Erótica e temporalidade
Carlos Alexandre de Oliveira Antonio1
Embora Freud não tenha dedicado um texto específico sobre o tempo, podemos
dizer, de acordo com Gondar, que as questões que conduzem a teoria psicanalítica a se
diferenciar do solo cultural estão impregnadas da problemática do tempo2. Assim, a
importância da função do tempo em relação à erótica, ainda que não articulada por
Freud, é apontada em alguns momentos de sua teorização. Nosso objetivo é acompanhar
como essas relações aparecem no texto freudiano, para quem sabe, no fim, formular
alguma questão.
Destacamos três desses momentos: no primeiro, Freud aponta a temporalidade
como um dos fatores perturbadores do “desenvolvimento” sexual3. Já no segundo, Freud
indica a importância que as variações na seqüência temporal e o encadeamento dos
processos presentes no complexo de Édipo têm para o “desenvolvimento” do
indivíduo4. E por fim, quando aponta a duração da ligação da criança com a mãe 5 na
fase pré-edipiana.
A partir desses três exemplos, conseguimos indicar, no texto de Freud, a relação
entre temporalidade e sexualidade, e, conseqüentemente, sublinhar a articulação
existente entre a “escolha” de objeto em dois tempos, a sexualidade “infantil” e o
complexo de Édipo.
Em Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud critica uma
suposta norma sexual pautada em noções populares 6 da sexualidade ampliando esta
noção até sua dimensão “infantil”7. Essencialmente, o termo “infantil”, em psicanálise,
diz respeito à busca de prazer operando como princípio8 regulador da economia
psíquica, ou seja, pelo fato do psiquismo se estruturar a partir de uma experiência de
1
Psicólogo, psicanalista, Pós-graduado em Psicanálise pela UFF, Mestrando do Programa de Pós-graduação em
Psicanálise do IP/UERJ.
2
GONDAR, J. Os tempos de Freud. São Paulo: Revinter, 1994, p.8-9
3
Refere-se à seqüência da ativação das moções pulsionais, o intervalo entre a influência de uma moção pulsional e
outra cujas variações exercem uma influencia determinante sobre o resultado final, visto que não é indistinto que uma
corrente apareça antes ou depois da corrente contrária. Conclusão: uma defasagem temporal na composição dos
elementos produz uma alteração do resultado. AE, Vol. VII, p.220
4
FREUD, S. El sepultamiento del complejo de Edipo. Buenos Aires: AE, 1978, Vol. XIX, p.187.
5
FREUD, S. Sobre la sexualidad femenina. Buenos Aires: AE, 1978, Vol. XXI, p.228
6
São elas: 1. a idéia de que a sexualidade estava ausente na infância, 2. de que se iniciava apenas com a puberdade, 3.
sua manifestação era, exclusivamente, a atração de um sexo pelo outro, 4. seu objetivo era, apenas, a reprodução
7
Indicamos a leitura do questionamento feito por Ana Costa à sexualidade “infantil” em A ficção do si mesmo:
interpretação e ato em psicanálise, p.27
8
O princípio de prazer regula a economia psíquica em busca da homeostase. Deve-se entender o prazer como a
diminuição da excitação psíquica e o desprazer como seu aumento.
satisfação ocorrida na infância9. Conforme Freud, as relações de prazer e desprazer
entre o bebê e seu cuidador tendem a produzir traços mnêmicos que serão os primeiros
objetos de investimento da pulsão.
Então, poderíamos dizer que o que caracteriza o “infantil” da sexualidade é o
investimento do traço mnêmico como índice do objeto real10, visto que, a busca de
prazer através de um objeto se consuma “primeiro na [esfera da] representação” 11. Essa
dissimetria entre o investimento do traço mnêmico e o objeto real está descrita na
fórmula freudiana: “o encontro do objeto é sempre um reencontro”12.
Portanto, ao afirmar essa fórmula, Freud refere-se ao fato de que a possibilidade
de encontrar um objeto sexual real a partir da puberdade é preparada, psiquicamente,
desde a mais tenra infância. Porém, a afirmação de tal fórmula é ambígua e permite
supor que exista um objeto a ser reencontrado, quando, na verdade, se trata, no primeiro
tempo da “escolha” de objeto, de um “representante da representação”. Então,
poderíamos reescrever a fórmula freudiana da seguinte maneira: “o encontro do objeto é
sempre um reencontro”...com o representante da representação.
Em Freud, vale ressaltar que o representante da representação não é um objeto, e
sim a indicação de um “lugar mnêmico” que ao ser investido evoca um objeto e, por
isso, funciona como signo de diferenciação entre percepção e consciência. Sendo assim,
há uma falta de correspondência entre o lugar mnêmico e objeto real, que, por um lado,
possibilita a variabilidade do objeto da pulsão, e por outro, tematiza essa disjunção, na
constituição subjetiva, pela via da castração13. Por essa razão, o “desenvolvimento”
sexual em dois tempos se apresenta como uma das condições da aptidão do homem
tanto para a cultura (sublimação) quanto para a neurose14.
Em O mal-estar na cultura (1930[1929]), Freud, lendo o ideal de felicidade
humano a partir do programa do princípio do prazer, afirma que há dois propósitos na
vida: 1. evitar dor e desprazer, 2. vivenciar intensos sentimentos de prazer (felicidade) 15.
Com isso, o mal-estar resulta da impossibilidade de satisfação plena, de harmonia, já
9
FREUD, S. Projeto. Imago, p.32
A esse investimento do traço mnêmico pela pulsão tal como descrito no Projeto (1895) poderíamos associar o
termo “representante da representação” utilizado por Freud para definir o complexo afeto-ideia no texto “O recalque”
(1915).
11
FREUD, S. (1905) Tres ensayos de teoria sexual. Buenos Aires: AE, 1978. Vol.VII, p.206
12
FREUD, S. (1905), Op.cit, p. 203
13
Perda de gozo ou de satisfação.
14
Cf. AE, Vol. VII, p.214
15
Cf. AE, Vol. XXI, p.76
10
que, considerando a variabilidade do objeto pulsional, a satisfação atingida é sempre
parcial. Em resumo, o prazer só pode ser vivenciado como um fenômeno episódico.
Nesse sentido, a neurose16 é a busca, diante do mal-estar, de uma satisfação plena
(impossível de atingir) através do investimento na fantasia (introversão). Ora, pode-se
deduzir que no pensamento neurótico há uma suposição de que a evitação do caráter
episódico do prazer lhe permitirá atingir a plenitude do prazer. E com isso, ao evitar a
satisfação possível o neurótico se coloca nas impossibilidades de satisfação.
Considerando essa impossibilidade de satisfação plena, Freud nos aponta o peso
da “moral sexual ‘cultural’”17 na erótica, a partir a hipótese de que a vida erótica dos
homens civilizados é marcada com o selo universal da degradação 18. Nesse sentido, para
Freud, a degradação da vida erótica é um efeito “cultural” da irrupção da
bitemporalidade da escolha objetal, visto que, o período de latência, imposto pelo
processo cultural, opera uma divisão19 na vida sexual de homens e mulheres.
Podemos resumir a forma como essa divisão é expressa culturalmente da seguinte
maneira: os homens durante o período de latência transgridem a regra de proibição com
a condição de depreciar o objeto sexual, e com isso, dividem sua vida erótica – “quando
amam não desejam, quando desejam não podem amar” 20. Já as mulheres, por acatarem a
proibição, vinculam-na à atividade sexual, e experimentam como resultado disso, a
frigidez ou impasses com o orgasmo. Há, portanto, uma equivalência entre proibição e
degradação como modos de defesa contra a impossibilidade de correspondência entre o
lugar mnêmico e o objeto real.
Essa falta de correspondência21 é valorizada por Lacan para construir a noção de
objeto a como causa de desejo. E por isso, o autor, revisando o status do objeto, propõe
substituir o tema da depreciação da vida erótica pela questão da “função do desejo no
amor”22. Isso porque, o objeto a, enquanto causa de desejo, exerce todo seu papel tanto
para homens quanto para mulheres (Lacan, 1962-1963/2005, p.200). De acordo com
16
Em o mal-estar na cultura, Freud aponta a neurose como uma “técnica de vida”, assim como, a arte, a pesquisa
científica, o amor, enfim, saídas possíveis para o mal-estar.
17
Cf. La moral sexual “cultural” y la nervosidad moderna. AE, Vol. IX
18
Cf. Sobre una degradación general de la vida erótica (1912)
19
No curso do período de transição constituído pela puberdade, os processos somáticos e psíquicos se desdobram
durante um tempo sem entrar em contato entre si até que irrompe uma intensa moção anímica de amor, que ao inervar
os genitais produz a unidade da função do amor que a normalidade requer: combinar num mesmo objeto a corrente
terna e sensual. AE, Vol. VII, p.215
20
“si amam a una mujer, no la desean, y si la desean, no pueden amarla” (p.969)
21
Essa falta de correspondência na elaboração lacaniana está ligada à teoria da falta de objeto (Sem.IV: A relação de
objeto) à famosa fórmula da inexistência da relação sexual (Sem.XX: Mais, ainda).
22
Seminário 10: A angústia (1962-63) na lição “Pontuações sobre o desejo”, p.170
Lacan, toda dialética do amor gira em torno da falta do objeto, o que lhe permite
concluir que “o desejo não diz respeito ao objeto amado” (Lacan, op.cit, p.170).
Quando lança a hipótese da depreciação da vida erótica como universal, Freud se
pergunta sobre o que estaria em jogo no descompasso da relação entre o amante e objeto
amado. Podemos responder, a partir do estudo de Lacan sobre a transferência, que é de
mal-entendido que se trata: o amante não sabe o que lhe falta, e o amado não sabe o que
ele tem (LACAN, 1960-61/1992, p.46).
Por essa razão, nesse trabalho, tentamos pensar as neuroses como impasses na
articulação entre amor, desejo e gozo devido ao fato do “desenvolvimento” sexual
humano estar submetido à temporalidade. Sendo assim, a análise seria uma
possibilidade de temporalização da vida sexual. Ou com Lacan relendo Freud: a
restituição da história do sujeito (LACAN, 1953-54/1986, p. 21-23).
Com base nisso, para concluir, perguntamos:
- o mal-estar de que se trata na cultura é o mal-entendido estrutural proveniente da
função específica do tempo no desdobramento da sexualidade e na constituição do
sujeito do desejo em exclusão interna ao seu objeto?
- articulando a questão da constituição do sujeito com as fórmulas da sexuação,
poderíamos dizer que a problemática para quem se coloca do lado homem envolve a
divisão, por um lado, do amor e por outro, do desejo de gozo? E quem se coloca do lado
mulher a divisão, por um lado, do gozo e por outro, do desejo de amor?
BIBLIOGRAFIA:
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Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1967.
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FREUD, S. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1978.
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JZE, 2008.
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