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 136 forma, as primeiras inversões em cativos e gerando a formação de grandes plantéis e uma posição proeminente nos negócios, até o surgimento dos primeiros lucros com a nova lavoura encetada. Um bom exemplo que ilustra essa trajetória é a de Marcelino Gonçalvez da Costa, filho de um grande proprietário de terras falecido em 1807. Seu pai era possuidor de diversas sesmarias, reunindo terras de cultura e pastos, além de uma série de benfeitorias, como paiol, chiqueiro, teares, moinhos e engenhos. Dentro do perfil das unidades produtivas do Termo de Barbacena, seu pai poderia ser considerado um grande produtor de alimentos e, principalmente, criador de animais. Possuía uma média de 500 porcos, além de 40 vacas e 25 éguas e potros. Seu plantel de escravos no ano de sua morte contava com 20 cativos. Marcelino, primeiro filho homem, depois de quatro mulheres, assumiu a condição de administrador dos bens de sua família.11 Vinte e quatro anos depois, conseguimos detectar a sua presença na lista nominativa do mesmo Distrito do Quilombo, como chefe de família de um fogo, com a profissão de lavrador e tropeiro, e 65 escravos12. Certamente, a reunião de seu patrimônio anterior com a condição de tropeiro, como foi dito acima, proporcionou-lhe enormes condições de acumulação. Trinta e cinco anos depois, Marcelino estava residindo em São Francisco de Paula, na Mata Mineira. O inventário de suas posses cita a presença de 305 escravos, um monte mor partível de 1:345:362$900, onde mais de quarenta por cento desse total estavam empregados em dívidas ativas e 25%, em dinheiro líquido. Sua propriedade contava com 230 mil pés de café plantados, além de 12 mil arrobas de café em coco, 3 sesmarias, 320 alqueires de terras e uma série de sítios recebidos como pagamento de créditos por ele concedidos, com uma enorme diversidade de benfeitorias13 . Realizou o casamento de suas filhas com representantes das mais poderosas famílias da região do tronco dos Leite Ribeiro, e suas variações com os Magalhães e Guimarães, dentre outras. A segunda maior fortuna era a do Comendador Francisco Leite Ribeiro, natural de São João Del Rei, residente em Mar de Espanha, na Mata Mineira, onde faleceu em 1847. Descendente de uma importante família de fazendeiros, criadores de gado e negociantes, Francisco Leite Ribeiro era proprietário de várias sesmarias adquiridas em seu nome e em nome de familiares seus ( seu inventário cita, no mínimo, sete), além de partes em sesmarias adquiridas em nome de outras pessoas . Realizou dois casamentos e teve 12 filhos, todos profundamente articulados às atividades de comercialização entre São João Del Rei e a Corte, além da produção e, principalmente, ao financiamento do café14. Regime português. GENOVÊS, Patrícia Falco. O Espelho da Monarquia: Minas Gerais e a Coroa no Segundo Reinado. Tese de Doutorado, Niterói: UFF, 2003. 11 Inventário post-mortem- Arquivo do Fórum Mendes Pimentel - Barbacena 12 Lista nominativa de Barbacena – Arquivo Público Mineiro 13 Inventário post-mortem- Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora. 14 Inventário post-mortem – Arquivo do Fórum de Mar de Espanha. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 137 Em 1831, ainda no período de montagem do sistema agrário-cafeicultor, Francisco Leite Ribeiro aparece no mapa de população com a propriedade de 208 cativos15. Em seu inventário16, constava a presença de 140 mil pés de café, o que pode ser considerado um fato inédito para o período, já com a posse de 225 de cativos. Possuía 47 bestas de carga o que confirma a sua posição de grande fazendeiro independente no processo de transporte e comercialização de seus produtos na Corte. Demonstrou ser um empreendedor de múltiplos investimentos, o que o diferiu, em perfil, dos proprietários de terras da época. Chegou a investir em apólices da dívida pública e em ações de estradas na Província Fluminense. Seu monte mor era de 1:087:024$203, onde mais de 70% correspondiam a sua dívida ativa. Configurou-se como o maior capitalista de região. Distribuía créditos não apenas às empresas da Mata; também observamos a citação de seu nome entre credores de inúmeras propriedades do Termo de Barbacena e São João Del Rei. Seus filhos, Joaquim Vidal Leite Ribeiro( grande comerciante e futuro Barão de Itamarandiba) e Custódio Vidal Leite Ribeiro realizaram importantes matrimônios com outras famílias de elite, inclusive as filhas de Marcelino Gonçalvez da Costa, possibilitando a formação de alianças e perpetuação dos maiores patrimônios da região. A aliança matrimonial entre essas duas principais famílias, bem como a alianças entre os Dutra de Moraes e os Tostes, citadas no início do texto, ilustram como a força do parentesco fortalecia e mantinha o poder econômico. A endogamia por estrato social ampliava os bens da família, realizando um tipo de troca, perceptível pelos dotes e empréstimos entre membros dos dois grupos. Outros arranjos entre importantes famílias do núcleo agrário que vêm corroborar nossas assertivas. André Burguièrre ressalta que as uniões matrimoniais em consangüinidade muito próximas (entre primos ou entre tios e sobrinhas) representava uma solução para transferir para os descendentes um patrimônio que corria o risco de sair da linha de sucessão. O autor considera a importância das redes de parentesco nas estratificações matrimoniais em um contexto onde a preocupação com a eqüidade, na divisão das heranças, não era dominante. A exclusão de filhos, a eleição de um único herdeiro, a exclusão dos dotados e outras disposições discriminatórias nas partilhas, não significavam, necessariamente, injustiça. De acordo com as condições econômicas e demográficas, as regras de exclusão aplicavam-se como única alternativa ou buscava-se uma partilha igualitária dos bens. Daí a importância dos casamentos consangüíneos e da realização de alianças. Tornavam-se estratégias para tornar uma exploração viável, para resistir melhor às mudanças bruscas de conjuntura, para não fracionar demasiadamente um patrimônio.17 15 Mapas de População - 1831 - Seção provincial - Arquivo Público Mineiro. Inventários post-mortem - Fórum de Mar de Espanha. 17 BURGUIERRE,A et alli. História da família. Vol.II. Lisboa: Terramar, 1998, pp15-82. 16 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 138 No Brasil, as condições econômicas e demográficas eram completamente opostas às européias. A terra era disponível e estava afastada qualquer possibilidade de pressões demográficas.Mesmo assim, a alternativa às uniões consangüíneas foi amplamente utilizada, referendando a força do parentesco na consolidação de alianças intrafamiliares, renovando a solidariedade familiar por gerações. Tentava-se evitar a fragmentação do patrimônio e, com ele, o enfraquecimento do poder da parentela. Dessa forma, o intercâmbio de esposas representava uma das estratégias dessa elite. A preservação do status enquanto proprietários de homens e de terras, o compromisso com o poder e a manutenção de vasta clientela, gerava condutas de reciprocidade e intercâmbio entre os "Homens Bons". Estas eram as motivações de caráter não-econômico, que asseguravam a ordem da produção, o benefício da família e a defesa da propriedade. A própria existência de uma concentração dentro dos limites geográficos, ou mesmo de uma geografia perceptível do mercado nupcial, supôs a presença de oportunidades dentro da própria região, existência de terras férteis e abundância de terras não exploradas. A inexistência desses fatores iniciais para constituição de um núcleo familiar sólido dentro de uma sociedade essencialmente agrária, empurrariam esses arranjos matrimoniais para fora. Como fronteira recentemente aberta, as possibilidades de montagem de empresas cafeeiras estariam subordinadas à disponibilidade de matas virgens como questão essencial para a reprodução da unidade. Portanto, a presença do fator terra - matas virgens - que na Mata Mineira eram disponíveis, facilitou a realização de casamentos geograficamente endogâmicos. O mercado de terras na Mata Mineira e o comportamento das elites O início do processo de ocupação efetiva da Mata Mineira deu-se com o decréscimo da mineração nas últimas décadas do século XVIII, quando ocorreu um afrouxamento do controle do tráfego pelo Caminho Novo. Mas a abertura da fronteira agrícola e do povoamento só se processaria na primeira metade do século XIX, mais propriamente durante a sua segunda década. Em uma outra pesquisa encontramos um enorme crescimento das doações de sesmarias entre 1811 e 1820, relacionado aos reflexos da política de interiorização da metrópole portuguesa18. Mas em que pese este fato, as doações de sesmarias não podem ser responsabilizadas pelo processo de ocupação 18 Consultar OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Negócios de famílias: mercado, terra e poder na formação da cafeicultura mineira-1780-1870.Tese de doutorado, Niterói:U FF,1999,pp.44-47. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 139 efetiva, visto que encontramos uma pequena porcentagem de sesmeiros no controle de suas terras no início do século XIX. As doações tinham que, necessariamente, passar por uma revalidação da concessão, o que se concretizaria quando atrelada à efetiva ocupação da terra doada. Portanto, com a queda do regime de sesmarias e mediante a ausência de confirmação de posse, as terras ficavam à mercê da livre ocupação, gerando o que Hebe Mattos considera como "direitos de domínio"19. A autora considera que após a independência e a revogação do instituto das sesmarias, a posse efetiva tornou-se o recurso para a constituição da propriedade fundiária e "a maior parte da expansão cafeeira no Vale do Paraíba Fluminense far-se-ia nesta (...) condição ".20 Consideramos, igualmente, que a expansão da cafeicultura na Mata Mineira, assim se processou apenas com uma consolidação mais tardia, por volta dos meados do século XIX , possibilitada pela fixação de agentes sociais e de capitais provenientes do próprio interior mineiro. Estudar o comportamento do mercado de terras neste mesmo período e procurar avaliar a natureza e o significado deste mercado para a sociedade à qual estamos investigando possibilita aquilatar, sob outro enfoque, a permanência de práticas arcaicas, próprias do Antigo Regime, no trato de questões tipicamente de mercado. Sem a pretensão de analisar todo o universo de práticas econômicas e das estratégias sóciofamiliares utilizadas pela elite agrária em estudo, torna-se importante avaliar a presença ou não de intervenção de estratégias sócio-econômica na definição dos contornos do mercado de terras21. Portanto, o estudo da natureza e do significado do mercado de terras desta sociedade apresentou-se como um importante instrumento de análise da importância das relações sociais em uma sociedade não completamente subordinada pelas leis de mercado. A venda de um bem, antes de submeter-se ao jogo impessoal do mercado, possuía uma função instrumental de sancionar as relações sociais, ao mesmo tempo em que o preço, antes de ser determinado pelas relações entre oferta e procura, sofria alterações reflexas das relações sociais que o presidiam.22 Os traços estruturais do sistema agrário em questão repetem o mesmo padrão já estudado para outros sistemas agrários brasileiros: baixa relação trabalho- terra, baixa densidade demográfica, mínima expansão tecnológica, na qual a derrubada de matas substituiu o emprego de trabalho adicional de recuperação de solos. O sistema voltou-se para fora e baseou-se na extorsão do 19 “Está-se, assim, diante de dois tipos de 'posse', capazes de gerar direitos de 'domínio' e atos legais como compra, venda ou partilhas: a posse de 'culturas e benfeitorias' com simples detenção ou retenção da terra e a 'posse' da terra propriamente dita.(...) Sem a revalidação de sesmarias, ambas as presunções de domínio se constituíam primeiro de fato e somente depois de direito, a partir de escrituras de compra e venda e formais de partilha.” MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista-Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 87 20 Idem, p. 82 21 As fontes utilizadas foram escrituras de compra e venda de terras do Cartório do 1º Ofício de Notas, mais antigo do município de Santo Antônio do Paraibuna. Promovemos um cruzamento com outras fontes tais como, inventários , mapas de população e almanaques , o que possibilitou uma reflexão mais segura dos dados. Foram levantadas 222 escrituras, o que representou a totalidade das fontes disponíveis para o período. 22 LEVI, Giovanni. Op. cit. p.139. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 140 sobretrabalho, promovendo uma combinação entre a agricultura de exportação e a de alimentos. A sua reprodução dependeu da incorporação de mais terra e força de trabalho, sendo esta incorporação autônoma em relação à demografia local, utilizando maciçamente o trabalho escravo gerando um sistema de uso extensivo do solo. Assim, a presença de áreas em matas representava as maiores ou menores possibilidades de reprodução e a ocupação de áreas de fronteiras tornou-se condição da persistência do sistema agrário. Constituiu-se uma rede de relações sócio-familiares profundamente identificadas com o interior mineiro, caracterizadas pela redistribuição de privilégios, créditos e apoios políticos, em função da preservação da ordem do status e do patrimônio. Esta teia de relações pessoais assentava-se sobre estratégias de solidariedade intra e inter elites, materializadas no aprofundamento das relações de parentesco e na constituição de matrimônios endogâmicos, tal como vimos no início desse artigo. Em nossa pesquisa encontramos uma alta proporção de negócios com pequenas propriedades - 72,5% - à primeira vista, poderia indicar uma tendência ao seu fracionamento das propriedades, o que de fato não ocorria. Se atentarmos para o tipo de negócio e as extensões que eram comercializadas observamos que esse valor era de porções de propriedades que variavam de menos de 5 alqueires ao no máximo 30 alqueires. Entre as parcelas negociadas, muitas faziam parte de grandes propriedades já consolidadas na produção cafeeira e não chegavam a caracterizar um desmembramento da fazenda “matriz”. Fato semelhante foi demonstrado por Hebe Mattos, ao analisar o mercado de terras em Capivary na Baixada Fluminense23. A autora observa que nesta localidade, entre os anos 50 e 90 do século XIX, negociavam-se, basicamente, pequenas propriedades e que este dado não poderia ser tomado como uma tendência ao desmembramento. A existência de pequenas e médias propriedades, adquiridas por compra,, refletia a valorização das terras, decorrente da expansão da fronteira agrícola. A atuação da família de Antônio Dias Tostes neste mercado ilustra bem a nossa análise. Este grande proprietário era possuidor de no mínimo, 6 sesmarias que, no período de expansão do sistema (1820), que dividiam-se em 4 grandes fazendas : 25 negócios foram realizados com as terras desta família ; destes, 18 transações foram de parcelas pequenas, 3 foram pequenos sítios já constituídos com suas benfeitorias e apenas 1 era de uma fazenda de médio porte, desmembrada de outra grande fazenda 24 . Estas transações eram negociadas pelo próprio proprietário ou por alguns parentes, negociando entre si e com outros , indicando propriedades recebidas por herança/dote, revelando-nos que a aquisição de terras não era de caráter exclusivamente individual, mas visava a um reforço coletivo da família extensa. Vários negócios eram realizados por outras pessoas fora do 23 24 CASTRO, Hebe. Op.cit. Cartório do 1o. Ofício de Notas – Maninho – Juiz de Fora Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 141 círculo parental levando-nos a considerar que a lógica destas transações aproximava-se, também, da formação de uma rede clientelística , sugerindo mais a formação de cadeias verticais de dependência, voltadas para a produção de alimentos, do que uma tendência à fragmentação, pois os latifúndios permaneciam intactos. Como o sistema agrário encontrava-se, no período em foco, em fase de consolidação, a coexistência das grandes propriedades cafeeiras com outras pequenas e médias propriedades produtoras de alimentos era possível, sendo, também necessária à reprodução das fazendas de grande porte. Estas já possuíam extensões de terras suficientes excedentes às suas necessidades diretas. Apenas em um contexto de esgotamento das possibilidades de expansão, as pequenas e médias propriedades passaram a ser alvo da cobiça das grandes empresas. Observamos que apenas 10,36% dos fazendeiros de café com nomes presentes no Almanaque de 1870 realizaram transações no mercado de terras. O que levou-nos a crer que a grande maioria de 89,64% era formada por proprietários não vinculados ao café, ou seja, de alimentos, provavelmente em pequenas e médias propriedades. Estes proprietários mantinham diferentes vínculos com o mercado, revendendo seus excedentes ou atuando na complementação direta das necessidades de reprodução da força de trabalho das grandes unidades de produção, revelando um dinâmico processo de diversificação produtiva do complexo cafeeiro.25 Com relação à presença reduzida de fazendeiros de café no mercado fundiário leva-nos a considerar que a participação geral dos fazendeiros de café, comprando ou vendendo terras foi diminuta e que este mercado contou com uma pequena intervenção dos mais ricos, constituindo-se, basicamente, em um mercado de pequenos negócios. Sônia Souza, uma especialista no assunto, comprovou que apesar das muitas dificuldades enfrentadas, muitos camponeses procuraram garantir o acesso a uma parcela de terras através da compra.26 Vale ressaltar, mais uma vez, que a propriedade da terra estava polarizada entre grandes propriedades e distanciada de uma faixa extremamente parcelada de pequenas, possibilitando-nos considerar que, uma vez consolidada a grande propriedade, a sua tendência foi a perpetuação, por décadas, dentro de um mesmo círculo parental, onde a estratégia familiar esteve ligada à transmissão da terra de geração `a geração, através de heranças e matrimônios. O processo de fragmentação das grandes propriedades só ocorreu com o processo de envelhecimento dos cafezais, 25 A economia de subsistência no sistema agrário da Zona da Mata Mineira comportou-se não apenas como um setor complementar à produção cafeeira, atuando como redutor de custos e abastecendo as unidades produtoras, mas atendeu à demanda do mercado local, possibilitando acúmulo de capital e inserções no meio político local. SOUZA, Sônia Maria de. Além dos cafezais: produção de alimentos e mercado interno em uma região agro-exportadora-Juiz de Fora na segunda metade do século XIX. Dissertação de mestrado, Niterói: UFF, 1998, pp.135-141. 26 SOUZA, Sônia M. Terra, Família e Solidariedade ... : estratégias de sobrevivência camponesa no período de transição – Juiz de Fora ( 1870-1920). Tese de doutorado, Niterói: UFF, 2003. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 142 o desgaste das terras e o fechamento da fronteira agrícola após as duas primeiras décadas do século XX. Consideramos que as aquisições de propriedade, mediadas por parentesco consangüíneo ou ritual, não excluíam a presença de moeda e, portanto, de uma relação mercantil. A intervenção destas relações não eliminava o valor, apenas o modificava; o acordo entre as partes, bem como os custos da transação podia ser reduzido mediante à mútua confiança entre as partes.27 O procedimento metodológico para aquilatar o grau de interferência, ou não, das relações de parentesco ou rituais deve, sobretudo, basear-se em vasta documentação e utilizar o cruzamento de dados de inventários, registros eclesiásticos e as próprias escrituras nominalmente, o que por agora foge ao nosso objetivo. A recorrência ao mercado não servia para compensar a redução das propriedades em função da partilha, como outros trabalhos consideram.28 O mercado não servia como regulador do presumido processo de fragmentação dos patrimônios promovidos pelas partilhas. O que regulava a fragmentação, diminuindo, consideravelmente, seu impacto, sobre o patrimônio, não era a existência do mercado, em si, mas os arranjos intra e inter familiares utilizados para a preservação do bens, fossem estes de famílias camponesas ou de elite . A elite agrária utilizava-se de estratégias matrimoniais, unindo primos e primas, tios e sobrinhas, compadres a afilhadas, filhos de comerciantes ou capitalistas às filhas de grandes proprietários fundiários e vice-versa, para conter o fracionamento do patrimônio, aumentá-lo e preservar o status familiar por gerações. Outros integrantes desta mesma elite fundiária promoviam arranjos, pré ou pós inventários, muito perceptíveis, nos quais um irmão comprava todas as partes dos outros irmãos, antes da partilha oficial, ou promovia-se um acordo de usufruto de todos os bens por todos os herdeiros, sem a formalização nos autos do inventário (tal estratégia é bastante perceptível entre os pequenos e médios proprietários). Mesmo com o procedimento formal das partilhas, as propriedades permaneciam intactas, transferindo-se somente o direito de uso dos bens, num claro predomínio do interesse utilitário, sem maiores conseqüências para o patrimônio familiar.29 Sendo um mercado constituído, majoritariamente, de pequenas extensões de terras, questionamos quais as motivações que estimulavam a realização destes pequenos negócios. Para os grandes proprietários pertencentes à elite agrária local, a ida ao mercado representava uma forma de negociarem pequenas extensões contíguas às de seus vizinhos, através da venda em moeda ou da 27 Giovanni Levi acentuou que as transações entre parentes em Santena - Piemonte italiano - majoravam os preços das terras, possibilitando uma compensação de possíveis perdas .LEVI, Giovanni. Op. cit. pp. 97 - 130 28 BARROS, E.S. Op. cit. p.7. 29 Inúmeros casos como estes citados foram encontrados nos inventários post-mortem dos fundos cartorários do Arquivo Histórico da UFJF Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 143 troca/ permuta de interesses, resolvendo, desta forma, possíveis conflitos entre as partes. Quando os arranjos não conduziam a administração conjunta dos bens da família e procedia-se à partilha, as vendas ganhavam a função instrumental de unir os patrimônios partilhados pelas heranças. Observamos, nos inventários, informações sobre a presença de um membro da família promovendo a compra das partes de outros herdeiros.Para os lavradores de alimentos mais abastados, representava uma possibilidade de renovarem a sua capacidade de reprodução, tendo em vista o desgaste natural das terras, adquiriam terras de capoeiras a preços mais reduzidos. Aos pequenos lavradores ou aos posseiros e agregados, constituía numa oportunidade de adquirirem autonomia, frente a condição de submissão em que viviam. Assumir a posição de comprador dentro do mercado conferia-lhes um novo status e possibilitava a recriação de novas relações sociais. 30 A terra, enquanto bem transacionado entre diferentes agentes sociais na condição de vendedores e compradores, mediante a formalização de um preço, assumia a condição de mercadoria, em que pese a intervenção de fatores extra-econômicos - como as relações de parentesco e amizade - nas bases do acordo entre as partes e na constituição do preço. Porém, tal como afirma Braudel: O complexo do mercado só se compreende se reposto no conjunto de uma vida econômica e também de uma vida social que mudam com os anos; o complexo não pára de evoluir por si e de se transformar, de mudar, portanto, de significado ou alcance.31 A ausência de uma rede de especuladores, associada à inexistência de uma lógica nos preços (com enormes disparidades) e a uma circulação fragmentada de pequenas parcelas, características presentes nos dados analisados, sinalizam que este mercado mantinha traços próprios de uma sociedade de Antigo Regime passível de sofrer condicionamentos das relações sociais que o presidiam, seja através da negociação direta envolvendo parentes seja entre aqueles imersos em relações de compadrio, amizade, com deveres e obrigações e político, religiosas, sociais e econômicas mútuas. Esses elementos sugerem que estas relações interferiam nas bases dos acordos, alterando prazos, juros, preços, configurando um mercado não submetido ao livre jogo das forças econômicas, um mercado incompleto. Porém, os dados levantados permitiram-nos apenas uma reflexão genérica sobre estas questões, as quais merecem maiores aprofundamentos, com a utilização de um grupo mais ampliado de fontes e em um maior período de análise. Acreditamos que a própria circulação fragmentada de terras, a maior incidência de negociação de pequenas propriedades e a reduzida participação de grandes proprietários no mercado, remete à uma questão mais ampla vinculada às 30 A título de exemplo, consultar os inventários de José de Barros Monteiro ; Joaquim Antônio da Silveira ; Francisca Antônia º de Paula; Venâncio Pereira da Silva e Ângela Maria do Rosário - Inventários post-mortem - 1 Ofício Cível - AHUFJF 31 BRAUDEL, F. Civilização material, economia e capitalismo. O jogo das trocas. Lisboa: Teorema, 1985, p. 192 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 144 estratégias de sobrevivência da comunidade camponesa local, questão esta que está fora de nossos objetivos de investigação.32 Mônica Ribeiro de Oliveira é Professora Adjunta de História do Brasil, Coordenadora do LAHES (Laboratório de História Econômica e Social) e Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. 32 Para Sônia M. Souza o acesso à uma parcela de terras era considerado fator de extrema importância para a existência da comunidade camponesa . A autora cita a presença de transações mercantis entre membros de uma mesma família, indicando um desejo de se evitar a fragmentação da propriedade e até mesmo a aquisição de terras para ex-escravos.. SOUZA, Sônia M. op. cit. pp88 -104 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 145 A PRESENÇA CAMPONESA EM UMA REGIÃO AGROEXPORTADORA NO PERÍODO ESCRAVISTA Juiz De Fora (1870-1888) Sonia Maria de Souza Resumo: Este artigo procura analisar a formação de um campesinato no município de Juiz de Fora, região caracterizada pela agroexportação cafeeira. Utilizando como documentos inventários postmortem, listas nominativas de população e escrituras de compra e venda de imóveis, procura demonstrar que este setor camponês buscou manter uma relativa autonomia frente aos fazendeiros locais por meio do acesso a uma parcela de terras. Palavras-chave: 1. Campesinato; 2. Escravidão; 3.Terra. Abstract: This article seeks to analyze the formation of a peasant class in the municipality of Juiz de Fora, a coffee-exporting region. By examining deceasedestate inventories, censuses and property deeds, it is shown that the peasantry made an effort to maintain relative autonomy from the local farmowners through access, albeit limited, to land ownership. Key-words: 1. Peasantry; 2. Slavery; 3.Land . Os estudos envolvendo a pequena produção familiar no mundo rural brasileiro vêm adquirindo novas abordagens, sendo desenvolvidos por especialistas de diferentes áreas, de modo que o "camponês" tem se constituído em objeto de análise de economistas, sociólogos, antropólogos e historiadores. De uma forma geral, os estudos sobre os camponeses têm se concentrado no século XX e, quando elaborados por sociólogos e antropólogos, por exemplo, a análise é bastante recente, uma vez que se tratam de trabalhos de campo, havendo, portanto, um contato mais direto entre o estudioso e o seu objeto de estudo.1 Em relação ao século XIX, mais especificamente ao período de vigência do trabalho escravo, percebe-se que os estudos sobre a parcela da sociedade brasileira, distinta daquela formada por senhores e escravos e na qual estavam incluídos os camponeses, são mais escassos. Neste sentido, há o clássico estudo de Maria Sylvia de Carvalho Franco, no qual esta parcela é retratada.2 Há que 1 Ver, neste sentido, os clássicos estudos de CÂNDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação de seus meios de vida. São Paulo: Duas Cidades, 1979 e QUEIROZ, Maria Isaura P. de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976. Além destes, temos estudos mais recentes, como por exemplo, os de BANDEIRA, Maria de Lourdes. Território negro em espaço branco: um estudo antropológico de Vila Bela. São Paulo: Brasiliense, 1988; BRANDÃO, Carlos R. Plantar, colher, comer: um estudo sobre o campesinato goiano. Rio de Janeiro: Graal, 1981; MOURA, Margarida M. Os herdeiros da terra: parentesco e herança numa área rural. São Paulo: HUCITEC,1981, e da mesma autora, Os deserdados da terra: a lógica costumeira e judicial dos processos de expulsão e invasão da terra camponesa no sertão de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988; WOORTMANN, Ellen F. Herdeiros, parentes e compadres: colonos do sul e sitiantes do nordeste. São Paulo: HUCITEC; Brasília: EDUNB, 1995, e da mesma autora em co-autoria com WOORTMANN, Klaas. O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: UDUNB, 1997. 2 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Fundação da Editora da UNESP, 1997. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 146 se ressaltar, no entanto, a imprecisão com que a autora define os seus componentes, ao classificar como pobres algumas categorias que, na realidade, não eram tão despossuídos assim, como é o caso dos vendeiros e tropeiros, por exemplo. Além disso, chama a atenção em seu trabalho o destaque ao caráter de subordinação que permeava as relações entre os homens pobres e o grande fazendeiro, sendo que, muitas vezes esta relação de dependência era mascarada por uma aparente equiparação social, que se manifestava no estabelecimento do compadrio. Segundo a autora, isto possibilitava a concessão, por parte do fazendeiro, de certos favores, como auxílios financeiros, por exemplo, cuja retribuição se concretizava na forma de fidelidade política.3 Outro aspecto digno de menção neste trabalho é a ênfase que procura dar aos conflitos e tensões presentes nas relações entre os homens pobres, mesmo em momentos e espaços propícios ao estabelecimento de laços de sociabilidade e de solidariedade, como os de festas e mutirões.4 Até há alguns anos, quando se tratava da sociedade brasileira do período escravista, à exceção da obra de Maria Sylvia de Carvalho Franco, os estudos procuraram priorizar os senhores e/ou os escravos. Concebidos à margem da sociedade, principalmente por não estarem vinculados diretamente ao setor agroexportador, os chamados “homens livres pobres”5 eram tratados sob o estigma da vadiagem e da indolência.6 Entretanto, há algum tempo que os estudos sobre esta parcela social vêm ganhando novos enfoques, os quais têm procurado inseri-la na sociedade escravista, e, o que é mais importante, no setor produtivo. Neste sentido, há o trabalho de Hebe Maria Mattos, que critica os estudos que concebem esta parcela social sob a ótica da vadiagem e afirma que ela possuía uma lógica diferente da pretendida pela sociedade escravista da época, o que determinava o ritmo de suas atividades de forma distinta da que os senhores impunham aos seus escravos.7 Levando em conta os estudos já existentes e as possíveis lacunas, este artigo procura analisar a presença de um campesinato no município de Juiz de Fora, região marcada pela agroexportação cafeeira e localizada na Zona da Mata Mineira, no período de vigência do regime de trabalho escravo. A proposta é concentrar a análise a partir de 1870, ou seja, privilegiar as duas 3 Idem. Op. cit., p. 78-81. Uma crítica, neste sentido, foi feita por Hebe Maria Mattos. Ver da autora, Ao sul da História: lavradores pobres na crise do trabalho escravo. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 75. 4 Ver por exemplo o primeiro capítulo, intitulado “O código do sertão”. Não descarto a existência de tensões ocorridas nestes espaços, mas acredito que elas não eram tão generalizadas como demonstra a autora. Em sentido oposto aponta o estudo o estudo de Antonio Candido, ao abordar as festas e mutirões como elementos tradicionais da cultura caipira, revestidos de relações de sociabilidade e solidariedade. Op. cit., ver especialmente o capítulo 4. 5 Expressão utilizada por FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho, op. cit.. 6 KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre. São Paulo: Brasiliense, 1987. Neste trabalho de caráter ensaísta, o autor analisa a formação de um mercado de trabalho livre no Brasil e acaba por incorporar o discurso que via a população livre e pobre como marginalizada do processo produtivo. Há que se considerar que ele privilegia, como espaço de análise, a província de São Paulo, conhecida pela utilização do imigrante europeu, em detrimento do trabalhador nacional e procura explicar este processo de exclusão como válido para as demais regiões brasileiras. 7 MATTOS DE CASTRO, Hebe M. Ao Sul da História.... Ver da mesma autora, "Campesinato e escravidão". In: SILVA, Francisco C. T. da; MATTOS, Hebe M. & FRAGOSO, João L. R. (Orgs.). Escritos sobre história e educação: homenagem à Maria Yedda Leite Linhares. Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ, 2001. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 147 últimas décadas em que vigorou o sistema escravista, o que não impede, no entanto, um recuo no tempo, em busca das origens deste campesinato que se estabeleceu na localidade. O campesinato enquanto uma categoria social Antes de explicitar o conceito de camponês aqui adotado, vou recorrer a outros autores que abordaram o mesmo tema, uma vez que muitos dos pressupostos apresentados por alguns destes estudiosos foram por mim incorporados e contribuíram para uma melhor definição do objeto aqui estudado. Na realidade, não é uma tarefa muito fácil definir o que se entende por camponês e neste sentido, Ciro Cardoso tem razão quando diz que "a noção de camponês é, possivelmente, uma das mais escorregadias que existem".8 Em trabalho publicado posteriormente, o autor retoma a discussão e chama a atenção para a heterogeneidade e imprecisão com que a categoria “campesinato” tem sido trabalhada. Mesmo reconhecendo a dificuldade em definir o termo, sendo o “campesinato” para ele “uma noção vaga, ampla demais e carregada de estereótipos e de lugares-comuns culturais e políticos”, o autor não vê como evitar sua utilização. Segundo ele, “é impossível abandonar tal noção, por ser idéia socialmente difundida desde muitos antes do advento das ciências sociais”.9 Considerando a dificuldade que os estudiosos de camponeses têm em definir, com precisão, o seu significado, Eric Foner reconhece ser perigoso utilizar o termo ‘campesinato’ para o sul dos Estados Unidos pós-emancipação. Entretanto, o autor acaba incorporando o conceito pelo fato de acreditar haver paralelos “entre a economia política dos negros das terras baixas, ‘o campesinato reconstituído’ do Caribe e a agricultura em pequena escala parcialmente independente do mercado em outros contextos históricos”.10 Ao que parece, a grande dificuldade está em estabelecer quem pode ou não ser considerado camponês. Vários são os autores que procuraram conceituar o campesinato. Um trabalho clássico neste sentido é o de Alexander V. Chayanov que, ao estudar o campesinato russo da década de 1920, afirma que uma economia camponesa se caracteriza pelo acesso à terra e pela utilização da mão-de-obra familiar. Segundo este autor, o principal objetivo do camponês é procurar suprir as necessidades básicas dos membros da família, o que justificaria o fato de recorrer ao mercado, sem, no entanto, visar ao lucro, aspecto que diferencia uma unidade de exploração camponesa de uma 8 CARDOSO, Ciro F. S. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1982, p. 51. Idem. “Camponês, campesinato: questões acadêmicas, questões políticas”. In: CHEVITARESE, André Leonardo (Org.). O campesinato na história. Rio de Janeiro: Relume Dumará/FAPERJ, 2002, p. 19 e 35. 10 FONER, Eric. Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 173-174. Como paralelo entre eles, o autor aponta as dificuldades econômicas que impossibilitavam um maior desenvolvimento e a exclusão do poder político, embora reconheça que, a nível local, os negros nas terras baixas pudessem exercer uma maior autoridade política. 9 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 148 empresa capitalista.11 Na visão do autor, a família desempenha papel importante no interior de uma unidade camponesa, sendo seu tamanho e a composição de seus membros um dos fatores a influenciar na dimensão da terra a ser cultivada.12 Um aspecto a ser considerado na obra de Chayanov é a ênfase dada ao equilíbrio entre consumo e trabalho, o que significa dizer que a intensidade da força de trabalho despendida na reprodução da unidade camponesa variava conforme as necessidades de consumo dos membros da família.13 Tal abordagem não escapou a críticas que viam nela uma teoria centralizada no consumidor. No entanto, o próprio Chayanov tratou de desfazer o equívoco e respondeu aos críticos argumentando que qualquer unidade produtiva, inclusive a camponesa, aspira adquirir bens e maiores benefícios para os seus membros. Entretanto, ainda conforme o autor, a lógica de ganho do camponês é diferente da estabelecida por um empresário capitalista e tem mecanismos próprios para determinar o tempo e a intensidade do trabalho a ser despendido.14 O campesinato russo também é objeto de estudo de Teodor Shanin, o qual concebe os camponeses sob a ótica da mobilidade sócio-econônica, caracterizada pela divisão, fusão e extinção da unidade camponesa ou pela migração de seus membros, sendo esta mobilidade um reflexo das transformações enfrentadas pela Rússia no período por ele estudado.15 A exemplo de Chayanov, o autor enfatiza o caráter familiar da força de trabalho utilizada na unidade camponesa, cuja atividade tinha por objetivo satisfazer as necessidades básicas de consumo dos membros da família. Há que se considerar que o autor não entende a família apenas no sentido biológico, mas considera como membros de uma família camponesa todos os que vivem na unidade, sob a autoridade de um chefe.16 Henri Mendras amplia o conceito de camponês ao considerar que o que define uma classe social é o tipo de sociedade a que pertence. Sendo assim, para este autor, deve ser considerado como camponês todo aquele que pertence à uma sociedade camponesa, não sendo necessário estar vinculado ao meio rural. Ou seja, em sua concepção, pode ser considerado camponês tanto o pequeno produtor, quanto o artesão, o comerciante, etc.17 Discordo deste conceito ampliado de camponês, utilizado pelo autor, por acreditar que como tal deve ser considerado apenas aquele com algum vínculo com o meio rural, sendo proprietário legal ou não da terra que ocupa. Entretanto, devo deixar claro que não descarto a possibilidade deste camponês procurar diversificar suas atividades no 11 CHAYANOV, Alexander V. La organización de la unidad económica campesina. Buenos Aires: Ed. Nueva Visión, 1974. Idem. Op. cit., p. 47-48. 13 Idem. Op. cit., ver capítulo 2. Acredito que isto possa ter contribuído para difundir o rótulo de vadiagem dado ao camponês, principalmente no caso brasileiro, sob o argumento de que ele trabalhava apenas o suficiente para sobreviver, não se preocupando em garantir uma acumulação e melhorar o nível de bem-estar de sua família. 14 Idem. Op. cit., p. 133. 15 SHANIN, Teodor. La clase incómoda: sociologia política del campesinado en una sociedad en desarrolo (Rusia 19101925). Madri: Alianza Editorial, 1983. Ver especialmente o capítulo 5. 16 Idem, Op. cit., p. 54-55. 17 MENDRAS, Henri. Sociedades camponesas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 15. 12 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 149 interior de sua unidade produtiva. Aliás, a diversificação das atividades no interior das unidades camponesas era desejável e um elemento a mais a contribuir para sua sobrevivência, uma vez que isto lhe garantia uma redução nos custos de sua reprodução e uma autonomia frente ao mercado. Neste caso, o que prevalecia eram as atividades agrícolas, como o cultivo da terra e a criação de animais, sendo as demais práticas (manufatura e o artesanato, por exemplo), apenas complementares.18 Quando se trata de definir o campesinato brasileiro, especialmente no período de vigência da escravidão, a tarefa torna-se ainda mais complicada. Já tive a oportunidade de mencionar a escassez de estudos sobre os camponeses no Brasil escravista. Stuart Schwartz também alerta para isso e segundo ele, uma das causas deste desinteresse está no fato dos estudos se concentrarem sobre o caráter exportador da economia brasileira e dos grupos sociais à ela vinculados (no caso senhores e escravos), ignorando os setores da economia não exportadora, bem como a parcela da sociedade a eles ligados.19 Schwartz chama a atenção para a existência e expansão, ao longo do período colonial, de uma população rural, constituída por pequenos proprietários, arrendatários e agregados que, embora vivessem à margem da economia agroexportadora, desempenharam papel importante, como fornecedores de alimentos. O autor chama a atenção para a dificuldade que os estudiosos têm em utilizar a palavra "camponês" ao se referirem a eles, preferindo em vez disso termos como, "caipira", matuto"..., os quais denotam rusticidade e dependência.20 Os estudos referentes ao campesinato brasileiro utilizam elementos comuns aos adotados por Chayanov e Shanin para definir o camponês russo. José Graziano da Silva reconhece o caráter mercantil da economia camponesa, ao enumerar quatro aspectos definidores de um campesinato, a saber: a utilização do trabalho familiar; a posse dos instrumentos de trabalho ou parte deles; a produção direta de parte dos meios necessários à subsistência, seja produzindo alimentos e outros produtos para o autoconsumo, seja produzindo para a venda; não é fundamental a propriedade da terra, mas sim a sua posse ou algum tipo de acesso à ela. No que se refere à mercantilização de sua economia, para o autor, não se trata apenas de vender o excedente, mas de "realizar uma produção voltada para o mercado, com a terra, a mão-de-obra e os meios de trabalho subtraídos da produção 18 Ver neste sentido, SOUZA, Sonia M. Além dos cafezais: produção de alimentos e mercado interno em uma região de economia agroexportadora - Juiz de Fora na segunda metade do século XIX. Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 1998, p. 132-135. Indícios de manufatura são encontrados com bastante freqüência nos inventários post-mortem de camponeses, que além da presença de carneiros, apresentam instrumentos como teares, rocas, fusos e pentes. 19 SCHWARTZ, Stuart B. "Perspectives of Brazilian peasantry: a review essay". In. Peasant studies. University of Pittsburgh. Vol. 5, n. 4, October, 1976, p. 11-12. 20 Idem. "Peasants and slavery: feeding Brazil in the late colonial period". In: Slaves, peasants, and rebels: reconsidering Brazilian slavery. Chicago: University of Illinois Press, 1992, p. 66- 67. Curiosamente, a resistência em utilizar o termo "camponês" foi estendida a este mesmo trabalho, recentemente traduzido para a língua portuguesa, em cujo título a expressão "peasants" foi traduzida como "roceiros". Ver, neste sentido, SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 150 para a subsistência”. Ainda, segundo o autor, “não só o proprietário, como também o parceiro, o arrendatário, o posseiro, podem se configurar como formas de produção camponesa”.21 Ao estudar os camponeses do município cafeeiro de Juiz de Fora, adoto como referencial a concepção de campesinato desenvolvida por Ciro Cardoso e Hebe Maria Mattos, pelo fato do recorte cronológico por mim efetuado neste artigo ter como referência o período escravista. Estes autores, além de incorporarem a lógica de uma economia camponesa proposta por Chayanov, ou seja, a de uma economia caracterizada pelo acesso à terra e pela utilização da mão-de-obra familiar, acrescentam a utilização de uma força de trabalho adicional, que, no caso brasileiro, poderia significar o trabalho de livres e de escravos. Eles não descartam a possibilidade de um vínculo dessa economia com o mercado, que se traduzia na comercialização de eventuais excedentes e na compra do que não era produzido diretamente nas propriedades. Outro ponto a ser destacado, na análise destes autores, é a concepção do campesinato sob a ótica da autonomia. Para Ciro Cardoso, ela era estrutural, de modo que o camponês decidia sobre as suas atividades agrícolas, escolhendo o que, quando e onde plantar, bem como dispor dos excedentes. Ao analisar o campesinato brasileiro, Hebe Maria Mattos diz que ele desfrutava de uma autonomia frente aos grandes proprietários, possibilitada pela facilidade do acesso à terra.22 As discussões a respeito do campesinato têm ultrapassado os aspectos meramente econômicos e, neste sentido, os antropólogos têm dado uma importante contribuição. Elementos como laços de sociabilidade e solidariedade desenvolvidos pelos camponeses têm se constituído em campo de interesse destes especialistas. Ellen Woortmann, ao discutir as teorias existentes sobre o campesinato, critica a ênfase que dão aos aspectos econômicos, onde a família camponesa é vista sob o prisma da produção e do consumo. Suas observações se voltam principalmente para Chayanov, para quem a família é vista como “um conjunto de produtores e consumidores”, não levando em consideração fatores culturais, como por exemplo, as relações de parentesco que, para ela, são elementos muito importantes na organização de uma comunidade camponesa.23 Embora variando em um ou outro aspecto, pode-se perceber características comuns na concepção de um campesinato entre os diversos autores mencionados acima. De uma forma geral, pelas suas definições, podem ser consideradas como características básicas de um campesinato, o vínculo com a terra, a utilização de uma mão-de-obra familiar, e, em certos casos, de uma força de trabalho adicional, remunerada ou não, e, por fim, o caráter mercantil de parte de sua produção. 21 SILVA, José Graziano da. Estrutura agrária e produção de subsistência na agricultura brasileira. São Paulo: HUCITEC, 1980, p. 3. 22 CARDOSO, Ciro F. S. Escravo ou camponês? o protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 56-57 e MATTOS, Hebe M. Trabalho familiar e escravidão: um ensaio de interpretação a partir de inventários post-mortem. In: Estudos sobre a escravidão II. Niterói: Cadernos do ICHF, no 23, 1990, p. 21-23. 23 WOORTMANN, Ellen F. Op. cit., p. 15, 20 e 30. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 151 Em meu estudo, considero como camponês aquele que possuía qualquer tipo de vínculo com a terra, sendo seu proprietário legal ou não, cuja produção agrícola, destinada à reprodução de sua unidade produtiva e ao abastecimento do mercado interno, se assentava principalmente na força de trabalho familiar. No entanto, não descarto a possibilidade de utilização de uma força de trabalho adicional, podendo ela ser constituída por trabalhadores livres e pela posse de alguns poucos escravos. Neste caso, adoto como parâmetro a propriedade de, no máximo cinco cativos, independente de serem ou não aptos ao trabalho. A posse de algum escravo por parte dos camponeses era possível em um momento de maior prosperidade, sendo que a mesma era eventual, uma vez que não havia uma reposição regular desta força de trabalho. Isso pôde ser percebido quando analisei as listas nominativas e inventários postmortem, pois localizei vários casos em que o chefe do domicílio presente nas listas como proprietário de algum escravo, em um momento posterior já não possuía esta força de trabalho. Manoel Julião Tostes é um bom exemplo neste sentido. Nas listas nominativas elaboradas para a freguesia de São Francisco de Paula referentes ao ano de 1864 o mesmo aparece como proprietário de 5 escravos. Pois bem, as informações presentes em seu inventário, aberto dez anos depois, dão conta de que ele estava separado da esposa e vivia em um sítio pertencente ao irmão, onde cultivava suas roças e possuía apenas um escravo de 60 anos. Vale ressaltar que o referido cativo, avaliado à época em 350$000, acabou sendo libertado pelo inventariante, o qual era irmão do falecido, que pagou seu valor ao espólio, deixando, portanto, o referido cativo de fazer parte da partilha. 24 Há ainda que considerar que, nos casos em que estou tratando, possuir algum cativo não implicava no afastamento deste camponês do trabalho. O escravo representava, na realidade, uma força de trabalho adicional, trabalhando lado a lado com seu proprietário e os demais membros de sua família. Um bom exemplo, neste sentido, pode ser percebido no inventário de Custódia Maria de Jesus, aberto em 1883. Entre os bens de seu espólio constavam três escravos, dentre eles uma viúva de 36 anos e os demais com 35 e 16 anos. O mais velho fora libertado condicionalmente, devendo servir sua senhora enquanto ela vivesse. Pois bem, após a morte da mesma, a escrava fora vendida e os herdeiros fizeram uma partilha amigável do restante dos bens, cabendo ao co-herdeiro Sebastião Rodrigues da Silva, genro da inventariada, o escravo Serafim de 16 anos, descrito como doente e avaliado à época em 400$000. Tanto a venda, quanto a partilha dos referidos escravos foram consideradas nulas, sendo que os mesmos deveriam voltar ao espólio, o que provocou protestos do co-herdeiro nos seguintes termos: (...) o suplicante a convite do viúvo inventariante e conjuntamente com todos os herdeiros (...) fez-se uma partilha cordata, atendo-se contudo aos interesses dos menores, evitando-se assim que fosse absorvido todo o acervo pelo pagamento de custas e demais despesas. Pelo que sendo o suplicante 24 Arquivo Histórico da Cidade de Juiz de Fora (AHCJF). Séries 53 e 54. Listas nominativas de população. Arquivo Histórico o da Universidade Federal de Juiz de Fora (AHUFJF). Cartório do 1 Ofício Cível. Cx. 72B; ID.: 588. Inventário de Manoel Julião Tostes (1874). Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 152 inteiramente leigo com relação a feitos de justiça, e de maior boa fé recebeu o escravo Serafim, que lhe foi dado pelo inventariante, com a cláusula de reposição a herdeiros, e por ter o suplicante assim concordado, com grande sacrifício cumpria, não para ter um escravo, mas uma companhia que o arrimasse no trabalho, pois o suplicante é muito pobre e tem numerosa família. (...) Assim pois requer o suplicante a V. Sa. digne-se a endossar que sejão os autos arquivados, passando mandado contra o actual inventariante afim de ser-lhe entregue o alludido escravo (...).25 O estudo realizado por Hebe Maria Mattos também aponta para um sentido semelhante ao que venho abordando, ao mencionar o caráter de precariedade que marcava muitas das unidades produtoras, inclusive aquelas que possuíam escravos. Segundo a autora, em muitos dos casos, a ausência de uma força de trabalho familiar, ocorrida pela dispersão ou casamento precoce dos filhos, era superada com a aquisição de um ou mais cativos e transferia-se para eles a função de garantir a sobrevivência da unidade. Para a autora, muitas vezes a família camponesa optava por adquirir uma escrava (de valor mais acessível) e poder contar no futuro com o trabalho de seus filhos. Em momentos de maiores dificuldades, ou em casos de partilha dos bens, devido à morte de um dos cônjuges, o escravo era colocado à venda, tendo a unidade camponesa de voltar a contar apenas com a força de trabalho familiar.26 Após deixar clara minha concepção de camponês, passo a tratar da questão de uma forma mais concreta, de modo a perceber a presença camponesa no município de Juiz Fora. Começo analisando o processo de ocupação da Zona da Mata mineira, região na qual a citada localidade estava inserida. Tal ocupação teve início com a abertura do Caminho Novo, ainda no século XVIII, pois foi a partir daí que pôde se estabelecer, no local, uma população sem grandes cabedais e voltadas para a produção de alimentos. O fato da Zona da Mata ser considerada uma região de fronteira aberta e, portanto, com terras disponíveis, possibilitou o estabelecimento desta parcela social na localidade aqui estudada. A presença camponesa no município de Juiz de Fora Juiz de Fora, região localizada na parte sul da Zona da Mata Mineira, floresceu às margens do Caminho Novo, estrada aberta por Garcia Rodrigues Pais por volta de 1703, e que tinha como principal objetivo facilitar a comunicação do Rio de Janeiro com a região das minas. O surgimento do município se deu a partir da formação de unidades produtivas voltadas inicialmente para a produção de alimentos, que se instalaram ao longo de seu percurso.27 25 AHUJFJ. Cartório do 1o Ofício Cível. Cx. 122B; ID.: 873. Inventário de Custódia Maria de Jesus (1883). Grifos meus. MATTOS, Hebe M. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 63 e 71. Ver também da autora, Campesinato e escravidão, p. 338. 27 Para maiores detalhes sobre a origem da localidade, ver, SOUZA, Sonia M. de. Op. cit., capítulo 1. 26 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 153 Apesar do intenso movimento de tropas que se verificou na região desde a abertura do Caminho Novo, sua ocupação efetiva só se realizou em fins do século XVIII, a partir da crise da mineração, quando houve um deslocamento de parte da população da região mineradora em direção a outras partes da própria capitania, época em que a Zona da Mata também recebeu parte deste contingente. A expansão da economia cafeeira na Zona da Mata mineira, mais especificamente na localidade de Juiz de Fora, teve início em princípios do século XIX, sendo que as notícias informam que em 1819 a região já contava com uma produção considerável e com destino ao mercado externo. Esta produção que se intensificou a partir de 1850, apresentou-se consolidada na década de 1870, período em que a região contava também com a maior população escrava da província, fato que comprova o dinamismo da atividade, e atingiu o auge no início do século XX.28 Se, em sua origem, a localidade foi marcada pela atividade produtora de alimentos, como mostram os registros dos viajantes que trafegaram pelo Caminho Novo29, a implantação da economia cafeeira que se verificou mais tarde não inviabilizou tal atividade. Pelo contrário, o crescimento da economia agroexportadora foi acompanhado pelo incremento do setor produtor de alimentos, que tomou para si a responsabilidade de abastecer não apenas as fazendas cafeeiras, atuando como um redutor de custos da reprodução destas unidades, mas também com uma produção capaz de atender ao mercado interno que se expandiu na região, a partir da segunda metade do oitocentos.30 Tal fato vem corroborar o exposto por Stuart Schwartz de que a economia agroexportadora não pode ser concebida de forma desvinculada da agricultura produtora de alimentos e direcionada para o abastecimento.31 No caso de Minas Gerais, especificamente, o autor chama a atenção para o crescimento do setor produtor de alimentos, verificado mesmo antes da crise da mineração, o qual desempenhou papel importante no abastecimento de centros como o Rio de Janeiro, por exemplo. Ainda segundo o autor, a atividade produtora de alimentos de Minas Gerais se caracterizou tanto por uma produção escravista, sendo as pequenas posses de escravos uma característica da região desde o período de auge da mineração, quanto por uma produção tipo camponesa, baseada no trabalho familiar e que, embora mais modesta, não deixou de manter um vínculo com o mercado.32 28 OLIVEIRA, Mônica R. de. Negócios de famílias: mercado, terra, e poder na formação da cafeicultura mineira - 1780-1870. Tese de doutoramento. Niterói: UFF, 1999, p. 150-155. PIRES, Anderson J. Capital agrário, investimento e crise na cafeicultura de Juiz de Fora (1870-1920). Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 1993, p. 95-98. 29 Como exemplo de viajantes que deixaram suas impressões sobre a região podem ser mencionados, Antonil, Robert Wash e Saint-Hilaire. Os mesmos assinalaram a existência de unidades produtoras de alimentos bastante promissoras, que tinham a função de abastecer aqueles que transitavam pelo Caminho Novo, bem como os seus animais. Ver SOUZA, Sonia M. de. Op. cit., p. 34-35. 30 A respeito da atividade produtora de alimentos no município e o desempenho de seu papel abastecedor do mercado local, ver, SOUZA, Sonia M. de. Op. cit., capítulo 4. 31 SCHWARTZ, Stuart B. "Peasants and slavery: feeding Brazil in the late colonial period". In: Slaves, peasants and rebels: reconsidering Brazilian slavery. Chicago: University of Illinois Press, 1992, p. 66. 32 Idem. Op. cit. p. 80-82. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 154 Apesar dos conflitos envolvendo a questão da terra que marcaram a paisagem agrária brasileira, principalmente a partir da aprovação da Lei de Terras em 1850,33 muitos pequenos produtores conseguiram resistir à pressão e de alguma forma, sobreviveram às dificuldades. No caso de Juiz de Fora, muitos dos que se estabeleceram na localidade eram migrantes de outras regiões da província mineira. Deve ser considerado, ainda, o fato de que, à esta parcela da população que se estabeleceu no local, ao longo dos anos, desde a abertura do Caminho Novo, se juntou os que se libertaram do cativeiro e adotaram um estilo de vida camponês, buscando manter um certo grau de autonomia perante os grandes fazendeiros de café. Isso significa dizer que, além dos fazendeiros de café e dos escravos, sendo os últimos responsáveis pelo dinamismo da economia cafeeira, grande parte da população local, no período aqui estudado, era constituída por pequenos lavradores, cuja atividade produtiva possuía uma característica essencialmente camponesa, baseada no trabalho familiar, mas sem deixar de utilizar uma força de trabalho adicional, representada pela posse de alguns poucos escravos. Ao analisar as listas nominativas da população de Santo Antonio do Parahybuna, primitivo nome de Juiz de Fora, referentes ao período de 1831, Mônica Ribeiro de Oliveira pôde verificar que residia no município um total de 1.336 pessoas, sendo que 59,14% deste contingente era formado por escravos, indicando nítida superioridade em relação ao total de homens livres. Apesar desta superioridade da população cativa, a autora percebeu que 47,9% dos domicílios arrolados não possuíam escravos.34 Tal fato levou a autora a concluir que (...) a expansão da fronteira da Mata não somente atraiu elementos da elite agrária mercantil da província mineira, mas como, também, tornou-se palco de fixação de inúmeros lavradores pobres que, mesmo sem propriedade cativa ou sem título formal da propriedade fundiária, conseguiram sobreviver, mantendo-se enquanto unidade de produção doméstica.35 Além de um significativo número de domicílios sem a presença de escravos, a autora verificou que entre os que possuíam a força de trabalho cativa, prevaleceram as pequenas posses, sendo que a grande maioria destes escravos estava concentrada nas mãos de poucos proprietários. Para se ter uma noção disto, apenas 12 unidades produtivas, o equivalente a 19,35%, possuíam mais de 20 escravos e, juntas, detinham a posse de 69,87% da escravaria arrolada neste período. Segundo a autora, foram arrolados 119 domicílios, dos quais 62 possuíam escravos. Destas unidades que contavam com a posse de escravos, 36 eram possuidoras de até cinco cativos, o que representava 33 MOTTA, Márcia M. M. Nas fronteiras do poder: conflitos de terra e direito agrário no Brasil de meados do século XIX. Tese de doutoramento. Campinas: UNICAMP, 1996. 34 OLIVEIRA, Mônica R. de. Op. cit. p. 179-180. Em seu estudo, a autora toma como referência a totalidade dos fogos existentes na época para calcular as faixas das posses de escravos e chega à conclusão de que os proprietários com mais de 20 cativos representavam 10,08% dos que residiam na região. 35 Idem, p. 181. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 155 58,06% delas. Isso significa dizer que mais da metade das unidades escravistas situava-se na faixa de pequenas posses. A evidência desta pulverização da propriedade escrava no município está no fato de que entre os 62 domicílios, 10 deles possuíam dois escravos e outros 10 contavam com apenas um cativo como força de trabalho.36 Embora a economia cafeeira do município se encontrasse em sua fase inicial, sua consolidação, verificada nos anos seguintes não alterou muito esta disposição da propriedade escrava, em que pese o fato de terem se estabelecido na região grandes fazendas cafeeiras, algumas inclusive com posses superiores a cem escravos.37 As listas nominativas que encontrei para os anos posteriores a 1831, bem como os dados apresentados pelo recenseamento de 1872 vêm confirmar a tendência a um predomínio de unidades com pequenas posses de escravos. Tomando como referência os dados das listas nominativas elaboradas para o ano de 1855 e, ao compará-los com as informações que foram fornecidas para o ano de 1831, percebe-se que a população escrava ainda predominava em relação à livre. Os dados referentes ao ano de 1855 mostram que a população do município contava com 27.722 habitantes, sendo 16.428 escravos, representando 59,25% de toda a população, enquanto que a livre era formada por 11.294 indivíduos, o equivalente a 40,75% dos habitantes da localidade.38 Como era de se prever - levando-se em conta o fato de que, mesmo com a reposição regular de escravos, muitos se libertaram e continuaram na região, contribuindo para incrementar a população livre - esta tendência a um predomínio de escravos não se confirma em períodos posteriores, como pode ser percebido no recenseamento de 1872. Os dados fornecidos para esse período indicam que a população livre superou a escrava, na região. O quadro seguinte fornece mais detalhes a respeito. Quadro 1 Composição da população de Juiz de Fora nos anos de 1831, 1855 e 1872 Período 1831 1855 1872 Livres 546 11.294 23.518 % 40,87 40,75 62,08 Escravos 790 16.428 14.368 % 59,13 59,25 37,92 Total 1.336 27.722 37.886 Fontes: Listas nominativas de população dos anos de 1831 e 1855, apud. RIBEIRO, Mônica R. de. Negócios de famílias: mercado, terra, e poder na formação da cafeicultura mineira - 1780-1870, p. 179. Biblioteca do IBGE. Recenseamento de 1872. 36 Idem, p. 180. Em estudo anterior, através de listas nominativas e inventários post-mortem, pude identificar que, entre as unidades com a posse de escravos no município, predominavam as que possuíam até 5 cativos. Ver neste sentido, SOUZA, Sonia M. Op. cit., p. 166-170. Com relação à presença de fazendas com posses superiores a 100 cativos, ver, OLIVEIRA, Mônica R. Op. cit. p., 205-208. 38 OLIVEIRA, Paulino de. História de Juiz de Fora. 2. ed. Juiz de Fora: Gráfica Comércio e Indústria Ltda., 1966, p. 40. 37 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 156 Mesmo levando em conta as deficiências das listas nominativas e do censo de 1872, as informações fornecidas possibilitam uma melhor compreensão da composição populacional do município. Uma análise dos dados das listas nominativas elaboradas para os dois primeiros períodos indica uma superioridade do número de escravos em relação à população livre, tendência que não se manteve no período seguinte. A confiar nos dados, percebe-se inclusive que houve uma redução do número de escravos em relação a 1855, que de 16.428 diminuiu para 14.368 indivíduos. Mesmo levando em conta os problemas presentes nos recenseamentos, não deve ser desprezado o fato de que a população escrava no município cresceu em ritmo mais lento, chegando a ponto de ser superada em números absolutos pela livre. Os dados verificados para Juiz de Fora se aproximam dos encontrados para outros municípios cafeeiros do Vale do Paraíba Fluminense, como Paraíba do Sul, por exemplo.39 Apesar das deficiências do recenseamento de 1872, os dados disponíveis possibilitam perceber as transformações ocorridas na composição de sua população. Uma das mudanças que pode ser percebida é que, embora possuindo a maior população escrava da província, a parcela livre já começava a predominar em todas as freguesias recenseadas, ao contrário do que pôde ser verificado em períodos anteriores. Este fato retrata uma situação percebida para outras regiões do país, especialmente a Sudeste na segunda metade do século XIX, que é a presença de um grande contingente de homens livres, segmento que aumentava gradativamente, à medida que avançava o processo abolicionista.40 Se por um lado, não disponho de mais detalhes do recenseamento de 1872, pude recorrer às listas nominativas que foram elaboradas entre os anos de 1864 e 1870 e acreditam que foram elas que informaram o censo de 1872, uma vez que os dados não diferem muito dos apresentados neste ano. Estas listas nominativas fornecem elementos preciosos sobre a presença de uma parcela camponesa no município, ao trazer informações sobre o chefe da unidade produtiva, dados sobre a esposa e filhos, a existência ou não de escravos, sua profissão e rendimento anual. Embora não represente todo o município e contenha dados apenas de alguns distritos, o quadro a seguir fornece mais informações sobre a população dos domicílios da região. 39 FRAGOSO, João. Sistemas agrários em Paraíba do Sul (1850-1920): um estudo das relações não-capitalistas de produção. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1983, p. 40-41. Trabalhando com dados relativos a 1840 e 1872, o autor chega a conclusões parecidas com o que encontrei em Juiz de Fora. Segundo ele, neste intervalo de tempo houve um crescimento menor da população escrava em relação à livre, de forma que em 1872, havia um ligeiro predomínio desta última. 40 MATTOS, Hebe M. Das cores do silêncio..., p. 15. EISENBERG, Peter L. Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil, séculos XVIII e XIX. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989, p. 224. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 157 Quadro 2 A presença de escravos nas unidades produtivas de Juiz de Fora Localidade Total de domicílios Domicílios s/escravos % Domicílios c/ escravos % Rosário 274 158 57,66 116 42,34 Chapéu D’Uvas 446 310 69,5 136 30,5 S. Francisco de Paula 447 271 60,62 176 39,37 S. José do Rio Preto 66 24 36,36 42 63,64 Vargem Grande 15 11 73,33 4 26,26 S. Pedro de Alcântara 173 135 78,03 38 21,97 Sarandy 260 199 76,53 61 23,46 Total 1.681 1.108 65,91 573 34,09 Fonte: AHCJF. Série 54. Listas nominativas de população (1864-1870). Obs.: Estão incompletas as listas dos distritos de S. José do Rio Preto e de Vargem Grande. As informações demonstram que, embora se trate de um período em que a atividade agroexportadora se encontrava em um processo de consolidação, e em que a localidade fosse concentradora de um grande número de escravos, o que prevaleceu, na realidade, foram as unidades sem cativos. Este fato pode ser constatado em seis dos sete distritos, sendo que neles mais da metade dos domicílios não contava com a posse de escravos. No geral, as listas nominativas sinalizam que prevaleceram no município os domicílios sem escravos, os quais chegaram a representar 65,91% dos que foram arrolados, indicando que as atividades produtivas neles desenvolvidas se apoiavam na força de trabalho familiar, uma das características básicas de uma unidade camponesa. A exceção, neste sentido, ficou por conta do distrito de São José do Rio Preto, talvez pelo fato das listas referentes ao local estarem incompletas. Mesmo assim, é compreensível que, ao contrário dos demais distritos, tenham prevalecido nesta localidade as unidades com a presença de escravos, uma vez que era considerada uma das maiores regiões produtoras de café e também a que concentrava o maior número de cativos. Aliás, este fato pôde ser observado tanto no censo de 1872, quando o distrito apresentou o maior percentual de escravos do município com 44,88%, quanto em listas elaboradas em período anterior, como as de 1855, época em que sua população de cativos representava 67,26% de seus habitantes. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 158 A exemplo do predomínio das unidades produtivas sem a posse de escravos, a composição das escravarias das unidades arroladas demonstra um predomínio das pequenas posses, sendo que prevaleceram as unidades com até 5 cativos. Os domicílios que apresentaram este perfil representavam 50,8% daqueles que possuíam escravos, enquanto que as unidades com mais de 20 cativos são as que apresentam os menores índices com percentual de 17,8%. Uma vez apresentada a composição da população do município de Juiz de Fora, a qual permite perceber a existência de uma parcela camponesa, cuja sobrevivência era garantida pela força de trabalho familiar, passo a analisar um dos elementos definidores desta categoria social, segundo a concepção de Chayanov, que é o acesso à terra. A propriedade da terra A abordagem da propriedade da terra entre o setor camponês requer uma discussão mais aprofundada a respeito de seu papel para a formação e manutenção de um campesinato. O acesso à uma parcela de terras é considerado, por muitos autores, fator de extrema importância para a existência de uma comunidade camponesa. Giovanni Levi, ao estudar o mercado de terras da região de Santena, uma pequena localidade do Piemonte, diz que a manutenção da terra em poder das famílias camponesas era uma das estratégias que garantia a sua sobrevivência, especialmente em épocas de crise. A venda da propriedade era o último recurso a que recorriam, e neste caso, se dava em um momento de crise, quando já estavam endividadas em seu limite. Era, inclusive, esse endividamento anterior que interferia nos preços praticados, principalmente quando os envolvidos nas transações eram parentes próximos.41 No caso do Brasil, a importância da terra para a sociedade camponesa vem sendo tema de estudo de diversos autores. Ellen Woortmann, por exemplo, estudando pequenos produtores do sul e nordeste do país, trata a questão através de uma abordagem cultural. Em sua pesquisa no nordeste, por exemplo, encontrou vários sítios, cujas terras e instalações eram de uso comum entre os membros da família. A terra era concebida como um “patrimônio” e não apenas como fator de produção. Para o sitiante, em especial, ela não era vista como mera mercadoria ou objeto de trabalho, mas como o “resultado” do trabalho da família. As transações mercantis não envolviam a terra em si, mas as benfeitorias nela existentes, sendo que a maior parte das transações ocorria entre parentes, denotando uma tentativa de manter a propriedade com a família.42 41 LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 108-113 e especialmente o capítulo 3 da obra. 42 WOORTMANN, Ellen F. Op. cit., p. 223-225. Os grifos são da autora. Ver também WOORTMANN, Ellen F. & WOORTMANN, Klaas. Op. cit. p. 44-45. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 159 A concentração de terras nas mãos dos grandes proprietários, principalmente durante o período escravista, fazia com que ela se transformasse em um bem precioso, especialmente para o camponês, que via nela um elemento que, além de garantir sua sobrevivência e reprodução, enquanto categoria social, possibilitava-lhe que mantivesse uma autonomia frente ao grande proprietário. Márcia Menendes Motta ao estudar os conflitos de terras envolvendo fazendeiros e posseiros no município de Paraíba do Sul, neste período, diz que estes não se submeteram com facilidade aos desmandos dos grandes proprietários e procuraram garantir na justiça seu acesso à terra. Para a autora, “o ato de ocupá-la, de ‘tirar posse’, significava para os pequenos posseiros uma possibilidade real de se tornarem lavradores, permitindo alcançarem uma razoável autonomia frente aos interesses dos fazendeiros”.43 Hebe Maria Mattos também demonstra a importância da terra para a manutenção do campesinato enquanto uma classe social, ao dizer que “o acesso à terra, legal ou costumeiro, é pré-condição para que se possa desenvolver um modo de vida especificamente camponês”.44 Concordo com os argumentos dos autores a respeito da importância da terra para a comunidade camponesa. Em meu estudo, em especial, pelo fato de estar enfocando uma região caracterizada por uma economia agroexportadora, na qual a tendência era concentrar as terras nas mãos dos grandes cafeicultores, ela se reveste de um maior significado para esta camada social. O acesso formal ou informal à uma parcela de terras representava para o camponês sua sobrevivência enquanto grupo e garantia-lhe uma autonomia frente ao grande fazendeiro, contribuindo para que não se sujeitasse ao trabalho nas fazendas, ou que, pelo menos, tivesse a possibilidade de negociar as condições em que este trabalho seria prestado. Diante das dificuldades, o camponês se utilizou dos mais variados instrumentos para que este acesso se concretizasse, fosse ele formal, através da compra ou da herança, ou informal, por meio da condição de agregado ou de posseiro. Os inventários post-mortem constituem uma fonte privilegiada para se perceber a propriedade da terra entre os camponeses. Aliás, era o fato de possuir algum bem que justificava a abertura de um processo de inventário e, em muitos casos, a terra, se não era o único, respondia por quase a totalidade dos bens possuídos pelo inventariado. Conto para o período de 1870 a 1888 com um total de 192 processos, sendo que destes, consegui detectar a presença da terra em 168 unidades camponesas, em que o titular era o seu proprietário legal, o que corresponde a 87,5% delas. O quadro a seguir permite visualizar melhor a presença da terra nas unidades camponesas no decorrer do período estudado. 43 44 MOTTA, Márcia M. M. Op. cit., p. 52 e 57. MATTOS DE CASTRO, Hebe M. Trabalho familiar e escravidão..., p. 36. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 160 Quadro 3 A propriedade da terra nas unidades produtivas camponesas (1870-1888) 1870-1879 91 87,5% 13 12,5% 104 100% Unidades Com Terras Unidades Sem Terras Total 1880-1888 77 87,5% 11 12,5% 88 100% Total 168 24 192 87,5% 12,5% 100% Fonte: AHUFJF. Cartório do 1o Ofício Cível. Inventários Post-mortem. Os números apresentados no quadro acima demonstram que, de certa forma, a propriedade da terra era uma possibilidade real para os camponeses. Ao analisar as duas décadas que englobam este estudo, pode ser percebido que, inclusive, houve equilíbrio entre as unidades que apresentavam terra. Ou seja, nos dois períodos analisados a proporção dos que tiveram terras inventariadas foi de 87,5%. Por outro lado, as unidades que não contavam com a terra entre os bens avaliados corresponderam a 12,5%. De certa forma, os dados aqui apresentados sugerem que a propriedade da terra se encontrava disseminada entre a população camponesa. Entretanto, deve ser levado em conta que a fonte que informa sobre este aspecto, pode não refletir uma realidade em que o acesso à terra foi extremamente restringido, principalmente se for considerado que o período aqui analisado coincidiu com a crise da mão-de-obra escrava e, manter uma camada de despossuídos seria uma forma de garantir a oferta de uma força de trabalho regular. Além disso, há que se ressaltar que neste período a abertura de um inventário só se justificava se houvesse algum bem a inventariar ou órfãos a serem tutelados. Apesar das limitações, os inventários são prova de que o acesso à terra foi possível a esta parcela da sociedade, mesmo em uma região caracterizada pela agroexportação cafeeira que, de praxe, devia procurar concentrar suas terras nas mãos de grandes cafeicultores, em detrimento dos pequenos lavradores produtores de alimentos. Será, portanto, com base nos dados apresentados por esta documentação e nas escrituras de compra e venda de terras que desenvolvo meu argumento de que a terra era elemento fundamental, tanto do ponto de vista cultural quanto econômico, para a sobrevivência deste campesinato e que, na medida do possível, ele buscou meios de obter o acesso formal ou informal a uma parcela. Voltemos a atenção agora para aqueles camponeses considerados sem terra, mas que possuíam outros bens que os habilitavam a abrir um inventário. Hebe Maria Mattos, em seu estudo Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 161 sobre o município de Capivary, percebeu que era comum a presença de “situações” (benfeitorias e lavouras) em terras alheias, especialmente durante a primeira metade do século XIX.45 Em relação a Juiz de Fora, dos 192 processos analisados, encontrei 24, o equivalente a 12,5% sem a presença da terra entre os bens avaliados. Mesmo assim, não posso concluir que seus titulares eram pessoas totalmente despossuídas, ou que não tinham nenhum vínculo com a terra. Em alguns casos, o inventariado que não detinha a posse da terra, residia na propriedade dos pais, sogros ou de parentes próximos. O fato de residir com os pais podia significar que o acesso à uma parcela não seria muito difícil, uma vez que acabaria herdando parte da propriedade, caso ela não fosse absorvida pelas dívidas. Havia, ainda, entre os considerados “sem terra”, os agregados, e, por fim, encontrei aqueles que possuíam benfeitorias e culturas em terras alheias. Alguns camponeses sem terra não moravam nas propriedades de parentes. Eram agregados de algum fazendeiro. Alguns autores definem o agregado como um sujeito dependente do proprietário das terras em que vive, atuando mais como uma reserva de mão-de-obra.46 Antonio Candido o concebe com maior autonomia, ao defini-lo como um indivíduo que tinha a permissão do proprietário para ocupar uma parte de sua terra e fazê-la produzir, sem que, para isso, se obrigasse a alguma forma de pagamento, a não ser alguma eventual prestação de serviços. Era essa permissão obtida que o distinguia do posseiro, aquele que se instalava em terras alheias, à revelia de seu proprietário.47 Concordo com o fato de que se instalar em terras alheias acabava por gerar uma relação de dependência entre este agregado e o dono da propriedade, de modo que o primeiro, talvez por gratidão ou medo de ser despejado, se sujeitasse a determinadas tarefas, algumas, inclusive, nada abonadoras. Por outro lado, acredito, também, na possibilidade de uma autonomia, como a proposta por Antonio Candido, que garantia, inclusive, o acesso a outros bens, como animais e até escravos, a partir do rendimento auferido do cultivo da parcela de terras cedida por algum fazendeiro. Os casos relatados a seguir são bastante esclarecedores neste sentido. Agostinho Vidal Pinheiro, casado e sem filhos, residia como agregado na Fazenda dos Loures, localizada no Distrito da Cidade, de propriedade de João Antonio Gonçalves Loures. Mesmo não possuindo terras, ele era dono de quatro escravos (uma escrava adulta e três crianças), também responsáveis pela maior parte de seu montemor, além de uma besta de carga.48 Francisco Luis Ferreira, com quatro filhos não possuía terras quando sua esposa faleceu, em 1874. Viviam como agregados na Fazenda de São Roberto, no 45 Idem. Ao Sul da História..., p.133 a 147. Para a autora, a presença de “situações” em Capivary era mais comum na primeira metade do século XIX, porém persistiu após 1850, embora em menor incidência, havendo inclusive “um mercado de situações”, no qual as benfeitorias e as lavouras eram comercializadas à revelia do proprietário legal das terras. 46 Ver neste sentido, QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Op. cit., p. 26 e FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Op. cit., p. 100103. 47 CÂNDIDO, Antonio. Op. cit., p. 59. 48 AHUFJF. Cartório do 1o Ofício Cível. Inv. de Agostinho Vidal Pinheiro, proc. no 51B29 (1875). Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 162 distrito de São Pedro de Alcântara. Mesmo sem a posse de terras, o casal era proprietário de quatro escravos, dois cavalos, duas bestas de carga e três porcos, além de alguns bens móveis.49 Além dos agregados e daqueles que viviam na propriedade de parentes, localizei também os camponeses residentes em terras alheias, se aproximando da categoria de “situados” encontrados por Hebe Maria Mattos em Capivary. Neste caso, não há uma identificação dos donos da terra onde se instalaram, apenas a menção de plantações e benfeitorias “em terrenos/terras alheias”. Domiciano José Rodrigues, casado e com quatro filhos maiores, sendo todos casados, não possuía terras, mas era proprietário de benfeitorias como uma engenhoca de cana, uma casa de morada de madeira e coberta de telhas e cultivava um “pequeno cafezal” calculado em 3.000 pés em “terras alheias”. Em terreno alheio, também vivia o casal Francisco de Paula Vicente e Maria Theodora de São José, junto com seus sete filhos. Embora sem terras, além de poucos bens móveis, o mesmo possuía uma casa coberta de capim, cultivava uma roça de milho de dois alqueires de extensão e colheu 180 alqueires deste cereal no ano de 1874. Além destes bens, o casal era possuidor de dois cavalos e de cinco escravos.50 A inserção camponesa no mercado de terras A intensificação da comercialização de terras no Brasil se deu a partir de 1850, com a aprovação da Lei de Terras. Ao proibir a ocupação de terras devolutas por outro mecanismo que não fosse o título de compra, tal lei vinha dificultar o acesso a uma parcela, principalmente para aqueles desprovidos de recursos. A aprovação da Lei de Terras, coincidindo com o fim do tráfico internacional de escravos, tinha por objetivo, embora implícito, criar uma reserva de mão-de-obra, formada pela camada de homens livres do país, especialmente os mais pobres. Acreditava-se que a posse da terra nas mãos deste setor da sociedade inviabilizaria tal empresa. A obrigatoriedade de apresentar título de compra da terra ocupada, a partir daquela data, fez com que os que possuíam algum recurso, se adaptassem à nova situação, direcionando seus investimentos, que antes eram feitos na aquisição de escravos, para a compra de terras. Estudos têm demonstrado que, com o fim da entrada de africanos no país, o pequeno proprietário viu-se impossibilitado de adquirir o cativo, voltando-se para o mercado de terras. A razão para essa mudança de comportamento se deveu ao fato de a terra ser um bem de valor mais acessível, se comparado ao preço do escravo, devido à sua relativa abundância, em que pese o fato de que 49 Idem. Inv. de Candida Idalina de Jesus, proc. ID. 594, Cx. 73B (1874). Idem. Inv. de Domiciano José Rodrigues, proc. ID. 903, Cx. 127 (1884) e de Francisco de Paula Vicente, proc. ID. 592, cx. 72B (1874). 50 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 163 grande parte dessas terras já se encontrasse concentrada em poucas mãos.51 No caso do camponês, a terra assumia dupla importância, atuando como fator de reprodução da economia camponesa e como reserva de valor, podendo ser vendida ou hipotecada em caso de dificuldades. No município de Juiz de Fora, a exemplo de outras regiões do país, os pequenos proprietários responderam à esta situação, inserindo-se, também, neste mercado de terras, que, aos poucos ia se consolidando. Pude perceber a presença dos camponeses no mercado imobiliário tanto nos inventários, quanto nas escrituras de compra e venda. Alguns deles compareceram a este mercado por mais de uma vez, seja comprando ou vendendo terras. As escrituras de compra e venda de terras, trazem informações preciosas sobre o mercado imobiliário do município. Um aspecto percebido é que cerca de 80% das escrituras pesquisadas se referem a transações envolvendo apenas parte do imóvel. Tal dado pode indicar uma fragmentação das unidades, uma tendência que se manteve no período pós-abolição, embora em menor percentual, em decorrência principalmente da diminuição da mão-de-obra nas lavouras de algumas fazendas. Com relação ao tamanho das propriedades negociadas, algumas dificuldades se apresentam nesta documentação, uma vez que nem sempre ela traz a descrição com precisão. Foi comum encontrar expressões como “uma sorte” ou “uma parte de terras”. Entretanto, boa parte das transações descrevia a extensão da área negociada, o que me possibilitou perceber que parte considerável delas envolvia tanto pequenas extensões de terras, quanto pequenos valores. Quanto à sua extensão, de um total de 616 escrituras, 358 informam o tamanho da propriedade negociada e pude perceber que, destas, 64,24% se referem a imóveis de até 10 alqueires (48,4 hectares). Em muitos casos, a terra negociada não chegava a um alqueire, e, por várias vezes, me deparei com descrições como “quartas”, “litros”, “celamins” e “pratos” de terras. O quadro seguinte fornece maiores informações sobre como se apresentava esse mercado imobiliário. Quadro 4 Extensões das terras negociadas (1870-1888) Extensão das terras Até 10 alqueires De 10,1 a 20 alqueires De 20,1 a 50 alqueires De 50,1 a 100 alqueires Mais de 100 alqueires Total Número de transações 230 67 40 15 6 358 % 64,24 18,71 11,17 4,19 1,67 100 Fonte: AHCJF – Cartórios do 1o e 2o Ofício Cível; Escrituras de compra e venda de imóveis. Observação: a percentagem é referente ao total de escrituras que trazem a extensão da terra negociada. 51 Ver neste sentido, MATTOS DE CASTRO, Hebe M. Trabalho familiar e escravidão..., p. 22-25 e 40. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 164 Com relação aos valores envolvidos nas transações, convém lembrar que nem sempre correspondiam ao real valor de mercado, seja em extensão, seja em qualidade da terra negociada. O fato de ser um mercado influenciado por elementos de caráter extra-econômico acabava por fazer as relações sociais de parentesco e de vizinhança interferirem nos preços finais. Desta forma, pude encontrar negociações de grandes extensões de terras com preço extremamente baixo, bem como aquelas que envolviam parcelas insignificantes com preços muito altos, em relação a uma média geral. A título de exemplo, tomei duas transações ocorridas no ano de 1880 em que detectei os dois extremos. Em uma delas, José Calisto Mendes, morador no distrito de Chapéu D'Uvas, vendeu ao irmão Geraldo Calisto Mendes "um sítio cultivado em pastos e todas as benfeitorias compostas de casa de morada, moinho, paiol, pomar e 35 alqueires de terras" pelo preço de 1:250$000. Por outro lado, neste mesmo ano, José de Assis Alves, fazendeiro e morador no distrito de São José do Rio Preto, vendeu a seu vizinho, o também fazendeiro Antonio Bernardino de Aquino "3 alqueires de terras" pelo preço de 2:400$000.52 Vê-se, neste exemplo, que, no primeiro caso, em uma transação envolvida por relações de parentesco, a terra foi negociada a uma média de 35$700, sem levar em conta as benfeitorias que, por certo, contribuiriam para maior valorização da mesma, enquanto que, no outro, em que havia apenas a relação de vizinhança, o alqueire foi comercializado a razão de 800$000. No primeiro caso, pode-se notar que as relações de parentesco desempenharam um papel favorável ao comprador que pôde adquirir terras a um valor bem abaixo do preço médio praticado neste período. Já o mesmo não ocorreu no segundo caso, em que a relação que havia entre vendedor e comprador não ia além da de vizinhança. Talvez por isso o comprador tenha adquirido terras a um preço superior ao normalmente praticado.53 De acordo com Giovanni Levi, o processo de endividamento poderia interferir no preço final da terra comercializada, indicando que nem sempre as transações obedeciam à uma lógica do mercado. No caso de parentesco entre as partes, o estudo do autor é muito esclarecedor neste sentido, uma vez que para ele, (...) no âmbito familiar, o preço era apenas a conclusão de uma série de prestações mais ou menos monetárias que se desenvolviam sob os panos. Esta situação nos é confirmada pelo fato de que um altíssimo percentual de atos de compra e venda não ocorreu através de uma transação monetária. O ato tabelional representava a passagem nominal por quantias ou prestações já recebidas no passado. O preço nos parece alto porque podemos relacioná-lo somente à última transação referente à terra e que, geralmente, era a única documentada no ato tabelional.54 52 AHCJF. Cartórios Distritais. Cx.2, Liv. 32/20, fls.190 e Cx. 21, Liv. 39/278, fls. 76. Chamo a atenção para o fato de que embora as negociações tenham ocorrido em distritos diferentes, sendo a primeira realizada em uma região caracterizada mais pela pecuária e a outra em uma região voltada para a cafeicultura, apresentando a segunda uma tendência a ser mais valorizada, o valor médio das terras de cultura para as duas regiões girava em torno de 200$000 neste período. 54 LEVI, Geovanni. Op. cit., p. 161. 53 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 165 Mesmo levando em consideração estas possíveis "distorções", acredito ser válido um comentário a respeito dos valores encontrados neste mercado de terras. A exemplo do que encontrei para as extensões negociadas, em que prevaleceram as transações envolvendo pequenas parcelas, a grande maioria delas também se refere a pequenas quantias. Das 616 escrituras pesquisadas para este período, 51,62% são relacionadas a negociações de no máximo 1:000$000. Por outro lado, com relação aos grandes valores, encontrei apenas quatro registros envolvendo quantias superiores a 50:000$000, como demonstra o quadro a seguir. Quadro 5 Valores envolvidos nas transações imobiliárias (1870-1888) Valores Até 1:000$000 De 1:000$0001 a 5:000$000 De 5:000$001 a 10:000$000 De 10:000$001 a 20:000$000 De 20:000$0001 a 50$000$000 De 50:000$0001 a 100:000$000 Total Número 318 218 34 20 22 04 616 % 51,62 35,38 5,52 2,24 3,57 0,65 100 Fonte: AHCJF – Cartórios do 1o e 2o Ofício Cível; Escrituras de compra e venda de imóveis. Além dos dados quantitativos, as escrituras trazem informações que demonstram a presença de diversos elementos, muitos deles de caráter extra-econômico. Para que pudesse ver com “outros olhos” os dados que me foram apresentados, procurei seguir o conselho de Giovanni Levi e fazer uma leitura nas “entrelinhas” da documentação sobre o mercado de terras, uma vez que, de acordo com este autor, a análise literal da fonte, muitas vezes acaba distorcendo e ofuscando o seu significado. Mais do que isso. Conforme o autor, “compra e venda de terras, se vistas como expressão de um mercado impessoal, encobrem as regras de reciprocidade que antecedem as transações”.55 Buscando apreender um pouco mais sobre o mercado de terras de Juiz de Fora, pude perceber que, em muitas das transações estavam presentes relações de parentesco, de solidariedade e também tensões. Dos 616 documentos de compra e venda de terras analisados neste período, 47 deles (o equivalente a 7,62%) informam, de forma direta, a existência de parentesco entre vendedores e compradores. A maioria destas transações envolvia irmãos, os quais estiveram presentes em 41 registros, o equivalente a 87,52% deles, sendo que o restante se deu entre pais e 55 Idem. Op. cit., p. 47. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 166 filhos. Acredito que este número deve ser bem mais significativo do que as escrituras informam, pelo fato de ter encontrado vários registros em que vendedor e comprador possuíam o mesmo sobrenome. As transações mercantis envolvendo os membros da família, poderiam indicar um desejo de evitar a fragmentação da propriedade. Isso se dava, principalmente, quando a parcela de terra era diminuta. Outras vezes, o negócio entre parentes ocorria quando o herdeiro não residia nas proximidades da propriedade. Relações de conflito também foram percebidas nas transações imobiliárias de Juiz de Fora, sendo que muitas delas ocorriam entre vizinhos. As relações de vizinhança impunham algumas regras de bom convívio, o que talvez tenha contribuído para que alguns tomassem certas precauções, quando fossem dispor de parte de suas terras, para que não adquirissem também um vizinho indesejado. Em 1875, Marcelino de Brito Pereira de Andrade, rico comerciante e fazendeiro, vendeu um sítio a Bernardo Pedro Ferreira e fez constar, no ato da escritura, as seguintes cláusulas. Primeira: que em qualquer tempo que o comprador quisesse vender o referido sítio, que lhe desse preferência em igualdade de condições. Segunda: que quando ele, vendedor, fizesse roças ou quaisquer plantações no pastinho que limitava com o terreno vendido, seria o comprador obrigado a fazer os tapumes de modo a cercar a criação. Da mesma forma devia agir o comprador das terras se fizesse roças ou plantações no mesmo limite.56 Os camponeses se inseriram no mercado imobiliário também como vendedores e muitos eram os motivos que os levavam a se desfazer de sua propriedade. O endividamento era um dos mais fortes fatores que os levava a se inserir no mercado imobiliário, colocando suas terras, ou parte delas à venda. As dificuldades financeiras advindas com a morte do chefe da família também eram um dos fatores que contribuía para que os camponeses dispusessem de suas terras. Pude perceber uma certa informalidade e mesmo a ausência de uma lógica mercantil no mercado imobiliário, que não é uma especificidade apenas da região e nem do recorte temporal de minha pesquisa. Giovanni Levi, ao estudar o mercado de terras do Piemonte italiano do século XVII, deparou com circunstâncias muito semelhantes ao que percebo em Juiz de Fora do final do século XIX e princípio do século XX. O autor chegou à conclusão de que as transações imobiliárias desta região estavam submetidas a certas regras, em que as relações sociais exerciam papel fundamental. Desta forma, para este autor, a explicação para muitas circunstâncias envolvendo o mercado de terras deve ser buscada em categorias extra-econômicas.57 Deve ser ressaltado, no entanto, que as observações de Giovanni Levi dizem respeito a uma sociedade de antigo regime do século XVII. De modo distinto, o período e a sociedade por mim estudados se inserem em um contexto de 56 57 AHCJF. Cartórios Distritais; Cx. 25; Liv. 25/333; fls. 28. LEVI, Giovanni. Op. cit. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 167 modernização e por uma tendência a reforçar o caráter mercantil da propriedade da terra, devido à crise do trabalho escravo. Ou seja, a sociedade aqui analisada, já em fins do século XIX, é caracterizada por uma economia agroexportadora cafeeira com estreitas ligações com o mercado internacional. A necessidade de expansão da atividade cafeeira conjugada à de ampliação da oferta de uma força de trabalho, devido a crise do escravismo que marcou o período, tendia a reforçar o caráter mercantil da propriedade da terra, de modo a dificultar o seu acesso. Apesar disso, mecanismos extra-econômicos continuavam presentes e jogaram papel importante no mercado de terras do município, particularmente nas transações efetuadas entre os camponeses. Ao concluir este artigo gostaria de ressaltar que seu objetivo foi procurar demonstrar que a presença de um setor camponês foi possível apesar da região se destacar pela agroexportação cafeeira. Apesar da grande concentração fundiária que caracterizou a localidade, os camponeses que nela se estabeleceram conseguiram manter uma relativa autonomia frente aos grandes fazendeiros por meio do acesso formal ou informal a uma parcela de terras, como pode ser demonstrado na documentação aqui analisada. Sônia Maria de Souza é Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense e Professora do Departamento de História e do Mestrado em Educação e Sociedade da Universidade Presidente Antônio Carlos. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 168 Iniciação Científica: O PEQUENO COMÉRCIO E O PERFIL DE SEUS AGENTES EM MINAS GERAIS Camargos (1718-1755) Flávio Rocha Puff Resumo: O presente artigo tem por objetivo tratar do pequeno comércio e traçar um perfil dos seus agentes em Minas Gerais na primeira Metade do século XVIII. Tal perfil levará em consideração os seguintes aspectos: sexo, condição social e capacidade de diversificação. Os agentes mercantis pesquisados estão localizados na freguesia de Camargos na Vila do Carmo (atual Mariana) e as fontes utilizadas são séries documentais de natureza fiscal: almotaçaria e coimas e fianças Palavras-chave: 1. Comércio; 2. Agentes mercantis; 3. Perfil. Abstract: The present article intends to treat commerce small and to map an outline of the his agents in Minas Gerais during the first half of eighteen century. Such outline will carry in consideration followers aspects: sex, standing social and diversification among them. The agents mercantile research are located in parish of the Camargos in Vila do Carmo (actual Mariana) and source utilized are documents a series fiscal origin: almotaçaria e coimas e fianças. Key-words: 1. Commerce; 2.Mercantile agents; 3. Outline. A atividade mercantil esteve em Minas Gerais desde as primeiras décadas do setecentos e no seu decorrer entre as que recrutaram grande contingente da população1. Para muitos autores fora a mineração que dera o impulso inicial da ocupação na região, todavia, foi o comércio paralelamente à agricultura que ditaram o ritmo da economia, e as bases da organização social na capitania.2 A citação de Sérgio Buarque de Holanda3 de que em Minas menos de um terço da população que aqui residia no período estava envolvida com a mineração, apesar de não ter comprovação empírica forneceu um importante indício para estudos posteriores pudessem vir a comprovar essa realidade sobre a sociedade e economia mineira no século XVIII. Em nossa pesquisa podemos de certa forma comprovar essa incisiva participação de pessoas no comércio. Para os anos que estudamos, pouca mais de 30 anos, encontramos 263 pessoas diferentes envolvidas, em algum momento da vida, com a atividade mercantil na Freguesia de Camargos. Um número considerável principalmente se levarmos em conta os seguintes fatores: trata-se de uma pequena localidade que tinha uma 1 Este artigo é o resultado final uma pesquisa de iniciação cientifica financiada pelo PIBIC/CNPq, e de uma monografia da Bacharelado intitulada “Os pequenos comerciantes nas Minas Gerais Setecentista: Bento Rodrigues e Camargos (17181755)” defendida no ano de 2003 na UFOP e que teve orientação do Prof. Dr. Antônio Carlos Jucá de Sampaio. 2 “(...) a mineração (...) definiu a forma de povoamento e colonização, mas foi através da atividade agrícola e comercial que a sociedade mineira do setecentos se consolidou.” CHAVES, Cláudia MG. Perfeitos negociantes: mercadores das Minas setecentistas. São Paulo:Annablume,1999. (p.65). Além dessa autora temos Caio César Boschi, Mafalda Zemella, Ângelo Carrara, entre outros. 3 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Metais e pedras preciosas. In: Historia da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, t.1, v.2. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 169 população total gerando em torno de 1000 habitantes4, nossas fontes possuem lacunas de tempo e por último nem todas pessoas envolvidas com o comércio foram listadas, ou seja, não há como percebermos a atuação dos clandestinos. Entre os agentes mercantis que atuavam no período colonial encontramos várias categorias divididas por uma hierarquia que tem no seu topo os homens de grosso trato5, os quais movimentavam grandes quantidades de mercadorias por todo Império Português, até chegar aos menos abastados como os pequenos comerciantes fixos e ambulantes presentes nos mercados varejistas locais. Portanto de um extremo ao outro há um universo de comerciantes alocados em diversas maneiras de comercializar a produção interna e os produtos importados para a colônia. Dentre esses temos: os mercadores, tropeiros, comboieiros, mascates, atravessadores, vendeiros, lojistas, negras de tabuleiros, etc. Esses agentes são divididos em dois grupos os fixos e volantes, sendo os do primeiro responsáveis por atender uma praça de comércio determinada normalmente a que está estabelecido enquanto morador. E o segundo, é formado por aqueles que circulavam pelos caminhos da América portuguesa comercializando e dinamizando o mercado interno e externo. Neste artigo nos ateremos à análise dos pequenos comerciantes donos de lojas de fazendaseca, vendas de molhados e os ambulantes representados, quase sempre, em Camargos e nas minas pelas negras de tabuleiro. Percebam que se tratam de agentes que atuavam numa esfera local, mesmo as negras que se enquadram entre os volantes elas normalmente circulavam nos limites da freguesia do seu proprietário e quando muito em localidades limítrofes, uma vez que, uma parte delas eram escravas e ao final do dia ou da semana teriam que pagar o jornal6. Nossa abordagem privilegiará o perfil dos pequenos comerciantes utilizando as variáveis: gênero, condição social e estratégias de atuação. O pequeno comércio A localidade escolhida para nossa pesquisa foi à freguesia de Camargos. Pertencente a Vila de Nossa Senhora do Carmo (depois Mariana) está localizada a aproximadamente 11 km da sede do município e fora uma das primeiras a serem fundadas na região por volta de 1698. Dentre as freguesias que compunham o Termo de Mariana, podemos considerá-la como uma das menores, 4 Esses dados demográficos obtivemos através de uma lista de matricula de escravos dos registros de quinto do Arquivo Histórico da Câmara de Mariana, Códice 150, do ano de 1725. 5 Ver: FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830) .Rio de Janeiro: Arquivo Nacional 6 REIS, Liana Maria. Mulheres de ouro: as negras de tabuleiro nas Minas Gerais do século XVIII. In: Revista do Departamento de História. Belo Horizonte: UFMG. 1989. p. 72-85. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 170 porém, para a análise que propomos, ela possui algumas características interessantes como a presença da atividade mineratória, agrícola7 e importante disseminação do comércio entre a população local como podemos ver anteriormente. O quadro abaixo mostra a quantidade e os tipos de estabelecimentos que encontramos nos registros de coimas e fianças.8 Quadro 1 CASAS COMERCIAIS EM CAMARGOS (1733-1753) Tipo de Estabelecimento Quantidade Porcentagem Venda de Molhados 110 73,8% Loja de Fazenda Seca 32 21,5% Casa de Corte de Gado 5 3,4% Loja de Medicamentos 2 1,3% 149 100% Total Fonte: AHCMM, Registro de coimas e fianças, códices 133, 168, 172, 383, 646, 648, 649, 652 e 664. Temos no quadro acima quatro tipos de estabelecimentos sendo dois de maior destaque, as vendas de molhados e a loja de fazenda seca. Essas casas de comércio eram as mais presentes não só nessa localidade como em toda Minas Gerais, sendo a venda a modalidade de comércio mais popular, por isso a superioridade numérica em relação as lojas. Outro fator que coloca as vendas nesse quadro em maior número que as lojas é o fato de estarem agrupadas as vendas de molhados fixas e as volantes, mais especificamente a feita pelas negras de tabuleiro. A diferenciação entre lojas e vendas é algo que suscita questionamentos até dias atuais. A distinção entre essas duas categorias de casas comerciais era, em linhas gerais, a mesma que se nota até hoje em nosso comércio, notadamente no interior. Nas lojas vendiam-se apenas “fazendas secas”, isto é, armarinhos, tecidos, enfim artigos para indumentária utilidades domésticas, perfumarias, etc. Nas vendas vendiam-se quase todos os artigos que se encontravam nas lojas, e mais os molhados, isto é, as bebidas, os comestíveis, as gulodices, etc.9 7 Na lista de dizimistas do triênio 1751-1754 encontramos 53 pagadores. Vale ressaltar que os dízimos eram pagos em cima da produção que seria mercantilizada. 8 Tal registro foi uma maneira encontrada pelas Câmaras municipais de garantirem o pagamento de eventuais multas provenientes de alguma irregularidade que poderiam ser acometidas por donos de lojas de fazenda seca, venda de molhados e oficiais mecânicos. Então, se exigia um fiador que garantisse o pagamento das coimas (multas), no ato do requerimento de licença para abertura de quaisquer estabelecimentos. As coimas e fianças recaiam necessariamente sobre o pequeno comércio e, por isso, seu registro torna-se uma das fontes fundamentais para estudarmos tal atividade. 9 ZEMELLA, Mafalda. O abastecimento da Capitania de Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:Hucitec/Edusp USP, 1990, p. 178 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 171 Entretanto Renato Pinto Venâncio e Junia Ferreira Furtado10 apontam a partir da analise de inventários não haver diferença entre um estabelecimento e outro. Todavia os registros de coimas e fiança indicam para uma distinção entre essas modalidades do pequeno comércio. Ao longo de toda série documental deparamos com os termos “loja de fazenda seca” e “venda de molhados”, o que demonstra a iniciativa do próprio órgão fiscalizador em evidenciar essa diferença. Há ainda casos de um mesmo comerciante ser proprietário de uma loja de fazenda seca e de uma venda de molhados, isto é, tinha-se uma casa de comércio para um determinado tipo de produto e outro para um outro tipo. Como são os casos dos comerciantes Ambrosio Monteiro da Fonseca11, José Mendes Viana12, Sebastião Barbosa da Cunha13. As lojas de fazenda seca por comercializarem produtos mais requintados, principalmente os vindos do reino, e por estarem em locais mais centrais do núcleo urbano14, colocava o seu dono no topo do pequeno comércio local. Essa supremacia do dono de loja de fazenda seca pode ser sentida na maior estabilidade que esses tinham a frente de seus estabelecimentos ao contrario dos demais comerciantes. Em Camargos 43,8% dos lojistas permaneciam mais de 6 anos com suas casas de comércio abertas contra 25,5% dos vendeiros. Isso acontecia devido a capacidade que estes tinham em diversificar suas atividades o que não acontecia com os mais pobres que normalmente tinham apenas um estabelecimento para tirar seu sustento. (...) com poucas opções econômicas (...) faz com que o comerciante diversifique as suas atividades como medida de precaução. Caso um negócio entre em crise pode se valer das suas aplicações nos outros ramos do comércio, fato que lhe garante maior estabilidade (...)15 Além das casas mais comuns como lojas de fazenda seca e a venda de molhados encontramos no pequeno comércio mineiro outros tipos de comércio. No quadro acima representados pelas casas de corte de gado e pelas lojas de medicamentos. A casa de corte de gado seria o que hoje entendemos por açougue, o número desses estabelecimentos aparece em pequeno número o que pode ser explicado pela comercialização da carne nas vendas de molhados. Já as lojas de medicamentos são estabelecimentos mais sofisticados e aparecem apenas em dois registros sendo ao que parece alvo do mercado especulativo, ou seja, os comerciantes abriram estas lojas e ao não ver o retorno de seu investimento logo fecharam-nas para evitar um prejuízo maior. 10 FURTADO, Junia Ferreira & VENÂNCIO, Renato Pinto. Comerciantes, tratantes e mascates. In: PRIORE, Mary Del(org.). Revisão do Paraíso: os brasileiros e o Estado nos 500 anos de história. Rio de Janeiro, 2000, p.93-113. 11 Registro de Coimas e fiança códice 172 folha 166v 12 Registro de Coimas e fiança códice 172 folha 232 13 Registro de Coimas e fiança códice 646 folha 78v 14 FURTADO, Junia Ferreira & VENÂNCIO, Renato Pinto. Op. Cit. 103 15 FRAGOSO, J.R. Op. Cit. 326. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 172 Os pequenos comerciantes Até aqui falamos do pequeno comércio e os diferentes tipos de estabelecimento que os compunham. Mas quem eram esses pequenos comerciantes? A atividade comercial é ainda hoje profusamente disseminada nos mais variados extratos da sociedade brasileira, no período colonial não era diferente. Pessoas de todos níveis sócio-econômicos podiam se envolver com o comércio de mercadorias, o que variava era o grau de requinte dos produtos e principalmente a quantidade. Dessa forma homens, mulheres, livres, forros ou escravos estavam presentes nas praças de comércio em Minas Gerais setecentista vendendo os mais variados tipos de mercadorias. Em Camargos podemos ter uma visão de como se dividiam homens e mulheres a frente do pequeno comércio no período estudado na tabela abaixo. Quadro 2 Sexo dos comerciantes que registraram almotaçaria em Camargos (1718-1754) Sexo Masculino Feminino Total Nº de comerciantes 155 108 263 Porcentagem 58,9 41,1 100,0 Fonte: Registro de almotaçaria, códices 175, 195, 385, 514, 682, 702. A expressiva presença feminina no quadro acima não foi uma particularidade da praça comercial de Camargos. A mulher ao contrario do que se pensou por longa data na historiografia nacional _ a qual preocupou-se demasiadamente com os valores patriarcais que restringiam a mulher à casa grande _ teve uma atuação efetiva em vários seguimentos da economia e se pode falar um em destaque esse foi o comércio varejista. A sociedade brasileira colonial conviveu, assim, com uma dupla realidade: ao mesmo tempo que os valores patriarcais restringiam, ou procuravam restringir, o mundo feminino a reclusão doméstica, as mulheres, através das atividades comerciais, conquistavam espaço público, circulando livremente pelas ruas e caminhos.16 16 FURTADO, Júnia Ferreira & VENÂNCIO, Renato Pinto. Op. Cit. 108 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 173 Contudo os números apresentados acima referentes a participação da mulher no mercado de Camargos nos chama a atenção ainda por se tratarem de dados acerca da primeira metade do século XVIII período reconhecidamente de escassez desse público na Gerais. O que reafirma a predileção das mulheres para o pequeno comércio. Mas uma pergunta nos intriga, que condições permitiram que a mulher tivesse participação efetiva no pequeno comércio mineiro? A justificativa geral era a de que os homens estariam ocupados em atividades que requeriam dos mesmos maior esforço físico como os ofícios mecânicos, a lavoura, a extração mineral e o comércio de longa distância. Outros autores vão por outros caminhos para explicar essa presença feminina no comércio. Luciano Figueiredo defende a idéia de que tivemos no mercado colonial brasileiro uma permanência da estrutura de gênero do mercado português, isto acontecia da seguinte forma, os homens estavam a frente de estabelecimentos fixos enquanto as mulheres cuidavam das vendas volantes17. Como em Minas foi muito recorrente a presença do comércio ambulante de mercadorias logo podemos pensar nessa associação, apesar de que, encontramos poucas mulheres livres trabalhando no comércio como veremos mais a frente. Mari Karashi explica essa considerável participação feminina de forras e escravas na venda de mercadorias a tradição africana no comércio feminino. Para a autora a escrava ao ser traficada para o Brasil trazia consigo a pratica de atuar no mercado o que era por muitas vezes explorado por seus senhores18. Em recente visita a capital de São Tomé e Príncipe o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fora recepcionado por mulheres que atuavam no mercado local e que utilizavam tabuleiros para expor os produtos da região19. Ao ver a foto da recepção ao presidente brasileiro é impressionante a semelhança entre as mulheres que o recepcionaram e as várias iconografias coloniais a respeito das negras de tabuleiro que atuaram nas minas e no restante da colônia Essa permanência de certa forma ratifica a tese de Karash mostrando o alcance da resistência dessas comerciantes em continuar mantendo a tradição de freqüência no comércio de guloseimas. Essa inserção da mulher no pequeno comércio, como podemos ver no gráfico na próxima página, se deu de forma progressiva ao longo da primeira metade do século XVIII. 17 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: José Olympo, 1993. (p.8) 18 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808- 1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.454. 19 Na reportagem do Jornal Estado de Minas do dia 27 de Julho de 2004 o jornalista Guilherme Evelin faz a seguinte descrição dessas mulheres; “O presidente foi recebido por mulheres do mercado de São Tomé que carregavam na cabeça tabuleiros com produtos típicos do arquipélago, como peixe-seco, banana, cacau, vinho e azeite de palma” Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 174 Quadro 3 Gráfico de variação do sexo dos comerciantes almotaçados em Camargos (1718-1754) 100 90 Porcentagem dos registros 80 70 60 50 40 30 Qual sexo? 20 Feminino 10 0 1718-1724 Masculino 1734-1740 1741-1747 1748-1754 Fonte: AHCMM , Reg. de almotaçaria cod. 175, 195, 385, 514, 682 e 702 No compilamento dos registros de almotaçaria a supremacia dos homens é evidente. Isso acontece pela enorme concentração de estabelecimentos comerciais sob controle dos homens até a década de 1740, numa proporção de quatro por um. Todavia, a partir daí, como podemos averiguar no gráfico acima, o quadro começa a reverter-se até chegar ao ponto em que as mulheres ultrapassam os homens na quantidade de registros. Diante disso, o que se tem a destacar nestes dados é que já na primeira metade do setecentos em Camargos o quadro já apontava para aquilo que seria no restante do século, isto é, a predominância das mulheres no comércio. Tal ocorrência contradiz assim, os dados apresentados por Figueiredo que mostra tanto para a Vila do Carmo como para Vila Rica apenas para a segunda metade do século XVIII essa mudança. No gráfico de Vila Rica e freguesias de 1746, apresentado por ele o número de homens é de 232 (62%) e de mulheres 138 (38%)20. Em Vila do Carmo ele mostra dados somente para o final do século, quando as comerciantes ultrapassam o sexo oposto à frente dos estabelecimentos. 20 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Op. Cit. p. 56. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 175 A explicação para essa divergência quanto ao período em que as mulheres passariam a dominar o pequeno comércio pode estar na especificidade do caso de Camargos. Contudo, acreditamos que chegamos a esse resultado devido ao uso de diferentes fontes. Não queremos com isso dizer que as fontes usadas pelo autor são equivocadas, porém registram apenas anos isolados. O que desejamos enfatizar, portanto, é que os registros de coimas e fianças e as almotaçarias, por se tratarem de instrumentos fiscais utilizados pelas Câmaras para policiar os agentes comerciais varejistas de maneira constante, permite-nos fazer uma boa seriação dos registros na primeira metade do XVIII, identificando mais precisamente, considerável parcela das pessoas envolvidas com o comércio nesta localidade Diante dos dados que mostram a predominância das mulheres na atividade comercial já na década de 1740, uma questão surge. Luciano Figueiredo justifica o fato da supremacia feminina alegando o seguinte: A patente elevação do número de vendas sob o controle feminino (...), decerto resulta do ingresso de contingentes femininos na capitania, que, mesmo em menor em relação aos homens irão ocupar atividades subsidiárias, enquanto os seguimentos masculinos são assimilados no trabalho extrativos ou ofícios mecânicos (...) Por outro lado, esta inversão que possibilitava um substancial aumento do controle feminino sobre as vendas certamente guarda relações com a decadência da mineração (...) Em decorrência disto, a maciça alforria de escravos multiplica a exploração aurífera com base na faiscagem individual e atrai para esta atividade a população masculina 21. A pergunta que se faz é essa: o autor menciona estas justificativas pensando Minas Gerais já na segunda metade do século XVIII, será que elas aplicam-se ao novo quadro apresentado no gráfico do quadro 3? Agregar a questão da decadência do ouro ao crescimento da participação da mulher no comércio parece-nos pertinente, todavia, o caminho para esse acontecimento não pode ser pelo aumento da faiscagem a questão se mostra mais complexa. A explicação pode estar no deslocamento de mão-de-obra para outros ramos de atividade econômica, como a agricultura que já na primeira metade dos setecentos estava bem disseminada por nas minas. Para o caso específico da freguesia de Camargos22 encontramos 53 produtores rurais presentes na lista de dizimistas (17511754), desses apenas 3 eram mulheres, configurando assim uma atividade predominantemente controlada por homens. Portanto, como temos uma crescente produção agrícola em Minas Gerais nada mais provável seria creditarmos à agricultura a responsabilidade por boa parte do deslocamento 21 Ibidem. p. 29 e 31. Não queremos com isso dizer que tal situação é particular de Camargos recentes trabalhos apontam para a primeira metade do XVIII crescente produção agrária nas minas. Entre estes estão os de Carla Almeida ALMEIDA, Carla Maria Carvalho. Capitania de Minas Gerais de 1750-1850: base da economia e tentativa de periodização. In: Revista do LPH, Nº5, pp. 88-111, 1995, CARRARA. Ângelo Alves. Agricultura e pecuária na Capitania de Minas Gerais (1674-1807). Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. Rio de Janeiro, 1997. GUIMARÃES, Carlos Magno & REIS, Liana Maria. Agricultura e escravidão em Minas Gerais (1700/1750). Revista do departamento de História da UFMG. Belo Horizonte, 1986. 22 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 176 da população masculina. Atividade essa na qual a economia mineira iria posteriormente se alicerçar. A condição social dos comerciantes em Camargos (1718-1755) A participação de livres, forros e escravos à frente do pequeno comércio mineiro se deu de forma sistemática. A presença de membros destes seguimentos sociais comercializando em Minas Gerais vem desde os primórdios da ocupação. A divisão social do trabalho desenvolvida na atividade comercial dos núcleos urbanos mineiros contribuiu para que tal fato ocorresse. Tal divisão dava-se da seguinte maneira: as lojas de fazenda seca, geralmente tinham como proprietários, portugueses ou luso-brasileiros; já o elemento forro aparece como dono de vendas de molhados e responsável pelo comércio ambulante; e o escravo comercializando pelas ruas, guloseimas variadas23. No quadro 9 podemos ver como se deu tal divisão no pequeno comércio em Camargos. Com relação aos dados expostos nesta tabela, fazemos as seguintes ressalvas: o número de forros apresentado aí encontra-se subestimado. Isso acontece devido à falta de informações sobre a condição social em alguns registros consultados. Mesmo fazendo o cruzamento dos nomes e condição social em fontes diferentes_ o que ajudou a identificar a condição social de vários comerciantes _ é evidente que não conseguimos identificar a de todos. O mesmo problema encontramos com o número de livres, só que dessa vez, ao contrário dos forros, estes aparecem mais numerosos do que o real. Contudo, tal ocorrência não prejudica a nossa análise, pois, acreditamos que diminuímos bem essa margem de erro ao utilizarmos o método de cruzamento de dados com outras fontes. Quadro 4 Condição social dos comerciantes almotaçados em Camargos (1718-1755) Condição social Livre Forro Escravo Total NC Total Nº de comerciantes 171 48 41 260 3 263 Porcentagem 65,0 18,3 15,6 98,9 1,1 100,0 Porcentagem válida 65,8 18,5 15,8 100,0 Fonte: Registro de almotaçaria, códices 175, 195, 385, 514, 682, 702. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 177 A prova de que a deturpação dos números não é tão grande quanto parece fica clara se compararmos a tabela acima com a do quadro 7. Isso porque, como veremos mais à frente quando trataremos da relação sexo e condição social, um guarda relações com o outro, ou seja, de forma geral o homem que trabalha no comércio é o livre e a mulher, a forra ou escrava. No quadro abaixo poderemos ver isso mais claramente. Quadro 5 Gráfico de variação da condição social dos comerciantes nos registros de almotaçarias em Camargos (1718-1754) 100 90 Porcentagem dos registros 80 70 60 50 Qual condição social 40 30 Escravo 20 Forro 10 Livre 0 1718-1724 1734-1740 1741-1747 1748-1754 Fonte: AHCMM, Registro de coimas e frianças códices 133, 168, 172, 383 e 646, 648, 649, 652 e 664 As informações essenciais que podemos extrair nesse quadro não estão somente na substancial presença de forros e escravos trabalhando no pequeno comércio mineiro, e sim na interessante relação que esse mantém com os dados do quadro 3. Comparando os gráficos dos quadros 3 e 5 podemos notar relativa semelhança nas variações do sexo e condição social dos comerciantes. À medida que aumenta a participação das mulheres, na década de 40 do setecentos, aumenta juntamente o número de forros e escravos. 23 Essa divisão segue em linhas gerais as definições feitas de cada seguimento social por FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Op. cit. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 178 Cruzando essas duas informações como fizemos no quadro 6 fica mais claro como funcionou essa relação. Os livres com quase 93% de comerciantes masculinos, representam quase a totalidade desse seguimento social. Já os comerciantes escravos e livres são em 74,3% dos registros compostos por mulheres24. Os homens forros e escravos, como podemos notar, não chegam a ter uma participação efetiva enquanto agentes do comércio de pequeno porte, constituindo menos de 8% do total de homens. No caso destes, a exposição a serviços que exigiam maior esforço físico (mineração, lavoura, ofícios mecânicos, etc) no cativeiro era o mais comum. E depois de libertos acabariam por continuar neste mesmo tipo de trabalho. As mulheres livres, por sua vez, ao fazerem parte de uma reduzida parcela da população mineira, tinham sua participação no pequeno comércio limitada. QUADRO 6 Condição social dos homens e mulheres que registraram almotaçaria em Camargos (1718-1755) Condição social Livre Forro Escravo Total NC 144 6 5 155 Sexo dos comerciantes Masculino Feminino PL PC NC PL 84,2% 92,9% 27 15,8% 12,5% 3,9% 42 87,5% 12,2% 3,2% 36 87,8% 59,6% 100,0% 105 40,4% Total PC 25,7% 40,0% 34,3% 100,0% NC 171 48 41 260 PL 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% PC 65,8% 18,5% 15,8% 100,0% Fonte: Registro de almotaçaria, códices 175, 195, 385, 514, 682, 702. (NC) – Número de comerciantes. (PC) – Porcentagem da condição social por sexo dos comerciantes (a leitura deve ser feita verticalmente) (PL) – Porcentagem de sexo por condição social dos comerciantes (a leitura deve ser feita horizontalmente) 24 Esse número como dissemos anteriormente está com leve distorção. No caso das forras a porcentagem é maior do que esta apresentada. Podemos comprovar isso quando fizemos o mesmo cruzamento só que utilizando dos Registros de Coimas e Fianças. O número de mulheres forras e escravas neste registro é superior a 80%. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 179 A estrita relação entre as áreas de atuação no pequeno comércio com a condição social e o sexo é o dado mais evidente que encontramos na analise da documentação consultada. Nos registros de coimas e fianças, das 32 lojas de fazenda seca que encontramos, em nenhuma delas o proprietário é do sexo feminino. Forros e escravos também em nenhum caso aparecem no controle deste tipo de estabelecimento comercial. Isso se deu por se tratarem de casas comerciais mais requintadas, o maior poder aquisitivo do proprietário da loja era evidente, ou seja, estas casas de comércio estavam nas mãos dos mais abastados comerciantes locais, portugueses ou luso-brasileiros. Mulheres, forros e escravos, por sua vez, terminavam por serem empurrados para a venda de molhados, primeiro pelo restrito campo de trabalho nos centros urbanos e depois pelo grau de pobreza destas pessoas, o único investimento ao alcance do seu nível econômico era tal comércio1. Todavia, o mais interessante da disseminação da atividade comercial entre todos os seguimentos sociais em Minas Gerais foi a estratégia destes grupos no que tange aos seus respectivos objetivos. Peguemos o exemplo das escravas comerciantes. A princípio estas mulheres são colocadas nas ruas por seus proprietários, como forma de complementarem suas rendas.2 Verdadeira multidão de negras e mulatas, escravas e fôrras, percorriam com seus tabuleiros os morros e margens de rios onde se promovia a extração do metal aurífero, incitando os negros a gastar em quitutes o que não lhes pertencia.3 Dessa forma, ao desviarem os jornais dos escravos mineradores através da venda de comestíveis e bebidas diversas, essas mulheres conseguiam pagar suas jornadas de trabalho ao mesmo tempo em que acumulavam excedentes para uma eventual compra de sua alforria e de parentes próximos (filhos, cônjuges, afilhados, etc)4. No caso da população forra a compra da alforria de entes queridos era também uma das prioridades, porém a questão da ascensão social esteve muito presente neste grupo. O comércio era no período o meio de acumulação mais próximo à precária situação financeira da população forra na colônia, uma vez que, não requeria grandes investimentos5. Já os livres (e conseqüentemente homens) utilizavam estratégias diferenciadas, pois, tratava-se de um grupo mais heterogêneo, principalmente do ponto de vista econômico. Os livres pobres tinham um comportamento similar aos forros no que se refere à 1 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Op. cit p. 16. Estes são os conhecidos escravos de ganho, mais informações sobre este grupo ler, ALGRANTI, Leila M. O feitor ausente. Petrópolis: Vozes, 1988. 3 ZEMELLA, Mafalda. O abastecimento da capitania das Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: USP, 1951. p. 179. 4 A prostituição foi um outro meio muito utilizado pelas negras de tabuleiro para desviarem os jornais na região de extração. Mais informações sobre o tema ler FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Op. cit. 5 FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 113. 2 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 180 ascensão social. Porém os livres mais abastados tinham no pequeno comércio mais um recurso para fazerem aumentar seus respectivos patrimônios. (...) o mercado colonial sempre esteve sujeito às bruscas flutuações direcionando o pequeno investidor a estar mudando de ramo através da busca de lucros. O grande investidor também seguia o mesmo caminho, porém sempre buscando investimentos seguros, pois, ao contrario do pequeno eles tinham muito a perder6. Dessa forma, a loja não significava o único meio desses comerciantes de agirem no mercado colonial e sim um entre vários. Assim sendo, para os comerciantes que tinham um pouco mais de capital para investir, abriam-se as portas para oportunidades de lucros em outros ramos de atividade econômica. Diversidade de atividades dos pequenos comerciantes em Camargos (1718-1755) Seguindo com a construção do perfil do pequeno comerciante enfatizaremos a partir de agora, a forma de atuação destes, em diferentes ramos de atividade econômica. Tal diversidade, como destacamos anteriormente, foi um meio muito utilizado pelos comerciantes coloniais. Isso acontecia principalmente pela restrição de oportunidades que oferecia a economia colonial, fazendo com que o agente comercial procura-se aplicar seu capital de forma diversificada reduzindo assim o risco de falir7. Contrariando Braudel que afirma: São os ofícios, os lojistas e mesmo os vendedores ambulantes que se especializam, são o alto da pirâmide (...) o comerciante de grande envergadura nunca se limita, por assim dizer, a uma atividade única8. Trabalharemos nesse tópico com a idéia de que tal estratégia de ação atingiu a todos os níveis de comerciantes, tudo bem que em menor grau no caso dos comerciantes da base. Esses agentes devido à situação financeira desfavorável em relação aos grandes homens de negócio diversificavam em áreas bem próximas a sua principal atividade, por exemplo, dono de loja de loja de fazenda seca que atua no ramo de venda de molhados. A partir da análise e cruzamento dos dados de nossas fontes podemos notar que donos de venda de molhados e loja de fazenda seca de Camargos tiveram uma atuação bem variada. Através dos registros de almotaçaria, coimas e fianças e dos dízimos, podemos identificar quatro áreas de ação dos agentes comerciais dessa localidade: a venda de molhados, a loja de fazenda 6 FRAGOSO, João L. R. & FLORENTINO, Manolo Garcia. Op. cit. p. 194. FRAGOSO, João Luís R. Op. cit. p.326. 8 BRAUDEL, Fernand. Os jogos das trocas: civilização matéria, e capitalismo, séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Apud: FRAGOSO, João Luís R. Op. cit p. 325. 7 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 181 seca, os ofícios mecânicos e a produção rural. Nesta exposição vamos dividir estes comerciantes em quatro grupos: os primeiros são dos donos de vendas de molhados e loja de fazenda seca, o segundo são dos oficiais mecânicos e donos de lojas ou vendas de molhados, o terceiro dos produtores rurais e donos de venda de molhados e por fim, os que exerceram mais de duas atividades econômicas. Nos registros de coimas e fianças há uma tendência de diferenciação do local de comercialização de molhados e de secos9. Com isso as pessoas que optassem pela venda dos dois tipos de mercadorias necessariamente deveriam abrir dois estabelecimentos distintos. A seguir a lista de nomes de comerciantes ilustra a quantidade de pessoas as quais foram proprietárias de venda de molhados e loja de fazenda seca simultaneamente. Quadro 7 Identificação dos comerciantes proprietários de lojas de fazendas secas e vendas de molhados em Camargos (1733-1753) Ambrózio Monteiro da Fonseca Antônio da Rocha Correia Antônio Dias de Meireles Antônio Francisco de Almeida Antônio Vicente de Almeida Bernardo Gonçalves de Almeida Francisco Moreira da Costa Gabriel de Souza Brito João Ferreira Braga João Vieira Lima José do Couto Cruz José do Vale Cunha José Mendes Viana Manoel da Costa Gião Manoel Moreira da Costa Manoel Pereira Braga Manoel Ribeiro de São Francisco Sebastião Barbosa da Cunha FONTE: AHCMM, Registro de coimas e fianças, códices 133, 168, 172, 383, 646, 648, 649, 652 e 664 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 182 Temos, portanto, em Camargos 18 comerciantes que se dedicavam simultaneamente ao duplo comércio. Comparando este número com o total de agentes comerciais identificados nos registros de coimas e fianças (175), chegamos a aproximadamente 10% de indivíduos que buscaram diversificar suas atividades comercializando secos e molhados. Esse número demonstra que ter dois estabelecimentos funcionando ao mesmo tempo era algo corrente nesta praça. Para manterem os dois comércios funcionando ao mesmo tempo, esses comerciantes colocavam pessoas de sua confiança (como parentes próximos, escravos, etc), à frente dos de menor porte, enquanto se dedicavam com maior ímpeto no mais rendoso, aqui a loja de fazenda seca. No caso de Camargos, devido a suas reduzidas extensões territoriais, esse controle devia ser feito bem de perto pelos donos dos estabelecimentos. Vale ressaltar que em alguns casos listados acima, a venda de molhados também é feita de forma volante por uma escrava de ganho (negra de tabuleiro)10. Um outro grupo de comerciantes que atuaram de maneira diversificada foram os oficiais mecânicos. O ramo comercial para estes apresentava-se como mais um recurso de acumulação de riqueza, ou seja, o ofício era sua principal ocupação sendo as demais atividades complementares11. A pequena atividade comercial dos artesãos muitas vezes acontecia no próprio ambiente de confecção de suas peças, como são os casos dos alfaiates e sapateiros. Os alfaiates donos de lojas de fazenda seca, além de confeccionarem as roupas sob encomenda, vendiam também em seus estabelecimentos roupas prontas, tecidos e materiais de armarinho em geral. Os artesãos, desse modo, puderam escolher, num dado conjunto de alternativas, entre aquelas opções de emprego de mão de obra e capital que facultavam a utilização das próprias capacidades profissionais, elegendo como raio de ação, por vezes, os círculos de acumulação afim12. Nos registros de coimas e fianças de Camargos encontramos apenas os alfaiates enquadrados nessa perspectiva de ação do oficial mecânico, resultando num total de 11 oficiais donos de lojas de fazenda seca. Por outro lado, temos nos mesmos registros vendas de molhados sob propriedade de artesãos. Porém essas casas de comércio estão disseminadas em mais de um seguimento de oficiais como podemos ver no quadro abaixo. 9 Ver páginas 35-36 capitulo 1. REIS, Liana Maria. Mulheres de ouro: as negras de tabuleiro nas Minas Gerais do século XVIII. Revista do departamento de História. Belo Horizonte: UFMG. 1989. p. 78. 11 BARRETO, Daniela Santos. A qualidade do artesão: contribuição ao estudo da estrutura social e mercado interno na cidade do Rio de Janeiro, c.1690-c. 1750. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ. Rio de Janeiro, 2002, p. 106. 12 Ibidem. p. 106. 10 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 183 Quadro 8 Oficiais donos de venda de molhados em Camargos (1733-1753) Ofício Nº de comerciantes Porcentagem Alfaiate 9 60% Ferrador 4 26,7% Sapateiro 2 13,3% Total 15 100% FONTE: AHCMM, Registro de coimas e fianças, códices 133, 168, 172, 383, 646, 648, 649, 652 e 664 Os alfaiates mais uma vez apresentam com destaque, mostrando uma estratégia deste grupo de profissionais quanto à diversidade de atividades. Dos 22 alfaiates que encontramos na documentação 13 (59%), ou são donos de venda de molhados ou de loja de fazenda seca. Esse número é bem acima da média dos oficiais comerciantes, pois, dos 61 artesãos localizados temos 19 (31,1%) à frente de casas comerciais. Os ferradores13também aparecem com destacadamente envolvidos com o pequeno comércio. Quanto ao último grupo de oficiais presente nesta tabela, os sapateiros, a sua representação em apenas dois casos nos leva a concluir que este grupo de oficiais presente num total de 7 registros, caracterizava-se por uma ação mais conservadora ou com menor capacidade de acumulação. Ação essa que predominou em boa parte dos artesãos de Camargos. Os produtores rurais ligados à atividade comercial formam o terceiro conjunto de comerciantes coloniais que enfatizamos em nossa pesquisa. Essas duas atividades foram desde os primórdios da ocupação mineira interligadas. A mineração definiu a forma de povoamento e colonização criando espaços desde o início para um grande fluxo de mercadores em Minas. Estes mercadores, por sua vez, criaram rapidamente condições para o abastecimento do comércio fixo, dada sua vinculação com a produção agrícola14. A forte ligação que se deu em Minas Gerais entre a produção rural e o pequeno comércio local esteve na necessidade dos agricultores em mercantilizar suas produções ou parte delas. 13 Ibidem. p. 48. Os ferradores eram oficiais responsáveis pela fabricação e colocação de ferraduras para a montaria de tiro e de carga. 14 CHAVES, Claúdia Maria das Graças. Perfeitos negociantes: mercadores da Minas setecentista. São Paulo: Annablume, 1999. p. 40. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 184 Dessa forma, em Camargos encontramos na lista dos dizimistas no triênio 1751-1754, 17 (34%) produtores rurais dos 50 presentes, aparecendo nos registros de almotaçaria e nas coimas e fianças, como comerciantes. Esses agentes eram, na maioria, donos de venda de molhados e usavam este espaço provavelmente para negociarem suas produções. Aqui, mais uma vez, temos a presença do escravo auxiliando esses indivíduos na comercialização dos produtos, seja na venda fixa ou volante de mercadorias produzidas nas suas roças. Como exemplos destes comerciantes proprietários rurais podemos citar Amaro Pires, José do Rêgo Nunes e Manoel de Meireles. O último grupo que vamos destacar é o dos comerciantes que atuavam em mais de duas atividades simultaneamente. Como destacamos no início desse tópico, no mercado colonial havia um reduzido raio de ação para que o pequeno empreendedor agisse, o que ocasionou a diversidade de ação destes agentes. Assim sendo, os mais variados indivíduos, provenientes de distintos ramos profissionais, embarcaram no ramo comercial. A percepção de que lavradores de cana, advogados, médicos, artesãos, enfim, os mais diversos tipos de profissionais desenvolveram (...) também o comércio, mostra que essa não era uma via de ascensão social somente de portugueses pobres (...) mas também para muitos já aqui estabelecidos e que também buscavam ascender ou ao menos, sustentar um status já adquirido15. Alguns grupos, ao que nos parece, utilizaram-se da diversidade como um meio de agir dentro do mercado colonial. Em Camargos temos uma considerável quantidade deste tipo de agente comercial. Antônio Francisco de Almeida16 por exemplo acumula o ofício de alfaiate, dono de uma loja de fazenda seca e ainda uma venda de molhados. Similares a este exemplo são os casos de Antônio Vicente de Almeida, Bernardo Gonçalves Chaves, João Ferreira Braga, José do Couto Cruz e Manoel da Costa Gião17. Mais uma vez o grupo dos alfaiates destaca-se pela semelhança em suas estratégias. Evidenciando assim uma ação coletiva de uma elite local, em busca de mecanismos de manutenção de sua hegemonia. Os comerciantes ligados ao campo também procuraram diversificar ao máximo suas atividades como são os casos de Francisco Moreira da Costa, José do Vale Cunha, Manoel Ribeiro de São Francisco e Sebastião Barbosa da Cunha18. Estes indivíduos dedicavam-se a produção agrícola, a venda de molhados e a loja de fazenda seca. Houve também oficiais mecânicos que eram produtores agropecuários e ainda tinham venda de molhados, como é o 15 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. op. cit. p. 253. Fontes: AHCMM, Registro de coimas e fianças e Registro de Almotaçaria. 17 Fontes: AHCMM, Registro de coimas e fianças e Registro de Almotaçaria. 18 Fontes: AHCMM, Registro de coimas e fianças e Registro de Almotaçaria. APM. Lista dos dizimistas. 16 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 185 exemplo do sapateiro Francisco Monteiro da Silva19. Em suma, o que vislumbramos neste tópico foi uma eminente diversificação de atividades por parte dos pequenos comerciantes de Camargos. O que demonstra que a capacidade de diversificar não era uma exclusividade dos comerciantes de grosso trato. Os exemplos aqui apresentados indicam que, sempre que surgia a oportunidade de expandir seus negócios, esses agentes comerciais o faziam, mesmo que atuando em um raio menor. Quanto às áreas de atuação destes homens aqui apresentadas, são apenas aquelas que conseguimos identificar em nossas fontes. Outras áreas de diversificação de suas atividades poderão ser encontradas na medida em que novas fontes forem incorporadas à pesquisa. Uma série de outras questões, relacionadas à atuação destes agentes, também só poderão ser respondidas com a pesquisa em novas fontes. Permanecem como indagações: o peso que cada uma das atividades desenvolvidas possuía na formação do patrimônio desses indivíduos; as redes de relações que esses comerciantes estabeleceram na base do pequeno comércio; se o comportamento de investir os capitais adquiridos no comércio em bens agrários, como Fragoso e Florentino demonstraram para os homens de grosso trato20, também esteve presente entre estes pequenos comerciantes21. Flávio Rocha Puff é Mestrando em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. 19 Fontes: AHCMM, Registro de coimas e fianças e Registro de Almotaçaria. APM. Lista dos dizimistas. FRAGOSO, João L. R. & FLORENTINO, Manolo Garcia. Op. cit 21 Pretendemos esclarecer estas nossas indagações na pesquisa que desenvolvemos atualmente junto ao Programa de Pós-Graduação em História, Cultura e Poder da UFJF. A documentação que nos auxiliará nessa tarefa são os inventários post-morten, os processos matrimoniais, dentre outras. 20 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 186 Iniciação Científica: PRODUTORES DE ALIMENTO EM UMA ECONOMIA AGROEXPORTADORA Os camponeses e suas estratégias de sobrevivência (1870-1888) Ana Paula Pereira Costa Resumo: O presente artigo procura analisar os camponeses da Zona da Mata Mineira e as estratégias de sobrevivência adotadas por este grupo. É dada especial atenção às seguintes questões: acesso à terra, organização da força de trabalho e relações de solidariedade. Palavras-chave: 1. Camponês; 2. Estratégias de sobrevivência; 3. Relações de solidariedade. Abstract: This article intends to analyze the peasants in the Zona da Mata Mineira and the strategies of survival adopted by this group. We took a special attention to the following questions: access to the land, organization of the force of labour and solidarity relations. Key-words: 1. Peasants; 2. Strategies of survival; 3. Solidarity relations. Introdução Estudos referentes ao campesinato brasileiro, até a década de 70, eram quase inexistentes quando o recorte cronológico se referia ao período imperial do Brasil. Esta camada intermediária, componente da massa denominada “homens livres pobres”, era posta à margem nas obras acadêmicas que privilegiavam estudos envolvendo os grandes fazendeiros e escravos, excluindo o camponês por este estar vinculado à produção de alimentos e não à agroexportação, ficando fora do processo produtivo deste período. Entretanto, a partir de meados da década de 70, vem ganhando novas nuances estudos envolvendo o grupo do campesinato, devido ao contato da historiografia brasileira com as inovações metodológicas pelas quais passou a disciplina “História” na Europa. Estamos nos referindo grosso modo à pulverização temática, à interdisciplinariedade, sobretudo com a antropologia, ao destaque da “história vista de baixo”, entre outros.1 1 Ver neste sentido a renovação historiográfica produzida pela “escola dos Annales” e pela “História Social Inglesa”. CARDOSO, Ciro F. & VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. BURKE, Peter. A revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989). São Paulo: UNESP, 1994. Ver também: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. São Paulo: UNESP, 1992. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 187 Nesta perspectiva, o presente artigo pretende abordar o campesinato da Zona da Mata Mineira (englobando as regiões de Juiz de Fora, Rosário, São José do Rio Preto, Chapéu Duvas, São Francisco de Paula e Santana do Deserto) procurando observar as estratégias de sobrevivência do grupo em questão, frente à lógica econômica do período que o excluía do processo produtivo dominante, uma vez que, tal localidade é caracterizada pela produção cafeeira baseada na média e grande propriedade. Assim sendo, faz-se necessário uma melhor definição do nosso objeto de estudo. Adotamos a concepção de camponês desenvolvida por Sônia Souza em sua dissertação de mestrado2 que o define a partir das proposições de Ciro Cardoso e Hebe Mattos3. Neste sentido, camponês é aqui entendido como componente da camada intermediária escravista, vinculado ao meio rural através da posse de terras, voltado para a produção de alimentos, fazendo uso de mãode-obra familiar, mas, podendo eventualmente utilizar o trabalho cativo (não extrapolando o número de 5 escravos). Em certos momentos, podia ter algum vínculo com o mercado local a partir da comercialização de alguns excedentes havendo, em algumas propriedades, uma diversificação produtiva que lhe concedia uma certa autonomia frente aos grandes latifundiários. A escolha do marco cronológico (1870-1888), deve-se ao fato de ser este o período de auge da economia cafeeira na região, ficando desta forma mais explícitas as estratégias de sobrevivência adotadas por este campesinato. Dentre estas, enfatizaremos a questão da terra, a organização da força de trabalho, bem como as relações de solidariedade exercidas entre os membros do grupo, na medida em que tais fatores foram de suma importância para a sobrevivência (tanto material, quanto moral) do mesmo. Utilizaremos como fontes primárias inventários post-mortem, documentação valiosa por sua riqueza de informações, que nos permitem reconstituir parte da lógica sócio-econômica do período e região a serem estudados. Além disso, utilizaremos fontes secundárias referentes ao tema abordado, que nos proporcionarão argumentos para discutir o problema proposto, qual seja, as estratégias de sobrevivência adotadas pelo campesinato da Zona da Mata Mineira no final do 2 SOUZA, Sônia M. de. Além dos cafezais: produção de alimentos e mercado interno em uma economia agroexportadora – Juiz de Fora na segunda metade do século XIX. Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF,1998. 3 Para Ciro Camponês pode ser definido a partir do acesso à terra, do trabalho predominantemente familiar (o que não exclui o uso de uma força de trabalho adicional), e de uma economia de subsistência (em que se produz para consumo próprio mas também se comercializa o excedente). CARDOSO, Ciro. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987. Já Hebe Mattos, além das características citadas anteriormente, frisa que, no caso brasileiro, o cativo poderia ser adicionado como complemento à mão-de-obra familiar, elemento que, somado a fronteira aberta, teria criado uma estabilidade para este pequeno produtor. CASTRO, Hebe. Trabalho familiar e escravidão: um ensaio de interpretação a partir de inventários post-mortem. apud. SOUZA, Sônia. op. cit., p.82. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 188 século XIX, frente a uma lógica que o excluía da atividade produtiva dominante. 1. O contexto sócio-econômico A segunda metade do século XIX, no Brasil, foi marcada por transformações que se iniciaram em 1850 com a elaboração da Lei de Terras e com o fim do tráfico internacional de escravos. A implementação de tais inovações, coincidiu com o surgimento de Juiz de Fora, município com papel significativo no contexto da região da Zona da Mata, levando a sociedade local e também das demais regiões pertencentes ao termo de Juiz de Fora, a procurar formas alternativas para enfrentar as dificuldades eminentes4. Neste mesmo período, com o fim do tráfico negreiro, um lento e gradual processo de abolição começava a se delinear através de sucessivas leis que, cada vez mais, dificultavam a utilização de mão-de-obra negra principalmente onde ela se fazia mais necessária: nas fazendas de café. Desta forma, os cafeicultores locais, inseridos num momento de crise da força do trabalho escravo, recorrem ao tráfico interno de cativos para solucionar este problema. Cidade nascida às margens do Caminho Novo, Juiz de Fora, bem como as demais localidades pertencentes a seu termo, concentrou em seus domínios, a partir da segunda metade do século XIX, uma dinâmica economia cafeicultora sustentada pela grande e média propriedade escravista, estando seu desenvolvimento relacionado diretamente com o bom desempenho da produção cafeeira. Com os excedentes econômicos gerados pelo café, desenvolveu-se na região melhorias de caráter estrutural – telefone (1883), telégrafo (1884), água encanada e sistema de esgoto (1885), iluminação pública utilizando energia elétrica (1889) e setor financeiro organizado (década de 1880) – que possibilitaram uma rápida urbanização da cidade5. Com relação aos pequenos produtores, as alternativas a que recorreram para se adaptar às transformações que estavam ocorrendo (como a Lei de Terras, que procurava dificultar-lhes o acesso à mesma, ao acabar com o regime de posse) são um pouco mais complexas e analisá-las será o objetivo do presente artigo. 4 SOUZA, Sônia. op. cit., p. 83. PIRES, Anderson J. Capital agrário, investimentos e crise na cafeicultura de Juiz de Fora (1870-1930). Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 1993. p.113. 5 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 189 2. Referenciais teóricos A fim de analisarmos as estratégias de sobrevivência do campesinato presente na Zona da Mata Mineira em meados dos oitocentos, acreditamos ser relevante lançarmos mão de obras de autores consagrados da historiografia internacional. Estamos nos referindo mais precisamente às obras de Giovanni Levi6, Emmanuel Le Roy Ladurie7 e Karl Polanyi8que, não obstante a distância temporal e geográfica, oferecem importantes contribuições para comparações, não de contextos, mas para observarmos se conceitos por eles utilizados são aplicáveis na identificação das estratégias de sobrevivência adotadas pelos camponeses locais no período delimitado. Em estudo clássico, Karl Polanyi analisou os efeitos da economia de mercado mundial e suas implicações nas relações sociais humanas. Para tanto, se voltou para as sociedades précapitalistas procurando entender como eram geridas as relações sócio-econômicas até a consolidação do capitalismo, e quais foram as modificações que acarretaram a hegemonia do mercado na gestão econômica. K. Polanyi percebeu que nas sociedades pré-capitalistas a economia dos homens era submersa em suas relações sociais, não sendo a motivação econômica engendrada pelo lucro, mas sim pelo contexto social. Para fundamentar tal teoria, o autor utilizou três conceitos: o da reciprocidade, o da redistribuição e o da domesticidade; o primeiro atuando mais em relação à família e parentesco, auxiliando a salvaguardar tanto a produção quanto a subsistência familiar. Já o segundo trata da distribuição por um chefe de toda a produção da região, e o terceiro se refere à produção para o uso próprio e seu padrão trata do grupo fechado onde não há motivação de lucro. Dentro dessa estrutura, a produção ordenada e a distribuição dos bens era assegurada através de uma grande variedade de motivações individuais, disciplinadas por princípios de comportamentos. Entre estas motivações o lucro não ocupava um papel preponderante; os costumes, a lei, a religião levavam o indivíduo a estabelecer regras de comportamento, as quais garantiam o funcionamento do sistema econômico 9. Outro trabalho utilizado como aporte teórico é o de Emmanuel Le Roy Ladurie, que versa acerca de uma aldeia do século XIV denominada Montaillou, localizada no sudoeste da França, na região montanhosa dos Pirineus. Entre 1294-1320, os moradores desta aldeia tiveram suas vidas transformadas pela Inquisição que, na busca de hereges cátaros, desentranhou longas e 6 LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 7 LADURIE, E. L. R. Montaillou: povoado occitânico (1294-1324). São Paulo: Cia das Letras, 1997. 8 POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. RJ: Campus, 2000. 9 POLANYI, K. Op. cit., p.62-75. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 190 detalhadas confissões de seus habitantes. O autor, através de documentação inquisitorial, procurou reconstituir o cotidiano de Montaillou, constatando que a unidade básica de tal aldeia era a domus (grupo doméstico de co-residentes, que organizavam em sua dependência e com outras domus diversos dados, tais como: o fogo de cozinha, os bens e as terras, os filhos, as alianças conjugais, de parentela, vizinhança, conveniência, e amizade). De acordo com E.Ladurie, tal unidade seria um reservatório de contrapoder ante a dominação exterior (senhorio e dominação política), estando economicamente comprometida nas relações mais naturais que monetárias que estabelecem com outras domus e com outras unidades econômicas: essas implicavam atos de reciprocidade e de simetria (transumância, troca, uso de objetos de trabalho alheio, entre outros), atos de redistribuição e de retirada autoritária do excedente agrícola em favor do centro políticoreligioso – dízimos. Portanto, em Montaillou, o excesso de trabalho não existia já que o objetivo não era acumular, uma vez que não havia nesta aldeia a separação do trabalhador dos meios de produção. Os homens possuíam além de seu habitat, um pedaço de terra e os pastores alguns carneiros sendo capazes assim de prover seu próprio sustento. E. Ladurie conclui que em Montaillou os valores partilhados entre os membros da comunidade eram os da domus (com sua liberdade de costumes, preocupação amorosa com mulher, marido e filhos, com a morte e com a salvação), os valores da não acumulação e da vizinhança 10. Além destes estudos citados, utilizaremos a obra de Giovanni Levi sobre o mercado de terras da região de Santena no século XVII, uma pequena localidade do Piemonte, onde autor procurou reconstituir o cotidiano do mundo camponês, suas relações familiares, bem como as estratégias desenvolvidas pelos habitantes locais frente as incertezas e as crises por eles enfrentadas. Ao analisar o mercado de terras dessa região, G. Levi constatou que as transações estavam submetidas às regras de reciprocidade - tendo as relações sociais e de parentesco um peso significativo na definição dos preços. O autor analisa esta sociedade camponesa sob a ótica da transformação, na qual a insegurança era fato presente, levando os habitantes a desenvolverem estratégias que lhes permitissem uma adaptação 11. Dentro destas perspectivas, entendemos que a abordagem deste autores na compreensão das sociedades por eles analisadas serão pertinentes para compreendermos o funcionamento da sociedade presente na Zona da Mata Mineira de meados do século XIX. Acreditamos que no universo em questão, predominava a lógica das sociedades de Antigo Regime na qual haveria uma não desvinculação das instâncias do real sendo os âmbitos político, econômico, social e cultural intimamente ligados. 10 11 LADURIE, E. Op. cit., p. 498-502. LEVI, G. Op. cit., passim. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 191 3. Os camponeses e suas estratégias de sobrevivência De acordo com o estado atual das pesquisas, sabemos que, na economia da Zona da Mata mineira pautada na agroexportação, as grandes e médias propriedades eram preponderantes, e com isso, os pequenos proprietários poderiam ficar à mercê destes grandes fazendeiros. Contudo, estes camponeses lançaram mão de estratégias que lhes possibilitaram conseguir uma certa autonomia. Avaliar como se constituíam tais estratégias e como estas lhes atestaram uma menor dependência no referido contexto será um dos nossos objetivos daqui em diante. Dentre estas estratégias, o acesso à terra, a utilização de uma força de trabalho, a familiar e eventualmente a cativa, bem como as relações de solidariedade estabelecida entre os membros do grupo, serão privilegiadas. 3.1. A questão da terra A partir de 1850, com a aprovação da Lei de Terras, o acesso à uma parcela desta tornou-se mais difícil, pois só seriam consideradas legais a partir de então, as propriedades adquiridas através da compra. A obrigatoriedade de apresentar título de compra do terreno ocupado, fez com que aqueles que possuíam algum recurso se adaptassem à nova situação direcionando seus investimentos na aquisição de terras. Desta forma, ela passava a incorporar uma dupla importância: atuava como fator de reprodução da economia camponesa e como reserva de valor, podendo ser vendida ou hipotecada em caso de dificuldade12 . Para muitos autores a terra tem papel fundamental na formação de um campesinato. Giovanni Levi por exemplo, vê no acúmulo de propriedade agrária uma estratégia que garantia a sobrevivência do campesinato piemontês no século XVII, onde todo o excedente da produção era direcionado para a compra da mesma, pelo fato desta satisfazer as necessidade materiais básicas do grupo em questão13. Em concordância com G. Levi, acreditamos que o acesso à pequenas propriedades significava a sobrevivência e a manutenção de uma certa autonomia do campesinato local, isto é, sua não sujeição ao trabalho nas lavouras de café, uma vez que percebemos em todos inventários post-mortem analisados, a presença de um mercado de terra entre os pequenos 12 13 SOUZA, Sônia. Op. cit., p. 88. LEVI, G. Op. cit., p. 102. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 192 proprietários, adquiridas através da compra. A título de ilustração podemos citar o caso de José Antônio de Paula, casado e pai 7 filhos, morador do distrito de São Francisco de Paula, que ao falecer deixa um espólio de 61 alqueires de terras de cultura e pastagem, além de benfeitorias, casa de morada, carros de milho e feijão, alguns animais (porcos, vaca, besta) e 5 escravos adultos.14 As transações envolvendo compra de terras também ocorriam entre os membros da família, sobretudo no momento da partilha, indicando um desejo de evitar a fragmentação da propriedade. E. Ladurie observou que em Montaillou havia uma preocupação de se preservar a domus contra a fragmentação. Para os habitantes desta região, o problema se agravava quando uma filha iria se casar devido a concessão do dote: neste caso a domus era ameaçada de perder parte de sua substância em decorrência do dote levado pela recém-casada 15. G. Levi, em seu estudo, também constatou uma tentativa de não fragmentação da propriedade no seio deste grupo. Por ser seu acúmulo uma estratégia para garantir a sobrevivência deste campesinato, aquele que não se submetesse a “viver unido sob o mesmo teto”, quando morresse o chefe da família, podia ser excluído da herança no testamento 16 . Nas fontes por nós observadas, tal fato ocorria sobretudo através da venda de direito de herança e hereditariedade. Este é o caso do inventário de Maria Joaquina de São José, viúva e mãe de 9 filhos, moradora do distrito de Santana do Deserto, que ao falecer divide seus bens (estes relativos a 15 alqueires de terras, casa de morada, benfeitorias, móveis, 12 mil pés de café, carros de milho, arroz, feijão, alguns animais, ações da companhia União e Indústria, uma dívida ativa referente à quantia de 163$394 e 5 escravos adultos) entre seus 9 filhos em partes iguais. Porém, Maria Ferreira da Fraga, filha de Maria Joaquina, vende ao se casar, seu direito de herança e hereditariedade a seus irmãos Pedro José da Fraga e Carlos José da Fraga, evidenciando assim uma forma de não se fragmentar a propriedade desta família com um acontecimento “inesperado”: a morte de sua mãe.17 Outro caso exemplar desta tentativa de não fragmentação de propriedade, está presente no inventário de José Antônio da Rosa, casado e pai de 9 filhos, morador do distrito de São José do Rio Preto, que ao falecer deixa um espólio de 2 alqueires de terras em capoeiras, casa de morada, 3mil pés de café, alguns animais, móveis e um dívida ativa no valor de 400$000; tudo para ser dividido em partes iguais entre seus filhos. Todavia, Maria Rosa Diniz do Nascimento, 14 AHUFJF. Cartório do 1º Ofício Cível. Inv. De José Antônio de Paula, proc. ID 1013, cx. 146 B (1888). LADURIE, E. Op. cit., p. 57. 16 LEVI, G. Op. cit., p. 122. 17 AHUFJF. Cartório de 1º Ofício Cível. Inv. De Maria Joaquina de São José, proc. ID 242, cx. 15 A (1885). 15 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 193 filha de José Antônio, vende à Silvestre Diniz Pacheco - cunhado de José Antônio - seus direitos hereditários (consistindo em terras e benfeitorias) que confrontavam com as de Silvestre.18 Contudo, a posse de terra de nada adiantava se não fosse possível seu cultivo, tanto pela distância entre o produtor e o terreno, quanto pela falta de mão-de-obra. Ana Brigida de Campos, era viúva de Antônio Luiz da Silva , morador do distrito de Chapéu Duvas, que ao falecer deixa para a família 23 alqueires de terras de cultura, casa de morada, carros de milho, 6 alqueires de arroz, alguns animais, 1 escravo adulto, móveis e uma dívida ativa no valor de 450$000; tudo para ser dividido em partes iguais entre seus 5 filhos menores e metade para a viúva. Mas como a mão-de-obra para cultivar este solo (que por sinal era de má qualidade segundo Ana Brigida) se mostrava precária, a viúva pede para arrendar as terras em praça pública, utilizando o jornal “O Pharol” para anunciar tal fato. Posteriormente o dinheiro proveniente deste arrendamento seria utilizado para pagar a parte da herança dos filhos do casal ao atingirem a maioridade.19 A aquisição de uma parcela de terras foi possível até mesmo para ex-escravos. Tal caso foi observado no inventário de Maria Ignácia da Piedade, viúva, moradora de Juiz de Fora, cujo espólio consistia em 12 alqueires de terras, casa de morada, 2 colheitas de café, 1 cavalo, móveis e um dívida de 30$000. Como não tinha filhos deixou tudo para seus ex-escravos aos quais concedeu a alforria em seu testamento.20 Nota-se portanto, que a terra era muito valorizada no âmbito do campesinato, fato evidenciado pelas transações envolvendo sua aquisição, pela venda para membros da família, pelo requerimento dos herdeiros solicitando que sua herança fosse paga em terras. Além disso, na própria liquidação de dívidas, ela só era cogitada caso os bens móveis ou animais não fossem suficientes para cobrir os débitos. Essa valorização da posse de terras relaciona-se com a possibilidade de perpetuação da sobrevivência deste grupo, sendo a não desestruturação das unidades de suma importância para o camponês.21 3.2. A organização da força de trabalho Para a sobrevivência deste campesinato é também imprescindível o uso de uma mão-de-obra que lhe permita garantir sua subsistência. Na maioria dos casos, tal força de trabalho é 18 AHUFJF. Cartório do 1º Ofício Cível. Inv. De José Antônio da Rosa, proc. ID 892, cx. 124 B (1884). Idem. Inv. De Antônio Luiz da Silva, proc. ID 468, cx. 53 B (1870). 20 Idem. Inv. Maria Ignácia da Piedade, proc. ID 183, cx. 12 A (1879). 21 Como destacou G. Levi, são motivações como estas que precisam ser consideradas na análise do mercado de terras em sociedades pré-capitalistas visto que, ele atua não em um contexto no qual o lucro é valorizado e sim num ambiente em que fatores extra econômicos regem a organização social. 19 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 194 arrecadada no seio da família podendo também, na lógica brasileira, fazer uso do escravo. Este foi presença constante nos inventários analisados muitas vezes constituindo mais da metade do valor dos bens avaliados (não extrapolando o limite de 5 cativos), sendo esta força de trabalho adicional extremamente importante para aquelas famílias cujos membros não davam conta de cultivar a terra. Considerando o entendimento que o economista russo Alexander Chayanov possui da economia camponesa, veremos que a composição da família é um elemento que definirá não somente o ritmo das atividades, mas também influenciará no tamanho da terra a ser cultivada22. O princípio de Chayanov para uma economia camponesa, foi observado por E. Le Roy Ladurie no seu estudo sobre Montillou. De acordo com Chayanov: [...] o mundo rural e sua economia é formada pelas inter-relações das unidades familiares, onde a intensidade do trabalho em um sistema de produção doméstica para o uso varia inversamente à capacidade de trabalho relativa à unidade de produção23. Em outras palavras, quanto maior a força de trabalho ativa na família, menor será a necessidade de se trabalhar muito individualmente para assegurar o mínimo das satisfações materiais consideradas indispensáveis às necessidades coletivas da domus. Tal lógica pode também ser aplicada no interior do campesinato da Zona da Mata Mineira, na qual muitas vezes o cativo era adicionado à mão-de-obra familiar para tornar a unidade de produção mais dinâmica. No inventário de Maria Joaquina de São José, fica evidente esta confluência de força de trabalho, na medida em que, além de uma mão-de-obra constituída pelos seus 2 filhos e 3 genros adultos, possuía 5 escravos adultos para cultivar seu 15 alqueires de terras. Considerando que todos viviam nas mesmas terras, pode-se dizer que tal propriedade tinha uma dinâmica produtiva (constituída de café, arroz, milho e feijão) bem eficiente.24 Outro caso de complementação de mão-de-obra foi observado no inventário de José Antônio de Paula, este deixa para a família, ao falecer, 61 alqueires de terra, cujo cultivo era efetivado tanto pelos seus 3 filhos e 2 genros adultos, quanto pelos seus 5 escravos.25 Encontramos também unidades cuja mão-de-obra era constituída ou somente de escravos ou somente de membros da família. Antônio José de Almeida ao falecer tem como bens inventariados, 1 sítio de terras de cultura e 5 escravos (sendo 3 adultos e 2 menores). Supõe-se 22 CHAYANOV, Alexander. (1966), Theory of Peasant economy. tradução inglesa, Homewood, Illinos. apud SOUZA, Sônia. op. cit., p.122. 23 CHAYANOV, A. op. cit. apud L ADURIE, E. op. cit., p.495. 24 AHUFJF. 1º Cartório Cível. Inv. De Maria Joaquina de São José., proc. ID 242, cx. 15 A (1885). 25 Idem. Inv. De José Antônio de Paula, proc. ID 1013, cx. 146 B (1888). Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 195 que tal sítio seria cultivado pelos três escravos adultos, visto que seus 6 filhos eram todos menores.26 Já José Antônio da Rosa, morador do distrito de São José do Rio Preto, possuía como mão-de-obra para cultivar seus 2 alqueires de terras - que foi conservado no seio desta família apesar de seu falecimento, pelo fato de dois de seus filhos que moravam em outra região venderem sua parte na herança para seu tio e cunhado de José Antônio - 1 filho e 1 genro adultos; pois apesar de ter 9 filhos, um era doente mental e portanto incapacitado para trabalhar no cultivo da terra, e os outros 6 moravam em Mar de Espanha.27 3.3 A diversificação produtiva A diversificação produtiva, importante principalmente em momentos de crise, possibilitava ao camponês desfrutar de certa autonomia frente aos grandes proprietários, pois quanto maiores fossem os bens produzidos em suas propriedades, menor seria a dependência deles para conseguir alguns gêneros. Além disso, tal diversificação permitia que parte da produção fosse colocada no mercado local 28 . Nos inventários analisados encontramos a presença da pecuária (gado bovino, suíno e animais de carga), produção agrícola (milho, arroz, feijão), havendo também algumas propriedades que cultivavam o café em menores escalas se comparadas com as dos grandes fazendeiros. Era recorrente também nos inventários, instrumentos de trabalho tais como: ferramentas de carpinteiro, roda de fiar algodão, enxadas, machados, moinhos, tear, o que de certa forma, também indicavam uma diversificação do que era produzido nas propriedades. No inventário de José Antônio de Paula, consta na avaliação de seus bens cujo monte-mor girava em torno de 8:179$000, ferramentas de carpinteiro e tábuas de cedro, o que possivelmente, pode ser assinalado como uma diversificação não só produtiva mas também profissional.29 A criação de animais como já havíamos mencionado, também desempenhou importante papel dentro das estratégias de sobrevivência deste campesinato: porcos, gado bovino e animais de carga foram os mais encontrados nas fontes por nós analisadas. Esta atividade propiciava ao pequeno proprietário a inserção no mercado local, no qual apareciam vendendo e comprando mercadorias. José Antônio da Rosa, ao falecer deixa uma dívida passiva de 1:348$410 relativa à 26 Idem. Inv. De Antônio José de Almeida, proc. ID 580, cx. 71 B (1874). Idem. Inv. De José Antônio da Rosa, proc. ID 892, cx. 124 B (1884). 28 SOUZA, Sônia. Op. cit., p. 132-33. 29 AHUFJF. 1º Cartório Cível. Inv. De José Antônio de Paula, Op. cit., 27 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 196 compras feitas em vários armarinhos locais de gêneros que não eram produzidos em sua propriedade tais como: aguardente, vinho, carne seca, roupas, querosene e até água de colônia. Sua dívida passiva era complementada por gastos obtidos com o farmacêutico devido sua enfermidade (50$900) e gastos do funeral de sua mulher (222$400).30 Outro exemplo desta comercialização entre os pequenos produtores, foi encontrado no inventário de Maria Joaquina de São José, esta possuía uma dívida passiva concernente a compras feitas no armarinho de José Francisco Caldas referentes a roupas, mantimentos e instrumentos de trabalho.31 Temos ainda o caso de Maria Ignácia da Piedade, que obtivera um dívida passiva de 237$080 também de compras feitas nos armarinhos de Frederico Meyer e Frederico Lizardo referentes à roupas, querosene, sal e mantimentos.32 Percebe-se portanto que estes pequenos produtores tinham uma relação, mesmo que minoritária, com o mercado local, através da comercialização de excedentes ou da compra de gêneros que não eram produzidos em suas propriedades. 3.4. As relações de solidariedade A organização familiar é, ao nosso ver, relevante para identificarmos as estratégias de sobrevivência deste campesinato, no que concerne à solidariedade vivenciadas pelos membros do grupo. Como estratégias vamos considerar as relações de solidariedade que envolvem o parentesco e o matrimônio. 3.4.1. O parentesco O parentesco possuía papel relevante na vida do camponês, se efetivando de várias formas, como por exemplo, através da associação familiar para compra de algum bem para melhorar o nível de prosperidade dos envolvidos. Além disto, havia outras estratégias envolvendo a noção de parentesco que possibilitava a sobrevivência (tanto material, quanto moral) do grupo; como a convivência entre irmãos e exescravos. A título de ilustração, podemos citar o inventário de Maria Joaquina de São José, viúva 30 Idem. Inv. De José Antônio da Rosa, Op. cit. Idem. Inv. De Maria Joaquina de São José, op. cit. 32 AHUFJF. 1º Cartório Cível. Inv. De Maria Ignácia da Piedade, Op. cit., 31 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 197 e mãe de 9 filhos, que ao falecer deixa uma herança constituída de 15 alqueires de terras, casa de vivenda, tulhas, alguns animais, 12 mil pés de café, ações da companhia União e Indústria além de 5 escravos adultos. Seus 9 filhos, sendo 5 deles casados, conviviam nas terras mencionadas no inventário localizadas no distrito de Santana do Deserto, o que de certo modo evidenciava uma maneira de manter concentrada a propriedade desta família mesmo porque, como já foi mencionado, houve neste caso, a venda de direito hereditário de uma das partes para os irmãos.33 Outra circunstância que demonstra esta solidariedade entre famílias, se encontra no inventário de Maria Zeferina Pereira de Castro, solteira, sem filhos, moradora do distrito do Rosário, na fazenda do Ribeirão do Carmo. Esta ao falecer tinha em espólio avaliado: uma casa de morada assobradada, 60 alqueires de terras, benfeitorias, móveis, e um dívida ativa de 343$000. Em seu testamento deixa como herdeiros os 3 filhos menores de suas sobrinhas Maria Clementina Pereira de Castro e Maria Francisca Pereira de Castro; ambas moradoras nas terras da tia.34 Entretanto, a ausência de filhos ou parentes próximos podia levar os proprietários a estenderem as relações de solidariedade para além da esfera do parentesco. Em seu estudo sobre a aldeia de Montaillou, E. Ladurie observou que as relações de solidariedade da domus ultrapassava o quadro estrito da família propriamente dita, ou seja, do casal parental e dos filhos. Esse alargamento ocorreria, em Montaillou, em razão da presença de domésticos no lar, criados de lavoura e de outros parentes como irmãos, cunhados, noras, e até compadres35. No inventário de Maria Ignácia da Piedade, já mencionado, tal fato é constatado na medida em que por não possuir filhos, estabelece como seus herdeiros, em seu testamento, 4 libertos. Este caso pode nos remeter a possibilidade de construção de laços de “afetividade” entre Maria Ignácia com estes ex-escravos, na medida em que, como vêem evidenciando a historiografia mais recente acerca da escravidão, as relações entre senhores e escravos eram muito mais tênues do que se imaginava até então.36 33 Idem. Inv. De Maria Joaquina de São José, proc. ID 242, cx. 15 A (1885). Idem. Inv. De Maria Zeferina Pereira de Castro, proc. ID 173, cx. 11 A (1887). 35 LADURIE. E. Op. cit., p. 63. 36 AHUFJF. 1º Cartório Cível. Inv. De Maria Ignácia da Piedade, proc. ID 183, cx. 12 A (1879). 34 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 198 3.4.2. O matrimônio O casamento assumia importância econômica e social para a manutenção deste grupo. Como exemplo podemos citar o caso de Antônio José de Almeida, morador do distrito do Rosário, casado e pai de 6 filhos que a data de seu falecimento (1874) eram todos menores. Seu espólio era constituído de 1 sítio de terra de cultura, 1 casa de vivenda com quintal, 1 besta de carga, 1 tacho de cobre e 5 escravos que constituíam mais da metade do monte-mor de 6:506$000. Sete anos depois, uma de suas filhas – Joaquina, então com 19 anos – se casa com Antônio Guedes de Moraes, 26 anos, lavrador e também morador do distrito do Rosário. Na partilha Joaquina recebe uma parte das terras, 1 escravo e alguns móveis de baixo valor, elementos que seriam de grande ajuda para amenizar as dificuldades na vida do novo casal.37 Outro caso exemplar, é o encontrado no inventário de José Antônio de Paula, casado e pai de 7 filhos morador do distrito de São Francisco de Paula, cujos bens eram constituídos de 61 alqueires de terras, casa de morada coberta de telhas, benfeitorias, paiol, 2 carros de milho e feijão, alguns animais e 5 escravos adultos. Em seu testamento institui como tutor de seus filhos menores - Cândida Maria do Nascimento(14 anos) e João Antônio de Paula (12 anos) - José Antônio de Paula Júnior, seu filho mais velho. Este, no mesmo ano em que seu pai falece (1888), promove o casamento de Cândida com seu primo Antônio João de Paula, “não só pelo afeto que ambos sentem um pelo outro, mas também pela conveniência que a união trará para ambos, visto que Antônio é trabalhador”.38 Outro exemplo, pode ser identificado no inventário de José Antônio da Rosa, casado e pai de 9 filhos, morador do distrito de São José do Rio Preto. Este prevendo sua morte elabora um testamento no qual “ se entende com José Ventura Lopes afim de que este na qualidade de seu amigo seja tutor de sua filha menor Isabel Maria Rosa”. Alguns anos depois, com Isabel contando já com 23 anos, José Ventura procura arrumar os ditames legais para casar Isabel com José Ignácio da Silva, pois por serem ambos pobres o casamento lhes seria benéfico visto que “José Ignácio era muito trabalhador”.39 Nestes dois últimos casos a menção da palavra “trabalhador” pode nos remeter à algumas conclusões interessantes. Acreditamos que, para este grupo, mais do que a posse de bens o que se valorizava ao se contrair matrimônio, era o predisposição de um dos cônjuges de tornar a propriedade mais dinâmica através de seu trabalho. Este era fundamental para que o pequeno 37 AHUFJF. 1º Cartório Cível. Inv. De Antônio José de Almeida, proc. ID 580, cx. 71 B (1874). AHUFJF. 1º Cartório Cível. Inv. De José Antônio de Paula, proc. ID 1031, cx. 71 B (1874). 39 Idem. Inv. De José Antônio da Rosa, proc. ID 892, cx. 124 B (1884). 38 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004 199 produtor mantivesse e/ou aumentasse a dinâmica de sua unidade produtiva, pois como destacou Chayanov, quanto maior o número de trabalhadores, mais dinâmica poderá ser a produtividade dos lotes e, desta forma, mais garantida a subsistência da família 40. Considerações finais No presente artigo, procuramos identificar algumas estratégias de sobrevivência adotadas pelo campesinato da Zona da Mata Mineira, durante o período que se estende de 1870 à 1888. Ao analisarmos fontes primárias referentes à sociedade e períodos em questão, concluímos que o acesso à terra, a família, a diversificação produtiva e a solidariedade praticada entre os membros do grupo (apresentadas sob a ótica do parentesco e matrimônio), foram essenciais para a manutenção desta parcela da sociedade. Ante um sistema produtivo no qual era posto à margem, este campesinato desenvolveu atitudes que garantiriam sua sobrevivência e uma certa autonomia frente os grandes proprietários. Todas as estratégias apresentadas ao longo deste artigo, ao nosso ver, demonstram uma preocupação com a segurança material e também moral dos membros do grupo, sendo as escolhas econômicas influenciadas por aspectos sociais, tais como o parentesco e o matrimônio, de forma a englobar toda a rede de relações necessárias para a sobrevivência deste campesinato. Por ser a sociedade em questão gerida por valores pré-capitalistas, as questões econômicas eram regidas não por uma ótica de mercado auto-regulável e impessoal, mas por relações sociais, baseadas na idéia de reciprocidade e solidariedade; fato também observado por K. Polanyi, E. Ladurie, G. Levi, em seus respectivos trabalhos. Ana Paula Pereira Costa é Mestranda em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 40 CHAYANOV, A. Op. cit., apud LADURIE. E. Op. cit., p. 495. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004