De Lustosa a João do Planalto
A arte da política na cidade de
Guarapuava (1930 – 1970)
Universidade Estadual do Centro-Oeste
Guarapuava - Irati - Paraná - Brasil
www.unicentro.br
Walderez Pohl da Silva
De Lustosa a João do Planalto
A arte da política na cidade de
Guarapuava (1930 – 1970)
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CENTRO-OESTE
UNICENTRO
Reitor: Vitor Hugo Zanette
Vice-Reitor: Aldo Nelson Bona
Editora UNICENTRO
Direção: Beatriz Anselmo Olinto
Assessoria Técnica: Andréa do Rio Alvares,
Carlos de Bortoli, Eduardo A. Santos de
Oliveira, Ruth Rieth Leonhardt e Waldemar
Feller
Divisão de Editoração: Renata Daletese
Seção de Revisão Linguística: Dalila Oliva de
Lima Oliveira
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Ferreira, Lucas Silva Casarini, Marcio Fraga
de Oliveira
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Capa: Luzia Pohl Alves Pinto (Once & Again
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Conselho Editorial
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Ruth Rieth Leonhardt
Sidnei Osmar Jadoski
Impressão: Gráfica UNICENTRO
Catalogação na Publicação
Regiane de Souza Martins -CRB9/1372
S586d
Silva, Walderez Pohl da
De Lustosa a João do Planalto: a arte da política
na cidade de Guarapuava (1930 – 1970) / Walderez
Pohl da Silva. – – Guarapuava: Unicentro, 2010
240 p.: il.
Bibliografia
ISBN 978-85-7891-056-3
1. Política – Guarapuava – Paraná. 2. Guarapuava
– História. 3. Oliveira, Antonio Lustosa de, 19011995 – João do Planalto. I. Autor. II. Título.
CDD 981.622
Copyright © 2010 Editora UNICENTRO
À minha mãe Maria Therezinha
quanta saudade
Ao meu neto Luis Felipe
quanta alegria
No centro de Fedora, metrópole de pedra cinzenta, há um
palácio de metal com uma esfera de vidro em cada cômodo.
Dentro de cada esfera, vê-se uma cidade azul que é o modelo
para uma outra Fedora. São as formas que a cidade teria podido
tomar se, por uma razão ou por outra, não tivesse se tornado
o que é atualmente. Em todas as épocas, alguém vendo Fedora
tal como era, havia imaginado um modo de transformá-la
na cidade ideal, mas, enquanto construía o seu modelo em
miniatura, Fedora já não era mais a mesma de antes e o que
até ontem havia sido um possível futuro hoje não passava de
um brinquedo numa esfera de vidro.
Ítalo Calvino – As cidades invisíveis
Agradecimentos
Um grande número de pessoas colaborou e participou da
elaboração deste livro, seja na fase de pesquisas, seja na fase de leituras e
comentários sobre o texto produzido. Seria difícil registrar agradecimentos
a todos, sob pena de esquecimento e omissão. Ainda assim, considero
muito importante destacar aqueles que, de forma especial, auxiliaram e
incentivaram o meu trabalho.
Ao meu marido Nelson, pelo amor, carinho e respeito que sempre
me dedicou ao longo de nossa existência em comum. Seu companheirismo
de todos os momentos foi essencial para realização deste trabalho.
Aos meus filhos Nelsinho, Sandro e Patrícia pelo apoio
incondicional.
À Professora Maria Helena Perehovski, a amiga de sempre, que
alegra minha vida com sua vitalidade, coragem e lealdade.
Ao Professor Carlos Roberto Delattre pela dedicação e paciência
com que leu os capítulos deste livro, pelas sugestões e pela confiança
transmitida na plena realização deste trabalho.
Ao Dr. Edgar Ávila Gandra por acompanhar esta pesquisa o
tempo todo, pelo estímulo e pelas importantes sugestões.
À Dra Terezinha Saldanha, pela companhia em todos os
momentos e por participar de discussões que apontaram os perigos e
possibilidades das minhas idéias.
À Dra Beatriz Anselmo Olinto pelas sugestões e, especialmente,
pela sugestão do título deste livro.
À Dra Zeloí Martins dos Santos pelo precioso auxílio na busca
de importantes fontes para esta pesquisa.
Aos colegas do Departamento de História pelo apoio
constante.
Às funcionárias do Arquivo Histórico da UNICENTRO,
Claudia Regiane Chavarinski Almeida Santos e Tânia Marcondes Diniz
pelo pronto e gentil atendimento às minhas solicitações de material para
esta pesquisa.
Aos funcionários da Casa da Cultura de Guarapuava, pela
gentileza e atenção costumeiras com que sempre me receberam.
À Professora Gracita Gruber Marcondes pelo seu trabalho de
pesquisa pioneiro, de tamanha importância e grandeza, que se tornou
uma consulta obrigatória para todos aqueles que aspiram conhecer ou
escrever sobre a História de Guarapuava.
Ao Professor Murilo Walter Teixeira pelos esclarecimentos e
pelas fontes disponibilizadas no acervo do Arquivo Benjamin Teixeira.
Enfim, agradeço a todos aqueles que, sabendo ou não,
contribuíram para a realização deste trabalho.
10
Sumário
Apresentação........................................................................................ 13
Introdução. ............................................................................................... 17
1. Espaço, poder local e o fazer-se de um político............... 23
As raízes da estrutura política de Guarapuava.......................................... 25
Laços de sangue e tradição........................................................................... 30
Formação de um civilizador......................................................................... 36
A influência paranista.................................................................................... 42
2. Sob o signo do Estado Novo. ..................................................... 64
Coronel Vilaca: um novo ator para um velho drama................................ 68
O integralismo sedutor................................................................................. 72
Entre a tragédia e a perseguição.................................................................. 84
Sobre a incompreensão, a maldade e a ingratidão dos homens.................... 89
Nos meandros da ditadura........................................................................... 93
O retorno do progresso como discurso..................................................... 95
3. Entre a experiência democrática e a ditadura militar. 113
O retorno à política partidária................................................................... 116
As vitórias de 1947...................................................................................... 122
Na tribuna parlamentar (1947 – 1950)................................................. 129
As derrotas de 1950.................................................................................... 140
Na tribuna parlamentar (1951 – 1954)................................................. 141
As vitórias de 1955...................................................................................... 150
Na tribuna parlamentar (1954 – 1958)................................................. 153
Agonia e desilusão........................................................................................ 161
4. O passado é hoje: a voz de João do Planalto. ................ 165
As cinzas de Padre Chagas.......................................................................... 167
O Cristo da Serra de São Luís do Purunã............................................... 172
Uma estátua para Guairacá......................................................................... 174
João do Planalto e o progresso : A “faca de dois gumes” ou a “tecnologia
que avassala a humanidade”........................................................................ 183
Saindo da vida para entrar na história...................................................... 199
Considerações finais................................................................. 207
Cronologia básica...................................................................... 210
Fontes impressas......................................................................... 211
Fonte audiovisual...................................................................... 213
Referências.................................................................................. 224
Anexos........................................................................................... 227
12
Apresentação
Em 2008, Walderez Pohl da Silva, Professora da Universidade
Estadual do Centro-Oeste do Paraná, defendeu sua tese de doutoramento
em História na Universidade Federal Fluminense. Indicado para avaliar
o trabalho ainda em sua fase inicial, eu não tive dúvidas de que se tratava
de pesquisa com tema original e relevante. Também percebi em Walderez
qualidades que garantiriam o êxito do seu trabalho na pós-graduação,
entre elas o talento e a maturidade intelectual. A publicação de sua tese de
doutorado, portanto, é o resultado, com grande sucesso, de sua dedicação
aos estudos e à pesquisa historiográfica.
Com base em fontes documentais variadas e bibliografia
atualizada, Walderez resgata o passado de um homem que se destacou de
maneira extraordinária na história da cidade de Guarapuava, no estado do
Paraná: Antonio Lustosa de Oliveira. Como prefeito, deputado estadual
por três legislaturas e em cargos nos governos estadual e federal, ele
defendeu políticas públicas de saúde e educação, e se empenhou para
retirar a cidade do isolamento em que se encontrava do resto do estado e
do próprio país. Na imprensa, ele foi incansável na defesa de suas idéias.
Lustosa foi uma das mais importantes personalidades políticas de
Guarapuava. Apesar de ter dedicado seus esforços ao desenvolvimento da
cidade e das regiões próximas, ele, atualmente, é pouco conhecido. Sobre
Lustosa ficou o esquecimento. Walderez, portanto, fez o trabalho próprio
dos historiadores: lembrar à sociedade o que aconteceu em seu passado.
Durante sua pesquisa, a autora teve que lidar com questões
difíceis. Por exemplo, a partir da trajetória de um único indivíduo,
reconstituir a história da cidade de Guarapuava. Mas, ao mesmo tempo,
não perder, da análise, as necessárias articulações com os contextos
políticos, econômicos e culturais do estado do Paraná e do próprio país.
Sua contribuição à historiografia, portanto, foi bastante original, seja com
o tema que escolheu, seja a maneira como trabalhou o próprio tema.
Outra questão a ser observada é como a autora interpreta o passado
político republicano brasileiro, sobretudo na época de auge da atuação
política de Lustosa: 1946-1964. Walderez abandonou as interpretações
que apontam para a existência do “populismo” e todos os seus derivativos
– manipulação eleitoral, elites cínicas, povo sem consciência política, etc.
São concepções que desqualificam a sociedade brasileira para o exercício
da democracia: em seu limite, “populismo” é o regime em que o povo não
sabe votar. Levando em consideração as escolhas e opções políticas tomadas
por homens e mulheres que, no passado, atuaram na política brasileira,
Walderez qualificou o período que se abriu em 1946 e se encerrou em 1964
como uma experiência democrática, época em que a população brasileira
se mobilizou e participou ativamente do jogo liberal-democrático.
Afinada com as contribuições da assim chamada “nova história
política”, Walderez muito certamente foi influenciada por historiadores
de várias partes do mundo que revalorizaram a biografia como prática
historiográfica. O sucesso dessas indicações, no entanto, exige alguns
procedimentos metodológicos. Assim, não encontramos no livro uma
trajetória de vida linear e que, sem contradições e ambiguidades, avança
ao longo do tempo. Walderez não se preocupou em encontrar uma vida
plenamente coerente. No entanto, recusou-se também a enveredar pelo
caminho oposto: denunciar as muitas incoerências e incongruências da vida
do personagem. Walderez sabe que as vidas humanas não são trajetórias
lineares, lógicas e racionais. Como nos lembra Vavy Pacheco Borges, “os
atores históricos (nós todos!) não são modelos de coerência, continuidade,
de racionalidade; as tensões entre o vivido, o imaginado e o desejado
são fundamentais”. Com método e sensibilidade, Walderez construiu,
com muito sucesso, sua narrativa sobre a trajetória de vida de Lustosa.
A autora inicia o livro nos levando a conhecer a história da
cidade de Guarapuava. Ali é o cenário onde Lustosa atuou. Oriundo
das famílias ricas da região e tendo acesso à educação formal, não foi
difícil para ele ingressar na política. Logo se tornou porta-voz de um
projeto de modernização econômica e cultural para a cidade. Guarapuava
14
estava isolada do estado e do restante do país devido as suas condições
geográficas. As elites da cidade assumiram o ideal do progresso e o
projeto de desenvolver e modernizar a região. Lustosa tornou-se o maior
defensor dessas idéias.
Entre 1919 e 1934, ele escreveu nos jornais. Seu tema principal
era a necessidade de levar o progresso a Guarapuava. A grande luta era pela
chegada da estrada de ferro na cidade. Na defesa do projeto modernizador,
participou do Movimento Paranista e mostrou-se simpático ao tenentismo
e à Revolução de 1930. Mais adiante, aderiu à Ação Integralista Brasileira.
O movimento liderado por Plínio Salgado havia ampliado sua influência
na cidade e nos municípios vizinhos.
Com a decretação da ilegalidade da organização integralista,
Lustosa foi vigiado pela polícia. Contudo, suas relações políticas o
beneficiaram, resultando em sua nomeação para a prefeitura de Guarapuava
em fins de 1944. Rapidamente ele tornou-se líder político da cidade e
das regiões próximas.
Dois anos depois, no Partido Social Democrático, o PSD,
Lustosa foi eleito prefeito da cidade. Seu enorme prestígio político o
levou para a Assembléia Legislativa do Estado. Nesse momento, ele
alcançou o auge de sua carreira, tornando-se o político mais importante
e influente da região. Continuou, no entanto, com as mesmas bandeiras
de luta: o desenvolvimento de Guarapuava, a extensão da linha férrea à
cidade, o progresso da região, políticas públicas de saúde e educação.
Eleito e reeleito por duas vezes deputado estadual, ainda exerceu o cargo
de Secretário de Estado do Interior e Justiça e integrou a diretoria na Caixa
Econômica Federal por nomeação do presidente Juscelino Kubitschek.
O golpe civil-militar de 1964 encerrou abruptamente sua carreira
política. Como outros adeptos de JK e muitos pessedistas, Lustosa
apoiou a deposição do presidente João Goulart. Contudo, a decepção
veio rápida. Identificado como “juscelinista” pelos golpistas militares e
civis, ele foi indiciado em Inquérito Policial Militar. Sua carreira política
havia acabado.
15
Lustosa, no entanto, não se entregou. Passou a escrever crônicas
nos jornais, mas com o pseudônimo de “João do Planalto”. A temática
da modernização, do progresso e do desenvolvimento continuou, mas
agora com significados diferentes. A modernização chegara, mas passou
a ser interpretada com outros olhos. O desenvolvimento, tão ansiado por
Lustosa, foi problematizado por João. O moderno Lustosa cedeu lugar à
simplicidade do João.
Lustosa tinha consciência do papel político de relevo que exerceu
na política paranaense e de sua contribuição para o desenvolvimento da
cidade de Guarapuava. Ainda durante o ostracismo político, ele encadernou
suas crônicas e discursos legislativos e os entregou para a Universidade
de Guarapuava. Também publicou suas memórias.
Ele sabia que tinha sido importante para a história da cidade.
Walderez, com sensibilidade, percebeu a necessidade de contar essa
história. Cabe ao leitor avaliar ambos: a trajetória do político no passado
e o trabalho da historiadora no presente.
Jorge Ferreira
Professor Titular de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense
16
1
Introdução
O meu intuito, deste livro, é o de registrar alguma coisa que se relacione a
fatos acontecidos em minha terra natal, os quais, no meu entender, devem
ser relembrados às novas gerações contemporâneas, visto que, alguns deles,
servirão de subsídios a quem se aventurar a escrever algum dia, a história da
tradicional e sesquicentenária terra de Guairacá.
(João do Planalto – Do meu canto)
“Entre
Lustosa e João do Planalto – A arte da política na cidade
de Guarapuava (1930 – 1970)” é o resultado do trabalho de pesquisa a
respeito de um homem profundamente ligado à sua terra natal. Durante
grande parte de sua vida, Antonio Lustosa de Oliveira dedicou-se a
causas que acreditava poderem modificar circunstâncias desfavoráveis
que envolviam Guarapuava. Tamanha era a intensidade dessa crença que
a sua história raramente pode ser desvinculada do tempo histórico vivido
pela cidade de sua época.
A partir dessa perspectiva, se fosse possível apontar o
personagem mais representativo para a história política de Guarapuava
do século XX, o nome só poderia ser o dele, Antonio Lustosa de Oliveira,
ou simplesmente, o Lustosa. Em seu percurso político, que ultrapassou
mais de três décadas, ele exerceu cargos importantes como os de prefeito,
deputado estadual, secretário de Estado, só para citar os principais. No
entanto, em um primeiro olhar, o que parece ser uma trajetória banal,
comum àqueles cidadãos bem nascidos, cujos laços familiares e sociais
facilitaram o acesso a posições de destaque na comunidade, adquire novos
contornos quando se examina a literatura produzida por ele.
Essa literatura o faz singular. O jornalismo e as obras literárias
que Lustosa produziu a respeito de Guarapuava impressionam pela
intensidade com que iluminam a história política da cidade. Nesse
acervo há uma coleção de jornais por ele publicados desde 1919 até
fins da década de 70. As edições, que eram semanais, refletem os jogos
de poder local e a dimensão com que esses jogos foram afetados pelos
grandes acontecimentos que se sucederam em escala estadual e nacional,
permitindo esquadrinhar a atmosfera política local e a maneira como o
personagem se situava nesse ambiente. As páginas desses jornais também
trazem a marca visível do seu pensamento, revelando as estratégias e
sutilezas do jogo político que adotou, buscando sempre sintonizar-se
com as demandas do poder constituído.
Há também uma autobiografia, “Passos de uma longa caminhada
– Reminiscências”, publicada quando Lustosa beirava os oitenta anos. Se
por um lado esses registros autobiográficos podem ser decepcionantes
para aqueles que buscam no seu conteúdo confissões, indiscrições ou
grandes revelações, por outro, dizem-nos muito a respeito da carreira
jornalística e do trajeto político percorrido pelo autor. Nesses registros,
a cidade é, invariavelmente, o pano de fundo e também o tema recorrente
em torno de um ideal de modernidade e de progresso, moldando-se aos
ideais dos homens públicos das primeiras décadas do século XX.
Do mesmo modo, outras publicações, como a coletânea de três
volumes de “Na Tribuna Parlamentar” e os dois volumes das crônicas
“Do meu canto”, contemplam a cidade como tema principal. A primeira
se refere aos discursos e projetos de lei apresentados na Assembléia
Legislativa do Estado do Paraná. Foi produzida entre os anos de 1947
e 1958, quando Lustosa foi deputado estadual. Nesses volumes nos
deparamos com uma série de representações a respeito de Guarapuava,
que nos leva à percepção de suas necessidades mais prementes em áreas
como a saúde e a educação, até questões como o isolamento da cidade e o
descaso das autoridades no sentido de solucionar os problemas locais. A
segunda apresenta uma coleção de crônicas que Lustosa assinava lançando
mão do pseudônimo “João do Planalto”. Tais crônicas eram publicadas
nos jornais que ele manteve e, algumas poucas, em outros jornais locais
ou da capital, Curitiba. A adoção desse pseudônimo reflete a intenção do
autor em estabelecer um certo distanciamento entre o discurso oficial do
criador e o discurso da criatura, que transitava em torno de projeções de
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um cidadão comum, “João”, sobre a cidade, Guarapuava, localizada no
terceiro “planalto” paranaense. A maioria dessas crônicas foi produzida
na década de 70, época em que o personagem já havia se retirado da
política partidária. Se por um lado, elas refletem a nostalgia de um passado
largamente idealizado, demonstrando o desejo de recuperar a “cidade
de outrora”, por outro, deixam fluir o espírito ainda combativo de um
político, que buscava entre os acontecimentos de maior relevo e divulgação,
os que lhe permitissem criar com o leitor “códigos de compartilhamento
que viabilizassem a comunicação, temas que lhe permitissem discutir as
questões do seu interesse” (CHALHOUB, 2005, p. 11).
Embora todo esse acervo legado por Lustosa se constitua
referência obrigatória nos trabalhos de historiadores e memorialistas
locais, a sua história de vida não mereceu, até o momento, um estudo
independente ou mais detalhado. Pouco se sabe a seu respeito, mas ele
nos disse muito sobre a sua cidade natal – Guarapuava.
Essa percepção norteou a seleção do objeto de estudo deste
trabalho, que se ancora na evidência de que autor e obra se aliam para
fornecer o recorte de um período e de uma maneira de ver esse período,
delimitado entre as décadas de 1930 e 1970. Mais especificamente, tratase de recuperar a visão de mundo do personagem, na qual os discursos
embutidos em sua produção jornalística e literária constituem-se fontes
privilegiadas. Ao eleger esse recorte, não desconhecemos que deixamos de
lado variáveis importantes que poderiam ser exploradas, como as relações
familiares, a religiosidade, os grupos sociais da cidade, entre outras. Isso
porque, em meio a múltiplas formas possíveis que permitem analisar
o percurso de uma vida, quando se busca o personagem – Lustosa –
conclui-se que é sua faceta política a que melhor nos permite interpretálo e interrogar a época em que ele viveu, tomando por referência os
sentimentos, crenças e valores expressos em sua obra.
No primeiro capítulo, em face da necessidade de explicar as
condições pré-existentes do cenário político em que o personagem se
insere, tratou-se da fundação da cidade e das raízes de sua formação política,
que são intrinsecamente ligadas à forma utilizada pela Coroa Portuguesa
para povoá-la: o sistema de sesmarias e o modo de produção adotado:
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a criação de gado. As primeiras famílias detentoras dessas sesmarias
também detiveram o poder político e transmitiram aos descendentes, por
diversas gerações, além da herança material, a herança política. Através
dos dados sócio-biográficos de Lustosa e de sua ascendência familiar,
buscou-se evidenciar o importante papel que as determinações sociais
exerceram na sua trajetória e no jogo desenvolvido por ele em diferentes
campos pelos quais transitou. Discutiram-se também os elementos
formadores do seu pensamento, dentro do campo intelectual em que ele
estava inscrito. Os setores de um campo intelectual são profundamente
afetados pelas ortodoxias dominantes dentro dele e todas as posições
intelectuais estão enraizadas em tácitos pressupostos culturais que são
perpetuados por relações sociais e práticas tradicionais consagradas.
Tais pressupostos constituíram ferramenta fundamental para entender
o personagem no seu próprio tempo e discutir o modo como ele deu
continuidade e, ao mesmo tempo, transcendeu o mundo cultural que
herdou (PALLARES BURKE, 2005, p. 19). Por último, destacaram-se
os fatores que credenciaram o personagem ao ingresso no campo político.
O primeiro deles foi o pertencimento à classe dominante de Guarapuava,
composta por aqueles que controlavam a propriedade da terra e a produção
social. Possuidores de uma linguagem articulada e da possibilidade de
acesso a mecanismos de transformações, essa classe também constituía o
grupo político dominante local. Fator que, aliado a uma educação sólida,
oportunidade que poucos tiveram na mesma época e no mesmo espaço
territorial, a uma personalidade esfuziante e um senso de oportunidade
aguçado, foi decisivo para a emergência no cenário político local. Além,
evidentemente, de uma conjuntura histórica favorável. Por meio dos
apelos modernizadores de seu discurso jornalístico, Lustosa conduziu o
universo mental de uma parcela significativa de Guarapuava em direção a
uma expectativa de progresso e modernidade para a cidade.
O foco do segundo capítulo recai sobre a primeira década da
militância política de Lustosa, entre 1935 e 1945. Apaixonado pelas
pregações de Plínio Salgado, ele abraçara a militância integralista. Aliado
a Amarílio Rezende de Oliveira e Davi Moscalesque, fundou aquele que
seria o jornal mais importante e duradouro de sua carreira jornalística,
a Folha do Oeste. Em 1937, esse jornal foi o principal órgão de difusão e
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cooptação da AIB. A partir do ano seguinte, 1938, após a instituição do
Estado Novo, iniciou-se um período de tensões, no qual o assassinato de
Davi Moscalesque, o fundador do núcleo da Ação Integralista Brasileira
em Guarapuava, e a decretação da ilegalidade do Partido Integralista,
trouxeram, como consequência, a perseguição ostensiva da DOPS, tanto
a Lustosa como ao companheiro de militância, Amarílio Rezende. Esse
período estendeu-se até 1941, quando o personagem retomou a atividade
jornalística e o discurso de progresso devotado a Guarapuava. Seguiu-se,
em outubro de 1944, a sua nomeação pelo interventor Manoel Ribas,
para a função de prefeito da cidade, atividade desempenhada até outubro
de 1945, quando se encerrou o período da ditadura de Vargas.
O terceiro capítulo analisa o período da consolidação da carreira
política de Lustosa e o conjunto de questões que o impeliram, no final
dos anos 60, ao abandono dessa carreira. No período em tela, em que o
final da II Guerra abrira a demanda para uma nova ordem política, onde as
ditaduras não seriam bem vindas, ocorreu o retorno dos partidos políticos
e de eleições diretas para todas as esferas de governo. Ele havia reassumido
o cargo de prefeito de Guarapuava em 1946, apoiado pelo PSD, partido
do qual fora fundador do diretório municipal na cidade, ainda em 1945.
Essa conjuntura lhe permitiu tornar-se o político mais influente da região.
Tanto que, entre 1947 e 1958, ele exerceu três mandatos consecutivos na
Assembléia Legislativa do Estado do Paraná, além de ter exercido as funções
de Secretário de Estado do Interior e Justiça, durante o último governo
de Moisés Lupion, e de Diretor-Presidente do Conselho Administrativo
da Caixa Econômica Federal do Paraná, por nomeação do presidente
Juscelino Kubitschek. O exercício de cargos estratégicos como esses que,
teoricamente, contribuem para aumentar a popularidade de um político,
ao que parece, não surtiram tal efeito na carreira política do personagem.
Assim, nesse período, aconteceriam algumas tentativas frustradas de se
tornar deputado federal. Em meio a essas tentativas, o golpe militar de
1964 viria contribuir decisivamente para o término da carreira política
de Lustosa. No mesmo mês de junho de 1964, em que o ex-presidente
Juscelino Kubitschek fora cassado em seus direitos políticos, denunciado
por corrupção pela Associação de Tesoureiros e Economiários e dos
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Oficiais Economiários de Administração do Paraná, ele foi exonerado da
função pelo presidente Castelo Branco. Isso, antes mesmo da conclusão
do Inquérito Policial Militar que fora instaurado para apurar as
denúncias. Seguiu-se um calvário longo e penoso. Sua prisão foi decretada
pelo comando da 5a Região Militar, “por indícios de culpabilidade”.
Finalmente, no quarto capítulo, buscou-se captar o olhar e os
sentimentos do personagem sobre acontecimentos que se sucederam
ao longo de sua vida. Para isso, constituíram-se fontes privilegiadas as
crônicas de João do Planalto. A partir dos acontecimentos de 1964, e da
importante ruptura que esses acontecimentos causaram na carreira política
do personagem, tais crônicas passaram a encerrar novos significados
e um novo estilo, que as modificou tanto na sua forma, como no seu
conteúdo. Naquele momento, elas se voltavam ao passado. Os amigos,
muitos dos quais já falecidos, eram objeto de recordações, pelas suas
peculiaridades e pelo espaço que haviam ocupado em sua existência.
Nelas, o culto aos antepassados era um tema recorrente. O conceito de
progresso foi revisitado, passando a ser definido como “tecnologia que
avassala a humanidade” e, em uma forma mais branda de concepção, “a
faca de dois gumes”. Havia também lamentos a respeito da perda dos
vestígios do passado colonial de Guarapuava. Talvez por isso, entre
1974 e 1978, Lustosa se dedicara à construção de “lugares de memória”,
como o monumento que guarda as cinzas de um dos fundadores da
cidade, Padre Francisco das Chagas Lima, o Cristo Redentor construído
na Serra do Purunã, nas proximidades de Curitiba e o monumento ao
cacique Guairacá, na entrada do perímetro central de Guarapuava. Esses
monumentos representaram o “canto do cisne” de um cidadão que viveu
e observou a sua cidade como ninguém jamais o fez.
22
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