REVISTA ELETRÔNICA DE HISTÓRIA DO BRASIL
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ISSN 1519 - 5759
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Publicação Semestral
Universidade Federal de Juiz de Fora
Departamento de História
Arquivo Histórico da UFJF
Clio Edições Eletrônicas
Juiz de Fora - MG - Brasil
Revista Eletrônica de História do Brasil
Volume
6 -
Número 2 -
Jul.- Dez.
2004
1. História do Brasil 2.Periódicos Eletrônicos: História
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
Reitor: Profa. Dra. Maria Margarida Martins Salomão
Vice-Reitor: Prof. Paulo Ferreira Pinto
Pró-Reitora de Pesquisa: Profa. Dra. Cláudia Maria Ribeiro Viscardi
Revista Eletrônica de História do Brasil
Editora Carla Maria Carvalho de Almeida
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
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Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: Departamento de
História e Arquivo Histórico da UFJF, 2004, volume 6, número 2, juldez, 2004, 199 p., http:// www.rehb.ufjf.br.
ISSN 1519-5759
1. História do Brasil 2. Periódicos Eletrônicos: História
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Márcio de Paiva Delgado
SUMÁRIO
Apresentação
05
DOSSIÊ: ESTUDOS DE HISTÓRIA ECONÔMICA E SOCIAL
A Crise do Portugal dos Felipes e a restauração no Reino e no ultramar 08
Edval de Souza Barros
A participação dos homens de negócio no mercado de bens urbanos
do Rio de Janeiro na primeira metade do século XVIII
Antonio Carlos Jucá de Sampaio
Dinâmica produtiva em Minas Gerais:
o sistema econômico em funcionamento no termo de Mariana
(1750-1850)
Carla Maria Carvalho de Almeida
43
58
O mercado colonial e as reformas ilustradas:
as “vantagens comparativas”
Cláudia Maria das Graças Chaves
92
Campanha da princesa:
formação e expansão de uma vila no Império
Marcos Ferreira de Andrade
104
Permutas matrimoniais:
reflexões sobre o comportamento sócio-econômico de uma elite agrária 132
Mônica Ribeiro de Oliveira
A presença camponesa em uma região agroexportadora
no período escravista: Juiz de Fora (1870-1888)
Sonia Maria de Souza
145
JOVENS PESQUISADORES
O pequeno comércio e o perfil de seus agentes em Minas Gerais:
Camargos (1718-1755)
Flávio Rocha Puff
168
Produtores de alimento em uma economia agroexportadora:
Os camponeses e suas estratégias de sobrevivência (1870-1888)
Ana Paula Pereira Costa
186
APRESENTAÇÃO
O atual volume reforça a iniciativa dos editores do número anterior, no sentido de
tornar a revista uma publicação de dossiês temáticos. Nesta edição, todos os artigos
refletem os principais desafios que se colocam hoje para a história econômica e social.
Quase todos os autores que deram contribuições a este número são
pesquisadores do Laboratório de História Econômica e Social (LAHES), grupo de pesquisa
institucionalmente ligado à UFJF. O objetivo maior do LAHES é envolver professores e
alunos de diversas universidades em um amplo debate sobre a possibilidade de se conjugar
nos estudos de história econômica e social, metodologias já solidamente constituídas
(quantificação e seriação), com outras mais verticalizadas e só mais recentemente
incorporadas a esta área (micro-história, prosopografia, network analysis, por exemplo). A
diversidade de temas e enfoques metodológicos dos textos aqui apresentados expressa tal
orientação.
Os artigos estão dispostos em ordem cronológica. Abre este número o artigo do
Prof. Edval de Souza Barros que analisa A Crise do Portugal dos Filipes e a restauração
no Reino e no Ultramar. Neste texto, tratando de uma temática à primeira vista clássica da
história política, o autor cruza as fronteiras da história social na medida em que analisa a
centralidade das negociações entre a monarquia e os setores sociais privilegiados e das
redes clientelares para a definição da arquitetura dos poderes em Portugal.
A partir do levantamento das escrituras públicas de compra e venda, o Prof.
Antônio Carlos Jucá de Sampaio analisa no texto seguinte A participação dos homens de
negócio no mercado de bens urbanos do Rio de Janeiro na primeira metade do século
XVIII.
Para o autor, a análise das características estruturais e das modificações
conjunturais do mercado carioca de bens urbanos deve servir não somente para lançar
luz sobre a natureza desse mercado, mas, sobretudo, para estabelecer um elemento a
mais para a compreensão da sociedade fluminense de então.
No artigo Dinâmica produtiva em Minas Gerais, a Profª. Carla Almeida parte das
formulações teóricas propostas pelo investigador polonês Witold Kula para tentar
estabelecer as características centrais do sistema econômico predominante nas Minas
Gerais no período de 1750 a 1850. Nesse típico trabalho de história agrária, a autora
transita por temáticas como: diversificação econômica, produção extensiva e hierarquia
social excludente, utilizando como fonte os inventários post-mortem.
No texto seguinte a Profª. Cláudia Chaves analisa as propostas de reformas
administrativas e econômicas introduzidas por D. Rodrigo de Souza Coutinho na América
Portuguesa. Lançando mão de memórias e relatos de época a autora se centra na
discussão acerca das propostas compensatórias para a extinção do monopólio do sal. O
trabalho conjuga a história do pensamento econômico com uma análise da prática
política, na medida em que demonstra como os projetos de racionalização econômica e
administrativa entravam na disputa de interesses coloniais na América Portuguesa.
Em mais um trabalho típico de história agrária, o Prof. Marcos Ferreira de Andrade
nos apresenta o artigo sobre a formação e a expansão do termo de Campanha da
Princesa. Utilizando um diversificado conjunto de fontes (inventários post-mortem, listas
nominativas, assentos paróquias, atas da câmara), o autor apresenta dados sobre as
principais atividades econômicas, a estrutura social e demográfica este importante
município do Sul de Minas na primeira metade do século XIX.
Permutas matrimoniais: reflexões sobre o comportamento sócio-econômico de uma
elite agrária, é o título do sexto artigo deste volume de autoria da Profª. Mônica Ribeiro de
Oliveira. Neste artigo a autora conjuga metodologias da mais clássica história econômica
com a noção de estratégias sociais tão cara à antropologia e à micro-história . Centrando
sua atenção na Zona da Mata mineira no período de 1780 a 1870, analisa a atuação da
elite econômica da região que tinha como mecanismos fundamentais para a manutenção
do poder e do status de grandes proprietários, a constituição de redes de matrimônio, de
compadrio e o sistema de herança.
Fechando a primeira seção da revista, temos o texto da Profª. Sônia Souza, A
presença camponesa em uma região agroexportadora no período escravista: Juiz de Fora
(1870-1888). Utilizando como fontes principais os inventários post-mortem, as listas
nominativas de população e as escrituras de compra e venda, o texto procura demonstrar
a busca camponesa pela autonomia frente aos grandes fazendeiros locais. O artigo
apresenta uma sólida análise teórica sobre o conceito de campesinato lançando mão
tanto de autores clássicos, quanto de textos mais recentes que discutem essa questão. A
noção de estratégia ao modo de Giovanni Levi perpassa todo o trabalho.
Finalmente na seção Jovens Pesquisadores, os textos de Flávio da Rocha Puff e
Ana Paula Pereira Costa, fecham a revista apresentando resultados empíricos
interessantes das respectivas pesquisas de Iniciação Científica que os originaram. Flávio
Puff, utilizando os registros de almotaçaria, coima e fianças, analisa o pequeno comércio
e traça um perfil dos seus agentes em Minas Gerais na primeira Metade do século XVIII.
Ana Paula Pereira analisa os camponeses da Zona da Mata Mineira no final do século
XIX e suas estratégias de sobrevivência.
A REHB mantêm a centralidade de seu compromisso com a divulgação de
trabalhos científicos relativos à História do Brasil, produzidos em âmbito nacional e
internacional, visando a difusão e a qualidade do ensino e da pesquisa histórica. Mantêm
ainda seu compromisso com a divulgação de resultados de pesquisas empíricas
realizadas por jovens investigadores.
Carla Maria Carvalho de Almeida
Cláudia Maria das Graças Chaves
8
A CRISE DO PORTUGAL DOS FELIPES
E A RESTAURAÇÃO NO REINO E NO ULTRAMAR
Edval de Souza Barros
Resumo:
Este artigo trata da crise política que culminou no
fim do Portugal “agregado” à Monarquia
Hispânica do ponto de vista das relações entre os
agentes políticos e dos problemas que legou ao
novo regime após 164, tanto no Reino, quanto no
Ultramar. Ele faz parte de um trabalho mais
amplo sobre o papel e o lugar do Conselho
Ultramarino na arquitetura dos poderes do
“Portugal bragancista” entre 1643 e 1661 e nas
relações deste com as Conquistas Ultramarinas.
Palavras-chave:
1. História de Portugal; 2. Monarquia Hispânica;
3. Conselho Ultramarino; 4. Política.
Abstract:
This article deals with the political crisis that led
up to the end of the Spanish rule over Portugal in
1640. It focuses on the different political actors as
well as on issues faced by the newly established
regime in Portugal and in the overseas colonial
territories in the aftermath of Spanish rule. It is
part of a broader ongoing study on the political
and institutional role of the Conselho Ultramarino
(overseas board) in Portugal and in the overseas
colonial territories between 1643 and 1661.
Key words:
1. Portugal history; 2. Spanish monarchy;
3. Conselho Ultramarino; 4. Politics.
1. A dinâmica política do Portugal do último Filipe:
a crise dos canais de comunicação no Reino1
Embora possa parecer uma observação de senso-comum, a crise do “Portugal dos Filipes”
foi uma crise política, ou seja, decorreu das opções dos agentes detentores de poder e da
dinâmica conflituosa que estas desencadearam. Ao afirmar este aparente senso comum, contudo,
procuro enfatizar os problemas que a mesma legou ao novo regime em Portugal após a ruptura de
1o de Dezembro, sem perder de vista o quadro mais amplo no qual se desenvolveu. Para resumir
a linha de argumentação, podemos reduzi-lo a dois aspectos, um, de ordem econômica e fiscal, e
outro, de ordem propriamente política. Tradicionalmente, o segundo aspecto tem sido atrelado
imediatamente ao primeiro, como seu desdobramento natural. Embora ambos tenham pesado nas
opções à disposição do novo regime instalado em Lisboa a partir de 1641, cada um deles constitui
na verdade uma dimensão distinta, embora inter-relacionadas, de um processo que assume seus
traços mais característicos a partir de 1627. A primeira dimensão, que se traduziu na transferência
da elite dos financistas portugueses para Madri, na esteira do fracasso da Companhia Portuguesa
1
Este artigo é constituído de partes do 1o e 2o capítulos de minha tese de doutorado, “Negócios de tanta importância”: o
Conselho Ultramarino e a disputa pela condução da guerra no Atlântico e no Índico (1643-1661). Rio de Janeiro,
PPGHIS/UFRJ, 2004. Gostaria de agradecer aos membros da banca de defesa, Maria Fernanda Bicalho, Maria de
Fátima Gouvêa, Manuel Salgado Guimarães e Pedro Cardim pelas críticas e comentários. Gostaria de agradecer
particularmente a Jacqueline Hermann, minha orientadora, por insistir na importância da “agregação” portuguesa à
Monarquia Hispânica para a compreensão da política no período pós-restauração.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
9
das Índias Orientais, não será objeto de atenção deste trabalho2. Centrarei minha atenção na
segunda, e menos valorizada dimensão, da crise do “Portugal dos Filipes” - o processo de
solapamento do “Estatuto de Tomar” -, do ponto de vista dos canais de comunicação e das formas
de representação entre as diferentes instancias de poder, primeiro no próprio reino, depois no
ultramar. Apenas a partir desta abordagem torna-se possível inquirir o lugar e papel do Conselho
Ultramarino na arquitetura dos poderes que constituíam o Portugal seiscentista, análise
desenvolvida em outro trabalho3, já que tal crise, ao resultar na ascensão do duque de Bragança
ao trono português e na irrupção da chamada “Guerra de Restauração”, conformou o leque de
alternativas políticas e institucionais à disposição do novo regime.
Entre 1628 e 1633, configura-se o período de viragem definitiva dentro do conjunto de
equilíbrios e tensões estabelecido pelo Estatuto de Tomar. A partir da regência de D. Catarina,
durante a menoridade de D. Sebastião, membros da fidalguia portuguesa4 viram-se cooptados
pelos Habsburgos e tiveram importante papel nas negociações que por fim venceram as últimas
resistências à aceitação institucional de Filipe II5 de Castela como rei de Portugal6. Verdadeiros
“lobbys” familiares organizaram-se em torno de três linhagens aristocráticas com larga folha de
serviços à Monarquia Hispânica desde o primeiro Filipe de Portugal, responsáveis pela
coordenação das atividades que ligavam a corte habsburgo ao reino português através do
2
Em minha tese de doutorado desenvolvo ambos os aspectos, o econômico–fiscal e o político, e argumento mais
extensamente em favor da periodização escolhida. Deixo de fazê-lo aqui apenas por limitações de espaço. Para os
interessados, conferir a tese supracitada, pp. 13-47.
3
Cf. nota 1.
4
Ao longo do texto, o termo fidalguia será empregado como sinônimo da primeira nobreza do reino, ou aristocracia, a
qual abarcava os descendentes de linhagens reconhecidas como tais, mesmo que não portadoras de títulos
nobiliárquicos, e os “cabeças” de Casas tituladas (os Títulos) e seus parentes diretos. A pequena nobreza, cujo alcance
torna-se cada vez mais amplo ao longo do século XVII, corresponderá aos que possuem graus de nobreza conferidos
pela Coroa, como os inscritos na Casa Real e os que recebem brasão de armas, e que podem legá-la aos seus
descendentes, mas não necessariamente aos que a reivindicam em função dos cargos ocupados a serviço do rei, como
os desembargadores. Por sua vez, empregaremos o termo anódino de elites locais para referirmos aos que participam
do governo camarário, auto-denominados “nobreza da terra”. Para as distinções em pauta, cf. MONTEIRO, Nuno
Gonçalo. Poder Senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: HESPANHA, Antonio Manuel (Coord.) O Antigo
Regime (1620-1807). Lisboa, Editorial Estampa, 1992, pp. 333-338.
5
Por questões de conveniência, adotarei a nomenclatura castelhana para referir-me aos Habsburgos de Portugal.
Portanto, Filipe II de Castela, ao invés de Filipe I de Portugal, e assim por diante, posto que me interessa
particularmente as relações entre o reino lusitano e a Monarquia Hispânica, além de ser a convenção adotada pela
historiografia internacional.
6
Como Bouza Álvares não nos deixa esquecer, o reconhecimento institucional via Cortes de Tomar, resultado daquelas
negociações junto à aristocracia e demais grupos sócio-políticos portugueses, foi acompanhado pela invasão do Reino
pelas tropas do duque de Alba, adicionando um elemento de violência que a partir daí condenou o Portugal dos Filipes a
ser refém de representações contraditórias, as quais ora enfatizavam o caráter contratual e jurado da agregação à
monarquia hispânica, ora apontavam para a dimensão de conquista que tornava os acordos de Tomar mera concessão
graciosa do monarca, e portanto, revogáveis. Tais representações, por outro lado, eram elaboradas e difundidas sem
respeito algum à naturalidade daqueles que o faziam. Para o caráter ambíguo dos acordos de Tomar, Cf. ÁLVARES,
Fernando Bouza. Como se tivesse sido de fumo: Memória e juízo do Portugal dos Filipes ante a Restauração de 1640.
In: Portugal no Tempo dos Filipes: política, cultura e representações (1580-1668). Lisboa, Edições Cosmos, 2000, pp.
187-200; Para uma análise dos arbítrios, memórias e tratados sobre a natureza da agregação portuguesa à monarquia
hispânica, cf. SCHAUB, Jean-Frédéric. Discours su la crise politique portugaise. In: Le Portugal au Temps du ComteDuc D’Olivares (1621-1640). Madrid, Casa de Velázques, 2001, pp. 91-122.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
10
Conselho de Portugal e da representação vice-real (ou de juntas governativas)7. Apesar dos
conflitos que se manifestaram ao final do reinado de Filipe II - agravados pela política de seu
sucessor, Filipe III -, o reconhecimento por parte da monarquia e seu valido, o duque de Lerma, da
necessidade de reconhecer e prestigiar aqueles grupos de interesse permitiu que as tensões
fossem canalizadas pelos canais reconhecidamente legítimos de negociação ou absorvidas pelas
redes clientelares que os mesmos controlavam em Portugal e Madri8. A ascensão, em 1621, do
conde de Olivares (depois conde-duque), se num primeiro momento apontou para a manutenção,
ou mesmo reforço, deste padrão de equilíbrio instável, mas operacional9, resultou, a médio prazo,
no rompimento daquelas linhagens com um regime que terminou por estimular a multiplicação de
pólos de comunicação e agenciamento, à revelia dos interesses das lideranças tradicionais10.
Incapaz de atrair para sua órbita os mais influentes membros da elite política portuguesa
em Madri, Olivares passou a recorrer aos Títulos residentes em Portugal, os quais identificaram
nas dificuldades fiscais da Monarquia Hispânica uma oportunidade de se alçarem, e a suas
famílias, ao seleto grupo que tradicionalmente dominava a política portuguesa desde Filipe II.
Configura-se um quadro cada vez mais complexo, em meio aos esforços para reaver as rendas da
Coroa ilegalmente apropriadas (responsabilidade da Junta da Fazenda) e garantir a arrecadação
de recursos extraordinários, como os empréstimos forçados. O envio do marquês de Castelo7
Seriam eles: o grupo dos Borja-Aragão, cujo parentesco o conectava ao duque de Lerma, e que era liderado à época
por Carlos Borja-Aragão, conde de Ficalho e duque de Villahermosa, Presidente do Conselho de Portugal; os “Silva
maiores”, ao qual pertencia D. Diego da Silva e Mendoça, conde de Salinas e marquês de Alemquer, afastado do
governo vice-real quando da ascensão de Olivares ao valimento; os “Silva menores”, ao qual pertenciam o 5o conde de
Portalegre, D. Diogo da Silva, (nomeado para o governo de Portugal em 1623, e abandonando o mesmo em 1627), e
D. Manrique, 1o marques de Gouveia; e a Casa dos marqueses de Castelo Rodrigo, pai e filho. O primeiro, D. Cristóvão
de Moura, favorito de Filipe II e duas vezes vice-rei durante o reinado de Felipe III; o segundo, Manoel de Moura,
desafeto de Lerma e, de início, aliado de Olivares. Cf. ÁLVARES, Fernando Bouza. Op. cit., pp. 202-203. Cf. tb.
OLIVEIRA, Antonio. Poder e Oposição Política em Portugal no Período Filipino (1580-1640). Lisboa, Difel, 1990, pp.
139-140.
8
Sobre o valimento de Lerma e, em particular, os negócios portugueses, cf. FEROS, Antonio. Kingship and Favoritism
in the Spain of Philip III, 1598-1621. Cambridge, Cambridge University Press, 2000, pp. 160-161; p. 217. Cf tb.,
BENIGNO, Francesco. La sombra del rey: Validos y lucha política en la España del siglo XVII. Madri, Alianza Editorial,
1994.
9
Tais medidas consistiram na conservação do Conselho de Portugal; na opção pela junta governativa como forma de
ligação entre o poder régio e o reino português (que, em princípio, incorporaria um maior número de membros da
fidalguia portuguesa ao centro político, permitindo contornar os conflitos oriundos da indicação de um natural do reino,
ao invés da nomeação de um membro da família real, como acordado em Tomar); e na adoção de uma política de
distribuição de mercês aos membros da alta aristocracia portuguesa (o conde de Portalegre é feito fidalgo da câmara do
Rei e nomeado membro da junta governativa em 1623; Manoel de Moura, marquês de Castelo Rodrigo, recebe o título
de grande). Ver: SCHAUB, Jean-Frédéric. Op. cit., pp. 139-140.
10
Sobre as modalidades de mediação institucional no âmbito do espaço político “imperial” da Monarquia Hispânica,
Antonio Manuel Hespanha traça 3 modelos constitucionais de integração como soluções para representar junto das
periferias as decisões políticas do centro: a) o Vice-reinal, com a qual se segue utilizando as mediações já existentes,
como os conselhos, a administração periférica real e os senhores; b) O Comissarial, onde a comunicação se dá por
meio de órgãos político-administrativos ad hoc (juntas) ou de “validos especializados”, que, por sua vez, tem no interior
do reino sua própria rede de “criaturas” (em detrimento do poder dos grupos políticos mais poderosos); c) O Oligárquico,
em que a monarquia procura uma ligação direta com as oligarquias locais (o grupo senhorial e as elites urbanas,
principalmente a das grandes cidades), utilizando sua influência para, independentemente da administração formal (ou à
sua custa), governar o reino. Cf. HESPANHA, Antonio Manuel. Revoltas e revoluções: a resistência das elites
provinciais. Análise Social, vol. 28 (120), 1993, pp. 84-85.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
11
Rodrigo, em 1628, para negociar diretamente junto às câmaras do reino a implementação de tais
medidas dá o sinal de alerta para os grupos governantes tradicionalmente incumbidos de
desempenharem este papel11. A importância estratégica do apoio daqueles grupos e de suas
“criaturas” nos Conselhos portugueses expressa-se de maneira taxativa pelo insucesso repetido
da Junta da Fazenda e demais mecanismos “novos” de alcançarem seus objetivos. Sem o
endosso do Desembargo do Paço e demais tribunais não é possível pôr ao serviço da máquina
fiscal os corregedores e mais ministros, essenciais para, nas diferentes localidades do reino,
viabilizarem as ações dos oficiais das juntas. De fato, estas ocupam espaços intersticiais no
conjunto da constituição político-institucional, e apesar da autonomia que pretensamente gozam
no papel, não dispõem de jurisdição sobre os oficiais régios12.
As iniciativas fiscais, portanto, mais do que se acumularem uma sobre as outras, se
alternam sem resultados palpáveis. O bloqueio político-institucional assim configurado entre 1628
e 1633 desemboca numa disputa selvagem pela oportunidade de assumir o papel de intermediário
e agente de inovações fiscais. A corte em Madri vê-se inundada de arbítrios oferecidos por figuras
de proa da aristocracia portuguesa, ávidas por explorar a incapacidade do valido de concretizar
seu tão acalentado projeto de uma renda fixa que garantisse à Coroa, da parte do reino
português, 500 mil cruzados anuais13.
11
Sobre D. Manuel de Moura, marquês de Castelo-Rodrigo, e a natureza de sua missão em Portugal, cf. ELLIOT, John .
The Count-Duke of Olivares. The Statement in an Age of Decline. New Haven, Yale University Press, 1986, pp. 36, 311,
319; ÁLVARES, Fernando Bouza. A Nobreza portuguesa e a corte de Madrid. Nobres e luta política no Portugal de
Olivares. In: Portugal no Tempo dos Filipes: política, cultura e representações (1580-1668), pp. 220-221; SCHAUB,
Jean-Frédéric. Op. cit., p. 174.
12
Idem, pp. 153-160.
13
A partir de 1628, o jogo político reorganiza-se em torno de três grupos que disputam o poder: os Castros, os Ataídes e
os Mascarenhas. O primeiro é representado pelo conde de Basto, D. Diogo de Castro, membro da primeira junta
governativa nomeada por Olivares em 1621; o segundo, por D. Antonio de Ataíde, conde de Castro Daire, recém
nomeado governador ao lado de Nuno de Mendonça, conde de Valdereis; o terceiro, por Jorge de Mascarenhas, conde
de Castelo Novo (futuro marquês de Montalvão), homem de confiança de Olivares, já tendo ocupado a presidência da
Companhia de Comércio, da Câmara de Lisboa, e da Junta da Fazenda. Cada um dos “cabeças” dos três bandos, por
sua vez, era representado em Madri por seu respectivo filho: Miguel de Castro, filho de D. Diogo de Castro; D. Jerônimo
de Ataíde, filho de D. Antonio de Ataíde, e Jerônimo de Mascarenhas, filho de D. Jorge de Mascarenhas, responsáveis –
todos – pela apresentação de expedientes para a consecução da renda fixa de 500 mil cruzados. Em meio à confusão
política que se seguiu à disputa pelo favor régio, Miguel de Castro denuncia os demais e recomenda a instituição de
uma “junta de inspeção dos ministros do Reino”. Esta ocasião propicia uma aproximação entre os Castro e Diogo
Soares, secretário de Estado do Conselho de Portugal, da qual resultou a nomeação do conde de Basto como vice-rei
de Portugal com a promessa de um marquesado, enquanto Miguel de Castro recebeu a diocese de Viseu, os cargos de
comissário da bula da cruzada e de reitor da universidade de Coimbra, e a nomeação para o Conselho de Portugal em
Madri e para o Conselho de Estado em Lisboa. Lourenço Pires de Castro, outro filho do conde de Basto, foi nomeado
presidente do Desembargo do Paço. Todas estas mercês em retribuição da promessa de implementar o programa de
renda fixa e o desempenho das tenças. Por sua vez, D. Jorge de Mascarenhas perdeu todas as suas atribuições.
Quando o novo vice-rei pediu para se retirar, o conde de Castelo Novo voltou à carga ”avec une impressionante batterie
d’arbitrios financiers”. Em troca, exigiu – além de variadas mercês – a direção dos negócios portugueses. O veto da
equipe formada por Olivares e Soares, que já haviam se resolvido pela princesa Margarida de Mântua, indispõe
definitivamente os Mascarenhas contra o regime olivarista, passando D. Jorge a ser um inimigo feroz do grupo Soares.
Ibidem, pp. 165-171.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
12
Ao mesmo tempo em que os Títulos procuram se apropriar do governo português e
acumular mercês para si e seus parentes, personagens de escalão inferior, mas com experiência
relativa aos trâmites e especificidades dos negócios portugueses, tornam-se peças chaves em
meio à selva institucional gerada pela proliferação de mecanismos fiscais. A mais importante delas
surge exatamente neste momento. Diogo Soares, ex-secretário do Conselho de Fazenda
português, assessor do marquês de Castelo-Rodrigo durante sua permanência em Portugal, surge
aos olhos de Olivares como o homem prático em condições de, com suas “inteligências”,
contornar o bloqueio imposto pelos magistrados portugueses e reunir, em torno de si, os efetivos
humanos capazes de finalmente concretizar o projeto de renda fixa14. Sua atuação não deixa de
causar estragos de imediato: o conde de Villahermosa, presidente do Conselho de Portugal em
Madri, vê-se questionado em sua afirmação de que a Coroa de Portugal não dispõe de rendas
capazes de financiar o socorro de Pernambuco; por outro lado, o arbítrio de Soares, que sugere o
empréstimo forçado de 500 mil cruzados entre as pessoas de maior cabedal, e a amortização em
20% do capital destinado ao pagamento dos juros, força a retirada intempestiva (e temporária) do
conde de Basto, e sua substituição no governo do reino pelos condes de Castro Daire e de
Valdereis, no mesmo momento em que se conjeturava a indicação de D. Carlos, irmão de Filipe
IV, para o vice-reinado15.
As disputas no interior da nobreza portuguesa tornavam as juntas governativas gargalos
que estrangulavam as relações entre a Corte e Lisboa, pois estas mesmas juntas prestavam-se
melhor aos interesses das facções de nobres locais, enquanto, como já mencionado, o Conselho
de Portugal, caixa de ressonância dos interesses nobiliários, contrapunha-se às iniciativas de
Olivares. O valido não tinha outro recurso senão afastá-lo cada vez mais das deliberações que
afetavam na prática o reino lusitano, preferindo tratar os negócios portugueses em particular nos
seus aposentos, onde se reunia com o secretário de Estado do Conselho de Portugal, Diogo
Soares. O retorno ao governo vice-real, em 1633, traduzia-se numa tentativa de conter os atritos
jurisdicionais entre diferentes modelos de representação e comunicação que emperravam a
máquina do governo e dar empuxo à implementação do projeto de “renda fixa”, agora sob a
14
O projeto de “renda fixa”, cujo objetivo era obter para a Coroa, todos os anos, 500 mil cruzados, assumiu primeiro a
forma da imposição da meia anata em 1631, à qual, três anos depois, se acrescentou a universalização do real d’água
para o conjunto do reino (agora a título de imposto permanente e não de contribuição negociável e temporária) e a
apropriação do quarto do cabeção das sisas para a amortização dos títulos da dívida.
15
O programa da renda fixa foi apresentado em 14 de junho de 1631; em 19 de Setembro, Diogo Soares foi nomeado
para a Secretaria de Estado do Conselho de Portugal. Defendendo-se em 1643 das acusações que lhe são feitas de ser
responsável por bombardear a Corte de arbítrios sobre exacções e impostos extraordinários, Soares lembrava que à
época de sua chegada em Lisboa, o conde de Castelo Novo apresentara um projeto para estender o imposto do real
d’água sobre o azeite, que antes dele o conde de Portalegre havia sugerido em 1626 a venda massiva de juros - que no
seu entender liquidaria o patrimônio da Coroa -, e que iniciativas como a repressão ao contrabando, o imposto sobre o
sal e as meias anatas haviam precedido sua chegada à Corte; Sobre Diogo Soares, ver: Jean SCHAUB, Frédéric.
Ibidem, pp. 149-152; Cf. tb. ÁLVARES, Fernando Bouza. Op. cit., pp. 230-232
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
13
supervisão de Diogo Soares. Ao novo vice-rei, o conde de Basto, cabia convocar uma junta de
representantes dos três Estados, a título de Cortes com finalidade exclusivamente tributária. Caso
bem sucedida, esta nova forma de representação traduziria à perfeição as três linhas de força
atuantes na conformação da “agregação” portuguesas à Monarquia Hispânica16. Entretanto,
realizada a eleição dos deputados e iniciados os debates, prestou-se mais a mobilizar o
descontentamento reinante, dando ensejo a boatos e rumores desconcertantes. A câmara de
Lisboa, por sua vez, deixava clara sua oposição. Incapaz de garantir o consenso mesmo em
âmbito tão reduzido, o conde de Basto se vê forçado a renunciar, aproveitando a oportunidade
para postar-se como mais um afeito ao “partido popular”, como já fizera antes o conde de
Portalegre em 162717.
Assim, saldavam-se quatorze anos de tentativas por parte de Olivares de cooptar as Casas
aristocráticas: a cada volta no parafuso, alijando novos segmentos da elite política, que ou se
opunham à sua interferência nos assuntos portugueses, ou apresentavam-se como aliados, mas
jogando alternadamente com a possibilidade de posicionar-se como membros do “partido popular”
ou “parcialidade infecta”18, compensando o fracasso junto à corte em Madri com o prestígio junto
ao Reino. Mas sem que estas divisões ao nível das representações impedissem a luta pela
participação política nos limites da concepção “agregacionista” defendida pelos mesmos.
O fracasso e defecção de D. Diogo de Castro, após o grande investimento feito por
Olivares em torno de sua família, provavelmente convenceram o valido a abandonar a estratégia
de cooptação seletiva tentada até então. A indicação da princesa Margarida de Mântua, que tinha
por qualificação para tal tarefa apenas o parentesco com Filipe IV, seria a conseqüência natural
do impasse a que chegara sua política em Portugal. Ao atender uma exigência dos portugueses
em relação às Cortes de Tomar (a de um vice-rei com sangue real), Olivares procuraria
compensar o fracasso das “Cortes reduzidas” e criar a legitimidade necessária para a
continuidade do projeto de renda fixa. E, eventualmente, impedir a multiplicação de nódulos de
16
Segundo Hespanha, a quebra das antigas concepções sobre as formas de representação em Portugal, baseadas
numa matriz “atomista”, em que nenhuma das partes do Reino pode se fazer representar por qualquer outra, se
manifestava a partir de 3 linhas de força: a) a audição do Reino para fins tributários deve restringir-se ao universo dos
que vão contribuir; b) o universo dos que contribuem – e, logo, que devem consentir – é um universo hierarquizado,
dotado de uma cabeça, de membros e de outras extensões menores; à cabeça cumpre dar exemplo e fazer as
diligencias e contactos com os membros; a estes representar (implicitamente) o resto do corpo; c) ao lado das Cortes,
há outros órgãos que asseguram a participação/representação do reino e velam pela salvaguarda dos seus foros e
jurisdições – os conselhos e os tribunais. Conferir: HESPANHA, Antonio Manuel. O Governo dos Áustrias e a
o
Modernização da Constituição Política Portuguesa. Penélope, n . 2, fev. 1989, p. 52.
17
Em meio às manifestações de descontentamento que grassaram em torno das “Corte reduzidas”, certos elementos da
nobreza chegaram mesmo a defender os direitos do duque de Sabóia (não o de Bragança) ao trono de Portugal.
Conferir OLIVEIRA, Antonio de. Op. cit., pp. 141-144. Cf. tb. Fernando Bouza Álvares, Op. cit., p. 227.
18
Para a definição de “populares” e “parcialidad infecta”, Cf. Conferir OLIVEIRA, Antonio de. Op. cit. p. 27; pp. 227-238;
Cf. tb. ÁLVARES, Fernando Bouza. Op. cit. p. 226.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
14
insatisfação que as juntas governativas geravam, à medida que as famílias a que pertenciam os
governadores e seus aliados, desavindos com Madri, optavam pela oposição.
Por outro lado, sem maiores apoios em Madri, a princesa Margarida assumia o governo
refém das criaturas que Olivares elevara ao poder e que não possuíam ligações com a nobreza do
Reino. Pelas instruções secretas que recebera, via-se atrelada à figura do marquês de Puebla,
primo de Olivares, ex-presidente do Conselho da Fazenda de Castela que caíra em desgraça. A
comissão encarregada ao marquês, de compartilhar com a vice-rainha o conhecimento de todos
os despachos do reino português, tornava-o um valido formal da mesma, mas ao qual faltavam os
laços de amizade e confiança que constituíam a fonte de seu poder e prestígio. Em Madri, Diogo
Soares incorporava funções da Secretaria de Fazenda do Conselho de Portugal, concentrando em
suas mãos os principais canais de comunicação com a nova governação do reino, para profundo
desagrado de Villahermosa e dos demais conselheiros. Duplicando a relação imposta por Olivares
entre a vice-rainha e o marquês de Puebla, Diogo Soares conseguiu nomear seu cunhado,
Manuel de Vasconcelos, para a Secretaria de Estado em Lisboa, responsável pelo despacho da
correspondência entre Margarida de Mântua e o Conselho de Portugal19.
A multiplicação de validos não poderia deixar de embaralhar por completo o jogo político
português, não fosse pelo comportamento do marquês de Puebla, que enxergava a sua estadia
em Lisboa como uma oportunidade de recuperar seu crédito e negociar seu retorno ao centro do
poder em Madri. Sua atuação agressiva terminou por incompatibilizar o conde de Miranda,
presidente do Conselho de Fazenda20. Enquanto o grupo Soares-Vasconcelos consolidava-se,
apropriando-se de, ou dispensando de maneira agressiva, as mercês que garantiam sua base
política em Portugal21, o marquês de Puebla confrontava-se com o fracasso na constituição de
uma rede paralela que atendesse os interesses de Olivares22. A existência de dois pólos
olivaristas em torno do novo governo vice-real, de arquitetura à saída demasiado complexa, teve
exatamente o efeito oposto ao pretendido por Olivares, trazendo a disputa para um círculo ainda
mais restrito, o próprio núcleo governativo em Portugal. Em finais de 1635, Madri era obrigada a
reconhecer que a coexistência de dois canais paralelos de comunicação havia resultado na
paralisação do governo vice-real, e a melhor “inteligência” dos negócios portugueses demonstrada
19
Cf. SCHAUB, Jean-Fréderic. Op. cit. pp. 176-183.
O conde de Miranda era elemento-chave no esquema de financiamento das armadas e terminou por retirar-se
ofendido com a constante interferência nos assuntos do Tribunal, sendo uma das principais, a nomeação de um cliente
do marquês de Puebla, Francisco de Valcárcel, para o dito Conselho. Cf. Idem , pp. 190-191.
21
Ibidem, pp. 211-222.
22
Como ficou claro na disputa pela montagem dos consórcios para financiar o socorro de Pernambuco, em 1637 (um
duro golpe para quem fora presidente do Conselho de Fazenda em Castela e acreditava poder mostrar sua eficiência
particularmente neste âmbito), ao final vencida pelos que haviam preferido se associar a Francisco Leitão, homem de
ligação de Diogo Soares junto às câmaras, o que o tornava suas ofertas mais credíveis aos negociantes da Praça de
Lisboa. Ibidem, pp. 191-193.
20
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15
pelo eixo Soares-Vasconcelos fez pender a balança a seu favor. Vendo frustradas suas
pretensões de desempenhar o papel de valido “oficial” em Lisboa, Puebla opta por agir como seus
predecessores nobiliárquicos e passa ele mesmo a postar-se como porta-voz das queixas
“populares”. Ao seu redor, constitui-se um pequeno círculo de desafetos de Diogo Soares em
Portugal, ao qual compareciam os condes de Castelo Novo e Atouguia, e Francisco de Lucena,
secretário do Conselho de Estado em Lisboa 23.
Olivares agora se via completamente dependente da equipe de Diogo Soares em Portugal,
tanto para obter os atrasados das contribuições e empréstimos forçados até então lançados,
quanto para levar a cabo a imposição da meia-anata, do aumento do quarto do cabeção das sisas
e do real d’água, que constituíam o núcleo do projeto de “renda fixa”. Sem maiores compromissos
com a nobreza portuguesa, mas atuando a partir dos mesmos referenciais pelas quais esta se
pautava, seu sucesso apareceu aos olhos dos grupos aristocráticos que disputavam o controle da
intermediação entre os interesses locais em Portugal e o centro da monarquia uma ameaça
inédita ao seu poder, posto que, até então, as disputas davam-se exclusivamente entre as Casas
e seus aliados nos tribunais e juntas ad hoc.
Às facções anti-olivaristas em Madri e à parcialidade “popular” em Portugal não deve ter
escapado que o poder do grupo Soares-Vasconcelos assentava-se sobre bases demasiado
frágeis, por alicerçado apenas sobre o favor do Conde-Duque. Quando dos levantamentos de
1637-38, a omissão da nobreza patenteava seu descontentamento, mas não uma opção pelo
confronto direto24. Quando este se deu, em 1638, no curso das acusações feitas por Cid de
Almeida e pelo conde de Linhares25, seguiu caminhos institucionais que indicavam a aposta
destas facções no recurso a instrumentos tradicionais de oposição. De fato, as representações
equivalentes de “populares” e “parcialidad infecta” amalgamavam sob a mesma denominação
constelações díspares de interesses que não atuavam de maneira concertada. Se a primeira
interessava a membros da nobreza portuguesa como forma de evidenciar sua capacidade de
influenciar amplos segmentos da alta magistratura e do oficialato letrado, das oligarquias
concelhias e do clero, a segunda interessava tanto a Olivares quanto ao grupo Soares-Valadares.
À Olivares, permitia encobrir os desacertos anteriores de sua política de cooptação em favor das
necessidades do fisco. A Diogo Soares e Miguel de Vasconcelos, prestava-se a evidenciar sua
importância aos olhos do valido como último ponto de apoio que possuía em Portugal,
23
Parece claro que o parentesco com Olivares e o descrédito que isto acarretaria em Madri, onde o conde-duque se via
sob cerrada oposição dos Títulos desde 1632 pelo menos, lhe impedia de destituir Puebla, que continuaria em Portugal
até 1640. Para a atuação política do marquês de Puebla, cf. Ibidem., pp. 194-200; Cf. tb. OLIVEIRA, Antonio de. Op.
cit.pp. 149-155. Sobre a oposição nobiliárquica a Olivares em Castela e sua reação à prisão de Dom Fradique de
Toledo, Cf. ELLIOT, John. Op. cit. pp. 477-480; Cf. tb: BENIGNO, Francesco. Op. cit. pp. 152-158.
24
Cf. OLIVEIRA, António. Op. cit. pp. 203-225.
25
Cf. ÁLVARES, Fernando Bouza. Op. cit. p. 233. Cf. tb. SCHAUB, Jean-Fréderic. Op. cit. pp. 202-211.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
16
representação aparentemente confirmada pelos eventos de 1637 e pela oposição cerrada que
lhes fazia um espectro extremamente alargado de interesses.
A defecção de Puebla, definitiva a partir de 1636, os levantes de 1637-1638 - indicando
que a nobreza recusava-se a cumprir seu papel de intermediária junto ao povo em benefício de
Madri -, e as denuncias lançadas contra o esquema Soares-Vasconcelos, radicalizaram as
posições. Em 1624, Olivares havia apresentado a Filipe IV três estratégias para obter a anuência
da elite política portuguesa. Até 1633, as ações de Olivares limitaram-se à primeira, que
privilegiava a cooptação26. A partir de 1638, contudo, a segunda opção, a de impor a negociação a
partir da intervenção armada, adquiriu cada vez mais adeptos, ao mesmo tempo em que arbítrios
e memoriais apontavam para uma crítica acirrada do Estatuto de Tomar como um erro da
monarquia, ou como uma concessão graciosa de Filipe II que não constrangia o poder régio ao
seu cumprimento27. A imobilidade da nobreza lusitana abriu passagem para a mobilização de
tropas castelhanas na fronteira do Alentejo e do Algarves, enquanto em Madri uma reforma do
governo desmontava definitivamente Tomar, com a dissolução do Conselho de Portugal e a
convocação daqueles identificados com a “parcialid infecta” para uma Junta Grande na qual se
discutiria em novos termos a “agregação” de Portugal à Monarquia Hispânica28. De fato, a
convocação prestava-se a coagir os opositores à política olivarista, dobrando sua resistência, com
a prisão e isolamento dos mesmos dando lugar às acusações29. Em 1639, a lista de convocados
presentes em Madri incluía na quase totalidade as personalidades mais atuantes e influentes na
política portuguesa durante o valimento do conde-duque. Portugal via-se decapitado da sua elite
política, criando um vácuo de poder que pretendia ser ocupado por Olivares e seus validos
portugueses, seguros de que com a detenção dos convocados, o reino permaneceria imobilizado
até serem concluídas as mudanças pretendidas.
Neste ínterim, a ameaça de uma expedição naval francesa obrigava à mobilização militar
em Portugal. Falto de legitimidade em circunstancia que demandava o apelo às armas e às
câmaras, e sem a mediação dos Títulos e seus clientes e associados, Olivares tentou empregar o
26
A terceira, nunca posta em prática, era a ida de Filipe IV ao Reino para negociar pessoalmente a concessão de
tributos e donativos. Cf. ÁLVARES, Fernando Bouza. Op. cit. p. 217.
27
Cf. ÁLVARES, Fernando Bouza. “Como se tivesse sido de fumo. Memória e juízo do Portugal dos Filipes ante a
Restauração de 1640”, pp. 192-200.
28
Note-se que esta junta igualmente atentava contra o estabelecido em Tomar, posto que transferia a deliberação de
assuntos referentes a Portugal para fora do Reino, cujo único foro legitimo de discussão era o Conselho de Portugal. De
qualquer maneira, nem este poderia deliberar sobre o assunto, posto que as Cortes eram o único fórum reconhecido de
discussão sobre questões referentes à “agregação”, parte da constituição política do Reino. Cf. Oliveira, Antonio de .
Op. cit. pp. 232-240; Cf. tb. SCHAUB, Jean-Frédéric. Op. cit. pp. 230-233.
29
Cf. OLIVEIRA, Antonio de. Op. cit. pp. 233-240; Cf. tb. SCHAUB, Jean-Frédéric. Op. cit. pp. 230-232. Claro que havia
espaço para negociações, mas que supunham o afastamento temporário do centro político, como no caso de Fernando
de Mascarenhas e Jorge de Mascarenhas: o 1o, enviado para o Brasil juntamente com o conde de Atouguia, na
o
fracassada Armada de 1638; o 2 nomeado Vice-Rei do Brasil com o título de marquês de Montalvão em 1639. Cf.
OLIVEIRA, Antonio de. Op. cit. pp. 236-238; SCHAUB, Jean-Frédéric. Op. cit. pp. 232-233; p. 235.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
17
prestígio da mais importante Casa de Portugal: a do Ducado de Bragança, que até então ficara à
margem da política de facções dos últimos vinte anos, embora tivesse associados diretamente
ligados à oposição que se fazia ao grupo Soares-Vasconcelos30. Desde antes da “agregação”, as
estratégias de representação da Casa de Bragança apontavam para a construção de um espaço
de relativa autonomia em relação à Coroa e de primazia frente aos demais poderes em Portugal.
Mesmo a vitória de Filipe II na disputa pela Coroa com a duquesa D. Catarina não impediu que
seus titulares continuassem perseguindo a concessão de privilégios e mercês que a reforçassem,
além de privilegiarem os casamentos com os Grandes de Castela, quando as outras opções (com
membros da Casa Real ou dentro de sua própria linhagem), não se apresentavam disponíveis ou
não eram interessantes31. O próprio Olivares, seguindo o exemplo de seu antecessor, o duque de
Lerma, dera grande atenção às negociações matrimoniais dos seus membros, não sem interesses
pessoais32. Apesar do aparente isolamento dos Bragança, contudo, a crise de 1637-1638 não
deixou de estimular rumores sobre a “preeminência” que estavam alcançando em Portugal e da
“eventualidade de os Duques (sic) de Bragança se colocarem à frente do Reino”, o que não
deixaria de contar com a aprovação das Províncias Unidas e da França33.
Olivares pareceu não ter dado ouvidos a estes rumores, ou se deu, sua reação foi
radicalmente distinta da que reservava aos demais Títulos, pois enquanto se dedicava a
desmobilizar as facções nobiliárquicas que lhe faziam oposição, favoreceu as três Casas Ducais
(Bragança, Aveiro e Caminha) com uma nova rodada de mercês34. O especial favorecimento
concedido à Casa de Bragança apenas reforçou sua imagem, apesar da aparente passividade de
D. João, característica que provavelmente mais atraía Olivares. A tentativa de associar o duque
de Bragança ao governo crepuscular de Margarida de Mântua redundou em completo fracasso,
tanto pela atuação do marquês de Puebla, associado ao mestre de campo geral das tropas
30
Como Francisco de Lucena, que fora secretário do Conselho de Portugal e participara da comissão, enviada em
1628, para negociar o pagamento de contribuições atrasadas junto às câmaras. Diretamente ligado à Casa de
Bragança, Lucena perdeu definitivamente seu lugar de Secretário de Estado do Conselho de Portugal em 1631 para
Diogo Soares; Nomeado como Secretário das Mercês do Conselho de Estado em Portugal, viu-se mais uma vez
preterido quando da nomeação de Miguel de Vasconcelo, que substitui Filipe de Mesquita na Secretaria de Estado,
passando a compor o círculo de insatisfeitos que se reuniu em torno do marquês de Puebla e que em 1637 constava,
entre outros, do conde de Castelo Novo e do conde de Atouguia, Luís de Ataíde. Para as “criaturas” da Casa de
Bragança em Madri, cf. ÁLVARE, Francisco Bouza. “A nobreza portuguesa e a corte de Madrid”, p. 223; para os cargos
ocupados por Francisco de Lucena, ver: LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de. La Revolucion de 1640 en Portugal, sus
fundamentos sociales y sus caracteres nacionales. El Consejo de Portugal: 1580-1640. Tese de Doutorado, inédita,
Universidad Complutense de Madrid, 1988, pp. 580 e 592. Para a comissão atribuída a Lucena e sua posterior
associação com Puebla, cf. SCHAUB, Jean-Frédéric. Op. cit. pp. 150-151; pp. 198-199.
31
Cf. SOARES, Mafalda. A Casa de Bragança, 1560-1640: práticas senhoriais e redes clientelares. Lisboa, Editorial
Estampa, 2000, pp. 13-44. Para alguns exemplos de casamentos entre membros da Casa Ducal e Grandes de Castela,
ver ÁLVARES, Fernando Bouza. Op. cit. pp. 219-220.
32
Além de participar das negociações para o casamento de D. João II de Bragança com D. Luiza de Guzmán
(Gusmão), Olivares teria chegado a um acordo com D. Teodósio II, alguns anos antes, para casar o jovem D. Duarte de
Bragança, irmão de D. João, com sua filha, D. Maria. Idem, p. 221.
33
Ibidem, pp. 216-217.
34
Cf. SCHAUB, Jean-Frédéric. Op. cit. p. 232.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
18
castelhanas em Portugal, interessados em torpedear a iniciativa de Soares-Vasconcelos, quanto
pelo fato de D. João aceitar o comando com a condição de reportar-se apenas ao Conselho de
Guerra em Madri, escapando assim ao controle dos dois secretários. A iniciativa serviu apenas
para retirar D. João de Bragança de seu isolamento em Vila Viçosa, e dar-lhe uma visibilidade
inédita, manifesta na recepção popular quando de sua viagem à Lisboa para presidir, com a vicerainha, uma reunião extraordinária do Conselho de Guerra, ao fim não realizada por questões de
protocolo e pelo boicote de seus membros35. Além disso, o comando das tropas serviu para por o
duque em contato direto com as lideranças locais responsáveis pelas levas que deveriam compor
a força de defesa sob sua supervisão.
O quadro que se afigura no início de 1640, portanto, é bastante complexo. Por um lado, do
ponto de vista dos canais de comunicação entre os poderes periféricos e o centro – como definiria
Antonio Manuel Hespanha – há um completo curto-circuito36. Em ondas sucessivas, Olivares
alijara desde as famílias mais tradicionais até as que adquiriram maior preeminência política
durante a década de 1620 e início da década de 1630. O núcleo olivarista do governo em Lisboa
estava dividido entre duas facções que, sem condições de implementar qualquer linha de ação
efetiva, ainda são capazes de se anular reciprocamente. O golpe político de Olivares37, ao retirar
as principais lideranças do reino, apenas conseguiu desfazer qualquer esperança de saída
negociada, levando a uma radicalização entre aqueles que passaram a atribuir a crise
exclusivamente ao valido e seus representantes, e os que enxergavam a defesa de um Portugal
“agregado” e não anexado à monarquia um erro de interpretação das reais intenções de Filipe II.
Em Portugal, os remanescentes das facções atingidas por Olivares apenas agravavam a
instabilidade, enquanto a crise política forçara os membros mais competentes da facção SoaresVasconcelos a retornarem a Madri para participarem das discussões sobre o futuro do Portugal
“agregado”, privando-a de importantes redes de informação e controle. Entre 1638 e 1640,
portanto, o Portugal de Tomar deixara de existir, mais nenhum outro surgira para substituí-lo. As
possibilidades de resolução da crise, entretanto, permaneciam em aberto, exatamente porque a
luta ainda girava, ao nível das representações, em torno das questões referentes a Tomar (o
retorno à situação anterior à década de 1630 ou o seu abandono completo).
35
Cf. Cf. SCHAUB, Jean-Frédéric. pp. 235-239.
Cf. HESPANHA, António Manuel. “Revoltas e revoluções: a resistência das elites provinciais”, pp. 81-88.
37
“on appellera coup d’État l’action qui decide quelque chose d’important pour le bien de l’Etat et du prince, l’acte
extraordinaire auquel un gouvernment a recours pour ce qu’il conçoit être le salut de l’État: action décisive, extreme,
violente, par laquelle non seulement le prince tranche et amène à une conclusion et à un résultat définitifs ce qui est en
jeu dans une situation et un context particuliers, mais encore – et c’est là la valeur des qualificatifs “extraordinaire” ou
“extreme”, - pose son acte aux “limites”de son pouvoir: d’où sa violence, qui introduit la question fondamentale de sa
justification et de sa légitimé” na definição de Louis Marin, a partir de sua leitura da obra de NAUDÉ, Gabriel.
Considerations politiques sur les Coups d’État .In: Pour une théorie baroque de l’action politique. Paris, Les Éditions de
Paris, 1988, p. 19.
36
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
19
O caráter “inovador” ou “extraordinário” da política fiscal de Olivares, o bloqueio comercial
imposto pela guerra e a presença de tropas castelhanas em Portugal eram medidas que, se
capazes de gerar instabilidade, não parecem ser suficientes para explicar o levante de dezembro
de 1640. Até 1638-39, a oposição se fazia não à “agregação” de Portugal à Monarquia Hispânica,
mas sim à tentativa por parte de Olivares de contornar os grupos que se arrogavam o legítimo
direito de intermediar as relações entre a Corte em Madri e o Reino, intermediação sobre a qual
se fundava o equilíbrio estabelecido em Tomar38. As soluções encontradas por Olivares não eram
consideradas por aquelas elites uma “ameaça” per si, desde que pudessem participar de sua
elaboração e execução. As estratégias nobiliárquicas de acumulação e consolidação de poder e
influência eram as mesmas para todos os participantes deste jogo, e as diferentes configurações
em seu interior passíveis de ser absorvidas pelo sistema político, desde que o princípio geral – o
monopólio da participação para os grupos aristocráticos e seus associados – fosse garantido ao
conjunto de seus membros. Não é tanto a interferência de Olivares junto ao modelo institucional
tradicional, nem a ameaça de relegar as Cortes a um papel secundário ou inexistente, que levaria
a aristocracia portuguesa à oposição, como não levou a castelhana, submetida a uma pressão
idêntica, se não maior 39. E sim a ameaça do seu alijamento, e o desrespeito ao princípio de que a
aristocracia era responsável pela distribuição do fardo fiscal, mas a ele não devia ser submetida
proporcionalmente. Isto seria solapar o pilar que sustentava as relações entre a nobreza e o Rei o da gratuidade das prestações e contra-prestações que informavam o sistema de mercês – e só
poderia encontrar a mais resoluta oposição por parte de seus principais beneficiados40.
Lembrando o caráter extremamente hierarquizado daquela sociedade, e deixando de lado
a imagem de que a elite política portuguesa não encontrava correspondência por parte de Madri
na distribuição de mercês e títulos, a pressão fiscal deve ser posta sobre o pano de fundo de uma
configuração muito variada e desigual de poderes41 afetados e diversamente capazes de atuar na
38
“Na realidade, todo o Portugal dos Filipes estava assente num regime de boas obras para as elites do reino”; “Na sua
gênese, e também no decurso do seu funcionamento prático, o Portugal dos Filipes só se tinha tornado possível graças
à colaboração das suas elites nobiliárquicas”. Cf. ÁLVARES, Fernando Bouza. Op. cit. p. 218.
39
O que não excluía uma oposição política bastante explícita ao regime de Olivares pelos Grandes de Castela, de modo
bastante semelhante ao comportamento nobiliárquico português. Cf. BENIGNO, Francesco. Op. cit. , pp. 152-158.
40
Porque seria transformar as relações de fidelidade e afeto, que geravam dons de natureza aberta à negociação, em
uma fria relação fiscal - questionando o caráter não-retornável das mercês, uma das principais bases de sustentação,
quando não a principal, da nobreza. Tal caráter, por sua vez, traduzia-se na noção de “mérito”, que distinguia a relação
da fidalguia com a Coroa dos demais grupos sociais. Para uma análise do papel desta noção na construção das
representações nobiliárquicas, Cf. SMITH, Jay M. The Culture of Merit: Nobility, Royal Service, and the Making of
Absolute Monarchy in France, 1600-1789. Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1996, pp. 11-123.
41
Claro que, se ao nível das representações, tais sujeitos de poder podiam ser considerados equivalentes enquanto
“personas” distintas, o poder de barganha de cada um deles em contextos específicos de interação e negociação não
eram idênticos, o que permitia um leque muito amplo de soluções dentro de um mesmo campo semântico. Tal
diversidade não deixava de ser compatível com os pressupostos da jurisprudência casuística que regulava essas
interações e conformava aquelas representações. De contrário, seria supor uma a-historicidade que não corresponderia
às transformações por que passam as relações políticas durante um arco de tempo demasiado longo que
compreenderia o Baixo Medievo e a Idade Moderna.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
20
defesa de seus interesses. A partir de ramificações que se entrecruzavam ou se sobrepunham, a
atuação particular de cada membro da elite política poderia significar para os poderes locais
resultados bastante distintos quanto ao impacto de políticas fiscais homogeneamente distribuídas.
O que implicava, para a manutenção de uma certa estabilidade, a alternância entre os membros
desta mesma elite que permitisse evitar polarizações em detrimento de segmentos demasiado
alargados no âmbito de incidência das demandas tributárias. O fracasso sucessivo das diferentes
medidas fiscais e econômicas de Olivares deveu-se mais à incapacidade por parte dos esquemas
políticos por ele elaborados de reunirem suficiente apoio em tempo hábil do ponto de vista das
necessidades de Madri do que a um bloqueio concertado por interesses genericamente afetados.
Não foi a alternância no poder entre as diferentes famílias e casas nobiliárquicas, mas a
alternância demasiado rápida, a partir de 1621, que impediu o estabelecimento de rotinas
compatíveis com o caráter “extraordinário” das instituições e formas de comunicação postas em
prática até 1628. A partir de então, a tentativa de superar os lentos procedimentos de negociação
que pressupunham a intermediação nobiliárquica resultou no recurso ao contato direto com os
interesses que em princípio pertenciam à área exclusiva de atuação da aristocracia. Como
resultado, esta se tornava cada vez mais insegura quanto ao seu papel, por incapaz de traduzir
suas ofertas de arbítrios e serviços em resultados efetivos e, conseqüentemente, sofrendo o risco
de perder a legitimidade auferida pela distribuição seletiva de proteção frente aos novos agentes
comissariais que escapavam ao seu controle. Ao bloqueio que cada um dos membros da
aristocracia alçados ao governo sofria dos interesses contrariados, restava a retirada e a oposição
pública, passando a representar, na seqüência, os mesmos interesses que haviam anteriormente
combatido. Esta contradição entre busca de legitimidade pela nomeação de elementos da nobreza
para o governo e simultâneo recurso ao contato direto via juntas e comissões terminou no beco
sem saída de um esquema praticamente limitado à segunda opção, e na proliferação de conflitos
e facções que inicialmente se limitavam aos grupos com antigas e consolidadas conexões na
Corte.
Configurada a crise que desembocou no golpe de 1638, a elite nobiliárquica portuguesa se
viu obrigada a apostar na possibilidade de por em xeque a política olivarista em sua própria
defesa, na esperança de que o colapso das relações entre a Corte e o Reino forçassem a
retomada dos canais costumeiros de negociação e a renovação das mercês e privilégios. O apelo
ao Estatuto de Tomar, em meio ao debate que se seguiu a 1638, dá a entender que esta mesma
elite não concebia nenhuma outra alternativa viável. Tanto como Olivares, deve ter sido tomada
de surpresa pela iniciativa de um grupo de nobres da pequena nobreza aparentados ou ligados à
Casa de Bragança que em fins de 1640, após a perda da Armada espanhola na costa da
Inglaterra, e com a irrupção da revolta catalã, tentou um contra-golpe arriscado para transformar
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um duque em rei. O apoio prestado pela primeira nobreza do reino remanescente em Portugal a
ato político de proporções tão desmesuradas se deveu principalmente à esperança de que, como
rei, D. João não passasse de um duque, e governasse através daqueles que se consideravam os
legítimos governantes do reino42. Parte destes Títulos, contudo, se recusaram a aceitar o novo
monarca, corroborando a tese de que não se tratava de uma questão “nacional”, passível de
identificação com o conjunto da primeira nobreza do Reino: de fato, depois de três gerações, seus
membros eram produtos da política habsburgo e se integravam às redes de poder da Monarquia
Hispânica. Talvez não acreditassem na possibilidade de preservar sua preeminência frente a um
rei presente, esperando que a crise da última década pudesse ser ainda contornada a seu favor.
Com uma base de apoio bastante reduzida, sob observação de parte da nobreza e
contestado por outra, que não lhe reconhecia como legítimo rei em nome da miragem de Tomar,
sem que uma e outra fossem na verdade grupos estanques, visto estarem ligadas por relações de
parentesco a serem forçosamente levadas em conta, D. João IV herdou tanto as contradições e
soluções correspondentes geradas pela “agregação” de Portugal à Monarquia Hispânica, quanto
os resultados da política de Olivares, principalmente a partir de 1627 (no que diz respeito aos
negociantes) e 1633 (no tocante à nobreza). Seria com este legado que enfrentaria os desafios
dos anos imediatamente seguintes.
2.O Contra-golpe bragancista e a constituição de um novo modelo político no Reino
Os últimos meses de 1640 assistiram aos eventos que desembocaram no contra-golpe de
10 de Dezembro. Ter-se tratado de uma conjuração é um fato que não deve ser elidido por, ao
fim, ser bem sucedida43. Poucos, àquela altura, imaginaram uma solução tão arriscada para as
tensões bastante explícitas que medravam no eixo Madri-Lisboa. Quando Olivares concluiu que
convocar seus opositores à Madri poria termo aos dilemas gerados pelo esquema dissonante de
governo então vigente, a divergência em torno da “justiça” de suas decisões não implicou uma
discordância quanto à adequação dos meios aos fins. O afastamento dos “cabeças” das facções
aglutinadas sobre a denominação de “partido popular”, e a dissolução do Conselho de Portugal,
42
Sobre a origem dos fidalgos que participaram do golpe de Dezembro de 1640. Cf. VALLADARES, Rafael. La Rebelión
de Portugal, 1640-1680: Guerra, Conflicto y Poderes en la Monarquia Hispanica. Madrid, Junta de Castilla y León,
1998., pp. 225-226.
43
Ao invés de adotar o termo conjurados, D. Luis de Meneses prefere o termo “confederados”. Cf. Conde da Ericeira.
História de Portugal Restaurado. Porto, Livraria Civilização Editora, 1945 (ed. original, Lisboa, 1678-1689), vol. 1, pp.
113-119. Prefiro os termos conjurados e conjuração para explicitar o caráter político da ação de 1o de Dezembro,
limitada a um pequeno número, fundada sobre o segredo, sob a égide de um príncipe e com o objetivo de alterar por
meios extraordinários – violentos e/ou inesperados – uma certa forma de governo. Sobre o papel fundamental do
segredo na definição do golpe de estado, cf. MARIN, Louis. Pour une théorie baroque de l’action politique. In: NAUDÉ,
Gabriel. Considerations politiques sur les Coups d’État (1639), pp. 22-25.
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substituído por uma junta governativa mista que se esperava facilmente manipulável, visavam
interromper a proliferação incontrolável de conflitos provocada pelas intervenções anteriores, e
que desembocara na elaboração de um discurso cada vez mais polarizado entre os topoi das
“liberdades do Reino” e da “tirania castelhana”44.
Estas medidas, contudo, resultavam no
abandono do Estatuto de Tomar e na redefinição unilateral dos princípios que regulariam, a partir
de então, as relações entre Portugal e a Monarquia Hispânica.
A ameaça que pairava sobre o “Portugal agregado” não parece, todavia, ser suficiente para
explicar o sucesso – mesmo que a título precário – do contra-golpe de 1o de Dezembro de 1640. A
não ser que se entenda o apoio que recebeu como o último recurso da parte de segmentos
incapazes agora de encetar qualquer iniciativa concertada contra o unilateralismo hispânico. O
pequeno número de envolvidos justifica-se, obviamente, pela necessidade de segredo própria a
ações “extraordinárias” desta natureza. Mas que nesta conjura participassem basicamente
pessoas do círculo de relações da Casa de Bragança e pequenos fidalgos sem maior expressão
apenas reflete uma opção não-alinhada com os interesses daquelas facções45. Ao terem preferido
manter-se ao lado de Filipe IV, os membros do “partido popular” e das mais prestigiosas famílias
portuguesas responsáveis pela existência do “Portugal agregado” testemunhavam não só o
caráter “radical” daquela iniciativa, mas também a estreita base de apoio com que contou no
âmbito dos grupos nobiliárquicos para sua realização46.
D. João de Bragança e os conjurados, portanto, apostavam suas fichas no impacto
desnorteante causado pela sua iniciativa, obrigando aos que não participassem diretamente do
golpe a rapidamente assumirem uma posição. Posto que a ação dos conjurados imobilizou
rapidamente os principais mandatários do poder habsburgo em Portugal (o secretário de Estado, a
vice-rainha, o mestre de campo geral das tropas castelhanas), não haveria outra alternativa para
além da aceitação tácita do fato consumado, na falta de qualquer outro pólo efetivo de poder. A
procissão que se seguiu imediatamente ao golpe pode ter visado mais à desmobilização do povo
miúdo, sempre arriscado a fugir ao controle, do que à legitimação dos atos perpetrados. Mas a
comoção popular que varreu Lisboa naquele dia só adquiriu relevância política na medida em que
seus representantes institucionais foram convencidos a se postarem ao lado dos rebelados47. A
44
ÁLVARES, Fernando Bouza. “Como se tivesse sido de fumo. Memória e juízo do Portugal dos Filipes ante a
Restauração de 1640”, pp. 193-201.
45
Consulte-se os nomes dos envolvidos na organização e realização do golpe de 1o de Dezembro citados por Ericeira.
Entre os Títulos, menciona apenas o marquês de Ferreira, e os condes de Vimioso e da Atouguia (que recém herdara a
Casa de seu pai, falecido). Ver Conde da Ericeira. Op. cit. pp. 119-122.
46
“(...) os quais [os populares] consideravam que a queda de Diogo Soares era suficiente para que Portugal retomasse
a obediência ao seu rei”. Cf. ÁLVARES, Fernando Bouza. “A Nobreza portuguesa e a corte de Madrid. Nobres e luta
política no Portugal de Olivares”, p. 238; para uma listagem dos Títulos e demais fidalgos que permaneceram fiéis aos
Habsburgos, Cf. Idem, pp. 251-256.
47
Como no caso dos representantes dos misteres na Câmara, da Casa dos Vinte e Quatro e do Juiz do Povo de Lisboa,
que na verdade acreditavam tratar-se de um movimento de muito maiores dimensões; o presidente (conde de
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“cabeça” tendo tomado posição, o Reino seguiu-lhe - não sem alguma deliberação -, o
alinhamento entre centro e periferia correndo por conta das oligarquias concelhias48. Apenas num
segundo momento, a nobreza juntou-se à rebelião, reassumindo o papel de intermediária e
condutora das negociações canalizadas pelas Cortes, imediatamente convocadas.
O sucesso do golpe, portanto, parece ter assentado tanto no apoio de uma parcela da
nobreza sem expressão política até então, e que poderia enxergar na iniciativa dos conjurados
uma oportunidade de ampliar seu peso político e correspondente poder de barganha, quanto das
oligarquias concelhias, imprescindíveis para a consolidação do novo regime e que nos últimos
anos haviam permanecido à deriva em função da incapacidade de Lisboa e Madri concertarem
canais de comunicação capazes de alinhá-las aos seus interesses. Aqui também, a ascensão de
uma nova dinastia parecia-lhes como uma possibilidade inestimável de garantir posições
vantajosas de negociação frente à nova corte, em nome de interesses por vezes muito
localizados, e cuja representação as principais câmaras – as do “primeiro banco”, e, mais do que
todas, a de Lisboa - haviam parcialmente monopolizado a partir do reinado de Filipe III49.
Os relatos que se seguiram procuraram retratar sob uma ótica plena de implicações
estamentais o papel que se acreditava cabia ao povo no desenrolar dos acontecimentos e, mais
do que seu apoio, a intervenção divina que, esta sim, legitimava o levante contra um rei jurado em
Cortes50. Uma narrativa posterior enfatizaria sem maiores rodeios que o Portugal dos Bragança se
postava atrás da nobreza, pronta a demonstrar sua importância estratégica como intermediária
entre o novo rei e as oligarquias camarárias sob seu controle ou influência51.
Cantanhede) e os demais vereadores do Senado da Câmara de Lisboa, por sua vez, preferiram “cerrar as portas do
Tribunal” até serem persuadidos por “seus filhos” a formarem procissão ao lado do Arcebispo. A mesma hesitação
demonstraram os Desembargadores da Casa da Suplicação, Cf. Conde da Ericeira. Op. cit. p. 114; p. 124.
48
A chegada das cartas comunicando as novas da aclamação em Lisboa geralmente eram entregues aos vereadores
das câmaras, os quais se reuniam a portas fechadas antes de comunicarem o ocorrido aos demais moradores. Mesmo
quando tal não acontecia, e a notícia se difundia antes das câmaras tomarem alguma posição, a reunião era realizada a
portas fechadas, e só após era realizada oficialmente a aclamação. Cf. VALLADARES, Rafael Valladares. Op. cit. p. 30.
49
HESPANHA, António Manuel. A Restauração Portuguesa nos Capítulos das Cortes de Lisboa de 1641. Penélope, nos
9/10, 1993, pp. 40-49.
50
Jean-Fréderic Schaub identifica três matrizes conjugadas nos relatos da Aclamação de D. João IV. A 1a remeteria à
a
ação eletiva da nobreza no ato da deposição e execução do “tirano” Miguel de Vasconcelos; a 2 , à revolta anti-fiscal na
qual se inseriria a ação popular no linchamento do moribundo pós-defenestração; a 3a, à intervenção divina durante a
procissão encabeçada pelo Arcebispo de Lisboa. Pode-se, contudo, reduzi-las, à luz do debate que se seguiu, ao
binômio entre eleição e aclamação, posto que a participação popular nos mesmos relatos, como aponta o dito autor,
devia restringir-se a um papel subordinado, expiando, pelos nobres, a violência, tanto atual quanto simbólica, do ato
político cometido por estes últimos. Cf. SCHAUB, Jean-Fréderic. Le Premier Décembre 1640, Récit des Origines. In: Le
Portugal au Temps du Comte-Duc D’Olivares (1621-1640), pp. 31-36.
51
“Acabado o acto das Cortes, ordenou El-Rei que em três conventos se juntassem divididos os Três Estados: em S.
Domingos o eclesiástico; a Nobreza em Santo Elói; em S. Francisco os Procuradores dos Povos. Depois de Algumas
conferencias, que de uma parte a outra se comunicavam, manejando os trinta da Nobreza, que sempre se
costumam eleger, facilmente todas as materias, não havendo animo algum que não se achase disposto a obrar as
maiores finezas”. Cf. Conde de Ericeira. Op. cit. p. 144. O negrito é meu.
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24
As Cortes de 1641, além de legitimarem do ponto de vista do Reino as ações de Dezembro
de 164052, evidenciaram a grande capacidade de articulação da aristocracia frente às oligarquias
concelhias, cujos interesses pulverizados dificultavam uma ação concertada53. Ambas, entretanto,
traziam para a mesa de negociações as demandas não de um Portugal congelado em 1578, com
a morte de D. Sebastião, mas de um que se espelhava em Tomar e que a partir dele reagia às
iniciativas de Madri no que tocava aos diferentes corpos do Reino54. A boa vontade com que os
três Estados responderam ao chamado dos conjurados e do duque de Bragança viabiliza, assim,
a reabertura de canais de negociação tradicionais, sem que formas mais “modernas” pudessem
ser descartadas. De fato, as Cortes de 1641 e 1642 aprovaram medidas que mais não fizeram
que retomar a agenda herdada do Portugal “agregado” sob a direção do novo regime, pouco
atentando para o ineditismo da situação em que se encontravam. Contudo, a guerra apontava
para a manutenção de um certo conjunto de experiências acumuladas no período imediatamente
anterior e que as Cortes se viram forçadas a reconhecer.
Essas experiências incluíam tanto a manutenção de uma carga fiscal acrescida quanto de
expedientes capazes de viabilizá-la. A criação da Junta dos Três Estados, separada do Conselho
da Fazenda ou de qualquer instancia governativa, e respondendo apenas a El-Rei, punha ao
serviço da nova dinastia as mesmas estratégias de intermediação que Olivares tentara até então
implementar em Portugal, mas que desta vez contavam com a aceitação - votada em Cortes - dos
grupos dirigentes. A alegação de que tal instrumento esvaziava a jurisdição dos Conselhos
palatinos não se vez ouvir como era usual, indicando que o problema não era o caráter “inovador”
ou “moderno” das instituições em tela, mas sim sua inserção legítima num espaço que estava
longe de ser preenchido de maneira contínua55. A diferença, no caso, era que agora as
“inovações” incorporavam os reais detentores do poder e garantiam às oligarquias concelhias
52
A convocação das Cortes foi o ato por excelência da confirmação por parte do Reino de seu apoio ao golpe de 1o de
Dezembro. Como só um rei poderia convocar Cortes, o envio dos procuradores e a apresentação de petições por parte
dos três Estados consumaram a aceitação de D. João IV como seu legitimo monarca, concluindo o processo político
iniciado pelo juramento que a nobreza, clero e a cidade de Lisboa fizeram em 15 de Dezembro. Cf. CARDIM, Pedro.
Cortes e Cultura Política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa, Edições Cosmos, 1998, p. 110. Cf. tb. Conde da
Ericeira. Op. cit. pp. 137-138.
53
Segundo Hespanha, “à parte a preocupação com a guerra iminente – que é clara, sobretudo nos concelhos da raia
(que compõem um terço do número de terras com assento em cortes) -, as pretensões dos povos visam, antes de mais,
aumentar ou recuperar privilégios locais e resolver problemas comunitários, no plano de uma micro-política em que os
problemas globais mal cabem”. Cf. HESPANHA, António Manuel. Op. cit.p. 50.
54
Cf. Idem, pp. 34-40.
55
O que não significou posteriormente o surgimento de críticas, “pois sem fazer desaparecer completamente a ficção de
que os diversos corpos do reino davam o seu consentimento a novos tributos, a Junta dos Três Estados convertia-se
num expediente mais agilizado para lidar com a problemática fiscal, sobretudo porque essa junta foi completamente
controlada pela Coroa”. Cf. CARDIM, Pedro. Op. cit. pp. 102-103.
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25
maior margem de controle sobre as formas de distribuição do fardo fiscal56.
A criação quase imediata de um Conselho de Guerra, por sua vez, não pareceu gerar
maiores oposições. Mesmo contrariando a lógica clientelar reinante57, o conselho garantia que as
disputas pelas nomeações se manteriam em patamares razoáveis - conservando o ideal de mérito
que legitimava a concessão de mercês -, e que a fidalguia seria seu próprio árbitro. Ter por
evidente que a guerra justificaria o acréscimo ao conjunto da polissinodia portuguesa de mais um
tribunal, sem se perguntar porque até 1578 ele não fora necessário, apesar das freqüentes
iniciativas portuguesas no norte da África e da convivência tensa com um vizinho tão poderoso
como Castela, não ajuda a pensar a continuidade de práticas políticas entre o “Portugal agregado”
e o que se propunha “Restaurado”. Por outro lado, as tarefas de coordenação atribuídas ao novo
tribunal podem ser contrastadas com a resistência por parte das populações locais, organizadas
em torno das ordenanças (um legado anterior a Tomar), a lutarem para além dos limites bastante
limitados de seus concelhos, pulverizando espacialmente uma guerra que se queria “do Reino”58.
Aqui, também, práticas políticas tradicionais eram conciliadas com inovações institucionais
oriundas de uma tradição mais hispânica que propriamente “portuguesa”.
A menção à Junta dos Três Estados e ao Conselho de Guerra não é feita ao acaso. O
“Portugal Restaurado” traz para suas fronteiras uma guerra que até então se fazia longe, no
Ultramar ou nos campos de Flandres e da Itália. D. João IV e seus seguidores vêm-se perante um
dilema que operará ao longo de todo o conflito: como garantir a autonomia do reino sem gerar um
tirano? Ou seja, como conciliar o discurso legitimista, em defesa dos privilégios e liberdades das
“personas” e “repúblicas” que compõem o corpo político do Reino, com as necessidades
prementes de financiamento de uma guerra de proporções inéditas? Olivares passara quase um
quarto de século tentando obter a soma anual de 500.000 cruzados, sem qualquer sucesso
perante a resistência de um Reino que se dizia exausto. Aclamado o novo rei, as despesas da
guerra, rapidamente calculadas, atingiam proporções bem maiores.
56
No caso da Câmara de Lisboa, estipulava-se que “a cobrança e arrecadação della [da contribuição], se fará em cada
freguezia, por um Fidalgo, um homem Nobre, outro de negócios, outro do Povo, official, os quaes a Camara nomeará,
e um Clérigo nomeado pelo Prelado; havendo os Ecclesiásticos de entrar na mesma contribuição, como parece justo e
inexcusavel”, Alvará sobre a cobrança do milhão e 800$000 cruzados para a guerra [Lisboa, 16/06/1641] In: ANDRADE
E SILVA, José Justino de. Collecção Chronológica da Legislação Portuguesa. Lisboa, 1854. [daqui para frente, CCLP],
vol. 6 (1641-1647), pp. 80-81 (o negrito é meu); para as demais câmaras do Reino – às quais se comunicava o Alvará
supracitado, a título de exemplo – se recomendava proceder na cobrança “com todo o cuidado, igualdade, e fidelidade,
que é necessario – e o dinheiro, assim como se cobrar, ireis remettendo à ordem dos Deputados do serviço destes
Reinos, para se empregar no sustento da gente de guerra, a que está aplicado”, Carta Régia sobre a cobrança das
contribuições de guerra [Lisboa, 26/06/1641], In: CCLP, vol. 6 (1641-1647), p. 89.
57
Para a prática dos Mestres de Campo nomearem seus parentes, clientes, ou criados como capitães e alferes, em
detrimento tanto da disciplina militar, pela falta de castigo, quanto do mérito dos serviços prestados e da qualidade das
pessoas que se dispunham a prestá-los, cf. COSTA, Fernando Dores. Formação da Força Militar durante a Guerra da
Restauração. Penélope, no 24, 2001, p. 104.
58
COSTA, Fernando Dores. As forças sociais perante a guerra: as Cortes de 1645-46 e de 1653-54. Análise Social, no
161, 2002, pp. 1150-1160.
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Procurando angariar apoio da parte das “repúblicas” e do oficialato, tanto o real d’água
quanto o aumento da quarta parte do cabeção das sisas e a meia-anata foram suspensos59. Os
conjurados podem ter, de início, considerado que as rendas reais seriam suficientes para conter o
primeiro avanço castelhano, enquanto tratados diplomáticos garantiriam a recuperação das
alfândegas e os contratos para pagamento de tropas e aquisição de armas. Não havendo nenhum
financista para aconselhá-los quando da concepção do golpe, estas expectativas rapidamente se
demonstraram demasiado otimistas. Estipulados os efetivos necessários para garantir uma
extensa fronteira, e abandonado (temporariamente) o sistema fiscal anterior, é à inovação, posto
que negociada, que se recorre. Nas Cortes de 1641, o montante consentido pelos três estados
atingiu 1.800.000 cruzados anuais, na esperança de que a guerra não fosse além de 1644. Alguns
meses mais tarde, uma correção nos prognósticos elevava-o para 2.400.000 cruzados, já sobre a
forma da “décima”60. Tal sangria fiscal escapou às expectativas mais otimistas do conde-duque.
As tensões geradas por tamanha carga fiscal, contudo, não irrompem sobre a forma de
levantes, mas pelos canais institucionais de costume61. Tendo recebido regimento definitivo
apenas em 164662, a Junta dos Três Estados começa a funcionar já em 164163. A falta de um
regimento não a impediu, entretanto, de distribuir uma rede de oficiais cuja intervenção ao nível
local atualizava os mesmos conflitos de uma década antes. A perda da documentação referente a
este órgão não permite saber como tais conflitos foram resolvidos, mas é possível que a
dependência frente às elites locais gerasse da parte da Coroa respostas mais conciliadoras ou
que adiassem tomadas de posição insatisfatórias64. Uma tal hipótese parece razoável, tendo em
vista conflitos semelhantes entre o Conselho de Guerra e as elites locais em áreas limítrofes da
59
Cf. “Portaria sobre abolição de certos tributos” [Lisboa, 27/02/1641], In: CCLP, vol. 6 (1640-1647), p. 74.
Cf “Alvará para lançamento e cobrança da décima e mais subsidios para a guerra [endereçado à Câmara de Lisboa]”
[Lisboa, 05/09/1641]. In: CCLP, vol. 6 [1640-1647), pp. 100-102; “Carta da Camara de Lisboa às do Reino, sobre
contribuições para a guerra” [Lisboa, 07/09/1641], idem, p. 103; “Alvará [de esclarecimento] para lançamento e cobrança
das décimas” [Lisboa, 06/10/1641], ibidem, p. 107; “Alvará [de esclarecimento] para lançamento e cobrança das
décimas” [Lisboa, 14/10/1641], ibidem, p. 109. Cf. tb. “Provisão do Arcebispo de Lisboa sobre a contribuição dos
Eclesiásticos para a guerra & Instruções sobre o mesmo assunto” [Lisboa, 15/11/1641], ibidem, pp. 111-112.
61
Em Consulta do Conselho da Fazenda [sem data] sobre a cobrança das décimas, D. João IV considerava, em seu
o
despacho de 10 de Junho de 1642, que: “em muitas das cousas q nesta consulta se apontão, faltou ao Cons certa
notiçia do estado dellas, & porq dezejo, e procuro a Conservação e defença de meus Rnos e Vassallos cõ a menor
ro
oppreção, e dispendio seu, q seja possivel, tendo por çerto, quando seja necess mais, contribuirão de boas vontades
me pareçeo, por agora mandar assentar, e cobrar as Decimas na forma declarada no Alvará de q vay incluza a copia, e
se ellas não bastarem se trattara dos outros meos que pareçerem mais suaves, e convenientes”. Cf. A.N.T.T./Ministério
do Reino, Consultas do Conselho da Fazenda, livro 161, fls. 128-128v.
62
“Regimento das décimas” [Lisboa, 28/04/1646]. In: CCLP, vol. 6 (1640-1647), p. 472 incluso no “Regimento das
décimas” [Lisboa, 09/05/1654]. In: CCLP, vol. 7 (1648-1656), pp. 302-311.
63
“Sobre a forma em q se ha de fazer a Receita e despa do dro q offerecerão a S. Mgde os tres Estados Eclesiástico,
Povo, e nobreza [e] a cada hu dos gres se inviou este papel” [Lisboa, 06/03/1641], Decreto ao Conselho da Fazenda,
A.N.T.T./Ministério do Reino, Consultas do Conselho da Fazenda, livro 161, fls. 195v-196. “Em hu papel dos deputados
do serviço do Rno” [Lisboa, 27/04/1641], Idem, fl. 204v. “[Sobre] as Décimas” [Alcantara, 21/10/1641], ibidem, fl. 227v.
64
Dependência reforçada pelo dispositivo imposto pelas Cortes de que a décima valeria apenas por três anos, ao fim
dos quais haveria de ser novamente votada pelos três Estados.
60
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27
fiscalidade, como as requisições de víveres ou de cavalos para o exército65. Além disso, o
recrutamento de oficiais ao nível local e a participação das oligarquias camarárias pode ter
reduzido a tensão provocada pela distribuição das quotas fiscais pelo conjunto da população.
A busca por legitimação da parte do novo regime também impôs a manutenção do status
quo ante, preservando-se as nomeações e mercês concedidas pelos Filipes66. Algumas
modificações apontavam, entretanto, para a necessidade de incorporar novos e velhos aliados,
fosse pela reforma dos Tribunais, como no caso do Conselho da Fazenda67, a criação de outros,
como o de Guerra, ou o reforço de alguns cargos, como o de secretário de Estado, entregue ao
antigo servidor da Casa de Bragança, Francisco de Lucena, seis dias após o 1o de Dezembro68.
Neste último caso, o poder de intermediação detido pelo secretário de Estado foi rapidamente
reconhecido como uma ameaça à participação colegiada da fidalguia no governo. A queda de
Lucena, tramada nas cortes de 164269, reafirmava, após a demonstração do poder régio na
repressão à conspiração de 164170, a intenção da aristocracia de deter o controle sobre as
principais iniciativas em detrimento dos assessores diretos de D. João IV que não pertenciam as
suas fileiras. A reforma de 1643, que dividiu a Secretaria de Estado em duas, possivelmente
respondia a pressões para se evitar tamanho acúmulo de poder nas mãos de um único indivíduo,
diversificando os canais de comunicação junto ao rei. A Secretaria de Estado, contudo, continuaria
detendo grande poder dadas suas atribuições quanto à política externa e seu papel de ligação
entre os Conselhos e a pessoa real71.
65
Cf. COSTA, Fernando Dores. Op. cit. pp. 1160-1168
Cf. “Decreto sobre a confirmação de mercês feitas pelo Governo de Castela” [Lisboa, 10/01/1641] In: CCLP, vol. 6
(1640-1647), p. 13.
67
Cf. “Decreto pelo qual se reforma o Alvará de 20 de Novembro de 1591, para haver três Vedores da Fazenda”
[Lisboa, 07/01/1641]. In: CCLP, vol. 6 (1640-1647), p. 13; De fato, apenas dois são nomeados: Dom Miguel de Almeida
para a repartição da Índia e Contos; e Henrique Correa da Silva e Brito para a do Reino e África. Cf. “Decreto sobre as
res
a
repartições que ha de ter cada hum dos V da Faz [Lisboa, 13/02/1641], in A.N.T.T./Ministério do Reino, Consultas do
Conselho da Fazenda, Livro 161, fls. 196v-197; Um mês depois, a nomeação de apenas dois Vedores é prorrogada por
todo o ano de 1641, mas com uma curiosa inversão nas atribuições: Dom Miguel de Almeida passa a ser responsável
pela repartição do Reino e África e Henrique Correa da Silva pela da Índia e Contos. Cf. Decreto “sobre as repartições
a
que tocão aos vedores da Faz ” [Lisboa, 14/03/1641], Idem, fl. 197v. Apenas em 1642 a repartição das armadas é
atribuída ao marques de Montalvão. Ver Decreto “sobre o Marques de Montalvão” [Lisboa, 12/02/1642], Ibidem, fl. 247.
68
A carta patente menciona ter sido feita a nomeação já no dia 6 de Dezembro de 1640. Cf. “Carta patente de
nomeação de Francisco de Lucena para Secretário d’Estado” [Lisboa, 31/01/1641]. In: CCLP, vol. 6 (1640-1647), p. 73.
69
Cf. Conde da Ericeira, opus cit., vol. 1, p. 409. Cf. Também, MELO, D. Francisco Manuel de. Tácito Português.
Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1995, pp. 159-174.
70
Organizada em torno do Arcebispo de Braga, D. Sebastião de Matos de Noronha, e incluindo o marquês de Villa-Real
e seu filho, o conde de Caminha, o Inquisidor-Geral e o comerciante Pedro de Baeça, a conspiração foi descoberta e
desbaratada. Embora sem maiores conseqüências, iniciou um período de suspeitas que se prolongaria por todo o
reinado de D. João IV, e que atingiu diversos membros da fidalguia, como por exemplo D. Jorge de Mascarenhas,
conde de Castelo Novo e marquês de Montalvão, e Matias de Albuquerque, posteriormente conde de Alegrete. Cf.
Conde da Ericeira. Op. cit. vol. 1, pp. 296-322.
71
No caso em particular, pelo sucessor de Francisco de Lucena, Pedro Vieira da Silva, antes Procurador da Fazenda
Real. Cf. “Alvará sobre a Divisão e organização de Secretarias de Estado” [Lisboa, 29/11/1643]. In: CCLP, vol. 6, (16401647), pp. 226-227. Referências a Pedro Vieira da Silva em MELO, D. Francisco Manuel de. Op. cit. p. 172. Sua
indicação para Procurador da Fazenda Real em Decreto para o Conselho da Fazenda [Lisboa, 22/12/1640],
A.N.T.T./Ministério do Reino, Consultas do Conselho da Fazenda, Livro 161, fl. 174.
66
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
28
A indicação de Lucena para a Secretaria de Estado manifestava uma tendência paralela da
parte do poder real de angariar algum espaço de manobra frente aos interesses dos Títulos. Os
laços pessoais e de fidelidade à Casa de Bragança informaram assim algumas nomeações,
baseadas mais na proximidade ao novo rei do que ao poder ou prestígio dos favorecidos72.
Constata-se, neste sentido, uma certa preferência pelo reduzido grupo que participou da
conjuração, escolhidos para o governo dos exércitos de fronteira ou para as embaixadas73. De
fato, as embaixadas e os governos de fronteira multiplicaram oportunidades de reconhecer e
mobilizar os serviços tanto de letrados quanto de fidalgos. No caso dos comandos de fronteira,
monopólio da fidalguia, a nomeação para o Exército do Alentejo garantia uma forma geralmente
reconhecida de regular o jogo político na Corte, flexível o bastante para contemplar um número
razoável de pretendentes em espaços de tempo relativamente curtos74, contrabalançando tanto as
intrigas palacianas em torno das nomeações, quanto o descontentamento daqueles que
permaneciam tempo “demasiado” longe da Corte, com custos políticos evidentes75.
A construção das bases de sustentação do novo regime parece, portanto, recorrer a uma
dupla estratégia. Por um lado, reconhecendo o poder dos Títulos e arbitrando as disputas que
irrompem no seio da fidalguia pelos postos de comando na fronteira e pelas posições de
precedência no Paço. Por outro, consolidando um círculo de servidores pessoais que sirva de
contrapeso aos rumores e intrigas palacianas, por meio de seu conselho privado, e que possa
catalisar a insatisfação dos Tribunais e Títulos, sem que a pessoa real seja por isso alvo de suas
críticas. Ao contrário do período anterior, contudo, o recurso a diferentes pontos de apoio, como
os antigos servidores da Casa de Bragança, alguns oficiais da Casa Real76 e letrados guindados
por seus serviços ao secretariado ou aos Tribunais régios (sem falar do pequeno núcleo de fiéis
72
Um exemplo claro da importância destes laços pessoais é dado pela relação entre D. João IV e seu secretário
pessoal Antonio Paes Viegas. Segundo D. Luis de Meneses, “Antonio Pais Viegas, antigo e fidelíssimo secretário da
casa de Bragança, fiava El-Rei os maiores negócios, e porque era impedido da gota o mandava levar ao Paço em uma
cadeira. Com entendimento e zelo aconselhava a El-Rei e lhe inculcava para os postos os sujeitos de maior
capacidade”. Cf. Conde da Ericeira. Op. cit. p. 294. Cf. tb. MELO, D. Francisco Manuel de. Op. cit. p. 172.
73
Sem pretensão à exaustividade, dentre os que são mencionados por D. Luis de Meneses como participando do golpe
de 1o de Dezembro foram nomeados, para o governo de Armas, D. Álvaro Abranches, Antonio Teles [da Silva]
(nomeado Mestre de Campo General do Alentejo ao lado do conde de Vimioso, e depois Governador Geral do Brasil),
D. Jerônimo de Ataíde (conde de Atouguia, posteriormente Governador Geral do Brasil), Fernão Teles de Meneses, D.
Gastão Coutinho, D. João da Costa, João Saldanha de Souza, Manuel de Melo, Martim Afonso de Melo, e Rodrigo de
Figueiredo. Para embaixadas, D. Antão de Almada (Inglaterra), Francisco de Melo, Monteiro-Mór (França), Tristão de
Mendonça (Países Baixos). Tomé de Sousa, Vedor da Casa de D. João IV, é nomeado membro da Junta dos Três
Estados. Cf. Conde da Ericeira. Op. cit. vols. 1 e 2, passim. Sobre Antonio Teles da Silva, cf. MELO, D. Francisco
Manuel de. Op. cit. pp. 146-150. D. Miguel de Almeida, por sua vez, foi nomeado Vedor das Repartições do Reino do
Conselho da Fazenda, cf. nota 67 acima.
74
A alta rotatividade dos Governadores de Armas durante a Guerra de Restauração fica bastante clara da leitura do
“Portugal Restaurado”.
75
Sobre as implicações de uma nomeação para o Governo de Armas, cf. Fernando Dores Costa, “Formação da Força
Militar durante a Guerra da Restauração”, pp. 108-109.
76
Como por exemplo, D. João Rodrigues de Sá, Conde de Penaguião, Camareiro-mór de D. João IV e um dos
conjurados de 1640. Cf. Conde da Ericeira. Op. cit. p. 294.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
29
envolvidos no golpe de 1o de Dezembro), inviabiliza o monopólio de poder por parte de um favorito
– que a nobreza parece ter identificado precocemente em Lucena – e pulveriza a oposição,
tornando um rei frágil o árbitro final das decisões, nem que seja por aparente omissão. Assim, a
instabilidade do regime Bragança, do ponto de vista interno, é compensada pelo retorno ao
governo presencial, o qual torna possível remeter todas as disputas, em última análise, à pessoa
real. De tal maneira que, a partir dos finais da década de 1640, D. João IV encontrava-se seguro o
suficiente a ponto de ignorar os Conselhos – inclusive o Conselho de Estado -, e dispensar a
convocação de Cortes para fins fiscais77. Embora outros fatores, contingentes, tenham gerado
instabilidade para além dos primeiros anos, como a morte do Príncipe herdeiro, e a regência de D.
Luisa de Gusmão.
3. A Restauração no Ultramar:
as Conquistas confrontadas com o Portugal dos Bragança
A “Restauração” encontrou na retomada de canais tidos por “tradicionais” de comunicação
entre centro e periferia, e na afirmação do poder da aristocracia envolvida na disputa pelos cargos
palatinos e de guerra, uma solução temporária, mas razoavelmente eficiente, para a instabilidade
que marcou os seus primeiros anos. A guerra, tanto do ponto de vista econômico quanto político,
amarrou os fios soltos do novelo desfiado por Olivares, permitindo à nova Casa real contornar os
conflitos internos inerentes ao novo regime. Contudo, as disputas e soluções de compromisso que
levaram à consolidação do poder de D. João de Bragança como rei de Portugal resultaram
principalmente de questões restritas aos limites do Portugal continental. E quanto ao Ultramar?
A análise dos capítulos gerais das Cortes de 1641 serve como introdução ao problema78.
Os três Estados praticamente não trataram do Ultramar. Como já mencionado por António Manuel
Hespanha, se algum interesse referente à “Restauração” é expresso, ele o é na medida em que
se relaciona, ou com a preservação de uma monarquia “natural”, ou com as providencias relativas
à guerra que se avizinha e à defesa do Reino79. Enquanto o Estado dos Povos – que poderia em
princípio atender aos interesses ligados ao comércio atlântico – não se manifesta sobre o assunto,
77
Conferir PRESTAGE, Edgar. O Conselho de Estado de D. João IV & D. Luisa de Gusmão. Edição do Arquivo
Histórico Português, 1919, pp. 9-10; p. 14.
78
Cf. “Capítulos Geraes apresentados a El-Rei Dom João IV, nas Côrtes celebradas em Lisboa com os tres Estados do
Reino, em 28 de Janeiro de 1641 – Respostas dadas por El-Rei, em 12 de Setembro de 1642 – Replicas, Respostas, e
Declarações dellas, em 1645”. In: CCLP, vol. 6 (1641-1647), pp. 26-61. Cabe observar que as respostas régias
mencionadas acima são dadas aos capítulos de 1641 na seqüência de sua apresentação, sendo que as de 1642 e 1645
tratam apenas de alguns capítulos que a Coroa achou por bem reconsiderar ou reafirmar. Nestas últimas não se
incluem os capítulos tratados.
79
HESPANHA, Antonio Manuel. Op. cit. pp. 34-37.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
30
o da Nobreza e o do Clero dedicam, respectivamente, apenas um capítulo ao problema80. A
nobreza pede que o novo rei mande “tratar [as Conquistas] com o cuidado e remedio, que o
estado dellas pede”. Para ela, trata-se de prosseguir e aumentar “o serviço de Deus, e bem
commum das almas, com a glória e reputação” alcançadas pela “Nação Portuguesa em suas
Conquistas”81. O clero, por sua vez, mistura no mesmo capítulo tanto “a conservação da Índia, e
Conquistas deste Reino”, quanto a “segurança da costa delle”. A simultaneidade de referências
acaba permitindo uma ênfase eminentemente “reinol” na proposta de “haver Galés e Armadas
neste porto”, para cuja despesa se aplicariam os direitos do anil, do pescado e do consulado82.
O Reino responsabiliza-se apenas pela sua defesa, não mais. Os 2.400.000 cruzados
destinam-se apenas aos exércitos da fronteira e às fortificações necessárias. O custeio de uma
armada capaz de proteger o litoral do Reino (e que efetivamente será constituída) correrá por
impostos tradicionais, como o consulado e o pescado. Nenhuma sugestão é feita quanto à
formação de uma força naval capaz de garantir os diferentes circuitos de navegação no Atlântico,
ou ao envio de socorros para a Índia. A resposta que D. João IV dá a ambos os capítulos apenas
reflete esta justaposição entre poder naval e prioridades defensivas. Ao responder ao capítulo do
clero, o “rei” remete-se às que foram dadas anteriormente aos capítulos 5, 6, e 29 da nobreza. Os
capítulos 5 e 6 (registrados juntos) tratam exclusivamente da Armada de alto bordo que deveria
andar pelas costas do Reino, e cujo financiamento correria – exclusivamente – pelos direitos do
consulado. Posto nestes termos, a Coroa aprova-o sem problemas83. Mas quanto ao capítulo 29,
a resposta é tão evasiva quanto a lembrança é genérica: ao “rei” apenas pareceu “muito bem” o
que lhe era lembrado, prometendo aplicar-lhe “todo o cuidado e poder que o Reino e tempo dér
logar”84.
Deve-se lembrar que enquanto as Cortes se reúnem e votam suas petições, a nova Casa
real busca ansiosamente despachar embaixadas aos países do Norte85 e avisos às Conquistas
80
Tenha-se em conta que o estado dos povos apresentou 108 capítulos gerais, o da nobreza 36 e o do clero 20: um
total de 164 capítulos gerais.
81
“Capítulo XXIX do estado da nobreza”. In: CCLP, vol. 6 (1640-1647), pp. 50-51.
82
“Capítulo XVII do estado do clero” . In: CCLP, vol. 6 (1640-1647), p. 56. O negrito é meu.
83
“Capítulos V e VI do estado da nobreza” . In: CCLP, vol. 6 (1640-1647), p. 45.
84
“Capítulo XXIX do estado da nobreza” . In: CCLP, vol. 6 (1640-1647), pp. 50-51. O negrito é meu.
85
“Tenho nomeado pa hirem por secretros das embaixadas que envio a França, a Chrvão Soares de Abreu, a Inglaterra [fl.
175] a Anto de Souza de Maçedo, e a Olanda a Anto de Souza de Tavares, e hey por bem q a cada hu delles, haja ajuda
de custo, por esta ves, para se embarcar duzentos mil rs, e de ordenado cada mez emqto durar a embaixada, çincoenta
mil rs (...)”. Decreto para o Conselho da Fazenda “Sobre Embaixadores” [Lisboa, 27/12/1640], A. N.T.T./Ministério do
ro
co
Reino, Livro 161, fls. 174v-175. “Tenho nomeado para hirem por meus embaixadores à França o Mont mor Fran de
Mello, a Inglaterra, Dom Antão de Almada, e a Olanda Tristão de Mendonça, e hey por bem q cada hum delles haja de
custo desta vez pa se aprestar, tres mil cruzados, e de ordenados em qto durar a embaxada quinhentos ttzdos [fl. 175v]
cada mez (...)”, Decreto para o Conselho da Fazenda “Sobre Embaixadores” [Lisboa, 27/12/1640], Idem, fls. 175-175v.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
31
Ultramarinas, e especialmente à Índia86 - percebendo-se, por trás desta ultima iniciativa, a
tentativa de cooptar em Lisboa os interesses dos homens de negócio que “tratão na Índia” e
enviar algum socorro militar87. À grande esperança de uma cessação imediata de hostilidades
com os Países Baixos, e à regularização dos intercâmbios mercantis com os países do Norte,
associa-se a certeza sobre a resposta dos poderes locais no ultramar aos recentes sucessos no
Reino88. Esperanças e certezas generalizadas entre aristocracia e clero, que parecem enxergar
apenas o risco imediato de um bloqueio naval hispânico à Lisboa89. Mesmo as medidas de
emergência para reorganizar a fazenda real apontam principalmente para as necessidades do
Reino, procurando-se atualizar os contratos já realizados90, e captar recursos com objetivo de
86
Já em 14 de Dezembro de 1640, D. João IV despachava favoravelmente uma consulta do Conselho da Fazenda
sobre “as ordens q se passão para o Reyno de Angola, e Ilha de Cabo Verde & São Thomé, para boa arrecadação da
fazda Real, e da dos vasallos” [Lisboa, s.d], A.N.T.T./Ministério do Reino, Livro 161, Consultas do Conselho da Fazenda,
fl. 1. Em 27 seguinte era à Índia que se ordenava o concerto, apresto e provimento de um navio (tratava-se de um
ra
ro
patacho) “de man que infalivelmente possa sair deste Porto ate 6 de jan , q vem”, Ver: Decreto para o Conselho da
Fazenda “Sobre avizo para a Índia” [Lisboa, 27/12/1640], Idem, fl. 175. O despacho de 29 de Dezembro de 1640
informava que avisos para Angola, Ilhas de Cabo Verde e Madeira, e às mais Conquistas já haviam sido mandados. Cf.
ra
lo
ro
Consulta “sobre os avisos q se devem enviar a Angola, Ilhas do Cabo Verde e Mad , p capitão Diogo Mont e na sua
caravella” [Lisboa, s.d.], Ibidem, fl. 3v. Em 4 de Janeiro, D. João IV respondia à consulta do Conselho da Fazenda sobre
“o modo como se devem enviar ao Brazil os avizos da devida recuperação de V. Mgde a estes Reynos” informando que
assy se ordenara pla Secretra. Cf. Ibidem, fl. 5.
87
“Posto que a necessidade de q ha de sustentar e deffender estes Reynos haja mister todo o cabedal e sustançias da
fazda Real delles, e q se lance mão de tudo o mais q licitamente se puder fazer: todavia considerando q importa igualmte
socorrer o estado da Índia tenho rezoluto, q se faça nesta monção de março cõ a nao nova, e outro navio de bom porte,
te
enviando em ambos até quatrocentos homens, de mais de g do mar. (...)”.
to
o
“E q ao cabedal q hão de levar para a compra da Pimenta se vera no Cons o papel incluso q sobre Elle se me deu,
& conferindo o q contem e tratandosse de dispor cõ os homens de negço q tratão na Índia, e cõ os mais q tinhão em
ro a
Castella as correspondencias q agora lhe faltão, de que enviem a Índia d p se fazer por sua conta a carga da Pimenta
te
tos
das naos, ou p della, Pagando os dr q for justo (...)”, Decreto para o Conselho da Fazenda “Sobre a nao nova e
galeão q ham de hir a Índia” [Lisboa, 05/01/1641], A.N.T.T./Ministério do Reino, Consultas do Conselho da Fazenda,
Livro 161, fls. 178-178v. A limitação de recursos impede o envio do galeão, e a nau agora devia seguir viagem ao lado
ro
o
do patacho mencionado. O projeto de recorrer à praça de Lisboa, tratando “p cõ os homens de neg de mayor cabedal
a
o
& mais confidençia (...) p q tudo esteja prestes por todo o mes de fr ”, entretanto, permanece de pé. Ver Decreto para o
Conselho da Fazenda sobre o “Pataxo q se mandara hir a Índia” [Lisboa, 12/01/1641], Idem, fls. 181v-182.
88
Como se viu nas notas acima, a respeito do envio de uma nau com cabedal para a pimenta e de uma pequena força
de 400 homens, que não seriam suficientes para forçar a entrada em Goa caso se acreditasse que esta permanecia fiel
aos Habsburgos. O mesmo se pode dizer da consulta que procurava dispor sobre a arrecadação da fazenda real e dos
vassalos em Guiné, S. Tomé e Angola, citada à nota 86. Para o Brasil, procurava-se obrigar aos mestres de duas
caravelas que estavam carregando no porto de Lisboa a levarem a quantidade de mantimentos que “boamente puderem
a respeito de seus portes”, porque era de grande importância mandar-se “aquelle estado em todas as embarcações q
no
de quaesquer portos do R partirem para elle sal farinhas, bacalhao, vinhos, aseites & outros mantimentos”. Cf. Decreto
para o Conselho da Fazenda sobre “Mantimentos para o Brasil” [Lisboa, 21/01/1641], A.N.T.T./Ministério do Reino, Livro
161, fl. 184v. Vale lembrar que o navio de aviso encarregado de levar as notícias da aclamação à Bahia só chegou em
15 de fevereiro de 1641. Em Angola, por outro lado, as notícias só chegaram em abril. Cf. SERRÃO, Joel. História de
a
Portugal. vol. 5 (1640-1750). Lisboa, Editorial Verbo, 1982 (2 edição), p. 98; p. 107.
89
No que não estariam equivocados. Em meados de fevereiro de 1641, uma “Junta de Guerra de Extremadura e
Algarves”, criada especialmente para lidar com a sublevação de Portugal, recomendava a Filipe IV um ataque frontal em
que uma Armada bloquearia a costa enquanto o exército penetraria por Elvas e Ayamonte, repetindo 60 anos depois a
a
estratégia de Filipe II quando da 1 invasão de Portugal. Descartada esta possibilidade em favor da concentração de
esforços na Catalunha, era ao bloqueio econômico que se recorria, visando impedir a comunicação do Reino com as
colônias e negando-lhe o acesso à prata. Neste caso, também com recurso ao corso. Cf. VALLADARES, Rafael. Filipe
IV y la Restauración de Portugal. Málaga, Editorial Algazara, 1994, pp. 31-38; pp. 95-161.
90
Cf. Consulta “Sobre o provimento de Pólvora e Armas pa o Rno e chamar pa isso os assentistas“ [Lisboa, s.d.], com
despacho régio favorável, em Lisboa, a 17 de Dezembro de 1640, in A.N.T.T./Ministério do Reino, Consultas do
Conselho da Fazenda, Livro 161, fl. 2; Consulta “sobre se guardarem ao Contratador das terças todas as leis provisões
e regimentos que em favor della são passadas”, com despacho régio favorável, em Lisboa, a 10 de Janeiro de 1641, in
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32
complementar os tributos em curso91, enquanto não se dá início à coleta da contribuição votada
em Cortes. Certezas à parte, e apesar da importância do Ultramar para o fisco régio, tudo ficava
pendente de decisões que escapavam ao controle do novo centro político.
Obviamente, no que diz respeito às Conquistas, D. João IV tinha a guerra a seu favor.
Tanto no Índico, quanto no Pacífico e no Atlântico, vinte anos de conflitos contínuos cobraram um
alto preço sobre os interesses locais. Uma mudança de regime prometia a paz que os Filipes se
mostraram tão relutantes em aceitar. Mas sessenta anos de pertencimento à Monarquia Hispânica
tinham que ser pesados na balança. Pernambuco não contava mais politicamente, e dele não se
esperaria nada enquanto os embaixadores não comunicassem os resultados das primeiras
negociações. Mas a Bahia e o Rio de Janeiro, teriam as mesmas queixas sobre o último Filipe que
os povos do Reino? A remota Índia e o Extremo Oriente, que motivos teriam para abandonar sua
fidelidade aos Habsburgos em favor de um rei igualmente distante, mas não mais de uma extensa
monarquia, e sim de um reino pequeno e sem recursos?
Cabe observar que, ao contrário do que sucedera às elites locais do Reino, Madri havia
pedido pouco às duas principais câmaras do Brasil durante o período do conflito. Havia, antes de
tudo, o precedente da Armada de 1625, que prontamente acudira aos apuros da Bahia. De fato, a
rápida reação da Coroa fora uma importante causa na mudança da estratégia neerlandesa.
Pernambuco pareceu então muito mais interessante, porque capitania donatarial, e sem os
recursos defensivos com que contava a Bahia, capitania régia92. Apesar da proximidade do
inimigo, decorreriam oito anos antes que a Bahia sofresse um novo ataque, outra vez repelido
graças às medidas preventivas adotadas pelo governador-geral, reconhecidas pelos neerlandeses
quando se viram perante os muros de Salvador93. Além da tentativa de impor uma contribuição
sobre o açúcar, em 1631, estendida a todo o Estado do Brasil e abandonada devido à resistência
das elites locais, nenhum outro tributo foi imposto pelos Habsburgos, correndo o esforço de guerra
Idem, fl. 7; Consulta “sobre se remover o contrato das terças do Rno a Jorge Frz de Oliveira”, com despacho régio de 1o
de fevereiro de 1641, in Ibidem, fl. 12v-13; Consulta “sobre se ajustar contas cõ os assentistas do socorro do Brazil e se
lhe remover o Contrato do Consullado q por arrendamento lhe foy dado em consignação”, com despacho régio de 13 de
fevereiro de 1641, Ibidem, fl. 15.
91
Cf. Consulta “sobre correrem as meas annatas que estão paradas, e se ordenar aos tribunaes do Paço, Fazda e
Consciencia, como se ha de continuar este dirto até outra ordem de V. Mgde”, com despacho favorável de D. João IV de
14 de Dezembro de 1640, in A.N.T.T./Ministério do Reino, Consultas do Conselho da Fazenda, Livro 161, fl. 1v;
Consulta “sobre correrem os direitos do Real dagoa 4a parte do cabeção das çizas, e meas annatas, e se extinguirse as
da
juntas do dezempenho e da faz ” com despacho favorável de D. João IV em 17 de Dezembro de 1640, in Idem, fl. 1v’;
Consulta “sobre a Meza da Consa fazer Relação das Comendas e bens Eccos q neste Rno tem pas moradoras em Casta
tos
para se darem ao sustento dos lugares de África em lugar dos 34 q que tinhão de consignação nos Portos secos”,
com despacho favorável de D. João IV de 17 de Dezembro de 1640, in Ibidem, fl. 2; Consulta “Sobre se haver de
continuar com a cobrança da ultima imposição do sal que se cobravão para a coroa de Castella e sobre se haver de dar
despacho logo a oito navios que estão no porto da villa de Setuval”, com despacho favorável de D. João IV de 20 de
Dezembro de 1640, in Ibidem, fl. 2v.
92
Sobre a precariedade das defesas de Pernambuco, Cf. BOXER, Charles. The Dutch in Brazil. Oxford at the Clarendon
Press, 1957, p. 32; p. 39
93
BOXER, Charles. Idem, p. 87.
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33
quase que exclusivamente por conta dos pernambucanos e da Coroa
94
. De fato, estes socorros
podem ter sido a única causa de contrariedade para a população de Salvador, devido à
necessidade de prover o sustento de milhares de soldados e os distúrbios advindos de seu
aquartelamento temporário na cidade95. Os conflitos entre os chefes militares castelhanos e
italianos e o governador-geral pouco devem ter afetado os interesses dos senhores de engenho.
Na verdade, a tomada de Pernambuco pode mesmo ter trazido ganhos inesperados para
esses últimos. Ambas as capitanias passavam por dificuldades devidas ao endividamento dos
senhores de engenho e à queda do preço do açúcar no mercado internacional pelo menos desde
o início da década de 162096. A destruição provocada pela guerra nos canaviais e engenhos
pernambucanos gerou uma escassez de oferta que só pode ter favorecido os produtores
baianos97. Escápula quase exclusiva de açúcar a partir de 1635, quando os neerlandeses
concluem suas operações militares ao redor da mata pernambucana, inviabilizando o uso dos
pequenos portos de escoamento ao sul e ao norte do Recife, a Bahia passa a receber melhores
preços pelo seu açúcar98. Apesar da atuação agressiva do corso, a resposta rápida dos
armadores e mestres de navios à alta dos custos de transporte permitiu manter o circuito
açucareiro ativo. Mesmo os comerciantes, que poderiam se considerar os principais prejudicados,
elaboraram estratégias capazes de contornar a elevação dos fretes99. O quadro seria mais
favorável caso o governador geral não interviesse, retendo os navios em Salvador entre 16341636, enquanto despachava cartas de corso contra os neerlandeses100. De qualquer maneira,
deve-se ter em conta que o fechamento do mercado pernambucano ao tráfico negreiro desviou a
oferta para os portos de Salvador e do Rio de Janeiro. Se a guerra permanecesse restrita ao
Nordeste do Brasil, poucas seriam as queixas de suas elites locais.
Dificuldades comerciais à parte, parece então ter sido a investida holandesa de 1638, o
fracasso da tentativa de restauração de Pernambuco, em janeiro de 1640, e a destruição do
94
Sobre o financiamento da Guerra em Pernambuco e a tentativa de impor um tributo sobre o açúcar em 1631, Cf.
MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada: Guerra e Açúcar no Nordeste: 1630-1653. Rio de Janeiro, Toopbooks,
1998 (2a edição), pp. 180-185.
95
BOXER, Charles. Op. cit., p. 91.
96
MELLO, Evaldo Cabral de. . Op. cit. pp. 88-91; SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na
sociedade colonial. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, pp. 153-157.
97
Idem, pp. 157-158.
98
Para as operações militares que finalizaram a conquista da Várzea pernambucana em 1635, cf. BOXER, Charles.
Op. cit. pp. 53-54; pp. 58-60; Sobre a importância dos pequenos portos do sul do Recife para o escoamento do açúcar e
o impacto da razia holandesa sobre a produção, Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. Op. cit. pp. 95-102.
99
A partir dos anos vinte, estas estratégias consistiriam: a) no rearranjo da rede portuária, com o aproveitamento dos
recursos navais dos portos do norte; b) no recurso a navios de maior calado, como as urcas estrangeiras; c) na
verticalização do setor de transporte, com investimentos de comerciantes, que se cotizavam na compra de espaços na
armação dos navios; d) no aumento das viagens sem escalas. Tudo em função das expectativas de lucros geradas pela
alta do preço do açúcar causada pela desestruturação da produção açucareira pernambucana e pelo aumento da
procura por transporte. Cf. COSTA, Leonor Freire. O Transporte no Atlântico e a Companhia Geral do Comércio do
Brasil (1580-1663). Lisboa, CNCDP, 2002, passim.
100
Idem, p. 71.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
34
recôncavo levada a cabo por Jan Conerliszoon Lichthart, logo em seguida, que fizeram a balança
pender em favor de um rompimento com Madri. Tanto o ataque a Salvador quanto a Armada do
Conde da Torre apontavam para a impossibilidade de convivência pacífica entre o Brasil holandês
e os territórios de Sua Majestade Católica no Brasil. A perda de uma armada tão poderosa e a
tanto custo aprestada augurava, por sua vez, um longo período de abandono por parte de Madri e
Lisboa101. A iniciativa do marquês de Montalvão, ao aceitar negociar uma trégua com os
neerlandeses à revelia de Madri, corresponderia, neste sentido, às expectativas dos senhores de
engenho baiano102, e mesmo às esperanças dos que haviam abandonado Pernambuco entre
1630 e 1637
103
. A “Restauração” encontraria então uma elite local interessada em manter as
vantagens comparativas recentemente obtidas, na certeza de que o acesso exclusivo aos
escravos angolanos inviabilizaria a concorrência neerlandesa em Pernambuco, a braços com a
reconstrução do sistema produtivo.
Não se sabe o conteúdo da carta enviada por D. João IV ao marquês de Montalvão. Mas
caso confirmasse as tréguas negociadas entre o vice-rei e Nassau, e anunciasse a intenção de
estabelecer uma paz duradoura com os Países Baixos, não haveria mais motivos – aos olhos da
elite local - para arriscar-se por Madri na defesa de interesses que não lhe diziam diretamente
respeito. A deposição e posterior prisão de Montalvão, atribuída à atrapalhada intervenção de um
jesuíta, deveu-se provavelmente a disputas locais, nas quais as ligações entre o vice-rei e os
inacianos da Bahia podem ter tido algum peso. Mas o papel destes últimos nos eventos da
aclamação provavelmente foi menos relevante para a tomada de posição da elite local do que no
Rio de Janeiro.
A situação das “Capitanias do Sul” era muito mais complicada104. A notícia da aclamação
encontrou-as em pé de guerra, devido às disputas entre os jesuítas e os preadores de índios, e
101
Angústia bem expressa no sermão do Padre Vieira, que ao se referir ao fracasso da expedição do conde da Torre,
lamentava: “perderam os derrotados e tristes conquistadores o mar, perderam a terra, perderam a empresa, perderam a
esperança, e nós que neles a tínhamos fundado também a perdemos”; Passagem que permite João Lúcio de Azevedo
observar que “A muitos acudia a idéia que valia a pena deixar Pernambuco já perdido (...) aos holandeses, para se
poder conservar a Baía”. Após a razia holandesa no recôncavo, esta angustia daria lugar ao desespero, quando, já
tendo concluído que “Deus não quer a restauração do Brasil”, Antonio Vieira ameaçava a divindade, prognosticando-lhe
o arrependimento certo por permitir acabar-se “no Brasil a cristandade católica”. Cf. AZEVEDO, João Lúcio de. História
de António Vieira. Lisboa, Clássica Editora, 1992 (3a edição), vol. 1, pp. 40-43.
102
Para as negociações entre Nassau e Montalvão, Cf. BOXER, Charles. . Op. cit. pp. 98-100.
103
Para uma narrativa dos eventos que levaram à fuga de parte dos moradores da Várzea de Pernambuco entre 1635 e
1637, Cf. Idem, pp. 58-71. Sobre a “colônia pernambucana” na Bahia, Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. . Op. cit. p. 389;
pp. 392-395. Cf. tb. SCHWARTZ, Stuart. . Op. cit. pp. 57-58.
104
É usual na discussão deste tópico, a relação de São Paulo com a Coroa durante a “Restauração”, fazer-se menção a
“Aclamação de Salvador Bueno”. Embora a reconstrução historiográfica deste evento possa atribuir-lhe alguma
plausibilidade, como argumenta Rodrigo Bentes Monteiro (inserindo-o no quadro de tensões que marcaram a conjuntura
de crise que levou à aclamação do outro rei, em Portugal), o completo silêncio a respeito do evento nas consultas do
Conselho Ultramarino, apesar do envio de letrados para devassar do governo de Salvador Correia de Sá e da expulsão
dos jesuítas (dada a gravidade da matéria), me convence que ele deve ser situado de fato no plano das possibilidades
históricas. No mais, prefiro ficar com Charles Boxer e admitir que, para além do campo da história das representações
políticas, onde adquire relevância e significado, já correu muita tinta sobre este episódio. Cf. MONTEIRO, Rodrigo
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
35
apenas a intervenção de Salvador Correia de Sá impedira que o Rio de Janeiro seguisse os
paulistas na expulsão daqueles105. Além disso, o próprio governador e outros membros da elite
local tinham fortes conexões com a região do Rio da Prata, através do contrabando e do tráfico de
escravos106. E no Rio de Janeiro, duas facções se digladiavam pelo poder local107. Que vantagens
poderia trazer um novo rei neste quadro?
Para os paulistas, aparentemente muito poucas, já que os jesuítas apoiavam a Casa de
Bragança e podiam contar com o seu favor108. Para os envolvidos no circuito de contrabando entre
Rio, Angola e Buenos Aires, a ruptura poderia ser contornada pela conivência das autoridades
espanholas, permitindo a continuidade do comércio ilegal
109
. Para as facções em disputa no Rio
de Janeiro, um novo rei dependente do apoio local prometia perspectivas promissoras sobre as
chances de sucesso na defesa de seus respectivos interesses. De imediato, portanto, o Rio de
Janeiro teria pouco a perder ao se posicionar ao lado da Casa de Bragança, e um importante
grupo de pressão, como os jesuítas, muito a ganhar. Como Salvador Correia de Sá sempre se
pusera ao lado dos interesses daquela ordem, a gratidão dos inacianos contaria pontos junto ao
novo rei, apoio de que Salvador Correia muito necessitava frente à oposição que sofria na
capitania110.
Tanto na Bahia quanto no Rio de Janeiro, um conjunto diverso de fatores pareceu ter
pesado na decisão dos respectivos poderes locais de apoiar o novo regime. No caso da Bahia, a
expectativa de uma paz que conservasse sua recém-adquirida primazia no mercado açucareiro.
No caso do Rio de Janeiro, a aposta na manutenção do triângulo negreiro e os interesses dos
Bentes. O Rei no Espelho: a monarquia portuguesa e a colonização da América, 1640-1720. São Paulo, Hucitec, 2002,
pp. 33-72. Compare-se, por exemplo, com os eventos de uma outra conquista, bem mais remota que São Paulo, como
Macau, onde as informações, apesar de ambíguas, pelas versões, não permitem dúvida a respeito da existência de
conflitos reais em torno da separação de Portugal da monarquia hispânica e seus efeitos nas relações entre
portugueses e espanhóis no Extremo Oriente. Cf. VALLADARES, Rafael. Castilla y Portugal en Ásia (1580-1680):
declive imperial y adaptación. Leuven, Leuven University Press, 2001, pp. 71-72.
105
BOXER, Charles. Salvador Correia de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola (1602-1686). São Paulo, Cia Editora
Nacional/EDUSP, 1973, pp. 139-147.
106
Cf. ALENCASTRO, Luis Filipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo, Cia das
Letras, 2000, pp. 109-110.
107
BOXER, Charles. . Op. cit. pp. 152-153.
108
Para as relações entre os jesuítas e os Bragança, Cf. VALLADARES, Rafael. . Op. cit. pp.27-35; Cf. tb. ALDEN,
Dauril. The Making of a Enterprise: The Society of Jesus in Portugal, Its Empire, and Beyond, 1540-1750. Stanford,
Stanford University Press, 1996, pp. 91-109.
109
Lisboa, por sua vez, sinalizava que poderia consentir com a continuidade das ligações entre Angola, Rio de Janeiro,
e Buenos Aires, pois liberou o comércio de escravos entre a Guiné e as Índias de Castela em 2 de Fevereiro de 1641.
Cf. “Alvará sobre o comércio das Conquistas com as Índias Ocidentais de Castela” in CCLP, vol. 6 (1641-1647), p. 458.
Sobre a participação dos governadores e outros funcionários régios de Buenos Aires no contrabando, Cf.
MOUTOUKIAS, Zakarias. Contrabando y Control Colonial en el Siglo XVII. Buenos Aires, Centro Editor de América
Latina, 1988, pp. 98-118.
110
Segundo Boxer, a decisão de Salvador Correia de Sá ao receber os despachos de Montalvão poderia ter sido
tomada sob pressão ou influência dos jesuítas, e neste caso, embora Boxer não faça a relação, haveria de se perguntar
porque a posição dos inacianos teria pesado tanto nas considerações do Governador, posto que, até então, eram
aqueles que dependiam do seu apoio para lidar com o descontentamento dos moradores da capitania do Rio de
Janeiro. Cf. BOXER, Charles. . Op. cit. pp. 158-159.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
36
jesuítas e de Salvador Correia de Sá, cada um visando um adversário distinto: os primeiros, os
paulistas; o segundo, a oposição dos desafetos na capitania do Rio de Janeiro. Aqui, o apoio
recíproco entre ambos pareceu jogar um papel fundamental em favor dos Bragança e em
detrimento dos paulistas, que se mostraram tão alheios ao poder do novo monarca, como haviam
sido insubmissos ao dos Habsburgos111.
Em ambos os casos, contudo, as apostas fizeram-se a partir de horizontes muito limitados.
A tomada de Angola, poucos meses depois, jogou um balde de água-fria sobre as possibilidades
de preservação dos interesses mais gerais, tanto da Bahia quanto do Rio de Janeiro. O fracasso
na conclusão de uma paz duradoura com os Países Baixos prognosticava um futuro,
ironicamente, muito menos promissor do que aquele provavelmente antevisto quando dos eventos
da aclamação. O primeiro Bragança não tinha condições, como os Habsburgos haviam tido até
então, de apoiar o esforço de contenção dos neerlandeses ao Nordeste. Sem a ameaça do envio
de armadas de socorro, os navios neerlandeses tinham o Atlântico aberto perante si, e a W.I.C
não precisava temer de imediato uma excursão naval que surpreendesse Recife desguarnecido.
O precedente fora dado pela tomada de Angola, na seqüência da débâcle do poder naval
hispânico em 1640, e nada garantia que a W.I.C não atentaria contra as praças remanescentes do
Brasil, como fizera em 1638 e em 1640. Portanto, ao invés de serem apenas a retaguarda dos
combates entre neerlandeses e pernambucanos, a Bahia e o Rio de Janeiro viam-se agora na
linha de frente de uma guerra desigual.
E quanto a Goa e Macau? Ao contrário do Brasil, o Estado da Índia fora objeto de uma
intervenção muito mais intensa por parte dos Habsburgos, que assistiu seu auge nos primeiros
anos da década de 1630. Dada a capitalidade de Goa112, a composição de sua câmara sofrera
freqüentes interferências do poder régio durante o século XVI, visando ampliar o controle da
111
Que os paulistas provocaram dores de cabeça aos Habsburgos, fica evidente numa carta do conde de Chichón, vicerei do Peru, a Filipe IV, ao sugerir que o rei comprasse a capitania de São Paulo. Para o vice-rei, o comportamento
insubordinado dos paulistas, em seus ataques às missões do Paraguai, só poderia se dever ao fato de estar aquela
capitania em mãos de ”señores particulares”. Cf. VALLADARES RAMÍREZ, Rafael. El Brasil y las Indias españolas
durante la sublevación de Portugal (1640-1668). Cuadernos de Historia Moderna, n. 14, 1993, p. 153. Serenados os
conflitos de 1640, os paulistas demonstraram sua indiferença às demandas do novo regime quando, em 1648, se
recusaram a participar dos esforços para recuperar Angola. Cabe observar que a expectativa dos jesuítas quanto a uma
possível reversão da situação estabelecida em 1640 não se concretizou. Embora o Conselho Ultramarino tenha dado
parecer favorável aos inacianos em 1646, e D. João IV o tenha aprovado, a situação não apresentou mudança
significativa. Quando finalmente se chegou a um acordo entre os inacianos e os paulistas, foram os últimos que ditaram
as condições. Apesar de Boxer se referir à volta dos jesuítas a São Paulo em 1653 como “triunfante”, estes nunca mais
a
recuperaram a influência que detinham na capitania antes da expulsão. Cf. Consulta “Sobre os Padres da Comp de
Jezus serem restetuidos a sua Igreja q tem na Villa de São Paulo”, AHU, Consultas Mistas do Conselho Ultramarino,
Cód. 23 [Lisboa, 16/05/1646], fls 341-341v; BOXER, Charles. . Op. cit. p. 267; p. 316; MONTEIRO, John. Negros da
Terra: Índios e Bandeirantes na Origem de São Paulo. São Paulo, Cia das Letras, 1994, pp. 146-147.
112
Segundo Catarina Madeira dos Santos, a capitalidade de uma cidade se define, a partir dos quinhentos, pelo
exercício de um domínio sobre um reino ou corpo político, correspondendo, ao nível da atuação política do príncipe,
pela instauração de uma corte que o expressa simbolicamente. Cf. SANTOS, Catarina Madeira dos. “Goa é a chave de
toda a Índia”: perfil político da capital do Estado da Índia (1505-1570). Lisboa, CNCDP, 1999, pp. 29-92; pp. 153-197.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
37
Coroa sobre os vereadores e torná-los mais receptivos às demandas por contribuições para a
defesa do Estado da Índia, principalmente a Oeste de Cabo Comorim113. Nesta região, as
oportunidades de ganho eram monopolizadas por fidalgos associados aos comerciantes
vinculados à Rota do Cabo, e o comércio, mais intensamente controlado pelos capitães de
fortalezas e outros funcionários régios114.
Sua contrapartida foi a diáspora de lançados em
direção ao Leste, e a criação de comunidades de comerciantes independentes ao longo do Golfo
de Bengala e Extremo Oriente, as quais se tornaram válvulas de escape para os descontentes ou
para os que não conseguiam integrar os circuitos oficiais de comércio regulados pelas carreiras
controladas pela Coroa115. Contudo, a pressão sobre os fidalgos em Goa e sobre as rotas de
comércio a Leste se manteve em equilíbrio relativamente tenso, mas razoável, até a 2a década do
século XVII, período em que a Coroa conseguia financiar a defesa do Índico por meio do envio de
galeões e prata, deixando aos fidalgos e ao clero uma parte considerável das rendas geradas
localmente.
Mas o envio de galeões para o Índico significava uma enorme imobilização de recursos
alienados dos teatros bélicos da Europa e Atlântico Norte. As necessidades defensivas do Estado
da Índia pareciam favorecer, deste modo, uma maior integração de esforços entre portugueses e
hispânicos no Oriente, a partir das respectivas capitais em Goa e Manila, e das guarnições
sediadas em Malaca e Molucas116. Com a queda de Ormuz, em 1622, e a penetração inglesa no
Golfo Pérsico e Surat, abria-se um flanco perigoso a Oeste do Cabo Comorim, região que, até
então, fora poupada das investidas neerlandesas, limitadas ao Arquipélago Indonésio e Golfo de
Bengala.
Uma versão da União de Armas entre as forças de Castela e de Portugal para a defesa do
Oriente passou a estar na pauta política em Madri117, mas esta pressupunha uma maior
intervenção régia nos assuntos internos do Estado da Índia, e era vista com suspeita, tanto pelos
fidalgos portugueses, temerosos de perderem influência, quanto pelos comerciantes ligados às
rotas intrasiáticas – no Golfo de Bengala e Extremo Oriente - que escapavam ao fisco. O governo
do conde de Linhares (1629-1635) marcou o ápice da política habsburgo de reforma do sistema
fiscal do Estado da Índia, com o objetivo de provê-lo – por meio de seus próprios recursos, que se
113
BOXER, Charles. Portuguese Society in the Tropics: The Municipal Councils of Goa, Macau, Bahia and Luanda,
1510-1810. Madison, University of Wisconsin Press, 1965, pp. 12-15, pp. 18-22.
114
SUBRAHMANYAM, Sanjay. O Império Asiático Português, 1500-1700: uma história política e econômica. Lisboa,
DIFEL, 1995, pp. 305-349.
115
Idem, pp. 351-379; cf. tb., do mesmo autor: SUBRAHMANYAM, Sanjay. Comércio e Conflito: A Presença Portuguesa
no Golfo de Bengala, 1500-1700. Lisboa, Edições 70, 1994, pp. 35-63; pp. 85-109; pp. 111-139; BOYAJIAN, James.
Portuguese Trade in Ásia under the Hasburgs, 1580-1640. Baltimore, John Hopkins University Press, 1993, pp. 146165.
116
VALLADARES, Rafael. Castilla y Portugal en Ásia (1580-1680), pp. 53-55.
117
Sobre o projeto de uma “União de Armas” entre os diversos domínios da Monarquia Hispânica, cf. ELLIOT, John. Op.
cit., pp. 244-277.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
38
sabia disponíveis em mãos de interesses particulares – com os meios defensivos necessários
para conter o avanço neerlandês no Golfo de Bengala
118
. A Companhia da Índia inseria-se nesta
política de fortalecimento do poder regulatório da Coroa, e sofreu a oposição cerrada daqueles
interesses119.
Além disso, as iniciativas fiscais de Linhares também afetaram o clero120, e particularmente
os jesuítas, ameaçando suas rendas, em nome da defesa do patrimônio régio, de modo muito
semelhante ao conflito que opôs eclesiásticos e oficiais da Coroa em Portugal pela disputa das
capelas alienadas – em princípio, ilegalmente -, à Igreja, e que terminou por resultar na expulsão
do Coletor Apostólico121. Tanto em Portugal quanto na Índia, os jesuítas confrontaram Madri,
sendo que na Índia, além da ameaça que pairava sobre seu patrimônio, pesava a concorrência
das demais ordens, instrumentalizada pelos Habsburgos para fragilizar o padroado régio da Coroa
portuguesa em favor de missionários estrangeiros, geralmente de ordens rivais, como os
capuchinhos e os dominicanos. As perdas da Etiópia, em 1632122, e do Japão, em 1639123,
importantes campos de atuação inaciana e objetos de propaganda pró-jesuítica na Europa124,
forneceram munição para as demais ordens em suas tentativas de consolidar posições no
Oriente, e justificaram – em função da redução do número de missionários portugueses – o envio
de estrangeiros, cujo número aumentou mesmo no interior da própria organização jesuítica125. A
crise por que passou a ordem jesuíta na Ásia, durante a década de 1630, apenas acirrou sua
oposição a qualquer iniciativa que pusesse em riscos as missões remanescentes e o controle que
exercia sobre o espaço oriental. Como os Habsburgos se aproximavam da Propaganda Fide para
furar o bloqueio ao acesso de missionários estrangeiros – leia-se italianos e espanhóis – erigido
pelo clero regular português no Estado da Índia e no Extremo Oriente, os jesuítas portugueses
facilmente identificaram Madri como o inimigo a ser atacado e desmobilizado126.
Tal oposição fica evidente na participação que os jesuítas tiveram durante as negociações
da Trégua com os Ingleses na Ásia, assinada em 1635. A pressão exercida por estes e pela
Câmara de Goa forçou o principal representante da política habsburgo de reforma no Estado da
118
DISNEY, Anthony. The Fiscal Reforms of Viceroy Count of Linhares at Goa, 1629-1635. Anais de História de AlémMar, vol. III, 2002, pp. 259-275.
119
DISNEY, Anthony. A Decadência do Império da Pimenta. Lisboa, Edições 70, 1981, pp. 169-174.
120
Cf. BETHENCOURT, Francisco. O Estado da Índia. In: BETHENCOURT,Francisco Bethencourt e CHAUDHURJ,
Kirti. História da Expansão Portuguesa: Do Índico ao Atlântico (1570-1697). Lisboa, Temas & Debates, 1998, p. 312.
121
ALDEN, Dauril. Op. cit. pp. 98-99; pp. 438-439.
122
Idem, pp. 154-157
123
BOXER, Charles. The Christian Century in Japan, 1549-1650. Manchester, Carcanet Press, 1993 (1a ed. 1951), esp.
“Jesuitas and Friars”, pp. 137-187; “Sakoku, or the Closed Country”, pp. 362-397.
124
CURTO, Diogo Ramada. Cultura Escrita e Práticas de Identidade. In: BETHENCOURT,Francisco Bethencourt e
CHAUDHURJ, Kirti. História da Expansão Portuguesa: Do Índico ao Atlântico (1570-1697). Lisboa, Temas & Debates,
1998, pp. 469-477; VALLADARES, Rafael. Op. Cit. pp. 27-35.
125
Idem, pp. 59-60.
126
Sobre a Propaganda Fide, cf. BOXER, Charles. A Igreja e a Expansão Ibérica. Lisboa, Edições Setenta, 1989 (ed.
americana, 1978), pp. 102-105.
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39
Índia, o conde de Linhares, a encetar negociações com os ingleses, frente à premente
necessidade de concentrar recursos escassos na defesa de Malaca, sem consultar Lisboa ou
Madri127. Esta vitória dos interesses locais do Estado da Índia contra a Coroa indicava que
qualquer opção política da parte da elite local, dos comerciantes, e dos jesuítas, passaria por
manter à distância o poder régio. O sucessor imediato de Linhares aparentemente preferiu adotar
uma política conciliatória, postando-se ao lado dos nobres descontentes e do clero na crítica aos
“abusos” do conde e a sua venalidade128. Mesmo assim, este comportamento não foi suficiente
para reduzir a prevenção contra Madri, que de fato – numa medida radical característica do último
ano dos Habsburgos em Portugal – ameaçou liberar o comércio das Conquistas portuguesas aos
vassalos do Rei Católico129. Do ponto de vista daqueles grupos, um rei mais fraco seria muito mais
desejável para a preservação dos seus interesses – aparentemente compatíveis com o avanço
dos neerlandeses e a presença inglesa no Golfo Pérsico – do que um rei forte o suficiente para
contrariá-los.
Macau surgira como resultado da diáspora portuguesa a partir de Malaca. Sua existência
dependia da exploração das rotas comerciais que integravam a China à Indonésia e ao Japão.
Durante um terço de século, Macau foi praticamente ignorada pelo Estado da Índia, e apenas em
1583 a colônia portuguesa foi oficialmente reconhecida por Goa130, com a criação de uma câmara
e a concessão dos privilégios da Câmara de Évora. Mesmo após, a colônia de Macau continuou
gozando de grande autonomia nos assuntos internos, fazendo-se a Coroa presente apenas pela
administração da carreira do Japão, vendida pelo vice-rei a nobres ou cedida a terceiros
(câmaras, nobres, clero) que por sua vez as arrendavam. Este sistema permitia aos moradores de
Macau concorrerem pela compra das viagens, preservando seus interesses131.
Somente na década de 1620, a Câmara de Macau se viu forçada a aceitar a interferência
de Goa nos assuntos internos, pela precariedade de sua posição frente aos neerlandeses. Até
então, o capitão-mor da nau do Japão exercia as funções de governador apenas durante os
meses em que aguardava a monção em Macau. A nomeação pelo vice-rei de um capitão-mor
trienal, a partir de 1623, responsável pela defesa da cidade, e compartilhando com a câmara o
papel de representante do poder régio no Extremo Oriente, tornou-se uma constante fonte de
atritos, fosse porque, sem recursos próprios, o capitão-mor tinha que recorrer às rendas da
câmara ou à comunidade mercantil, fosse porque sua posição permitia-lhe imiscuir-se nas
127
ALDEN, Daurin. Op. Cit. pp. 171-175; DISNEY, Anthony. Op. Cit. pp. 182-188.
SUBRAHMANYAM, Sanjay. O Império Asiático Português, pp. 232-233; pp. 331-332.
129
VALLADARES, Rafael. Op. Cit. pp. 63-64.
130
BOXER, Charles. Op. Cit. pp. 43-46.
131
SOUZA, George Bryan. A Sobrevivência do Império: Os Portugueses na China (1630-1754). Lisboa, Publicações
Dom Quixote, 1991, pp. 31-36. Cf. tb.: BOXER, Charles. The Great Ship from Amacom: Annals of Macao and the Old
Japan Trade, 1555-1640. Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1963, pp. 8-11.
128
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
40
operações comerciais com o Japão132. Mas a câmara ainda reservava para si a captação das
rendas oriundas das demais rotas mercantis do Mar da China, e seu poder de barganha
permanecia relativamente preservado.
Os conflitos mais sérios se originaram, como na Índia, das reformas fiscais encetadas pelo
conde de Linhares. A nomeação de administradores para as viagens do Japão, Manila, e
Macassar, significava uma intromissão direta da Coroa nas fontes de renda da câmara, e uma
ameaça aos interesses dos comerciantes particulares. Em contrapartida, a Coroa se
responsabilizaria pelos custos de manutenção da guarnição, até então arcados pela câmara, o
que resultava na redução do potencial de negociação da elite local.
A tensão apenas poderia ser agravada pela perda do mercado Japonês. A expulsão dos
portugueses do Japão reforçou os vínculos informais entre Macau e Manila. À intensificação da
presença régia nos assuntos locais correspondeu uma maior integração de Macau ao circuito da
prata que ligava-a às Filipinas e ao México133. Do mesmo modo que no caso da Índia, um poder
fraco em Lisboa contemplaria os interesses mercantis em Macau e permitiria a manutenção dos
vínculos com a sua única fonte de abastecimento de prata. A ruptura com Madri seria aceitável
apenas nestes termos, e durante os dois primeiros anos após 1640, Macau gozou de uma
autonomia que não desfrutava há vinte anos. A chegada da notícia da Aclamação, levada por um
importante membro da comunidade macaense, coberto de mercês da parte do novo rei134, e o
temor por parte da Coroa de que Macau se pusesse ao lado dos Habsburgos pareciam prometer
uma maior margem de negociação à elite local135.
Assim, não foi unicamente a ameaça neerlandesa que levou quatro das mais importantes
câmaras ultramarinas a se postarem ao lado dos Bragança em 1641-42, mas uma configuração
muito diversificada de interesses locais que esperavam, por intermédio do novo regime, garantir
vantagens recentemente adquiridas, como no caso da Bahia, resolver disputas internas, como no
caso do Rio de Janeiro, ou aproveitar-se de uma Coroa que se afigurava menos apta a ameaçar
os interesses das elites locais, como no caso de Goa e Macau. E no tocante ao Rio de Janeiro e
Macau, conivente com a manutenção de ligações comerciais que a guerra – em princípio –
inviabilizava.
Acostumadas a uma intervenção muito mais ativa da Coroa nos assuntos locais, Goa e
Macau se opuseram sistematicamente aos esforços reformistas da década de 1630. Este
comportamento leva a crer que as elites locais acreditavam ser possível lidar – por seus próprios
meios – com a presença inglesa e neerlandesa no Índico e no Pacífico. Apesar das queixas de
132
SOUSA, George Bryan. Op. Cit. pp. 36-37.
BOYAJIAN, James. Op. Cit. pp. 236-237.
134
Cf. CURTO, Diogo Ramada. Op. Cit. pp. 477-480.
135
Cf. VALLADARES, Rafael. Op. Cit. pp. 67-72.
133
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
41
Sevilha, Macau e Manila continuavam desviando a prata mexicana para os circuitos do Mar da
China, e os fidalgos e clero em Goa preferiam preservar suas fontes de renda, e delegar o esforço
defensivo exclusivamente ao poder real. Como em Portugal, as demandas por contribuições
encontraram a partir da década de 1620, na Índia, as mesmas respostas: exaustão dos povos e
falta de recursos para prover a defesa. Mas ao contrário das elites locais em Portugal, a
Aclamação não resultou de imediato na criação de canais capazes de mobilizar os recursos até
então negados136. O agravamento da situação a partir de 1635 provavelmente serviu apenas para
que os interesses locais cerrassem fileiras contra qualquer iniciativa neste sentido.
No Atlântico, ao contrário, a situação era mais promissora e a integração com Lisboa mais
forte. Obviamente, a Bahia e o Rio dependiam da manutenção dos vínculos comerciais com
Portugal para o escoamento do açúcar e a aquisição de cativos137. Mas a boa vontade com que
ambas reconheceram o novo rei sem saber que destino seguiria Angola aponta para fatores de
ordem política que não se esgotam na esfera da circulação, mais evidentes no Rio de Janeiro do
que na Bahia. De qualquer modo, mesmo neste último caso, a importância acrescida que esta
última adquirira para a Coroa prometia que os interesses locais seriam ouvidos e apreciados, o
que pode não ter acontecido durante os longos governos que marcaram a década de 1630138,
basicamente preocupados em apoiar as tropas que lutavam em Pernambuco e fustigar a várzea
por meio de expedições de razia após a sua retirada definitiva.
Como o Reino não se dispunha a desviar recursos para o ultramar, era aos interesses
locais que a Coroa deveria apelar para conter a investida neerlandesa, enquanto uma paz
duradoura não fosse negociada. Contudo, os interesses de comunidades tão distintas como Goa e
Bahia, Rio de Janeiro e Macau demandavam canais capazes de negociar sua aquiescência e
garantir sua lealdade. Com a guerra prestes a irromper na fronteira com Castela, e a necessidade
de continuamente transigir com as demandas das elites concelhias e da aristocracia no Reino, o
sistema polissinodal podia ter alcançado o limite de sua capacidade para dar conta da agenda
ultramarina. A criação do Conselho de Guerra, por outro lado, apontava para um modelo de
gestão capaz de conciliar os interesses locais e atender as expectativas da fidalguia disposta a
pegar em armas pelo novo regime. Uma solução semelhante poderia parecer igualmente
136
Na verdade, a correspondência de D. João IV com o vice-rei da Índia, conde de Aveiras (1640-1645), entre 1641 e
1643, deu grande atenção ao embarque da pimenta e o provimento das naus, para os quais solicitava o emprego das
rendas disponíveis. Cf. A.N.T.T./Documentos Remetidos da Índia, Livros 48 (1640-1644), 49 (1641-1642), 50 (16411644), 52 (1643). Apenas a partir de finais de 1643, D. João IV começa a tratar das petições dos interesses locais.
Idem, Livro 53 (1643), Livro 54 (1644).
137
Cf. ALENCASTRO, Luis Filipe de. Op. Cit. pp. 11-41.
138
Apenas dois governadores-gerais foram nomeados ao longo da década: Diogo Luís de Oliveira, de 1627 a 1635, e
Pedro da Silva, de 1635-1639. Fernando de Mascarenhas, conde da Torre, ocupou o Governo apenas durante a estadia
da Armada de Restauração em Salvador, e o marquês de Montalvão não chegou a completar o primeiro ano do seu
vice-reinado.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
42
adequada para as Conquistas, onde parte daquela mesma fidalguia era considerada fundamental
na condução do esforço de guerra e as elites locais prometiam um leque bastante pulverizado de
questões a serem cuidadosamente ponderadas.
Todavia, se a guerra de fronteira mobilizava a fidalguia do Reino, o Ultramar não mereceu
desta a mesma atenção. Á Índia se tornara ao longo dos últimos 150 anos a reserva de um grupo
pequeno de famílias que ocuparam quase a metade das nomeações para o cargo de vice-rei ou
governador-geral139, e se parecia interessar a alguém, além delas, era à pequena nobreza do
Reino. Por sua vez, a nomeação para um cargo nas Conquistas do Atlântico, embora menos
distantes, significava um afastamento ainda demasiado longo da Corte, sem as compensações
em termos de prestígio e mercês que a Índia garantia. Ao contrário do Conselho de Guerra, que
atendia imediatamente aos interesses da fidalguia, um Conselho para as partes ultramarinas não
tinha o mesmo apelo e provavelmente não contaria com o mesmo apoio. Seria uma iniciativa
exclusivamente da parte do pequeno grupo de conselheiros que cercava D. João IV e dependeria
exclusivamente da aprovação régia para desincumbir-se das suas atribuições.
Edval de Souza Barros é doutor em História pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro, professor substituto de História Ibérica e História da América Colonial na
Universidade Federal de Ouro Preto e pesquisador associado ao LAHES
(Laboratório de História Econômica e Social) da Universidade Federal de Juiz de
Fora.
139
As famílias dos Castro, Coutinho, Mascarenhas, Meneses e Noronha. Cf. SUBRAHMANYAM, Sanjay and THOMAZ,
Luiz Filipe. Evolution of Empire: The Portuguese in the Indian Ocean during the sixteenth-century. In: TRACY, James
(Ed). The Political Economy of Merchant Empires. Cambridge, Cambridge University Press, 1991, p. 325.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
43
A PARTICIPAÇÃO DOS HOMENS DE NEGÓCIO
NO MERCADO DE BENS URBANOS DO RIO DE JANEIRO
NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII
Antonio Carlos Jucá de Sampaio
Resumo:
Este texto busca analisar tanto as características
estruturais quanto as diversas conjunturas por
que passou o mercado carioca de bens urbanos
entre 1700 e 1750. Trata-se de tema inédito não
só na historiografia brasileira como latinoamericana. Nosso interesse maior, porém, não é
com o estudo do mercado em si, mas sim na sua
utilização como um elemento a mais para a
compreensão da sociedade fluminense de então.
Entre os resultados obtidos, destacamos a
importância da atuação da elite colonial nesse
mercado (representada em nosso estudo por
senhores de engenho e homens de negócio), e
conseqüentemente das transformações sofridas
por esta, sobretudo a separação entre suas
frações agrária e mercantil.
Palavras-chave:
1. Mercado Colonial; 2. Hierarquização Social;
3. Bens Urbanos.
Abstract:
This text looks for to analyze as much the
structural
characteristics
as
the
several
conjunctures why passed the carioca market of
urban goods between 1700 and 1750. It is
unpublished theme not only in the Brazilian
historiography as Latin-American. Our larger
interest, however, it is not with the study of the
market in itself, but in his/her use as an element
the more for the understanding of the fluminense
society of then. Among the obtained results, we
detached the importance of the performance of
the colonial elite in that market (acted in our study
by plantation owners and business men), and
consequently of the suffered transformations for
this, above all the separation among their agrarian
and mercantile fractions.
Key Words:
1. Colonial Market; 2. Social Hierarchization;
3. Urban Goods.
Introdução1
O estudo do mercado de bens urbanos no período colonial é, sem dúvida, empresa das
mais difíceis para o historiador. A maior dificuldade é a inexistência de estudos semelhantes, seja
para o Brasil seja para a América espanhola colonial, que nos permitam estabelecer uma base
comparativa a partir da qual possamos realizar generalizações mais seguras. Há, sem dúvida,
trabalhos de grande qualidade sobre a história urbana do Brasil e, no que interessa mais de perto
aqui, do Rio de Janeiro. Entretanto, estes estão mais voltados à análise dos aspectos fundiários
dessa história do que dos econômicos em sentido mais estrito2. Exceção a esse quadro
encontramos em trabalho recente de Nireu Cavalcanti3, no qual o autor analisa o mercado
imobiliário carioca no início do século XIX. Entretanto, a forma fragmentada como utiliza os dados
1
Agradeço ao CNPq o financiamento da pesquisa que originou este artigo.
Exemplo deste tipo de abordagem encontramos no trabalho de Fania Fridman: FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em
nome do rei. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Garamond, 1999.
3
CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista. A vida e a construção da cidade da invasão francesa até a
chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 276-283.
2
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
44
não lhe permite ir além da superfície do seu objeto, sem chegar a construir verdadeiramente uma
imagem do que seria esse mercado nos estertores do período colonial.
Além disso, ao contrário do que se verifica no setor agrícola, não há informações
qualitativas com as quais possamos cotejar os dados obtidos através das escrituras. O mercado
urbano estava muito longe de ser uma preocupação das autoridades coloniais. Além disso, não
contamos com dados que nos ajudariam a entender melhor esse mercado, pela influência que têm
sobre ele, tais como: as diversas conjunturas mercantis da cidade no período (inclusive do tráfico
de escravos), a atuação econômica de grupos sociais significativos, como os artesãos e os
pequenos mercadores, etc. também faltam informações mais precisas sobre a evolução
demográfica da cidade no período, o que é sem dúvida fundamental para compreendermos esse
mercado. Por tudo isso, o estudo apresentado abaixo possui um caráter algo ensaístico. Mas é
exatamente na sua originalidade que se encontra talvez a sua maior qualidade, e espero que
anime a realização de novas pesquisas sobre o tema.
A opção pela primeira metade do século XVIII vincula-se com uma visão já consagrada na
historiografia brasileira, para a qual esse período é marcado por significativas transformações na
sociedade colonial geradas pela descoberta do ouro no interior da América portuguesa4. Em
trabalho anterior, eu mesmo confirmei tal perspectiva. Mais ainda, percebi que uma das
características mais significativas desse período foi o surgimento de uma elite mercantil
claramente diferenciada dos demais grupos sociais, e que se estabeleceu rapidamente no topo
desta sociedade5. Tal fato fez com que me voltasse para o estudo desse grupo social específico,
visto a partir de então como chave fundamental para compreender a sociedade colonial em sua
totalidade. O texto apresentado aqui é um resultado parcial desses esforços.
A expansão urbana de uma cidade colonial: o Rio de Janeiro no império português
A fundação da cidade do Rio de Janeiro situa-se nos marcos da disputa entre Portugal e
França pelo que era então o sul da nascente América portuguesa. Sem dúvida, o Rio possuía uma
localização estratégica para garantir o domínio lusitano no Atlântico Sul. Não só pela sua
localização geográfica como também pela importância de controlar a baía de Guanabara.
Personagem fundamental da história fluminense, a baía tem sido, no entanto, relegada a segundo
4
Talvez o melhor exemplo da importância dada à descoberta do ouro esteja em: BOXER, Charles R. A idade de ouro
do Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1963.
5
SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio
de Janeiro (c.1650 – c.1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, cap. 1.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
45
plano pela maioria dos historiadores. Essa não era, no entanto, a opinião dos homens da época,
que reconheciam sua importância estratégica num mundo regido pela navegação à vela.
Encontramos exemplo desse reconhecimento nos viajantes, os quais quase sempre descrevem a
baía em tons bastante favoráveis antes de se referirem à cidade. O autor anônimo do “L’Arc-enCiel”, que esteve no Rio em 1748, é um bom exemplo a esse respeito. Segundo ele, “a baía é,
talvez, a maior e a mais cômoda que há no mundo. As montanhas que a envolvem protegem as
embarcações dos ventos e impedem as agitações marítimas. Pode-se ancorar em toda a sua
extensão (...)” 6. M. De La Flotte, com evidente exagero, afirma que a baía “é capaz de conter
muitos milhares de navios” 7.
Todas essas vantagens fizeram Alberto Lamego considerar o Rio de Janeiro pertencia à
categoria das “capitais naturais” 8. Contudo, a transformação dessa vantagem estratégica natural
numa vantagem econômica, bem como do insignificante centro urbano aí criado no século XVI em
algo mais do que um simples ponto de apoio no interior do Império Ultramarino Português não
estava garantida de saída. Dependia, isso sim, da criação de condições que assegurassem o
desenvolvimento da capitania.
Embora fundada em 1565, a cidade só ganha contornos definitivos dois anos depois, com
sua transferência para o morro do Castelo9. Entretanto, se razões de defesa levaram os primeiros
povoadores a aí se localizarem, motivos mais prosaicos, como as exigências do comércio e a
necessidade de água, fizeram com que rapidamente o povoamento se espraiasse pela planície.
Essa descida, no entanto, só ocorreu após a derrota definitiva dos tamoios e a certeza de que os
espanhóis não invadiriam a cidade, o que ocorreu com a União Ibérica, em 158010. Ao longo do
século XVII, a ampliação do controle lusitano sobre o território permitiu tanto a consolidação do
núcleo urbano quanto a ocupação rural da capitania, sobretudo no entorno da baía de
Guanabara11.
Por outro lado, esse espraiamento inicial não significou uma expansão contínua do núcleo
urbano. De fato, a cidade teve que ser conquistada ao mar:
(...) o exagüamento em tal maneira precedeu as construções que a área da cidade
permaneceu quase a mesma por mais de um século, quando em 1769 poucos quarteirões
ultrapassavam a Praça do Rocio, atingindo o Campo de Santana. E a população da cidade
quadruplicara no tempo dos Vice-Reis. É que o traçado original das ruas sobre aterros fora em sua
maior parte concluído ao raiar do setecentos (...) e durante o correr deste século (...) a população ia
6
FRANÇA, Jean Marcel Carvalho (Org.) Visões do Rio de Janeiro Colonial: antologia de textos, 1531-1800. Rio de
Janeiro, José Olympio/EDUERJ, 1999, p. 81.
7
Idem, p. 103.
8
LAMEGO, Alberto R. O homem e a Guanabara. Rio de Janeiro, IBGE/CNG, 1964, p. 163.
9
Há uma vastíssima bibliografia sobre a fundação da cidade. A narrativa mais recente está em: CAVALCANTI, Nireu.
Op. Cit., p. 21-29.
10
FRIDMAN, Fania. op. cit., p. 18.
11
SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. op. Cit, cap. 1.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
46
apenas construindo prédios ao longo de ruas já existentes e penosamente levantadas sobre
pântanos.12
Em outras palavras, o crescimento demográfico da cidade significou mais o adensamento
da ocupação de um perímetro urbano que já se encontrava definido, em suas linhas gerais, no
início do século XVII, do que propriamente uma expansão do mesmo. Os estudos de Eduardo
Barreiros mostram um crescimento considerável da urbe carioca ao longo da segunda metade do
seiscentos, sobretudo através do aumento do número de ruas, tornando assim mais complexa a
sua malha urbana. No século XVIII, esse crescimento foi ainda maior, incentivado pela ocupação
das regiões mineradoras e os vínculos destas com o porto carioca13. Em 1710, a população da
cidade seria talvez de 12.000 habitantes14, número que subiu para 29.147 em 174915, um aumento
superior a 140% em aproximadamente quatro décadas.
Entretanto, a cidade transformou-se também qualitativamente neste período. Obviamente,
tais transformações tinham ligação direta com seu novo papel no interior do império português,
como notou o governador Antônio Brito de Menezes:
A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro [é] opulenta mais que todas as do Brasil, por
razão do seu largo comércio, e serem os seus gêneros os mais preciosos16.
Opulência que não passava despercebida dos estrangeiros. Em meados do século XVIII,
M. de La Flotte, por exemplo, descreve a cidade como a principal do Brasil. Ainda segundo ele, “a
aparência da cidade, construída em forma de anfiteatro, revela muita opulência” 17.
Naturalmente, todas estas transformações refletiam-se no mercado de bens urbanos. As
tabelas abaixo buscam capturar as características desse mercado tão específico através tanto da
análise de seu comportamento diacrônico quanto de seus aspectos estruturais mais evidentes,
como o grau de concentração das operações e a participação no mesmo de senhores de engenho
e homens de negócio.
12
LAMEGO, Alberto R. op. cit., p. 163-171.
BARREIROS, Eduardo Canabrava. “A cidade do Rio de Janeiro de sua fundação aos fins do século XVII”. In: RIHGB,
n° 288. Rio de Janeiro, IHGB, 1970, pp. 199-209.
14
SILVA, Francisco Carlos T., “A morfologia...”, p. 117. Esse número também é dado por Alberto Lamego: LAMEGO,
Alberto R. op. cit., p. 308. Pessoalmente, consideramos essa estimativa bastante modesta. Jonas Finck, em 1711,
estimou que a cidade contava com 4.000 “cidadãos” e 8.000 negros para sua defesa, além de soldados e marinheiros.
Ainda que consideremos essa estimativa exagerada, e que parte desse “efetivo” vivia de fato no entorno rural da cidade,
esses números sem dúvida indicam uma população bem superior à estimativa mais aceita, já que não engloba mulheres
e crianças. De tudo isso, o que fica é uma grande incerteza em relação à veracidade de quaisquer desses números:
FRANÇA, Marcel Carvalho de França. Visões ..., p. 70.
15
LISBOA, Baltazar da Silva. op. cit., p. 176. Este número refere-se aos paroquianos das diversas freguesias. O número
mais divulgado, de 24.397, refere-se somente às pessoas adultas. Repare-se que mesmo o número maior não
representa a população total da cidade, pois só eram considerados paroquianos aqueles aptos a comungar, portanto
acima dos 7 anos de idade.
16
AN, Correspondência dos governadores do Rio de Janeiro – Códice 80, Vol. 1, p. 40 (Março de 1718).
17
Apud: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho (Org.) Visões do Rio de Janeiro Colonial: antologia de textos, 1531-1800. Rio
de Janeiro, José Olympio/EDUERJ, 1999, p. 103.
13
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
47
TABELA 1
Valores médios e medianos dos diversos tipos de propriedades urbanas
(1681-1750)
1681-1700 1711-1720 1721-1740 1741-1750
Média geral
127$988
640$581
730$544
715$377
Mediana geral ¹
87$500
300$000
320$000
400$000
Sobrado - valor
médio
Sobrado - mediana
297$500
2:548$667
2:473$792
2:148$719
255$000
2:800$000
2:400$000
1:680$000
Casas ² - valor médio
176$953
527$417
463$788
646$422
Casas - mediana
132$000
450$000
350$000
450$000
Terreno - valor médio
24$833
164$442
147$573
196$808
Terreno - mediana
17$500
93$340
107$500
145$400
Fonte: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do 1° e 2° Ofícios de Notas do Rio de Janeiro.
OBS: 1- A média geral inclui outros tipos de propriedades urbanas, sobretudo lojas e benfeitorias, para
alguns períodos; 2 – Casas térreas.
TABELA 2
Variação percentual dos valores médios entre os diversos períodos
(1681-1750)
1680 a 1710 1710 a 1720 1720 a 1740
Média geral
400,5
14,04
-2,08
Mediana geral ¹
242,86
6,67
25
-2,94
-13,14
998,04
-14,29
-30
Casas ² - valor médio 198,05
-12,06
39,38
-22,22
28,57
-10,26
33,36
15,17
35,26
Sobrado- valor médio 756,69
Sobrado - mediana
Casas - mediana
240,9
Terreno - valor médio 562,19
Terreno - mediana
433,37
Fonte: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do 1° e 2° Ofícios de Notas do Rio de Janeiro.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
48
TABELA 3
Participação dos diversos tipos de propriedades no total das vendas urbanas
(1681-1750)
T.P.¹
1681-1700
N
%
8,8
Sobrados 7
43
53,8
Casas
37,5
Terrenos 30
0
0
Outros
80
100
Total ²
1711-1720
N
%
12
17,1
35
50
23
32,9
0
0
70
100
1721-1740
N
%
20
17
52
45
40
35
3
2,6
115 100
1741-1750
N
%
20
11,1
113 62,4
44
24,3
4
2,2
181 100
Fonte: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do 1° e 2° Ofícios de Notas do Rio de Janeiro.
OBS: 1 - T.P.: Tipos de propriedades.
TABELA 4
Participação dos senhores de engenho e dos homens de negócio
nas compras de bens urbanos
(1681-1750)
Períodos
1681-1700
1711-1720
1721-1740
1741-1750
SE ¹
599$000
4:324$000
2:950$000
800$000
%
5,9
9,9
3,5
0,6
HN ²
990$000
6:606$673
28:030$790
24:344$865
%
9,7
15,1
33,4
18,8
Fonte: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do 1° e 2° Ofícios de Notas do Rio de Janeiro.
OBS: 1 – Participação dos senhores de engenho; 2 - Participação dos homens de negócio em relação ao
valor total transacionado.
TABELA 5
Participação dos senhores de engenho e dos homens de negócio
nas vendas de bens urbanos
(1681-1750)
Períodos
1681-1700
1711-1720
1721-1740
1741-1750
SE
195$000
5:515$000
4:551$760
450$000
%
1,9
12,6
5,4
0,4
HN
274$000
2:320$000
16:240$000
20:680$000
%
2,7
5,3
19,3
16,0
Fonte: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do 1° e 2° Ofícios de Notas do Rio de Janeiro.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
49
TABELA 6
Concentração do valor total das vendas nas 10% maiores
(1681-1750)
Períodos
1681-1700
1711-1720
1721-1740
1741-1750
Valor
3:620$000
17:160$000
39:971$760
57:291$075
%
35,36
39,12
47,58
44,25
N
8
7
11
18
%
10
10
9,56
9,94
Fonte: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do 1° e 2° Ofícios de Notas do Rio de Janeiro.
TABELA 7
Concentração do valor total das vendas nas 50% menores
(1681-1750)
Períodos
1681-1700
1711-1720
1721-1740
1741-1750
Valor
1:563$000
4:306$569
8:536$412
18:055$420
%
15,27
9,82
10,16
13,94
N
42
35
58
92
%
52,5
50
50,43
50,82
Fonte: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do 1° e 2° Ofícios de Notas do Rio de
Janeiro.
TABELA 8
Participação das diversas formas de pagamento nas vendas urbanas
(1681-1750)
Formas de pagamento
à vista, em dinheiro
a prazo, em dinheiro
em açúcar
em dívidas
Outros
1681-1700
67,74
19,35
0,00
3,23
9,68
1711-1720
72
18,67
0,00
2,67
6,67
1721-1740
77,78
13,49
0,00
1,59
7,14
1741-1750
78,87
10,31
0,00
5,67
5,15
Fonte: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do 1° e 2° Ofícios de Notas do Rio de Janeiro.
A primeira coisa que nos chama a atenção ao analisarmos o comportamento dos preços
dos bens urbanos neste período é sua rápida elevação em relação ao padrão seiscentista. Na
média geral esses valores aumentam nada menos que 400%. Crescimento sem dúvida
impressionante, e que corrobora a noção, generalizada desde Antonil, de que o início do século
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
50
XVIII é marcado por uma inflação galopante, fruto da corrida às Minas18. Naturalmente, esse não é
um fenômeno que fique restrito a tais transações. Se tomarmos o conjunto das escrituras públicas
do Rio de Janeiro, veremos que entre a década de 1690 e a de 1710, seu valor médio aumenta de
349$824 para 1:120$204, numa variação de mais de 220%19.
Outros preços igualmente importantes para a economia fluminense sofrem variações
significativas no período, ainda que de menor monta. O açúcar branco eleva-se de $950 em 1687
para 2$066 em 1710, numa variação de 117,47%20. Já os escravos adultos tiveram seus preços
médios majorados em 135,25% entre o final do século XVII e a década de 171021.
Se todos esses dados demonstram que a alta era mesmo generalizada, eles apontam
também para o fato de que tais variações não eram uniformes. Em outras palavras, isso significa
dizer que por baixo de um movimento geral de elevação dos preços causado tanto pelo abrupto
fluxo de ouro quanto pela rápida ocupação das regiões mineradoras, havia movimentos
particulares, que faziam com que alguns preços variassem mais ou menos do que outros. E entre
os preços que mais variaram encontramos exatamente os bens urbanos. Como explicar isso?
A primeira razão é o rápido crescimento da população urbana, já visto acima. Verifica-se
que esse é um processo que não se interrompe então. O aumento da população e,
conseqüentemente, da demanda pressionava o preço dos imóveis urbanos para cima.
A segunda razão para essa valorização é o fortalecimento do capital comercial na praça do
Rio, como podemos ver nas tabelas 4 e 5. Já nessa primeira década (para nós) do século XVIII,
os homens de negócio mostram uma relativa importância no mercado urbano, respondendo por
15,1% de todas as compras urbanas, e por somente 5,3% das vendas. Números consideráveis
para um grupo social ainda recente na cena carioca.
Se aprofundarmos ainda mais nossa análise, veremos que dentre os bens urbanos
também há diferenças nítidas de variação de preços. Dentre eles destacam-se os sobrados, cuja
elevação atinge mais de 750%. Esse comportamento tem ligação, é claro, com o desenvolvimento
da urbe carioca. Mas também se associa com o comportamento da elite mercantil.
A ligação entre essa elite e os sobrados é bastante clara. Tanto aqui quanto em Portugal,
eram em sobrados que os negociantes viviam e comerciavam 22. Nos dois únicos inventários post-
18
ANTONIL, João Antônio Andreoni. Cultura e opulência do Brasil. São Paulo/Brasília, Melhoramentos/INL, 1976, pp.
167-173.
19
Para uma descrição pormenorizada das transformações ocorridas na capitania fluminense na passagem do século
XVII para o XVIII, ver: SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de.op. cit., cap. 1.
20
SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. op. cit., p. 113.
21
Idem, p. 121.
22
Segundo Jorge Pedreira, um dos termos equivalentes a “homem de negócio” na sociedade portuguesa era o de
“mercador de sobrado”: PEDREIRA, Jorge M. V. Os homens de negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo
(1755-1822): Diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1995
(Tese de doutorado), p. 64-66.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
51
mortem de homens de negócio que encontramos, há a presença dessas construções
23
. Em
nossas escrituras essa ligação também se evidencia: os negociantes aparecem como
compradores em quatorze das cinqüenta e duas transações envolvendo tais bens, registradas ao
longo de toda a primeira metade dos setecentos (26,9% do total), e respondem por quase um
terço do valor total
24
. Já como vendedores, surgem em apenas seis escrituras (11,5%)
25
. Não
seria errôneo afirmar que havia uma forte pressão por parte da elite mercantil carioca sobre a
oferta de sobrados. Tal fato contribuía, naturalmente, para a elevação dos preços. Sobretudo
porque essa elite torna-se responsável, ao longo da primeira metade dos setecentos, pela própria
liquidez da sociedade colonial, o que aumentava muito sua capacidade de influência sobre os
preços, ainda mais num mercado restrito como o de tais bens 26. Também resulta dessa pressão o
aumento proporcional da oferta de sobrados no mercado de bens urbanos. De uma participação
pouco inferior a 9% no total de imóveis transacionados no final do século XVII, os sobrados
passam a 17% no início da centúria seguinte.
Não obstante, essa pressão exercida pelos negociantes distribui-se de forma desigual ao
longo do período. Das quatorze escrituras de compra a que nos referimos acima, nada menos que
onze situam-se entre 1711 e 1740 (aproximadamente um terço das 32 escrituras do período). Já
na década de 1740, encontramos somente três transações em que participam homens de negócio
(15% do total). Assim, há uma considerável diminuição da atuação dos negociantes, o que acabou
por se refletir nos preços dos sobrados. É interessante notar que também a oferta de sobrados
diminui na década de 1740, o que parece indicar uma diminuição da demanda pelos mesmos.
As casas térreas e os terrenos, por sua vez, apresentam comportamento bastante
semelhante entre si, e distinto do que encontramos para os sobrados. Após uma forte valorização
inicial, tais bens tendem a perder valor nas décadas de 1720 e 1730, recuperando-se no último
decênio do nosso período.
A explicação para esse comportamento é virtualmente impossível, devido à nossa atual
falta de conhecimentos sobre as características desse mercado. O fato é que não podemos
relacioná-lo diretamente, por exemplo, com a participação no mesmo da elite mercantil. Vejamos:
a princípio, a queda ocorrida a partir da década de 1720 poderia ser creditada à diminuição da
participação dos homens de negócio na compra desses bens, em relação à década de 1710.
23
AMSB, cód. 13, doc. 1059: Inventário de Antônio Pimentel (1711) e AMSB, cód. 13, doc. 284: Inventário de Francisco
de Seixas da Fonseca (1730).
24
Em números: os homens de negócio adquiriram sobrados no valor de 33:328$770, sendo que o valor total relativo a
esse bem no período 1711-1750 foi de 112:295$420. Lembremos que se trata de números mínimos, dado o sub-registro
dos negociantes cariocas.
25
Devido aos seus elevados valores, essas cinco escrituras respondem por 22,4% do valor total transacionado
(25:120$000).
26
A esse respeito, ver: SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de.op. cit., cap.4.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
52
Nessa, os negociantes eram responsáveis por 30% do valor das transações. Depois, esse
percentual cai para 9,8%. Ocorre que, na década de 1740, a participação se mantém praticamente
inalterada (9,6%), o que não impede um forte aumento de preços.
A nosso ver, tal fato demonstra uma forte independência desse mercado urbano mais
amplo frente à atuação da elite urbana. Por isso mesmo, é provável que suas variações de preços
reflitam as flutuações mais gerais da economia, até porque os números de casas e terrenos
transacionados são bem mais significativos do que os dos sobrados. Nesse sentido, a tendência
geral de alta durante a primeira metade do século XVIII muito provavelmente é reflexo do contínuo
crescimento da urbe carioca que pressionava os preços dos bens urbanos para cima.
Cabe aqui uma observação acerca do comportamento dos preços dos terrenos no período
estudado. Na virada do século XVII para o seguinte, tais preços sobem consideravelmente, ainda
que menos do que os dos sobrados. No entanto, como esses perdem valor a partir de então, os
terrenos acabam por se constituir nos bens de maior valorização, se analisarmos nosso período
como um todo. Entre 1681 e 1750 seus preços variaram nada menos que 692,53%, contra
622,26% dos sobrados e 265,31% das casas. Tais dados mostram, melhor que quaisquer outros,
a pressão exercida pelo conjunto da população carioca sobre o solo urbano. Por outro lado, a
diminuição da oferta de terrenos na década de 1740 parece indicar o esgotamento da ocupação
do perímetro “tradicional” da cidade, limitado a oeste pela então denominada rua da Vala. De fato,
seus limites são largamente ultrapassados a partir da segunda metade do século XVIII27.
Talvez a mais importante característica estrutural do mercado carioca de bens urbanos
fosse sua forte concentração, facilmente perceptível nas tabelas 6 e 7. Por estas, vê-se que em
qualquer época pelo menos um terço do valor total concentrava-se nas transações envolvendo
valores mais elevados. Mais impressionante ainda é a baixa participação da metade menor das
transações no valor total. Em momento algum essa participação ultrapassa a barreira dos 15%,
que por sinal somente é alcançada na primeira década do nosso estudo.
Essa concentração é confirmada pela análise da média e mediana gerais. Repare-se que
elas são quase sempre muito diversas das médias e medianas parciais e é exatamente nessa
discrepância que encontramos sua maior utilidade. Ao se mostrarem inúteis como elementos de
medição das tendências do mercado em questão, elas apontam para a grande dispersão dos
valores encontrados. Em outras palavras, o fato de que os índices mais gerais pouco retratem o
nosso objeto demonstra o caráter concentrado do mercado de bens urbanos, uma vez que os
valores reais encontrados no mesmo situam-se quase sempre bem abaixo ou bem acima da
média. Além disso, a diferença entre as médias e as medianas, tanto as gerais quanto as parciais,
27
BARREIROS, Eduardo Canabrava. op. cit.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
53
também apontam para o mesmo caráter concentrado. Como a mediana nos fornece o valor acima
e abaixo do qual estão 50% da amostra, uma diferença muito grande entre esta e a média (em
favor desta última) aponta para a existência de uma forte concentração28.
Neste sentido, o estudo da diferença entre média e mediana gerais mostra uma tendência
a longo prazo de aumento da concentração. No final do século XVII essa diferença era de 46,27%,
mas nos setecentos ultrapassa 100%, fechando o período estudado acima de 75%.
O século XVIII é marcado, portanto, por um aumento na concentração das transações de
bens urbanos. Estaria essa maior concentração vinculada à atuação dos homens de negócio? Em
parte sim, já que o aumento da concentração dá-se paralelamente ao aumento da participação
dos negociantes cariocas no mercado urbano (ver tabela 4). Por sua maior capacidade de
acumulação de capital, esse grupo tendeu a realizar investimentos mais vultosos em bens
urbanos, e essas autênticas transformações de escala nos valores transacionados refletia-se no
grau de concentração verificado no mercado.
Outro fator que contribuía para tal concentração era a forma de pagamento nas transações
de bens urbanos. Analisando a tabela 8 vê-se que em qualquer período o pagamento em dinheiro
era absolutamente majoritário, sendo que o pagamento à vista tende a crescer no século XVIII, ao
mesmo tempo em que o feito a prazo diminui. Se a esses somarmos os pagamentos em dívidas29,
veremos que a participação no mercado de bens urbanos dependia do difícil acesso à moeda,
acesso esse em grande medida controlado pelos negociantes. Esse quadro é bastante diverso do
existente nas transações de bens rurais. Nestas predominava o pagamento a prazo e, no século
XVII, também em açúcar, que fazia então as vezes de moeda30. Logo, atuar no mercado urbano
era apanágio para poucos, e a elevação de preços no século XVIII contribuiu para agravar essa
tendência.
Neste sentido, é bastante ilustrativa a participação dos senhores de engenho tanto na
compra quanto na venda de imóveis urbanos. Em relação às compras, vemos que apesar de uma
elevação na participação na década de 1710, essa tende a cair continuamente a partir daí,
atingindo irrisórios 0,6% do valor total na última década estudada. Mesmo a elevação no início do
século XVIII deve ser vista com cuidado. Do valor total, 2:900$000 (67%) referem-se à compra de
28
Mesmo essa comparação entre mediana e média ainda é algo imperfeito para o estudo da concentração de um dado
mercado, já que a mediana é sempre um número mais elevado do que os 50% menores. Portanto, a comparação entre
os dois índices deve ser vista só como um indicativo a mais do fenômeno da concentração. Sobre mediana, ver: NICK,
Eva e KELLNER, Sheilah R. de O. Fundamentos de estatística para as ciências do comportamento. Rio de Janeiro,
Renes, 1971, pp. 47-53.
29
Pagamentos em dívidas são aqueles em que o vendedor transfere para o comprador uma propriedade em troca do
abatimento de uma dívida anterior. Tais operações são, por isso mesmo, bem menos “opcionais” do que pode parecer à
primeira vista.
30
Sobre o mercado de bens rurais, ver: SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Op. Cit., cap. 2.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
54
um sobrado por Antônio Dias Delgado31. Por outro lado, entre 1711 e 1740 os membros da elite
agrária aparecem como vendedores líquidos, ou seja, vendem mais do que compram. Em outras
palavras, a elite agrária desfazia-se se suas propriedades urbanas. Ruralizava-se, enfim. Na
década de 1740 tal elite encontrava-se destituída de qualquer significado econômico no mercado
de bens urbanos da urbe carioca.
Por outro lado, o fenômeno da concentração no mercado de bens urbanos não se limita
somente à distribuição dos valores transacionados. Ele também se faz presente no controle
exercido por um pequeno número de indivíduos e instituições sobre o solo urbano. Os dados que
encontramos, retirados das próprias escrituras, mostram não só que uma parte razoável das
propriedades vendidas encontrava-se situadas em terrenos de terceiros, como também que o grau
de concentração da propriedade urbana aumentou consideravelmente no século XVIII.
TABELA 9
Porcentagem dos terrenos aforados
em relação ao total de vendas de bens urbanos e chácaras
(1650-1750)
Período
1650-1670
1671-1700
1711-1730
1731-1740
1741-1750
Total
138
156
103
106
202
Aforados
13
15
17
11
37
%
9,42
9,62
16,50
10,38
18,32
Fontes: Escrituras públicas de compra e venda dos Cartórios do Primeiro e Segundo Ofícios de Notas do
Rio de Janeiro (1650-1750), AN e AGCRJ.
Nesta tabela, são considerados terrenos aforados aqueles em relação aos quais se
declara, durante a transação, o pagamento de foro a terceiros. Os números apresentados não
devem ser vistos como indicadores do real grau de concentração dos “chãos” da cidade. Em
primeiro lugar, porque um indivíduo ou uma instituição podia possuir várias propriedades urbanas
sem aforá-las. Em segundo, há que se considerar que boa parte das propriedades das diversas
instituições estava, a princípio, fora do mercado. Ordens religiosas, como a de São Bento,
buscavam acima de tudo assegurar para si fontes permanentes de renda. Assim, suas
propriedades dificilmente eram postas à venda
31
32
32
. De qualquer forma, o fato de que pelo menos
AN, CSON, L. 25, f. 27 (1717).
FRIDMAN, Fania. op. cit.. p. 78ss.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
55
1/10 das propriedades vendidas em qualquer período estivessem situadas em terrenos sujeitos a
foro mostra o quanto o espaço urbano encontrava-se apropriado e controlado.
No século XVIII há um evidente incremento da proporção de terrenos aforados em relação
ao total. Se agregarmos ainda mais os nossos dados, veremos que para toda a segunda metade
do século XVII a proporção de terrenos aforados em relação ao total foi de 9,52%. Já para a
primeira metade dos setecentos, esse índice aumenta para 15,82%. Uma variação percentual de
nada menos de 66,2%. Embora o Senado da Câmara seja, até o final do nosso período, o
principal aforador presente nas escrituras
33
, o século XVIII vê um aumento do número de
aforadores privados, além do crescimento da participação de outras instituições, como a Ordem
Terceira de São Francisco. Esse fato aponta para um controle cada vez maior do solo urbano por
um número reduzido de instituições e indivíduos.
Na verdade, trata-se da consolidação de uma tendência que se manifesta desde o início da
ocupação (e formação) da urbe carioca. De fato, desde sua fundação (ou refundação, em 1567), a
cidade viu sua área ser monopolizada, através de concessões feitas pelos sucessivos
governadores, por um pequeno número de indivíduos, fato que era sem dúvida facilitado pelas
características físicas do sítio urbano. O resultado foi uma considerável concentração da
propriedade fundiária urbana. Entre os maiores proprietários estavam as instituições religiosas,
como a Santa Casa da Misericórdia, a Ordem de São Bento, Jesuítas etc. Somente os beneditinos
possuíam, entre 1651 e 1750, 85 propriedades na urbe carioca, sendo 37 terrenos e 48 casas de
aluguel 34. Já os jesuítas possuíam, em 1759, 70 prédios e um terreno que rendiam a considerável
soma de 6:551$040 35.
Entretanto, mesmo quando a propriedade estava concentrada nas mãos de instituições,
freqüentemente eram pessoas ligadas a estas que se beneficiavam de tal concentração, fazendo
as vezes de intermediários entre tais instituições, por um lado, e o restante da população por
outro. Tal era o caso na década de 1770 quando, segundo denúncia enviada ao rei, havia um
autêntico monopólio por parte de alguns indivíduos do aforamento de terrenos pertencentes ao
Senado da Câmara. Tais pessoas pagavam valores extremamente baixos por tais aforamentos, e
os arrendavam para terceiros por quantias muito mais elevadas, alcançando consideráveis lucros
com tais diferenças 36.
33
Na década de 1740, das 37 escrituras que fazem referência ao pagamento de foro, nada menos de 19 têm como
aforador o Senado da Câmara (51,35%).
34
FRIDMAN, Fania., op. cit., pp. 63s.
35
CAVALCANTI, Nireu O. A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: as muralhas, sua gente, os construtores. Rio
de Janeiro, UFRJ, 1997 (Tese de doutorado), p. 102.
36
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. “A Cidade e o Império: o Rio de Janeiro na dinâmica Colonial Portuguesa.
Séculos XVII e XVIII.” São Paulo, USP, 1997 (Tese de doutorado), pp. 393-405.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
56
Não possuímos, infelizmente, quaisquer informações semelhantes para a primeira metade
do século XVIII. Mas o aumento verificado no número de propriedades situadas sobre terrenos
aforados já indicava a tendência de concentração da propriedade do solo urbano, cujas
conseqüências seriam explicitadas quase três décadas após o fim do período que estudamos.
Como pano de fundo desse processo, está o forte crescimento da cidade ao longo de todo o
período, que tornava cada vez mais interessante o controle sobre a propriedade (ou, pelo menos,
sobre o acesso) do solo urbano.
Para finalizar esse texto gostaríamos de ressaltar duas conclusões de grande importância
para o nosso trabalho, retiradas do estudo do mercado de bens urbanos da cidade do Rio de
Janeiro.
Em primeiro lugar, a análise da evolução da participação de senhores de engenho e
homens de negócio neste mercado demonstra a existência de uma divisão setecentista entre elite
agrária e elite mercantil.
É evidente que esta divisão não deve ser compreendida enquanto uma separação radical
entre os dois grupos. Em outras palavras, não significa dizer que negociantes e elite açucareira
não estabelecessem alianças entre si. De fato, parte dos negociantes setecentistas (uma parte
bastante reduzida, é verdade) transformou-se, em algum momento, em proprietária de engenhos,
através de compras e/ou de casamentos com mulheres pertencentes à elite agrária
37
. Entretanto,
e no que pese a ressalva, não se pode negar a existência então de uma clara distinção entre os
dois grupos. Sua origem é sobretudo econômica, pois reflete a separação clara que então se
estabelece entre a atividade mercantil e a agrária. Essa separação significa principalmente a
criação de uma esfera própria para a atividade mercantil, bem como para a acumulação de
capital.
Por outro lado, o estabelecimento dessa distinção no século XVIII joga poderosas luzes
sobre nosso entendimento da forma de atuação da elite seiscentista. Quando vemos que,
concomitantemente a essa distinção ocorre a diminuição da participação de senhores de engenho
no mercado de bens urbanos, temos uma demonstração clara de que sua participação ao longo
dos seiscentos pode ser creditada à atuação na esfera mercantil. É nessa esfera que eles
acumulavam os recursos necessários. Nesse sentido, é importante que relembremos que a
compra de bens urbanos dependia do acesso a dinheiro em espécie. Uma mercadoria rara e cara
no seiscentos, cuja posse vinculava-se em muito à participação nos circuitos mercantis.
O segundo aspecto que queremos ressaltar é a forte concentração verificada em tal
mercado. Na falta de índices mais precisos relativos à distribuição da riqueza, o estudo do
37
SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de.op. cit., cap. 2.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
57
mercado de bens urbanos nos dá como que um reflexo, ainda que imperfeito, dessa mesma
concentração. E o quadro que surge daí aponta para o caráter estrutural da mesma, já que esta
faz sentir sua forte presença ao longo de todo o período. Mais ainda, ela cresce no século XVIII,
paralelamente ao desenvolvimento da atividade mercantil na urbe carioca. Isso demonstra que os
benefícios de tal desenvolvimento concentraram-se nas mãos de poucos. Em outras palavras, seu
principal efeito foi o reforço do caráter excludente da estrutura social colonial.
Antonio Carlos Jucá de Sampaio é Professor Adjunto de História do Brasil da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador associado ao LAHES
(Laboratório de História Econômica e Social) da Universidade Federal de Juiz de
Fora.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
58
DINÂMICA PRODUTIVA EM MINAS GERAIS
O sistema econômico em funcionamento no termo de Mariana
1750-1850
Carla Maria Carvalho de Almeida
Resumo:
Este trabalho se insere no bojo das indagações
acerca do caráter da sociedade colonial e, mais
especificamente, da economia mineira no período
pós-auge minerador. Elegemos o termo de
Mariana como espaço a ser trabalhado, devido às
suas características privilegiadas de localização.
O marco temporal de 1750 a 1850 foi escolhido
por abarcar o momento de auge minerador e
também o período considerado pela historiografia
tradicional como de “decadência” e “estagnação”
da economia mineira. Tendo os inventários postmortem como fonte privilegiada, o objetivo central
da pesquisa foi perceber, ao longo do período, as
alterações das unidades produtivas da região.
Palavras-chave:
1. Minas Gerais; 2. Escravidão; 3. Economia
Colonial.
Abstract :
ThisThis paper is within the inquiries concerning
the character of Brazilian colonial society; more
specifically, the post-boom mining economy of
Minas Gerais. The region of Mariana was chosen
because of its privileged location. The time period
of 1750-1850 was selected because it begins at
the time of the economic boom and includes the
years considered by tradicional historiography to
cover the decline and stagnation of the economy
of Minas Gerais. Using post-mortem inventories
as a primary source of information, the objective
this investigation was to observe the changes in
the productive units.
Key words:
1. Minas Gerais; 2. Slavery; 3. Colonial Economy.
O objetivo deste trabalho é discutir o caráter e a forma de funcionamento da economia
mineira no período de 1750 a 1850 que compreende três distintas etapas da economia mineira:
um primeiro subperíodo de auge-minerador (1750-1770); uma segunda fase de acomodação
evolutiva (1780-1810), quando então a economia da região sofreu um processo de diversificação
da produção com tendências para a auto-suficiência; e finalmente um último subperíodo (18201850), caracterizado pela consolidação da economia mercantil de subsistência1.
Elegemos o termo de Mariana como objeto de investigação por várias razões que nos
pareceram torná-lo um espaço privilegiado para esta análise. Dentre outras razões, destacam-se:
a situação geográfica do termo, com seu território situado parte na região Metalúrgica-Mantiqueira
e outra parte na Zona da Mata; a característica de ser um município de fronteira aberta com
amplas possibilidades de expansão; a concomitância histórica entre as atividades de mineração e
a produção agropecuária desde os primórdios da colonização; e finalmente, a importância da sede
do município como centro religioso, educacional e administrativo do seu entorno.
1
Esta subdivisão do período maior (1750-1850) em distintos subperíodos foi estabelecida em minha dissertação de
mestrado a partir da análise de diversos índices (crescimento demográfico, crescimento da produção e dos
rendimentos) aliados a fatores históricos conjunturais. ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Alterações nas unidades
produtivas mineiras: Mariana - 1750-1850. Niterói, 1994. Dissertação (Mestrado em História) - UFF.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
59
Privilegiamos como fonte os inventários post-mortem, que nos possibilitaram ter uma visão
do movimento dessa sociedade se desenrolando no tempo e, conseqüentemente, de suas
alterações e permanências. Para abarcar o período de 1750-1850 tomamos como amostragem
todos os inventários existentes no arquivo da Casa Setecentista de Mariana2 para os anos
terminados em zero, ou seja, nossa amostragem é de dez em dez anos. Dessa forma,
trabalhamos com um total de 366 inventários3. Para a análise mais detalhada desta
documentação estabelecemos uma classificação que dividia inicialmente os inventários em:
unidades produtivas, comércio e/ou crédito, urbanos e/ou serviços, e não enquadráveis. Na
classificação de unidades produtivas4 enquadramos todos os inventários que incluíam
propriedades que desenvolviam algum tipo de atividade criadora de riqueza mesmo que,
paralelamente, o inventariado houvesse se dedicado a outro tipo de atividade, por exemplo, ao
comércio. Num segundo momento, separamos as U.P. por tipo de produção a que se dedicavam.
Assim, existiam unidades produtivas de agricultura, de pecuária, de mineração, de agropecuária,
de agricultura e mineração, e finalmente de agropecuária e mineração.
Outras fontes sobre as quais nos debruçamos de forma menos sistemática foram: os livros
de registros de aguardente existentes no Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana5; os
Relatórios de Presidentes da Província6 (de Minas Gerais) para os anos de 1833 a 1855; e alguns
relatos de contemporâneos e viajantes estrangeiros.
Os pressupostos teóricos mais gerais
que orientam esta investigação têm seus
fundamentos alicerçados na tendência historiográfica que, para a análise da realidade colonial
brasileira, sem desconsiderar os fatores externos que influíam sobre a mesma, privilegia as
determinações internas sobre o seu funcionamento.
Com essa orientação inicial, a definição de sistema econômico elaborada por Witold Kula
nos pareceu bastante adequada para nortear as nossas indagações. Para Kula:
Sistema econômico é um conjunto de relações econômicas internamente ligadas, que
precisamente por estarem ligadas surgem mais ou menos simultaneamente, e também quase
simultaneamente cedem lugar a outras relações. O aparecimento dessas relações, que se podem
datar empiricamente, permitem definir os limites cronológicos de um sistema econômico. A
construção de uma teoria de um sistema econômico consiste em definir (mais uma vez
empiricamente) o conjunto mais rico possível de relações que nele aparecem e em explicar os
nexos recíprocos existentes entre essas relações7.
2
Daqui para frente C.S.M.
Evidentemente este número diz respeito a todos os inventários do período referido que foi possível consultar. Por
estarem em péssimo estado de conservação, alguns poucos autos não puderam ser manuseados. Quase todos são
do século XVIII, concentrando-se principalmente nos anos de 1750 e 1770 do II ofício. Alguns foram eliminados da
amostragem por estarem incompletos ou por terem sido iniciados em um ano e terminados só muito tempo depois.
Precisamente 42 autos não puderam ser incluídos na amostragem.
4
Daqui para frente, U.P.
5
Daqui para frente AHCMM.
6
Daqui para frente: RPP.
7
KULA, Witold. Teoria econômica do sistema feudal. Lisboa: Editorial Presença, 1979, p. 172.
3
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
60
Para que se possa construir a teoria do sistema econômico é necessário também levar em
consideração que todos os atos econômicos são socialmente determinados e, dessa forma, têm
caráter reiterativo e apresentam determinadas relações que se manifestam com uma certa
regularidade. Se se consegue provar a existência e a regularidade de tais relações pode-se,
então, elaborar uma teoria para este sistema econômico8.
Além disso, deve-se ter em mente que cada sistema econômico segue uma lógica própria
de funcionamento e, portanto, tem uma racionalidade que lhe é peculiar. Não se pode partir de um
conceito de racionalidade capitalista, por exemplo, para avaliar em que medida o sistema feudal é
racional. Tal atitude só poderia nos conduzir a conclusões anacrônicas. Kula sugere que se parta
de uma racionalidade metodológica e não objetiva para analisar tais sistemas. Seria necessário
levar em conta o que é racional do ponto de vista das possibilidades de escolha do sujeito atuante,
ou seja, os conhecimentos, as técnicas disponíveis e as chances de se poder comparar as
alternativas possíveis9.
A proposta de Kula para a elaboração de um modelo exige ainda, que se tenha a realidade
empírica como ponto de partida e de destino. É dela que se poderá extrair os elementos que farão
parte da teoria e também nela é que se poderá comprovar a eficácia do modelo.
Sem ter a pretensão de propor um modelo acabado para a economia mineira, achamos
que é possível e pertinente tomar as indagações propostas por W.Kula como roteiro para definir
um quadro em que se moveria a economia da região de Mariana. Neste sentido, deveríamos
responder a quatro ordens de problemas10:
a) a primeira ordem de problemas que a análise deve se colocar diz respeito às "(...)leis
que regulam a magnitude da produção social e sua aquisição (O que determina a escolha
da tecnologia e, especialmente, a escolha entre os métodos intensivos e extensivos de
produção? O que determina até que ponto a sociedade aproveita os meios de produção e
as forças produtivas?)".
b) a segunda indagação a ser feita deve tratar das "(...)leis que regulam a alocação de
forças produtivas e os meios de produção e, especialmente, os excedentes de produção
(esse é, principalmente, o problema da aplicação produtiva ou não produtiva desses
excedentes, os fatores que determinam o consumo, o desperdício, o consumo de luxo __ e
o investimento)".
8
Idem., p. 167.
Idem., p. 166.
10
Idem., pp. 11-12. KULA, Witold. Da tipologia dos sistemas econômicos. In: FOURASTIÉ, Jacqueline. et.ali. Economia.
a
2 ed. Rio de Janeiro: FGV, 1979, p. 111.
9
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
61
c) deve-se em seguida dar conta das "(...)leis que governam a adaptação da economia às
circunstâncias cambiantes, isto é, a dinâmica a curto prazo".
d) a última ordem de indagações que deveríamos tentar desenvolver diz respeito às leis da
evolução a longo prazo.
As primeiras duas ordens de problemas estão relacionadas aos aspectos estruturais ou
aos pressupostos de funcionamento do sistema econômico em questão. Discutiremos estas
questões no ponto 2 deste artigo. A terceira "lei" diz respeito às variáveis internas que intervêm no
funcionamento da estrutura econômica. Delas trataremos no ponto 3. A última ordem de fatores se
refere às variáveis externas que influiriam no sistema, podendo levá-lo, juntamente com as
anteriores, no limite, ao desaparecimento. Infelizmente tais questões não serão por nós
analisadas neste trabalho, já que demandariam um estudo que fosse além de 1850 e que
analisasse as implicações da lei de terras e o fim do tráfico legal como mecanismos de abalo do
sistema; e a degradação cumulativa causada pela produção extensiva e a abolição da escravatura
como os seus possíveis detonadores finais, já que entendemos que as principais bases da
economia eram a disponibilidade de terras virgens apropriáveis e mão-de-obra barata.
1. Principais produções de Minas Gerais
Antes de examinarmos mais de perto o processo de produção propriamente dito, convém
inicialmente nos referirmos aos principais produtos presentes na economia mineira, principalmente
no período pós-auge minerador sobre o qual recairá mais detidamente a nossa atenção.
No relatório de 1854, o presidente da província apresentava um quadro da situação dos
municípios mineiros, elaborado a partir das informações prestadas pelas Câmaras Municipais "em
cumprimento das circulares de 4 e 28 de novembro e 29 de dezembro de 1853 a respeito do
gênnero d'indústria porque mais se distingue a população, número de fazendas de creação, ou de
cultura, engenhos de mineração, ou de qualquer outra espécie bem como do estado da indústria e
seo desenvolvimento nestes últimos tempos". Dos 22 municípios para os quais há informações,
todos têm a presença de algum tipo de cultura ou produção agrícola, sendo que em 15 deles a
agricultura constava como uma das atividades de destaque e em 8 a pecuária aparecia conjugada
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
62
a esta11. Portanto, podemos afirmar que, por volta de meados do século XIX, a província era
primordialmente uma região de produção agropecuária.
Os principais produtos cultivados em Minas eram, em ordem de freqüência, o milho, o
feijão, e o arroz. Eram muito freqüentes os engenhos de moer cana e, embora parte da produção
fosse exportada para o Rio de Janeiro, seu destino parece ser quase sempre a produção de
aguardente e açúcar para abastecer o mercado interno provincial. No caminho que vai de Vila
Rica para o Tijuco, mais ou menos à altura do Morro de Santa Ana, John Mawe encontrou uma
tropa com "grande número de burros carregados de açúcar destinado a Vila Rica e que, no caso
de não ser aí vendido, vai para o Rio de Janeiro"12. O café e o algodão também eram cultivados
em alguns municípios.
A produção de aguardente em Minas Gerais era muito freqüente desde o período inicial da
ocupação da região e, embora em 1714 a coroa houvesse proibido a construção de novos
engenhos na comarca de Vila Rica, isto não se efetivou e o que se viu foi o constante crescimento
do número de engenhos e alambiques na região das minas nas primeiras duas décadas do século
XXVIII13. Como já foi dito anteriormente, em Mariana o número de U.P. com presença de
alambique foi crescente durante todo o período por nós analisado e passou de 5% para 6%,
atingindo 19% no último subperíodo. A região de Mariana teve uma importante produção de
aguardente que, pelo seu volume, muito provavelmente era em parte enviada para outros
mercados. Através dos "livros de registros para manifestos das aguardentes" existentes no
Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana, foi possível fazer um levantamento desta
produção por um período de dez anos (tabela 1)14. Mariana produziu neste intervalo uma média
anual de barris de cachaça que variou de 6.118 a 11.409, sendo que os distritos que registravam
a maior produção eram Furquim, Barra Longa, Sumidouro e Piranga.
11
Provavelmente este número era muito maior, mas o quadro não é muito completo. Por exemplo: em Mariana a
pecuária não aparece ao lado da agricultura, mas pelos inventários sabemos da freqüência e importância dela na
economia da região.
12
MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1978, p. 143.
13
MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira, Brasil-Portugal, 1750-1808. 3a ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 111.
14
A documentação existente no AHCMM tem registros da produção de aguardente para o período de 1774 a 1808, num
total de 23 livros. No entanto, é entre os anos de 1782 e 1800 que ela é mais completa, sendo que os registros para o
ano de 1788 são muito imprecisos e dispersos. Por isto não incluímos na tabela que montamos os dados sobre este ano.
O registro era feito semestralmente.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
63
TABELA 1
Produção anual de aguardente em Mariana de 1782 a 1792
BARRIS
TOTAL DO
IMPOSTO
No DE REGISTROS
1782
8.348
669,220
71
1783
6.985
556,120
68
1784
6.118
486,860
71
1785
6.814
545,120
72
1786
6.387
509,360
70
1787
6.428
516,400
73
1789
9.792
783,360
74
1790
10.176
814,360
84
1791
10.425
812,200
89
1792
11.409
832,720
89
ANO
Fonte: Livros de registros para manifestos das aguardentes – AHCMM.
O milho (farinha de milho, angu e canjica), o feijão e a carne de porco constituíam a base
da alimentação da população em Minas Gerais. Em sua viagem pela província, Mawe visitou a
fazenda do Barro de propriedade do Conde de Linhares, situada no termo de Mariana. Dela fez
uma descrição detalhada e deu a conhecer os hábitos alimentares tanto dos escravos quanto dos
homens livres que lá viviam. Os escravos eram alimentados no almoço com farinha de milho
misturada com água quente, dentro da qual colocavam pedaços de toucinho15. À noite era-lhes
dada uma porção de feijão. Quanto à alimentação dos administradores da fazenda, diz ele:
Eis o seu trivial: ao almoço , feijão preto misturado com farinha de milho e um pouco de torresmo de
toucinho frito ou carne cozida; ao jantar, um pedaço de porco assado; derrama-se água em um
prato de farinha de milho; colocam tudo amontoado na mesa e aí põem também um prato de feijão
cozido (...) na ceia só comem hortaliças cozidas e pequeno pedaço de toucinho para lhes dar
gosto16.
Ao contrário do Nordeste, do Rio de janeiro e de São Paulo, onde a farinha de mandioca
era a base da alimentação, em Minas Gerais a farinha de milho era muito mais importante.
15
Idem., p. 139. Suponho que Mawe se referia ao que hoje é conhecido como prato típico da região: bambá ou bambá
de couve.
16
Idem., p. 138.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
64
Somente no sertão (deserto do rio São Francisco) a farinha de mandioca substituía a de milho17.
Sobre a importância da farinha de milho na dieta alimentar dos mineiros e sobre seu processo de
elaboração, novamente é Mawe quem nos informa:
A farinha de milho, alimento principal, me pareceu de tão bom paladar e tão nutritiva que tive a
curiosidade de conhecer seu preparo. Fazem a princípio molhar os grãos na água; depois , quando
inchados e ainda úmidos tiram-lhes a película externa; reduzem-nos a pequenos grãos. Colocam,
então, a farinha em frigideiras de cobre levadas ao fogo, e agitam-na constantemente até que esteja
seca e boa para ser comida; aqui a empregam como sucedâneo do pão, tão comumente como no
Rio de Janeiro, em São Paulo e em outros lugares, a farinha de mandioca18.
Além disso, o milho era fundamental para a pecuária da região. Segundo Saint-Hilaire, o
milho era cultivado por todos os agricultores, não só por ser importantíssimo para a alimentação
da população, mas também "(...) porque ele é para os animais de carga, o que é para nós a aveia,
e é empregado também para engordar as galinhas, e sobretudo os porcos"19.
De acordo com o quadro do relatório do Presidente da Província, a pecuária era a
atividade mais lucrativa e a que mais compensava exportar. O mecanismo de articulação entre
agricultura e pecuária parece ser o seguinte: uma produção agrícola diversificada e efervescente
para abastecer principalmente o mercado mineiro, conjugada a uma grande exportação de gado
vacum, porcos em pé, toucinho e algum açúcar e café. Vejamos as observações feitas pelo
Presidente da Província sobre algumas localidades:
Desemboque: (...)não existem engenhos de mineração mas somente alguns de moer canna para o
consumo do paiz. Que os habitantes sendo creadores e agricultores empregão todos os seus
cuidados neste gennero d'indúsdria, creando em grande escala gado vacum, cavallar, ovelhum,
cabrum, e suino de que vendem annualmente considerável número de cabeças; cultivão milho,
feijão, arroz, algodão e outras especies de plantações, cujos produtos consomem-se no paiz(...)
Tamanduá: (...)a creação de gado faz parte da pequena exportação que faz, sendo a de porcos e
pannos d"algodão a que mais avulta(...)
Piumby: A creação de porcos para o mercado é o maior forte dos fazendeiros, os productos de
canna fabricão-se somente para o consumo do município, em razão da difficuldade do transporte
para outros mercados.
Uberaba: Sobre este município o Presidente informa que tem um solo fertilísssimo e se planta
milho, feijão, arroz e cana mas que não se exporta por falta de estradas. Acrescenta que a
exportação do gado vacum e suíno constitui a principal riqueza do município.
Abre Campo(distrito de Mariana): (...)tem vários terrenos minerais, porém a população em geral só
cuida da cultura. Calcula-se exportar anualmente para o Espírito Santo, Campos, Ouro Preto e
17
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: EDUSP, 1975, p. 106. Embora haja um grande número de inventários com a presença de "forno de cobre de
torrar farinha de mandioca", nunca encontrei uma única referência a plantações de mandioca. É possível que tais fornos
fossem usados para fazer farinha de milho ou então que a produção daquela tivesse caráter tão doméstico que não valia
a pena declará-la.
18
MAWE, John. Op. cit., p. 139.
19
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 106.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
65
Mariana mais de 5 mil arrobas de toucinho para cujos lugares são igualmente enviados os produtos
da cana.20
Percebemos por estas informações que os produtos que melhor suportavam os altos
custos de transporte e que, portanto, valia a pena exportar para distâncias mais longas, eram
porcos e açúcar.
Era muito comum a conjugação do cultivo de produtos agrícolas tipicamente destinados à
subsistência (milho, arroz e feijão), paralelamente à produção de gêneros exportáveis. Apesar de
existir esta concomitância, no caso dos inventários analisados é muito difícil definir em que medida
os primeiros eram para o consumo interno da fazenda e os segundos para o mercado, ou viceversa. Pelos inventários de Mariana percebemos que praticamente inexistia a produção
especializada de culturas tipicamente voltadas para exportação. O cultivo da cana-de-açúcar,
café, algodão ou, muito ocasionalmente, do fumo, era quase sempre feito conjuntamente com a
agricultura de subsistência. De qualquer forma, aumentou gradativamente o número de unidades
produtivas com produção agrícola que se dedicavam aos dois tipos de cultura (tabela 2).
TABELA 2
Percentual de U.P. agrícolas com presença de culturas só de exportação, só de
subsistência e mistas21 Mariana - 1750-1850
Período
Total de
U.P.
U.P. c/produção de
exportação
#
U.P. c/produção de
subsistência
%
#
U.P. c/produção
mista
%
#
%
1o
16
-
-
15
93,8
1
6,2
2o
56
2
3,6
42
75,0
12
21,4
3o
108
3
2,8
46
42,6
59
54,6
Fonte: Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M.
#: Números absolutos.
De acordo com o quadro apresentado pelo Presidente da Província no relatório do ano de
1854,
Mariana tinha como atividades principais a agricultura e a mineração, e possuía 313
20
R.P.P. 1854.
Consideramos somente o número de U.P. com atividades agrícolas para as quais foi possível estabelecer o tipo de
produto cultivado.
21
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
66
fazendas22, 307 engenhos de cana, 14 engenhos de socar formação aurífera e 19 de serrar
madeira. Também existiam 11 fábricas de ferro, 1 de cêra, 1 de louça branca e 1 de chá. Além
disso, há referências à fabricação de cangalhas em Sumidouro e de panelas de pedra e "outros
vasos" em Cachoeira do Brumado. Em Paulo Moreira "faz-se com alguma perfeição obras de
seleiro". Já o distrito de Ponte Nova, além de se dedicar à agricultura, "exporta madeira de
qualidades apreciáveis". Embora o relatório não mencione a "indústria têxtil" como atividade
importante em nenhum dos distritos, é interessante lembrar que em Catas Altas mais de um terço
dos chefes de domicílio (34,4%) tinham como profissão alguma atividade relacionada a esta
produção23. Nos dez distritos do município de Mariana que vêm descritos separadamente neste
relatório, a pecuária era citada como atividade importante em pelo menos quatro: Sumidouro,
Inficionado, Cachoeira do Brumado e Abre Campo24. Vale lembra que por esta época muitas
localidades
antes
pertencentes
ao
termo
haviam
sido
transformadas
em
municípios
independentes ou desmembradas e passadas a integrar outra jurisdição.
2. Traços estruturais do sistema econômico
2.1. Forma extensiva de produção
Depois desta explanação, resta-nos agora tentar compreender como se organizava a
produção destes artigos. O sistema econômico em questão tinha como característica estrutural
uma forma extensiva de produção baseada, principalmente, na mão-de-obra escrava. São por
demais conhecidos os relatos de viajantes e contemporâneos que descrevem a "irracionalidade"
das técnicas rudimentares e "primitivas" da agricultura que era praticada. Enfatizam sempre a não
utilização do arado e fertilizantes no cultivo. O trabalho agrícola se reduzia a roçar e derrubar o
mato, ajuntar a madeira e queimá-la, fazendo as cinzas o papel de fertilizante. Em seguida,
cavavam-se buracos onde lançavam as sementes e cobriam-os com terra. A partir daí
pouquíssimos trabalhos eram necessários e variavam de acordo com a cultura.
Ao lado das queimadas, o sistema de pousio constituía a principal prática agrícola da
região. Normalmente, depois de se fazer duas colheitas consecutivas em um terreno virgem,
deixava-se a terra descansar de cinco a sete anos, até que o mato crescesse o suficiente para ser
22
Fazendas refere-se somente aos estabelecimentos com mais de 11 escravos as menores não vem contabilizadas já
que, nas palavras do Presidente: "por falta de meios não se deve considerar como fazendas"(.R.P.P. 1854). Portanto, o
número de propriedades agrícolas ou agropecuárias existentes no município era na realidade muito maior do que o
apresentado pelo relatório.
23
Fiandeiras, tecedeiras e rendeiras constituíam as profissões de 25,3% dos chefes de domicílio; costureiras e alfaiates
representavam mais 9,1%.
24
Relatório do Presidente da Província de 1853.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
67
novamente queimado. Neste estágio, "depois de uma única colheita, deixa-se a terra repousar
novamente; novas árvores aí tornam a crescer, e se continua da mesma maneira até que o solo
fique inteiramente esgotado. As espécies de bosque que se sucedem às matas virgens
denominam-se capoeiras"25.
Pelos quadros 1 e 2 (em anexo no final do artigo) montados a partir dos inventários,
percebemos que, durante todo o período analisado (ou seja, de forma reiterativa), tanto nas
grandes unidades produtivas quanto nas pequenas, ou, tanto naquelas que plantavam
unicamente milho, feijão e arroz quanto nas que se dedicavam à cana-de-açúcar, os instrumentos
utilizados eram sempre os mesmos, consistindo em: machados, foices, enxadas, cavadeiras e
alavancas. Além disso, pela descrição dos bens imóveis feita nos inventários podemos constatar
que praticamente todas as U.P. agrícolas tinham a presença de capoeiras, comprovando a prática
do sistema de pousio na agricultura da região.
Este era o caso do inventário do Capitão Antônio Álvarez Ferreira que em 1750, além de
terrenos minerais, possuía 58 escravos e várias roças em porções de terras descontínuas,
formadas por capoeiras e matos virgens. Cultivava-as com o auxílio exclusivo de foices, enxadas,
machados e alavancas. João Martins de Medeiros era um pequeno agricultor que em 1810, ao
morrer, deixara uma propriedade com 8 cativos e uma única "porção de terras de cultura quase
reduzidas a samambaia com algumas restingas de mato virgem e capoeiras". Nesta porção de
terra plantava-se milho e feijão, utilizando também foices, enxadas, machados e alavanca. Na
fazenda do Capitão Joaquim Gomes Pereira, que era formada por uma "sesmaria de terras de
cultura com capoeiras e matos virgens", em 1820, com 61 escravos, plantava-se milho, arroz, café
e cana (para produzir aguardente e açúcar), utilizando-se somente de foices, enxadas, machados
e alavancas26.
Dos 366 inventários da nossa amostragem, nenhum tinha a presença de arado. Ou seja,
independentemente do tamanho da fazenda, do cultivo e do período, a agricultura desenvolvida
na região de Mariana baseava-se num mesmo tipo de sistema de uso da terra: aquele que
prescindia de instrumentos de trabalho agrícola mais elaborados, principalmente por ter na
constante incorporação de terras virgens e, portanto, mais férteis, o seu elemento central para a
manutenção ou aumento dos níveis de produção.
Se partirmos das noções de intensificação da agricultura e freqüência de cultivo de Ester
Boserup27 para compreendermos a predominância destes rústicos instrumentos na técnica
agrícola da época, perceberemos que tal prática nada tinha de "ignorância" ou de outras
25
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 90.
Todos os casos citados serviram para a montagem dos quadros 1 e 2 em anexo.
27
BOSERUP, Ester. Las condiciones del desarrollo en la agricultura: la economia del cambio agrario bajo la presión
demográfica. Madrid: Editorial Tecnos, 1967.
26
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
68
expressões pejorativas que se possa querer atribuir-lhe. Segundo a autora, os instrumentos de
trabalho utilizados na atividade agrícola são determinados pelo sistema de uso da terra em
questão que, por sua vez, é definido pela relação terra disponível/densidade populacional. Quanto
maior for a freqüência com que se necessite cultivar um mesmo solo, maior será também a
necessidade de se aplicar técnicas mais complexas.
Neste sentido, em uma região com tanta abundância de terras virgens como era a de
Mariana e onde, portanto, o tempo de pousio podia ser razoavelmente grande, não havia razão
para que se desenvolvesse uma agricultura mais intensiva que implicaria, necessariamente, em
um maior dispêndio de mão-de-obra. Prova da disponibilidade de terras virgens apropriáveis é o
fato de praticamente todos os inventários28 referentes a unidades produtivas agrícolas ou
agropecuaristas terem a presença de porções de mato virgem. Ademais, cerca de um terço de
todas as unidades produtivas incluíam mais de uma porção de terra (tabela 3), o que demonstra a
facilidade e a prática usual de se adquirir ou incorporar constantemente novos trechos à fazenda
principal29.
TABELA 3
Porcentagem de U.P.(de mineração, agricultura ou mistas) com
presença de mais de uma porção de terras
Período
N total de U.P.
No de U.P. com mais de
uma porção de terra
1750-1770
21
6
28,6%
1780-1810
81
27
33,3%
1820-1850
153
43
28,1%
o
% de U.P. com mais de
uma porção de terra
Fonte: Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M.
O comentário de Ester Boserup sobre a resistência dos agricultores em aderir a um
sistema de cultivo mais intensivo, até mesmo quando incentivados por alguns governos, explica
bem a existência de um cálculo racional motivando tal atitude:
Tales objeciones son frecuentemente interpretadas como falta de interés en acrecentar la
producción global, pero se puede sugerir que quizá sea más plausible explicarlas como el resultado
de una comparación bastante racional entre el trabajo adicional necesario y la probable mejora de la
28
Vide os exemplos dos quadros 1 e 2 em anexo.
Estas várias porções de terra podiam ou não, serem contíguas ao terreno original. A continuidade ou não de tais terras
poderia ser importante para discutir outras questões, no entanto, o que nos importa discutir neste caso é o fato da
possibilidade de incorporação de novas áreas ao terreno original, não sendo relevante a sua localização.
29
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
69
producción que se conseguirá. Entonces puede ser que esté basado en sólidos razonamientos
económicos más bien que en la indolencia, lo que induce a las comunidades de cultivadores según
el sistema de barbecho largo a rehusar el abandono del fuego y del hacha, cuando se les ofrece
ayuda para el cambio al cultivo de arado, y preferiem irse a otro lugar del bosque, donde haya sitio
para seguir practicando el sistema del barbecho largo30.
As observações de Saint-Hilaire são exemplares quanto ao mecanismo que motivava os
agricultores da região de Mariana a fazerem o mesmo tipo de cálculo sugerido por Boserup e
explicam por quê, no nosso caso específico, era extremamente racional, e prática comum, a
opção por este tipo de produção extensiva. Os comentários de Saint-Hilaire sugerem-nos até que
surpreendente seria se os homens da época não fizessem tal opção:
O interesse que o lavrador tem em conservar sua terra é a melhor garantia dos esforços que fará
para bem cultivá-la: esse interesse não o possuíam os primeiros habitantes do Brasil, e mal o
sentem seus atuais descendentes. Uma região imensa se lhes oferecia aos olhos; às vezes um
homem subia a uma elevação e exclamava: "tudo que avisto me pertence"; e em tempos recentes
ainda se viu recompensar por uma doação de vinte e quatro léguas de terras, sobre ambas as
margens de um rio navegável, algumas obscuras vitórias alcançadas sobre índios tímidos. Homens
que podiam dispor à vontade de um território imenso, não tinham nenhuma necessidade de tomar
precauções para poupar o pedaço de terra em que acabavam de colher alguns grãos31.
Além disso, nas condições do relevo e do tipo de cultivo praticado na região de Mariana, o
uso do arado é que seria, de fato, irracional. Quando se pratica uma agricultura de coivara, o
terreno aclarado (ou queimado) permanece com muitos resíduos e pode ser perfeitamente
trabalhado pela cavadeira e pela enxada. Já o uso do arado exige uma superfície mais plana e
sem obstáculos para dar bons resultados.
Quanto à possibilidade de aumento da produtividade e, portanto, dos lucros que uma
prática agrícola mais intensiva promoveria, as argumentações de Boserup nos parecem mais uma
vez muito pertinentes e aplicáveis ao nosso caso.
Sobre esta questão, argumenta que a
complexificação das técnicas serve mais para compensar as deficiências de um solo mais
freqüentemente cultivado do que propriamente para aumentar o volume da produção. Por tudo
isso, existindo terras virgens disponíveis, não se passará a outro sistema de cultivo. O aumento
dos rendimentos será preferencialmente incrementado mediante o acréscimo de novas áreas
(virgens) altamente produtivas, com pouca inversão de tempo de trabalho ou pouco dispêndio de
força de trabalho.
Como bem observou João Luís R. Fragoso, estávamos diante de um sistema de uso da
terra "em que a disponibilidade das matas substituía a existência de um trabalho adicional na
refertilização dos solos ou de um longo período de pousio"32. Portanto, a reprodução da unidade
produtiva estava diretamente vinculada à possibilidade de incorporação de matas virgens à
30
BOSERUP, Ester. Op. cit., p. 113.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., pp. 89-90.
32
FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Sistemas agrários em Paraíba do Sul (1850-1920). Rio de Janeiro: 1983. Dissertação
(Mestrado em História) - UFRJ, p. 75.
31
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70
fazenda __ o que funcionava como condição sine qua non para a reprodução ampliada do sistema
econômico.
Embora condenando o "exagerado" número de queimadas feitas no sistema de cultivo
agrícola praticado na província de Minas, John Luccock demonstrou uma profunda sabedoria e
senso de alteridade quando disse: "este processo, porém, é velho e aceito e, portanto, deve ser o
melhor, e essas impressões hão-de perdurar até que as necessidades imperiosas da sociedade
exijam uma transformação"33.
Por volta de 1835 os efeitos negativos deste tipo de agricultura já se faziam sentir e
preocupavam o presidente da província. A população em crescimento e o esgotamento das terras
pareciam-lhe exigir providências urgentes:
A facilidade , com que entre nós pode adquirir-se grande êxtensão de terras, e a sua natural
fertilidade, são parte para que se tenhão conservado como que esquecidos os recursos, com que a
Arte costuma tornal-as productivas. O fogo, e o machado, estes dous agentes de destruição, são os
que se empregão quasi exclusivamente na cultura das terras, e d'aqui nasce que ellas parecem
tornar-se estereis, passados alguns annos, e os possuidores julgão-se na necessidade de
abandona-las como inuteis, quando ellas podião continuar a dar-lhes as mesmas, ou ainda maiores
vantagens pelo emprego de forças artificiais. Esta consideração, não menos que o progressivo
aumento da população, a par da qual devem caminhar as providencias agrarias, exige que se olhe
com muita seriedade para um objecto, cuja importancia é manifesta n'uma Provincia agricola34.
Ou seja, o Presidente da Província tocava nos pontos exatos que poderiam levar a uma
transformação no sistema agrícola: incremento da população e esgotamento das terras (ou para
ser fiel às idéias de Ester Boserup, aumento da freqüência de cultivo). No entanto, o antigo
sistema perduraria ainda por longos anos
__
com certeza até 1850
__
e, provavelmente,
ultrapassaria os limites do século XIX.
Cabem ainda aqui alguns comentários sobre a mineração, em cuja atividade, também se
praticaram formas de exploração extensivas. Embora se possa dizer que nesse setor tenha havido
um certo grau de intensificação das técnicas de produção, esta não foi além da construção de
canais ou da passagem do sistema da bateia para o de escavação.
A própria crise da mineração é uma prova concreta da produção extensiva como traço
estrutural do sistema econômico em questão. Afinal, a crise da mineração na região não foi
deflagrada por uma crise de demanda no mercado internacional pelo produto, nem pela escassez
do ouro, mas sim, pelo esgotamento das "terras e águas minerais" de fácil exploração. O ouro
ainda existia em abundância na região. O que não existia eram capitais suficientes para se investir
numa forma de produção mais intensiva, como a que se tornara necessária. Prova disto é o
relativo sucesso das companhias estrangeiras que se instalaram na região no século XIX.
33
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
EDUSP, 1975, p. 294.
34
R.P.P., 1835, pp. X-XI.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
71
Para a mineração praticada na região, a incorporação de novas terras era tão, se não até
mais, importante quanto para a agricultura. O percentual de unidades produtivas especializadas
na mineração que possuíam mais de uma porção de "terras e águas minerais", seguiu os mesmos
padrões das demais U.P., ficando em torno de 30% das propriedades. Também pelo quadro com
exemplos de U.P. agropecuaristas e mineradoras em anexo, percebemos como era comum um
único proprietário ter mais de um terreno apropriado para a exploração mineral. Na mineração, a
produção tinha caráter ainda mais extensivo e predatório, já que, neste tipo de atividade, não é
possível nenhuma prática equivalente ao pousio para a agricultura, por exemplo. Quando o ouro
de fácil extração se esgotava, não adiantava deixar a terra em descanso para, anos mais tarde,
retornar a produzir. Só restava ao minerador abandonar aquela terra ou usá-la para outros fins,
para a produção agropecuária por exemplo, que muitas vezes já era desenvolvida paralelamente
à atividade extrativa.
Outra prova da forma extensiva de produção na mineração são os baixos investimentos
em instrumentos de trabalho e equipamentos nas unidades produtivas que se dedicavam à
mineração. Mesmo no caso da construção de canais e, às vezes, de galerias, que à primeira vista
pareceriam exigir custos de inversão muito altos, na verdade tais gastos faziam parte da atividade
normal de uma unidade produtiva mineradora, não se constituindo em nenhum gasto não
previsível ou em uma inovação técnica diferenciadora35.
Nas propriedades que se dedicavam à mineração, tanto quanto nos demais tipos de U.P.,
o grosso dos investimentos produtivos se concentrava na mão-de-obra escrava. É sobre esta
questão que versará o próximo ponto.
2.2. Concentração das inversões produtivas
Já vimos como a possibilidade de fácil acesso a terras virgens era importante para a
reprodução do sistema econômico e se constituía num dos seus traços estruturais. Debruçar-nosemos agora sobre outro dado fundamental para o funcionamento da economia escravista mineira:
a possibilidade de constante incorporação de mão-de-obra a baixos custos.
Ao contrário do que acontece no capitalismo, em que as grandes inversões de capital na
produção e as alterações tecnológicas são fundamentais para a reprodução ampliada da
economia, no sistema econômico em questão (não-capitalista), esta era feita de forma extensiva:
incorporando constantemente mais terras e mão-de-obra. Dependia fundamentalmente, portanto,
35
CARMAGNANI, Marcello. Formación y crisis de un sistema feudal: América Latina del siglo XVI a nuestros dias. 3a ed.
México: Siglo Veintiuno Editores, 1980, p. 42.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
72
de uma fronteira aberta e de uma oferta elástica de mão-de-obra. João Fragoso, muito
adequadamente, preferiu chamar este processo de reprodução extensiva36.
Os mecanismos que possibilitaram o fornecimento de escravos a baixos custos durante
praticamente todo o período colonial, foram muito bem explicados por João Fragoso e Manolo
Florentino no livro O Arcaísmo como projeto37.
Em nosso caso específico, percebemos que a oferta de cativos a baixos custos foi
constante na região de Mariana de 1750 até 1850. Pela tabela 4 percebemos que o preço médio
dos escravos chegou mesmo a declinar à medida que houve uma possibilidade para o
crescimento vegetativo da população escrava e, portanto, maiores contingentes do plantel podiam
ser repostos internamente. Só nos anos finais do período houve aumento nos preços, o que
ocorreu devido ao fim do tráfico legal.
TABELA 4
Variação do preço médios de escravos saudáveis com idade entre 20
e 30 anos em Mariana
Ano
Números absoluPreço médio em
Preço médio em
tos de escravos
mil-réis
libras
1750
33
169.136
47.577
1760
12
161.667
45.476
1770
24
101.625
28.586
1780
28
101.214
28.471
1790
60
107.250
30.169
1800
83
116.554
32.786
1810
62
128.171
38.291
1820
84
157.083
33.707
1830
114
310.281
29.477
1840
66
407.273
52.606
1850
72
519.583
62.133
Fonte: Inventários do I e II Ofícios da C.S.M.
36
FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Op. cit., 1983, p. 91.
FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite
mercantil no Rio de Janeiro, c.1790-c.1840. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993. Principalmente o ponto 3 do segundo
capítulo.
37
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
73
Os preços dos cativos em Mariana variaram muito pouco em relação aos praticados no Rio
de Janeiro, ficando, no máximo, 9% mais caros que na Corte38. Além disso, se considerarmos
que, até pelo menos 1850, o número de não-proprietários de escravos permaneceu sem sofrer
alterações, chegaremos à conclusão de que, apesar de ter seu preço aumentado nas últimas
décadas da nossa análise, o escravo não se tornou em Mariana uma mercadoria de acesso muito
mais difícil. Ou seja, a possibilidade de aquisição deste tipo de mão-de-obra permanecia ainda
bastante difundida entre a população da região.
Num sistema econômico como o analisado, que se baseava numa forma de produção
extensiva, no qual o crescimento ou a manutenção dos níveis de produtividade eram dados pela
fertilidade do solo (terras virgens) e pelo aumento da área cultivada, as inversões produtivas39 do
excedente se concentrariam majoritariamente na aquisição de mão-de-obra e nos imóveis. No
capitalismo, os investimentos em equipamentos e instrumentos de trabalho constituem uma
grande parte das inversões. No caso do sistema econômico vigente em Minas Gerais neste
período, os instrumentos de trabalho representavam pouquíssimo, nunca ultrapassando os 1,37%
do total da riqueza de todos os inventários e representando no máximo 1,8% da riqueza total das
unidades produtivas. O grosso das aplicações produtivas era feito nos escravos e nas terras. Os
escravos nunca representaram menos que 22,26% da riqueza total, sendo que nas U.P. este
percentual ficou sempre acima dos 35%. Nas unidades produtivas os bens imóveis nunca
representaram menos que um quarto da riqueza, chegando a compor 46,3% desta no último
subperíodo (tabela 5).
38
Dados mais consistentes sobre este ponto foram apresentados no capítulo 2 de minha dissertação de mestrado.
ALMEIDA, Carla M. C.de. Op.cit.
39
Consideramos investimentos na produção a soma dos valores dos escravos, dos instrumentos de trabalho, da
colheita, do rebanho e dos bens imóveis. Infelizmente, não foi previsto pelo tipo de banco de dados que elaboramos para
trabalhar com os inventários, separar os imóveis não diretamente ligados à fazenda (imóveis na cidade,por exemplo).
Mesmo assim, não nos parece que tal fato cause grandes distorções, já que, ao tomarmos exemplos isolados estas
propriedades tem um pequeno peso dentro do total dos imóveis.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
74
TABELA 5
Composição (%) da riqueza nos inventários de Mariana (por subperíodos)
Só U.P.40
Todos os inventários
1o
2o
3o
1o
2o
3o
Dinheiro
-
5,65
3,54
-
0,8
2,7
Metais
1,56
1,09
0,14
3,2
0,7
0,2
Comércio
0,03
6,58
1,66
-
1,5
0,8
Jóias
0,68
1,31
1,18
1,3
1,3
1,0
Móveis
1,42
2,02
1,62
2,5
1,9
1,4
Instrumentos
0,76
1,35
1,37
1,4
1,8
1,8
Imóveis
15,70
17,28
25,26
28,5
25,5
32,4
Colheitas
0,12
0,55
0,60
0,2
1,0
0,8
Rebanho
0,76
3,40
4,27
1,5
3,3
5,7
Escravos
22,26
26,13
37,26
41,6
35,4
46,3
Divs. ativas
52,41
34,50
22,78
19,7
26,6
6,7
Outros
4,30
0,14
0,32
0,1
0,2
0,2
TOTAL:
100
100
100
100
100
100
Ativos
Fonte: Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M.
Para fazer uma avaliação mais detalhada e abrangente sobre a alocação dos
investimentos produtivos nesta economia, pareceu-nos fundamental analisar separadamente os
inventários relativos a unidades produtivas, ou seja, aqueles que se dedicavam de fato a algum
tipo de atividade criadora de riqueza. Além disso, também fizemos uma separação entre as U.P.
com e sem a presença da mineração, para tentar estabelecer possíveis diferenças na aplicação
dos recursos que se relacionassem aos distintos tipos de produtos. Para isto, elaboramos as
tabelas 6, 7 e 8.
40
Foram excluídos destes cálculos os autos 2155 e 2719, respectivamente de 1790 e 1820, que destoavam
enormemente do conjunto.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
75
TABELA 6
Percentual que as inversões produtivas (e dentro destas os escravos) ocupavam no total da
riqueza das U.P. por subperíodo em Mariana41
Subperíodo
No de
U.P.
Inversões Produtivas
Total da
riqueza*
total*
%
Escravos em relação às
inversões produtivas
total*
%
o
1
21
75.082,347
54.978,924
73,2
31.232,500
56,8
2o
81
189.269,612
126.696,664
66,9
67.081,600
52,9
3o
152
682.497,434
594.428,831
87,1
315.735,239
53,1
Fonte: Inventários do I e II Ofícios da C.S.M.
* Valores em mil-réis.
TABELA 7
Percentual que as inversões produtivas (e dentro destas os escravos) ocupavam no total da
riqueza das U.P. c/ mineração por subperíodo em Mariana
Subperíodo
No de
U.P.
Total da
riqueza*
Inversões Produtivas
total*
Escravos em relação às
inversões produtivas
%
total*
%
1o
13
57.343,696
41.617,325
72,6
23.008,500
55,3
2o
28
106.601,662
66.327,333
62,2
33.989,200
51,2
3o
22
136.339,720
108.744,114
79,8
39.495,410
36,3
Fonte: Inventários do I e II Ofícios da C.S.M.
* Valores em mil-réis.
41
Também excluídos os autos 2155 e 2719. O mesmo procedimento foi seguido na elaboração das tabelas 7 e 8.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
76
TABELA 8
Percentual que as inversões produtivas (e dentro destas os escravos) ocupavam no total da
riqueza das U.P. sem mineração por subperíodo em Mariana
Subperíodo
No de
U.P.
Inversões Produtivas
Total da
riqueza*
total*
%
Escravos em relação às
inversões produtivas
total*
%
1o
8
17.738,651
13.361,599
75,4
8.224,000
61,5
2o
53
82.667,950
60.369,331
73,0
33.092,400
54,8
3o
130
46.157,714
485.684,717
88,9
276.239,829
56,9
Fonte: Inventários do I e II Ofícios da C.S.M.
* Valores em mil-réis.
Comparando os investimentos que são feitos diretamente na produção (ou na fazenda)
com os que são aplicados fora dela, constatamos que as aplicações produtivas nunca chegaram a
representar menos que 67% do total da riqueza, chegando a atingir 87% no último subperíodo.
Esta grande concentração dos investimentos na produção perpassa todo o período e todos os
tipos de unidades produtivas (com ou sem mineração, no caso). Por exemplo: nas U.P. com
presença da mineração, este número variou entre 62,2% e 79,8%, e naquelas em que a
mineração estava ausente, oscilou entre 73% e 88,9%, ficando portanto este percentual muito alto
em todos os subperíodos e tipos de U.P. Tais dados demonstram o caráter reiterativo e,
conseqüentemente, estrutural deste aspecto do sistema econômico.
À primeira vista, tais constatações poderiam sugerir uma grande preocupação com o
aumento da produtividade. No entanto, apesar das inversões produtivas serem extremanente
elevadas, elas não eram feitas visando mudanças técnicas. Pelo contrário, o grosso das inversões
eram feitas em escravos e bens imóveis, ou seja, em mão-de-obra e área a ser trabalhada. Na
média geral de todas as propriedades, os escravos sempre representaram mais da metade dos
investimentos produtivos, havendo algumas variações entre as com e as sem produção mineral.
Considerando que estamos frente a uma economia que depende da incorporação
constante de terras virgens e mão-de-obra para se reproduzir, taxas tão elevadas de investimento
na produção devem ser entendidas como sendo necessárias mais para garantir o nível da
produção do que propriamente para aumentá-la. Prova disto é que, como já vimos, não há
nenhuma alteração nas técnicas de produção ou nos instrumentos de trabalho utilizados durante
todo o período. Além dos instrumentos de trabalho empregados com mais freqüência terem sido
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
77
os mesmos, desde 1750 até 1850, eles nunca representaram mais do que 1,6% do monte geral
das U.P. e chegaram a representar, no máximo, 2,5% dentro do total da riqueza produtiva.
É importante lembrar que baixo nível técnico, concentração majoritária dos investimentos
em escravos e mão-de-obra, são traços estruturais encontrados para outras regiões com tipos de
produção bastante distintos. Estou me referindo especificamente ao trabalho de João Fragoso
sobre o sistema agrário de Paraíba do Sul. É interessante como as nossas constatações estão tão
próximas e confirmam as afirmações de Fragoso:
Em outras palavras, retomando o gráfico no 3 e o quadro 14 se eles nos demonstram a pequena
participação dos "investimentos" em equipamentos no valor da fazenda, por outro lado, eles também
nos informam que os "investimentos" e, portanto, que o sobre-trabalho extraído dos escravos se
convertia principalmente em terras e em força de trabalho, cujo o valor relativo em conjunto
representava nunca menos que 50% do total da fazenda. E se a isso combinamos à persistência, no
tempo, dos instrumentos de trabalho agrícolas (...) e do sistema de uso da terra (...), isto é, do baixo
nível técnico por eles representados, infere-se que o sobre-trabalho invertido na lavoura assumia
aspectos quantitativos não gerando uma mudança técnica, mas antes a "repetição de um processo
de produção", o que caracteriza a reprodução desse sistema como extensiva42.
É possível que estejamos frente a uma mesma forma ou lógica de produzir que, com
pequenas alterações regionais, estaria presente em grande parte do território (ou pelo menos da
região centro-sul) e de todo o período colonial brasileiro. À medida que novos estudos regionais
forem sendo produzidos, talvez possamos estabelecer melhor, os limites de abrangência deste
sistema econômico.
2.3. Hierarquia social excludente
A concentração da riqueza em muitas ou poucas mãos nos revela em que medida uma
sociedade é mais ou menos justa, ou até que ponto há possibilidades de ascensão social em seu
seio43. Ao analisarmos alguns indicadores de como estava distribuída a riqueza entre os
inventariados de Mariana que a nossa amostragem abarca, chegamos a outro traço estrutural do
sistema econômico: a existência de uma hierarquização social extremamente acirrada e
excludente e que se perpetuava ao longo do tempo.
Pelas tabelas 9 e 10 verificamos que há uma diminuição do número percentual de
inventariados na faixa de grandes fortunas ao longo do tempo acompanhada de um aumento
proporcional da quantidade de riqueza que detêm. Isto significa que embora tenha diminuído o
42
FRAGOSO, João Luís R. Op. cit., 1983, p. 91.
Na sociedade escravista este conceito de justiça é muito relativo na medida em que grande parte da riqueza é
constituída por homens (escravos). De qualquer forma, estamos nos referindo especificamente aos homens livres, ou
seja, à possibilidade de uma maior ou menor eqüidade entre eles. Obviamente quando falamos aqui em ascensão social
estamos também nos referindo exclusivamente aos homens livres.
43
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
78
número de grandes fortunas
declínio
__
ou seja, o nível de riqueza da economia como um todo estava em
__
, a concentração da riqueza
tendeu a aumentar, já que, apesar do número de
proprietários da maior faixa de fortunas ter caído pela metade do primeiro para o segundo
subperíodo, o percentual de riqueza concentrado nesta faixa se manteve o mesmo. Se
considerarmos que no último subperíodo tanto a porcentagem da riqueza quanto a dos
inventariados caiu pela metade, constataremos que o perfil desta faixa permaneceu
proporcionalmente igual ao anterior.
TABELA 9
Distribuição dos inventariados e dos montes por faixas de tamanho
de fortuna (números absolutos em libras) e subperíodo
Total
Invs.
Soma total
dos montes
até 1000 Libras
Montes
Invs.
1o
34
42.725,868
1.146,388
25
9.184,823
5
22.394,657
4
2o
128
99.659,038
8.589,251
108
20.539,229
14
50.530,558
6
3o
204
127.695,574
7.437,388
173
48.663,152
28
31.595,034
3
Sub
1001 a 3000 Libras
Montes
Invs.
+ 3000 Libras
Montes
Invs.
Fonte: Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M.
TABELA 10
Distribuição dos inventariados e dos montes por faixas de tamanho
de fortuna (números percentuais) e monte-mor médio subperíodo
Sub.
Monte
médio
1o
45,855
26
73
1.836,964
22
15
5.598,664
52
12
o
64,715
29
84
1.467,087
20
11
8.421,759
51
5
o
74,204
37
85
1.737,969
38
13
10.531,678
25
2
2
3
Até 1000 Libras
%
riqueza
%
invs.
1001 a 3000 Libras
monte
médio
%
riqueza
+ de 3000 Libras
%
invs.
monte
médio
Fonte: Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
%
riqueza
%
invs.
79
Ao verificarmos que entre 1780 e 1810 somente 5% dos inventários detinham mais da
metade da riqueza e entre 1820 e 1850 somente 2% concentravam um quarto do total dos
montes, e que, além disto, durante todo o período a enorme maioria da população inventariada
(73 a 85%) nunca possuiu mais do que 37% da riqueza, concluímos que estamos frente a uma
sociedade extremante excludente em que a possibilidade de alçar vôos em termos de ascensão
social foi vedada à grande maioria das pessoas livres. Além disso, comparando os dados da
tabela 11 com os resultados encontrados por João Fragoso para o Rio de Janeiro, percebemos
que essa hierarquia social excludente não foi uma especificidade de Minas Gerais mas antes, um
traço comum a várias regiões coloniais. Enquanto em Mariana 10% dos inventariados detiveram
entre 52,4% e 63,7% da riqueza, Fragoso demonstrou que no Rio de Janeiro, entre 1797 e 1860,
"mais de 60% dos montes-brutos são retidos por 9,1% a 14,0% dos inventariados"44.
A tabela 10 nos permite também avaliar que faixas de tamanho de fortunas foram mais ou
menos afetadas pela crise da mineração. Embora diminuindo numericamente, os homens mais
ricos da região ficaram, em média, ainda mais ricos, já que dentro da faixa de fortuna mais alta o
monte-mor médio aumentou gradativamente, ao passo que nas demais faixas a tendência foi de
um declínio constante do valor médio do monte. A faixa de fortuna intermediária (ou os médios
possuidores de riqueza) é que sofreu menos alterações no valor dos seus níveis de riqueza, tendo
o seu monte-mor médio oscilado entre os valores de 1.467,087 (2o subperíodo) e 1.836,964 libras
(1o superíodo). Entre 1750 e 1770 um inventário da maior faixa de fortuna implicava em média 13
vezes mais riqueza que um da menor faixa. No último subperíodo esta disparidade chegou a ser
de 38 por 1, ou seja, um homem rico tinha em média 38 vezes mais riqueza do que um
inventariado da menor faixa de fortuna!
Tais dados nos permitem afirmar que, à medida que avançamos no tempo, entre os
homens livres, os mais ricos ficaram cada vez mais ricos, os mais pobres cada vez mais pobres, e
os possuidores de faixas médias de fortuna, relativamente estáveis. Em outras palavras, os níveis
da desigualdade entre as pessoas livres aumentaram muito no decorrer do período e tenderam
para uma extrema polarização da riqueza e da pobreza.
Outro fator de comprovação da existência e persistência de uma hierarquização social dos
livres tão excludente na região de Mariana, é a concentração das dívidas ativas em pouquíssimas
mãos.
44
FRAGOSO, João Luís Ribeiro Fragoso. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do
Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992, pp. 254-255.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
80
TABELA 11
Percentual da riqueza e das dívidas que os 10% de inventariados mais ricos detinham e da
% que as dívidas ativas representavam na composição de suas fortunas
Subperíodo
1o
% da riqueza total
detida pelos 10% mais
ricos
52,4
% do total das dívidas
detida pelos + ricos
% das dívidas na riqueza
dos + ricos
76,1
76,1
2o
63,6
79,8
43,3
3o
53,7
82,3
35,0
Fonte : Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M.
Embora quase todos os inventariados possuíssem dívidas ativas e fosse muito comum a
conjugação de algum tipo de atividade comercial (empréstimos, casa de comércio, existência de
tropas para comercializar a produção, dentre outras) com a atividade produtiva dentro das
empresas, a concentração do crédito em poucas mãos confirma as observações de Fragoso e
Florentino sobre o predomínio do capital mercantil na economia colonial. Ou seja, o fato dos 10%
de homens mais ricos da região deterem no mínimo 76,1% e no máximo 82,3% da soma de todas
as dívidas ativas existentes, e destas nunca terem representado menos que 35% de suas
fortunas, revela que o capital mercantil foi mais lucrativo que o produtivo e que, à grande maioria
da população livre estava vedado o acesso em níveis significativos a este tipo de rendimento. As
observações dos autores são conclusivas para o caso que estudam e nos parecem aplicáveis ao
que encontramos em Mariana:
Ora, sabendo-se que os níveis de rentabilidade do agro são inferiores aos obtidos no comércio,
podemos formular a seguinte tese: a dinâmica de funcionamento do mercado não capitalista,
no caso do Brasil, conduzia os mais pobres homens livres ao investimento nas atividades de
menor lucratividade, com o que perpetrava-se a pobreza e a reiteração temporal da altíssima
diferenciação social __ do poder, enfim. A única possibilidade de reversão desta tendência seria o
acesso das menores fortunas à esfera mercantil, opção definitivamente vedada aos pobres45.
45
FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 78.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
81
3. A dinâmica a curto prazo
3.1. Tendência à diversificação econômica
O sistema econômico em funcionamento na região de Mariana entre os anos de 1750 e
1850, desenvolveu uma estratégia de resistência às conjunturas econômicas desfavoráveis que
consistiu em uma tendência à diversificação da unidade produtiva visando, não só uma redução
dos custos de reprodução
__
e, portanto, ao aumento dos lucros
__
, mas também a uma menor
dependência do mercado. Numa economia que tem sua "taxa de lucro" definida pela diferença
entre o preço de custo e o preço de venda dos produtos, a diminuição dos custos monetários é
fundamental para o perfeito funcionamento da unidade produtiva e, segundo Witold Kula, esta é
uma tendência geral dos sistemas econômicos não-assentados no trabalho assalariado.
Analisando as unidades produtivas da economia feudal polonesa, Kula fala da tendência à
"naturalização máxima" (produção interna à U.P. do maior número possível de bens necessários
ao domínio) para a "comercialização máxima". Vejamos:
A produção deve, pois, manter-se a si mesma e satisfazer as necessidades do consumo
corrente do pessoal e da família do proprietário, e todo o dinheiro obtido através da venda
do maior excedente possível deve destinar-se à compra de artigos de luxo. Naturalmente,
quanto maior fosse o número de artigos produzidos na reserva em substituição dos que
normalmente se adquiriam, maior seria o "nível de luxo" dos bens adquiridos a troco de
moeda corrente sonante. Tratar-se-ia pois de uma tendência para a "naturalização"
máxima em ordem a alcançar a comercialização máxima: fórmula que, por mais paradoxal
que pareça, corresponde fielmente à realidade ou, pelo menos, às intenções do nobre46.
No nosso caso, além dos cálculos de caráter exclusivamente econômico, achamos que a
"naturalização máxima" visava à "comercialização máxima", não necessariamente de artigos de
luxo mas, principalmente, de: escravos, símbolo de status para seu possuidor; e terras, motivada
pelo ideal aristocratizante da elite colonial47.
Em Minas Gerais é possível também que parte do excedente fosse destinado ao
financiamento de obras de arte e/ou à construção de igrejas. Em uma sociedade onde todas as
categorias sociais estavam ligadas a uma irmandade48 que, quase obrigatoriamente, devia
construir templos para seus santos padroeiros, este talvez pudesse ter sido o destino de parte do
excedente produzido. Só temos condições de aventar esta questão como hipótese. Estudos mais
detalhados sobre este assunto poderiam trazer novas luzes sobre a esterilização de parte dos
excedentes neste tipo de investimento. Além disso, a grande tributação imposta pela coroa,
46
KULA, Witold. Op. cit., 1979, p. 132.
Sobre a aquisição de propriedades rurais como parte de um ideal aristocratizante da elite colonial ver: FRAGOSO,
João e FORENTINO, Manolo. Op. cit., cap. IV.
48
Sobre a questão da vinculação dos diversos seguimentos sociais às irmandades ver: BOSCHI, Caio César. Os
leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986.
47
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
82
principalmente sobre a produção de ouro, muito provavelmente influía nos cálculos econômicos
dos proprietários e funcionava como mais um fator de influência na tendência à diversificação das
U.P.. Ou seja, se era necessário aos produtores mineiros da época esterilizarem parte do seu
excedente em obras de arte e tributação, tornava-se ainda mais fundamental reduzir os seus
custos de reprodução com vistas a compensar os gastos "necessários" com mais estas
"despesas".
Essa necessidade de redução dos custos de reprodução da empresa se agrava ainda
mais quando se depende em grande parte do mercado para repor o seu principal "meio-deprodução", no nosso caso, o escravo. Não podendo estar completamente independente do
mercado para sua reprodução, as unidades produtivas tentavam reduzir ao máximo essa
dependência, produzindo internamente os demais bens necessários à sua sobrevivência. Assim,
quanto mais diversificada, mais lucrativa era a empresa e maiores eram as suas possibilidades de
resistir às crises ocasionadas pelas flutuações do mercado. Minas Gerais levaria ao limite esta
tendência das economias não-capitalistas no sentido de que conseguiu até, reproduzir
internamente parte da sua força-de-trabalho.
É interessante perceber que a tendência à diversificação aumentou na medida em que a
produção de ouro entrou em crise. Ou seja, à medida que a economia mineira passava a se
apoiar como atividade principal na agropecuária, a qual, como é sabido, gerava níveis de
rendimentos muito menores que a mineração, a diversificação da U.P. passou a ser fundamental
como estratégia para compensar as baixas nas taxas de rendimentos. Por isso, ao longo do
período em questão, verificamos um aumento no número percentual de propriedades com
presença de teares, roda de fiar, alambique, grade de fazer telha, tenda de ferreiro, etc.
As unidades produtivas diversificadas sempre foram capazes de concentrar a maior parte
da riqueza. Embora fossem sempre em menor número nos parece significativo, o fato das U.P.
diversificadas, terem concentrado nunca menos que 71% da riqueza total das U.P. (tabela 12).
Ademais, tiveram sempre o valor do monte-mor médio mais elevado que as especializadas (tabela
13). A diferença entre os valores do monte médio de uma U.P. especializada e uma diversificada
ficou em torno de 2 por 1 a favor desta última. Ou seja, uma propriedade que se dedicasse a mais
de uma atividade, possuía aproximadamente duas vezes mais riqueza que uma U.P.
especializada. Quando consideramos o valor do monte médio por cada tipo de U.P.
separadamente (tabela 14), percebemos que, quanto mais diversificada a U.P., maiores índices
de grandeza ela demonstrava, já que quase sempre o valor do monte-mor médio era maior
naquelas que concentravam mais atividades produtivas.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
83
TABELA 12
Subperíodo
% da riqueza concentrada nas U.P.especializadas e diversificadas
(por subperíodo) – Mariana
Total da riqueza
U.P. Especializadas
U.P. Diversificadas
das U.P.
soma dos montes
%
soma dos montes
%
75.082,347
14.209,403
19
60.872,944
81
2o
189.269,612
55.096,448
29
134.173,164
71
3o
682.497,434
136.012,776
20
546.484,668
80
o
1
Fonte: Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M.
TABELA 13
Monte-mor médio em mil-réis nas U.P. especializadas e diversificadas
(por subperíodo) – Mariana
U.P. especializadas
U.P.diversificadas
o
Subperíodo
Monte médio
n de inventários
Monte médio
no de inventários
1o
1.776,175
8
4.682,534
13
2o
1.530,457
36
2.981,626
45
3o
2.428,799
56
5.692,549
96
Fonte: Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M.
TABELA 14
Monte-mor médio em mil-réis por tipo de U.P. e subperíodos e número médio de escravos em
Mariana
Tipos de
U.P.
1750-1770
1780-1810
o
Monte-mor
médio
o
n médio
escravos
1820-1850
n médio
escravos
Pecuária
359,854
2
758,370
6
1.178,045
2
Agrícola
1.847,134
6
907,930
7
2.669,687
7
Mineradora
2.153,671
14
3.838,885
8
2.131,353
4
Agropecuária
3.330,087
20
2.325,291
9
5.209,315
11
Agrícolamineradora
Agropec.mineradora
3.998,013
20
4.050,573
19
9.017,085
14
5.555,521
24
3.739,912
20
8.028,743
15
Fonte: Inventários dos I e II Ofícios da C.S.M
Obs.: Excluídos das tabelas 13 e 14, os autos 2155 e 2719.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
Monte-mor
médio
no médio
escravos
Monte-mor
médio
84
Também o número médio de escravos (tabela 14) nas unidades produtivas diversificadas
foi, em todos os subperíodos, bem maior do que nas especializadas, sendo que, entre estas, o
número médio tendeu a ser maior nas exclusivamente mineradoras, só sofrendo alteração no
último subperíodo quando tal atividade já tinha caráter subsidiário dentro da economia como um
todo. As propriedades que se dedicavam exclusivamente à pecuária foram as que apresentaram
durante todo o período o menor número de escravos. Tais dados confirmam duas tendências já
tradicionais dentro da historiografia: uma que constata a existência de maiores plantéis nas
produções voltadas para a exportação, e outra que diz que a pecuária era a atividade que
necessitava de menor contingente de mão-de-obra.
O monte-mor médio tão baixo nas U.P. especializadas na pecuária nos sugere também
que, de modo geral, estas eram propriedades que pouco comercializavam sua produção e que,
quando o faziam, tinham como objetivo adquirir bens (agrícolas principalmente) necessários à
sobrevivência dos seus membros. Ou seja, quando chegavam a comercializar os seus excedentes
era mais no sentido de uma troca pelos alimentos que necessitavam do que propriamente para
auferir lucros.
As poucas U.P. exclusivamente pecuaristas realmente voltadas para o mercado também
não conseguiam ter grandes lucros. As duas maiores propriedades exclusivamente dedicadas à
pecuária existentes na nossa amostragem tinham os valores de seus montes enquadrados na
menor faixa de fortuna com que estamos trabalhando (sucessivamente 312,651 e 626,872 libras).
O que explica tão baixos níveis de riqueza é incapacidade destas U.P. em produzir internamente
pelo menos parte dos bens necessários a sua auto-reprodução. Explicando melhor. Ao terem que
recorrer ao mercado para suprirem todas as suas necessidades, principalmente de alimentos
(arroz, feijão e milho49), mesmo tendo um rebanho comercializável, estas unidades produtivas não
conseguiam ter grandes lucros porque parte dos rendimentos alcançados com a comercialização
de seu excedente era destinado à compra dos bens necessários para sua reprodução.
A produção pecuaristas que, se destinando ao mercado, não só provincial como também
do Rio de Janeiro, conseguia ser consideravelmente lucrativa era aquela desenvolvida
conjuntamente com a produção agrícola.
Basta ver que o valor do monte-mor médio das
fazendas de agropecuária chegou a ser, entre 1750 e 1850, nove vezes maior que os da pecuária.
No último subperíodo, embora houvesse diminuído, esta diferença ainda era muito significativa,
tendo as U.P. agropecuaristas monte médio 4,5 vezes maior que as de pecuária (tabela 14). Estas
49
Como já foi visto, no caso do milho além de fazer parte da dieta alimentar dos livres e dos escravos envolvidos na
fazenda, era também fundamental na engorga do rebanho, o que tornava a sua não produção um fator agravante no
que diz respeito ao aumento dos custos de reprodução da U.P.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
85
considerações nos parecem definitivas para provar que a tendência à diversificação econômica foi
uma estratégia bem sucedida do produtor para reduzir custos e, conseqüentemente, tornar as
propriedades mais lucrativas.
Outro dado importante a considerar é o fato de ter crescido o número percentual de U.P.
com presença de tropas50. Se os lucros da empresa advêm da diferença entre o preço de custo e
o de venda do produto, a medida em que o produtor cuida ele mesmo da comercialização da
produção, os rendimentos podem aumentar. Este é também mais um indicador de que as
unidades produtivas tenderam para a diversificação tanto dos tipos de produtos quanto das
atividades de possível desenvolvimento pela mesma.
Para concluir, concordamos com João Fragoso e Manolo Florentino quando afirmam que
existiu na colônia um tipo de estrutura produtiva que tinha sua dinâmica definida, pela constante
incorporação de terras, alimentos e mão-de-obra a baixos custos, o que lhe possibilitava uma
relativa autonomia em relação ao mercado exterior, e cujo "sentido" era a perpetuação de uma
diferenciação social excludente51.
50
Os dados numéricos sobre esta questão já foram citados no capítulo II. de qualquer forma, o percentual de
inventários com tropas passou de 3%, para 17% e 18% sucessivamente ao longo dos períodos.
51
FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. Op.cit.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
86
QUADRO I
Quadro com exemplos de U.P. dedicadas à agropecuária
Mariana 1750-1850
Ano
No
Plantel e
Monte-mor
1750
No 1
16 cativos
4:799$308
IMÓVEIS
Nome do inventariado e descrição dos
imóveis
-ANTÔNIO GONÇALVES PEREIRA
-1 morada de casas c/quintal na cidade
-1 sítio de roça, com casas de vivenda
e senzalas, tudo coberto de capim, com
capoeiras e restingas de mato virgem que
levarão 60 alqs. de planta e 15 de milho
plantado, sito na Varge.
Edificações
-paiol
-moinho corrente
e moente
-roda de ralar
mandioca c/eixo
de ferro e mais
aportes
Instrumentos
de trabalho e
equipamentos
Tipo de
Produção
-milho
Rebanho
-foices 12
-enxadas 13
-machados 4
-alavancas 1
-forno
1
-tachos
3
-carros
2
-cavalos 6
-suínos 31
-foices
5
-enxadas 6
-machados 4
-forno
1
-tachos
4
-bois de
carro
8
-cavalos 3
-caprinos 3
-bovinos 5
-foices
7
-enxadas 7
-machado 1
-carapina 6
-tachos
2
-bovino 1
-suinos 8
-foices 16
-enxadas 12
-machados 5
-alavanca 1
-carapina 16
-grade de fa
zer telha 1
-alambique 1
-tachos
2
-tachas
2
-formas de
açúcar
-pipa de guardar cachaça
-foices
8
-enxadas 3
-machados 3
-cavadeira 1
-aparelho de
ferrar
1
-carapina 2
-tachos
2
-roda de fiar 1
-tear
1
-carro
1
-cavalos 2
-muares 27
-juntas
-JOÃO DE SOUZA SILVA
1750
No 2
17 cativos
2:477$653
-1 sítio de roça c/capoeiras q/levarão 30
alqs., c/restingas de mato virgem casas de
vivenda e senzalas cobertas de telha, árvores
de espinho e bananal. Sito na paragem do
Pissarrão, Freg.de São Sebastião.
-moinho corrente
e moente
- JOÃO FERREIRA TEIXEIRA LEAL
1770
No 3
28 cativos
2:713$299
1800
No 4
25 cativos
7:925$288
1810
No 5
15 cativos
4:641$915
-1 roça que consta de terras de planta,
matos virgens e capoeiras. Com casas de
vivenda térreas cobertas de telha e senzalas
cobertas de capim. Sita no Corgo do Araújo
Freg. do Furquim.
-JOSÉ CARDOSO MACHADO
-1 morada de casas no arraial de S. Sebastião coberta de telha de sobrado, c/a loja
-1 rancho de telha p/a tropa no arraial
-1 fazenda c/terras de planta, capoeiras e
matos virgens, casas de vivenda e senzalas
cobertas de telha sita na paragem de São
Domingos, Freg. do Sumidouro.
-1 fazenda chamada da Mutuca com rancho
de capim, terras de planta, capoeiras e
matos virgens, no caminho que vai p/ o R.J.
-5 quarteirões de cana nova e outro de vez.
-MARIA DA COSTA DE OLIVEIRA
-1 morada de casas de sobrado c/quintal,
sitas no arraial da Espera
-1 fazenda c/casas de vivenda coberta de
telha c/uma sesmaria de terras de planta,
matos e capoeiras. Sita no Ribeirão da
Lage, Aplicação da Espera.
-engenho de água
de cana
-paiol
-moinho
-paiol
-moinho
-monjolo
-cana
-algodão
-milho
(550alqs.)
-arroz
(50alqs.)
-feijão
(8alqs.)
-açúcar
(17arrobas,
+312 vendidas no RJ)
-aguardente
( 6 barris)
-milho
(300alqs.)
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
de boi 3
-bovinos 25
-suínos
(vários)
-juntas
de boi 2
-cavalos 2
-muares 11
-bovinos 6
-suínos:
de seva 11
de pasto 40
87
-JOÃO MARTINS DE MEDEIROS
1810
No 6
8 cativos
1:472$475
-a parte q/tem nas casas da Piranga
-1 porção de terras de cultura quase
reduzidas a samambaia c/algumas
restingas demato virgem e capoeira,
c/casas de sobrado coberta de telha e
senzalas cobertas de capim.
-paiol
-moinho
-monjolo
-milho
(600alqs.)
-feijão
(10alqs.)
-foices 12
-enxadas 9
-machados 3
-alavanca 1
-carapina 8
-tachos
3
-carros
2
-juntas
de boi 3
-muares 11
-bovinos 6
-suínos:
de pasto 20
-engenho corrente e pertences
-2 moinhos
-2 paióis
-monjolo
-chiqueiro
-milho
(1500alqs.)
-arroz
(120alqs.)
-açúcar
(40arrobas)
-aguardente
(26 barris)
-café
-foices 32
-enxadas 37
-machados 8
-alavancas 3
-carapina 35
-tenda de
ferreiro 1
-forno
1
-alambique 1
-tachos
5
-tachas
3
-carros
4
-carretões 2
-juntas
de boi 12
-muares 2
-bovinos 8
-suínos:
capados 25
d/pasto 125
-moinho
-paiol
-engenho de bois
-arroz
-cana
-milho
(200alqs.)
-açúcar
mascavo
(20arrobas)
-foices 18
-enxadas 13
-machados 3
-alavanca 1
-carapina 17
-formas de
açúcar
12
-alambique 1
-esfriadeiras 2
-grade de
rapadura 1
-coxos de
garapa
3
-pipa para
aguardente 1
-tachos
5
-tachas
2
-carros
3
-tear
1
-juntas
de boi 6
-bovinos 4
-suínos:
capados 10
de pasto 60
-CAPITÃO JOAQUIM GOMES PEREIRA
1820
No 7
61 cativos
10:466$208
-1 sesmaria de terras de cultura com
capoeiras e matos virgens.
-1 fazenda sita na mesma sesmaria c/casas
de vivenda assobradadas e senzalas cobertas
de telha c/ quintal, bananal e cafezal
-1 canavial c/2alqs. de planta c/parte do
mesmo a cortar-se
-1 feijoal de 3alqs.de planta e 1 quarta
-CAETANA CORREA DE MAGALHÃES
1830
No 8
15 cativos
8:155$461
-1 sesmaria de terras c/capoeiras. Mato
virgem que se diz serem sobras da dita
sesmaria. Com casas de vivenda e senzalas
cobertas de telha.
-1 roça de 7 e 1/2alqs. de milho novo plan
tado na cana nova e arrozal.
-1 corte de cana p/se moer no presente ano
q/levará 3quartas de planta de milho.
-1 dito que levará 1/2 quarta de planta
que está nascendo no presente.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
88
- MANOEL LUÍS PEREIRA
1850
No 9
5 cativos
3:892$900
-20alqs. de terras de planta boas e más.
- Uma morada de casas de vivenda.
-1 porção de terras
-Mais 2 alqueires que foram de Manoel da
Silva Filgueiras.
-paiol
-moinho c/pouca
água
-engenho de bois
c/alguns pertences
-monjolo
-seva p/porcos
-cana
-milho
-arroz
-foices
6
-enxadas 6
-machados 2
-alavanca 1
-cavadeira 1
-tachos(as) 5
-forma/açúcar 2
-carros
3
-tear
1
-carapina 1
-cavalo 1
-bovinos 16
-suínos 22
-1 porção de cana plantada de novo
-1 roça de milho muito inferior de dois
alqueires e meio de planta.
-1 porção de cana mais velha.
-1 arrozal inferior que dará oito alqueires.
Fonte: Inventários da C.S.M.:
No 1: I Ofício - códice 29 - auto 720 - Local: Mariana (Varge)
No 2: I Ofício - códice 156 - auto 3261 - Local: Freguesia de São Sebastião
No 3: I Ofício - códice 80 - auto 1698 - Local: Freguesia do Furquim
No 4: I Ofício - códice 65 - auto 1400 - Local: Arraial de São Sebastião
No 5: I Ofício - códice 114 - auto 2371 - Local: Freg. de Sto.Ato. da Itaberaba (Aplicação da Espera)
No 6: I Ofício - códice 149 - auto 3119 - Local: Freguesia da Pomba (Distrito de Sra. das Dores)
No 7: I Ofício - códice 93 - auto 1943 - Local: Freguesia da Barra Longa
No 8: I Ofício - códice 140 - auto 2917 - Local: Freguesia de São Caetano
No 9: II Ofício - códice 35 - auto 817 - Local: Freguesia do Inficionado
Observações:
1) forno: refere-se sempre a forno de cobre de torrar farinha.
2) carapina: indica todos os instrumentos de carpinteiro, ferreiro e pedreiro.
3) todos os tachos foram incluídos como equipamentos por ser difícil separar os de uso exclusivamente doméstico
dos demais.
4) Freg.: Freguesia
5) alqs.: alqueires.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
89
QUADRO II
Quadro com exemplos de U.P. dedicadas à agropecuária e mineração
Mariana 1750-1850
Ano
No
Plantel
Monte-mor
1750
No 1
58 cativos
17:622$720
IMÓVEIS
Nome do inventariado e descrição
dos imóveis
-CAPITÃO ANTÔNIO ÁLVAREZ
FERREIRA
-1 morada de casas q/servem de venda
ao pé da capela de Santo Antônio.
-1 morada de casas q/servem de loja e
(...)na mesma paragem.
-1 morada de casas térreas cobertas de
telha c/seu quintal no arraial de
Guarapiranga.
-1 sítio de roça e lavra c/terras minerais
e água metida, casas de vivenda e
senzalas cobertas de telha.
-Umas terras de roça c/capoeiras q/
levarão 35alqs. de planta e mato
virgem de uma e outra parte do rio
Piranga c/terras minerais,corgo de águas
metidas q/(...) datas de terras minerais
tirada de um ribeirão pertencente às
mesmas terras.
Edificações
Tipo de
produção
-paiol
-moinho
-engenho
-roda e caixão
(...) e o mais
necessário de
serviço
-ferragem de roda e caixão
Instrumentos
de trabalho e
equipamentos
Rebanho
-foices 5
-enxadas 10
-machados ?
-alavancas 5
-almocafres 8
-tachos 4
-forno
1
-cavalos
-caprinos
-bovinos
-suinos
-foices 7
-enxadas 7
-machados 3
-alavanca 1
-marrão 1
-carapina 3
-tachos 4
-forno
1
-cavalos 2
-junta de boi 1
-bovinos 7
-suínos 18
1
5
2
9
-2 datas de terras minerais no rio da
Guarapiranga.
-2 datas de terras minerais no rio da
Guarapiranga, acima da cachoeira.
-Umas capoeiras q/levarão 150alqs.de
planta c/restingas de mato virgem
sitas no corgo chamado o Angú que faz
barra no rio Pirapetinga.
-1 posse de roça com terras de matas
virgens sita no ribeirão do (Turvo) q/faz
barra no rio Chopotó, a qual pela
vizinhança do gentio por hora não se lhe
pode dar valor algum.
1770
No 2
17 cativos
7:057$283
-LICENCIADO JOÃO FRANCISCO
NOGUEIRA
-1 morada de casas térreas cobertas de
telha com quintal no arraial de São
Sebastião.
-1 rancho de capim quase a cair com
quintal, bananal e laranjeiras no dito
arraial.
-1 roça sita na Freg. de São Caetano
q/(...) de capoeira já em sambambaia
c/rancho de capim e quintal.
-Umas datas de terras minerais sitas no
Escalvado, Freg. de São Caetano serão
50 datas de terras.
-monjolo
-milho (? alqs.)
-feijão (20alqs.)
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
90
-10 datas de terras minerais e águas
minerais no rio da (...) Freg. de São
Sebastião, com terras de planta.
-MANOEL PEREIRA MALLEDO
1790
No 3
15 cativos
8:621$065
-1 morada de casas no arraial de Barra
do Bacalhau c/sua loja, bananal e pasto
cercados, c/água dentro.
-paiol
-milho
(2000alqs.)
-arroz
(30alqs.)
-1 morada de casas térreas cobertas de
telha c/quintal no dito arraial.
-1 roça chamada do Machado c/terras
de planta, capoeiras e matos virgens
c/terras minerais e águas metidas, casas
de vivenda e senzalas cobertas de telha,
sita na paragem da Barra do Bacalhau.
-1 sítio c/terras inferiores de planta,
c/casas de vivenda cobertas de
telha,c/preguiça e 10alqs. de milho
plantado na paragem do córrego Santo
Ato. nas vertentes de Teixeira.
70 cativos
6:520$460
-milho
(800alqs.)
-feijão
(40alqs.)
-1 morada de casas de sobrado cobertas de telha, c/quintal, árvores de
espinho e bananal cercado de pau de
braúna no arraial de São Caetano.
-Uns chãos que foram casas velhas
que se demoliram.
-1 sítio na Freg. de Furquim c/terras de planta safadas e minerais no
veio do rio e fora dele c/um rancho
coberto de telha.
-1 sesmaria de terras de planta, capoeiras e matos virgens nas cabeceiras do Bom Retiro, Freg. do Furquim.
-1 sítio na Ressaca, Freg. de São
Caetano, c/águas e terras minerais,
regos metidos e terras minerais no
veio do rio, um rancho de telha e
senzalas cobertas de capim.
-muares 10
-juntas de boi 2
-bovinos 11
-suínos:
de seva 6
de pasto 42
-moinho
-escaroçador de
cana
-ALFERES MANOEL DA COSTA
SILVA
1800
No 4
-foices 10
-enxadas 10
-machados 6
-cavadeiras 2
-carapina 14
-tachos 8
-carros 2
-roda de fiar 1
-paiol
-moinho corrente
e moente
-moinho corrente
e moente
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
-foices 18
-enxadas 12
-machados 3
-alavancas 2
-carapina 11
-forno
1
-tear
1
-tachos 3
-almocafres 10
-tenda de
ferreiro 1
-roda de
minerar 1
-1 rodete c/15
ganchos de
ferro
-1caixão de ro
da c/17 cavilhas de ferro
-95chapas de
ferro de rosários c/cavilha
-cavalos 3
-muares 4
-juntas de boi 3
-bovinos 3
-caprinos 20
91
-LINO COELHO DE OLIVEIRA
DUARTE
1800
No 5
25 cativos
8:349$150
-1 fazenda denominada Seringa c/casas
de vivenda de sobrado, senzalas e casa
de tenda cobertas de telha e mais rancho
coberto de capim, pomar de café e
horta, terreiro, tudo cercado de rachas
de braúna, c/todas as terras de cultura e
mineral pertencentes à mesma fazenda e
assim mais o sítio comprado a (...) e
também as terras denominadas Mato
Dentro por (...) todas unidas à fazenda
da Seringa. Freg. de Guarapiranga.
-2 moinhos
-engenho de água
e bois
-paiol
-milho
-cana
-foices 8
-enxadas 10
-machado 1
-tenda de
ferreiro 1
-alambique 1
-tachas
-tacho
1
-carros 2
-cavalos 2
-muares 11
-juntas de boi 6
-bovinos 4
-suínos:
de seva 9
de pasto 50
-foices 3
-machados 6
-cavadeiras 2
-alavancas 2
-carapina 7
-tachos 2
-cavalos
-muares
-bovinos
-suínos
-caprinos
-1 canavial q/levará 3 quartas de planta
de minho, quase toda muito nova.
-1 roça de milho q/levará 6alqs. E
promete pouco rendimento na
colheita
-ARCÂNGELA MARIA DE SOUZA
1840
No 6
11 cativos
6:320$280
-1 morada de casas no arraial de
Camargos fronteiras ao cruzeiro.
-moinho
-1 morada de casas cobertas de telha
c/chácara de café, árvores de espinho,
bananal, cercada de (...) rego de água,
situada na fazenda denominada de
Domingos Mendes.
-1 porção de terras de cultura que terá
meia sesmaria que se compõe de
vários capões de mato e campos de
criar, terras minerais e seu rego.
Fontes: Inventários da C.S.M:
No 1: I Ofício - códice 36 - auto 843 - Local: Freguesia de Guarapiranga (Sto. Ato. do Rio Abaixo)
No 2: I Ofício - códice 131 - auto 2737 - Local: Arraial de São Sebastião
No 3: II Ofício - códice 76 - auto 1646 - Local: Freguesia de Guarapiranga (Barra do Bacalhau)
No 4: II Ofício - códice 28 - auto 691 - Local: Freguesia de São Caetano
No 5: II Ofício - códice 26 - auto 647 - Local: Freguesia de Guarapiranga
No 6: I Ofício - códice 101 - auto 2107 - Local: Camargos
Carla Maria Carvalho de Almeida é Professora Adjunta de História Moderna,
Coordenadora do LAHES (Laboratório de História Econômica e Social) e
Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
de Juiz de Fora.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
2
4
49
2
3
92
O MERCADO COLONIAL E AS REFORMAS ILUSTRADAS
As “vantagens comparativas”
Cláudia Maria das Graças Chaves
Resumo:
Este artigo tem por objetivo analisar algumas das
propostas de reformas administrativas e
econômicas de inspiração fisiocrática para a
América portuguesa e introduzidas por D. Rodrigo
de Sousa Coutinho. Especificamente, neste
artigo, tratamos das propostas compensatórias
para a extinção do monopólio do sal.
Palavras-chave:
1. Fisiocracia; 2. Reformas administrativas; 3.
Mercado colonial.
Abstract:
This article intend to analyze some of the
proposals of administrative and economic reforms
to Portuguese America introduced by D. Rodrigo
de Sousa Coutinho. Specifically, in this article, we
discussed about the compensatory proposals for
the extinction of the monopoly of the salt.
Key words:
1. Physiocracy; 2. Administrative reform; 3.
Colonial market.
O final do século XVIII e o início do século XIX marcam uma fase importante de
transformações na América portuguesa. Não se trata de uma “crise” do “sistema” colonial no que
se refere à busca de uma independência política e econômica da colônia, mas à alteração do
estatuto desta colônia em relação à metrópole, isto é, Portugal. O que viria a ser a chamada
“opção americana”, reforçada com a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, começa a se
delinear durante a década de 90 do século XVIII com a introdução das reformas ilustradas. Ainda
que o projeto não tenha sido um todo coerente no que se refere à ampliação do espaço político da
América dentro do Império português, as novas estratégias de governar redimensionaram as
percepções territoriais lusitanas. O Império Luso-brasileiro parecia demonstrar um reforçado laço
de união entre o que o Bispo Azeredo Coutinho preferia chamar de “mãe” e “filha”1.
Neste contexto, o maior controle administrativo, mais racionalizado e eficaz, promoveria a
melhor integração do território americano. Esta política tornou-se visível a partir do estreitamento
de laços entre a intelectualidade colonial e metropolitana, sobretudo nos principais centros
acadêmicos de Portugal como eram a Universidade de Coimbra e a recém criada Real Academia
1
O Bispo Azeredo Coutinho refere-se às obrigações da colônia em relação à metrópole. A colônia como filha deveria
ser credora da metrópole, sua mãe, nos momentos de dificuldades econômicas enfrentadas por Portugal. Esses laços
de parentesco deveriam ser retribuídos com a ampliação dos privilégios conferidos à colônia. “quanto mais os interesses
e as utilidades da pátria mãe se enlaçarem mais com os das colônias suas filhas, tanto ela será mais feliz e viverá mais
segura”. Ver COUTINHO, José da C. de Azeredo. Obras econômicas. Apresentação de Sérgio Buarque de Holanda.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966, p.155.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
93
de Ciências de Lisboa2. O objetivo claro dessa ação era o de criar projetos de reforma mais
adaptados às realidades políticas e econômicas do final do século.
O melhor exemplo dessas mudanças foi a atuação de D. Rodrigo de Sousa Coutinho.
Como Ministro e Secretário de Estado da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, a partir de 1796,
D. Rodrigo estimulou a confecção de projetos e Memórias de caráter reformista entre a elite
metropolitana. O chamado reformismo ilustrado foi a tática da Geração de 90 ou dos bacharéis e
cientistas brasileiros, muitos deles discípulos de Domingos Vandelli3. Esse período, segundo
Maxwell e Silva (1986), caracterizou-se por uma reação metropolitana aos intuitos separatistas
coloniais, que, por um lado, recrutava a elite intelectual brasileira para o levantamento das
riquezas naturais e elaboração de propostas para melhorar as produções coloniais, inclusive
aqueles envolvidos nas conjurações – como foi o caso de José Álvares Maciel e dos membros da
Sociedade Literária do Rio de Janeiro -; por outro lado, procurava identificar os interesses
materiais de uma elite rural brasileira. Ao agir dessa maneira, esperava-se combater as idéias de
revolução e introduzir o pensamento reformista e ilustrado, que, com propostas racionais e
científicas, sanariam os problemas econômicos e políticos da colônia, integrando os interesses
dos colonos aos interesses metropolitanos. Essa fase também pode ser pensada como a fase do
surgimento das idéias de um verdadeiro império luso-brasileiro ou, conforme definição dessa
relação a partir de 1808 por Maria Odila Dias (1982), como a interiorização da metrópole.
No plano prático, essa tendência se revela nas medidas administrativas adotadas.
Tratava-se, segundo Dias (1968:117), de: solicitar aos governadores das capitanias relatórios
sobre os processos de preparo e cultivo dos gêneros exportáveis; ordenar levantamentos de
plantas nativas; explorações mineralógicas; premiar os lavradores mais industriosos; promover a
2
A Real Academia de Ciências de Lisboa é criada no ano de 1779, na mesma década em que a Universidade de
Coimbra passa por uma importante reformulação de seus estatutos. A Real Academia será o espaço de construção de
um novo saber econômico, cuja principal característica era o combate às idéias pombalinas e mercantilistas, por serem
consideradas despóticas e inibidoras do desenvolvimento industrial de Portugal. Reunirá em sua volta os mais
expressivos publicistas portugueses e brasileiros. Será a fase projetista e memorialista, cujos fundamentos centraramse na proposição de reformas econômicas para a sociedade do Antigo Regime. Os novos estatutos da Universidade de
Coimbra surgem no ano de 1772 e são também conhecidos como “pombalinos”. Entre outras coisas, essa reforma levou
ao aprofundamento do direito pátrio em relação ao Direito Romano considerado distante da realidade e contingências
históricas de Portugal. Ver: SILVA, Nuno Espinosa. História do Direito Português. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2000.
3
Italiano de origem, Domingos Vandelli é considerado o mentor e o principal intelectual da Real Academia de Ciências
de Lisboa. Manteve importante correspondência com intelectuais da colônia. É bastante conhecida a correspondência
de José da Silva Lisboa à Domingos Vandelli em 1781 sobre as informações gerais acerca da cidade da Bahia. Lisboa
menciona uma caixa, contendo uma amostra dos vários tipos de plantas comuns na região, que ele teria enviado a
pedido de Vandelli. Ver: “Carta muito interessante do advogado da Bahia, Jose da Silva Lisboa, Para o Dr. Domingos
Vandelli, Director do Real Jardim Botânico de Lisboa, em que lhe dá notícia desenvolvida sobre a Bahia, descrevendolhe a cidade, as ilhas e vilas da Capitania, o clima, as fortificações, a defesa militar, as tropas da guarnição, o
commercio e a agricultura, e especialmente a cultura da canna de assucar, tabaco, mandioca e algodão.. Dá também as
mais curiosas informações sobre a população, os usos e costumes, o luxo, a escravatura, a exportação, as
construcções navaes, o commercio, a navegação para a Costa da Mina, etc.” In: Anais da Biblioteca Nacional, 32,
1910.pp 494-506.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
94
introdução de arado e da cultura de novos gêneros; aumentar o comércio interno e o de
exportações. Essas medidas nem sempre foram executadas, sobretudo as relativas à
racionalização das formas de cultivo, como foi o caso do uso de arado e do bagaço de cana de
açúcar nas fornalhas. A racionalidade européia sucumbe às razões dos cultivadores da América.
Em carta endereçada à D. Rodrigo de Sousa Coutinho, O Vice-Rei do Brasil, Conde de Resende,
expõe os argumentos dos brasileiros.
“As respostas de algumas [cartas], que envio a V. Exa., contém as razões gerais em que se fundam
os lavradores para se não aplicarem os usos acima indicados, sendo a primeira necessidade que
eles têm de escolherem os terrenos montuosos para a plantação das mandiocas, e a segunda a
precisão de fazerem novas e anuais derribadas de matos virgens, onde ficam grandes madeiras,
cepos e raízes que embaraçam a passagem do arado; os que trabalham em fábricas de açúcar
intentam persuadir que o fogo das canas moídas, ou do bagaço, não tem a necessidade necessária
para a depuração do mesmo açúcar, como alguns, segundo dizem, já o experimentaram. Porém eu
creio que quando se consiga dar às fornalhas outra forma diferente da atual, de cujos defeitos
provavelmente procederá a falta de atividade que se observa no fogo do bagaço; quando os
lavradores não puderem mais estenderem as suas derrubadas e forem constrangidos a beneficiar
as velhas terras, e já cansadas; e quando finalmente se lhes faça onerosa a compra de escravos
pelo excesso do preço, porque se vão reputando cada vez mais, então a necessidade os fará
industriosos, e porão em usos aqueles mesmos recursos, que hoje lhes parecem impraticáveis”. 4
Na prática, o arado em terras topograficamente distintas das européias, acidentadas e
com muitos tocos e raízes, assim como o uso do bagaço de cana em fornalhas inadequadas,
revelava-se uma irracionalidade. Os agricultores brasileiros sabiam bem disso e por isso resistiam
às mudanças. Por exemplo, recusavam-se a comprar os livros e folhetos que ensinavam as novas
técnicas de cultivo, o que levou D. Rodrigo a aconselhar a sua distribuição gratuita5.
Em Minas Gerais, a característica mais marcante dessas memórias será o destaque dado
às soluções propostas para a decadência da mineração. Os principais autores são: José Viera
Couto - Memória sobre a Capitania da Minas Gerais; Seu território, clima e produções metálicas
(1799-1801); José Joaquim da Rocha - Geografia Histórica da Capitania de Minas Gerais;
Memória Histórica da Capitania de Minas Gerais (1781); Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos Breve descrição geográfica, Física e Política da Capitania de Minas Gerais (1804); José João
Teixeira Coelho - Instruções para o Governo da Capitania de Minas Gerais (1780); D. Rodrigo
José de Menezes -Exposição sobre o estado de decadência da Capitania de Minas Gerais e os
meios de remediá-la 1782; José M. de Sequeira -
Memória sobre a decadência das três
capitanias de Minas Gerais (1802); Basílio Teixeira de Sá Vedra - Informação da Capitania de
Minas Gerais (1805). O tema decadência é recorrente em quase todos os textos. À semelhança
do tratamento dado a essa questão pelos memorialistas portugueses, observa-se que se enfatiza
4
Carta de 12 de novembro de 1798. AHU, Rio de Janeiro, caixa 171, doc. 16.
Ver: DIAS, Maria Odila Leite da Aspectos da Ilustração no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, (278): 105-170, 1978, p.158 e HOLANDA, Sérgio Buarque. Caminhos e Fronteiras. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 1957.
5
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
95
muito a decadência econômica da Capitania como uma forma de ressaltar as suas
potencialidades, principalmente no que diz respeito à agricultura.
Dessa maneira, as Memórias, assim como a maioria dos projetos, apresentaram
problemas relativos à economia colonial como eram os difíceis acessos internos, a escassez de
moedas, a confusa tributação, a baixa produtividade agrícola, entre outras dificuldades, e as
soluções indicadas para cada uma delas. Era uma forma inusitada de conhecer, diagnosticar e
solucionar - pelo menos este era o plano - o conjunto de empecilhos à racionalização econômica e
administrativa do império português. Os “projetos reformistas” animaram expedições, relatos e
memórias sobre as possibilidades de integrar o território brasileiro, através da abertura de canais,
estradas e pontes, o que, por sua vez, criaria as condições para melhorar e aumentar as
produções comerciais e, conseqüentemente, incentivaria o povoamento e o aumento da
população brasileira. Sobre os progressos efetivos de todas os planos e propostas elaborados,
pouco se verificou na prática, mas esses relatos são importantes para a percepção de território,
produção e população que se pretendia e se desejava para o Brasil.
Nesse sentido, as observações e informações emitidas por pessoas que vivenciaram
aquele período, seja através de relatos em jornais, seja através de memórias e projetos de
intelectuais, chefes de expedições militares, administradores, cientistas e viajantes, são
importantes para compor uma imagem do mercado colonial nas últimas décadas da América
portuguesa. Essas informações, juntamente com a documentação estatística, derivada do desejo
de racionalizar e sintetizar as informações a respeito do território brasileiro, tornam possível traçar
um quadro das perspectivas políticas e econômicas que se vislumbravam para o futuro do “Estado
do Brasil”6. Portanto, não se trata, aqui, de tentar mensurar a produção comercial para
dimensionarmos a extensão do crescimento ou desenvolvimento interno do Brasil em suas últimas
décadas coloniais e o início do período independente, mas, sim, correlacionar a produção
estatística dessa produção com as análises de seus contemporâneos e da produção
historiográfica mais recente sobre a questão
A integração comercial nas últimas décadas do período colonial foi pouco quantificada
por seus contemporâneos, embora tenha havido todo um esforço, ou pelo menos, um desejo, de
estabelecer dados estatísticos sobre a produção, consumo e população de toda a América
portuguesa. Entretanto, os relatos, Memórias e cartas administrativas constituem depoimentos
sobre as relações comerciais estabelecidas entre regiões diversas que, ora enfatizam a fraca
integração comercial entre capitanias, ora enfatizam o “avultado” comércio que existia entre elas.
6
Mesmo antes da elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, era corriqueiro o uso da expressão
“Estado do Brasil”, em periódicos e documentos da Junta do Comércio, para definir a então América Portuguesa.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
96
No caso de Minas Gerais, a maior ênfase recai sobre a “volumosa” produção de gêneros
de abastecimento que, na Capitania, produzia-se para vender não apenas em seu interior, mas
também nas capitanias vizinhas. Não obstante, demonstra-se, em tais documentos, que essa
produção sofreu os obstáculos derivados da dificuldade de acesso, de um equivalente universal
de troca e de sua divisão interna recoberta por barreiras alfandegárias. A esse processo, pode-se
acrescentar as diferenças regionais de Minas Gerais no que diz respeito às produções, suas
especificidades e formas de acesso a mercados.
Essas diferenças nem sempre diziam respeito apenas ao produto, mas às formas de
comercialização e à qualidade do mesmo. Por exemplo, o gado criado e comercializado na
Comarca do Rio das Mortes era de maior qualidade e chegava mais barato ao Rio de Janeiro e
São Paulo do que o gado da Comarca de Sabará. Os primeiros eram isentos dos Direitos de
entrada, por outro lado os da Comarca de Sabará deveriam pagar os Direitos por terem, em sua
maioria, pastos salitrados, pois a Comarca do Rio das Mortes pagava pelo sal que vinha do Rio de
janeiro.
Dispor de pastos salitrados não se constituía em benefício para os pecuaristas, pois o
salitre não era adequado para se dar ao gado, ademais, quando o gado era comercializado fora
da Capitania, produzia-se custos maiores de transporte e de pouso para o restabelecimento do
peso do animal7. Por este motivo, os criadores das Comarcas centrais de Minas sempre se
queixavam do monopólio e altos custos do sal para àquelas regiões8.
Aliás o sal e o monopólio dele sempre foram causa de protestos da grande maioria dos
habitantes das Gerais, pois a população devia pagar os preços estabelecidos pelos contratos e
mais tributos de transportes. Nesse sentido, as propostas de reformas econômicas para a solução
deste e de outros problemas gerados pelos monopólios régios surgem no final do século XVIII e
culminam na extinção do estanque do sal e do óleo de baleia em 1801.
Tendo sido a Provedoria da Real Fazenda de Minas Gerais consultada a respeito da
melhor forma de se cobrar os direitos do sal e do ferro - em função de uma carta da Rainha
dirigida ao Senado da Câmara de Vila Rica em 1795 -, ponderam seus representantes a respeito
7
AHU, cx 100, doc. 21, rolo 89, APM.
Todo o sal consumido em Minas era comprado no Rio de Janeiro por comerciantes mineiros diretamente das mãos
dos contratadores do produto. Num documento de data imprecisa, possivelmente do final do ano de 1781, contratadores
do sal no Rio pedem providências no comércio do sal para Minas Gerais. Alegam os contratadores que tinham tido
imensos prejuízos em decorrência das “perturbações militares que sentiu o Brasil e a invasão, que na Ilha de Santa
Catarina, Colônia, e vizinhanças do Rio Grande fizeram os inimigos” e da conseqüente diminuição do comércio
decorrente do “temor que conceberam os negociantes de Minas, que não desceram ao Rio de Janeiro para traficar o
referido gênero, que costumam conduzir com abundância para as mesmas Minas”. Com o excedente de sal não
consumido e com o fim do sexênio do contrato, pediam os contratadores regulamentação específica para esses casos,
pois eles não eram responsáveis pelos problemas e tinham a obrigação de manter reservas de sal para todas as
eventualidades. AHU, documentos referentes ao Rio de Janeiro, caixa 126, doc. 3.
8
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
97
dos tributos e da proposta da criação de salinas e fábricas de ferro na colônia9. Diz o
representante da Provedoria aos membros do Senado que a Capitania mineira não deveria ser
responsabilizada pelo equivalente ao rendimento do contrato do sal, pois em Minas não se
estabeleceria nenhuma salineira, mas apenas nas áreas costeiras. Implorava que não
barganhassem com as salitreiras, pois era “um sal em si mesmo pernicioso”, ainda mais que a
saca do salitre, correspondente a uma quarta (aproximadamente 9 litros), vendido nos sertões por
800 réis, equivalia a uma arroba do sal importado. Não valeria a pena investir no salitre, quando
se poderia comprar o sal das costas brasileiras com maior vantagem. Sendo o sal brasileiro muito
mais abundante que o importado de Portugal e tendo as capitanias produtoras de sal o interesse
de comercializar com Minas Gerais, o custo do sal seria bem menor pelo preço e qualidade.
Quanto à implantação de fábricas de ferro, o representante da Provedoria também não
achava muito prudente pelos seus custos. Entretanto, dizia que os impostos sobre ferros e
escravos deveriam ser aliviados por serem da maior importância para a economia local, jogando
para outros produtos a compensação desse alívio. Para ele, a cachaça deveria sofrer um aumento
de impostos por não ser de grande interesse, lembrando que isso não traria prejuízos aos
comerciantes devido ao consumo excessivo da bebida. Já o vinho, usado com moderação, era
considerado útil, mas não de primeira necessidade, podendo assim arcar com mais algum tributo.
Outros produtos importados, como azeite, vinagre, azeitona e manteiga, deveriam, também, ter
seus tributos aumentados. Produtos agropecuários que saíam de Minas não deveriam ter um
tributo muito elevado, pelos altos custos de transporte, como o couro, a sola, o gado, o queijo, etc.
“Os novos direitos que me lembram sobre o gado, queijos, toucinho, couros e sola, parecem-me que
não farão de modo algum estancar o giro do nosso negócio atual porque a precisa necessidade
que temos em nós mesmos de permutarmos aqueles gêneros próprios que sobejamente nos
crescem dos usos e costumes ordinários nos obrigará a negociá-los com os nossos vizinhos
assim como eles por uma regra de comparação são obrigados também a negociar conosco
os seus supérfluos, e os outros que fazem exportar de países muito mais remotos porque
conhecem a necessidade que deles temos.
Este é o sistema das nações comerciantes ele as tem feito florescer com vantagens muito mais
superiores às nossas e nunca elas foram mais opulentas senão depois que alcançaram estes
conhecimentos práticos. Assim praticaram a muitos séculos os fenícios que sendo habitantes de
uma terra estéril se arriscaram sobre um débil lenho a descrição dos ventos e das ondas a ir buscar
a outros climas o que a natureza lhes negara no seu e deste modo penetraram o oceano e se
fizeram conhecidos. Tais são, senhores, as vantagens de um povo industrioso vencendo os
obstáculos da natureza para fazer tributárias as nações remotas sem usar a violência”.10
Enfim, desde que moderados, os impostos não poderiam ser a causa da ruína de
nenhum comércio, desde que as regiões possuíssem seus diferenciais, suas “vantagens
9
SG Cx 29, doc. 23, APM. A permissão da criação de salineiras e fábricas de ferro na colônia deveria, é claro, vir
acompanhada de uma indenização ao Real Erário equivalente a quase metade do contrato da época. Isto quer dizer
que se o contrato era de 1$200 o alqueire do sal, a indenização corresponderia a 750 réis.
10
SG Cx 29, doc. 23, APM.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
98
comparativas”. Uma vez que um gênero se tornasse conhecido e seu consumo se efetivasse, ele
se tornaria necessário. Dessa necessidade vivia o comércio, integrando regiões distantes. Além
disso, se fossem aumentados os impostos dos gêneros de abastecimento que Minas produzia,
quem arcaria com a maior parte deles seriam os vizinhos, que deles necessitavam.
“O país [Minas] é fértil, ele produz tudo em tanta abundância que depois de nos prover do
necessário, vai levar aos povos vizinhos o supérfluo. Eles dependem do nosso gado porque não
tem em si mesmo sertões iguais aos nossos, pois que pelo estabelecimento das fábricas de açúcar
que de dia em dia se tem erigido em Campos dos Goitacazes, único sertão que os provia em algum
modo desse gênero, eles são precisados a procurarem este produto em nossa Capitania e em São
Paulo. O mesmo procede a respeito do toucinho. O nosso queijo lhes era desconhecido e a sua
introdução em poucos anos fez aparecer um novo ramo d’comércio deste gênero que hoje o fazem
levar a Bahia, Pernambuco, Angola e a todas as outras nações com que comerciam. A navegação
freqüente que há naquela cidade já dos nossos, já das nações estrangeiras obriga que assim como
cresce a população, cresça o consumo de todos esses gêneros, que hoje estão na classe dos
necessários para eles”. 11
Portanto, o parecer exposto apontava para que não se perseguisse a auto-suficiência em
todos os gêneros, porque é da diversidade que vivia o comércio12. Entretanto, no que diz respeito
às fábricas de ferro e às salitreiras, eram outros os interesses metropolitanos.
Estimulados por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, os estudos geológicos da colônia tinham
como objetivo dar a exata proporção de possibilidades para a exploração mineral. Em Minas
Gerais, as fábricas de ferro foram estimuladas, principalmente, para o desenvolvimento das
minerações e da agricultura. Os principais estudos realizados nessa área foram do Intendente
Câmara e de José Vieira Couto. Em Carta de 1799 ao Governador de Minas Gerais13, D. Rodrigo
elogia muito os trabalhos elaborados pelo “Doutor Couto” e pelo “célebre Câmara”14, com os
quais, dizia, poderia estabelecer-se as fábricas de ferro e com as nitreiras naturais e artificiais,
estabelecer fábricas de pólvora e fertilizantes. Não era, portanto, interesse de D. Rodrigo utilizar o
salitre como substitutivo do sal para o gado, mesmo assim o representante da Provedoria temia
que o incentivo à extração do salitre pudesse compensar, em Minas, o uso do sal.
Quando foi abolido o monopólio em 1801, não desapareceram os problemas de
fornecimento do sal ou de redução de seus custos, pelo menos, não até o estabelecimento e
maior fornecimento de sal pelas salineiras de Cabo Frio. O término do estanque gerou novas
11
SG Cx 29, doc. 23, APM.
Outro parecer da Câmara foi emitido com semelhante conteúdo no mesmo ano de 1795. SG 29, Cx 29, doc 25, APM.
13
SC 287, fl. 196-203, APM.
14
Em estudo sobre o Intendente Câmara, Marcos Carneiro de Mendonça (1945), diz que os trabalhos sobre mineralogia
no Brasil foram injustos com Manuel Ferreira da Câmara Bethencourt e Sá, pois ele teria sido o precursor nos projetos
de se instalarem fábricas de ferro no Brasil. Para ele, os estudos posteriores, como o de José V. Couto apenas foram
complementares. Pela carta de D. Rodrigo, citada no texto, ele parece ter razão, pois D. Rodrigo demonstra ter inteira
confiança no Intendente Câmara para os assuntos mineralógicos. Ele diz que submeteu todas as memórias do Doutor
Couto a sua apreciação. A referência da obra é: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. O Intendente Câmara. Rio de
Janeiro: Agir, 1945.
12
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99
tarifas compensatórias exigidas pela Coroa15. Essas novas exigências deveriam ser analisadas
pelas Mesas de Inspeção das alfândegas e das Juntas da Fazenda, mesmo antes do fim do
monopólio. Em 1799, o Conde de Resende encaminha às Câmaras e Mesa de Inspeção da
Capitania do Rio de Janeiro as novas propostas para a substituição dos contratos do sal e da
pesca de baleias, os quais eram utilizados no pagamento dos fardamentos das tropas e despesas
da marinha e fortificações16.
Com a árdua tarefa de analisar as propostas de novas tarifas substitutivas do monopólio
régio, respondem os representantes da Mesa de Inspeção do Rio de Janeiro, em abril de 1800, a
solicitação do Conde de Resende. Tomando o máximo de cuidado e ponderando sobre todas as
“luminosas providências” sobre a composição dos “fundos públicos”, os representantes tecem
suas objeções sobre as cobranças propostas17.
São cinco as propostas de novas tarifas compensatórias: capitação anual sobre os
escravos de luxo das cidades; licença anual para fabricar e vender tabaco, aguardente e vinho;
uma “leve” imposição sobre o açúcar, tabaco e couros a serem exportados; um “módico” imposto
sobre as madeiras destinadas às construções de prédios urbanos; finalmente, uma revisão nas
pautas da alfândega da Capitania do Rio de Janeiro para acompanharem o aumento dos preços
dos produtos que por ela passam.
A análise de cada uma dessas propostas interessa-nos pelas informações sobre os
intercâmbios comerciais entre o Rio de Janeiro e Capitanias vizinhas. Igualmente interessante é o
“malabarismo” contábil feito pelos representantes da Mesa Inspetora na tentativa de driblar todas
as proposições feitas. Acrescentam, esses representantes, que era necessário tomar algumas
providências para não haver aumento dos produtos que deixariam de ter contratos exclusivos.
Pedem para que o carregamento do sal fosse feito como antes e com a mesma lotação dos
navios, ainda que o dono das embarcações não se beneficiassem da terça parte do contrato e que
fosse pago apenas o justo preço pelo transporte. Quanto ao óleo de baleia, pediam que as povos
das capitanias marítimas fossem estimulados a utilizar, como faziam as capitanias de “serra
acima”, especialmente Minas Gerais, que utilizavam o óleo de mamona para a iluminação e que
poderiam exportar em grande quantidade.
15
Segundo Giffoni, a extinção do estanque do sal provocou a criação de novos impostos para substituir as rendas
perdidas. Foram taxadas as produções de sal das marinhas do Rio Grande do Norte, Pernambuco e Cabo Frio em
1$000 por cada dez alqueires. Além disso, a distribuição e venda do sal ficou nas mãos das Câmaras para posterior
remessa das rendas às Juntas da Fazenda. Por fim, o sal produzido no Brasil torna-se mais caro que o sal proveniente
de Portugal logo após o fim do monopólio. GIFFONI, José Marcello. Sal: um outro tempero ao Império (1801-1850). Rio
de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1999, p.44.
16
AHU, documentos referentes ao Rio de Janeiro, Caixa 183, doc. 83, 1800.
17
AHU, documentos referentes ao Rio de Janeiro, Caixa 183, doc. 83, 1800.
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Ainda que parecesse impossível atender às disposições da Coroa, a Mesa consegue
chegar ao valor proposto para sanar os prejuízos do fim dos contratos, ou seja, 163:069$446 réis
anuais a partir de algumas “pequenas” modificações nas propostas feitas.
Quanto à capitação dos escravos de luxo, iniciam com uma exposição sobre o emprego
do trabalho escravo nas cidades e sua real utilidade, dizendo ser o luxo bastante relativo. Mesmo
assim, considera que dos 14.400 cativos existentes na cidade - 4.018 eram pardos e 10.382
pretos – deveria se descontar os velhos acima de 70 anos e as crianças abaixo de 10 anos,
sobrando 11.161 escravos de ambos os sexos. Deste cálculo, detalham os representantes que
1.132 eram mulatos, 1.477 mulatas, 4.530 pretos e 4.022 pretas, sendo que os mulatos eram
oficiais mecânicos empregados por seus senhores, aos quais serviam nas horas vagas; os pretos
eram empregados em trabalhos mais rudes em diversos trabalhos para seus senhores ou outros
por aluguel; as pretas faziam os trabalhos domésticos e, principalmente, trabalhavam como
quitandeiras nas ruas da cidade. Somente as mulatas poderiam ser classificadas como “de luxo”
por serem bem educadas e viverem no interior das famílias e por serem “inúteis” na agricultura.
Entretanto, ponderam os representantes, a maioria das mulatas pertencia às famílias mais pobres
e o maior ônus sobre elas forçariam a sua venda e a elevação do seu preço a ponto de passarem
a ser rejeitadas no mercado e ser mais fácil libertá-las do que mantê-las cativas. A única
alternativa parecia ser cobrar um “módico” imposto anual sobre os escravos que trabalhavam
como oficias mecânicos que seriam por volta de 2.000 e poderiam somar a quantia de 9:600$000
réis. Tomando cuidado para que isso não inibisse a prática dos mestres de utilizarem escravos
para esse fim, pois senão a atividade poderia cair nas mãos de todo o tipo de “vadios”, que eram
os pretos e pardos livres, já que os brancos pobres não exerceriam tais atividades por “um ridículo
prejuízo de educação e exemplo”. Mais 2:400$000 réis poderiam ser cobrados dos proprietários
ou usuários de seges e carruagens por serem “objetos de luxo” 18.
Quanto à licença para fabricar e vender tabaco, aguardente e vinho, que seria a segunda
proposta, dizem os representantes da Mesa que existia uma grande diferença entre a produção e
o comércio do tabaco e aguardentes, mas, mesmo assim, poderiam ser cobrados 3:200$000 da
produção de tabaco e 23:800$000 sobre a venda da aguardente. Consideram que a produção do
tabaco era bastante diminuta na Capitania do Rio de Janeiro e, por isso, poderiam arrecadar tão
pouco, mas não consideravam justo cobrar sobre a venda que era feita por “gente miserável que
tira desse trafico uma módica subsistência”. Com a aguardente acontecia o contrário, pois a
bebida produzida na Capitania era apenas produto das “fezes” ou melaço do açúcar, que era a
principal produção e servia para pagar os prejuízos que os senhores de engenho tinham com os
18
AHU, documentos referentes ao Rio de Janeiro, Caixa 183, doc. 83, 1800.
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seus contratos. Já a venda, disseminada em várias tavernas, botequins e armazéns espalhados
por todo o território, deveria ser taxada com um único valor, pois, mesmo vendendo mais ou
menos, seria impossível saber qual a exata quantidade da bebida era vendida em cada
estabelecimento. Se essa medida provocasse o fechamento de alguma casa ou a opção por não
vender aguardente, consideravam os representantes da Mesa que isso poderia ser mais benéfico
que o imposto que poderia ser gerado, pois esses estabelecimentos eram “uns freqüentíssimos
escolhos muito perigosos em que naufragam muitos indivíduos, principalmente os escravos, (...)
tudo os atrai, o hábito, o exemplo, a multidão das tavernas, o asilo e fácil compra que acham nelas
os furtos e, sobretudo, a barateza da bebida”19. Já o vinho, assim como a aguardente do reino,
deveria ser cobrado um imposto adicional dos importadores e isso representaria mais 29:641$200
réis.
A terceira proposta de uma nova imposição sobre o açúcar, tabaco e couros foi a mais
polêmica para a Mesa. Sendo o açúcar o “maior fiador do comércio do Brasil” e sendo produzido
principalmente nas capitanias de Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro – além de algumas
pequenas contribuições de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo – deveria ter uma módica e
proporcional contribuição. No caso de se cobrar apenas dos produtores do Rio de Janeiro deveria
ser levado em consideração que o senhor de engenho não tinha as práticas de um negociante
que aumenta seus preços para compensar os novos custos, pois
“o negociante não comprando o açúcar para o gastar, mas sim para o seu negócio, mede as
ocasiões e os preços favoráveis para fazer seu emprego; o senhor de engenho, pelo contrário, há
de forçosamente vender no fim da safra, ou pouco depois o seu açúcar, para acudir as suas
precisões e para pagar ao negociante, que sempre lhe é credor”.20
Portanto, o açúcar deveria pagar, já que era necessário, apenas 38:000$000 anuais
sobre os dízimos já pagos. Já o tabaco não deveria pagar nada, pois a grande parte do tabaco
consumido no Rio de Janeiro vinha de Minas Gerais e de São Paulo, não sendo, portanto, justo
uma cobrança adicional sobre o produto. Finalmente, o couro também deveria ter uma pequena
taxa, pois o Rio de Janeiro não era grande criador, sendo que a carne consumida vinha através do
gado vacum de Minas ou charque do Rio Grande de São Pedro. Do gado que chegava ao Rio e
era abatido nos açougues da cidade, tirava-se o couro que sustentava a família dos trabalhadores
desses estabelecimentos, mesmo assim consentiam em uma cobrança anual de 3:000$000 anual.
Para suprir essa ausência de couros no Rio, deveriam cobrar anualmente 6:000$000 de todo o
couro que saía de Minas, São Paulo e Rio Grande em direção ao Rio de Janeiro.
19
20
AHU, documentos referentes ao Rio de Janeiro, Caixa 183, doc. 83, 1800.
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Quanto à quarta sugestão de um “módico” imposto sobre as madeiras utilizadas nos
prédios urbanos, ponderam os representantes da Mesa que a madeira estava escassa e cara em
função dos imprudentes desmatamentos e pela reserva de madeira de lei para a marinha real.
Diziam que poucas casas de madeira eram erguidas no Rio de Janeiro, mesmo assim, eram todas
térreas devidos aos altos custos de construção, além disso os capitalistas, homens mais
afortunados que construíam a maior parte dos prédios para aluguel, não utilizavam a madeira
como material para as edificações em razão de serem “pouco sólidas e muito singelas por dentro
e no prospecto”. A solução seria a não cobrança sobre as madeiras e sua substituição pelo
comércio do café, cuja produção vinha crescendo em larga escala no Rio de Janeiro, além do café
que vinha de Minas Gerais e de São Paulo. Com ele, poderiam ser somados mais 8:250$000 réis.
Finalmente, a estes valores se somariam 39:078$000 das reformas nas alfândegas do
Rio de Janeiro, que era a quinta proposta. Com isso, tornava-se possível chegar à quantia de
163.069$446 que havia sido calculada como a meta a ser atingida. Mesmo cumprindo o dever, os
representantes da Mesa de Inspeção sentem-se na obrigação de
se eximirem de qualquer
responsabilidade do projeto.
“Este é o plano, esta é a regulação dos impostos que propõem esta Mesa; a qual não afiança a
exatidão dos seus cálculos, muitos dos quais são inteiramente hipotéticos e muito menos apadrinha
como ajustadas, claras e sólidas as suas idéias e razões: elas, contudo, tiveram por base principal o
zelo do Real serviço do Príncipe Nosso Senhor e o bem da agricultura e do comércio.21
Os membros da Mesa de Inspeção parecem deixar claro o descontentamento com as
novas cobranças e a descrença que elas pudessem se efetivar na prática, pois eram também, de
certa maneira, representantes de negociantes e produtores locais. Ao finalizar o longo processo
dizem que todas as arrecadações seriam mais fáceis e mais seguras se estivessem os contratos
em mãos de negociantes residentes no Rio de Janeiro e submetidos à Real Junta da Fazenda
daquela cidade.
Entretanto, já era o ano de 1800 e algumas mudanças e reformas econômicas se
concretizavam, o que não seria diferente com o contrato do sal que no ano seguinte foi, de fato,
extinto. Nada ainda comparado às mudanças provocadas com o deslocamento da família real
para o Brasil e a elevação da cidade do Rio de Janeiro à condição de Corte. Assim, muitos
projetos foram traçados, um amplo leque de transformações para o Brasil podia ser vislumbrado.
Parecia, na teoria, fácil realizar essas mudanças, na prática, porém, tornavam-se mais
complicadas.
Ao analisarmos detidamente todas as propostas apresentadas acima pudemos ver como
os projetos de racionalização econômica e administrativa entravam na disputa de interesses
21
AHU, documentos referentes ao Rio de Janeiro, Caixa 183, doc. 83, 1800.
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coloniais na América. Era claro que cada alteração na forma de cobrança de tributos, mesmo com
a justificativa de se incentivar e ampliar a atividade comercial, desdobrava-se em resistência
política dos representantes dos principais setores econômicos envolvidos. A estratégia parecia ser
a de opor um projeto “racional” à alternativas igualmente “racionais” de maneira a não ferir
nenhuma das partes interessadas, nem a dos produtores e comerciantes coloniais e nem o Erário
régio. O que estava realmente fora de questão era a simples supressão da cobrança de tributos
por parte da metrópole, pois essa prerrogativa garantia as bases de sua dominação e competia
aos reais vassalos da América portuguesa descobrir a melhor forma de pagar os seus “direitos”
sem nenhum prejuízo aos cofres régios.
Seja como for, a idéia de estabelecimentos de fábricas no Brasil, a extinção de
monopólios do Estado e o incentivo de manufaturas, principalmente têxteis, apontaram para a
necessidade de se esclarecer melhor o que se entendia, conceitualmente, por essas formas de
produção. Isso, aliado à idéia de uma estreita ligação dos mercados de Portugal e Brasil,
principalmente após os novos tratados de comércio, determinou a precisão dos termos produto
nacional, comércio de importação e exportação, mesmo antes do estabelecimento do Reino Unido
em 1815. As possibilidades para o estabelecimento de um mercado interno – no sentido de uma
integração econômica dentro da América portuguesa – mentem-se estreitamente vinculados ao
princípio de unidade imperial. Entretanto, é a partir desse primeiro passo em direção à integração
que possibilitou a sua continuidade após a ruptura, sobretudo no que diz respeito às capitanias
das “terras centrais” como eram as Minas Gerais. As bases do mercado interno colonial se
tornaram mais fortes, delineando o que mais tarde seria a integração de um mercado efetivamente
nacional.
Cláudia Maria das Graças Chaves é Professora Adjunta de História da América da
Universidade Federal de Viçosa e pesquisadora associado ao LAHES (Laboratório
de História Econômica e Social) da Universidade Federal de Juiz de Fora.
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104
CAMPANHA DA PRINCESA
Formação e expansão de uma vila no Império
Marcos Ferreira de Andrade
Resumo:
Este artigo tem por objetivo discutir alguns
aspectos relativos à formação e expansão da vila
da Campanha da Princesa e seu termo,
informando sobre as principais atividades
econômicas desenvolvidas na região, além de
apresentar dados gerais sobre a estrutura social e
demográfica. Essas notícias foram cotejadas a
partir de várias fontes, tais como: inventários,
listas nominativas, assentos paroquiais, atas de
câmara, entre outras.
Palavras-chave:
1. Escravidão; 2. Século XIX; 3. Sul de Minas.
Abstract:
This paper aims at discussing some aspects
related to the formation and expansion of the
village called Campanha da Princesa, as well as
its ending. It will deal with the main economic
activities developed in the region, besides
presenting genera data on social and
demographic structure. This information was
checked against several sources, such as
inventories, name lists, parish seats and town
council records, among others.
Keywords:
1. Slavery; 2. 9th Century; 3. Southern Minas
Gerais.
Convido o leitor, inicialmente, a conhecer um pouco da história de uma importante vila da
província de Minas Gerais1, de grande destaque no cenário sócio-político e econômico do Império,
região que deu origem ao que é hoje definido imprecisamente como o “Sul de Minas”.2
A noção de região adotada está muito próxima das reflexões propostas por Ciro Flamarion
Cardoso, ou seja, foi definida “operacionalmente de acordo com certas variáveis e hipóteses, sem
pretender que a opção adotada seja a única maneira ‘correta’ de recortar o espaço e de definir
blocos regionais”, sem, contudo, se esquecer que toda delimitação geográfica não deixa de
simplificar uma realidade mais complexa, além da relação entre homem e espaço estar em
contínua transformação.3
1
Este texto é uma versão parcial do capítulo I de minha tese de doutorado intitulada Fortuna, família e poder no Império
do Brasil: Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850), em fase de finalização no Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal Fluminense.
2
Todos os memorialistas da região são enfáticos em afirmar que a cidade da Campanha é o “berço do Sul de Minas”,
não só por sua importância política e econômica, mas também por ser a mais antiga da região e ter sido a sede da
comarca do Rio Verde a partir de 1833. Ver VALLADÃO, Alfredo. Campanha da Princesa (1737-1821). Rio de Janeiro:
Leuzinger S. A., 1937. vol. I e Campanha da Princesa (1821-1909). Rio de Janeiro: Leuzinger S. A., 1940. vol. II.;
LEFORT, Mons. José do Patrocínio. Cidade da Campanha: monografia histórica. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1972.; VEIGA, Bernardo Saturnino da. Almanach Sul Mineiro. Campanha: Tipografia do Monitor Sul-mineiro, 1874. O
mesmo almanaque foi reeditado, com algumas alterações, 10 anos depois.
3
CARDOSO, Ciro Flamarion S. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979. p. 73.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
105
1. Da ocupação das “Minas do Rio Verde” à emancipação da vila
Nas primeiras décadas do século XVIII, a região mais ao sul da capitania de Minas Gerais
era conhecida genericamente como as “Minas do Rio Verde”.4 Desde o início do Setecentos, essa
área foi ocupada pelos paulistas que devassaram o território mineiro na busca desenfreada pelo
metal precioso.5
As minas do Rio Verde, descobertas pelos paulistas nas primeiras décadas do século
XVIII, foram mantidas na clandestinidade até 1737, quando uma expedição militar, chefiada pelo
Ouvidor da Vila de São João del Rei, Cipriano José da Rocha, fundou o arraial e tomou posse da
região. Segundo informações do ouvidor, em correspondência dirigida ao Rei, as minas estavam
localizadas em “dilatados campos, que as findam vários córregos e ribeiros com muitos matos
proveitosos [e] agricultura, e ainda que tarde, se plantou quase trezentos alqueires de milho em
várias roças; em todos os córregos e ribeiros se acha[va] ouro”.6 A área ocupada correspondia a
mais de 20 léguas e as indicações de que esse fenômeno já datava de algum tempo pode ser
inferida pelas informações repassadas pelo próprio ouvidor, quando afirma que o local estava
“povoado com praça e ruas em boa ordem e muito boas casas”7, faltando construir igreja e casa
de intendência. As terras minerais foram repartidas e o trabalho de exploração do ouro ficou a
cargo de, aproximadamente, sete mil negros.
A princípio, o arraial foi batizado como São Cipriano, em homenagem ao ouvidor, e
posteriormente, quando da construção da capela, passou-se a chamar arraial da Campanha do
Rio Verde de Santo Antônio do Vale da Piedade, sob a jurisdição da comarca do Rio das Mortes.
Os conflitos entre paulistas e os representantes legais da comarca do Rio das Mortes não
cessaram com a chegada do ouvidor, muito menos com a criação do Arraial, aliás, perduraram por
boa parte do Setecentos. O governo da capitania de São Paulo disputava o controle da área com
a câmara da vila de São João del Rei. Esses conflitos se estenderam ainda por mais alguns anos.
Tanto que em 25 de fevereiro de 1743, a câmara municipal da Vila de São João del Rei teve que
ratificar o auto de ocupação de posse da área, porque um representante do governo paulista se
encontrava na região, alegando o direito de posse sobre o arraial.8 Segundo o relatório da
4
Esta denominação aparece na carta do ouvidor Cipriano José da Rocha, datada de 27 de dezembro de 1737, quando
comunica ao Rei sobre o descobrimento das referidas minas e a legalização da ocupação do território.
5
Para uma síntese desta discussão ver BOXER , Charles. A idade de ouro do Brasil: dores e o crescimento de uma
sociedade colonial. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, pp. 57-110.
6
Carta do ouvidor da comarca do Rio das Mortes, Cipriano José da Rocha, datada de 09 de dezembro de 1737.
Documento citado por VEIGA, José Pedro Xavier. Efemérides Mineiras (1664-1897). Belo Horizonte: Centro de
Estudos Históricos, Fundação João Pinheiro, 1998. p. 913.
7
Idem
8
Auto de posse do Arraial de Santo Antônio da Campanha do Rio Verde (1743). Documento pertencente ao APM,
transcrito numa coletânea intitulada “Memórias Municipais”. In: Revista do APM, ano I, fascículo 3º, julho a setembro de
1896, pp. 457-458.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
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câmara, gastou-se 264 oitavas de ouro e muita gente armada para garantir a ocupação do local,
pois D. Luiz Mascarenhas, então governador da capitania de São Paulo, tinha nomeado
Bartolomeu Correa Bueno como superintendente da região.9 Como se tratava de uma área
estratégica, de fácil acesso ao Rio de Janeiro e São Paulo, o que facilitava o extravio do ouro, a
câmara decide pela criação do julgado do Sapucaí, em 1746, com o estabelecimento de um juiz
ordinário com alçada no cível e no crime.
Foi em fins do século XVIII, mais precisamente em 1795, que os moradores mais influentes
do arraial decidiram reivindicar a criação da vila da Campanha da Princesa, com base numa série
de argumentos que denotavam o grau de expansão demográfica e econômica do território
pleiteado como termo da vila. Dentre os vários argumentos apresentados alguns merecem
destaque como, a distância de 35 léguas da Vila de São João del Rei, as grandes custas pagas
aos oficiais de justiça da Comarca do Rio das Mortes, o aumento da população de Campanha e
seu termo, ultrapassando o número de 8.000 habitantes e a necessidade de implementação de
obras públicas (pontes, chafarizes, calçamento de ruas, abertura de estradas).10
A câmara de São João del Rei se manifestou contrariamente à solicitação alegando que
“os moradores daquele lugar [eram] a maior parte mulatos, escravos, e mestiços”11 e não eram
“homens de nascimento e conceito”, dignos de exercerem os cargos de juizes e de vereadores.
Continuando o seu arrazoado, a câmara afirma que ouro extraído era quase todo extraviado pelo
acesso a caminhos e atalhos que levam ao Rio de Janeiro ou a Santos, e que não havia igreja
decente no arraial.
A região pretendida como termo de Campanha abrangia 10 freguesias (Lavras do Funil,
Baependi, Pouso Alto, Santa Ana do Sapucaí, Camanducaia, Ouro Fino, Itajubá, Cabo Verde e
Jacuí) e três julgados (Santana do Sapucaí, Itajubá e Jacuí). Como se pode perceber, a extensão
do termo compreendia praticamente toda a área do que hoje se denomina como Sul de Minas.
A preocupação real da câmara de São João del Rei se restringia, de fato, às significativas
perdas de receita auferidas das lojas, vendas e criação de gado já abundantes na região.12 Para
vencer a resistência da vila de São João del Rei e conseguir sua autonomia, alguns moradores,
com extremo tato político, solicitam a criação da vila da Campanha da Princesa, homenageando
duplamente a esposa do príncipe regente, futuro D. João VI, através do nome da vila e depois,
separando a terça parte das rendas anuais auferidas pela câmara e enviando-a diretamente à
9
Idem. pp. 464-465.
“Memórias Municipais” p. 460.
11
Idem. p. 461.
12
A própria Câmara reconhece a importância da região e das conseqüências negativas para a Vila de São João del Rei
com a perda de receitas e manutenção de despesas. São citadas algumas despesas feitas com a ratificação da posse,
em 1743 (264 oitavas de ouro), estabelecimento do julgado do Sapucaí (792 oitavas), destruição do quilombo do Rio
Grande ( 500 oitavas); destruição do quilombo do Ambrósio (400 oitavas). Idem. p. 465.
10
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
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princesa, em cofre em separado, para os seus alfinetes. Essa doação continuou sendo enviada
mesmo depois que a princesa veio para o Brasil, com a Corte, em 1808.13 Em sinal de gratidão, o
príncipe regente doou à princesa, D. Carlota Joaquina, o senhorio da vila.
Sob protestos da câmara de São João del Rei, o arraial foi elevado à categoria de vila
através do alvará de 20 de outubro de 1798, mas o auto de criação se deu mais de um ano
depois, em 26 de dezembro de 1799.14 No ano de 1800, foi feita a demarcação do termo, tendo o
Rio Grande como limite natural entre as duas vilas confinantes, a eleição e posse dos primeiros
vereadores da câmara e do juiz de fora e a criação de vários cargos de escrivão de ofícios que
atendessem às necessidades da câmara e da administração e justiça. As disputas entre as duas
vilas ainda perduraram um pouco mais, já que a câmara de São João del Rei não concordava que
as freguesias de Lavras do Funil, Baependi e Pouso Alto fizessem parte do termo da vila recémcriada. Depois de muita discussão, a câmara da vila da Campanha da Princesa resolve ceder o
território da freguesia de Lavras do Funil, mantendo as outras duas freguesias sob sua
jurisdição.15
Foi também neste ano que a câmara discutiu as formas de taxação para cobrir as
despesas com construção da casa de câmara e cadeia, construção de pontes e chafarizes e
calçamento das ruas. A documentação publicada pelo Arquivo Público Mineiro, intitulada
“memórias municipais”, traz algumas informações, ainda que genéricas, sobre as principais
atividades econômicas desenvolvidas na região e que farão a fortuna e a riqueza de alguns
fazendeiros na primeira metade do século XIX. Os vereadores sugerem a taxação de um vintém
de ouro por cada barril de cachaça que saísse dos engenhos, a mesma quantia por cada arroba
de tabaco exportada. Também informam sobre a grande quantidade de cabeças de gado
existentes nos largos campos da vila e seu termo, além da quantidade de toucinho que também é
comercializado fora da vila e a necessidade de taxação dos mesmos.16
Tão logo D. João VI e sua comitiva se transferiram para a cidade do Rio de Janeiro, os
vereadores da câmara da vila da Campanha se prontificaram a fornecer víveres para o
abastecimento da Corte. Em fevereiro de 1808, a câmara já havia conseguido 730 cabeças de
gado, 250 capados e outros gêneros. O toucinho seria enviado no lombo de burros, como já era
de costume nesse tipo comércio. Seriam remetidas 200 cabeças de gado a cada viagem. A tropa,
formada por 30 bestas muares e 50 cavalos ferrados, seria conduzida pelo tenente de milícias
13
14
15
16
Idem. pp. 527-537.
Idem. pp. 469-470.
Idem. pp. 508-511.
Idem. p. 479.
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Joaquim Inácio Vilas Boas da Gama e dois soldados do destacamento, acompanhados de um
ferrador e vários pedestres.17
Em dezembro de 1815, o juiz de fora e vereadores da vila solicitaram a criação de uma
nova comarca, tendo a vila da Campanha como sede da mesma. Desta vez o foco de disputa
desloca-se para o território que antes fazia parte da jurisdição da vila. Com a emancipação dos
arraiais de Santa Maria de Baependi e São Carlos do Jacuí, os vereadores de Campanha se
pautaram nos mesmos argumentos, evocados anos antes pela câmara de São João, quando
Campanha pleiteou sua autonomia.
A perda de território e de recursos só seria compensada com a criação da comarca. Outros
argumentos, como a distância das vilas da região em relação a São João del Rei também foram
mencionados e reivindicavam que as duas vilas recém-criadas e aquelas que fossem criadas
posteriormente no seu território, ficariam sob a jurisdição da nova comarca. As vilas recém-criadas
de Baependi e São Carlos do Jacuí foram consultadas e não aceitaram a criação de uma nova
comarca, e muito menos, de ficar sob a jurisdição da vila da Campanha, alegando que não havia
homens formados e com competência para preenchimento dos cargos. A câmara de Baependi
ainda alegava que sofria vexames na administração da justiça quando ainda era arraial, daí a
reivindicação de sua autonomia. Pertencer a nova comarca, representaria a submissão
novamente.18
2. A vila da Campanha da Princesa: aspectos demográficos e econômicos
Embora o período escolhido para análise se refira à primeira metade do século XIX, é
importante apontar, como o termo a vila da Campanha foi se tornando um pólo de atração,
especialmente na segunda metade do século XVIII. Infelizmente, não disponho de dados
estatísticos populacionais para o século XVIII, mas considerando os números absolutos de
batizandos por década, assim como fez Sheila de Castro Faria para a região de Campos dos
Goitacases, no Rio de Janeiro, é possível identificar o aumento significativo do número de
batizados, especialmente a partir da década de 1770.19 (ver quadro I)
Já na primeira década do século XIX, esse número aumenta significativamente
confirmando o que tem apontado a historiografia sobre o crescimento demográfico verificado na
17
Idem. p. 543.
Idem. p. 557.
19
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1998. p. 170. A autora apresenta uma tabela contrapondo também o número de casamentos. Não pude
estabelecer a mesma comparação, uma vez que não tive tempo hábil de coletar os dados dos assentos de casamento.
18
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
109
comarca do Rio das Mortes nesse período. Em 1821 a comarca detinha 41,6% do total de
habitantes da Capitania, totalizando 213.617 pessoas.20 É justamente na primeira metade do
século XIX, que o termo da vila da Campanha da Princesa, juntamente com outras vilas da
comarca do Rio das Mortes, irá adquirir um maior dinamismo, atestados pelo crescimento
populacional e pela importância de algumas atividades econômicas voltadas para o abastecimento
interno e ligações mercantis com a Corte.21
Quadro I
Número Absoluto de Batizados por Década
Campanha – Baependi – Aiuruoca
Décadas
1741-1750
1751-1760
1761-1770
1771-1780
1781-1790
1791-1800
1801-1810
Nº.
270
1.116
1.685
2.299
2.568
2.731
4.977
%
2%
7%
11%
15%
16%
17%
32%
Total
15.646
100%
Fonte: Registros Paroquiais de Batismo de Campanha (1741-1810). Arquivo da Cúria Diocesana da
Campanha.
Para o ano de 1824, existem alguns dados populacionais expressivos sobre as freguesias
que compunham o Sul mineiro, visitadas por Dom Frei José da Santíssima Trindade, bispo de
Mariana, entre 1820 e 1835. A região era composta pelas freguesias de Nossa Senhora da
Conceição de Aiuruoca, Santa Maria de Baependi, Conceição do Pouso Alto, Santa Catarina, São
Gonçalo e Santo Antônio da Campanha, atingindo um total estimado em 47.348 habitantes. As
20
MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal (1750-1808). 2. ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 110.
21
O trabalho pioneiro a apontar a importância da região centro-Sul de Minas Gerais e suas ligações com abastecimento
interno e da Corte foi elaborado por Alcir Lenharo. Este estudo será retomado em várias partes do trabalho, na medida
em que as fontes forem analisadas. Cf. LENHARO, Alcir. As tropas da moderação. São Paulo: Símbolo, 1979.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
110
freguesias mais populosas eram as de Pouso Alto (13.516) , Aiuruoca (11.484), Campanha
(8.788) e Baependi (7.560).22
Os dados referentes à população do termo da vila nem sempre são claros o suficiente para
se perceber o comportamento demográfico da área investigada. Foi necessário partir de fontes
diversas para traçar um quadro geral da população da vila e seu termo, considerando o número
absoluto e o percentual de livres e de escravos.
Em Minas Gerais, a primeira metade do século XIX será marcada pelo desmembramento,
supressão e criação de novos distritos, vilas e comarcas, justamente em função do crescimento
demográfico e das demandas de várias de localidades, como tive oportunidade de demonstrar
para o caso de Campanha. Como bem constata Afonso Alencastro Graça Filho, as subdivisões
jurídico-administrativas a que foram submetidas a capitania de Minas foram marcadas por extrema
maleabilidade.23 Até 1833, a comarca do Rio das Mortes compreendia oito termos: Barbacena,
Queluz, São José del Rei, São João del Rei (cabeça da comarca); Baependi, Campanha, São
Bento do Tamanduá e São Carlos do Jacuí. Em 30 de junho daquele mesmo ano, foram criadas
as comarcas do Rio Paraíbuna, agrupando os municípios de Barbacena, Baependi e Pomba, e a
do Rio Sapucaí, tendo Campanha como cabeça da comarca, mais os termos de Pouso Alegre e
São Carlos do Jacuí.24 Não estou partindo da subdivisão jurídico-administrativa para a delimitação
do recorte espacial, uma vez que o próprio objeto transcende à geografia administrativa complexa,
e muitas vezes confusa, das comarcas, vilas e distritos. Por outro lado, também é interessante
apontar que as vilas escolhidas para estudo faziam parte do termo de Campanha, pelo menos até
a década de 30 do Oitocentos.
22
TRINDADE, José da Santíssima, Dom Frei. Visitas pastorais de Dom Frei José da Santíssima Trindade (1821-1825).
Belo Horizonte: Centro de Estudos Culturais. Fundação João Pinheiro; IEPHA/MG, 1998. p. 210-27.
23
Para maiores informações sobre as subdivisões jurídico-administrativas da comarca do Rio das Mortes, ver GRAÇA
FILHO, Afonso Alencastro. A princesa do Oeste: elite mercantil e economia de subsistência em São João del-Rei
(1831-1888). Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, tese de doutorado, 1998. Cap. 1. pp. 23-32. Esta tese foi publicada
recentemente, pela Editora Annablume, mas estou tomando como base para considerações, o texto mimeografado.
24
Idem, p. 27. Para outras discussões sobre o assunto ver: MATOS, Raimundo J. da Cunha. Corografia Histórica da
Província de Minas Gerais (1837). Vol. 1. Belo Horizonte, 1979. p. 88.; CARVALHO, Theophilo Feu de. Comarcas e
Termos. Belo Horizonte, Imprensa
Oficial, 1922. p. 122.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
111
Quadro II
População Livre e Escrava da comarca do Rio das Mortes e dos termos de
Campanha e Baependi
Ano
1821¹
Livres
No.
%
Comarca
do 138.517 66,1%
Rio das Mortes
Campanha
29.317
75%
Baependi
19.012
64%
Escravos
No.
%
71.147 33,9%
209.664
9.595
10.523
25%
36%
38.912
29.535
Campanha*
19.667
65%
10.673
35%
30.340
Baependi**
T.
de
Campanha
T. de Baependi
10.199
56%
7.987
44%
18.186
25.130
26.240
69%
60%
11.335
17.767
31%
40%
36.465
44.007
Área
Total
1832²
1833/35³
*A população total do termo é de 36.467 habitantes. Não foram computadas as 6.217 pessoas para
as quais não há informação sobre a condição. Os 1.647 forros foram incluídos entre a população
livre.
** A população total do termo é de 19.671 habitantes. Os 320 forros foram incluídos entre a
população livre.
Fontes: 1) “População da Província de Minas Gerais – 1821”, de Silva Pinto, in MATOS, Raimundo
José da. Corografia Histórica da Província de Minas Gerais (1837). BH/SP, Itatiaia/EDUSP, 1981,
vol. 2; 2) 3) “Lista Nominativa dos Habitantes de alguns distritos do termo de Campanha e
Baependi; 1831/32.” Banco de dados montado por equipe de pesquisadores do CEDEPLAR-UFMG,
sob a coordenação da Prof.a Dr.a Clotilde Paiva. Original: Arquivo Público Mineiro; 3) APM. Mapas
de População de 1833-35.25
25
Documentação pertencente ao APM, reproduzida e corrigida, quando houve erro na totalização, pelas pesquisadoras
Clotilde Andrade Paiva e Maria do Carmo Salazar Martins - CEDEPLAR/UFMG. Essa documentação foi produzida por
iniciativa do governo provincial mineiro, a partir de um decreto datado de 17 de julho de 1832, encarregando os Juízes
de Paz dos diversos distritos da Província do preenchimento de um mapa padrão, constando os dados da população de
seus respectivos distritos, discriminando a condição livre ou escrava, a cor (branco, pardo e preto), o estado civil e o
sexo, segundo quatro faixas etárias distintas (até 15 anos, de 15 a 30 anos, de 30 a 60 anos, de 60 anos em diante).
Tudo indica que os mapas começaram a ser preenchidos em 1833 (data de impressão constante dos mapas), se
estendendo até o ano de 1835. Existem dados para 330 distritos da Província, representando 79,6% dos distritos
existentes em Minas no período. Para uma análise mais geral dos dados para a Província de Minas confira MARTINS,
Maria do Carmo Salazar. Revisitando a Província ... p. 12-29.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
112
Os dados apresentados no quadro acima, elaborado a partir de várias fontes, indicam que,
na primeira metade do século XIX, houve um crescimento significativo da população na área,
confirmando o dinamismo sócio-econômico da comarca do Rio das Mortes já apontado em vários
trabalhos.26
Antes de proceder a análise dos dados é preciso considerar alguns aspectos relativos às
fontes consultadas, que respondem à variação e discrepância de algumas informações de um
período para o outro. Primeiramente, os dados referentes à população do termo de Aiuruoca não
vêm em separado porque o mesmo pertencia ao termo de Baependi. Para o ano de 1832,
encontra-se uma grande redução no número de habitantes do município, considerando o período
anterior e posterior. A explicação está na ausência de alguns distritos importantes que pertenciam
ao termo, que não constam das listas nominativas de 1832, incluindo a própria sede da vila. Já
para Campanha, os números se mantêm praticamente iguais para a década de 30, considerando
aquela parcela da população de 1832 para a qual não constam informações sobre a condição.
Como já foi apontado no quadro I, a partir da década de 70 do Setecentos, verifica-se um
crescimento significativo do número absoluto dos batizados, sinalizando que a área estava se
tornando um pólo de atração de pessoas em virtude da expansão das atividades agro-pecuárias já
consolidadas na região. O que mais chama a atenção neste quadro é o percentual significativo da
população dos dois termos, considerando o total de habitantes da comarca do Rio das Mortes,
denotando a importância estratégica e econômica da região, motivos pelos quais os moradores
reivindicaram o status de vila, em 1795. A população dos dois termos respondia,
aproximadamente, por quase 33% da população da comarca. O crescimento demográfico da
região explica a oposição ferrenha da câmara de São João del Rei em relação à emancipação do
arraial da Campanha do Rio Verde.
O primeiro estudo demográfico sobre a população livre e escrava do termo de Campanha
foi elaborado por Clotilde Paiva e Herbert Klein, considerando variáveis como a idade, sexo,
origem, estrutura ocupacional e distribuição da população escrava entre os senhores.
Embora a população escrava não ultrapassasse 30% do total da população da vila,
destoando do restante dos municípios da província, cerca de 46% dos escravos eram de origem
26
Esse aspecto já foi salientado em trabalhos mais antigos, já citados. Estudos recentes, mais focalizados na comarca e
fundamentados em extensa documentação regional, resultaram na elaboração algumas teses de doutorado de grande
importância para se compreender o dinamismo econômico e populacional da comarca do Rio das Mortes. São os
seguintes: GRAÇA FILHO, Afonso Alencastro. A princesa do Oeste: elite mercantil e economia de subsistência em São
João del Rei (1831-1888). Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, tese de doutorado,1998. ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de.
Homens ricos, homens bons: produção e hierarquização social em Minas Colonial, 1750-1822. Tese de Doutorado.
Niterói: UFF, 2001; BRÜGGER, Silvia M. Jardim. Minas patriarcal – família e sociedade (São João del Rei, séculos XVIII
e XIX). Tese de Doutorado. Niterói: UFF, 2002.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
113
africana e representavam 14% do total da população do município.27 Esse percentual é
característico de regiões onde predominava a “grande lavoura” e a produção voltada para o
mercado internacional.28
Outra indicação importante do quadro é o peso que a população escrava tinha no termo de
Baependi. Desde a década de 20, os cativos ultrapassavam a cifra dos 35% em relação ao total
da população. É especificamente neste termo que encontrei vários proprietários ultrapassando a
faixa de 30 escravos, outros tantos acima de 50 e dois acima de 100 escravos, coisa rara no
cenário provincial mineiro.
Douglas Cole Libby, ao analisar em conjunto as listas nominativas de 1831/32, constata
que dos quase 20.000 domicílios analisados, cerca de dois terços não possuíam escravos.29
Embora a posse de escravo fosse privilégio de apenas quase um terço da população livre, a
grande maioria desses proprietários, ou seja, quase dois terços, possuíam de um a cinco
escravos. Ainda que houvesse uma disseminação da propriedade escrava entre os pequenos
proprietários, o índice de concentração dos cativos entre os proprietários médios e grandes era
muito alto, formando o que Douglas Libby define como a “elite local” do sistema escravista.30
Para se entender o funcionamento de uma sociedade pautada no trabalho escravo é
fundamental verificar como esta se estruturava, considerando a posse ou não de cativos. No caso
de Campanha, em 1831/1832, cerca de 30% da população livre possuíam escravos,31 e
aproximadamente dois terços dos proprietários possuíam de um a cinco cativos, confirmando o
padrão encontrado para o restante da Província. A distinção mais importante fica por conta dos
proprietários de nível médio e daqueles que estavam no topo da pirâmide social escravista, ou
seja, os que possuíam 20 cativos ou mais. Embora juntos representassem pouco mais de um
terço da camada proprietária, concentravam mais de dois terços da população escrava. Os
senhores com 20 escravos ou mais concentravam sozinhos nada menos que quase um terço dos
cativos.
27
Partindo das mesmas fontes e utilizando a base de dados elaborada por Clotilde Paiva, o total da população do termo
vai além dos 35.000 encontrados pela autora, incluindo aqueles que não constam informação sobre a condição. O
percentual da população escrava também é um pouco superior, atingindo a casa dos 35%. Isso pode ser explicado
porque excluí do cálculo os 6.217 habitantes para as quais não consta informação sobre a condição. Agregando esse
número ao conjunto da população livre, o percentual é semelhante ao encontrado por Clotilde Paiva.
28
Ver PAIVA, Clotilde e KLEIN, Herbet S. “Escravos e livres nas Minas Gerais do século XIX: Campanha 1831. São
Paulo, Estudos Econômicos, 22(1):133-34, jan/abr. 1992.Idem (1992), p. 135. É o caso do município açucareiro de Itu,
em 1829, onde os escravos africanos representavam 48% do total. Informações referentes à características da
população escrava, bem como das principais atividades em que eles eram empregados, serão discutidos em capítulo
específico da tese.
29
LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São
Paulo, Brasiliense, 1988. p. 97.
30
Idem. p. 82.
31
PAIVA, Clotilde Paiva e KLEIN, Herbert (1992). p. 136.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
114
Quadro III
Estrutura de posse de Escravos em Campanha - (1831/32)
Faixas de
escravaria
Fogos
%
Escravos
%
01 a 05
06 a 10
20 ou mais
Total
1074
462
97
1633
66%
28%
6%
100%
2.504
4.500
3.204
10.208
25%
44%
31%
100%
Fonte: APM. Lista Nominativas (1831-1832) do termo de Campanha. Quadro elaborado de acordo
com a tabela 10 do artigo de PAIVA, Clotilde e KLEIN, Herbet S. Escravos e livres nas Minas
Gerais do século XIX: Campanha 1831. São Paulo, Estudos Econômicos, 22(1):133-34, jan/abr.
1992. p. 145.
Douglas Libby também constata que dos 6.583 domícilios que possuíam escravos, apenas
163 detinham escravarias superiores a 30 cativos. Unidades escravistas com mais de 100
escravos seriam uma raridade no cenário mineiro, não ultrapassando o número de seis
domicílios.32 Apenas 42 domicílios em toda a província tinham posses entre 50 e 100 cativos.
Embora esteja trabalhando com um período mais amplo e a partir de outro escopo documental, é
interessante verificar o que os inventários têm a revelar sobre a estrutura de posse de cativos.
O critério de escolha para definir como grande proprietário aquele senhor que possuía 20
escravos ou mais, está diretamente relacionado à minha pesquisa com as fontes. Pude verificar,
nos inventários de Campanha, que a maioria das grandes unidades escravistas oscilavam em
torno desse número, ou seja, dos 64 maiores proprietários, 35 (56%) possuíam de 20 a 29
escravos, concentrando 943 (40%) cativos. As unidades com mais de 30 escravos somavam 15
(24%), concentrando 588 (30%) escravos. Também havia um número expressivo de senhores
com escravarias acima de 50 cativos. Eles eram 13 (20% ) proprietários que concentravam 826
(30%) dos cativos. Para Campanha, localizei apenas um proprietário que possuía acima de 100
escravos. (ver quadro V)
Embora os inventários não sejam a melhor documentação para discutir estrutura de posse
de escravos, o que importa destacar é que os níveis de concentração da propriedade escrava são
muito expressivos e revelam a importância econômica da região na primeira metade do século
XIX. Mais de 12% dos senhores detinham mais de 45% da escravaria do município, ou seja, 64
proprietários concentravam 2.357 cativos.
32
LIBBY, Douglas Cole. LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista... p. 98.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
115
Quadro IV
Estrutura de posse de escravos em Campanha (1802-1865)
Faixas de Escravaria
01 a 05
06 a 19
20 ou mais
Total
Nº. de
Proprietários
222
216
64
499
% Nº. de Escravos
44%
611
43%
2.189
13%
2.357
100%
5.157
%
12%
42%
46%
100%
Fonte: Inventários post mortem de Campanha. Centro de Memória Cultural do Sul de Minas CEMEC-SM
Obs: Unidades não-escravistas: 59
O que primeiramente chama a atenção nos dados apresentados é que a comarca do Rio
das Mortes apresenta unidades escravistas à altura das propriedades voltadas para agroexportação. Esta hipótese foi levantada por Afonso Alencastro de Graça Filho ao estudar a elite
mercantil e a economia de subsistência em São João del Rei, no período de 1831 a 1888 e que
também considero apropriada. Os dados que encontrei para o termo de Campanha são muito
aproximados aos que o autor encontrou para o termo de São João del Rei. Dos 103 maiores
fazendeiros sanjoanenses, 54 possuíam mais de 30 cativos. Aqueles que possuíam mais de 50
escravos totalizavam 22. Apenas dois tinham acima de 100 escravos33. A média de escravos entre
os grandes proprietários de Campanha também é quase igual, ou seja, de 37 escravos, enquanto
que para São João del Rei é de 36.34
É interessante comparar esses dados com algumas regiões escravistas do Império no
sentido de perceber certas semelhanças com algumas áreas agro-exportadoras e diferenças com
outras áreas voltadas para o abastecimento interno.
Stuart B. Schwartz, ao classificar as ocupações no Recôncavo baiano segundo a riqueza
em escravos, constata que 7,7% dos proprietários, ou seja, 165 senhores de engenho, possuíam
em média 65 escravos.35 Evidentemente que aqui se trata de unidades escravistas voltadas para
a agro-exportação e daí o número médio bem superior de escravos.
Para o caso do Rio de Janeiro, na localidade do Capivary, Hebe de Matos encontra, para
segunda metade do século XIX, os maiores proprietários com posses que oscilavam entre 20 e 30
escravos.36 A autora trabalhou com uma área que não se situava no vale do Paraíba fluminense,
33
GRAÇA FILHO, Afonso Alencastro. A princesa do Oeste... p. 125-128.
Idem. p.125.
35
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Cia das Letras,
1988. p. 360-367.
36
MATTOS, Hebe. Ao sul da história. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 41.
34
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
116
embora os fazendeiros cultivassem café se tratava de uma economia voltada para o
abastecimento interno.
Renato Leite Marcondes, ao estudar a gestação da economia cafeeira no vale do Paraíba
paulista, mais precisamente em Lorena, constata que em 1829 verifica-se um nível maior de
concentração da escravaria entre aqueles proprietários que possuíam 20 escravos ou mais.37
Poderia enumerar mais alguns casos, mas considero que são suficientes para demonstrar
que os dados encontrados para a comarca do Rio das Mortes e, particularmente para o termo de
Campanha, são grandes indicadores da importância da mão-de-obra escrava nas fazendas
daquela região, aproximando-as dos índices das áreas agro-exportadoras. Como podem ser
caracterizadas as fazendas sul-mineiras? Quais os tipos de atividades econômicas mais comuns
na região e que demandavam tanta mão-de-obra escrava? Na tentativa de responder a estas e
outras questões, procurei fazer um mapeamento da economia local a partir da análise de 475
inventários para os quais foi possível identificar a atividade produtiva, entre 1802 a 1865. Mas
antes disso é importante tecer algumas considerações sobre as fontes e a metodologia utilizada
para esse tipo de investigação.
Em primeiro lugar, devo lembrar que os inventários campanhenses estão subrepresentados, se considerarmos a importância sócio-econômica e política da vila e número total
de documentos existentes para o século XIX. O acervo completo consta de 983 documentos.38 Em
função disso, não pude estabelecer uma amostra por décadas, acabei optando por trabalhar com
todos inventários existentes para a primeira metade do século XIX. Os inventários
correspondentes ao século XVIII são inexpressivos e não ultrapassam 06 documentos, sendo que
alguns se encontram bastante deteriorados. Também acabei optando por transcender um pouco o
recorte cronológico final, não somente em função das razões já apontadas acima, mas também
porque as fortunas acumuladas no momento da execução do inventário foram amealhadas na
primeira metade do século XIX.
As fontes cartoriais, mais precisamente os inventários, tem sido largamente usadas por
historiadores e com propósitos e metodologias diversas. Muitas pesquisas, realizadas ao longo da
década de 80, prestaram grandes contribuições para o estudo da estrutura agrária e econômica
37
MARCONDES, Renato Leite. A arte de acumular na economia cafeeira: vale do Paraíba, século XIX. Lorena/SP:
Editora Stiliano, 1988. p. 89-91.
38
No final de 2002, divulguei em forma de cd-rom, um guia detalhado dos acervos históricos campanhenses, dentre
eles a relação nominal dos inventariantes e inventariados no século XIX. Esse trabalho foi realizado em parceria com a
Profa. Maria Tereza Pereira Cardoso, da UFSJ. Cf. ANDRADE, Marcos F. et. al. A vila da Campanha da Princesa:
guia de fontes para a História do Sul de Minas. Campanha: Centro de Memória Cultural do Sul de Minas, 2002. (CDROM)
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
117
brasileira, calcadas nesse tipo de fonte.39
Do ponto de vista metodológico a análise desse conjunto de inventários se aproxima muito
do procedimento e da percepção adotada por Sheila de Castro Faria, quando analisou a trajetória
de indivíduos e famílias que tiveram seus bens inventariados na região dos Campos dos
Goitacases, Rio de Janeiro, no século XVIII. Como bem percebe a autora, assim como uma
fotografia, os inventários retratam um momento específico da vida material das pessoas, mas se
tratados em conjunto, é possível “captar o(s) movimento(s). Pode-se, por exemplo, agregar
inventários em grupos específicos e perceber trajetórias de vida que se assemelham,
estabelecendo-se padrões de conduta e de produção”.40
Procurarei verificar quais eram as principais atividades econômicas desenvolvidas,
considerando o número de escravos que cada grupo de proprietários possuía. O objetivo é traçar
um mapeamento da economia local, bem do como dos seus principais agentes. Sempre que
possível, procurarei ilustrar com alguma trajetória individual ou familiar.
No quadro abaixo, procurei classificar as unidades produtivas por tipo de atividade. A
classificação adotada permite perceber quais os tipos de atividades eram mais recorrentes entre
os proprietários, indicando também o padrão das fazendas sul-mineiras. Mas antes disso gostaria
de explicar os critérios para a classificação adotada. Optei por contabilizar os inventários
considerando a atividade mais importante desenvolvida por cada proprietário, embora vários
proprietários desenvolvessem atividades consorciadas. Um fazendeiro poderia ser dono de
engenho, criar gado, produzir alimentos e ainda se dedicar ao pequeno comércio de loja ou ao
comércio de tropas e ainda à mineração. Como bem lembra Kenneth Maxwell, a fazenda de Minas
“combinava o engenho de açúcar com a mina, ou esta última com a pecuária”. O autor até cita
como exemplo o caso de Alvarenga Peixoto, inconfidente, que possuía propriedades no arraial de
São Gonçalo do Sapucaí, pertencente ao termo de Campanha, dedicadas à mineração, engenho
de açúcar e criação de gado.41 Neste momento, o nosso objetivo é separar as atividades para se
perceber a importância das mesmas na região e quantos proprietários estavam mais diretamente
envolvidos na sua execução. O consórcio de atividades será verificado no momento em que
formos discutir o que produziam as pessoas inventariadas, segundo o tipo de unidade (escravista
39
Alguns trabalhos merecem destaque pelas contribuições em termos metodológicos e uso extensivo destas fontes.
Como trabalho pioneiro não deve ser esquecido a obra de MACHADO, Alcântara. Morte e vida do Bandeirante. 3. ed.
São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. Dentre os vários estudos realizados na década de 80 e 90, destaco
os seguintes: MELLO, Zélia Cardoso de. Metamorfoses da riqueza: São Paulo, 1845-1895. 2. ed. São Paulo: Hucitec,
1990; FRAGOSO, João Luís. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro (179-18030). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992; MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia – século XIX:
uma província no Império. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992; A Colônia em movimento: fortuna e família no
Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
40
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento... p. 225
41
MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa... p. 111.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
118
e não-escravista) e a faixa de escravaria.
Portanto, considerei como agricultores todos aqueles indivíduos que tinham arrolado entre
seus bens algum tipo de produção de alimentos (milho, feijão, arroz, mandioca...). Foram
considerados pecuaristas todos aqueles que se dedicavam exclusivamente à criação de animais
(gado, cavalos, bestas, porcos e ovelhas). Já os agropecuaristas são aqueles proprietários em
que as duas atividades aparecem claramente consorciadas, ou seja, há menção de roças
plantadas e mantimentos colhidos ou para colher, além de se dedicarem à criação de animais. O
número de donos de lavras foi listado com o objetivo de se perceber o peso da mineração,
principalmente no arraial de São Gonçalo da Campanha, mas nunca era uma atividade isolada,
como será verificado. O mesmo caso se aplica aos inventariados que se dedicavam ao comércio e
aos engenhos de açúcar. Dos 558 inventários analisados, não encontrei indicações claras que me
permitissem inferir o tipo de atividade desenvolvida para 83 proprietários. Em alguns casos tratamse de inventários incompletos com a descrição somente de alguns bens e/ou escravos, em outros,
parece indicar que os proprietários eram moradores na vila. Alguns deles é possível inferir que se
dedicassem a ofícios mecânicos, tais como, ferreiro, sapateiro, marceneiro, devidos aos bens que
são arrolados. Outros parecem que viviam do ganho de um ou mais escravos.
Quadro V
Número de Proprietários por Tipo de Unidade Produtiva
Tipos de Unidade
Produtiva
Nº. de
Faixa de Escravaria
S/E
Agrícola
F1 (01 a 05) F2 (06-19)
F3 ( + de 20)
Proprietários
%
6
3
1
10
2%
Pecuarista
30
92
85
5
212
45%
Agropecuária
8
51
67
20
146
31%
6
3
6
15
3%
7
5
3
18
4%
6
39
29
74
16%
168
202
64
475
100,00%
Mineração
Comércio
3
Engenho de Açúcar
Total
41
Fonte: ver quadro IV
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
119
O que primeiramente chama à atenção é que a grande maioria dos fazendeiros do Sul de
Minas se dedicava à produção de alimentos e à criação de animais. O percentual reduzido
daqueles que se dedicavam exclusivamente à agricultura está explicado pelos critérios adotados
para a elaboração do quadro. Embora alguns inventários dos pecuaristas não apresentassem
produção de mantimentos no momento da realização do inventário, muitos deles possuíam sítios,
fazendas, “terras de cultura e campos de criar”, como denominavam os inventários e que,
certamente, cultivavam algum tipo de alimento, seja para a própria subsistência, bem como para o
trato dos animais. Os estudos recentes para a comarca do Rio das Mortes apresentam quadros
semelhantes.42 Talvez a grande diferença para o termo de Campanha esteja no peso e
importância daqueles fazendeiros que também se dedicavam ao plantio da cana para a produção
de açúcar e/ou aguardente. Por isso optei por demonstrar quantos proprietários dedicavam a esse
tipo de atividade. Mais de 45% dos inventariados que se dedicavam a essa atividade estavam
entre aqueles que detinham maior número de cativos. Considerando também os pequenos e
médios proprietários, verifica-se que nada menos que 16% (74) do total dos inventariados que
tiveram a atividade econômica identificada estavam envolvidos diretamente com o plantio de cana
e a produção de açúcar e/ou aguardente. São números expressivos e que demonstram a
importância que a produção de açúcar, rapadura e aguardente tinham na região.
3. Terras de Cultura e Campos de Criar
Vi-me diante de uma enorme extensão de colinas arredondadas, cobertas unicamente por um capim
acinzentado, entre as quais se viam aqui e ali tufos de árvores verde- escuros, como que jogados
ao acaso. Entrei na região dos campos.43
Essa foi a primeira impressão que o botânico francês, Saint-Hilaire, teve da comarca do
Rio das Mortes, em 1819, principalmente na área demarcada pelo Rio Grande, contrastando-se
com a região das florestas. Segundo o autor, a serra da Mantiqueira era o limite natural entre
essas duas regiões. Como o viajante cruzou o território mineiro algumas vezes, entre 1816 e
42
Este é o mesmo cenário encontrado por Afonso Alencastro Graça Filho, para o termo de São de João de Rei, entre
1831 e 1888. Ver especialmente o capítulo III. In: A princesa do Oeste... p. 113-159. Carla Maria Carvalho de Almeida,
embora tenha verificado um pequeno decréscimo da atividade agropecuária no período de 1770-1822 para a comarca
do Rio das Mortes, constata que era justamente nesta atividade que estavam concentrados o maior número de
proprietários. In: Homens ricos, homens bons... p. 100-101.
43
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do Rio São Francisco. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Ed.
USP, 1975. p. 45.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
120
1822, e percorreu trajetos distintos,44 possibilitou-lhe também destacar algumas diferenças
marcantes em certas localidades da comarca, como por exemplo, Baependi e Aiuruoca. Informa
que mais ao sul da Capitania, entre Baependi e Córrego Fundo, havia um trecho de quase nove
léguas, inteiramente coberto de matas.45 A região próxima a vila de Aiuruoca era mais
montanhosa e também possuía muitas matas.
É justamente nesta parte do território mineiro que a atividade agropecuária irá adquirir
grande expansão. “As terras de cultura e os campos de criar”, como denominam os inventários,
irão garantir a sobrevivência de pobres e sitiantes e farão a fortuna de alguns grandes
fazendeiros.
O capitão Antônio Luiz Pinto, residente na freguesia de Santa Ana do Supucaí, pode ser
considerado um grande agropecuarista. Além de se dedicar à agricultura, também era um
importante criador de animais. Pelo seu inventário, realizado em 1836, ele possuía 24 escravos
que, certamente, estavam ocupados nas atividades agro-pastoris. Em sua propriedade havia 55
vacas com cria, 111 ditas “solteiras”, 27 bois novos, 10 bois carros, 41 novilhos, 74 vitelos e
vitelas, além de mais uma dezena de animais cavalares e algumas bestas arriadas. O número de
porcos também era expressivo: 101, de criar, 17 sevados e 101 pequenos. Entre as culturas se
destacava o cultivo de milho, com alguns alqueires já plantados e outros em ponto de colher.46
A importância que as atividades agrárias adquiriram na região pode ser constatada não só
pelo número de proprietários qualificados como agricultores, pecuaristas e agropecuaristas, mas
também pela produção de alimentos e pela criação de animais, como demonstra o quadro VI. O
traço marcante é que todas as unidades produtivas (escravistas ou não) estavam diretamente
ligadas à produção de alimentos e/ou à criação de animais. Antônio Martins Coelho, por exemplo,
em 1834, quando realizou o inventário de sua esposa, Ana Inocência de Jesus, era um pequeno
proprietário, dono de quatro escravos. Possuía algumas poucas vacas de criar, novilhas, bois e
alguns animais cavalares, além de 15 carros de milhos.
A atividade agropecuária também estava disseminada entre a população mais pobre.
Aqueles que não possuíam nenhum cativo e apresentava poucos bens e possuía um sítio, ou
parte de uma fazenda, ou mesmo não possuíam terras, criavam algum tipo de animal, geralmente
gado, cavalo ou porco, como pode ser verificado pela tabela abaixo. Antônio Correia de Lemos,
44
Para ver os itinerários de viagem (mapas e roteiros) dos principais viajantes que cruzaram o território mineiro,
principalmente Saint-Hilaire, ver GODOY, Marcelo. Intrépidos viajantes e a construção do espaço: uma proposta de
regionalização para as Minas Gerais do século XIX. Belo Horizonte: Cedeplar/UFMG, 1996. (texto para discussão: 109)
p. 78-98.
45
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do Rio São Francisco. Nota 2, p. 48.
46
Inventário post mortem do Capitão Antônio Luiz Pinto (1836). CEMEC-SM. Cx. 08.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
121
inventariado em 1835, dono de uma parte na fazenda São João, na freguesia de Douradinho,
possuía duas éguas, uma vaca e uma novilha e dois capados.
Quadro VI
Produção Agrícola e Criações de Animais nas Unidades Produtivas
do termo de Campanha (1802-1865)
Produção
Agrícola
Milho
Feijão
Arroz
Mandioca
Unidades Escravistas
Unidades
NãoEscravistas
Nº.
%
3
2%
1
1%
25
30
1
15
4
7%
8%
2%
6%
3%
F1 (01 a
05)
41
16
17
3
117
127
3
76
44
%
Total
%
F3 (20
ou mais)
24%
23%
21%
30%
F2 (06
a 19)
84
35
43
5
%
Nº.
%
50%
50%
54%
50%
40
19
19
2
24% 168 100%
27% 70 100%
24% 80 100%
20% 10 100%
33%
33%
5%
31%
31%
159
164
29
112
71
45%
43%
45%
46%
50%
56
59
31
39
24
16%
16%
48%
16%
17%
Criação de
Animais
Gado
vacum
Cavalar
Bestas
Porcos
Carneiros
357
380
64
242
143
100%
100%
100%
100%
100%
Fonte: ver quadro IV
Os gêneros agrícolas mais comumente encontrados nos inventários foram o milho, o feijão,
arroz e mandioca. Os três primeiros itens faziam parte da dieta básica da população, além do
milho servir para o trato de animais, como porcos e galinhas. Dados sobre a produção de
mandioca pouco aparecem nos inventários, mas isto não quer dizer que a mesma não fosse
largamente cultivada. Como a região se tornou o principal pólo abastecedor da Corte,
especialmente após 1808, há de se compreender a importância que a cultura do milho
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
122
desempenhava na economia local47. Conforme demonstrou Roberto Martins48 e, mais
recentemente, Cláudia Chaves, a exportação de milho em grão para o Rio de Janeiro ou São
Paulo era muito pequena. Mas considero que a argumentação de Robert Slenes sobre a
“exportação indireta desse produto, em lombo de porco”49 seja a mais adequada. De fato, o
aumento do comércio de suínos (amimais vivos e toucinho) com o Rio de Janeiro pode ter
intensificado o cultivo do milho nas fazendas sul-mineiras. Embora Saint-Hilaire,50 em passagem
pela comarca do Rio das Mortes, tenha descrito sobre o costume de se utilizar tubérculos na
alimentação dos porcos, a expressiva quantidade de inventários que apresentaram produção de
milho demonstra o quanto era essencial o seu cultivo, garantindo assim o funcionamento e
expansão dos empreendimentos agropastoris. (ver quadro VI)
Outro aspecto que confirma a produção de gêneros voltados para o abastecimento é o
número de bestas que havia em várias unidades escravistas. Certamente, muitas delas eram
utilizadas para o comércio de produtos que interligavam a província de Minas ao Rio de Janeiro e
vice-versa. Quase a totalidade das bestas arroladas, ou seja, 93% estavam nas mãos dos
proprietários de nível médio e grande. Cerca de 48% dos grandes fazendeiros possuíam grande
número de bestas e, muitas, arriadas, além das casas de tropa, descritas nos bens de raiz. Em
1833, D. Maria Antônia de Jesus possuía 55 vacas, 20 reses, 19 bois de carro, 25 garrotes e
novilhas, além de nove bestas arriadas. Detinha uma escravaria de 28 cativos. Os indícios de que
também se dedicava ao comércio de gêneros para o abastecimento, pode ser percebido pelos 84
queijos quer foram arrolados entre os bens do casal. A produção de milho também era
significativa, ou seja, possuía 27 carros de milho no paiol.51
A importância da agropecuária no Sul de Minas já havia sido ressaltada pela historiografia,
mas de forma bastante genérica. Caio Prado Júnior ao descrever a formação dos núcleos de
povoamento do interior de Minas, mais precisamente ao Sul da capitania, na bacia do Rio Grande,
onde se formaria a Comarca do Rio das Mortes, destaca o progresso da pecuária voltada para o
comércio, desde meados do século XVIII. "O progresso da pecuária nesta região, favorecida por
47
Sobre o assunto ver: LENHARO, Alcir. As tropas da moderação... caps. III e IV. Afonso Alencastro Graça Filho
discute a importância do cultivo e produção do milho na região de São João del Rei, chegando a defini-la como “a
civilização do milho”. In: A princesa do Oeste...cap. III.
48
MARTINS, Roberto B. A economia escravista de Minas Gerais... p. ; CHAVES, Cláudia. Melhoramentos do Brazil:
integração e mercado na América Portuguesa (1780-1822). Niterói, UFF, Tese de Doutorado, 2001. Ver as tabelas
elaboradas a partir dos mapas de exportação e importação de Minas através dos principais registros que estão anexas
ao final da tese. Dos 11 registros fiscais analisados somente três (Campanha do Toledo, Malhada e Rio Preto)
apresentam alguma produção de milho em grão com destino a outras capitanias. p. 325-341.
49
Em resposta ao debate iniciado pelos irmãos Martins, Robert Slenes questiona o caráter “vicinal” da economia mineira
oitocentista, especialmente no que se refere à desvinculação da economia voltada para o abastecimento interno do
setor exportador. SLENES, Robert. Os múltiplos de porcos e diamantes... p. 481.
50
SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagens às nascentes do rio São Francisco. p. 52-53.
51
Inventário post mortem de D. Maria Antônia de Jesus(1833). CEMEC-SM. Cx. 06.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
123
condições naturais destacadas, foi rápido; e já em 1756 descia gado daí para São Paulo,
concorrendo com o fornecimento dos campos do sul - Curitiba e Rio Grande".52
Desde o final da década de 70, os estudos têm demonstrado a diversidade da economia
mineira desde as primeiras décadas do século XVIII, onde a agricultura, pecuária e mineração
eram executadas em concomitância e o consórcio de atividades foi algo marcante no cenário
mineiro, situação que se prolongou e se acentuou no século seguinte53, pelos menos para
algumas regiões como a comarca do Rio das Mortes.54
4. Os Engenhos de Açúcar
Havia uma quantidade expressiva de proprietários que se dedicavam ao cultivo de cana,
produção de açúcar e/ou aguardente. E o mais interessante a destacar é que esses fazendeiros
representam mais de 45% dos grandes proprietários da região. Clotilde Paiva e Herbet Klein
mencionam um relatório fiscal da Província, datado de 1836, que demonstra a importância e o
número de engenhos que existiam no termo de Campanha. O município ocupa o sexto lugar na
produção açucareira, contando com a presença de 86 engenhos.55 Nos inventários analisados
encontrei quase esse número, ou seja, nada menos que 74 proprietários ligados a esse tipo de
atividade. (ver quadro V)
Também, como já tive oportunidade de chamar a atenção esta atividade nunca estava
isolada. Quase sempre um dono de engenho criava animais, seja de gado, muares, porcos e
ovelhas, além de produzir mantimentos como arroz, milho e feijão. Para alguns também é possível
indicar claras ligações com o comércio através de tropas, seja pelo número de bestas arriadas, ou
por possuir casa para tropas e pouso para tropeiros. A relação entre os engenhos e casas de
negócios também foi constatada por Clotilde Paiva.56 Este parece ser o caso do desembargador
52
PRADO JR, Caio Prado. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 57.
Ver, entre outros: LENHARO, Alcir. As tropas da moderação...; MARTINS, Roberto B. A economia escravista de
Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte, CEDEPLAR/UFMG, 1982. GUIMARÃES, Carlos Magno e REIS, Liana
Maria. “Agricultura e escravidão em Minas (1700/1750). Revista do Departamento de História da UFMG, vol 1, n°2,
1986; LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São
Paulo, Brasiliense, 1988.; SLENES, Robert. “Os múltiplos de porcos e diamantes: a economia escravista de Minas
Gerais no século XIX”. Campinas: Cadernos IFCH/UNICAMP, n. 17, jun. 1985.
54
É o que têm mostrado as duas teses recentes já citadas. Ver: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Homens ricos,
homens bons... p. 98-101.; GRAÇA FILHO, Afonso Alencastro. A princesa do Oeste...
55
PAIVA, Clotilde e KLEIN, Herbert. Escravos e livres nas Minas Gerais... p. 133.
56
Clotilde Paiva utiliza os relatórios de 1836 como fonte complementar em sua tese de doutorado. A autora analisa as
informações existentes para 41 distritos com o objetivo de perceber a riqueza da “relação dos engenhos e das casas de
negócio”. In: População e economia nas Minas Gerais do século XIX. São Paulo: FFLCH/USP, 1997. (tese de
doutorado) . p. 77-85. Essa documentação já tinha sido objeto de investigação mais detalhada em outro artigo. Ver
PAIVA, Clotilde e GODOY, Marcelo. “Engenhos e casas de negócios na Minas Oitocentista”. In: Anais do VI Seminário
sobre a Economia Mineira. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, p. 29-52.
53
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
124
José Joaquim Carneiro de Miranda e Costa, inventariado em 1844. Figura de grande projeção na
vila, uma vez que foi o primeiro juiz de fora da mesma, era dono de engenho e criava gado e
produzia alimentos. Dentre os seus bens de raiz, além de fazenda de cultura e engenho, possuía
uma venda à beira de estrada, que certamente servia para comercializar os produtos de sua
fazenda, entre eles, a aguardente.57
Rodrigo Antônio de Lemos, morador no arraial de São Gonçalo da Campanha, teve seus
bens inventariados no ano de 1850 e a produção de açúcar e aguardente representava a atividade
principal de sua fazenda. Isso pôde ser constado tanto pelos utensílios e benfeitorias próprias de
um engenho, bem como da produção de sua unidade agropastoril. Possuía 16 formas de fazer
açúcar, tachos, várias pipas e um alambique. A produção de seu engenho também era
expressiva: 164 arrobas de açúcar em formas, 20 ½ arrobas de açúcar branco, além de 105 barris
de aguardente. Para garantir a produção desses gêneros foram arroladas várias lavouras de
canas, em diversos estágios. Assim como em outras fazendas, percebe-se a diversificação das
atividades. A produção de alimentos e a criação de animais, especialmente o gado vacum e suíno,
faziam parte do seu empreendimento. Possuía 50 alqueires de arroz, 101 carros de milho no paiol,
além de uma centena e meia de cabeças de gado bovino e 51 de suínos. A importância da
riqueza acumulada por esse proprietário pode ser verificada pelo valor total dos bens avaliados,
ou seja, 92.559$737 (noventa e dois contos, quinhentos e cinqüenta e nove mil, setecentos e
trinta e sete réis).
Evidentemente nem todos os inventários tem essa riqueza de detalhes e nem todos os
senhores de engenho encontram-se nesse padrão, mas o número de proprietários com grande
escravaria, e que se dedicavam a esta atividade, não é desprezível, conforme já foi demonstrado.
Os proprietários de nível médio constituíam a maioria dos donos de engenho, ou seja, 39
(52%). Como apontam alguns estudos sobre a cultura canavieira em diferentes regiões da
Colônia, esta é uma atividade que demanda maior contingente de escravos.58 Talvez aí esteja
uma das razões para a média bastante expressiva de cativos por proprietário, considerando os
níveis de concentração da mão-de-obra escrava em outras localidades.
Parece-me que, mesmo na segunda metade do século XIX, os engenhos ainda
representavam um papel essencial na economia sul-mineira, atestado pelo relatório elaborado
pela câmara da vila da Campanha, no ano de 1857. Segundo este documento, a lavoura era a
principal “indústria” a que se dedicavam os moradores do município, tendo como principais
57
Inventário post mortem do desembargador José Joaquim de Miranda e Costa (1844). Centro de Memória Cultural do
Sul de Minas - CEMEC-SM. Cx. 16. Na relação de engenhos e casa de negócios de 1836, consegui localiza-lo como
dono de um engenho movido por força animal e proprietário da única venda situada na estrada próxima à sua fazenda.
Ver. APM. Seção Provincial. SP. PP 1/6. cx. 05.
58
Ver SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos….; FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento...
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
125
produtos o açúcar e a aguardente, o tabaco em rolo, os cereais, o gado vacum e suíno, nesta
ordem de importância.59
5. O Cultivo do Tabaco
A importância que teve o cultivo do tabaco no Sul de Minas, mais precisamente no termo
de Baependi, é abordada de forma bastante genérica em vários trabalhos, pois ainda falta um
estudo mais detalhado desta atividade na região, destacando o volume de produção, a
importância do comércio e sua vinculação com o tráfico internacional,60 se é que ocorria. Também
não terei condições de apresentar um estudo mais sistematizado e nem de oferecer muitas
respostas para o “ciclo do fumo sul-mineiro”, como define Douglas Libby,61 mas certamente alguns
inventários denotam a importância que atividade possuía na região e quantos proprietários
estavam diretamente envolvidos na sua execução.
Numa primeira leitura dos inventários pode-se perceber que a região da Freguesia de
Santa Catarina, que mais tarde pertencerá à comarca de Cristina, apresenta um maior número de
processos que contém lavoura de tabaco, que nos documentos aparece como “fumo em arroba”,
“fumal” ou “fumo em rolo”. Algumas propriedades da freguesia do Lambari, mais próximas de
Campanha, também apresentam alguma produção ou lavouras de tabaco. Dos 475 inventários
analisados, consegui localizar 31 (6,5%) proprietários que possuíam produção de tabaco em
arrobas ou em lavoura. Embora o número seja pequeno, é representativo quando se considera a
faixa de escravaria. Mais de 60% (22) dos proprietários que apresentavam alguma produção de
fumo estavam nas faixas médias e grandes de escravaria. Nenhum deles parece se dedicar
exclusivamente à produção de fumo, aliás, como em outros casos, as atividades estavam sempre
consorciadas. Em 1833, D. Ana Francisca de Jesus, por exemplo, residente na fazenda
59
Relatório da câmara municipal de Campanha, datado de 20/02.1857, em resposta à circular do Governo da Província
sobre o estado da mineração, agrícola e fabril. APM. SP 655.
60
João Luís Ribeiro Fragoso relata sobre o comércio de fumo e tecidos grossos para escravos desenvolvido entre
Airuoca, Baependi e Cristina e a praça mercantil do Rio de Janeiro. In: Homens de Grossa Aventura: acumulação e
hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 25.
61
O autor destaca a inexistência de estudos mais sistematizados sobre assunto, ao analisar as obras de Kathleen
Higgins e Laird W. Bergard sobre Minas Gerais. In: “Minas na mira dos brasilianistas: reflexões sobre os trabalhos de
Higgins e Bergard”. In: BOTELHO, Tarcísio Rodrigues et al. História quantitativa e serial no Brasil: um balanço.
Goiânia: ANPUH-MG, 2001. pp. 279-304. Também já havíamos chamado a atenção para esse aspecto em artigo em
que analisamos o potencial das fontes regionais para a história do Sul de Minas. Ver ANDRADE, Marcos F. e
CARDOSO, Maria Tereza P. “A vila da Campanha da Princesa: fontes para a História do Sul de Minas. Varia História.
Belo Horizonte, Revista do Departamento de História da UFMG, julho de 2000. p. 218.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
126
Congonhal, no termo de Campanha, além de ser dona de engenho, criar gado e produzir milho,
também possuía 32 arrobas de fumo.62
Segundo indicações de Bernardo Saturnino da Veiga, ainda na década de 80 do século
XIX, o fumo constituía a principal produção da freguesia de Santa Catarina, seguidos pela
produção de café e cana.63 A indicação da importância que esta atividade teve na localidade pode
ser avaliada pelo inventário de D. Maria Bento Carneiro, realizado no ano de 1849. Além de
grande agropecuarista e detentora da maior escravaria encontrada para o termo de Campanha,
ou seja, mais de 100 escravos, era proprietária de algumas fazendas, possuía sociedade em
outras tantas e também tinha residência na freguesia. A conexão entre a produção e provável
comercialização do tabaco pode ser inferida pelo número de bestas arriadas, ultrapassando a três
dezenas, e o alto valor de fumo em rolo. Embora não haja menção a quantidade em arrobas,
sendo somente definida como “uma porção de fumo em rolos”, o valor extremamente alto
demonstra que não era produção de pouca monta, ou seja, o fumo avaliado era de 4:408$490
(quatro contos, quatrocentos e oito mil, quatrocentos e noventa réis).64
Algumas informações prestadas pela câmara municipal de Campanha ao Conselho de
Governo, no ano de 1825, trazem indicativos da importância de algumas atividades econômicas
praticadas na região, particularmente o comércio de fumo. Os dados são apresentados de forma
genérica, mas que se confrontadas com outras fontes, como, por exemplo, os inventários, são
muito úteis.
Os vereadores informam que dentre as culturas mais importantes que se desenvolvem em
toda extensão do termo, destaca-se o plantio do milho, feijão, arroz, cana, fumo, mandioca, e
carás. Alguns agricultores plantavam inhames que eram destinados à alimentação dos porcos. O
algodão também era produzido razoavelmente nas terras próximas ao rio Verde. O cultivo do trigo,
que em outras épocas era produzido em abundância e até exportado para o interior da província e
também para São Paulo, foi abandonado pelos agricultores devido a problemas no seu cultivo,
sendo a farinha substituída pelo polvilho e farinha de milho. Vários gêneros eram comercializados
entre os termos e as outras províncias:
...deste Termo se exporta para o Termo de Baependi, milho, feijão, farinha, arroz, açúcar e
aguardente de cana; e bem assim os moradores d’aquele Termo vem a este comprar muito fumo
para exportarem para a Corte do Rio de Janeiro; e da mesma sorte se exportam toucinhos para a
Província de São Paulo. Igualmente se importam para este Termo vindo da Corte do Rio de Janeiro
e da Província de São Paulo, e Praça de Santos, farinhas de trigo, vinhos e mais gêneros da
Europa65. (grifos meus)
62
Inventário post mortem de dona Ana Francisca de Jesus (1833). CEMEC-SM. Cx. 06.
VEIGA, Bernardo Saturnino da. Almanak Sul-mineiro. p. 498.
64
Inventário post mortem de D. Maria Bento Carneiro (1849). CEMEC-SM. Cx. 22.
65
APM. “Memórias Municipais”. p. 625-626
63
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
127
Sobre a produção de fumo, a informação da câmara de Campanha é bastante curiosa, pois
as freguesias de Baependi e Cristina são comumente citadas como as principais regiões
produtoras, embora alguns inventários de Campanha indiquem o cultivo do tabaco em algumas
propriedades do arraial do Lambari. Será que havia uma praça comercial em Campanha, onde
esses gêneros, especialmente o fumo, eram comercializados e depois remetidos para o Rio de
Janeiro? Essa hipótese parece bastante provável já que a cidade, no final da primeira metade do
século XIX, era uns dos principais entrepostos comerciais localizados mais ao sul da comarca do
Rio das Mortes.66 Na data em que a câmara apresenta o seu relatório, Baependi já era vila e havia
uma série de freguesias, distritos e povoações sob a sua jurisdição.
6. O Comércio
As indicações sobre as atividades comerciais podem ser inferidas por vias diversas nos
inventários. No momento, interessa retratar aqueles inventariados que se dedicavam ao pequeno
comércio, representado pelas casas de negócio, vendas, tavernas e boticas. Dos inventários
analisados, apenas 18 (4%) possuíam algum tipo de estabelecimento comercial. Embora seja um
número bem reduzido dada a importância sócio-econômica da região no período em estudo,
acredito que esse número está subestimado pela sub-representação das fontes. Se confrontarmos
esses dados com o Relatório Fiscal de 1836, a diferença é muito grande. Clotilde Paiva e Herbert
Klein identificam o termo de Campanha como a região que detinha o maior número de
estabelecimentos comerciais ou “vendas”. Dentre os 4.293 estabelecimentos registrados, nada
menos que 471 (11%) estavam localizados no termo da vila.67
O capitão Antônio Lopes da Silva Araújo, residente na vila de Campanha, teve seus bens
inventariados em 1833. Além de ser dono de uma botica, possuía cinco escravos, uma casa no
largo da Matriz e outra na rua da Áustria. Também não exercia exclusivamente a atividade de
comerciante. Criava um número razoável de cabeças de gado, ultrapassando a três dezenas e
também outro tanto de potros e éguas, além de carneiros.68 Como foi visto no tópico anterior, em
alguns casos, os donos de “vendas” à beira de estradas poderiam ser dos próprios fazendeiros e
serviam de espaço para comercialização dos seus produtos.
66
Alcir Lenharo destaca as cidades de São João del Rei e Barbacena como principais entrepostos comerciais que
interligavam Minas e a Corte. Considero que Campanha também faça parte desse circuito, principalmente pela sua
importância estratégica e econômica no período em estudo. Cf. LENHARO, Alcir. As tropas da moderação... p. 89-90.
67
PAIVA, Clotilde e KEIN, Herbet S. “Escravos e livres nas Minas Gerais do século XIX...” p. 133.
68
Inventário post mortem do Cap. Antônio Lopes da Silva Araújo.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
128
Como constata Clotilde Paiva, os estabelecimentos comerciais mais sortidos tendiam a se
concentrar nas áreas urbanas, já as vendas se localizavam na beira de estradas para atender aos
viajantes e tropeiros. Algumas lojas poderiam se especializar na venda de “secos”, outras de
“molhados”, ou tudo junto. Por “fazenda seca entende-se todo tipo de tecido (panos de algodão,
linho, seda, etc...) e “fazenda molhada” eram os mantimentos e outros gêneros (carne seca,
toucinho, farinha, milho, feijão, arroz, sal, fumo, queijos), assim denominados porque poderiam se
descorar ou umedecer.69
O capitão Miguel Teixeira Vitorino, morador na cidade de Campanha, era um desses donos
de lojas de “fazenda seca”. Na relação de seus bens inventariados em 1856, este possuía uma
loja de comércio bastante sortida com vários tipos de artigos: sapatos, meias para homens e
senhoras, suspensórios de algodão, luvas, agulhas, linhas, além de vários artigos em ferro,
objetos para ferreiro e marceneiro. Enfim, seu estabelecimento era daqueles em que se podia
encontrar quase tudo que era necessário para o uso doméstico ou mesmo para determinadas
atividades de trabalho.70
A importância das atividades comerciais em Minas, bem como de seus agentes, já foi
objeto de estudo de importantes trabalhos, tanto para o século XVIII, quanto para o XIX.71
7. A Mineração
A economia sul mineira não se restringia às atividades agropecuárias voltadas para o
abastecimento de certos mercados, especialmente o da Corte. A mineração ainda detinha alguma
importância e desenvolvia algum atrativo nas primeiras décadas do século XIX, sendo praticada
em diversos distritos da região, principalmente no arraial de São Gonçalo. No ano de 1814, são
listados 42 mineradores e um contingente de 564 escravos que trabalhavam nas lavras,
resultando numa média de 13 escravos por proprietário72.
Também aqui se verifica a
concentração de escravos nas mãos de um pequeno grupo de mineradores, ou seja, dos 564
cativos empregados na mineração, 250 (44%) estavam nas mãos de sete proprietários que
detinham 20 escravos ou mais. Mas é preciso esclarecer que os mineradores que detinham maior
69
PAIVA, Clotilde. População e economia nas Minas Gerais do século XIX... pp. 81-83, especialmente a nota 43.
Inventário post mortem do capitão Miguel Teixeira Vitorino (1856). CEMEC-SM. Cx. 31.
71
Ver, entre outros, CHAVES. Cláudia Maria das Graças. Perfeitos Negociantes: mercadores das Minas Setecentistas.
São Paulo: Anablume, 1999.; FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do
comércio nas Minas Setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999. PAIVA, Clotilde. População e economia nas Minas
Gerais do século XIX...; GRAÇA FILHO, Afonso Alencastro. A princesa do Oeste...
72
Lista das lavras e os nomes dos senhores delas e o número de escravos que se empregam na mineração em todo o
termo da vila da Campanha da Princesa, no ano de 1814. APM. Documentação microfilmada da Casa dos Contos,
pertencente ao Arquivo Público Mineiro. Rolo 525. Planilha 20107. Item 01.
70
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
129
escravaria, quase sempre atuavam em sociedade. Destes sete maiores mineradores, somente
dois não mineravam em sociedade. É o caso do capitão João Leite de Oliveira Bressane que
possuía 60 cativos e uma lavra no Bairro Alto, na vila da Campanha. Já o capitão Manoel Ribeiro
de Carvalho possuía 32 escravos e uma lavra no distrito da Lagoa, na freguesia de Aiuruoca.73
Os inventários que apresentaram menção explícita à exploração de jazidas minerais foram
pouco expressivos. Apenas 3% (15) dos inventariados se dedicavam à mineração. Acredito que a
hipótese da sub-representação dos inventários possa ser novamente colocada, pois segundo a
relação dos mineradores de 1814, o número de pessoas que possuíam lavras de minerar era bem
maior.
O primeiro aspecto que pode ser destacado dos inventários é que a maior concentração de
mineradores se verifica no período entre 1802 a 1842, ou seja, oito proprietários tinham alguma
lavra e ainda exploravam o ouro. Como nos outros casos, a atividade sempre aparece
consorciada com a criação de animais, produção de alimentos e mesmo o comércio. Outro ponto
importante é que quase a metade dos donos de lavras possuía 20 escravos ou mais, confirmando
a necessidade e a importância da mão-de-obra na exploração das jazidas. (ver quadro VI)
Ainda na década de 50, irei encontrar alguns proprietários explorando terras minerais. O
coronel José Francisco Pereira possuía morada de casas na localidade denominada Ouro Fala,
pertencente à Freguesia de São Gonçalo da Campanha. Certamente o nome da paragem estava
relacionado à abundância do ouro naquela área, em outros tempos. Além de criar alguns porcos,
cabritos e produzir alguns alimentos como feijão, José Francisco também era dono de 26
escravos e possuía uma parte em uma lavra de ouro.74
Os viajantes Spix e Martius registraram suas impressões quando passaram pela região.
Destacam a imponência das construções, embora muitas estivessem arruinadas, e que algumas
pessoas ainda insistiam na atividade mineradora. Se não era tão abundante quanto em outros
tempos, o fato de haver algumas pessoas que se dedicavam a tal atividade, demonstra que a
mesma ainda poderia trazer alguma rentabilidade.
Outras informações sobre a atividade mineradora no termo da vila puderam ser extraídas
do relatório da câmara municipal, enviado ao Conselho de Governo da província, em 1856.
Algumas lavras ainda eram exploradas no entorno da sede da vila da Campanha, mas era em São
Gonçalo que se concentravam os principais mineradores. “A mineração tem neste município
decaído do estado florescente de que por muitos anos gozara, a excetuar-se as lavras do Bairro-
73
74
Idem.
Inventário post mortem do Coronel José Francisco Pereira (1856). CEMEC-SM, Cx. 31.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
130
Alto, próximas a esta cidade, as de S. Luzia, Palmital e S. José da Freguesia de São Gonçalo,
nem uma outra se acha em pleno exercício”.75
Além das lavras em funcionamento, a câmara comenta que havia boas formações de
terras minerais que, se devidamente exploradas, poderiam apresentar algum resultado positivo,
mas que esse trabalho só poderia ser tentado por companhias mineradoras. Mas era
principalmente no arraial de São Gonçalo que vários faiscadores ainda garantiam a sua
sobrevivência e mobilizavam parte do comércio local.
Embora os números apresentados não sejam tão esclarecedores sobre o peso que a
mineração ainda exercia na economia sul-mineira, pelo menos são indicativos de que a atividade
ainda exercia alguma atração. Parece que a mesma hipótese pode ser levantada para o termo de
São João del Rei. Carla Maria Carvalho de Almeida, ao estudar a economia mineira através de um
estudo comparativo por comarcas, constata que em São João del Rei, no auge dessa atividade
(1750-1770), havia 42,9% de propriedades ligadas à mineração. No período em que autora
denomina como de “reacomodação econômica” (1780-1822), esse percentual cai para 23,3%76,
mas mesmo assim ainda havia um número significativo de pessoas que se dedicavam à
exploração das lavras.
Através do mapeamento geral dos inventários analisados pude constatar a importância do
termo de Campanha no cenário sul-mineiro, seja pela diversidade das atividades praticadas ou
pelo crescimento populacional verificado na primeira metade do século XIX, especialmente da
população escrava. Também chama a atenção o nível de concentração posse de cativos na mão
de alguns poucos senhores e o número de proprietários dedicados à produção de açúcar,
rapadura e aguardente. As fazendas escravistas consorciavam diversas atividades. Ao mesmo
tempo em que se criava gado, cavalos, porcos e ovelhas, se plantava arroz, milho e feijão, muitos
desses produtos destinados ao comércio inter e intra-provincial. A atividade mercantil aparece nas
“casas de negócios”, principalmente nos núcleos urbanos, mas também há indícios de que os
fazendeiros negociavam ou intermediavam sua produção através do comércio de tropas. Clotilde
Paiva chega a conclusões semelhantes ao analisar a economia mineira da região Sul Central, no
século XIX, cujas atividades estavam centralizadas em torno de Campanha. “Registrou-se a
produção do ouro e a presença de grandes fazendas diversificadas. Não há informações sobre o
comércio intraregional, apenas referências secundárias ao comércio de bovinos com o Rio de
Janeiro”.77 A escassez de informações sobre o comércio intraregional ou mesmo sobre o comércio
de gado bovino com outras províncias, especialmente a Corte, salientado pela autora, talvez
75
Resposta da câmara municipal da Campanha à circular de 04/11/1856 ao Conselho de Governo sobre o estado da
indústria de mineração, agrícola e fabril. APM. Seção Provincial. SP 655.
76
ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Homens ricos, homens bons... p. 98-99.
77
PAIVA, Clotilde. População e economia.... p. 121.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
131
possa ser explicada pelo universo de fontes investigado.78 Como estou trabalhando de forma mais
detalhada sobre a região e a partir de conjunto diversificado de fontes, no qual se destacam os
inventários, será possível detectar fortes indícios do caráter mercantil da economia sul-mineira e
sua vinculação com outras províncias, especialmente as do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Marcos Ferreira de Andrade é Professor de História da Universidade do Estado de
Minas Gerais – Unidade de Campanha –, Coordenador do Centro de Memória
Cultural do Sul de Minas e Doutorando em História na Universidade Federal
Fluminense.
78
A importância do comércio de gêneros voltados para abastecimento, seja no interior da Capitania ou mesmo com
outras capitanias da Colônia já foi comprovado por Cláudia Chaves, ao analisar os mapas de importação e exportação
de Minas. CHAVES, Cláudia M. G. Melhoramentos no Brazil... Ver especialmente o último capítulo. p. 274-319.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
132
PERMUTAS MATRIMONIAIS
Reflexões sobre o comportamento sócio-econômico
de uma elite agrária
Mônica Ribeiro de Oliveira
Abstract:
This article analyses the formation and
consolidation of the coffee-producing agrarian
center developed in Minas Gerais between 17801870 and the network of socio-family relationships
which were seeking strategies of power,
maintenance and ascension to great land and slave
ownership status within the emerging exportingagrarian center .This article also analyses the
behaviour of the land market of the period.
Key words:
1. Socio-family strategies 2. Minas Gerais ;
3. Land marked
Resumo:
Esse artigo analisa a formação e consolidação de
um núcleo agrário exportador de café desenvolvido
em Minas Gerais entre 1780-1870 e a sua rede de
relações sócio-familiares,que buscavam através
das redes de matrimônio, compadrio e sistemas de
herança, as estratégias de manutenção do poder e
ascensão ao status de grandes proprietários de
terras e escravos no nascente núcleo agrárioexportador.Esse artigo analisa também a
comportamento do mercado de terras do período.
Palavras-Chave :
1.Estratégias sócio-familiares; 2. Minas Gerais;
3. Mercado de terras.
No ano de 1856, Mariano Dutra de Moraes é listado como um dos maiores cafeicultores das
Minas Gerais.Possuía 110 mil pés de café em duas dinâmicas propriedades. Estas reuniam, além de
grande plantel de bestas, uma série de benfeitorias e 160 alqueires de milho. Sua riqueza era
produzida e mantida por 113 cativos. Antes, em 1842, como chefe do Partido Liberal, liderou a
Revolução Liberal na região. Mariano esmerava-se na extensão de suas benesses à população local,
ao distribuir ínfimos e altos empréstimos; em seu inventário consta cerca de 99 devedores. De seu
consórcio com Maria Antônia Claudiana de Moraes, filha de um dos maiores potentados da Mata
mineira Antônio Dias Tostes, nasceram 13 filhos, dentre os quais 5 mulheres e 8 homens.
Os filhos homens ajudavam a manter a prosperidade das fazendas, a realização de negócios
na praça do Rio de Janeiro e em São João Del Rei, a compra de cativos e a venda do café.Contavam
com a possibilidade de auferirem lucros com os dotes e possíveis trocas econômicas advindas dos
matrimônios contraídos.Frente à impossibilidade de se envolverem com a administração dos
negócios cabia às suas filhas os cuidados com a casa e com a mãe.Mariano sabia que teria de
disponibilizar
dotes,
com
valores
bem
mais
reduzidos
à
época,
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
o
que
mesmo
133
assim representava dificuldade, principalmente quando recaía em momentos impróprios1; tinha que
manter um consenso entre a austeridade de uma família de elite mineira e as novas possibilidades de
consumo de luxo que se abriam com a proximidade da Corte e das elites fluminenses.
Suas filhas sabiam que o matrimônio, como um entre outros negócios familiares, impunha-se
como a única alternativa, o que afastava de vez os sonhos do “amor romântico”. Os efeitos de um
bom casamento para o status das mulheres eram grandes e a premissa do afeto entre os cônjuges
era desconsiderada.Mariano empenha-se então em sua
realização, promovendo verdadeiros
arranjos matrimoniais: Amélia casaria-se com seu tio Severino;Umbelina casaria-se com também seu
tio Cassiano e Maria Gertrudes com seu primo Marcelino. Todos os cônjuges da família Tostes – de
origem materna.O sogro de Amélia e Umbelina o Tenente Antônio Dias Tostes era também sogro de
seus pai , Mariano Dutra de Moraes. Não constituía-se em mera coincidência, mas, de fato, seus três
genros constavam entre seus devedores. Portanto, o núcleo familiar dos Dutra de Moraes com os
Tostes estaria fortemente entrelaçado.
Essa história acontecida na zona rural da cidade de Juiz de Fora elucida o comportamento
dos extratos superiores das hierarquias sociais locais. Essas vivências sob o ponto de vista da microhistória remete-nos às diferentes manifestações do ideal arcaico de sociedade portuguesa nas terras
brasileiras. Na periferia do Estado monárquico a família, o prestígio e a honra caminhavam juntos,
atribuindo novos significados às práticas de Antigo Regime herdadas de nossos colonizadores2.
A permuta matrimonial representava, antes de tudo, um princípio de reprodução social do
próprio grupo, fazendo circular os bens materiais ou simbólicos, entre as mesmas famílias,
assegurando sua estabilização no tempo e no espaço. A herança portuguesa de divisão igualitária da
herança entre marido, mulher e filhos, apenas com a terça doada livremente, impunha apenas limites
formais à livre disposição dos bens. Ante à hipótese da ameaça constante de fragmentação se
interpunham estratégias matrimoniais, à produzir partilhas que conduziam à indivisão.
Casamentos com laços de consangüinidade, bem como aqueles por aliança e parentesco
ritual pode ser percebido em outras regiões3. Estudos mais recentes sobre a família destacam as
maneiras pelas quais ela se estruturou e se modificou, como resultado do desenvolvimento
1
A conduta de reciprocidade tornava-se mais ostensiva quando as uniões eram intermediadas por dotes. Essa não era uma
prática comum entre os matrimônios realizados, o que coaduna com as análises sobre o declínio do dote no século XIX. Na
grande maioria dos inventários não era expressa a existência do dote e, quando este aparecia, sua composição era
basicamente de bens de consumo, como enxovais, jóias, dinheiro e escravos domésticos. 1 NAZZARI, Muriel. Dotes
paulistas : composições e transformações ( 1600-1870 ) . Revista Brasileira de História 9,no.17,set.de 1988-fev.de
1989,pp.87-100.O desaparecimento do Dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo,Brasil,1600-1900.
2
MATTOSO, José. (dir) História de Portugal. HESPANHA,A .M.(coord). O antigo regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.
3
METCALF, A. C. Families of planters, peasants and slaves: strategies for survival in Santana de Parnaíba, Brazil, 17201820. Texas, 1983; e FARIA, Sheila. C. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial.Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
134
econômico4. Muitos partem de análises demográficas descobrindo uma pluralidade de modelos e
atitudes, onde a atuação feminina foi repensada, o patriarcalismo foi questionado, a noção de família
extensa foi relativizada e novos grupos sociais passam a ser objeto de análise5. Portanto, a noção de
uma organização familiar altamente diversificada, específica a cada período e a cada região,
suscetível à influência de outros fatores como o econômico e o religioso, por exemplo, torna-se
campo privilegiado para pesquisas e redescoberta de novas atitudes e comportamentos familiares.
R. Grahan acentua a imensa importância da família e da casa, considerada como uma das
mais resistentes heranças coloniais, além de "um agudo senso de hierarquia social e a prática
constante de prestar favores em troca de obediência"6 . O autor destacou que as famílias
representavam importante fonte de capital político, na medida em que dedicavam-se a aumentar sua
propriedade ao longo de gerações sucessivas .
Nesta mesma ótica insere-se o trabalho de Carlos Bacelar, dedicado ao estudo da família e do
sistema sucessório entre os senhores de engenho do Oeste Paulista. O autor utilizou métodos da
demografia histórica para a reconstituição das estratégias desenvolvidas pelas elites paulistas, no
intuito da preservação de seu patrimônio e status. Seu trabalho revelou-se altamente inovador, ao
perceber as transformações das estruturas familiares na longa duração, em um momento de
montagem de um núcleo agrário.7
Uma outra referência que assinalou uma forma singular de concepção desta questão, foi a
obra de Giovanni Levi. O autor utiliza-se da micro-história ao articular
diferentes aspectos da
realidade, nos tempos médios e curtos, sem contudo, abandonar as reflexões de longa duração8. Levi
se debruçou sobre uma minúscula região do Piemonte italiano no contexto de construção da Idade
Moderna, centrando seus estudos sobre as estratégias familiares e individuais, com uma instância
particular sobre a lógica dos comportamentos econômicos e sobre o funcionamento do mercado de
terras. Buscou apreender aspectos múltiplos da experiência coletiva, através da reconstituição em
pequena escala.9
Os trabalho de Levi, tal como o de Bacelar, através de propostas metodológicas
completamente distintas, partiram de preocupações e referenciais teóricos bastante semelhantes.
Ambos propuseram a reconstituição histórica de uma dada comunidade onde as relações de mercado
4
KUSNESOF, E. Household Economy and Urban Development : São Paulo. 1765 to 1836.
SAMARA, E. As mulheres, o poder e a família .São Paulo século XIX. São Paulo: Marco Zero e Secretaria de Cultura de
São Paulo, 1989; SLENES, R. Na senzala uma flor: as esperanças e as recordações na formação da família escrava, Brasil
Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; .KUSNESOF, E. Op. cit. ; RAMOS, D. A mulher e a família em
Vila Rica do Ouro Preto: 1754-1838. In: História e População. Estudos sobre a América Latina. São Paulo, ABEP, 1990;
FARIA,Sheila . Op. cit.
6
GRAHAM, R. Clientelismo e política no Brasil no século XIX. p. 27
7
BACELAR, C. Os Senhores da Terra: família e sistema sucessório entre os senhores de engenho do Oeste Paulista, 17651855. Centro de Memória-Unicamp: Campinas, 1997.
8
LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000.
9
REVEL, Jacques. Prefácio. In: LEVI, Giovanni. Op. cit. pp7-37
5
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
135
não eram dominantes e as atitudes de solidariedade e cooperação passaram a caracterizar o
comportamento social. Perceberam a utilização de diversas estratégias sócio-econômicas, voltadas
para a preservação do prestígio e do status, bem como, a função dos laços de parentesco
consangüíneo e alianças nas organizações familiares.
Estratégias sócio-econômicas como essas descritas informam as relações sociais entre as
elites no nascente núcleo agrário cafeicultor da zona da Mata sul. Sua formação remonta ao final do
século XVIII, ao decréscimo das oportunidades de exploração mineral e à transferência de recursos e
grupos sociais das antigas áreas de ocupação de Minas para as áreas de ocupação mais recentes,
como a zona da Mata10. Avançar sobre matos virgens, desbravar áreas inóspitas e enfrentar
resistência nativa representavam atitudes próprias de um forte grupo empreendedor, embasado em
sólidas alianças familiares e detentores não só de aporte econômico, mas de um capital político,
capaz de enfrentar as dificuldades, multiplicar as oportunidades e perpetuar o status e a honra de
antigas e importantes elites mineiras. A decisão de emigrar para os jovens da Comarca do Rio das
Mortes devia-se, à ausência de oportunidades na terra natal e ao esgotamento dos recursos
característico de uma região de ocupação mais antiga, cuja herança paterna não poderia beneficiar a
todos, sem a fragmentação e o enfraquecimento do patrimônio.Quando nos referimos ao trânsito de
elites dentro do espaço regional mineiro, fazemos menção, especificamente, à migração, dentro da
Comarca do Rio das Mortes, de elementos provenientes de dois de seus principais termos: São João
Del Rei e Barbacena.
A trajetória percorrida por grande parte dessas fortunas partiu da propriedade de vastas terras,
envolvidas com a produção de gêneros e, principalmente, criação de animais para a praça carioca,
com o controle autônomo do transporte e comercialização dos produtos. Esse esquema próprio de
comercialização propiciou enormes fontes de acumulação de capitais, pois, além de controlarem a
negociação dos próprios produtos, muitos atuaram como intermediários de outras empresas
menores, ao mesmo tempo em que ofereceram oportunidades de crédito. A distribuição de pequenos
financiamentos, por sua vez, possibilitou uma outra enorme fonte de acumulação, perceptível na
composição das maiores riquezas da região.
Posteriormente, foram esses grupos que se fixaram nas fronteiras da
Mata Mineira,
profundamente articulados com as redes mercantis da província em direção ao Rio de Janeiro e que
se dedicaram à montagem de grandes empresas cafeeiras na primeira metade do século XIX.Ao se
fixarem nos municípios que se tornariam os pioneiros do café, continuaram estabelecendo suas
linhas de crédito com o interior e seus contatos com a praça carioca, conseguindo manter, dessa
10
Patrícia F. Genovês em tese de doutorado recentemente defendida analisa, através do levantamento da intrincada rede
de parentesco que configurou a atuação de Minas no cenário do Segundo Reinado, o papel das estratégias políticas na
defesa do nome de família, o apreço imperial, a política de prestígio e o luzir dos brasões que caracterizavam o Antigo
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
136
forma, as primeiras inversões em cativos e gerando a formação de grandes plantéis e uma posição
proeminente nos negócios, até o surgimento dos primeiros lucros com a nova lavoura encetada.
Um bom exemplo que ilustra essa trajetória é a de Marcelino Gonçalvez da Costa, filho de um
grande proprietário de terras falecido em 1807. Seu pai era possuidor de diversas sesmarias,
reunindo terras de cultura e pastos, além de uma série de benfeitorias, como paiol, chiqueiro, teares,
moinhos e engenhos. Dentro do perfil das unidades produtivas do Termo de Barbacena, seu pai
poderia ser considerado um grande produtor de alimentos e, principalmente, criador de animais.
Possuía uma média de 500 porcos, além de 40 vacas e 25 éguas e potros. Seu plantel de escravos
no ano de sua morte contava com 20 cativos. Marcelino, primeiro filho homem, depois de quatro
mulheres, assumiu a condição de administrador dos bens de sua família.11
Vinte e quatro anos depois, conseguimos detectar a sua presença na lista nominativa do
mesmo Distrito do Quilombo, como chefe de família de um fogo, com a profissão de lavrador e
tropeiro, e 65 escravos12. Certamente, a reunião de seu patrimônio anterior com a condição de
tropeiro, como foi dito acima, proporcionou-lhe enormes condições de acumulação.
Trinta e cinco anos depois, Marcelino estava residindo em São Francisco de Paula, na Mata
Mineira. O inventário de suas posses cita a presença de 305 escravos, um monte mor partível de
1:345:362$900, onde mais de quarenta por cento desse total estavam empregados em dívidas ativas
e 25%, em dinheiro líquido. Sua propriedade contava com 230 mil pés de café plantados, além de 12
mil arrobas de café em coco, 3 sesmarias, 320 alqueires de terras e uma série de sítios recebidos
como pagamento de créditos por ele concedidos, com uma enorme diversidade de benfeitorias13 .
Realizou o casamento de suas filhas com representantes das mais poderosas famílias da região do
tronco dos Leite Ribeiro, e suas variações com os Magalhães e Guimarães, dentre outras.
A segunda maior fortuna era a do Comendador Francisco Leite Ribeiro, natural de São João
Del Rei, residente em Mar de Espanha, na Mata Mineira, onde faleceu em 1847. Descendente de
uma importante família de fazendeiros, criadores de gado e negociantes, Francisco Leite Ribeiro era
proprietário de várias sesmarias adquiridas em seu nome e em nome de familiares seus ( seu
inventário cita, no mínimo, sete), além de partes em sesmarias adquiridas em nome de outras
pessoas . Realizou dois casamentos e teve 12 filhos, todos profundamente articulados às atividades
de comercialização entre São João Del Rei e a Corte, além da produção e, principalmente, ao
financiamento do café14.
Regime português. GENOVÊS, Patrícia Falco. O Espelho da Monarquia: Minas Gerais e a Coroa no Segundo Reinado.
Tese de Doutorado, Niterói: UFF, 2003.
11
Inventário post-mortem- Arquivo do Fórum Mendes Pimentel - Barbacena
12
Lista nominativa de Barbacena – Arquivo Público Mineiro
13
Inventário post-mortem- Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora.
14
Inventário post-mortem – Arquivo do Fórum de Mar de Espanha.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
137
Em 1831, ainda no período de montagem do sistema agrário-cafeicultor, Francisco Leite
Ribeiro aparece no mapa de população com a propriedade de 208 cativos15. Em seu inventário16,
constava a presença de 140 mil pés de café, o que pode ser considerado um fato inédito para o
período, já com a posse de 225 de cativos. Possuía 47 bestas de carga o que confirma a sua posição
de grande fazendeiro independente no processo de transporte e comercialização de seus produtos na
Corte. Demonstrou ser um empreendedor de múltiplos investimentos, o que o diferiu, em perfil, dos
proprietários de terras da época. Chegou a investir em apólices da dívida pública e em ações de
estradas na Província Fluminense. Seu monte mor era de 1:087:024$203, onde mais de 70%
correspondiam a sua dívida ativa. Configurou-se como o maior capitalista de região. Distribuía
créditos não apenas às empresas da Mata; também observamos a citação de seu nome entre
credores de inúmeras propriedades do Termo de Barbacena e São João Del Rei. Seus filhos,
Joaquim Vidal Leite Ribeiro( grande comerciante e futuro Barão de Itamarandiba) e Custódio Vidal
Leite Ribeiro realizaram importantes matrimônios com outras famílias de elite, inclusive as filhas de
Marcelino Gonçalvez da Costa, possibilitando a formação de alianças e perpetuação dos maiores
patrimônios da região.
A aliança matrimonial entre essas duas principais famílias, bem como a alianças entre os
Dutra de Moraes e os Tostes, citadas no início do texto, ilustram como a força do parentesco
fortalecia e mantinha o poder econômico. A endogamia por estrato social ampliava os bens da
família, realizando um tipo de troca, perceptível pelos dotes e empréstimos entre membros dos dois
grupos. Outros arranjos entre importantes famílias do núcleo agrário que vêm corroborar nossas
assertivas.
André Burguièrre ressalta que as uniões matrimoniais em consangüinidade muito próximas
(entre primos ou entre tios e sobrinhas) representava uma solução para transferir para os
descendentes um patrimônio que corria o risco de sair da linha de sucessão. O autor considera a
importância das redes de parentesco nas estratificações matrimoniais em um contexto onde a
preocupação com a eqüidade, na divisão das heranças, não era dominante. A exclusão de filhos, a
eleição de um único herdeiro, a exclusão dos dotados e outras disposições discriminatórias nas
partilhas, não significavam, necessariamente, injustiça. De acordo com as condições econômicas e
demográficas, as regras de exclusão aplicavam-se como única alternativa ou buscava-se uma
partilha igualitária dos bens. Daí a importância dos casamentos consangüíneos e da realização de
alianças. Tornavam-se estratégias para tornar uma exploração viável, para resistir melhor às
mudanças bruscas de conjuntura, para não fracionar demasiadamente um patrimônio.17
15
Mapas de População - 1831 - Seção provincial - Arquivo Público Mineiro.
Inventários post-mortem - Fórum de Mar de Espanha.
17
BURGUIERRE,A et alli. História da família. Vol.II. Lisboa: Terramar, 1998, pp15-82.
16
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
138
No Brasil, as condições econômicas e demográficas eram completamente opostas às
européias. A terra era disponível e estava afastada qualquer possibilidade de pressões
demográficas.Mesmo assim, a alternativa às uniões consangüíneas foi amplamente utilizada,
referendando a força do parentesco na consolidação de alianças intrafamiliares, renovando a
solidariedade familiar por gerações. Tentava-se evitar a fragmentação do patrimônio e, com ele, o
enfraquecimento do poder da parentela. Dessa forma, o intercâmbio de esposas representava uma
das estratégias dessa elite. A preservação do status enquanto proprietários de homens e de terras, o
compromisso com o poder e a manutenção de vasta clientela, gerava condutas de reciprocidade e
intercâmbio entre os "Homens Bons". Estas eram as motivações de caráter não-econômico, que
asseguravam a ordem da produção, o benefício da família e a defesa da propriedade.
A própria existência de uma concentração dentro dos limites geográficos, ou mesmo de uma
geografia perceptível do mercado nupcial, supôs a presença de oportunidades dentro da própria
região, existência de terras férteis e abundância de terras não exploradas. A inexistência desses
fatores iniciais para constituição de um núcleo familiar sólido dentro de uma sociedade
essencialmente agrária, empurrariam esses arranjos matrimoniais para fora. Como fronteira
recentemente aberta, as possibilidades de montagem de empresas cafeeiras estariam subordinadas
à disponibilidade de matas virgens como questão essencial para a reprodução da unidade. Portanto,
a presença do fator terra - matas virgens - que na Mata Mineira eram disponíveis, facilitou a
realização de casamentos geograficamente endogâmicos.
O mercado de terras na Mata Mineira e o comportamento das elites
O início do processo de ocupação efetiva da Mata Mineira deu-se com o decréscimo da
mineração nas últimas décadas do século XVIII, quando ocorreu um afrouxamento do controle do
tráfego pelo Caminho Novo. Mas a abertura da fronteira agrícola e do povoamento só se processaria
na primeira metade do século XIX, mais propriamente durante a sua segunda década. Em uma outra
pesquisa encontramos um enorme crescimento das doações de sesmarias entre 1811 e 1820,
relacionado aos reflexos da política de interiorização da metrópole portuguesa18. Mas em que pese
este fato, as doações de sesmarias não podem ser responsabilizadas pelo processo de ocupação
18
Consultar OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Negócios de famílias: mercado, terra e poder na formação da cafeicultura
mineira-1780-1870.Tese de doutorado, Niterói:U FF,1999,pp.44-47.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
139
efetiva, visto que encontramos uma pequena porcentagem de sesmeiros no controle de suas terras
no início do século XIX. As doações tinham que, necessariamente, passar por uma revalidação da
concessão, o que se concretizaria quando atrelada à efetiva ocupação da terra doada. Portanto, com
a queda do regime de sesmarias e mediante a ausência de confirmação de posse, as terras ficavam
à mercê da livre ocupação, gerando o que Hebe Mattos considera como "direitos de domínio"19. A
autora considera que após a independência e a revogação do instituto das sesmarias, a posse efetiva
tornou-se o recurso para a constituição da propriedade fundiária e "a maior parte da expansão
cafeeira no Vale do Paraíba Fluminense far-se-ia nesta (...) condição ".20 Consideramos, igualmente,
que a expansão da cafeicultura na Mata Mineira, assim se processou apenas com uma consolidação
mais tardia, por volta dos meados do século XIX , possibilitada pela fixação de agentes sociais e de
capitais provenientes do próprio interior mineiro.
Estudar o comportamento do mercado de terras neste mesmo período e procurar avaliar a
natureza e o significado deste mercado para a sociedade à qual estamos investigando possibilita
aquilatar, sob outro enfoque, a permanência de práticas arcaicas, próprias do Antigo Regime, no trato
de questões tipicamente de mercado.
Sem a pretensão de analisar todo o universo de práticas econômicas e das estratégias sóciofamiliares utilizadas pela elite agrária em estudo, torna-se importante avaliar a presença ou não de
intervenção de estratégias sócio-econômica na definição dos contornos do mercado de terras21.
Portanto, o estudo da natureza e do significado do mercado de terras desta sociedade apresentou-se
como um importante instrumento de análise da importância das relações sociais em uma sociedade
não completamente subordinada pelas leis de mercado. A venda de um bem, antes de submeter-se
ao jogo impessoal do mercado, possuía uma função instrumental de sancionar as relações sociais, ao
mesmo tempo em que o preço, antes de ser determinado pelas relações entre oferta e procura, sofria
alterações reflexas das relações sociais que o presidiam.22
Os traços estruturais do sistema agrário em questão repetem o mesmo padrão já estudado
para outros sistemas agrários brasileiros: baixa relação trabalho- terra, baixa densidade demográfica,
mínima expansão tecnológica, na qual a derrubada de matas substituiu o emprego de trabalho
adicional de recuperação de solos. O sistema voltou-se para fora e baseou-se na extorsão do
19
“Está-se, assim, diante de dois tipos de 'posse', capazes de gerar direitos de 'domínio' e atos legais como compra, venda
ou partilhas: a posse de 'culturas e benfeitorias' com simples detenção ou retenção da terra e a 'posse' da terra
propriamente dita.(...) Sem a revalidação de sesmarias, ambas as presunções de domínio se constituíam primeiro de fato e
somente depois de direito, a partir de escrituras de compra e venda e formais de partilha.” MATTOS, Hebe. Das cores do
silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista-Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 87
20
Idem, p. 82
21
As fontes utilizadas foram escrituras de compra e venda de terras do Cartório do 1º Ofício de Notas, mais antigo do
município de Santo Antônio do Paraibuna. Promovemos um cruzamento com outras fontes tais como, inventários , mapas
de população e almanaques , o que possibilitou uma reflexão mais segura dos dados. Foram levantadas 222 escrituras, o
que representou a totalidade das fontes disponíveis para o período.
22
LEVI, Giovanni. Op. cit. p.139.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
140
sobretrabalho, promovendo uma combinação entre a agricultura de exportação e a de alimentos. A
sua reprodução dependeu da incorporação de mais terra e força de trabalho, sendo esta
incorporação autônoma em relação à demografia local, utilizando maciçamente o trabalho escravo
gerando um sistema de uso extensivo do solo. Assim, a presença de áreas em matas representava
as maiores ou menores possibilidades de reprodução e a ocupação de áreas de fronteiras tornou-se
condição da persistência do sistema agrário.
Constituiu-se uma rede de relações sócio-familiares profundamente identificadas com o
interior mineiro, caracterizadas pela redistribuição de privilégios, créditos e apoios políticos, em
função da preservação da ordem do status e do patrimônio. Esta teia de relações pessoais
assentava-se
sobre
estratégias
de
solidariedade
intra
e
inter
elites,
materializadas
no
aprofundamento das relações de parentesco e na constituição de matrimônios endogâmicos, tal como
vimos no início desse artigo.
Em nossa pesquisa encontramos uma alta proporção de negócios com pequenas
propriedades - 72,5% - à primeira vista, poderia indicar uma tendência ao seu fracionamento das
propriedades, o que de fato não ocorria. Se atentarmos para o tipo de negócio e as extensões que
eram comercializadas observamos que esse valor era de porções de propriedades que variavam de
menos de 5 alqueires ao no máximo 30 alqueires. Entre as parcelas negociadas, muitas faziam parte
de grandes propriedades já consolidadas na produção cafeeira e não chegavam a caracterizar um
desmembramento da fazenda “matriz”. Fato semelhante foi demonstrado por Hebe Mattos, ao
analisar o mercado de terras em Capivary na Baixada Fluminense23. A autora observa que nesta
localidade, entre os anos 50 e 90 do século XIX, negociavam-se, basicamente, pequenas
propriedades e que este dado não poderia ser tomado como uma tendência ao desmembramento. A
existência de pequenas e médias propriedades, adquiridas por compra,, refletia a valorização das
terras, decorrente da expansão da fronteira agrícola.
A atuação da família de Antônio Dias Tostes neste mercado ilustra bem a nossa análise. Este
grande proprietário era possuidor de no mínimo, 6 sesmarias que, no período de expansão do
sistema (1820), que dividiam-se em 4 grandes fazendas : 25 negócios foram realizados com as
terras desta família ; destes, 18 transações foram de parcelas pequenas, 3 foram pequenos sítios já
constituídos com suas benfeitorias e apenas 1 era de uma fazenda de médio porte, desmembrada de
outra grande fazenda
24
. Estas transações eram negociadas pelo próprio proprietário ou por alguns
parentes, negociando entre si e com outros , indicando propriedades recebidas por herança/dote,
revelando-nos que a aquisição de terras não era de caráter exclusivamente individual, mas visava a
um reforço coletivo da família extensa. Vários negócios eram realizados por outras pessoas fora do
23
24
CASTRO, Hebe. Op.cit.
Cartório do 1o. Ofício de Notas – Maninho – Juiz de Fora
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
141
círculo parental levando-nos a considerar que a lógica destas transações aproximava-se, também, da
formação de uma rede
clientelística , sugerindo mais a formação de cadeias verticais de
dependência, voltadas para a produção de alimentos, do que uma tendência à fragmentação, pois os
latifúndios permaneciam intactos.
Como o sistema agrário encontrava-se, no período em foco, em fase de consolidação, a
coexistência das grandes propriedades cafeeiras com outras pequenas e médias propriedades
produtoras de alimentos era possível, sendo, também necessária à reprodução das fazendas de
grande porte. Estas já possuíam extensões de terras suficientes excedentes às suas necessidades
diretas. Apenas em um contexto de esgotamento das possibilidades de expansão, as pequenas e
médias propriedades passaram a ser alvo da cobiça das grandes empresas.
Observamos que apenas 10,36% dos fazendeiros de café com nomes presentes no
Almanaque de 1870 realizaram transações no mercado de terras. O que levou-nos a crer que a
grande maioria de 89,64% era formada por proprietários não vinculados ao café, ou seja, de
alimentos, provavelmente em pequenas e médias propriedades. Estes proprietários mantinham
diferentes vínculos com o mercado, revendendo seus excedentes ou atuando na complementação
direta das necessidades de reprodução da força de trabalho das grandes unidades de produção,
revelando um dinâmico processo de diversificação produtiva do complexo cafeeiro.25 Com relação à
presença reduzida de fazendeiros de café no mercado fundiário leva-nos a considerar que a
participação geral dos fazendeiros de café, comprando ou vendendo terras foi diminuta e que este
mercado contou com uma pequena intervenção dos mais ricos, constituindo-se, basicamente, em um
mercado de pequenos negócios. Sônia Souza, uma especialista no assunto, comprovou que apesar
das muitas dificuldades enfrentadas, muitos camponeses procuraram garantir o acesso a uma
parcela de terras através da compra.26
Vale ressaltar, mais uma vez, que a propriedade da terra estava polarizada entre grandes
propriedades e distanciada de uma faixa extremamente parcelada de pequenas, possibilitando-nos
considerar que, uma vez consolidada a grande propriedade, a sua tendência foi a perpetuação, por
décadas, dentro de um mesmo círculo parental, onde a estratégia familiar esteve ligada à
transmissão da terra de geração `a geração, através de heranças e matrimônios. O processo de
fragmentação das grandes propriedades só ocorreu com o processo de envelhecimento dos cafezais,
25
A economia de subsistência no sistema agrário da Zona da Mata Mineira comportou-se não apenas como um setor
complementar à produção cafeeira, atuando como redutor de custos e abastecendo as unidades produtoras, mas atendeu à
demanda do mercado local, possibilitando acúmulo de capital e inserções no meio político local. SOUZA, Sônia Maria de.
Além dos cafezais: produção de alimentos e mercado interno em uma região agro-exportadora-Juiz de Fora na segunda
metade do século XIX. Dissertação de mestrado, Niterói: UFF, 1998, pp.135-141.
26
SOUZA, Sônia M. Terra, Família e Solidariedade ... : estratégias de sobrevivência camponesa no período de transição –
Juiz de Fora ( 1870-1920). Tese de doutorado, Niterói: UFF, 2003.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
142
o desgaste das terras e o fechamento da fronteira agrícola após as duas primeiras décadas do século
XX.
Consideramos que as aquisições de propriedade, mediadas por parentesco consangüíneo ou
ritual, não excluíam a presença de moeda e, portanto, de uma relação mercantil. A intervenção
destas relações não eliminava o valor, apenas o modificava; o acordo entre as partes, bem como os
custos da transação podia ser reduzido mediante à mútua confiança entre as partes.27 O
procedimento metodológico para aquilatar o grau de interferência, ou não, das relações de
parentesco ou rituais deve, sobretudo, basear-se em vasta documentação e utilizar o cruzamento de
dados de inventários, registros eclesiásticos e as próprias escrituras nominalmente, o que por agora
foge ao nosso objetivo.
A recorrência ao mercado não servia para compensar a redução das propriedades em função
da partilha, como outros trabalhos consideram.28 O mercado não servia como regulador do presumido
processo de fragmentação dos patrimônios promovidos pelas partilhas. O que regulava a
fragmentação, diminuindo, consideravelmente, seu impacto, sobre o patrimônio, não era a existência
do mercado, em si, mas os arranjos intra e inter familiares utilizados para a preservação do bens,
fossem estes de famílias camponesas ou de elite .
A elite agrária utilizava-se de estratégias matrimoniais, unindo primos e primas, tios e
sobrinhas, compadres a afilhadas, filhos de comerciantes ou capitalistas às filhas de grandes
proprietários fundiários e vice-versa, para conter o fracionamento do patrimônio, aumentá-lo e
preservar o status familiar por gerações.
Outros integrantes desta mesma elite fundiária promoviam arranjos, pré ou pós inventários,
muito perceptíveis, nos quais um irmão comprava todas as partes dos outros irmãos, antes da
partilha oficial, ou promovia-se um acordo de usufruto de todos os bens por todos os herdeiros, sem a
formalização nos autos do inventário (tal estratégia é bastante perceptível entre os pequenos e
médios proprietários). Mesmo com o procedimento formal das partilhas, as propriedades
permaneciam intactas, transferindo-se somente o direito de uso dos bens, num claro predomínio do
interesse utilitário, sem maiores conseqüências para o patrimônio familiar.29
Sendo um mercado constituído, majoritariamente, de pequenas extensões de terras,
questionamos quais as motivações que estimulavam a realização destes pequenos negócios. Para os
grandes proprietários pertencentes à elite agrária local, a ida ao mercado representava uma forma de
negociarem pequenas extensões contíguas às de seus vizinhos, através da venda em moeda ou da
27
Giovanni Levi acentuou que as transações entre parentes em Santena - Piemonte italiano - majoravam os preços das
terras, possibilitando uma compensação de possíveis perdas .LEVI, Giovanni. Op. cit. pp. 97 - 130
28
BARROS, E.S. Op. cit. p.7.
29
Inúmeros casos como estes citados foram encontrados nos inventários post-mortem dos fundos cartorários do Arquivo
Histórico da UFJF
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
143
troca/ permuta de interesses, resolvendo, desta forma, possíveis conflitos entre as partes. Quando os
arranjos não conduziam a administração conjunta dos bens da família e procedia-se à partilha, as
vendas ganhavam a função instrumental de unir os patrimônios partilhados pelas heranças.
Observamos, nos inventários, informações sobre a presença de um membro da família promovendo a
compra das partes de outros herdeiros.Para os lavradores de alimentos mais abastados,
representava uma possibilidade de renovarem a sua capacidade de reprodução, tendo em vista o
desgaste natural das terras, adquiriam terras de capoeiras a preços mais reduzidos. Aos pequenos
lavradores ou aos posseiros e agregados, constituía numa oportunidade de adquirirem autonomia,
frente a condição de submissão em que viviam. Assumir a posição de comprador dentro do mercado
conferia-lhes um novo status e possibilitava a recriação de novas relações sociais. 30
A terra, enquanto bem transacionado entre diferentes agentes sociais na condição de
vendedores e compradores, mediante a formalização de um preço, assumia a condição de
mercadoria, em que pese a intervenção de fatores extra-econômicos - como as relações de
parentesco e amizade - nas bases do acordo entre as partes e na constituição do preço. Porém, tal
como afirma Braudel:
O complexo do mercado só se compreende se reposto no conjunto de uma vida econômica e
também de uma vida social que mudam com os anos; o complexo não pára de evoluir por si e
de se transformar, de mudar, portanto, de significado ou alcance.31
A ausência de uma rede de especuladores, associada à inexistência de uma lógica nos preços
(com enormes disparidades) e a uma circulação fragmentada de pequenas parcelas, características
presentes nos dados analisados, sinalizam que este mercado mantinha traços próprios de uma
sociedade de Antigo Regime passível de sofrer condicionamentos das relações sociais que o
presidiam, seja através da negociação direta envolvendo parentes seja entre aqueles imersos em
relações de compadrio, amizade, com deveres e obrigações e político, religiosas, sociais e
econômicas mútuas.
Esses elementos sugerem que estas relações interferiam nas bases dos acordos, alterando
prazos, juros, preços, configurando um mercado não submetido ao livre jogo das forças econômicas,
um mercado incompleto. Porém, os dados levantados permitiram-nos apenas uma reflexão genérica
sobre estas questões, as quais merecem maiores aprofundamentos, com a utilização de um grupo
mais ampliado de fontes e em um maior período de análise. Acreditamos que a própria circulação
fragmentada de terras, a maior incidência de negociação de pequenas propriedades e a reduzida
participação de grandes proprietários no mercado, remete à uma questão mais ampla vinculada às
30
A título de exemplo, consultar os inventários de José de Barros Monteiro ; Joaquim Antônio da Silveira ; Francisca Antônia
º
de Paula; Venâncio Pereira da Silva e Ângela Maria do Rosário - Inventários post-mortem - 1 Ofício Cível - AHUFJF
31
BRAUDEL, F. Civilização material, economia e capitalismo. O jogo das trocas. Lisboa: Teorema, 1985, p. 192
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
144
estratégias de sobrevivência da comunidade camponesa local, questão esta que está fora de nossos
objetivos de investigação.32
Mônica Ribeiro de Oliveira é Professora Adjunta de História do Brasil, Coordenadora
do LAHES (Laboratório de História Econômica e Social) e Professora do Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora.
32
Para Sônia M. Souza o acesso à uma parcela de terras era considerado fator de extrema importância para a existência da
comunidade camponesa . A autora cita a presença de transações mercantis entre membros de uma mesma família,
indicando um desejo de se evitar a fragmentação da propriedade e até mesmo a aquisição de terras para ex-escravos..
SOUZA, Sônia M. op. cit. pp88 -104
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
145
A PRESENÇA CAMPONESA EM UMA REGIÃO
AGROEXPORTADORA NO PERÍODO ESCRAVISTA
Juiz De Fora (1870-1888)
Sonia Maria de Souza
Resumo:
Este artigo procura analisar a formação de um
campesinato no município de Juiz de Fora, região
caracterizada pela agroexportação cafeeira.
Utilizando como documentos inventários postmortem, listas nominativas de população e
escrituras de compra e venda de imóveis, procura
demonstrar que este setor camponês buscou
manter uma relativa autonomia frente aos
fazendeiros locais por meio do acesso a uma
parcela de terras.
Palavras-chave:
1. Campesinato; 2. Escravidão; 3.Terra.
Abstract:
This article seeks to analyze the formation of a
peasant class in the municipality of Juiz de Fora, a
coffee-exporting region. By examining deceasedestate inventories, censuses and property deeds, it
is shown that the peasantry made an effort to
maintain relative autonomy from the local farmowners through access, albeit limited, to land
ownership.
Key-words:
1. Peasantry; 2. Slavery; 3.Land .
Os estudos envolvendo a pequena produção familiar no mundo rural brasileiro vêm adquirindo
novas abordagens, sendo desenvolvidos por especialistas de diferentes áreas, de modo que o
"camponês" tem se constituído em objeto de análise de economistas, sociólogos, antropólogos e
historiadores. De uma forma geral, os estudos sobre os camponeses têm se concentrado no século
XX e, quando elaborados por sociólogos e antropólogos, por exemplo, a análise é bastante recente,
uma vez que se tratam de trabalhos de campo, havendo, portanto, um contato mais direto entre o
estudioso e o seu objeto de estudo.1
Em relação ao século XIX, mais especificamente ao período de vigência do trabalho escravo,
percebe-se que os estudos sobre a parcela da sociedade brasileira, distinta daquela formada por
senhores e escravos e na qual estavam incluídos os camponeses, são mais escassos. Neste sentido,
há o clássico estudo de Maria Sylvia de Carvalho Franco, no qual esta parcela é retratada.2 Há que
1
Ver, neste sentido, os clássicos estudos de CÂNDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista
e a transformação de seus meios de vida. São Paulo: Duas Cidades, 1979 e QUEIROZ, Maria Isaura P. de. O campesinato
brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976. Além destes, temos estudos mais
recentes, como por exemplo, os de BANDEIRA, Maria de Lourdes. Território negro em espaço branco: um estudo
antropológico de Vila Bela. São Paulo: Brasiliense, 1988; BRANDÃO, Carlos R. Plantar, colher, comer: um estudo sobre o
campesinato goiano. Rio de Janeiro: Graal, 1981; MOURA, Margarida M. Os herdeiros da terra: parentesco e herança numa
área rural. São Paulo: HUCITEC,1981, e da mesma autora, Os deserdados da terra: a lógica costumeira e judicial dos
processos de expulsão e invasão da terra camponesa no sertão de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988;
WOORTMANN, Ellen F. Herdeiros, parentes e compadres: colonos do sul e sitiantes do nordeste. São Paulo: HUCITEC;
Brasília: EDUNB, 1995, e da mesma autora em co-autoria com WOORTMANN, Klaas. O trabalho da terra: a lógica e a
simbólica da lavoura camponesa. Brasília: UDUNB, 1997.
2
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Fundação da Editora da UNESP,
1997.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
146
se ressaltar, no entanto, a imprecisão com que a autora define os seus componentes, ao classificar
como pobres algumas categorias que, na realidade, não eram tão despossuídos assim, como é o
caso dos vendeiros e tropeiros, por exemplo. Além disso, chama a atenção em seu trabalho o
destaque ao caráter de subordinação que permeava as relações entre os homens pobres e o grande
fazendeiro, sendo que, muitas vezes esta relação de dependência era mascarada por uma aparente
equiparação social, que se manifestava no estabelecimento do compadrio. Segundo a autora, isto
possibilitava a concessão, por parte do fazendeiro, de certos favores, como auxílios financeiros, por
exemplo, cuja retribuição se concretizava na forma de fidelidade política.3 Outro aspecto digno de
menção neste trabalho é a ênfase que procura dar aos conflitos e tensões presentes nas relações
entre os homens pobres, mesmo em momentos e espaços propícios ao estabelecimento de laços de
sociabilidade e de solidariedade, como os de festas e mutirões.4
Até há alguns anos, quando se tratava da sociedade brasileira do período escravista, à
exceção da obra de Maria Sylvia de Carvalho Franco, os estudos procuraram priorizar os senhores
e/ou os escravos. Concebidos à margem da sociedade, principalmente por não estarem vinculados
diretamente ao setor agroexportador, os chamados “homens livres pobres”5 eram tratados sob o
estigma da vadiagem e da indolência.6 Entretanto, há algum tempo que os estudos sobre esta parcela
social vêm ganhando novos enfoques, os quais têm procurado inseri-la na sociedade escravista, e, o
que é mais importante, no setor produtivo. Neste sentido, há o trabalho de Hebe Maria Mattos, que
critica os estudos que concebem esta parcela social sob a ótica da vadiagem e afirma que ela possuía
uma lógica diferente da pretendida pela sociedade escravista da época, o que determinava o ritmo de
suas atividades de forma distinta da que os senhores impunham aos seus escravos.7
Levando em conta os estudos já existentes e as possíveis lacunas, este artigo procura
analisar a presença de um campesinato no município de Juiz de Fora, região marcada pela
agroexportação cafeeira e localizada na Zona da Mata Mineira, no período de vigência do regime de
trabalho escravo. A proposta é concentrar a análise a partir de 1870, ou seja, privilegiar as duas
3
Idem. Op. cit., p. 78-81. Uma crítica, neste sentido, foi feita por Hebe Maria Mattos. Ver da autora, Ao sul da História:
lavradores pobres na crise do trabalho escravo. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 75.
4
Ver por exemplo o primeiro capítulo, intitulado “O código do sertão”. Não descarto a existência de tensões ocorridas nestes
espaços, mas acredito que elas não eram tão generalizadas como demonstra a autora. Em sentido oposto aponta o estudo
o estudo de Antonio Candido, ao abordar as festas e mutirões como elementos tradicionais da cultura caipira, revestidos de
relações de sociabilidade e solidariedade. Op. cit., ver especialmente o capítulo 4.
5
Expressão utilizada por FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho, op. cit..
6
KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre. São Paulo: Brasiliense, 1987. Neste trabalho de
caráter ensaísta, o autor analisa a formação de um mercado de trabalho livre no Brasil e acaba por incorporar o discurso
que via a população livre e pobre como marginalizada do processo produtivo. Há que se considerar que ele privilegia, como
espaço de análise, a província de São Paulo, conhecida pela utilização do imigrante europeu, em detrimento do trabalhador
nacional e procura explicar este processo de exclusão como válido para as demais regiões brasileiras.
7
MATTOS DE CASTRO, Hebe M. Ao Sul da História.... Ver da mesma autora, "Campesinato e escravidão". In: SILVA,
Francisco C. T. da; MATTOS, Hebe M. & FRAGOSO, João L. R. (Orgs.). Escritos sobre história e educação: homenagem à
Maria Yedda Leite Linhares. Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ, 2001.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
147
últimas décadas em que vigorou o sistema escravista, o que não impede, no entanto, um recuo no
tempo, em busca das origens deste campesinato que se estabeleceu na localidade.
O campesinato enquanto uma categoria social
Antes de explicitar o conceito de camponês aqui adotado, vou recorrer a outros autores que
abordaram o mesmo tema, uma vez que muitos dos pressupostos apresentados por alguns destes
estudiosos foram por mim incorporados e contribuíram para uma melhor definição do objeto aqui
estudado. Na realidade, não é uma tarefa muito fácil definir o que se entende por camponês e neste
sentido, Ciro Cardoso tem razão quando diz que "a noção de camponês é, possivelmente, uma das
mais escorregadias que existem".8 Em trabalho publicado posteriormente, o autor retoma a discussão
e chama a atenção para a heterogeneidade e imprecisão com que a categoria “campesinato” tem
sido trabalhada. Mesmo reconhecendo a dificuldade em definir o termo, sendo o “campesinato” para
ele “uma noção vaga, ampla demais e carregada de estereótipos e de lugares-comuns culturais e
políticos”, o autor não vê como evitar sua utilização. Segundo ele, “é impossível abandonar tal noção,
por ser idéia socialmente difundida desde muitos antes do advento das ciências sociais”.9
Considerando a dificuldade que os estudiosos de camponeses têm em definir, com precisão, o
seu significado, Eric Foner reconhece ser perigoso utilizar o termo ‘campesinato’ para o sul dos
Estados Unidos pós-emancipação. Entretanto, o autor acaba incorporando o conceito pelo fato de
acreditar haver paralelos “entre a economia política dos negros das terras baixas, ‘o campesinato
reconstituído’ do Caribe e a agricultura em pequena escala parcialmente independente do mercado
em outros contextos históricos”.10
Ao que parece, a grande dificuldade está em estabelecer quem pode ou não ser considerado
camponês. Vários são os autores que procuraram conceituar o campesinato. Um trabalho clássico
neste sentido é o de Alexander V. Chayanov que, ao estudar o campesinato russo da década de
1920, afirma que uma economia camponesa se caracteriza pelo acesso à terra e pela utilização da
mão-de-obra familiar. Segundo este autor, o principal objetivo do camponês é procurar suprir as
necessidades básicas dos membros da família, o que justificaria o fato de recorrer ao mercado, sem,
no entanto, visar ao lucro, aspecto que diferencia uma unidade de exploração camponesa de uma
8
CARDOSO, Ciro F. S. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1982, p. 51.
Idem. “Camponês, campesinato: questões acadêmicas, questões políticas”. In: CHEVITARESE, André Leonardo (Org.). O
campesinato na história. Rio de Janeiro: Relume Dumará/FAPERJ, 2002, p. 19 e 35.
10
FONER, Eric. Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 173-174.
Como paralelo entre eles, o autor aponta as dificuldades econômicas que impossibilitavam um maior desenvolvimento e a
exclusão do poder político, embora reconheça que, a nível local, os negros nas terras baixas pudessem exercer uma maior
autoridade política.
9
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
148
empresa capitalista.11 Na visão do autor, a família desempenha papel importante no interior de uma
unidade camponesa, sendo seu tamanho e a composição de seus membros um dos fatores a
influenciar na dimensão da terra a ser cultivada.12 Um aspecto a ser considerado na obra de
Chayanov é a ênfase dada ao equilíbrio entre consumo e trabalho, o que significa dizer que a
intensidade da força de trabalho despendida na reprodução da unidade camponesa variava conforme
as necessidades de consumo dos membros da família.13 Tal abordagem não escapou a críticas que
viam nela uma teoria centralizada no consumidor. No entanto, o próprio Chayanov tratou de desfazer
o equívoco e respondeu aos críticos argumentando que qualquer unidade produtiva, inclusive a
camponesa, aspira adquirir bens e maiores benefícios para os seus membros. Entretanto, ainda
conforme o autor, a lógica de ganho do camponês é diferente da estabelecida por um empresário
capitalista e tem mecanismos próprios para determinar o tempo e a intensidade do trabalho a ser
despendido.14
O campesinato russo também é objeto de estudo de Teodor Shanin, o qual concebe os
camponeses sob a ótica da mobilidade sócio-econônica, caracterizada pela divisão, fusão e extinção
da unidade camponesa ou pela migração de seus membros, sendo esta mobilidade um reflexo das
transformações enfrentadas pela Rússia no período por ele estudado.15 A exemplo de Chayanov, o
autor enfatiza o caráter familiar da força de trabalho utilizada na unidade camponesa, cuja atividade
tinha por objetivo satisfazer as necessidades básicas de consumo dos membros da família. Há que
se considerar que o autor não entende a família apenas no sentido biológico, mas considera como
membros de uma família camponesa todos os que vivem na unidade, sob a autoridade de um
chefe.16
Henri Mendras amplia o conceito de camponês ao considerar que o que define uma classe
social é o tipo de sociedade a que pertence. Sendo assim, para este autor, deve ser considerado
como camponês todo aquele que pertence à uma sociedade camponesa, não sendo necessário estar
vinculado ao meio rural. Ou seja, em sua concepção, pode ser considerado camponês tanto o
pequeno produtor, quanto o artesão, o comerciante, etc.17 Discordo deste conceito ampliado de
camponês, utilizado pelo autor, por acreditar que como tal deve ser considerado apenas aquele com
algum vínculo com o meio rural, sendo proprietário legal ou não da terra que ocupa. Entretanto, devo
deixar claro que não descarto a possibilidade deste camponês procurar diversificar suas atividades no
11
CHAYANOV, Alexander V. La organización de la unidad económica campesina. Buenos Aires: Ed. Nueva Visión, 1974.
Idem. Op. cit., p. 47-48.
13
Idem. Op. cit., ver capítulo 2. Acredito que isto possa ter contribuído para difundir o rótulo de vadiagem dado ao
camponês, principalmente no caso brasileiro, sob o argumento de que ele trabalhava apenas o suficiente para sobreviver,
não se preocupando em garantir uma acumulação e melhorar o nível de bem-estar de sua família.
14
Idem. Op. cit., p. 133.
15
SHANIN, Teodor. La clase incómoda: sociologia política del campesinado en una sociedad en desarrolo (Rusia 19101925). Madri: Alianza Editorial, 1983. Ver especialmente o capítulo 5.
16
Idem, Op. cit., p. 54-55.
17
MENDRAS, Henri. Sociedades camponesas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 15.
12
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149
interior de sua unidade produtiva. Aliás, a diversificação das atividades no interior das unidades
camponesas era desejável e um elemento a mais a contribuir para sua sobrevivência, uma vez que
isto lhe garantia uma redução nos custos de sua reprodução e uma autonomia frente ao mercado.
Neste caso, o que prevalecia eram as atividades agrícolas, como o cultivo da terra e a criação de
animais, sendo as demais práticas (manufatura e o artesanato, por exemplo), apenas
complementares.18
Quando se trata de definir o campesinato brasileiro, especialmente no período de vigência da
escravidão, a tarefa torna-se ainda mais complicada. Já tive a oportunidade de mencionar a escassez
de estudos sobre os camponeses no Brasil escravista. Stuart Schwartz também alerta para isso e
segundo ele, uma das causas deste desinteresse está no fato dos estudos se concentrarem sobre o
caráter exportador da economia brasileira e dos grupos sociais à ela vinculados (no caso senhores e
escravos), ignorando os setores da economia não exportadora, bem como a parcela da sociedade a
eles ligados.19 Schwartz chama a atenção para a existência e expansão, ao longo do período colonial,
de uma população rural, constituída por pequenos proprietários, arrendatários e agregados que,
embora vivessem à margem da economia agroexportadora, desempenharam papel importante, como
fornecedores de alimentos. O autor chama a atenção para a dificuldade que os estudiosos têm em
utilizar a palavra "camponês" ao se referirem a eles, preferindo em vez disso termos como, "caipira",
matuto"..., os quais denotam rusticidade e dependência.20
Os estudos referentes ao campesinato brasileiro utilizam elementos comuns aos adotados por
Chayanov e Shanin para definir o camponês russo. José Graziano da Silva reconhece o caráter
mercantil da economia camponesa, ao enumerar quatro aspectos definidores de um campesinato, a
saber: a utilização do trabalho familiar; a posse dos instrumentos de trabalho ou parte deles; a
produção direta de parte dos meios necessários à subsistência, seja produzindo alimentos e outros
produtos para o autoconsumo, seja produzindo para a venda; não é fundamental a propriedade da
terra, mas sim a sua posse ou algum tipo de acesso à ela. No que se refere à mercantilização de sua
economia, para o autor, não se trata apenas de vender o excedente, mas de "realizar uma produção
voltada para o mercado, com a terra, a mão-de-obra e os meios de trabalho subtraídos da produção
18
Ver neste sentido, SOUZA, Sonia M. Além dos cafezais: produção de alimentos e mercado interno em uma região de
economia agroexportadora - Juiz de Fora na segunda metade do século XIX. Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 1998,
p. 132-135. Indícios de manufatura são encontrados com bastante freqüência nos inventários post-mortem de camponeses,
que além da presença de carneiros, apresentam instrumentos como teares, rocas, fusos e pentes.
19
SCHWARTZ, Stuart B. "Perspectives of Brazilian peasantry: a review essay". In. Peasant studies. University of Pittsburgh.
Vol. 5, n. 4, October, 1976, p. 11-12.
20
Idem. "Peasants and slavery: feeding Brazil in the late colonial period". In: Slaves, peasants, and rebels: reconsidering
Brazilian slavery. Chicago: University of Illinois Press, 1992, p. 66- 67. Curiosamente, a resistência em utilizar o termo
"camponês" foi estendida a este mesmo trabalho, recentemente traduzido para a língua portuguesa, em cujo título a
expressão "peasants" foi traduzida como "roceiros". Ver, neste sentido, SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e
rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001.
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150
para a subsistência”. Ainda, segundo o autor, “não só o proprietário, como também o parceiro, o
arrendatário, o posseiro, podem se configurar como formas de produção camponesa”.21
Ao estudar os camponeses do município cafeeiro de Juiz de Fora, adoto como referencial a
concepção de campesinato desenvolvida por Ciro Cardoso e Hebe Maria Mattos, pelo fato do recorte
cronológico por mim efetuado neste artigo ter como referência o período escravista. Estes autores,
além de incorporarem a lógica de uma economia camponesa proposta por Chayanov, ou seja, a de
uma economia caracterizada pelo acesso à terra e pela utilização da mão-de-obra familiar,
acrescentam a utilização de uma força de trabalho adicional, que, no caso brasileiro, poderia
significar o trabalho de livres e de escravos. Eles não descartam a possibilidade de um vínculo dessa
economia com o mercado, que se traduzia na comercialização de eventuais excedentes e na compra
do que não era produzido diretamente nas propriedades. Outro ponto a ser destacado, na análise
destes autores, é a concepção do campesinato sob a ótica da autonomia. Para Ciro Cardoso, ela era
estrutural, de modo que o camponês decidia sobre as suas atividades agrícolas, escolhendo o que,
quando e onde plantar, bem como dispor dos excedentes. Ao analisar o campesinato brasileiro, Hebe
Maria Mattos diz que ele desfrutava de uma autonomia frente aos grandes proprietários, possibilitada
pela facilidade do acesso à terra.22
As discussões a respeito do campesinato têm ultrapassado os aspectos meramente
econômicos e, neste sentido, os antropólogos têm dado uma importante contribuição. Elementos
como laços de sociabilidade e solidariedade desenvolvidos pelos camponeses têm se constituído em
campo de interesse destes especialistas. Ellen Woortmann, ao discutir as teorias existentes sobre o
campesinato, critica a ênfase que dão aos aspectos econômicos, onde a família camponesa é vista
sob o prisma da produção e do consumo. Suas observações se voltam principalmente para
Chayanov, para quem a família é vista como “um conjunto de produtores e consumidores”, não
levando em consideração fatores culturais, como por exemplo, as relações de parentesco que, para
ela, são elementos muito importantes na organização de uma comunidade camponesa.23
Embora variando em um ou outro aspecto, pode-se perceber características comuns na
concepção de um campesinato entre os diversos autores mencionados acima. De uma forma geral,
pelas suas definições, podem ser consideradas como características básicas de um campesinato, o
vínculo com a terra, a utilização de uma mão-de-obra familiar, e, em certos casos, de uma força de
trabalho adicional, remunerada ou não, e, por fim, o caráter mercantil de parte de sua produção.
21
SILVA, José Graziano da. Estrutura agrária e produção de subsistência na agricultura brasileira. São Paulo: HUCITEC,
1980, p. 3.
22
CARDOSO, Ciro F. S. Escravo ou camponês? o protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.
56-57 e MATTOS, Hebe M. Trabalho familiar e escravidão: um ensaio de interpretação a partir de inventários post-mortem.
In: Estudos sobre a escravidão II. Niterói: Cadernos do ICHF, no 23, 1990, p. 21-23.
23
WOORTMANN, Ellen F. Op. cit., p. 15, 20 e 30.
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151
Em meu estudo, considero como camponês aquele que possuía qualquer tipo de vínculo com
a terra, sendo seu proprietário legal ou não, cuja produção agrícola, destinada à reprodução de sua
unidade produtiva e ao abastecimento do mercado interno, se assentava principalmente na força de
trabalho familiar. No entanto, não descarto a possibilidade de utilização de uma força de trabalho
adicional, podendo ela ser constituída por trabalhadores livres e pela posse de alguns poucos
escravos. Neste caso, adoto como parâmetro a propriedade de, no máximo cinco cativos,
independente de serem ou não aptos ao trabalho.
A posse de algum escravo por parte dos camponeses era possível em um momento de maior
prosperidade, sendo que a mesma era eventual, uma vez que não havia uma reposição regular desta
força de trabalho. Isso pôde ser percebido quando analisei as listas nominativas e inventários postmortem, pois localizei vários casos em que o chefe do domicílio presente nas listas como proprietário
de algum escravo, em um momento posterior já não possuía esta força de trabalho. Manoel Julião
Tostes é um bom exemplo neste sentido. Nas listas nominativas elaboradas para a freguesia de São
Francisco de Paula referentes ao ano de 1864 o mesmo aparece como proprietário de 5 escravos.
Pois bem, as informações presentes em seu inventário, aberto dez anos depois, dão conta de que ele
estava separado da esposa e vivia em um sítio pertencente ao irmão, onde cultivava suas roças e
possuía apenas um escravo de 60 anos. Vale ressaltar que o referido cativo, avaliado à época em
350$000, acabou sendo libertado pelo inventariante, o qual era irmão do falecido, que pagou seu
valor ao espólio, deixando, portanto, o referido cativo de fazer parte da partilha. 24
Há ainda que considerar que, nos casos em que estou tratando, possuir algum cativo não
implicava no afastamento deste camponês do trabalho. O escravo representava, na realidade, uma
força de trabalho adicional, trabalhando lado a lado com seu proprietário e os demais membros de
sua família. Um bom exemplo, neste sentido, pode ser percebido no inventário de Custódia Maria de
Jesus, aberto em 1883. Entre os bens de seu espólio constavam três escravos, dentre eles uma viúva
de 36 anos e os demais com 35 e 16 anos. O mais velho fora libertado condicionalmente, devendo
servir sua senhora enquanto ela vivesse. Pois bem, após a morte da mesma, a escrava fora vendida
e os herdeiros fizeram uma partilha amigável do restante dos bens, cabendo ao co-herdeiro
Sebastião Rodrigues da Silva, genro da inventariada, o escravo Serafim de 16 anos, descrito como
doente e avaliado à época em 400$000. Tanto a venda, quanto a partilha dos referidos escravos
foram consideradas nulas, sendo que os mesmos deveriam voltar ao espólio, o que provocou
protestos do co-herdeiro nos seguintes termos:
(...) o suplicante a convite do viúvo inventariante e conjuntamente com todos os herdeiros (...) fez-se
uma partilha cordata, atendo-se contudo aos interesses dos menores, evitando-se assim que fosse
absorvido todo o acervo pelo pagamento de custas e demais despesas. Pelo que sendo o suplicante
24
Arquivo Histórico da Cidade de Juiz de Fora (AHCJF). Séries 53 e 54. Listas nominativas de população. Arquivo Histórico
o
da Universidade Federal de Juiz de Fora (AHUFJF). Cartório do 1 Ofício Cível. Cx. 72B; ID.: 588. Inventário de Manoel
Julião Tostes (1874).
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inteiramente leigo com relação a feitos de justiça, e de maior boa fé recebeu o escravo Serafim, que lhe
foi dado pelo inventariante, com a cláusula de reposição a herdeiros, e por ter o suplicante assim
concordado, com grande sacrifício cumpria, não para ter um escravo, mas uma companhia que o
arrimasse no trabalho, pois o suplicante é muito pobre e tem numerosa família. (...) Assim pois requer o
suplicante a V. Sa. digne-se a endossar que sejão os autos arquivados, passando mandado contra o
actual inventariante afim de ser-lhe entregue o alludido escravo (...).25
O estudo realizado por Hebe Maria Mattos também aponta para um sentido semelhante ao
que venho abordando, ao mencionar o caráter de precariedade que marcava muitas das unidades
produtoras, inclusive aquelas que possuíam escravos. Segundo a autora, em muitos dos casos, a
ausência de uma força de trabalho familiar, ocorrida pela dispersão ou casamento precoce dos filhos,
era superada com a aquisição de um ou mais cativos e transferia-se para eles a função de garantir a
sobrevivência da unidade. Para a autora, muitas vezes a família camponesa optava por adquirir uma
escrava (de valor mais acessível) e poder contar no futuro com o trabalho de seus filhos. Em
momentos de maiores dificuldades, ou em casos de partilha dos bens, devido à morte de um dos
cônjuges, o escravo era colocado à venda, tendo a unidade camponesa de voltar a contar apenas
com a força de trabalho familiar.26
Após deixar clara minha concepção de camponês, passo a tratar da questão de uma forma
mais concreta, de modo a perceber a presença camponesa no município de Juiz Fora. Começo
analisando o processo de ocupação da Zona da Mata mineira, região na qual a citada localidade
estava inserida. Tal ocupação teve início com a abertura do Caminho Novo, ainda no século XVIII,
pois foi a partir daí que pôde se estabelecer, no local, uma população sem grandes cabedais e
voltadas para a produção de alimentos. O fato da Zona da Mata ser considerada uma região de
fronteira aberta e, portanto, com terras disponíveis, possibilitou o estabelecimento desta parcela
social na localidade aqui estudada.
A presença camponesa no município de Juiz de Fora
Juiz de Fora, região localizada na parte sul da Zona da Mata Mineira, floresceu às margens do
Caminho Novo, estrada aberta por Garcia Rodrigues Pais por volta de 1703, e que tinha como
principal objetivo facilitar a comunicação do Rio de Janeiro com a região das minas. O surgimento do
município se deu a partir da formação de unidades produtivas voltadas inicialmente para a produção
de alimentos, que se instalaram ao longo de seu percurso.27
25
AHUJFJ. Cartório do 1o Ofício Cível. Cx. 122B; ID.: 873. Inventário de Custódia Maria de Jesus (1883). Grifos meus.
MATTOS, Hebe M. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil, século XIX. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 63 e 71. Ver também da autora, Campesinato e escravidão, p. 338.
27
Para maiores detalhes sobre a origem da localidade, ver, SOUZA, Sonia M. de. Op. cit., capítulo 1.
26
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
153
Apesar do intenso movimento de tropas que se verificou na região desde a abertura do
Caminho Novo, sua ocupação efetiva só se realizou em fins do século XVIII, a partir da crise da
mineração, quando houve um deslocamento de parte da população da região mineradora em direção
a outras partes da própria capitania, época em que a Zona da Mata também recebeu parte deste
contingente. A expansão da economia cafeeira na Zona da Mata mineira, mais especificamente na
localidade de Juiz de Fora, teve início em princípios do século XIX, sendo que as notícias informam
que em 1819 a região já contava com uma produção considerável e com destino ao mercado externo.
Esta produção que se intensificou a partir de 1850, apresentou-se consolidada na década de 1870,
período em que a região contava também com a maior população escrava da província, fato que
comprova o dinamismo da atividade, e atingiu o auge no início do século XX.28
Se, em sua origem, a localidade foi marcada pela atividade produtora de alimentos, como
mostram os registros dos viajantes que trafegaram pelo Caminho Novo29, a implantação da economia
cafeeira que se verificou mais tarde não inviabilizou tal atividade. Pelo contrário, o crescimento da
economia agroexportadora foi acompanhado pelo incremento do setor produtor de alimentos, que
tomou para si a responsabilidade de abastecer não apenas as fazendas cafeeiras, atuando como um
redutor de custos da reprodução destas unidades, mas também com uma produção capaz de atender
ao mercado interno que se expandiu na região, a partir da segunda metade do oitocentos.30 Tal fato
vem corroborar o exposto por Stuart Schwartz de que a economia agroexportadora não pode ser
concebida de forma desvinculada da agricultura produtora de alimentos e direcionada para o
abastecimento.31 No caso de Minas Gerais, especificamente, o autor chama a atenção para o
crescimento do setor produtor de alimentos, verificado mesmo antes da crise da mineração, o qual
desempenhou papel importante no abastecimento de centros como o Rio de Janeiro, por exemplo.
Ainda segundo o autor, a atividade produtora de alimentos de Minas Gerais se caracterizou tanto por
uma produção escravista, sendo as pequenas posses de escravos uma característica da região
desde o período de auge da mineração, quanto por uma produção tipo camponesa, baseada no
trabalho familiar e que, embora mais modesta, não deixou de manter um vínculo com o mercado.32
28
OLIVEIRA, Mônica R. de. Negócios de famílias: mercado, terra, e poder na formação da cafeicultura mineira - 1780-1870.
Tese de doutoramento. Niterói: UFF, 1999, p. 150-155. PIRES, Anderson J. Capital agrário, investimento e crise na
cafeicultura de Juiz de Fora (1870-1920). Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 1993, p. 95-98.
29
Como exemplo de viajantes que deixaram suas impressões sobre a região podem ser mencionados, Antonil, Robert Wash
e Saint-Hilaire. Os mesmos assinalaram a existência de unidades produtoras de alimentos bastante promissoras, que
tinham a função de abastecer aqueles que transitavam pelo Caminho Novo, bem como os seus animais. Ver SOUZA, Sonia
M. de. Op. cit., p. 34-35.
30
A respeito da atividade produtora de alimentos no município e o desempenho de seu papel abastecedor do mercado local,
ver, SOUZA, Sonia M. de. Op. cit., capítulo 4.
31
SCHWARTZ, Stuart B. "Peasants and slavery: feeding Brazil in the late colonial period". In: Slaves, peasants and rebels:
reconsidering Brazilian slavery. Chicago: University of Illinois Press, 1992, p. 66.
32
Idem. Op. cit. p. 80-82.
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Apesar dos conflitos envolvendo a questão da terra que marcaram a paisagem agrária
brasileira, principalmente a partir da aprovação da Lei de Terras em 1850,33 muitos
pequenos
produtores conseguiram resistir à pressão e de alguma forma, sobreviveram às dificuldades. No caso
de Juiz de Fora, muitos dos que se estabeleceram na localidade eram migrantes de outras regiões da
província mineira. Deve ser considerado, ainda, o fato de que, à esta parcela da população que se
estabeleceu no local, ao longo dos anos, desde a abertura do Caminho Novo, se juntou os que se
libertaram do cativeiro e adotaram um estilo de vida camponês, buscando manter um certo grau de
autonomia perante os grandes fazendeiros de café. Isso significa dizer que, além dos fazendeiros de
café e dos escravos, sendo os últimos responsáveis pelo dinamismo da economia cafeeira, grande
parte da população local, no período aqui estudado, era constituída por pequenos lavradores, cuja
atividade produtiva possuía uma característica essencialmente camponesa, baseada no trabalho
familiar, mas sem deixar de utilizar uma força de trabalho adicional, representada pela posse de
alguns poucos escravos.
Ao analisar as listas nominativas da população de Santo Antonio do Parahybuna, primitivo
nome de Juiz de Fora, referentes ao período de 1831, Mônica Ribeiro de Oliveira pôde verificar que
residia no município um total de 1.336 pessoas, sendo que 59,14% deste contingente era formado
por escravos, indicando nítida superioridade em relação ao total de homens livres. Apesar desta
superioridade da população cativa, a autora percebeu que 47,9% dos domicílios arrolados não
possuíam escravos.34 Tal fato levou a autora a concluir que
(...) a expansão da fronteira da Mata não somente atraiu elementos da elite agrária mercantil da
província mineira, mas como, também, tornou-se palco de fixação de inúmeros lavradores pobres que,
mesmo sem propriedade cativa ou sem título formal da propriedade fundiária, conseguiram sobreviver,
mantendo-se enquanto unidade de produção doméstica.35
Além de um significativo número de domicílios sem a presença de escravos, a autora verificou
que entre os que possuíam a força de trabalho cativa, prevaleceram as pequenas posses, sendo que
a grande maioria destes escravos estava concentrada nas mãos de poucos proprietários. Para se ter
uma noção disto, apenas 12 unidades produtivas, o equivalente a 19,35%, possuíam mais de 20
escravos e, juntas, detinham a posse de 69,87% da escravaria arrolada neste período. Segundo a
autora, foram arrolados 119 domicílios, dos quais 62 possuíam escravos. Destas unidades que
contavam com a posse de escravos, 36 eram possuidoras de até cinco cativos, o que representava
33
MOTTA, Márcia M. M. Nas fronteiras do poder: conflitos de terra e direito agrário no Brasil de meados do século XIX. Tese
de doutoramento. Campinas: UNICAMP, 1996.
34
OLIVEIRA, Mônica R. de. Op. cit. p. 179-180. Em seu estudo, a autora toma como referência a totalidade dos fogos
existentes na época para calcular as faixas das posses de escravos e chega à conclusão de que os proprietários com mais
de 20 cativos representavam 10,08% dos que residiam na região.
35
Idem, p. 181.
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155
58,06% delas. Isso significa dizer que mais da metade das unidades escravistas situava-se na faixa
de pequenas posses. A evidência desta pulverização da propriedade escrava no município está no
fato de que entre os 62 domicílios, 10 deles possuíam dois escravos e outros 10 contavam com
apenas um cativo como força de trabalho.36
Embora a economia cafeeira do município se encontrasse em sua fase inicial, sua
consolidação, verificada nos anos seguintes não alterou muito esta disposição da propriedade
escrava, em que pese o fato de terem se estabelecido na região grandes fazendas cafeeiras,
algumas inclusive com posses superiores a cem escravos.37 As listas nominativas que encontrei para
os anos posteriores a 1831, bem como os dados apresentados pelo recenseamento de 1872 vêm
confirmar a tendência a um predomínio de unidades com pequenas posses de escravos.
Tomando como referência os dados das listas nominativas elaboradas para o ano de 1855 e,
ao compará-los com as informações que foram fornecidas para o ano de 1831, percebe-se que a
população escrava ainda predominava em relação à livre. Os dados referentes ao ano de 1855
mostram que a população do município contava com 27.722 habitantes, sendo 16.428 escravos,
representando 59,25% de toda a população, enquanto que a livre era formada por 11.294 indivíduos,
o equivalente a 40,75% dos habitantes da localidade.38
Como era de se prever - levando-se em conta o fato de que, mesmo com a reposição regular
de escravos, muitos se libertaram e continuaram na região, contribuindo para incrementar a
população livre - esta tendência a um predomínio de escravos não se confirma em períodos
posteriores, como pode ser percebido no recenseamento de 1872. Os dados fornecidos para esse
período indicam que a população livre superou a escrava, na região. O quadro seguinte fornece mais
detalhes a respeito.
Quadro 1
Composição da população de Juiz de Fora nos anos de 1831, 1855 e 1872
Período
1831
1855
1872
Livres
546
11.294
23.518
%
40,87
40,75
62,08
Escravos
790
16.428
14.368
%
59,13
59,25
37,92
Total
1.336
27.722
37.886
Fontes: Listas nominativas de população dos anos de 1831 e 1855, apud. RIBEIRO, Mônica R. de.
Negócios de famílias: mercado, terra, e poder na formação da cafeicultura mineira - 1780-1870, p. 179.
Biblioteca do IBGE. Recenseamento de 1872.
36
Idem, p. 180.
Em estudo anterior, através de listas nominativas e inventários post-mortem, pude identificar que, entre as unidades com
a posse de escravos no município, predominavam as que possuíam até 5 cativos. Ver neste sentido, SOUZA, Sonia M. Op.
cit., p. 166-170. Com relação à presença de fazendas com posses superiores a 100 cativos, ver, OLIVEIRA, Mônica R. Op.
cit. p., 205-208.
38
OLIVEIRA, Paulino de. História de Juiz de Fora. 2. ed. Juiz de Fora: Gráfica Comércio e Indústria Ltda., 1966, p. 40.
37
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156
Mesmo levando em conta as deficiências das listas nominativas e do censo de 1872, as
informações fornecidas possibilitam uma melhor compreensão da composição populacional do
município. Uma análise dos dados das listas nominativas elaboradas para os dois primeiros períodos
indica uma superioridade do número de escravos em relação à população livre, tendência que não se
manteve no período seguinte.
A confiar nos dados, percebe-se inclusive que houve uma redução do número de escravos em
relação a 1855, que de 16.428 diminuiu para 14.368 indivíduos. Mesmo levando em conta os
problemas presentes nos recenseamentos, não deve ser desprezado o fato de que a população
escrava no município cresceu em ritmo mais lento, chegando a ponto de ser superada em números
absolutos pela livre. Os dados verificados para Juiz de Fora se aproximam dos encontrados para
outros municípios cafeeiros do Vale do Paraíba Fluminense, como Paraíba do Sul, por exemplo.39
Apesar das deficiências do recenseamento de 1872, os dados disponíveis possibilitam
perceber as transformações ocorridas na composição de sua população. Uma das mudanças que
pode ser percebida é que, embora possuindo a maior população escrava da província, a parcela livre
já começava a predominar em todas as freguesias recenseadas, ao contrário do que pôde ser
verificado em períodos anteriores. Este fato retrata uma situação percebida para outras regiões do
país, especialmente a Sudeste na segunda metade do século XIX, que é a presença de um grande
contingente de homens livres, segmento que aumentava gradativamente, à medida que avançava o
processo abolicionista.40
Se por um lado, não disponho de mais detalhes do recenseamento de 1872, pude recorrer às
listas nominativas que foram elaboradas entre os anos de 1864 e 1870 e acreditam que foram elas
que informaram o censo de 1872, uma vez que os dados não diferem muito dos apresentados neste
ano. Estas listas nominativas fornecem elementos preciosos sobre a presença de uma parcela
camponesa no município, ao trazer informações sobre o chefe da unidade produtiva, dados sobre a
esposa e filhos, a existência ou não de escravos, sua profissão e rendimento anual. Embora não
represente todo o município e contenha dados apenas de alguns distritos, o quadro a seguir fornece
mais informações sobre a população dos domicílios da região.
39
FRAGOSO, João. Sistemas agrários em Paraíba do Sul (1850-1920): um estudo das relações não-capitalistas de
produção. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1983, p. 40-41. Trabalhando com dados relativos a 1840 e 1872,
o autor chega a conclusões parecidas com o que encontrei em Juiz de Fora. Segundo ele, neste intervalo de tempo houve
um crescimento menor da população escrava em relação à livre, de forma que em 1872, havia um ligeiro predomínio desta
última.
40
MATTOS, Hebe M. Das cores do silêncio..., p. 15. EISENBERG, Peter L. Homens esquecidos: escravos e trabalhadores
livres no Brasil, séculos XVIII e XIX. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989, p. 224.
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Quadro 2
A presença de escravos nas unidades produtivas de Juiz de Fora
Localidade
Total de
domicílios
Domicílios
s/escravos
%
Domicílios c/
escravos
%
Rosário
274
158
57,66
116
42,34
Chapéu D’Uvas
446
310
69,5
136
30,5
S. Francisco de Paula
447
271
60,62
176
39,37
S. José do Rio Preto
66
24
36,36
42
63,64
Vargem Grande
15
11
73,33
4
26,26
S. Pedro de Alcântara
173
135
78,03
38
21,97
Sarandy
260
199
76,53
61
23,46
Total
1.681
1.108
65,91
573
34,09
Fonte: AHCJF. Série 54. Listas nominativas de população (1864-1870).
Obs.: Estão incompletas as listas dos distritos de S. José do Rio Preto e de Vargem Grande.
As informações demonstram que, embora se trate de um período em que a atividade
agroexportadora se encontrava em um processo de consolidação, e em que a localidade fosse
concentradora de um grande número de escravos, o que prevaleceu, na realidade, foram as unidades
sem cativos. Este fato pode ser constatado em seis dos sete distritos, sendo que neles mais da
metade dos domicílios não contava com a posse de escravos. No geral, as listas nominativas
sinalizam que prevaleceram no município os domicílios sem escravos, os quais chegaram a
representar 65,91% dos que foram arrolados, indicando que as atividades produtivas neles
desenvolvidas se apoiavam na força de trabalho familiar, uma das características básicas de uma
unidade camponesa.
A exceção, neste sentido, ficou por conta do distrito de São José do Rio Preto, talvez pelo fato
das listas referentes ao local estarem incompletas. Mesmo assim, é compreensível que, ao contrário
dos demais distritos, tenham prevalecido nesta localidade as unidades com a presença de escravos,
uma vez que era considerada uma das maiores regiões produtoras de café e também a que
concentrava o maior número de cativos. Aliás, este fato pôde ser observado tanto no censo de 1872,
quando o distrito apresentou o maior percentual de escravos do município com 44,88%, quanto em
listas elaboradas em período anterior, como as de 1855, época em que sua população de cativos
representava 67,26% de seus habitantes.
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A exemplo do predomínio das unidades produtivas sem a posse de escravos, a composição
das escravarias das unidades arroladas demonstra um predomínio das pequenas posses, sendo que
prevaleceram as unidades com até 5 cativos. Os domicílios que apresentaram este perfil
representavam 50,8% daqueles que possuíam escravos, enquanto que as unidades com mais de 20
cativos são as que apresentam os menores índices com percentual de 17,8%.
Uma vez apresentada a composição da população do município de Juiz de Fora, a qual permite
perceber a existência de uma parcela camponesa, cuja sobrevivência era garantida pela força de
trabalho familiar, passo a analisar um dos elementos definidores desta categoria social, segundo a
concepção de Chayanov, que é o acesso à terra.
A propriedade da terra
A abordagem da propriedade da terra entre o setor camponês requer uma discussão mais
aprofundada a respeito de seu papel para a formação e manutenção de um campesinato. O acesso à
uma parcela de terras é considerado, por muitos autores, fator de extrema importância para a
existência de uma comunidade camponesa. Giovanni Levi, ao estudar o mercado de terras da região
de Santena, uma pequena localidade do Piemonte, diz que a manutenção da terra em poder das
famílias camponesas era uma das estratégias que garantia a sua sobrevivência, especialmente em
épocas de crise. A venda da propriedade era o último recurso a que recorriam, e neste caso, se dava
em um momento de crise, quando já estavam endividadas em seu limite. Era, inclusive, esse
endividamento anterior que interferia nos preços praticados, principalmente quando os envolvidos nas
transações eram parentes próximos.41
No caso do Brasil, a importância da terra para a sociedade camponesa vem sendo tema de
estudo de diversos autores. Ellen Woortmann, por exemplo, estudando pequenos produtores do sul e
nordeste do país, trata a questão através de uma abordagem cultural. Em sua pesquisa no nordeste,
por exemplo, encontrou vários sítios, cujas terras e instalações eram de uso comum entre os
membros da família. A terra era concebida como um “patrimônio” e não apenas como fator de
produção. Para o sitiante, em especial, ela não era vista como mera mercadoria ou objeto de
trabalho, mas como o “resultado” do trabalho da família. As transações mercantis não envolviam a
terra em si, mas as benfeitorias nela existentes, sendo que a maior parte das transações ocorria entre
parentes, denotando uma tentativa de manter a propriedade com a família.42
41
LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000, p. 108-113 e especialmente o capítulo 3 da obra.
42
WOORTMANN, Ellen F. Op. cit., p. 223-225. Os grifos são da autora. Ver também WOORTMANN, Ellen F. &
WOORTMANN, Klaas. Op. cit. p. 44-45.
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159
A concentração de terras nas mãos dos grandes proprietários, principalmente durante o
período escravista, fazia com que ela se transformasse em um bem precioso, especialmente para o
camponês, que via nela um elemento que, além de garantir sua sobrevivência e reprodução,
enquanto categoria social, possibilitava-lhe que mantivesse uma autonomia frente ao grande
proprietário. Márcia Menendes Motta ao estudar os conflitos de terras envolvendo fazendeiros e
posseiros no município de Paraíba do Sul, neste período, diz que estes não se submeteram com
facilidade aos desmandos dos grandes proprietários e procuraram garantir na justiça seu acesso à
terra. Para a autora, “o ato de ocupá-la, de ‘tirar posse’, significava para os pequenos posseiros uma
possibilidade real de se tornarem lavradores, permitindo alcançarem uma razoável autonomia frente
aos interesses dos fazendeiros”.43 Hebe Maria Mattos também demonstra a importância da terra para
a manutenção do campesinato enquanto uma classe social, ao dizer que “o acesso à terra, legal ou
costumeiro, é pré-condição para que se possa desenvolver um modo de vida especificamente
camponês”.44
Concordo com os argumentos dos autores a respeito da importância da terra para a
comunidade camponesa. Em meu estudo, em especial, pelo fato de estar enfocando uma região
caracterizada por uma economia agroexportadora, na qual a tendência era concentrar as terras nas
mãos dos grandes cafeicultores, ela se reveste de um maior significado para esta camada social. O
acesso formal ou informal à uma parcela de terras representava para o camponês sua sobrevivência
enquanto grupo e garantia-lhe uma autonomia frente ao grande fazendeiro, contribuindo para que não
se sujeitasse ao trabalho nas fazendas, ou que, pelo menos, tivesse a possibilidade de negociar as
condições em que este trabalho seria prestado. Diante das dificuldades, o camponês se utilizou dos
mais variados instrumentos para que este acesso se concretizasse, fosse ele formal, através da
compra ou da herança, ou informal, por meio da condição de agregado ou de posseiro.
Os inventários post-mortem constituem uma fonte privilegiada para se perceber a propriedade
da terra entre os camponeses. Aliás, era o fato de possuir algum bem que justificava a abertura de
um processo de inventário e, em muitos casos, a terra, se não era o único, respondia por quase a
totalidade dos bens possuídos pelo inventariado. Conto para o período de 1870 a 1888 com um total
de 192 processos, sendo que destes, consegui detectar a presença da terra em 168 unidades
camponesas, em que o titular era o seu proprietário legal, o que corresponde a 87,5% delas. O
quadro a seguir permite visualizar melhor a presença da terra nas unidades camponesas no decorrer
do período estudado.
43
44
MOTTA, Márcia M. M. Op. cit., p. 52 e 57.
MATTOS DE CASTRO, Hebe M. Trabalho familiar e escravidão..., p. 36.
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160
Quadro 3
A propriedade da terra nas unidades produtivas camponesas (1870-1888)
1870-1879
91
87,5%
13
12,5%
104
100%
Unidades Com Terras
Unidades Sem Terras
Total
1880-1888
77
87,5%
11
12,5%
88
100%
Total
168
24
192
87,5%
12,5%
100%
Fonte: AHUFJF. Cartório do 1o Ofício Cível. Inventários Post-mortem.
Os números apresentados no quadro acima demonstram que, de certa forma, a propriedade
da terra era uma possibilidade real para os camponeses. Ao analisar as duas décadas que englobam
este estudo, pode ser percebido que, inclusive, houve equilíbrio entre as unidades que apresentavam
terra. Ou seja, nos dois períodos analisados a proporção dos que tiveram terras inventariadas foi de
87,5%. Por outro lado, as unidades que não contavam com a terra entre os bens avaliados
corresponderam a 12,5%.
De certa forma, os dados aqui apresentados sugerem que a propriedade da terra se
encontrava disseminada entre a população camponesa. Entretanto, deve ser levado em conta que a
fonte que informa sobre este aspecto, pode não refletir uma realidade em que o acesso à terra foi
extremamente restringido, principalmente se for considerado que o período aqui analisado coincidiu
com a crise da mão-de-obra escrava e, manter uma camada de despossuídos seria uma forma de
garantir a oferta de uma força de trabalho regular. Além disso, há que se ressaltar que neste período
a abertura de um inventário só se justificava se houvesse algum bem a inventariar ou órfãos a serem
tutelados. Apesar das limitações, os inventários são prova de que o acesso à terra foi possível a esta
parcela da sociedade, mesmo em uma região caracterizada pela agroexportação cafeeira que, de
praxe, devia procurar concentrar suas terras nas mãos de grandes cafeicultores, em detrimento dos
pequenos lavradores produtores de alimentos. Será, portanto, com base nos dados apresentados por
esta documentação e nas escrituras de compra e venda de terras que desenvolvo meu argumento de
que a terra era elemento fundamental, tanto do ponto de vista cultural quanto econômico, para a
sobrevivência deste campesinato e que, na medida do possível, ele buscou meios de obter o acesso
formal ou informal a uma parcela.
Voltemos a atenção agora para aqueles camponeses considerados sem terra, mas que
possuíam outros bens que os habilitavam a abrir um inventário. Hebe Maria Mattos, em seu estudo
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
161
sobre o município de Capivary, percebeu que era comum a presença de “situações” (benfeitorias e
lavouras) em terras alheias, especialmente durante a primeira metade do século XIX.45
Em relação a Juiz de Fora, dos 192 processos analisados, encontrei 24, o equivalente a
12,5% sem a presença da terra entre os bens avaliados. Mesmo assim, não posso concluir que seus
titulares eram pessoas totalmente despossuídas, ou que não tinham nenhum vínculo com a terra. Em
alguns casos, o inventariado que não detinha a posse da terra, residia na propriedade dos pais,
sogros ou de parentes próximos. O fato de residir com os pais podia significar que o acesso à uma
parcela não seria muito difícil, uma vez que acabaria herdando parte da propriedade, caso ela não
fosse absorvida pelas dívidas. Havia, ainda, entre os considerados “sem terra”, os agregados, e, por
fim, encontrei aqueles que possuíam benfeitorias e culturas em terras alheias.
Alguns camponeses sem terra não moravam nas propriedades de parentes. Eram agregados
de algum fazendeiro. Alguns autores definem o agregado como um sujeito dependente do proprietário
das terras em que vive, atuando mais como uma reserva de mão-de-obra.46 Antonio Candido o
concebe com maior autonomia, ao defini-lo como um indivíduo que tinha a permissão do proprietário
para ocupar uma parte de sua terra e fazê-la produzir, sem que, para isso, se obrigasse a alguma
forma de pagamento, a não ser alguma eventual prestação de serviços. Era essa permissão obtida
que o distinguia do posseiro, aquele que se instalava em terras alheias, à revelia de seu
proprietário.47
Concordo com o fato de que se instalar em terras alheias acabava por gerar uma relação de
dependência entre este agregado e o dono da propriedade, de modo que o primeiro, talvez por
gratidão ou medo de ser despejado, se sujeitasse a determinadas tarefas, algumas, inclusive, nada
abonadoras. Por outro lado, acredito, também, na possibilidade de uma autonomia, como a proposta
por Antonio Candido, que garantia, inclusive, o acesso a outros bens, como animais e até escravos, a
partir do rendimento auferido do cultivo da parcela de terras cedida por algum fazendeiro. Os casos
relatados a seguir são bastante esclarecedores neste sentido. Agostinho Vidal Pinheiro, casado e
sem filhos, residia como agregado na Fazenda dos Loures, localizada no Distrito da Cidade, de
propriedade de João Antonio Gonçalves Loures. Mesmo não possuindo terras, ele era dono de quatro
escravos (uma escrava adulta e três crianças), também responsáveis pela maior parte de seu montemor, além de uma besta de carga.48 Francisco Luis Ferreira, com quatro filhos não possuía terras
quando sua esposa faleceu, em 1874. Viviam como agregados na Fazenda de São Roberto, no
45
Idem. Ao Sul da História..., p.133 a 147. Para a autora, a presença de “situações” em Capivary era mais comum na
primeira metade do século XIX, porém persistiu após 1850, embora em menor incidência, havendo inclusive “um mercado
de situações”, no qual as benfeitorias e as lavouras eram comercializadas à revelia do proprietário legal das terras.
46
Ver neste sentido, QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Op. cit., p. 26 e FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Op. cit., p. 100103.
47
CÂNDIDO, Antonio. Op. cit., p. 59.
48
AHUFJF. Cartório do 1o Ofício Cível. Inv. de Agostinho Vidal Pinheiro, proc. no 51B29 (1875).
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
162
distrito de São Pedro de Alcântara. Mesmo sem a posse de terras, o casal era proprietário de quatro
escravos, dois cavalos, duas bestas de carga e três porcos, além de alguns bens móveis.49
Além dos agregados e daqueles que viviam na propriedade de parentes, localizei também os
camponeses residentes em terras alheias, se aproximando da categoria de “situados” encontrados
por Hebe Maria Mattos em Capivary. Neste caso, não há uma identificação dos donos da terra onde
se instalaram, apenas a menção de plantações e benfeitorias “em terrenos/terras alheias”. Domiciano
José Rodrigues, casado e com quatro filhos maiores, sendo todos casados, não possuía terras, mas
era proprietário de benfeitorias como uma engenhoca de cana, uma casa de morada de madeira e
coberta de telhas e cultivava um “pequeno cafezal” calculado em 3.000 pés em “terras alheias”. Em
terreno alheio, também vivia o casal Francisco de Paula Vicente e Maria Theodora de São José, junto
com seus sete filhos. Embora sem terras, além de poucos bens móveis, o mesmo possuía uma casa
coberta de capim, cultivava uma roça de milho de dois alqueires de extensão e colheu 180 alqueires
deste cereal no ano de 1874. Além destes bens, o casal era possuidor de dois cavalos e de cinco
escravos.50
A inserção camponesa no mercado de terras
A intensificação da comercialização de terras no Brasil se deu a partir de 1850, com a
aprovação da Lei de Terras. Ao proibir a ocupação de terras devolutas por outro mecanismo que não
fosse o título de compra, tal lei vinha dificultar o acesso a uma parcela, principalmente para aqueles
desprovidos de recursos. A aprovação da Lei de Terras, coincidindo com o fim do tráfico internacional
de escravos, tinha por objetivo, embora implícito, criar uma reserva de mão-de-obra, formada pela
camada de homens livres do país, especialmente os mais pobres. Acreditava-se que a posse da terra
nas mãos deste setor da sociedade inviabilizaria tal empresa.
A obrigatoriedade de apresentar título de compra da terra ocupada, a partir daquela data, fez
com que os que possuíam algum recurso, se adaptassem à nova situação, direcionando seus
investimentos, que antes eram feitos na aquisição de escravos, para a compra de terras. Estudos têm
demonstrado que, com o fim da entrada de africanos no país, o pequeno proprietário viu-se
impossibilitado de adquirir o cativo, voltando-se para o mercado de terras. A razão para essa
mudança de comportamento se deveu ao fato de a terra ser um bem de valor mais acessível, se
comparado ao preço do escravo, devido à sua relativa abundância, em que pese o fato de que
49
Idem. Inv. de Candida Idalina de Jesus, proc. ID. 594, Cx. 73B (1874).
Idem. Inv. de Domiciano José Rodrigues, proc. ID. 903, Cx. 127 (1884) e de Francisco de Paula Vicente, proc. ID. 592, cx.
72B (1874).
50
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
163
grande parte dessas terras já se encontrasse concentrada em poucas mãos.51 No caso do camponês,
a terra assumia dupla importância, atuando como fator de reprodução da economia camponesa e
como reserva de valor, podendo ser vendida ou hipotecada em caso de dificuldades.
No município de Juiz de Fora, a exemplo de outras regiões do país, os pequenos proprietários
responderam à esta situação, inserindo-se, também, neste mercado de terras, que, aos poucos ia se
consolidando. Pude perceber a presença dos camponeses no mercado imobiliário tanto nos
inventários, quanto nas escrituras de compra e venda. Alguns deles compareceram a este mercado
por mais de uma vez, seja comprando ou vendendo terras.
As escrituras de compra e venda de terras, trazem informações preciosas sobre o mercado
imobiliário do município. Um aspecto percebido é que cerca de 80% das escrituras pesquisadas se
referem a transações envolvendo apenas parte do imóvel. Tal dado pode indicar uma fragmentação
das unidades, uma tendência que se manteve no período pós-abolição, embora em menor
percentual, em decorrência principalmente da diminuição da mão-de-obra nas lavouras de algumas
fazendas.
Com relação ao tamanho das propriedades negociadas, algumas dificuldades se apresentam
nesta documentação, uma vez que nem sempre ela traz a descrição com precisão. Foi comum
encontrar expressões como “uma sorte” ou “uma parte de terras”. Entretanto, boa parte das
transações descrevia a extensão da área negociada, o que me possibilitou perceber que parte
considerável delas envolvia tanto pequenas extensões de terras, quanto pequenos valores. Quanto à
sua extensão, de um total de 616 escrituras, 358 informam o tamanho da propriedade negociada e
pude perceber que, destas, 64,24% se referem a imóveis de até 10 alqueires (48,4 hectares). Em
muitos casos, a terra negociada não chegava a um alqueire, e, por várias vezes, me deparei com
descrições como “quartas”, “litros”, “celamins” e “pratos” de terras. O quadro seguinte fornece maiores
informações sobre como se apresentava esse mercado imobiliário.
Quadro 4
Extensões das terras negociadas (1870-1888)
Extensão das terras
Até 10 alqueires
De 10,1 a 20 alqueires
De 20,1 a 50 alqueires
De 50,1 a 100 alqueires
Mais de 100 alqueires
Total
Número de transações
230
67
40
15
6
358
%
64,24
18,71
11,17
4,19
1,67
100
Fonte: AHCJF – Cartórios do 1o e 2o Ofício Cível; Escrituras de compra e venda de imóveis.
Observação: a percentagem é referente ao total de escrituras que trazem a extensão da terra
negociada.
51
Ver neste sentido, MATTOS DE CASTRO, Hebe M. Trabalho familiar e escravidão..., p. 22-25 e 40.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
164
Com relação aos valores envolvidos nas transações, convém lembrar que nem sempre
correspondiam ao real valor de mercado, seja em extensão, seja em qualidade da terra negociada. O
fato de ser um mercado influenciado por elementos de caráter extra-econômico acabava por fazer as
relações sociais de parentesco e de vizinhança interferirem nos preços finais. Desta forma, pude
encontrar negociações de grandes extensões de terras com preço extremamente baixo, bem como
aquelas que envolviam parcelas insignificantes com preços muito altos, em relação a uma média
geral. A título de exemplo, tomei duas transações ocorridas no ano de 1880 em que detectei os dois
extremos. Em uma delas, José Calisto Mendes, morador no distrito de Chapéu D'Uvas, vendeu ao
irmão Geraldo Calisto Mendes "um sítio cultivado em pastos e todas as benfeitorias compostas de
casa de morada, moinho, paiol, pomar e 35 alqueires de terras" pelo preço de 1:250$000. Por outro
lado, neste mesmo ano, José de Assis Alves, fazendeiro e morador no distrito de São José do Rio
Preto, vendeu a seu vizinho, o também fazendeiro Antonio Bernardino de Aquino "3 alqueires de
terras" pelo preço de 2:400$000.52 Vê-se, neste exemplo, que, no primeiro caso, em uma transação
envolvida por relações de parentesco, a terra foi negociada a uma média de 35$700, sem levar em
conta as benfeitorias que, por certo, contribuiriam para maior valorização da mesma, enquanto que,
no outro, em que havia apenas a relação de vizinhança, o alqueire foi comercializado a razão de
800$000. No primeiro caso, pode-se notar que as relações de parentesco desempenharam um papel
favorável ao comprador que pôde adquirir terras a um valor bem abaixo do preço médio praticado
neste período. Já o mesmo não ocorreu no segundo caso, em que a relação que havia entre
vendedor e comprador não ia além da de vizinhança. Talvez por isso o comprador tenha adquirido
terras a um preço superior ao normalmente praticado.53
De acordo com Giovanni Levi, o processo de endividamento poderia interferir no preço final da
terra comercializada, indicando que nem sempre as transações obedeciam à uma lógica do mercado.
No caso de parentesco entre as partes, o estudo do autor é muito esclarecedor neste sentido, uma
vez que para ele,
(...) no âmbito familiar, o preço era apenas a conclusão de uma série de prestações mais ou
menos monetárias que se desenvolviam sob os panos. Esta situação nos é confirmada pelo fato
de que um altíssimo percentual de atos de compra e venda não ocorreu através de uma
transação monetária. O ato tabelional representava a passagem nominal por quantias ou
prestações já recebidas no passado. O preço nos parece alto porque podemos relacioná-lo
somente à última transação referente à terra e que, geralmente, era a única documentada no ato
tabelional.54
52
AHCJF. Cartórios Distritais. Cx.2, Liv. 32/20, fls.190 e Cx. 21, Liv. 39/278, fls. 76.
Chamo a atenção para o fato de que embora as negociações tenham ocorrido em distritos diferentes, sendo a primeira
realizada em uma região caracterizada mais pela pecuária e a outra em uma região voltada para a cafeicultura,
apresentando a segunda uma tendência a ser mais valorizada, o valor médio das terras de cultura para as duas regiões
girava em torno de 200$000 neste período.
54
LEVI, Geovanni. Op. cit., p. 161.
53
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
165
Mesmo levando em consideração estas possíveis "distorções", acredito ser válido um
comentário a respeito dos valores encontrados neste mercado de terras. A exemplo do que encontrei
para as extensões negociadas, em que prevaleceram as transações envolvendo pequenas parcelas,
a grande maioria delas também se refere a pequenas quantias. Das 616 escrituras pesquisadas para
este período, 51,62% são relacionadas a negociações de no máximo 1:000$000. Por outro lado, com
relação aos grandes valores, encontrei apenas quatro registros envolvendo quantias superiores a
50:000$000, como demonstra o quadro a seguir.
Quadro 5
Valores envolvidos nas transações imobiliárias (1870-1888)
Valores
Até 1:000$000
De 1:000$0001 a 5:000$000
De 5:000$001 a 10:000$000
De 10:000$001 a 20:000$000
De 20:000$0001 a 50$000$000
De 50:000$0001 a 100:000$000
Total
Número
318
218
34
20
22
04
616
%
51,62
35,38
5,52
2,24
3,57
0,65
100
Fonte: AHCJF – Cartórios do 1o e 2o Ofício Cível; Escrituras de compra e venda de imóveis.
Além dos dados quantitativos, as escrituras trazem informações que demonstram a presença
de diversos elementos, muitos deles de caráter extra-econômico. Para que pudesse ver com “outros
olhos” os dados que me foram apresentados, procurei seguir o conselho de Giovanni Levi e fazer
uma leitura nas “entrelinhas” da documentação sobre o mercado de terras, uma vez que, de acordo
com este autor, a análise literal da fonte, muitas vezes acaba distorcendo e ofuscando o seu
significado. Mais do que isso. Conforme o autor, “compra e venda de terras, se vistas como
expressão de um mercado impessoal, encobrem as regras de reciprocidade que antecedem as
transações”.55
Buscando apreender um pouco mais sobre o mercado de terras de Juiz de Fora, pude
perceber que, em muitas das transações estavam presentes relações de parentesco, de
solidariedade e também tensões. Dos 616 documentos de compra e venda de terras analisados neste
período, 47 deles (o equivalente a 7,62%) informam, de forma direta, a existência de parentesco entre
vendedores e compradores. A maioria destas transações envolvia irmãos, os quais estiveram
presentes em 41 registros, o equivalente a 87,52% deles, sendo que o restante se deu entre pais e
55
Idem. Op. cit., p. 47.
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166
filhos. Acredito que este número deve ser bem mais significativo do que as escrituras informam, pelo
fato de ter encontrado vários registros em que vendedor e comprador possuíam o mesmo
sobrenome.
As transações mercantis envolvendo os membros da família, poderiam indicar um desejo de
evitar a fragmentação da propriedade. Isso se dava, principalmente, quando a parcela de terra era
diminuta. Outras vezes, o negócio entre parentes ocorria quando o herdeiro não residia nas
proximidades da propriedade.
Relações de conflito também foram percebidas nas transações imobiliárias de Juiz de Fora,
sendo que muitas delas ocorriam entre vizinhos. As relações de vizinhança impunham algumas
regras de bom convívio, o que talvez tenha contribuído para que alguns tomassem certas
precauções, quando fossem dispor de parte de suas terras, para que não adquirissem também um
vizinho indesejado. Em 1875, Marcelino de Brito Pereira de Andrade, rico comerciante e fazendeiro,
vendeu um sítio a Bernardo Pedro Ferreira e fez constar, no ato da escritura, as seguintes cláusulas.
Primeira: que em qualquer tempo que o comprador quisesse vender o referido sítio, que lhe desse
preferência em igualdade de condições. Segunda: que quando ele, vendedor, fizesse roças ou
quaisquer plantações no pastinho que limitava com o terreno vendido, seria o comprador obrigado a
fazer os tapumes de modo a cercar a criação. Da mesma forma devia agir o comprador das terras se
fizesse roças ou plantações no mesmo limite.56
Os camponeses se inseriram no mercado imobiliário também como vendedores e muitos eram
os motivos que os levavam a se desfazer de sua propriedade. O endividamento era um dos mais
fortes fatores que os levava a se inserir no mercado imobiliário, colocando suas terras, ou parte delas
à venda. As dificuldades financeiras advindas com a morte do chefe da família também eram um dos
fatores que contribuía para que os camponeses dispusessem de suas terras.
Pude perceber uma certa informalidade e mesmo a ausência de uma lógica mercantil no
mercado imobiliário, que não é uma especificidade apenas da região e nem do recorte temporal de
minha pesquisa. Giovanni Levi, ao estudar o mercado de terras do Piemonte italiano do século XVII,
deparou com circunstâncias muito semelhantes ao que percebo em Juiz de Fora do final do século
XIX e princípio do século XX. O autor chegou à conclusão de que as transações imobiliárias desta
região estavam submetidas a certas regras, em que as relações sociais exerciam papel fundamental.
Desta forma, para este autor, a explicação para muitas circunstâncias envolvendo o mercado de
terras deve ser buscada em categorias extra-econômicas.57 Deve ser ressaltado, no entanto, que as
observações de Giovanni Levi dizem respeito a uma sociedade de antigo regime do século XVII. De
modo distinto, o período e a sociedade por mim estudados se inserem em um contexto de
56
57
AHCJF. Cartórios Distritais; Cx. 25; Liv. 25/333; fls. 28.
LEVI, Giovanni. Op. cit.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
167
modernização e por uma tendência a reforçar o caráter mercantil da propriedade da terra, devido à
crise do trabalho escravo. Ou seja, a sociedade aqui analisada, já em fins do século XIX, é
caracterizada por uma economia agroexportadora cafeeira com estreitas ligações com o mercado
internacional. A necessidade de expansão da atividade cafeeira conjugada à de ampliação da oferta
de uma força de trabalho, devido a crise do escravismo que marcou o período, tendia a reforçar o
caráter mercantil da propriedade da terra, de modo a dificultar o seu acesso. Apesar disso,
mecanismos extra-econômicos continuavam presentes e jogaram papel importante no mercado de
terras do município, particularmente nas transações efetuadas entre os camponeses.
Ao concluir este artigo gostaria de ressaltar que seu objetivo foi procurar demonstrar que a
presença de um setor camponês foi possível apesar da região se destacar pela agroexportação
cafeeira. Apesar da grande concentração fundiária que caracterizou a localidade, os camponeses que
nela se estabeleceram conseguiram manter uma relativa autonomia frente aos grandes fazendeiros
por meio do acesso formal ou informal a uma parcela de terras, como pode ser demonstrado na
documentação aqui analisada.
Sônia Maria de Souza é Doutora em História Social pela Universidade Federal
Fluminense e Professora do Departamento de História e do Mestrado em Educação e
Sociedade da Universidade Presidente Antônio Carlos.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
168
Iniciação Científica:
O PEQUENO COMÉRCIO
E O PERFIL DE SEUS AGENTES EM MINAS GERAIS
Camargos (1718-1755)
Flávio Rocha Puff
Resumo:
O presente artigo tem por objetivo tratar do
pequeno comércio e traçar um perfil dos seus
agentes em Minas Gerais na primeira Metade do
século XVIII. Tal perfil levará em consideração os
seguintes aspectos: sexo, condição social e
capacidade de diversificação. Os agentes mercantis
pesquisados estão localizados na freguesia de
Camargos na Vila do Carmo (atual Mariana) e as
fontes utilizadas são séries documentais de
natureza fiscal: almotaçaria e coimas e fianças
Palavras-chave:
1. Comércio; 2. Agentes mercantis; 3. Perfil.
Abstract:
The present article intends to treat commerce small
and to map an outline of the his agents in Minas
Gerais during the first half of eighteen century. Such
outline will carry in consideration followers aspects:
sex, standing social and diversification among them.
The agents mercantile research are located in
parish of the Camargos in Vila do Carmo (actual
Mariana) and source utilized are documents a
series fiscal origin: almotaçaria e coimas e fianças.
Key-words:
1. Commerce; 2.Mercantile agents; 3. Outline.
A atividade mercantil esteve em Minas Gerais desde as primeiras décadas do setecentos e no
seu decorrer entre as que recrutaram grande contingente da população1. Para muitos autores fora a
mineração que dera o impulso inicial da ocupação na região, todavia, foi o comércio paralelamente à
agricultura que ditaram o ritmo da economia, e as bases da organização social na capitania.2 A
citação de Sérgio Buarque de Holanda3 de que em Minas menos de um terço da população que aqui
residia no período estava envolvida com a mineração, apesar de não ter comprovação empírica
forneceu um importante indício para estudos posteriores pudessem vir a comprovar essa realidade
sobre a sociedade e economia mineira no século XVIII. Em nossa pesquisa podemos de certa forma
comprovar essa incisiva participação de pessoas no comércio. Para os anos que estudamos, pouca
mais de 30 anos, encontramos 263 pessoas diferentes envolvidas, em algum momento da vida, com
a atividade mercantil na Freguesia de Camargos. Um
número
considerável
principalmente
se
levarmos em conta os seguintes fatores: trata-se de uma pequena localidade que tinha uma
1
Este artigo é o resultado final uma pesquisa de iniciação cientifica financiada pelo PIBIC/CNPq, e de uma monografia da
Bacharelado intitulada “Os pequenos comerciantes nas Minas Gerais Setecentista: Bento Rodrigues e Camargos (17181755)” defendida no ano de 2003 na UFOP e que teve orientação do Prof. Dr. Antônio Carlos Jucá de Sampaio.
2
“(...) a mineração (...) definiu a forma de povoamento e colonização, mas foi através da atividade agrícola e comercial que
a sociedade mineira do setecentos se consolidou.” CHAVES, Cláudia MG. Perfeitos negociantes: mercadores das Minas
setecentistas. São Paulo:Annablume,1999. (p.65). Além dessa autora temos Caio César Boschi, Mafalda Zemella, Ângelo
Carrara, entre outros.
3
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Metais e pedras preciosas. In: Historia da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, t.1, v.2.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
169
população total gerando em torno de 1000 habitantes4, nossas fontes possuem lacunas de tempo e
por último nem todas pessoas envolvidas com o comércio foram listadas, ou seja, não há como
percebermos a atuação dos clandestinos.
Entre os agentes mercantis que atuavam no período colonial encontramos várias categorias
divididas por uma hierarquia que tem no seu topo os homens de grosso trato5, os quais
movimentavam grandes quantidades de mercadorias por todo Império Português, até chegar aos
menos abastados como os pequenos comerciantes fixos e ambulantes presentes nos mercados
varejistas locais. Portanto de um extremo ao outro há um universo de comerciantes alocados em
diversas maneiras de comercializar a produção interna e os produtos importados para a colônia.
Dentre esses temos: os mercadores, tropeiros, comboieiros, mascates, atravessadores,
vendeiros, lojistas, negras de tabuleiros, etc. Esses agentes são divididos em dois grupos os fixos e
volantes, sendo os do primeiro responsáveis por atender uma praça de comércio determinada
normalmente a que está estabelecido enquanto morador. E o segundo, é formado por aqueles que
circulavam pelos caminhos da América portuguesa comercializando e dinamizando o mercado interno
e externo.
Neste artigo nos ateremos à análise dos pequenos comerciantes donos de lojas de fazendaseca, vendas de molhados e os ambulantes representados, quase sempre, em Camargos e nas
minas pelas negras de tabuleiro. Percebam que se tratam de agentes que atuavam numa esfera
local, mesmo as negras que se enquadram entre os volantes elas normalmente circulavam nos
limites da freguesia do seu proprietário e quando muito em localidades limítrofes, uma vez que, uma
parte delas eram escravas e ao final do dia ou da semana teriam que pagar o jornal6. Nossa
abordagem privilegiará o perfil dos pequenos comerciantes utilizando as variáveis: gênero, condição
social e estratégias de atuação.
O pequeno comércio
A localidade escolhida para nossa pesquisa foi à freguesia de Camargos. Pertencente a Vila
de Nossa Senhora do Carmo (depois Mariana) está localizada a aproximadamente 11 km da sede do
município e fora uma das primeiras a serem fundadas na região por volta de 1698. Dentre as
freguesias que compunham o Termo de Mariana, podemos considerá-la como uma das menores,
4
Esses dados demográficos obtivemos através de uma lista de matricula de escravos dos registros de quinto do Arquivo
Histórico da Câmara de Mariana, Códice 150, do ano de 1725.
5
Ver: FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro (1790-1830) .Rio de Janeiro: Arquivo Nacional
6
REIS, Liana Maria. Mulheres de ouro: as negras de tabuleiro nas Minas Gerais do século XVIII. In: Revista do
Departamento de História. Belo Horizonte: UFMG. 1989. p. 72-85.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
170
porém, para a análise que propomos, ela possui algumas características interessantes como a
presença da atividade mineratória, agrícola7 e importante disseminação do comércio entre a
população local como podemos ver anteriormente. O quadro abaixo mostra a quantidade e os tipos
de estabelecimentos que encontramos nos registros de coimas e fianças.8
Quadro 1
CASAS COMERCIAIS EM CAMARGOS (1733-1753)
Tipo de Estabelecimento
Quantidade
Porcentagem
Venda de Molhados
110
73,8%
Loja de Fazenda Seca
32
21,5%
Casa de Corte de Gado
5
3,4%
Loja de Medicamentos
2
1,3%
149
100%
Total
Fonte: AHCMM, Registro de coimas e fianças, códices 133, 168, 172, 383, 646, 648, 649, 652 e 664.
Temos no quadro acima quatro tipos de estabelecimentos sendo dois de maior destaque, as
vendas de molhados e a loja de fazenda seca. Essas casas de comércio eram as mais presentes não
só nessa localidade como em toda Minas Gerais, sendo a venda a modalidade de comércio mais
popular, por isso a superioridade numérica em relação as lojas. Outro fator que coloca as vendas
nesse quadro em maior número que as lojas é o fato de estarem agrupadas as vendas de molhados
fixas e as volantes, mais especificamente a feita pelas negras de tabuleiro.
A diferenciação entre lojas e vendas é algo que suscita questionamentos até dias atuais.
A distinção entre essas duas categorias de casas comerciais era, em linhas gerais, a mesma
que se nota até hoje em nosso comércio, notadamente no interior. Nas lojas vendiam-se apenas
“fazendas secas”, isto é, armarinhos, tecidos, enfim artigos para indumentária utilidades domésticas,
perfumarias, etc.
Nas vendas vendiam-se quase todos os artigos que se encontravam nas lojas, e mais os
molhados, isto é, as bebidas, os comestíveis, as gulodices, etc.9
7
Na lista de dizimistas do triênio 1751-1754 encontramos 53 pagadores. Vale ressaltar que os dízimos eram pagos em cima
da produção que seria mercantilizada.
8
Tal registro foi uma maneira encontrada pelas Câmaras municipais de garantirem o pagamento de eventuais multas
provenientes de alguma irregularidade que poderiam ser acometidas por donos de lojas de fazenda seca, venda de
molhados e oficiais mecânicos. Então, se exigia um fiador que garantisse o pagamento das coimas (multas), no ato do
requerimento de licença para abertura de quaisquer estabelecimentos. As coimas e fianças recaiam necessariamente sobre
o pequeno comércio e, por isso, seu registro torna-se uma das fontes fundamentais para estudarmos tal atividade.
9
ZEMELLA, Mafalda. O abastecimento da Capitania de Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:Hucitec/Edusp USP, 1990,
p. 178
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
171
Entretanto Renato Pinto Venâncio e Junia Ferreira Furtado10 apontam a partir da analise de
inventários não haver diferença entre um estabelecimento e outro. Todavia os registros de coimas e
fiança indicam para uma distinção entre essas modalidades do pequeno comércio. Ao longo de toda
série documental deparamos com os termos “loja de fazenda seca” e “venda de molhados”, o que
demonstra a iniciativa do próprio órgão fiscalizador em evidenciar essa diferença. Há ainda casos de
um mesmo comerciante ser proprietário de uma loja de fazenda seca e de uma venda de molhados,
isto é, tinha-se uma casa de comércio para um determinado tipo de produto e outro para um outro
tipo. Como são os casos dos comerciantes Ambrosio Monteiro da Fonseca11, José Mendes Viana12,
Sebastião Barbosa da Cunha13.
As lojas de fazenda seca por comercializarem produtos mais requintados, principalmente os
vindos do reino, e por estarem em locais mais centrais do núcleo urbano14, colocava o seu dono no
topo do pequeno comércio local. Essa supremacia do dono de loja de fazenda seca pode ser sentida
na maior estabilidade que esses tinham a frente de seus estabelecimentos ao contrario dos demais
comerciantes. Em Camargos 43,8% dos lojistas permaneciam mais de 6 anos com suas casas de
comércio abertas contra 25,5% dos vendeiros. Isso acontecia devido a capacidade que estes tinham
em diversificar suas atividades o que não acontecia com os mais pobres que normalmente tinham
apenas um estabelecimento para tirar seu sustento.
(...) com poucas opções econômicas (...) faz com que o comerciante diversifique as suas atividades
como medida de precaução. Caso um negócio entre em crise pode se valer das suas aplicações nos
outros ramos do comércio, fato que lhe garante maior estabilidade (...)15
Além das casas mais comuns como lojas de fazenda seca e a venda de molhados
encontramos no pequeno comércio mineiro outros tipos de comércio. No quadro acima representados
pelas casas de corte de gado e pelas lojas de medicamentos. A casa de corte de gado seria o que
hoje entendemos por açougue, o número desses estabelecimentos aparece em pequeno número o
que pode ser explicado pela comercialização da carne nas vendas de molhados. Já as lojas de
medicamentos são estabelecimentos mais sofisticados e aparecem apenas em dois registros sendo
ao que parece alvo do mercado especulativo, ou seja, os comerciantes abriram estas lojas e ao não
ver o retorno de seu investimento logo fecharam-nas para evitar um prejuízo maior.
10
FURTADO, Junia Ferreira & VENÂNCIO, Renato Pinto. Comerciantes, tratantes e mascates. In: PRIORE, Mary Del(org.).
Revisão do Paraíso: os brasileiros e o Estado nos 500 anos de história. Rio de Janeiro, 2000, p.93-113.
11
Registro de Coimas e fiança códice 172 folha 166v
12
Registro de Coimas e fiança códice 172 folha 232
13
Registro de Coimas e fiança códice 646 folha 78v
14
FURTADO, Junia Ferreira & VENÂNCIO, Renato Pinto. Op. Cit. 103
15
FRAGOSO, J.R. Op. Cit. 326.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
172
Os pequenos comerciantes
Até aqui falamos do pequeno comércio e os diferentes tipos de estabelecimento que os
compunham. Mas quem eram esses pequenos comerciantes? A atividade comercial é ainda hoje
profusamente disseminada nos mais variados extratos da sociedade brasileira, no período colonial
não era diferente. Pessoas de todos níveis sócio-econômicos podiam se envolver com o comércio de
mercadorias, o que variava era o grau de requinte dos produtos e principalmente a quantidade. Dessa
forma homens, mulheres, livres, forros ou escravos estavam presentes nas praças de comércio em
Minas Gerais setecentista vendendo os mais variados tipos de mercadorias. Em Camargos podemos
ter uma visão de como se dividiam homens e mulheres a frente do pequeno comércio no período
estudado na tabela abaixo.
Quadro 2
Sexo dos comerciantes que registraram almotaçaria
em Camargos (1718-1754)
Sexo
Masculino
Feminino
Total
Nº de
comerciantes
155
108
263
Porcentagem
58,9
41,1
100,0
Fonte: Registro de almotaçaria, códices 175, 195, 385, 514, 682, 702.
A expressiva presença feminina no quadro acima não foi uma particularidade da praça
comercial de Camargos. A mulher ao contrario do que se pensou por longa data na historiografia
nacional _ a qual preocupou-se demasiadamente com os valores patriarcais que restringiam a mulher
à casa grande _ teve uma atuação efetiva em vários seguimentos da economia e se pode falar um
em destaque esse foi o comércio varejista.
A sociedade brasileira colonial conviveu, assim, com uma dupla realidade: ao mesmo tempo que os
valores patriarcais restringiam, ou procuravam restringir, o mundo feminino a reclusão doméstica, as
mulheres, através das atividades comerciais, conquistavam espaço público, circulando livremente pelas
ruas e caminhos.16
16
FURTADO, Júnia Ferreira & VENÂNCIO, Renato Pinto. Op. Cit. 108
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
173
Contudo os números apresentados acima referentes a participação da mulher no mercado de
Camargos nos chama a atenção ainda por se tratarem de dados acerca da primeira metade do
século XVIII período reconhecidamente de escassez desse público na Gerais. O que reafirma a
predileção das mulheres para o pequeno comércio. Mas uma pergunta nos intriga, que condições
permitiram que a mulher tivesse participação efetiva no pequeno comércio mineiro? A justificativa
geral era a de que os homens estariam ocupados em atividades que requeriam dos mesmos maior
esforço físico como os ofícios mecânicos, a lavoura, a extração mineral e o comércio de longa
distância.
Outros autores vão por outros caminhos para explicar essa presença feminina no comércio.
Luciano Figueiredo defende a idéia de que tivemos no mercado colonial brasileiro uma permanência
da estrutura de gênero do mercado português, isto acontecia da seguinte forma, os homens estavam
a frente de estabelecimentos fixos enquanto as mulheres cuidavam das vendas volantes17. Como em
Minas foi muito recorrente a presença do comércio ambulante de mercadorias logo podemos pensar
nessa associação, apesar de que, encontramos poucas mulheres livres trabalhando no comércio
como veremos mais a frente. Mari Karashi explica essa considerável participação feminina de forras e
escravas
na venda de mercadorias a tradição africana no comércio feminino. Para a autora a
escrava ao ser traficada para o Brasil trazia consigo a pratica de atuar no mercado o que era por
muitas vezes explorado por seus senhores18. Em recente visita a capital de São Tomé e Príncipe o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva fora recepcionado por mulheres que atuavam no mercado local e
que utilizavam tabuleiros para expor os produtos da região19. Ao ver a foto da recepção ao presidente
brasileiro é impressionante a semelhança entre as mulheres que o recepcionaram e as várias
iconografias coloniais a respeito das negras de tabuleiro que atuaram nas minas e no restante da
colônia
Essa permanência de certa forma ratifica a tese de Karash mostrando o alcance da
resistência dessas comerciantes em continuar mantendo a tradição de freqüência no comércio de
guloseimas.
Essa inserção da mulher no pequeno comércio, como podemos ver no gráfico na próxima
página, se deu de forma progressiva ao longo da primeira metade do século XVIII.
17
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no
século XVIII. Rio de Janeiro: José Olympo, 1993. (p.8)
18
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808- 1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.454.
19
Na reportagem do Jornal Estado de Minas do dia 27 de Julho de 2004 o jornalista Guilherme Evelin faz a seguinte
descrição dessas mulheres; “O presidente foi recebido por mulheres do mercado de São Tomé que carregavam na cabeça
tabuleiros com produtos típicos do arquipélago, como peixe-seco, banana, cacau, vinho e azeite de palma”
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
174
Quadro 3
Gráfico de variação do sexo dos comerciantes
almotaçados em Camargos (1718-1754)
100
90
Porcentagem dos registros
80
70
60
50
40
30
Qual sexo?
20
Feminino
10
0
1718-1724
Masculino
1734-1740
1741-1747
1748-1754
Fonte: AHCMM , Reg. de almotaçaria cod. 175, 195, 385, 514, 682 e 702
No compilamento dos registros de almotaçaria a supremacia dos homens é evidente. Isso
acontece pela enorme concentração de estabelecimentos comerciais sob controle dos homens até a
década de 1740, numa proporção de quatro por um. Todavia, a partir daí, como podemos averiguar
no gráfico acima, o quadro começa a reverter-se até chegar ao ponto em que as mulheres
ultrapassam os homens na quantidade de registros. Diante disso, o que se tem a destacar nestes
dados é que já na primeira metade do setecentos em Camargos o quadro já apontava para aquilo
que seria no restante do século, isto é, a predominância das mulheres no comércio. Tal ocorrência
contradiz assim, os dados apresentados por Figueiredo que mostra tanto para a Vila do Carmo como
para Vila Rica apenas para a segunda metade do século XVIII essa mudança. No gráfico de Vila Rica
e freguesias de 1746, apresentado por ele o número de homens é de 232 (62%) e de mulheres 138
(38%)20. Em Vila do Carmo ele mostra dados somente para o final do século, quando as
comerciantes ultrapassam o sexo oposto à frente dos estabelecimentos.
20
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Op. Cit. p. 56.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
175
A explicação para essa divergência quanto ao período em que as mulheres passariam a
dominar o pequeno comércio pode estar na especificidade do caso de Camargos. Contudo,
acreditamos que chegamos a esse resultado devido ao uso de diferentes fontes. Não queremos com
isso dizer que as fontes usadas pelo autor são equivocadas, porém registram apenas anos isolados.
O que desejamos enfatizar, portanto, é que os registros de coimas e fianças e as almotaçarias, por se
tratarem de instrumentos fiscais utilizados pelas Câmaras para policiar os agentes comerciais
varejistas de maneira constante, permite-nos fazer uma boa seriação dos registros na primeira
metade do XVIII, identificando mais precisamente, considerável parcela das pessoas envolvidas com
o comércio nesta localidade
Diante dos dados que mostram a predominância das mulheres na atividade comercial já na
década de 1740, uma questão surge. Luciano Figueiredo justifica o fato da supremacia feminina
alegando o seguinte:
A patente elevação do número de vendas sob o controle feminino (...), decerto resulta do ingresso de
contingentes femininos na capitania, que, mesmo em menor em relação aos homens irão ocupar
atividades subsidiárias, enquanto os seguimentos masculinos são assimilados no trabalho extrativos ou
ofícios mecânicos (...) Por outro lado, esta inversão que possibilitava um substancial aumento do
controle feminino sobre as vendas certamente guarda relações com a decadência da mineração (...) Em
decorrência disto, a maciça alforria de escravos multiplica a exploração aurífera com base na
faiscagem individual e atrai para esta atividade a população masculina 21.
A pergunta que se faz é essa: o autor menciona estas justificativas pensando Minas Gerais já
na segunda metade do século XVIII, será que elas aplicam-se ao novo quadro apresentado no gráfico
do quadro 3? Agregar a questão da decadência do ouro ao crescimento da participação da mulher no
comércio parece-nos pertinente, todavia, o caminho para esse acontecimento não pode ser pelo
aumento da faiscagem a questão se mostra mais complexa. A explicação pode estar no
deslocamento de mão-de-obra para outros ramos de atividade econômica, como a agricultura que já
na primeira metade dos setecentos estava bem disseminada por nas minas. Para o caso específico
da freguesia de Camargos22 encontramos 53 produtores rurais presentes na lista de dizimistas (17511754), desses apenas 3 eram mulheres, configurando assim uma atividade predominantemente
controlada por homens. Portanto, como temos uma crescente produção agrícola em Minas Gerais
nada mais provável seria creditarmos à agricultura a responsabilidade por boa parte do deslocamento
21
Ibidem. p. 29 e 31.
Não queremos com isso dizer que tal situação é particular de Camargos recentes trabalhos apontam para a primeira
metade do XVIII crescente produção agrária nas minas. Entre estes estão os de Carla Almeida ALMEIDA, Carla Maria
Carvalho. Capitania de Minas Gerais de 1750-1850: base da economia e tentativa de periodização. In: Revista do LPH, Nº5,
pp. 88-111, 1995, CARRARA. Ângelo Alves. Agricultura e pecuária na Capitania de Minas Gerais (1674-1807). Tese de
Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. Rio de Janeiro, 1997. GUIMARÃES,
Carlos Magno & REIS, Liana Maria. Agricultura e escravidão em Minas Gerais (1700/1750). Revista do departamento de
História da UFMG. Belo Horizonte, 1986.
22
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
176
da população masculina. Atividade essa na qual a economia mineira iria posteriormente se alicerçar.
A condição social dos comerciantes em Camargos (1718-1755)
A participação de livres, forros e escravos à frente do pequeno comércio mineiro se deu de
forma sistemática. A presença de membros destes seguimentos sociais comercializando em Minas
Gerais vem desde os primórdios da ocupação. A divisão social do trabalho desenvolvida na atividade
comercial dos núcleos urbanos mineiros contribuiu para que tal fato ocorresse. Tal divisão dava-se da
seguinte maneira: as lojas de fazenda seca, geralmente tinham como proprietários, portugueses ou
luso-brasileiros; já o elemento forro aparece como dono de vendas de molhados e responsável pelo
comércio ambulante; e o escravo comercializando pelas ruas, guloseimas variadas23.
No quadro 9 podemos ver como se deu tal divisão no pequeno comércio em Camargos. Com
relação aos dados expostos nesta tabela, fazemos as seguintes ressalvas: o número de forros
apresentado aí encontra-se subestimado. Isso acontece devido à falta de informações sobre a
condição social em alguns registros consultados. Mesmo fazendo o cruzamento dos nomes e
condição social em fontes diferentes_ o que ajudou a identificar a condição social de vários
comerciantes _ é evidente que não conseguimos identificar a de todos. O mesmo problema
encontramos com o número de livres, só que dessa vez, ao contrário dos forros, estes aparecem
mais numerosos do que o real. Contudo, tal ocorrência não prejudica a nossa análise, pois,
acreditamos que diminuímos bem essa margem de erro ao utilizarmos o método de cruzamento de
dados com outras fontes.
Quadro 4
Condição social dos comerciantes almotaçados em Camargos
(1718-1755)
Condição
social
Livre
Forro
Escravo
Total
NC
Total
Nº de
comerciantes
171
48
41
260
3
263
Porcentagem
65,0
18,3
15,6
98,9
1,1
100,0
Porcentagem
válida
65,8
18,5
15,8
100,0
Fonte: Registro de almotaçaria, códices 175, 195, 385, 514, 682, 702.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
177
A prova de que a deturpação dos números não é tão grande quanto parece fica clara se
compararmos a tabela acima com a do quadro 7. Isso porque, como veremos mais à frente quando
trataremos da relação sexo e condição social, um guarda relações com o outro, ou seja, de forma
geral o homem que trabalha no comércio é o livre e a mulher, a forra ou escrava. No quadro abaixo
poderemos ver isso mais claramente.
Quadro 5
Gráfico de variação da condição social dos comerciantes nos
registros de almotaçarias em Camargos (1718-1754)
100
90
Porcentagem dos registros
80
70
60
50
Qual condição social
40
30
Escravo
20
Forro
10
Livre
0
1718-1724
1734-1740
1741-1747
1748-1754
Fonte: AHCMM, Registro de coimas e frianças códices 133, 168, 172, 383 e
646, 648, 649, 652 e 664
As informações essenciais que podemos extrair nesse quadro não estão somente na
substancial presença de forros e escravos trabalhando no pequeno comércio mineiro, e sim na
interessante relação que esse mantém com os dados do quadro 3. Comparando os gráficos dos
quadros 3 e 5 podemos notar relativa semelhança nas variações do sexo e condição social dos
comerciantes. À medida que aumenta a participação das mulheres, na década de 40 do setecentos,
aumenta juntamente o número de forros e escravos.
23
Essa divisão segue em linhas gerais as definições feitas de cada seguimento social por FIGUEIREDO, Luciano Raposo
de Almeida. Op. cit.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
178
Cruzando essas duas informações como fizemos no quadro 6 fica mais claro como funcionou
essa relação. Os livres com quase 93% de comerciantes masculinos, representam quase a totalidade
desse seguimento social. Já os comerciantes escravos e livres são em 74,3% dos registros
compostos por mulheres24. Os homens forros e escravos, como podemos notar, não chegam a ter
uma participação efetiva enquanto agentes do comércio de pequeno porte, constituindo menos de 8%
do total de homens. No caso destes, a exposição a serviços que exigiam maior esforço físico
(mineração, lavoura, ofícios mecânicos, etc) no cativeiro era o mais comum. E depois de libertos
acabariam por continuar neste mesmo tipo de trabalho. As mulheres livres, por sua vez, ao fazerem
parte de uma reduzida parcela da população mineira, tinham sua participação no pequeno comércio
limitada.
QUADRO 6
Condição social dos homens e mulheres que registraram almotaçaria em Camargos (1718-1755)
Condição
social
Livre
Forro
Escravo
Total
NC
144
6
5
155
Sexo dos comerciantes
Masculino
Feminino
PL
PC
NC
PL
84,2%
92,9%
27
15,8%
12,5%
3,9%
42
87,5%
12,2%
3,2%
36
87,8%
59,6% 100,0%
105
40,4%
Total
PC
25,7%
40,0%
34,3%
100,0%
NC
171
48
41
260
PL
100,0%
100,0%
100,0%
100,0%
PC
65,8%
18,5%
15,8%
100,0%
Fonte: Registro de almotaçaria, códices 175, 195, 385, 514, 682, 702.
(NC) – Número de comerciantes.
(PC) – Porcentagem da condição social por sexo dos comerciantes (a leitura deve ser feita verticalmente)
(PL) – Porcentagem de sexo por condição social dos comerciantes (a leitura deve ser feita horizontalmente)
24
Esse número como dissemos anteriormente está com leve distorção. No caso das forras a porcentagem é maior do que
esta apresentada. Podemos comprovar isso quando fizemos o mesmo cruzamento só que utilizando dos Registros de
Coimas e Fianças. O número de mulheres forras e escravas neste registro é superior a 80%.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
179
A estrita relação entre as áreas de atuação no pequeno comércio com a condição social e
o sexo é o dado mais evidente que encontramos na analise da documentação consultada. Nos
registros de coimas e fianças, das 32 lojas de fazenda seca que encontramos, em nenhuma delas
o proprietário é do sexo feminino. Forros e escravos também em nenhum caso aparecem no
controle deste tipo de estabelecimento comercial. Isso se deu por se tratarem de casas comerciais
mais requintadas, o maior poder aquisitivo do proprietário da loja era evidente, ou seja, estas
casas de comércio estavam nas mãos dos mais abastados comerciantes locais, portugueses ou
luso-brasileiros. Mulheres, forros e escravos, por sua vez, terminavam por serem empurrados para
a venda de molhados, primeiro pelo restrito campo de trabalho nos centros urbanos e depois pelo
grau de pobreza destas pessoas, o único investimento ao alcance do seu nível econômico era tal
comércio1.
Todavia, o mais interessante da disseminação da atividade comercial entre todos os
seguimentos sociais em Minas Gerais foi a estratégia destes grupos no que tange aos seus
respectivos objetivos. Peguemos o exemplo das escravas comerciantes. A princípio estas
mulheres são colocadas nas ruas por seus proprietários, como forma de complementarem suas
rendas.2
Verdadeira multidão de negras e mulatas, escravas e fôrras, percorriam com seus
tabuleiros os morros e margens de rios onde se promovia a extração do metal aurífero,
incitando os negros a gastar em quitutes o que não lhes pertencia.3
Dessa forma, ao desviarem os jornais dos escravos mineradores através da venda de
comestíveis e bebidas diversas, essas mulheres conseguiam pagar suas jornadas de trabalho ao
mesmo tempo em que acumulavam excedentes para uma eventual compra de sua alforria e de
parentes próximos (filhos, cônjuges, afilhados, etc)4. No caso da população forra a compra da
alforria de entes queridos era também uma das prioridades, porém a questão da ascensão social
esteve muito presente neste grupo. O comércio era no período o meio de acumulação mais
próximo à precária situação financeira da população forra na colônia, uma vez que, não requeria
grandes investimentos5. Já os livres (e conseqüentemente homens) utilizavam estratégias
diferenciadas, pois, tratava-se de um grupo mais heterogêneo, principalmente do ponto de vista
econômico. Os livres pobres tinham um comportamento similar aos forros no que se refere à
1
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Op. cit p. 16.
Estes são os conhecidos escravos de ganho, mais informações sobre este grupo ler, ALGRANTI, Leila M. O feitor
ausente. Petrópolis: Vozes, 1988.
3
ZEMELLA, Mafalda. O abastecimento da capitania das Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: USP, 1951. p. 179.
4
A prostituição foi um outro meio muito utilizado pelas negras de tabuleiro para desviarem os jornais na região de
extração. Mais informações sobre o tema ler FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Op. cit.
5
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1998. p. 113.
2
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
180
ascensão social. Porém os livres mais abastados tinham no pequeno comércio mais um recurso
para fazerem aumentar seus respectivos patrimônios.
(...) o mercado colonial sempre esteve sujeito às bruscas flutuações direcionando o
pequeno investidor a estar mudando de ramo através da busca de lucros. O grande
investidor também seguia o mesmo caminho, porém sempre buscando investimentos
seguros, pois, ao contrario do pequeno eles tinham muito a perder6.
Dessa forma, a loja não significava o único meio desses comerciantes de agirem no
mercado colonial e sim um entre vários. Assim sendo, para os comerciantes que tinham um pouco
mais de capital para investir, abriam-se as portas para oportunidades de lucros em outros ramos
de atividade econômica.
Diversidade de atividades dos pequenos comerciantes em Camargos (1718-1755)
Seguindo com a construção do perfil do pequeno comerciante enfatizaremos a partir de
agora, a forma de atuação destes, em diferentes ramos de atividade econômica. Tal diversidade,
como destacamos anteriormente, foi um meio muito utilizado pelos comerciantes coloniais. Isso
acontecia principalmente pela restrição de oportunidades que oferecia a economia colonial,
fazendo com que o agente comercial procura-se aplicar seu capital de forma diversificada
reduzindo assim o risco de falir7. Contrariando Braudel que afirma:
São os ofícios, os lojistas e mesmo os vendedores ambulantes que se especializam, são o alto da
pirâmide (...) o comerciante de grande envergadura nunca se limita, por assim dizer, a uma
atividade única8.
Trabalharemos nesse tópico com a idéia de que tal estratégia de ação atingiu a todos os
níveis de comerciantes, tudo bem que em menor grau no caso dos comerciantes da base. Esses
agentes devido à situação financeira desfavorável em relação aos grandes homens de negócio
diversificavam em áreas bem próximas a sua principal atividade, por exemplo, dono de loja de loja
de fazenda seca que atua no ramo de venda de molhados.
A partir da análise e cruzamento dos dados de nossas fontes podemos notar que donos de
venda de molhados e loja de fazenda seca de Camargos tiveram uma atuação bem variada.
Através dos registros de almotaçaria, coimas e fianças e dos dízimos, podemos identificar quatro
áreas de ação dos agentes comerciais dessa localidade: a venda de molhados, a loja de fazenda
6
FRAGOSO, João L. R. & FLORENTINO, Manolo Garcia. Op. cit. p. 194.
FRAGOSO, João Luís R. Op. cit. p.326.
8
BRAUDEL, Fernand. Os jogos das trocas: civilização matéria, e capitalismo, séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins
Fontes, 1996. Apud: FRAGOSO, João Luís R. Op. cit p. 325.
7
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
181
seca, os ofícios mecânicos e a produção rural. Nesta exposição vamos dividir estes comerciantes
em quatro grupos: os primeiros são dos donos de vendas de molhados e loja de fazenda seca, o
segundo são dos oficiais mecânicos e donos de lojas ou vendas de molhados, o terceiro dos
produtores rurais e donos de venda de molhados e por fim, os que exerceram mais de duas
atividades econômicas.
Nos registros de coimas e fianças há uma tendência de diferenciação do local de
comercialização de molhados e de secos9. Com isso as pessoas que optassem pela venda dos
dois tipos de mercadorias necessariamente deveriam abrir dois estabelecimentos distintos. A
seguir a lista de nomes de comerciantes ilustra a quantidade de pessoas as quais foram
proprietárias de venda de molhados e loja de fazenda seca simultaneamente.
Quadro 7
Identificação dos comerciantes proprietários de lojas de fazendas secas e vendas de
molhados em Camargos (1733-1753)
Ambrózio Monteiro da Fonseca
Antônio da Rocha Correia
Antônio Dias de Meireles
Antônio Francisco de Almeida
Antônio Vicente de Almeida
Bernardo Gonçalves de Almeida
Francisco Moreira da Costa
Gabriel de Souza Brito
João Ferreira Braga
João Vieira Lima
José do Couto Cruz
José do Vale Cunha
José Mendes Viana
Manoel da Costa Gião
Manoel Moreira da Costa
Manoel Pereira Braga
Manoel Ribeiro de São Francisco
Sebastião Barbosa da Cunha
FONTE: AHCMM, Registro de coimas e fianças, códices 133, 168, 172, 383, 646, 648, 649, 652 e 664
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
182
Temos, portanto, em Camargos 18 comerciantes que se dedicavam simultaneamente ao
duplo comércio. Comparando este número com o total de agentes comerciais identificados nos
registros de coimas e fianças (175), chegamos a aproximadamente 10% de indivíduos que
buscaram diversificar suas atividades comercializando secos e molhados. Esse número
demonstra que ter dois estabelecimentos funcionando ao mesmo tempo era algo corrente nesta
praça. Para manterem os dois comércios funcionando ao mesmo tempo, esses comerciantes
colocavam pessoas de sua confiança (como parentes próximos, escravos, etc), à frente dos de
menor porte, enquanto se dedicavam com maior ímpeto no mais rendoso, aqui a loja de fazenda
seca. No caso de Camargos, devido a suas reduzidas extensões territoriais, esse controle devia
ser feito bem de perto pelos donos dos estabelecimentos. Vale ressaltar que em alguns casos
listados acima, a venda de molhados também é feita de forma volante por uma escrava de ganho
(negra de tabuleiro)10.
Um outro grupo de comerciantes que atuaram de maneira diversificada foram os oficiais
mecânicos. O ramo comercial para estes apresentava-se como mais um recurso de acumulação
de riqueza, ou seja, o ofício era sua principal ocupação sendo as demais atividades
complementares11. A pequena atividade comercial dos artesãos muitas vezes acontecia no próprio
ambiente de confecção de suas peças, como são os casos dos alfaiates e sapateiros. Os alfaiates
donos de lojas de fazenda seca, além de confeccionarem as roupas sob encomenda, vendiam
também em seus estabelecimentos roupas prontas, tecidos e materiais de armarinho em geral.
Os artesãos, desse modo, puderam escolher, num dado conjunto de alternativas, entre
aquelas opções de emprego de mão de obra e capital que facultavam a utilização das
próprias capacidades profissionais, elegendo como raio de ação, por vezes, os círculos de
acumulação afim12.
Nos registros de coimas e fianças de Camargos encontramos apenas os alfaiates
enquadrados nessa perspectiva de ação do oficial mecânico, resultando num total de 11 oficiais
donos de lojas de fazenda seca.
Por outro lado, temos nos mesmos registros vendas de molhados sob propriedade de
artesãos. Porém essas casas de comércio estão disseminadas em mais de um seguimento de
oficiais como podemos ver no quadro abaixo.
9
Ver páginas 35-36 capitulo 1.
REIS, Liana Maria. Mulheres de ouro: as negras de tabuleiro nas Minas Gerais do século XVIII. Revista do
departamento de História. Belo Horizonte: UFMG. 1989. p. 78.
11
BARRETO, Daniela Santos. A qualidade do artesão: contribuição ao estudo da estrutura social e mercado interno na
cidade do Rio de Janeiro, c.1690-c. 1750. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em
História Social da UFRJ. Rio de Janeiro, 2002, p. 106.
12
Ibidem. p. 106.
10
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
183
Quadro 8
Oficiais donos de venda de molhados em Camargos (1733-1753)
Ofício
Nº de comerciantes
Porcentagem
Alfaiate
9
60%
Ferrador
4
26,7%
Sapateiro
2
13,3%
Total
15
100%
FONTE: AHCMM, Registro de coimas e fianças, códices 133, 168, 172, 383, 646, 648, 649, 652 e 664
Os alfaiates mais uma vez apresentam com destaque, mostrando uma estratégia deste
grupo de profissionais quanto à diversidade de atividades. Dos 22 alfaiates que encontramos na
documentação 13 (59%), ou são donos de venda de molhados ou de loja de fazenda seca. Esse
número é bem acima da média dos oficiais comerciantes, pois, dos 61 artesãos localizados temos
19 (31,1%) à frente de casas comerciais. Os ferradores13também aparecem com destacadamente
envolvidos com o pequeno comércio. Quanto ao último grupo de oficiais presente nesta tabela, os
sapateiros, a sua representação em apenas dois casos nos leva a concluir que este grupo de
oficiais presente num total de 7 registros, caracterizava-se por uma ação mais conservadora ou
com menor capacidade de acumulação. Ação essa que predominou em boa parte dos artesãos de
Camargos.
Os produtores rurais ligados à atividade comercial formam o terceiro conjunto de
comerciantes coloniais que enfatizamos em nossa pesquisa. Essas duas atividades foram desde
os primórdios da ocupação mineira interligadas.
A mineração definiu a forma de povoamento e colonização criando espaços desde o início para um
grande fluxo de mercadores em Minas. Estes mercadores, por sua vez, criaram rapidamente
condições para o abastecimento do comércio fixo, dada sua vinculação com a produção agrícola14.
A forte ligação que se deu em Minas Gerais entre a produção rural e o pequeno comércio
local esteve na necessidade dos agricultores em mercantilizar suas produções ou parte delas.
13
Ibidem. p. 48. Os ferradores eram oficiais responsáveis pela fabricação e colocação de ferraduras para a montaria de
tiro e de carga.
14
CHAVES, Claúdia Maria das Graças. Perfeitos negociantes: mercadores da Minas setecentista. São Paulo:
Annablume, 1999. p. 40.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
184
Dessa forma, em Camargos encontramos na lista dos dizimistas no triênio 1751-1754, 17 (34%)
produtores rurais dos 50 presentes, aparecendo nos registros de almotaçaria e nas coimas e
fianças, como comerciantes. Esses agentes eram, na maioria, donos de venda de molhados e
usavam este espaço provavelmente para negociarem suas produções. Aqui, mais uma vez, temos
a presença do escravo auxiliando esses indivíduos na comercialização dos produtos, seja na
venda fixa ou volante de mercadorias produzidas nas suas roças. Como exemplos destes
comerciantes proprietários rurais podemos citar Amaro Pires, José do Rêgo Nunes e Manoel de
Meireles.
O último grupo que vamos destacar é o dos comerciantes que atuavam em mais de duas
atividades simultaneamente. Como destacamos no início desse tópico, no mercado colonial havia
um reduzido raio de ação para que o pequeno empreendedor agisse, o que ocasionou a
diversidade de ação destes agentes. Assim sendo, os mais variados indivíduos, provenientes de
distintos ramos profissionais, embarcaram no ramo comercial.
A percepção de que lavradores de cana, advogados, médicos, artesãos, enfim, os mais diversos
tipos de profissionais desenvolveram (...) também o comércio, mostra que essa não era uma via de
ascensão social somente de portugueses pobres (...) mas também para muitos já aqui
estabelecidos e que também buscavam ascender ou ao menos, sustentar um status já adquirido15.
Alguns grupos, ao que nos parece, utilizaram-se da diversidade como um meio de agir
dentro do mercado colonial. Em Camargos temos uma considerável quantidade deste tipo de
agente comercial. Antônio Francisco de Almeida16 por exemplo acumula o ofício de alfaiate, dono
de uma loja de fazenda seca e ainda uma venda de molhados. Similares a este exemplo são os
casos de Antônio Vicente de Almeida, Bernardo Gonçalves Chaves, João Ferreira Braga, José do
Couto Cruz e Manoel da Costa Gião17. Mais uma vez o grupo dos alfaiates destaca-se pela
semelhança em suas estratégias. Evidenciando assim uma ação coletiva de uma elite local, em
busca de mecanismos de manutenção de sua hegemonia.
Os comerciantes ligados ao campo também procuraram diversificar ao máximo suas
atividades como são os casos de Francisco Moreira da Costa, José do Vale Cunha, Manoel
Ribeiro de São Francisco e Sebastião Barbosa da Cunha18. Estes indivíduos dedicavam-se a
produção agrícola, a venda de molhados e a loja de fazenda seca. Houve também oficiais
mecânicos que eram produtores agropecuários e ainda tinham venda de molhados, como é o
15
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. op. cit. p. 253.
Fontes: AHCMM, Registro de coimas e fianças e Registro de Almotaçaria.
17
Fontes: AHCMM, Registro de coimas e fianças e Registro de Almotaçaria.
18
Fontes: AHCMM, Registro de coimas e fianças e Registro de Almotaçaria. APM. Lista dos dizimistas.
16
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
185
exemplo do sapateiro Francisco Monteiro da Silva19.
Em suma, o que vislumbramos neste tópico foi uma eminente diversificação de atividades
por parte dos pequenos comerciantes de Camargos. O que demonstra que a capacidade de
diversificar não era uma exclusividade dos comerciantes de grosso trato. Os exemplos aqui
apresentados indicam que, sempre que surgia a oportunidade de expandir seus negócios, esses
agentes comerciais o faziam, mesmo que atuando em um raio menor.
Quanto às áreas de atuação destes homens aqui apresentadas, são apenas aquelas que
conseguimos identificar em nossas fontes. Outras áreas de diversificação de suas atividades
poderão ser encontradas na medida em que novas fontes forem incorporadas à pesquisa. Uma
série de outras questões, relacionadas à atuação destes agentes, também só poderão ser
respondidas com a pesquisa em novas fontes. Permanecem como indagações: o peso que cada
uma das atividades desenvolvidas possuía na formação do patrimônio desses indivíduos; as redes
de relações que esses comerciantes estabeleceram na base do pequeno comércio; se o
comportamento de investir os capitais adquiridos no comércio em bens agrários, como Fragoso e
Florentino demonstraram para os homens de grosso trato20, também esteve presente entre estes
pequenos comerciantes21.
Flávio Rocha Puff é Mestrando em História da Universidade Federal de Juiz de
Fora.
19
Fontes: AHCMM, Registro de coimas e fianças e Registro de Almotaçaria. APM. Lista dos dizimistas.
FRAGOSO, João L. R. & FLORENTINO, Manolo Garcia. Op. cit
21
Pretendemos esclarecer estas nossas indagações na pesquisa que desenvolvemos atualmente junto ao Programa de
Pós-Graduação em História, Cultura e Poder da UFJF. A documentação que nos auxiliará nessa tarefa são os
inventários post-morten, os processos matrimoniais, dentre outras.
20
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
186
Iniciação Científica:
PRODUTORES DE ALIMENTO EM UMA ECONOMIA
AGROEXPORTADORA
Os camponeses e suas estratégias de sobrevivência
(1870-1888)
Ana Paula Pereira Costa
Resumo:
O presente artigo procura analisar os
camponeses da Zona da Mata Mineira e as
estratégias de sobrevivência adotadas por este
grupo. É dada especial atenção às seguintes
questões: acesso à terra, organização da força de
trabalho e relações de solidariedade.
Palavras-chave:
1. Camponês; 2. Estratégias de sobrevivência; 3.
Relações de solidariedade.
Abstract:
This article intends to analyze the peasants in the
Zona da Mata Mineira and the strategies of
survival adopted by this group. We took a special
attention to the following questions: access to the
land, organization of the force of labour and
solidarity relations.
Key-words:
1. Peasants; 2. Strategies of survival; 3. Solidarity
relations.
Introdução
Estudos referentes ao campesinato brasileiro, até a década de 70, eram quase
inexistentes quando o recorte cronológico se referia ao período imperial do Brasil. Esta camada
intermediária, componente da massa denominada “homens livres pobres”, era posta à margem
nas obras acadêmicas que privilegiavam estudos envolvendo os grandes fazendeiros e escravos,
excluindo o camponês por este estar vinculado à produção de alimentos e não à agroexportação,
ficando fora do processo produtivo deste período.
Entretanto, a partir de meados da década de 70, vem ganhando novas nuances estudos
envolvendo o grupo do campesinato, devido ao contato da historiografia brasileira com as
inovações metodológicas pelas quais passou a disciplina “História” na Europa. Estamos nos
referindo grosso modo à pulverização temática, à interdisciplinariedade, sobretudo com a
antropologia, ao destaque da “história vista de baixo”, entre outros.1
1
Ver neste sentido a renovação historiográfica produzida pela “escola dos Annales” e pela “História Social Inglesa”.
CARDOSO, Ciro F. & VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro:
Campus, 1997. BURKE, Peter. A revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989). São Paulo:
UNESP, 1994. Ver também: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. São Paulo: UNESP, 1992.
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
187
Nesta perspectiva, o presente artigo pretende abordar o campesinato da Zona da Mata
Mineira (englobando as regiões de Juiz de Fora, Rosário, São José do Rio Preto, Chapéu Duvas,
São Francisco de Paula e Santana do Deserto) procurando observar as estratégias de
sobrevivência do grupo em questão, frente à lógica econômica do período que o excluía do
processo produtivo dominante, uma vez que, tal localidade é caracterizada pela produção cafeeira
baseada na média e grande propriedade.
Assim sendo, faz-se necessário uma melhor definição do nosso objeto de estudo.
Adotamos a concepção de camponês desenvolvida por Sônia Souza em sua dissertação de
mestrado2 que o define a partir das proposições de Ciro Cardoso e Hebe Mattos3. Neste sentido,
camponês é aqui entendido como componente da camada intermediária escravista, vinculado ao
meio rural através da posse de terras, voltado para a produção de alimentos, fazendo uso de mãode-obra familiar, mas, podendo eventualmente utilizar o trabalho cativo (não extrapolando o
número de 5 escravos). Em certos momentos, podia ter algum vínculo com o mercado local a
partir da comercialização de alguns excedentes havendo, em algumas propriedades, uma
diversificação produtiva que lhe concedia uma certa autonomia frente aos grandes latifundiários.
A escolha do marco cronológico (1870-1888), deve-se ao fato de ser este o período de
auge da economia cafeeira na região, ficando desta forma mais explícitas as estratégias de
sobrevivência adotadas por este campesinato. Dentre estas, enfatizaremos a questão da terra, a
organização da força de trabalho, bem como as relações de solidariedade exercidas entre os
membros do grupo, na medida em que tais fatores foram de suma importância para a
sobrevivência (tanto material, quanto moral) do mesmo.
Utilizaremos como fontes primárias inventários post-mortem, documentação valiosa por
sua riqueza de informações, que nos permitem reconstituir parte da lógica sócio-econômica do
período e região a serem estudados. Além disso, utilizaremos fontes secundárias referentes ao
tema abordado, que nos proporcionarão argumentos para discutir o problema proposto, qual seja,
as estratégias de sobrevivência adotadas pelo campesinato da Zona da Mata Mineira no final do
2
SOUZA, Sônia M. de. Além dos cafezais: produção de alimentos e mercado interno em uma economia
agroexportadora – Juiz de Fora na segunda metade do século XIX. Dissertação de Mestrado. Niterói:
UFF,1998.
3
Para Ciro Camponês pode ser definido a partir do acesso à terra, do trabalho predominantemente familiar (o que não
exclui o uso de uma força de trabalho adicional), e de uma economia de subsistência (em que se produz para consumo
próprio mas também se comercializa o excedente). CARDOSO, Ciro. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro
nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987. Já Hebe Mattos, além das características citadas anteriormente, frisa que,
no caso brasileiro, o cativo poderia ser adicionado como complemento à mão-de-obra familiar, elemento que, somado a
fronteira aberta, teria criado uma estabilidade para este pequeno produtor. CASTRO, Hebe. Trabalho familiar e
escravidão: um ensaio de interpretação a partir de inventários post-mortem. apud. SOUZA, Sônia. op. cit., p.82.
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188
século XIX, frente a uma lógica que o excluía da atividade produtiva dominante.
1. O contexto sócio-econômico
A segunda metade do século XIX, no Brasil, foi marcada por transformações que se
iniciaram em 1850 com a elaboração da Lei de Terras e com o fim do tráfico internacional de
escravos. A implementação de tais inovações, coincidiu com o surgimento de Juiz de Fora,
município com papel significativo no contexto da região da Zona da Mata, levando a sociedade
local e também das demais regiões pertencentes ao termo de Juiz de Fora, a procurar formas
alternativas para enfrentar as dificuldades eminentes4.
Neste mesmo período, com o fim do tráfico negreiro, um lento e gradual processo de
abolição começava a se delinear através de sucessivas leis que, cada vez mais, dificultavam a
utilização de mão-de-obra negra principalmente onde ela se fazia mais necessária: nas fazendas
de café. Desta forma, os cafeicultores locais, inseridos num momento de crise da força do trabalho
escravo, recorrem ao tráfico interno de cativos para solucionar este problema.
Cidade nascida às margens do Caminho Novo, Juiz de Fora, bem como as demais
localidades pertencentes a seu termo, concentrou em seus domínios, a partir da segunda metade
do século XIX, uma dinâmica economia cafeicultora sustentada pela grande e média propriedade
escravista, estando seu desenvolvimento relacionado diretamente com o bom desempenho da
produção cafeeira. Com os excedentes econômicos gerados pelo café, desenvolveu-se na região
melhorias de caráter estrutural – telefone (1883), telégrafo (1884), água encanada e sistema de
esgoto (1885), iluminação pública utilizando energia elétrica (1889) e setor financeiro organizado
(década de 1880) – que possibilitaram uma rápida urbanização da cidade5.
Com relação aos pequenos produtores, as alternativas a que recorreram para se adaptar
às transformações que estavam ocorrendo (como a Lei de Terras, que procurava dificultar-lhes o
acesso à mesma, ao acabar com o regime de posse) são um pouco mais complexas e analisá-las
será o objetivo do presente artigo.
4
SOUZA, Sônia. op. cit., p. 83.
PIRES, Anderson J. Capital agrário, investimentos e crise na cafeicultura de Juiz de Fora (1870-1930). Dissertação de
mestrado. Niterói: UFF, 1993. p.113.
5
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
189
2. Referenciais teóricos
A fim de analisarmos as estratégias de sobrevivência do campesinato presente na Zona da
Mata Mineira em meados dos oitocentos, acreditamos ser relevante lançarmos mão de obras de
autores consagrados da historiografia internacional. Estamos nos referindo mais precisamente às
obras de Giovanni Levi6, Emmanuel Le Roy Ladurie7 e Karl Polanyi8que, não obstante a distância
temporal e geográfica, oferecem importantes contribuições para comparações, não de contextos,
mas para observarmos se conceitos por eles utilizados são aplicáveis na identificação das
estratégias de sobrevivência adotadas pelos camponeses locais no período delimitado.
Em estudo clássico, Karl Polanyi analisou os efeitos da economia de mercado mundial e
suas implicações nas relações sociais humanas. Para tanto, se voltou para as sociedades précapitalistas procurando entender como eram geridas as relações sócio-econômicas até a
consolidação do capitalismo, e quais foram as modificações que acarretaram a hegemonia do
mercado na gestão econômica. K. Polanyi percebeu que nas sociedades pré-capitalistas a
economia dos homens era submersa em suas relações sociais, não sendo a motivação
econômica engendrada pelo lucro, mas sim pelo contexto social. Para fundamentar tal teoria, o
autor utilizou três conceitos: o da reciprocidade, o da redistribuição e o da domesticidade; o
primeiro atuando mais em relação à família e parentesco, auxiliando a salvaguardar tanto a
produção quanto a subsistência familiar. Já o segundo trata da distribuição por um chefe de toda a
produção da região, e o terceiro se refere à produção para o uso próprio e seu padrão trata do
grupo fechado onde não há motivação de lucro.
Dentro dessa estrutura, a produção ordenada e a distribuição dos bens era assegurada
através de uma grande variedade de motivações individuais, disciplinadas por princípios de
comportamentos. Entre estas motivações o lucro não ocupava um papel preponderante; os
costumes, a lei, a religião levavam o indivíduo a estabelecer regras de comportamento, as quais
garantiam o funcionamento do sistema econômico 9.
Outro trabalho utilizado como aporte teórico é o de Emmanuel Le Roy Ladurie, que versa
acerca de uma aldeia do século XIV denominada Montaillou, localizada no sudoeste da França, na
região montanhosa dos Pirineus. Entre 1294-1320, os moradores desta aldeia tiveram suas vidas
transformadas pela Inquisição que, na busca de hereges cátaros, desentranhou longas e
6
LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000.
7
LADURIE, E. L. R. Montaillou: povoado occitânico (1294-1324). São Paulo: Cia das Letras, 1997.
8
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. RJ: Campus, 2000.
9
POLANYI, K. Op. cit., p.62-75.
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190
detalhadas confissões de seus habitantes. O autor, através de documentação inquisitorial,
procurou reconstituir o cotidiano de Montaillou, constatando que a unidade básica de tal aldeia era
a domus (grupo doméstico de co-residentes, que organizavam em sua dependência e com outras
domus diversos dados, tais como: o fogo de cozinha, os bens e as terras, os filhos, as alianças
conjugais, de parentela, vizinhança, conveniência, e amizade). De acordo com E.Ladurie, tal
unidade seria um reservatório de contrapoder ante a dominação exterior (senhorio e dominação
política), estando economicamente comprometida nas relações mais naturais que monetárias que
estabelecem com outras domus e com outras unidades econômicas: essas implicavam atos de
reciprocidade e de simetria (transumância, troca, uso de objetos de trabalho alheio, entre outros),
atos de redistribuição e de retirada autoritária do excedente agrícola em favor do centro políticoreligioso – dízimos. Portanto, em Montaillou, o excesso de trabalho não existia já que o objetivo
não era acumular, uma vez que não havia nesta aldeia a separação do trabalhador dos meios de
produção. Os homens possuíam além de seu habitat, um pedaço de terra e os pastores alguns
carneiros sendo capazes assim de prover seu próprio sustento. E. Ladurie conclui que em
Montaillou os valores partilhados entre os membros da comunidade eram os da domus (com sua
liberdade de costumes, preocupação amorosa com mulher, marido e filhos, com a morte e com a
salvação), os valores da não acumulação e da vizinhança 10.
Além destes estudos citados, utilizaremos a obra de Giovanni Levi sobre o mercado de
terras da região de Santena no século XVII, uma pequena localidade do Piemonte, onde autor
procurou reconstituir o cotidiano do mundo camponês, suas relações familiares, bem como as
estratégias desenvolvidas pelos habitantes locais frente as incertezas e as crises por eles
enfrentadas. Ao analisar o mercado de terras dessa região, G. Levi constatou que as transações
estavam submetidas às regras de reciprocidade - tendo as relações sociais e de parentesco um
peso significativo na definição dos preços. O autor analisa esta sociedade camponesa sob a ótica
da transformação, na qual a insegurança era fato presente, levando os habitantes
a
desenvolverem estratégias que lhes permitissem uma adaptação 11.
Dentro destas perspectivas, entendemos que a abordagem deste autores na compreensão
das sociedades por eles analisadas serão pertinentes para compreendermos o funcionamento da
sociedade presente na Zona da Mata Mineira de meados do século XIX. Acreditamos que no
universo em questão, predominava a lógica das sociedades de Antigo Regime na qual haveria
uma não desvinculação das instâncias do real sendo os âmbitos político, econômico, social e
cultural intimamente ligados.
10
11
LADURIE, E. Op. cit., p. 498-502.
LEVI, G. Op. cit., passim.
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191
3. Os camponeses e suas estratégias de sobrevivência
De acordo com o estado atual das pesquisas, sabemos que, na economia da Zona da
Mata mineira pautada na agroexportação, as grandes e médias propriedades eram
preponderantes, e com isso, os pequenos proprietários poderiam ficar à mercê destes grandes
fazendeiros. Contudo, estes camponeses lançaram mão de estratégias que lhes possibilitaram
conseguir uma certa autonomia. Avaliar como se constituíam tais estratégias e como estas lhes
atestaram uma menor dependência no referido contexto será um dos nossos objetivos daqui em
diante. Dentre estas estratégias, o acesso à terra, a utilização de uma força de trabalho, a familiar
e eventualmente a cativa, bem como as relações de solidariedade estabelecida entre os membros
do grupo, serão privilegiadas.
3.1. A questão da terra
A partir de 1850, com a aprovação da Lei de Terras, o acesso à uma parcela desta tornou-se
mais difícil, pois só seriam consideradas legais a partir de então, as propriedades adquiridas
através da compra. A obrigatoriedade de apresentar título de compra do terreno ocupado, fez com
que aqueles que possuíam algum recurso se adaptassem à nova situação direcionando seus
investimentos na aquisição de terras. Desta forma, ela passava a incorporar uma dupla
importância: atuava como fator de reprodução da economia camponesa e como reserva de valor,
podendo ser vendida ou hipotecada em caso de dificuldade12 .
Para muitos autores a terra tem papel fundamental na formação de um campesinato. Giovanni
Levi por exemplo, vê no acúmulo de propriedade agrária uma estratégia que garantia a
sobrevivência do campesinato piemontês no século XVII, onde todo o excedente da produção era
direcionado para a compra da mesma, pelo fato desta satisfazer as necessidade materiais básicas
do grupo em questão13.
Em concordância com G. Levi, acreditamos que o acesso à pequenas propriedades
significava a sobrevivência e a manutenção de uma certa autonomia do campesinato local, isto é,
sua não sujeição ao trabalho nas lavouras de café, uma vez que percebemos em todos
inventários post-mortem analisados, a presença de um mercado de terra entre os pequenos
12
13
SOUZA, Sônia. Op. cit., p. 88.
LEVI, G. Op. cit., p. 102.
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proprietários, adquiridas através da compra.
A título de ilustração podemos citar o caso de José Antônio de Paula, casado e pai 7 filhos,
morador do distrito de São Francisco de Paula, que ao falecer deixa um espólio de 61 alqueires de
terras de cultura e pastagem, além de benfeitorias, casa de morada, carros de milho e feijão,
alguns animais (porcos, vaca, besta) e 5 escravos adultos.14
As transações envolvendo compra de terras também ocorriam entre os membros da família,
sobretudo no momento da partilha, indicando um desejo de evitar a fragmentação da propriedade.
E. Ladurie observou que em Montaillou havia uma preocupação de se preservar a domus
contra a fragmentação. Para os habitantes desta região, o problema se agravava quando uma
filha iria se casar devido a concessão do dote: neste caso a domus era ameaçada de perder parte
de sua substância em decorrência do dote levado pela recém-casada 15.
G. Levi, em seu estudo, também constatou uma tentativa de não fragmentação da
propriedade no seio deste grupo. Por ser seu acúmulo uma estratégia para garantir a
sobrevivência deste campesinato, aquele que não se submetesse a “viver unido sob o mesmo
teto”, quando morresse o chefe da família, podia ser excluído da herança no testamento
16
. Nas
fontes por nós observadas, tal fato ocorria sobretudo através da venda de direito de herança e
hereditariedade. Este é o caso do inventário de Maria Joaquina de São José, viúva e mãe de 9
filhos, moradora do distrito de Santana do Deserto, que ao falecer divide seus bens (estes
relativos a 15 alqueires de terras, casa de morada, benfeitorias, móveis, 12 mil pés de café, carros
de milho, arroz, feijão, alguns animais, ações da companhia União e Indústria, uma dívida ativa
referente à quantia de 163$394 e 5 escravos adultos) entre seus 9 filhos em partes iguais. Porém,
Maria Ferreira da Fraga, filha de Maria Joaquina, vende ao se casar, seu direito de herança e
hereditariedade a seus irmãos Pedro José da Fraga e Carlos José da Fraga, evidenciando assim
uma forma de não se fragmentar a propriedade desta família com um acontecimento “inesperado”:
a morte de sua mãe.17
Outro caso exemplar desta tentativa de não fragmentação de propriedade, está presente no
inventário de José Antônio da Rosa, casado e pai de 9 filhos, morador do distrito de São José do
Rio Preto, que ao falecer deixa um espólio de 2 alqueires de terras em capoeiras, casa de
morada, 3mil pés de café, alguns animais, móveis e um dívida ativa no valor de 400$000; tudo
para ser dividido em partes iguais entre seus filhos. Todavia, Maria Rosa Diniz do Nascimento,
14
AHUFJF. Cartório do 1º Ofício Cível. Inv. De José Antônio de Paula, proc. ID 1013, cx. 146 B (1888).
LADURIE, E. Op. cit., p. 57.
16
LEVI, G. Op. cit., p. 122.
17
AHUFJF. Cartório de 1º Ofício Cível. Inv. De Maria Joaquina de São José, proc. ID 242, cx. 15 A (1885).
15
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193
filha de José Antônio, vende à Silvestre Diniz Pacheco - cunhado de José Antônio - seus direitos
hereditários (consistindo em terras e benfeitorias) que confrontavam com as de Silvestre.18
Contudo, a posse de terra de nada adiantava se não fosse possível seu cultivo, tanto pela
distância entre o produtor e o terreno, quanto pela falta de mão-de-obra. Ana Brigida de Campos,
era viúva de Antônio Luiz da Silva , morador do distrito de Chapéu Duvas, que ao falecer deixa
para a família 23 alqueires de terras de cultura, casa de morada, carros de milho, 6 alqueires de
arroz, alguns animais, 1 escravo adulto, móveis e uma dívida ativa no valor de 450$000; tudo para
ser dividido em partes iguais entre seus 5 filhos menores e metade para a viúva. Mas como a
mão-de-obra para cultivar este solo (que por sinal era de má qualidade segundo Ana Brigida) se
mostrava precária, a viúva pede para arrendar as terras em praça pública, utilizando o jornal “O
Pharol” para anunciar tal fato. Posteriormente o dinheiro proveniente deste arrendamento seria
utilizado para pagar a parte da herança dos filhos do casal ao atingirem a maioridade.19
A aquisição de uma parcela de terras foi possível até mesmo para ex-escravos. Tal caso foi
observado no inventário de Maria Ignácia da Piedade, viúva, moradora de Juiz de Fora, cujo
espólio consistia em 12 alqueires de terras, casa de morada, 2 colheitas de café, 1 cavalo, móveis
e um dívida de 30$000. Como não tinha filhos deixou tudo para seus ex-escravos aos quais
concedeu a alforria em seu testamento.20
Nota-se portanto, que a terra era muito valorizada no âmbito do campesinato, fato evidenciado
pelas transações envolvendo sua aquisição, pela venda para membros da família, pelo
requerimento dos herdeiros solicitando que sua herança fosse paga em terras. Além disso, na
própria liquidação de dívidas, ela só era cogitada caso os bens móveis ou animais não fossem
suficientes para cobrir os débitos. Essa valorização da posse de terras relaciona-se com a
possibilidade de perpetuação da sobrevivência deste grupo, sendo a não desestruturação das
unidades de suma importância para o camponês.21
3.2. A organização da força de trabalho
Para a sobrevivência deste campesinato é também imprescindível o uso de uma mão-de-obra
que lhe permita garantir sua subsistência. Na maioria dos casos, tal força de trabalho é
18
AHUFJF. Cartório do 1º Ofício Cível. Inv. De José Antônio da Rosa, proc. ID 892, cx. 124 B (1884).
Idem. Inv. De Antônio Luiz da Silva, proc. ID 468, cx. 53 B (1870).
20
Idem. Inv. Maria Ignácia da Piedade, proc. ID 183, cx. 12 A (1879).
21
Como destacou G. Levi, são motivações como estas que precisam ser consideradas na análise do mercado de terras
em sociedades pré-capitalistas visto que, ele atua não em um contexto no qual o lucro é valorizado e sim num ambiente
em que fatores extra econômicos regem a organização social.
19
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
194
arrecadada no seio da família podendo também, na lógica brasileira, fazer uso do escravo. Este
foi presença constante nos inventários analisados muitas vezes constituindo mais da metade do
valor dos bens avaliados (não extrapolando o limite de 5 cativos), sendo esta força de trabalho
adicional extremamente importante para aquelas famílias cujos membros não davam conta de
cultivar a terra.
Considerando o entendimento que o economista russo Alexander Chayanov possui da
economia camponesa, veremos que a composição da família é um elemento que definirá não
somente o ritmo das atividades, mas também influenciará no tamanho da terra a ser cultivada22. O
princípio de Chayanov para uma economia camponesa, foi observado por E. Le Roy Ladurie no
seu estudo sobre Montillou. De acordo com Chayanov:
[...] o mundo rural e sua economia é formada pelas inter-relações das unidades familiares,
onde a intensidade do trabalho em um sistema de produção doméstica para o uso varia
inversamente à capacidade de trabalho relativa à unidade de produção23.
Em outras palavras, quanto maior a força de trabalho ativa na família, menor será a
necessidade de se trabalhar muito individualmente para assegurar o mínimo das satisfações
materiais consideradas indispensáveis às necessidades coletivas da domus.
Tal lógica pode também ser aplicada no interior do campesinato da Zona da Mata Mineira,
na qual muitas vezes o cativo era adicionado à mão-de-obra familiar para tornar a unidade de
produção mais dinâmica.
No inventário de Maria Joaquina de São José, fica evidente esta confluência de força de
trabalho, na medida em que, além de uma mão-de-obra constituída pelos seus 2 filhos e 3
genros adultos, possuía 5 escravos adultos para cultivar seu 15 alqueires de terras.
Considerando que todos viviam nas mesmas terras, pode-se dizer que tal propriedade
tinha uma dinâmica produtiva (constituída de café, arroz, milho e feijão) bem eficiente.24
Outro caso de complementação de mão-de-obra foi observado no inventário de José
Antônio de Paula, este deixa para a família, ao falecer, 61 alqueires de terra, cujo cultivo era
efetivado tanto pelos seus 3 filhos e 2 genros adultos, quanto pelos seus 5 escravos.25
Encontramos também unidades cuja mão-de-obra era constituída ou somente de escravos
ou somente de membros da família. Antônio José de Almeida ao falecer tem como bens
inventariados, 1 sítio de terras de cultura e 5 escravos (sendo 3 adultos e 2 menores). Supõe-se
22
CHAYANOV, Alexander. (1966), Theory of Peasant economy. tradução inglesa, Homewood, Illinos. apud SOUZA,
Sônia. op. cit., p.122.
23
CHAYANOV, A. op. cit. apud L ADURIE, E. op. cit., p.495.
24
AHUFJF. 1º Cartório Cível. Inv. De Maria Joaquina de São José., proc. ID 242, cx. 15 A (1885).
25
Idem. Inv. De José Antônio de Paula, proc. ID 1013, cx. 146 B (1888).
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
195
que tal sítio seria cultivado pelos três escravos adultos, visto que
seus 6 filhos eram todos
menores.26
Já José Antônio da Rosa, morador do distrito de São José do Rio Preto, possuía como
mão-de-obra para cultivar seus 2 alqueires de terras - que foi conservado no seio desta família
apesar de seu falecimento, pelo fato de dois de seus filhos que moravam em outra região
venderem sua parte na herança para seu tio e cunhado de José Antônio - 1 filho e 1 genro
adultos; pois apesar de ter 9 filhos, um era doente mental e portanto incapacitado para trabalhar
no cultivo da terra, e os outros 6 moravam em Mar de Espanha.27
3.3 A diversificação produtiva
A diversificação produtiva, importante principalmente em momentos de crise, possibilitava ao
camponês desfrutar de certa autonomia frente aos grandes proprietários, pois quanto maiores
fossem os bens produzidos em suas propriedades, menor seria a dependência deles para
conseguir alguns gêneros. Além disso, tal diversificação permitia que parte da produção fosse
colocada no mercado local
28
. Nos inventários analisados encontramos a presença da pecuária
(gado bovino, suíno e animais de carga), produção agrícola (milho, arroz, feijão), havendo também
algumas propriedades que cultivavam o café em menores escalas se comparadas com as dos
grandes fazendeiros. Era recorrente também nos inventários, instrumentos de trabalho tais como:
ferramentas de carpinteiro, roda de fiar algodão, enxadas, machados, moinhos, tear, o que de
certa forma, também indicavam uma diversificação do que era produzido nas propriedades.
No inventário de José Antônio de Paula, consta na avaliação de seus bens cujo monte-mor
girava em torno de 8:179$000, ferramentas de carpinteiro e tábuas de cedro, o que
possivelmente, pode ser assinalado como uma diversificação não só produtiva mas também
profissional.29
A criação de animais como já havíamos mencionado, também desempenhou importante papel
dentro das estratégias de sobrevivência deste campesinato: porcos, gado bovino e animais de
carga foram os mais encontrados nas fontes por nós analisadas. Esta atividade propiciava ao
pequeno proprietário a inserção no mercado local, no qual apareciam vendendo e comprando
mercadorias. José Antônio da Rosa, ao falecer deixa uma dívida passiva de 1:348$410 relativa à
26
Idem. Inv. De Antônio José de Almeida, proc. ID 580, cx. 71 B (1874).
Idem. Inv. De José Antônio da Rosa, proc. ID 892, cx. 124 B (1884).
28
SOUZA, Sônia. Op. cit., p. 132-33.
29
AHUFJF. 1º Cartório Cível. Inv. De José Antônio de Paula, Op. cit.,
27
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
196
compras feitas em vários armarinhos locais de gêneros que não eram produzidos em sua
propriedade tais como: aguardente, vinho, carne seca, roupas, querosene e até água de colônia.
Sua dívida passiva era complementada por gastos obtidos com o farmacêutico devido sua
enfermidade (50$900) e gastos do funeral de sua mulher (222$400).30
Outro exemplo desta comercialização entre os pequenos produtores, foi encontrado no
inventário de Maria Joaquina de São José, esta possuía uma dívida passiva concernente a
compras feitas no armarinho de José Francisco Caldas referentes a roupas, mantimentos e
instrumentos de trabalho.31
Temos ainda o caso de Maria Ignácia da Piedade, que obtivera um dívida passiva de 237$080
também de compras feitas nos armarinhos de Frederico Meyer e Frederico Lizardo referentes à
roupas, querosene, sal e mantimentos.32
Percebe-se portanto que estes pequenos produtores tinham uma relação, mesmo que
minoritária, com o mercado local, através da comercialização de excedentes ou da compra de
gêneros que não eram produzidos em suas propriedades.
3.4. As relações de solidariedade
A organização familiar é, ao nosso ver, relevante para identificarmos as estratégias de
sobrevivência deste campesinato, no que concerne à solidariedade vivenciadas pelos membros
do grupo. Como estratégias vamos considerar as relações de solidariedade que envolvem o
parentesco e o matrimônio.
3.4.1. O parentesco
O parentesco possuía papel relevante na vida do camponês, se efetivando de várias formas,
como por exemplo, através da associação familiar para compra de algum bem para melhorar o
nível de prosperidade dos envolvidos.
Além disto, havia outras estratégias envolvendo a noção de parentesco que possibilitava a
sobrevivência (tanto material, quanto moral) do grupo; como a convivência entre irmãos e exescravos. A título de ilustração, podemos citar o inventário de Maria Joaquina de São José, viúva
30
Idem. Inv. De José Antônio da Rosa, Op. cit.
Idem. Inv. De Maria Joaquina de São José, op. cit.
32
AHUFJF. 1º Cartório Cível. Inv. De Maria Ignácia da Piedade, Op. cit.,
31
Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 2, jul.-dez., 2004
197
e mãe de 9 filhos, que ao falecer deixa uma herança constituída de 15 alqueires de terras, casa
de vivenda, tulhas, alguns animais, 12 mil pés de café, ações da companhia União e Indústria
além de 5 escravos adultos. Seus 9 filhos, sendo 5 deles casados, conviviam nas terras
mencionadas no inventário localizadas no distrito de Santana do Deserto, o que de certo modo
evidenciava uma maneira de manter concentrada a propriedade desta família mesmo porque,
como já foi mencionado, houve neste caso, a venda de direito hereditário de uma das partes para
os irmãos.33
Outra circunstância que demonstra esta solidariedade entre famílias, se encontra no
inventário de Maria Zeferina Pereira de Castro, solteira, sem filhos, moradora do distrito do
Rosário, na fazenda do Ribeirão do Carmo. Esta ao falecer tinha em espólio avaliado: uma casa
de morada assobradada, 60 alqueires de terras, benfeitorias, móveis, e um dívida ativa de
343$000. Em seu testamento deixa como herdeiros os 3 filhos menores de suas sobrinhas Maria
Clementina Pereira de Castro e Maria Francisca Pereira de Castro; ambas moradoras nas terras
da tia.34
Entretanto,
a ausência de filhos ou parentes próximos podia levar os proprietários
a
estenderem as relações de solidariedade para além da esfera do parentesco.
Em seu estudo sobre a aldeia de Montaillou, E. Ladurie observou que as relações de
solidariedade da domus ultrapassava o quadro estrito da família propriamente dita, ou seja, do
casal parental e dos filhos. Esse alargamento ocorreria, em Montaillou, em razão da presença de
domésticos no lar, criados de lavoura e de outros parentes como irmãos, cunhados, noras, e até
compadres35.
No inventário de Maria Ignácia da Piedade, já mencionado, tal fato é constatado na medida
em que por não possuir filhos, estabelece como seus herdeiros, em seu testamento, 4 libertos.
Este caso pode nos remeter a possibilidade de construção de laços de “afetividade” entre Maria
Ignácia com estes ex-escravos, na medida em que, como vêem evidenciando a historiografia mais
recente acerca da escravidão, as relações entre senhores e escravos eram muito mais tênues do
que se imaginava até então.36
33
Idem. Inv. De Maria Joaquina de São José, proc. ID 242, cx. 15 A (1885).
Idem. Inv. De Maria Zeferina Pereira de Castro, proc. ID 173, cx. 11 A (1887).
35
LADURIE. E. Op. cit., p. 63.
36
AHUFJF. 1º Cartório Cível. Inv. De Maria Ignácia da Piedade, proc. ID 183, cx. 12 A (1879).
34
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198
3.4.2. O matrimônio
O casamento assumia importância econômica e social para a manutenção deste grupo. Como
exemplo podemos citar o caso de Antônio José de Almeida, morador do distrito do Rosário,
casado e pai de 6 filhos que a data de seu falecimento (1874) eram todos menores. Seu espólio
era constituído de 1 sítio de terra de cultura, 1 casa de vivenda com quintal, 1 besta de carga, 1
tacho de cobre e 5 escravos que constituíam mais da metade do monte-mor de 6:506$000. Sete
anos depois, uma de suas filhas – Joaquina, então com 19 anos – se casa com Antônio Guedes
de Moraes, 26 anos, lavrador e também morador do distrito do Rosário. Na partilha Joaquina
recebe uma parte das terras, 1 escravo e alguns móveis de baixo valor, elementos que seriam de
grande ajuda para amenizar as dificuldades na vida do novo casal.37
Outro caso exemplar, é o encontrado no inventário de José Antônio de Paula, casado e pai de
7 filhos morador do distrito de São Francisco de Paula, cujos bens eram constituídos de 61
alqueires de terras, casa de morada coberta de telhas, benfeitorias, paiol, 2 carros de milho e
feijão, alguns animais e 5 escravos adultos. Em seu testamento institui como tutor de seus filhos
menores - Cândida Maria do Nascimento(14 anos) e João Antônio de Paula (12 anos) - José
Antônio de Paula Júnior, seu filho mais velho. Este, no mesmo ano em que seu pai falece (1888),
promove o casamento de Cândida com seu primo Antônio João de Paula, “não só pelo afeto que
ambos sentem um pelo outro, mas também pela conveniência que a união trará para ambos, visto
que Antônio é trabalhador”.38
Outro exemplo, pode ser identificado no inventário de José Antônio da Rosa, casado e pai de
9 filhos, morador do distrito de São José do Rio Preto. Este prevendo sua morte elabora um
testamento no qual “ se entende com José Ventura Lopes afim de que este na qualidade de seu
amigo seja tutor de sua filha menor Isabel Maria Rosa”. Alguns anos depois, com Isabel contando
já com 23 anos, José Ventura procura arrumar os ditames legais para casar Isabel com José
Ignácio da Silva, pois por serem ambos pobres o casamento lhes seria benéfico visto que “José
Ignácio era muito trabalhador”.39
Nestes dois últimos casos a menção da palavra “trabalhador” pode nos remeter à algumas
conclusões interessantes. Acreditamos que, para este grupo, mais do que a posse de bens o que
se valorizava ao se contrair matrimônio, era o predisposição de um dos cônjuges de tornar a
propriedade mais dinâmica através de seu trabalho. Este era fundamental para que o pequeno
37
AHUFJF. 1º Cartório Cível. Inv. De Antônio José de Almeida, proc. ID 580, cx. 71 B (1874).
AHUFJF. 1º Cartório Cível. Inv. De José Antônio de Paula, proc. ID 1031, cx. 71 B (1874).
39
Idem. Inv. De José Antônio da Rosa, proc. ID 892, cx. 124 B (1884).
38
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produtor mantivesse e/ou aumentasse a dinâmica de sua unidade produtiva, pois como destacou
Chayanov, quanto maior o número de trabalhadores, mais dinâmica poderá ser a produtividade
dos lotes e, desta forma, mais garantida a subsistência da família 40.
Considerações finais
No presente artigo, procuramos identificar algumas estratégias de sobrevivência adotadas
pelo campesinato da Zona da Mata Mineira, durante o período que se estende de 1870 à 1888. Ao
analisarmos fontes primárias referentes à sociedade e períodos em questão, concluímos que o
acesso à terra, a família, a diversificação produtiva e a solidariedade praticada entre os membros
do grupo (apresentadas sob a ótica do parentesco e matrimônio), foram essenciais para a
manutenção desta parcela da sociedade.
Ante um sistema produtivo no qual era posto à margem, este campesinato desenvolveu
atitudes que garantiriam sua sobrevivência e uma certa autonomia frente os grandes proprietários.
Todas as estratégias apresentadas ao longo deste artigo, ao nosso ver,
demonstram uma
preocupação com a segurança material e também moral dos membros do grupo, sendo as
escolhas econômicas influenciadas por aspectos sociais, tais como o parentesco e o matrimônio,
de forma a englobar toda a rede de relações necessárias para a sobrevivência deste campesinato.
Por ser a sociedade em questão gerida por valores pré-capitalistas, as questões
econômicas eram regidas não por uma ótica de mercado auto-regulável e impessoal, mas por
relações sociais, baseadas na idéia de reciprocidade e solidariedade; fato também observado por
K. Polanyi, E. Ladurie, G. Levi, em seus respectivos trabalhos.
Ana Paula Pereira Costa é Mestranda em História da Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
40
CHAYANOV, A. Op. cit., apud LADURIE. E. Op. cit., p. 495.
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