y(7HB5G3*QLTKKS( +\!"!:!@!$! Preço € 1,00. Número atrasado € 2,00 L’OSSERVATORE ROMANO EDIÇÃO SEMANAL Unicuique suum EM PORTUGUÊS Non praevalebunt Cidade do Vaticano Ano XLVI, número 32-33 (2.375) Quinta-feira 6-13 de Agosto de 2015 Durante a audiência geral o Papa recomendou acolhimento e cura para as famílias feridas Não às portas fechadas Quantos estabeleceram uma nova união depois do fracasso do matrimónio não são excomungados «Não às portas fechadas!» repetiu o Papa Francisco durante a audiência geral de quarta-feira 5 de Agosto, exortando os cristãos a garantir acolhimento e cura pastoral a quantos empreenderam uma nova união após o fracasso do matrimónio sacramental. Concluída a pausa do mês de Julho, o Pontífice retomou na Sala Paulo VI os encontros semanais com os fiéis. E dando continuidade ao ciclo de catequeses dedicadas à família, reflectiu sobre a situação dos «baptizados que estabeleceram uma nova convivência» depois «do fracasso irreversível do seu vínculo matrimonial». A Igreja «bem sabe que tal situação está em contraste com o sacramento cristão», garantiu a propósito Francisco; sem esquecer, contudo, que existe uma «diferença entre quem sofreu a separação em relação a quem a provocou» e que, de qualquer forma, «estas pessoas não estão excomungadas de maneira alguma e não devem ser absolutamente tratadas como tais: elas fazem sem- pre parte da Igreja». Em particular, o Papa recomendou que se considerem as repercussões que essas situações podem ter em relação aos filhos pequenos: «Devemos fazer de modo que não se acrescentem outros pesos além dos que os filhos, nessas circunstâncias, já se encontram a ter que suportar», exortou. Eis então o apelo dirigido a todos os cristãos, para que se comprometam a «cuidar das famílias feridas, acompanhando-as na vida de fé da comunidade». Cada um está chamado a fazer «a sua parte, assumindo a atitude do Bom Pastor, o qual conhece cada uma das suas ovelhas e não exclui alguma do seu amor infinito». PÁGINA 16 Francisco convidou os acólitos a serem missionários para responder à iniciativa de Deus Entrevista ao cardeal Amato Quem dá o primeiro passo Santos da América Latina Em colóquio com o responsável da secção jovens do dicastério para os leigos Desafio dos três pês MAURIZIO FONTANA NA PÁGINA 11 Um agradecimento pela «disponibilidade ao serviço junto do altar do Senhor, fazendo deste serviço uma escola de educação para a fé e para a caridade ao próximo» foi dirigido pelo Papa aos acólitos recebidos na tarde de 4 de Agosto na praça de São Pedro. Com um lenço branco ao pescoço, para recordar a situação na Ucrânia, esperança na reconciliação, Francisco encontrou-se com mais de dez mil acólitos e com eles recitou a oração das vésperas. Quem entregou o lenço branco ao Pontífice foi precisamente um ucraniano, Marton, em nome dos seus concidadãos, «mas também de todos os jovens presentes, vindos de 23 nações para viver uma experiência concreta de comunhão e partilha», como explicou o bispo sérvio de Zrenjanin, D. Ladislav Nemet, presidente do Coetus internationalis ministrantium, que apresentou ao Santo Padre o conteúdo do 11º encontro romano. O Pontífice exortou os acólitos a serem missionários entre os coetâneos. «Amados acólitos, quanto mais próximos do altar estiverdes, tanto mais vos recordareis de dialogar com Jesus na prece diária; quanto mais vos alimentardes da Palavra e do Corpo do Senhor, tanto mais sereis capazes de ir ao encontro do próximo — concluiu — levando-lhe como dom o que recebestes, transmitindo por vossa vez com entusiasmo a alegria que vos foi doada». PÁGINA 5 Salgado entre meio ambiente e agricultura Benedito Calixto, «Anchieta com o Evangelho nas Selvas» (1893) Os rostos do café GAETANO VALLINI NA PÁGINA 10 NA PÁGINA 14 No último livro de Marco Vannini Regresso do Anticristo LUCETTA SCARAFFIA Durante a recente viagem à América Latina o Papa Francisco falou de figuras exemplares de santidade nos países visitados. Figuras muito veneradas no continente que o viu nascer, mas muitas vezes desconhecidas aquém-Atlântico. Publicamos a entrevista concedida ao nosso jornal pelo cardeal Amato. PÁGINAS 8 E 9 L’OSSERVATORE ROMANO página 2 quinta-feira 6-13 de Agosto de 2015, número 32-33 Angely Martínez «Lo que todos esperamos» (2010) VÍCTOR MANUEL FERNÁNDEZ Numa conversa tida com o Papa quando começou a reflectir sobre os conteúdos da nova encíclica, disseme que estava a analisar sobretudo a questão do poder, e que por isso relia Romano Guardini. O texto da encíclica confirma até que ponto ele foi em frente nesta linha de análise. Por conseguinte, penso que o terceiro capítulo, pouco mencionado nos comentários à encíclica, deveria ser considerado melhor. Para debater acerca dos sintomas não conseguimos compreender o que o Papa indica realmente, quando quer ir ao cerne da questão. Ele mesmo nos dá explicitamente uma chave de leitura ao afirmar: «Para As raízes da crise ecológica na «Laudato si’» nada serviria descrever os sintomas, se não reconhecêssemos a raiz humana da crise ecológica. Há um modo desordenado de conceber a vida e a acção do ser humano, que contradiz a realidade até ao ponto de a arruinar» (n. 101). Precisamente depois destas palavras ele começa a desenvolver a sua crítica ao poder, afirDesta forma, pretende chegar às progresso no qual «os esforços para mando que os progressos tecnológi- raízes mais profundas da problemáti- um uso sustentável dos recursos nacos «dão, àqueles que detêm o co- ca ambiental. Seria muito superficial turais não são gasto inútil, mas innhecimento e sobretudo o poder afirmar que a Laudato si’ é uma en- vestimento que poderá proporcionar económico para o desfrutar, um do- cíclica contra a tecnologia, porque outros benefícios económicos a mémínio impressionante sobre o con- «ninguém quer o regresso à Idade dio prazo» (n. 191). Ao contrário, na junto do género humano e do mun- da Pedra» (n. 114). economia actual há um «excessivo do inteiro» (n. 104). Por isso, formuObservemos em primeiro lugar investimento tecnológico no consulou uma pergunta que ainda não que, mesmo se há quem o interprete mo e o escasso investimento para retem resposta: «Nas mãos de quem assim, nas palavras do Papa não há solver os problemas urgentes da huestá e pode chegar a estar tanto po- uma rejeição da economia nem da manidade» (n. 192), enquanto uma der? É tremendamente arriscado que actividade empresarial destinada a economia mais orientada para o bem resida numa pequena parte da hu- produzir riqueza. Ele afirma que a comum «poderia gerar formas intelimanidade» (n. 104). gentes e rentáveis de reutilização, reCom duro realiscuperação funcional e reciclagem; mo, o Papa adverte poderia melhorar a eficiência energéque hoje o ser humatica das cidades... A diversificação no não está em conprodutiva oferece à inteligência hudições adequadas pamana possibilidades muito amplas ra exercer com abnede criar e inovar, ao mesmo tempo gação, lucidez e hoque protege o meio ambiente e cria nestidade um poder Publicamos excertos da conferência apresentada mais oportunidades de trabalho» muito grande, e asno passado dia 27 de Julho em Buenos Aires (Ibidem). sim «está nu e expospelo arcebispo reitor da Pontifícia Universidade Chama a atenção para o facto de to frente ao seu próCatólica Argentina por ocasião de um encontro que muitos economistas católicos se prio poder que conticom políticos e empresários reunidos para recusam de aceitar o desafio e assunua a crescer, sem ter mem uma atitude defensiva e até reflectir sobre os temas da encíclica. os instrumentos para ressentida, quando poderiam usar a o controlar. Talvez sua criatividade para acompanhar e disponha de mecanisenriquecer a proposta de Francisco. mos superficiais, mas Sem dúvida, há contudo um ponto podemos afirmar que carece de uma actividade empresarial é «uma nobre ética sólida, uma cultura e uma espi- vocação orientada para produzir ri- sobre o qual o Papa se distancia claritualidade que lhe ponham real- queza e melhorar o mundo para to- ramente das perspectivas neoliberais mente um limite e o contenham dos, pode ser uma maneira muito fe- extremas, e é a convicção de que a dentro de um lúcido domínio de si» cunda de promover a região onde liberdade de mercado não é suficieninstala os seus empreendimentos, so- te para resolver todos os problemas. (n. 105). A denúncia do Papa é contra bretudo se pensa que a criação de Estamos simplesmente diante de um qualquer forma de poder que se eri- postos de trabalho é parte impres- realismo sadio que leva a frisar que ge acima das realidades e pretende cindível do seu serviço ao bem co- o ser humano abandonado a si mesmo, ao dinamismo da sua liberdade, construí-las a seu bel-prazer e segun- mum» (n. 129). Aquilo que o Papa propõe é o de- não garante o cuidado dos débeis. do as próprias vantagens. Por isso, Há contudo uma admoestação insiste sobre a necessidade de «to- safio de reconsiderar outro tipo de mar consciência de que vivemos e economia, menos ligada à especula- mais geral e séria, que ele faz quanagimos a partir de uma realidade ção financeira e melhor orientada do pede para garantir um sistema normativo adequado «antes que as que nos foi previamente dada, que é para o bem comum. Não rejeita de forma alguma o novas formas de poder derivadas do anterior às nossas capacidades e à progresso, mas propõe outro tipo de paradigma tecno-económico acabem nossa existência» (n. 140). Poderosos sem poder Com políticos e empresários L’OSSERVATORE ROMANO EDIÇÃO SEMANAL Unicuique suum EM PORTUGUÊS Non praevalebunt GIOVANNI MARIA VIAN director Giuseppe Fiorentino vice-director Cidade do Vaticano [email protected] www.osservatoreromano.va Redacção via del Pellegrino, 00120 Cidade do Vaticano telefone +390669899420 fax +390669883675 TIPO GRAFIA VATICANA EDITRICE L’OSSERVATORE ROMANO don Sergio Pellini S.D.B. director-geral por arrasá-los não só com a política, mas também com a liberdade e a justiça» (n. 53). A seriedade desta admoestação não teve ecos na imprensa. Porventura ouve quem se questionou acerca do que significa que o paradigma actual pode destruir a liberdade? Os poderes económicos e tecnológicos defendem a liberdade empresarial e de desenvolvimento, mas isto não significa que defendem a liberdade das pessoas em todos os sentidos, considerando que «a aliança entre economia e tecnologia acaba por deixar de fora tudo o que não faz parte dos seus interesses imediatos» (n. 54). Verifiquemos então que, por detrás das interrogações apresentadas à economia de mercado, há algo mais decisivo: o problema é o poder, e contudo a especulação financeira desenfreada como uma forma na qual se encarna um poder sem limites nem margens éticas. Face aos poderosos estão aqueles que não têm poder, aqueles que se podem descartar. Nesta encíclica têm um lugar privilegiado, porque as formulações sobre o meio ambiente estão estreitamente ligadas às reivindicações sociais dos pobres e dos países menos desenvolvidos, motivo pelo qual a questão ambiental se coloca no quadro do «reconhecimento do outro». A relação íntima existente entre as questões ecológicas e sociais está cruamente expressa no seguinte parágrafo, que não podemos deixar de ler: «Continuamos a tolerar que alguns se considerem mais dignos do que outros. Deixamos de notar que alguns se arrastam numa miséria degradante, sem possibilidades reais de melhoria, enquanto outros não sabem sequer o que fazer ao que têm, ostentam vaidosamente uma suposta superioridade e deixam atrás de si um nível de desperdício tal que seria impossível generalizar sem destruir o planeta. Na prática, continuamos a admitir que alguns se sintam mais humanos que outros, como se tivessem nascido com maiores direitos» (n. 90). Por isso, a encíclica retoma com firmeza a questão do destino comum dos bens deste mundo: «O meio ambiente é um bem colectivo, património de toda a humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é apenas para a administrar em benefício de todos. Se não o fizermos, carregamos na consciência o peso de negar a existência aos outros» (n. 95). O problema é que a sociedade permite que os pobres se tornem invisíveis, de modo que a sua presença não ponha em questão os seus hábitos de consumo e o seu estilo de vida. O desafio da inclusão dos pobres CONTINUA NA PÁGINA 3 Assinaturas: Itália - Vaticano: € 58.00; Europa: € 100.00 - U.S. $ 148.00; América Latina, África, Ásia: € 110.00 - U.S. $ 160.00; América do Norte, Oceânia: 162.00 - U.S. $ 240.00. 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Recordou o Papa Francisco no Angelus de domingo 2 de Agosto na praça de São Pedro, convidando os fiéis a ir além das «preocupações diárias do comer, do vestir, do sucesso, da carreira» para procurar Jesus, «pão vivo que não se corrompe e dura para a vida eterna». Amados irmãos e irmãs, bom dia! Prosseguimos neste domingo a leitura do capítulo seis do Evangelho de João. Depois da multiplicação dos pães, o povo pôs-se à procura de Jesus e finalmente encontra-o junto de Cafarnaum. Ele compreende bem o motivo de tanto entusiasmo em segui-lo e revela-o com clareza: «Vós me procurais, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos saciastes» (Jo 6, 26). Na realidade, aquelas pessoas seguem-no pelo pão material que no dia anterior lhes tinha saciado a fome, quando Jesus fizera a multiplicação dos pães; não compreenderam que aquele pão, partido para tantos, para muitos, era a expressão do amor do próprio Jesus. Deram mais valor àquele pão do que ao seu doador. Diante desta cegueira espiritual, Jesus evidencia a necessidade de ir São Francisco num pormenor dos afrescos da Porciúncula escolhido como símbolo do perdão de Assis 2015 As raízes da crise ecológica CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 2 é constante, por exemplo, quando o Papa pede que a dívida seja substituída com a criação de postos de trabalho: «O trabalho é uma necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra, é caminho de maturação, desenvolvimento humano e realização pessoal. Neste sentido, ajudar os pobres com o dinheiro deve ser sempre um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objectivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho» (n. 128). Mas os critérios do rendimento fácil levam a «reduzir os custos de produção com base na diminuição dos postos de trabalho, que são substituídos por máquinas. É mais um exemplo de como a acção do homem se pode voltar contra si mesmo» (Ibidem), numa espécie de «suicídio social» a longo prazo. além da doação e descobrir, conhecer o doador. O próprio Deus é o dom e também o doador. E assim daquele pão, daquele gesto, as pessoas podem encontrar Quem o dá, que é Deus. Convida a abrir-se a uma perspectiva que não é só das preocupações diárias do comer, do vestir, do sucesso, da carreira. Jesus fala de outro alimento, fala de um alimento que não é corruptível e que é bom procurar e acolher. Ele exorta: «Trabalhai não pelo alimento que perece, mas pelo alimento que permanece até à vida eterna, e que o Filho do homem vos dará» (v. 27). Ou seja, procurai a salvação, o encontro com Deus. E com estas palavras, quer-nos fazer compreender que, além da fome física o homem tem em si outra fome — todos nós temos esta fome — uma fome mais importante, que não pode ser saciada com um alimento qualquer. Trata-se da fome de vida, da fome de eternidade que só Ele pode satisfazer, porque é «o pão da vida» (v. 35). Jesus não elimina a preocupação nem a busca do alimento diário, não, não elimina a preocupação de tudo o que pode tornar a vida mais progredida. Mas Jesus recorda-nos que o verdadeiro significado da nossa existência terrena consiste no fim, na eternidade, consiste no encontro com Ele, que é dom e doador, e recorda-nos também que a história humana com os seus sofrimentos e as suas alegrias deve ser considerada num horizonte de eternidade, ou seja, no horizonte do encontro definitivo com Ele. E este encontro ilumina todos os dias da nossa vida. Se pensarmos neste encontro, neste grande dom, os pequenos dons da vida, também os so- Carta do secretário de Estado para o congresso em Ávila Teresa mestra de oração Um encorajamento a contemplar e meditar com Teresa de Jesus como «mestra de oração» para descobrir novamente a «fonte da ciência verdadeira e dos valores autênticos» que estão na base da vida. Numa carta assinada pelo cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado — o Papa Francisco dirigiu-se aos participantes no congresso inter-universitário que se concluiu a 3 de Agosto em Ávila, no quinto centenário do nascimento da santa. Na abertura dos trabalhos, no dia 1 de Agosto, o Pontífice quis enviar a sua saudação e bênção, desejando que nas universidades católicas se formem «amigos fortes de Deus», particularmente necessários nos «tempos difíceis». A mensagem foi lida pelo bispo de Ávila, D. Jesús García Burillo, na sessão inaugural do congresso, no qual participaram 450 pessoas provenientes de 26 países, em representação de 120 instituições académicas, também na presença do ministro do Interior espanhol, Jorge Fernández Díaz. Na sua mensagem Francisco elogiou o objectivo dos organizadores de levar ao mundo universitário a figura e o ensinamento de Teresa — «insigne doutora da Igreja» — através do aprofundamento dos passos da santa peregrina, repropondo a actualidade do seu ensinamento e o estímulo do seu exemplo. O congresso — no qual interveio, entre outros, também o cardeal Antonio María Rouco Varela, arcebispo emérito de Madrid, afirmando que a santa «representa o momento eclesial culminante da vida consagrada na história moderna e contemporânea da Igreja» — concluiuse com a atribuição por parte da Universidade católica de Ávila (Ucav) do «título de doctor honoris causa» a santa Teresa. O cardeal arcebispo de Valência, Antonio Cañizares Llovera, pronunciou a «laudatio». Numa obra de Carson Perez o Santo Niño filipino com a escrita no manto «Tinapay Ng Buhay» («Pão de vida») frimentos, as preocupações serão iluminadas pela esperança deste encontro. «Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome, e quem crê em mim nunca mais terá sede» (v. 35). E esta é uma referência à Eucaristia, o maior dom que sacia a alma e o corpo. Encontrar e acolher Jesus, «pão de vida», em nós, confere significado e dá esperança ao caminho muitas vezes sinuoso da vida. Mas este «pão de vida» é-nos dado com uma tarefa, ou seja, para que possamos por nossa vez saciar a fome espiritual e material dos irmãos, anunciando o Evangelho por toda a parte. Com o testemunho da nossa atitude fraterna e solidária para com o próximo, tornamos Cristo e o seu amor presentes no meio dos homens. A Virgem Santa nos ampare na busca e no seguimento do seu Filho Jesus, o pão verdadeiro, o pão vivo que não se corrompe e dura eternamente. No final da oração mariana, depois de ter saudado os grupos presentes, o Papa recordou a celebração do «Perdão de Assis» e exortou os fiéis a não ter medo de se aproximar da confissão. Amados irmãos e irmãs! Dirijo uma saudação a todos vós fiéis de Roma e peregrinos de diversos países. Recorda-se hoje o «Perdão de Assis». É uma forte chamada a aproximar-nos do Senhor no Sacramento da Misericórdia e também a receber a Comunhão. Há pessoas que têm medo de se aproximar da Confissão, esquecendo que lá não encontramos um juiz severo, mas o Pai imensamente misericordioso. É verdade que quando vamos ao confessionário, sentimos um pouco de vergonha. Isto acontece a todos, a todos nós, mas devemos recordar que também esta vergonha é uma graça que nos prepara para o abraço do Pai, que perdoa sempre, perdoa tudo. A todos vós desejo bom domingo. E por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à próxima! L’OSSERVATORE ROMANO página 4 quinta-feira 6-13 de Agosto de 2015, número 32-33 Confissões durante a Jmj do Rio Em diálogo com o cardeal De Magistris Ministros de reconciliação NICOLA GORI O que é necessário para ser um bom confessor hoje? Estamos já próximos do início do Ano da misericórdia, proclamado pelo Papa Francisco. Um momento privilegiado para voltar a descobrir o sacramento da Reconciliação e uma ocasião para os sacerdotes poderem dedicar-se com maiores disponibilidade e preparação a ouvir os penitentes. Uma missão que não se improvisa mas que, ao contrário, exige oração, sacrifício, discernimento e, precisamente, misericórdia. Discorremos sobre isto com um especialista nesta matéria, o qual descobriu que tinha sido criado cardeal exactamente quando se encontrava num confessionário na Catedral de Cagliari. Trata-se de Luigi De Magistris, um dos cinco novos purpurados com mais de oitenta anos — o único italiano — que o Papa Francisco tinha decidido inserir no Colégio cardinalício durante o Consistório realizado no passado mês de Fevereiro. Com oitenta e nove anos, muitos dos quais passados no ministério da reconciliação, hoje concede ao nosso jornal a seguinte entrevista. Ser culto e bom. Isto é, ter uma boa formação precedente e depois um profundo conhecimento da teologia moral (tive como mestre o cardeal Pietro Palazzini, que era um grande moralista), juntamente com uma atitude amorosa em relação ao penitente, que não deve ter medo de se confessar. A isto eu acrescentaria ainda o seguinte conselho: jamais abandonar os estudos sagrados, dado que eles constituem uma defesa para a virtude sacerdotal; do mesmo modo, é importante permanecer actualizado sobre algumas temáticas como a bioética: nos dias de hoje, o confessor que não conhece pelo menos os elementos essenciais desta matéria não deveria sentar-se ao confessionário. Qual é a principal causa do desamor em relação a este sacramento? Em última análise existe o orgulho e, por conseguinte, a nossa presunção de não termos necessidade deste sacramento, com a suposição prévia de sermos perfeitos. Com efeito, para ser confessor é preciso reconhecer humildemente as próprias culpas e, portanto, a necessidade do perdão. Numa sociedade em que tudo é apresentado como lícito perdeu-se gradualmente o sentido do pecado: talvez, em parte, a responsabilidade seja nossa, dos sacerdotes, que na pregação muitas vezes substituímos a catequese com um grande palavreado, do qual a alma dos fiéis beneficia muito pouco. O que se pode fazer, para recuperar o valor deste sacramento? Antes de tudo, seria necessário recordar periodicamente aos fiéis que para receber a Eucaristia é preciso encontrar-se em estado de graça e, além disso, dar o bom exemplo: em primeiro lugar nós mesmos, confes- O Pontifício conselho para a promoção da nova evangelização actualizou o calendário Com Francisco no Ano da Misericórdia Uma vigília de oração para «enxugar as lágrimas» de quem sofre e precisa de conforto; a visita a um abrigo, como obra de misericórdia; a experiência penitencial da «24 horas pelo Senhor». E uma série de encontros internacionais com várias categorias: famílias, agentes das peregrinações, párocos, reitores dos santuários, componentes da Cúria romana, do Governatorato do Estado da Cidade do Vaticano e das instituições coligadas com a Santa Sé, quantos seguem a espiritualidade da Divina misericórdia, adolescentes entre os treze e os dezasseis anos, diáconos, sacerdotes, doentes e deficientes, catequistas, presos, peregrinos marianos. São estas as novidades introduzidas no calendário dos grandes eventos do Ano santo extraordinário, nos quais participará o Papa Francisco, dadas a conhecer pelo Pontifício Conselho para a promoção da nova evangelização no site internet (www.im.va). Além da publicação da agenda pormenorizada dos dias especiais, o dicastério anuncia que para favorecer as peregrinações diocesanas, dos movimentos e dos grupos particulares, há uma proposta de doze audiências jubilares, na presença do Papa, que terão lugar de Janeiro a Novembro de 2016, no dia de sábado. Daniel Bonnell, «O perdão do pai» Os novos encontros do calendário para o Jubileu da misericórdia foram concebidos como gestos de atenção e acolhimento, para testemunhar que nenhuma pessoa, categoria ou grupo é excluído da misericórdia divina. Começando pelos bispos, sacerdotes, diáconos, consa- grados, catequistas, leigos comprometidos, até aos mais distantes, os últimos, sem distinção de idade, sexo, língua ou cultura. E seja qual for a situação física ou espiritual em que se encontrem: doentes, deficientes, pobres, desempregados, desabrigados, presos. Sem esquecer quantos nos precederam no caminho da vida, com um dia dedicado à sua recordação e sufrágio. O Jubileu — que se abre no sinal de Maria, no próximo dia 8 de Dezembro, solenidade da Imaculada Conceição, e se conclui a 20 de Novembro de 2016, no nome de Jesus Cristo rei do universo — pretende dar a conhecer ao mundo as riquezas da misericórdia divina. No espaço de tempo ritmado pela abertura e o encerramento da Porta santa, serão idealmente abertas as portas do perdão e do amor de Deus e o Pontífice realizará diversos sinais jubilares para testemunhar as obras de misericórdia corporais e espirituais. Muitos dos grandes encontros previstos terão lugar em vários dias, para oferecer a possibilidade de reflectir sobre a própria vida para se adentrar ainda mais pelo caminho de conversão que o Evangelho requer. Com a participação do Papa Francisco serão alternadas orações, celebrações litúrgicas, adorações eucarísticas. sando-nos frequentemente. Eu recomendaria uma vez por semana e, como sacerdotes, devemos permanecer sempre dispostos a ouvir as confissões. Como recebeu a notícia da criação cardinalícia? Sentia-me indigno e, por este motivo, ainda mais grato ao Senhor que desejou fazer-me chegar a este vértice. Quando me comunicaram a notícia eu encontrava-me, como de costume, a ouvir confissões na Catedral de Cagliari, hábito ao qual espero poder dar continuidade. Foi o pároco quem me disse que o Papa Francisco tinha anunciado o meu nome entre aqueles dos novos purpurados. Dado que eu não tinha recebido qualquer aviso prévio, julguei que se tratava de uma brincadeira. Durante muitos anos o senhor esteve ao serviço da Cúria. Pode descrever-nos a sua experiência? Passei da secretaria da Pontifícia Universidade Lateranense para a Congregação para a Doutrina da Fé, onde desempenhei a função de minutador; depois, para a Secretaria de Estado; e finalmente para a Penitenciaria Apostólica. Tudo isto representou uma experiência inestimável para mim, quer do ponto de vista cultural, enquanto presbítero, quer sobretudo espiritual. Além disso, como regente e sucessivamente pró-penitenciário-mor, tive a possibilidade de entrar em contacto com as várias problemáticas dos ministros da penitência. Conservo numerosíssimas recordações, mas não quero entrar nos pormenores porque sou muito rigoroso na interpretação do sigilo profissional. O senhor trabalhou em Roma principalmente durante os anos do longo Pontificado de João Paulo II. Quais são as suas recordações do Papa santo? Eu já conhecia o cardeal Karol Wojtyła, porque tive a oportunidade de desempenhar um serviço a seu pedido e, por conseguinte, pude apreciar as suas numerosas qualidades. Sucessivamente, quando foi nomeado Pontífice, sempre lhe tributei respeito e fidelidade, do mesmo modo como — também por tradição familiar — sempre fiz em relação aos outros sete Papas que servi. número 32-33, quinta-feira 6-13 de Agosto de 2015 L’OSSERVATORE ROMANO página 5 Francisco convidou os acólitos a serem missionários para responder à iniciativa de Deus Quem dá o primeiro passo Um agradecimento pela «disponibilidade a servir no altar do Senhor, fazendo deste serviço uma palestra de educação na fé e na caridade pelo próximo», foi dirigido pelo Papa Francisco aos acólitos com os quais se encontrou no final da tarde de terça-feira, 4 de Agosto, na praça de São Pedro. Queridos acólitos, boa tarde. Agradeço a vossa presença numerosa que desafiou o sol romano de Agosto. Agradeço o Bispo Dom Nemet, vosso Presidente, pelas palavras com que introduziu este encontro. Saístes de vários países para fazer a vossa peregrinação a Roma, lugar do martírio dos Apóstolos Pedro e Paulo. É significativo ver que a proximidade e familiaridade com Jesus Eucaristia no serviço do altar, torna-se também uma oportunidade para se abrir aos outros, caminhar juntos, escolher metas de compromisso e encontrar as forças para as alcançar. É fonte de verdadeira alegria reconhecer-se pequeno e fraco, mas sabendo que, com a ajuda de Jesus, podemos ser revestidos de força e realizar uma grande viagem na vida com Ele. O profeta Isaías também descobre esta verdade, ou seja, que Deus purifica as suas intenções, perdoa os seus pecados, cura o seu coração e torna-o idóneo para realizar uma tarefa importante: levar a palavra de Deus ao povo, tornando-se instrumento da presença e da misericórdia divina. Isaías descobre que, ao colocar-se confiadamente nas mãos do Senhor, toda a sua existência se transforma. A passagem bíblica que escutamos fala-nos justamente sobre isso. Isaías tem uma visão, que lhe faz perceber a majestade do Senhor, mas, ao mesmo tempo, mostra-lhe como Deus, embora se revele, permanece distante. Isaías descobre, com assombro, que é Deus quem dá o primeiro passo — não vos esqueçais disto: é sempre Deus quem dá o primeiro passo na nossa vida — descobre que é Deus que se aproxima em primeiro lugar; Isaías percebe que a acção divina não é impedida pelas suas imperfeições pessoais, mas que somente a benevolência divina é capaz de o tornar idóneo para a missão, transformando-o numa pessoa totalmente nova e, portanto, capaz de respon- der ao chamado de Deus e dizer: «Aqui estou, envia-me» (Is 6,8). Hoje, sois mais afortunados do que o profeta Isaías. Na Eucaristia e nos outros sacramentos experimentais a proximidade íntima de Jesus, a doçura e a eficácia da sua presença. Não encontrais Jesus colocado num trono, alto, sublime e inalcançável, mas no pão e no vinho eucarísticos, e a sua palavra não faz vibrar os umbrais das portas, mas as cordas Peregrinação a Roma de dez mil ministrantes «Aqui estou, envia-me»: o versículo do livro do profeta Isaías (6, 8) é o slogan da peregrinação dos ministrantes que na terça-feira 4 de Agosto, se encontram com o Papa Francisco na praça de São Pedro. O Pontífice presidiu a celebração das vésperas com dez mil jovens provenientes de vinte e três nações, sobretudo europeias, que se reúnem em Roma, enchendo as ruas do centro com os característicos lenços de cores diversas de acordo com o grupo linguístico. Os três dias, que iniciaram na segunda-feira 3, concluíram-se na quarta-feira 5. Cantos, danças e testemunhos ritmaram a expectativa antes que o papamóvel desse a volta entre as várias secções da praça. O evento foi organizado, como já é tradição, pelo Coetus internationalis ministrantium (Cim), associação fundada em 1960 com a finalidade de reunir os responsáveis diocesanos e quantos se interessam pela pastoral dos ministrantes. Dele fazem parte representantes de numerosos países europeus: Alemanha, Áustria, Bélgica, Croácia, França, Hungria, Itália, Luxemburgo, Portugal, Roménia, Sérvia, Eslováquia, Suíça. O objectivo principal é favorecer a partilha; e a peregrinação a Roma permite que dezenas de milhares de jovens vivam uma experiência única para o seu serviço, ajudando-os a redescobrir a beleza da pertença à Igreja universal. De facto, os numerosos jovens que vêm à Urbe ao voltar para as suas comunidades de proveniência tornamse missionários entre os coetâneos. O actual presidente do Cim é o bispo sérvio Laszlo Nemet, a vicepresidente é a alemã Klara Csiszar, o secretário-geral é o francês Victor Benz. Além dos alemães, que constituem o grupo mais numeroso, estavam também dois bispos belgas, um francês, quatro austríacos, um português, um romeno, um suíço e um húngaro. do coração. Assim como Isaías, cada um de vós descobre também que Deus, mesmo tornando-se próximo em Jesus e inclinando-se por amor a vós, sempre permanece imensamente maior e para além da nossa capacidade de compreender a sua íntima essência. Como Isaías, também vós fazei a experiência de que a iniciativa é sempre de Deus, pois é Ele que vos criou e desejou. É Ele quem, no baptismo, tornou-vos novas criaturas e é sempre Ele que espera pacientemente pela resposta à sua iniciativa e que oferece o perdão a todos os que o pedem humildemente. Se não resistirmos à sua acção Ele tocará os nossos lábios com a chama do seu amor misericordioso, como fez com o profeta Isaías, e isso tornar-nos-á idóneos para O receber e levar aos nossos irmãos. Como Isaías, nós também somos convidados a não ficar fechados em nós mesmos, guardando a nossa fé num depósito subterrâneo onde nos retiramos nos momentos difíceis. Somos chamados, ao contrário, a compartilhar a alegria de nos reconhecermos eleitos e salvos pela misericórdia de Deus, a sermos testemunhas de que a fé é capaz de dar nova direcção aos nossos passos; que ela nos torna livres e fortes a fim de estarmos disponíveis e idóneos para a missão. Como é bom descobrir que a fé nos faz sair de nós mesmos, do nosso isolamento e, justamente porque somos colmados com a alegria de ser amigos de Cristo Senhor, ela nos dirige para os outros, tornando-nos naturalmente missionários! Ministrantes missionários: assim quer Jesus! Queridos acólitos, quanto mais estiverdes próximos do altar, tanto mais vos lembrareis de conversar com Jesus na oração diária, vos alimentareis da Palavra e do Corpo do Senhor, e sereis muito mais capazes de ir até ao próximo, levando como dom aquilo que recebestes, dando com entusiasmo a alegria que vos foi dada. Obrigado pela vossa disponibilidade de servir o altar do Senhor, tornando este serviço uma academia de educação na fé e na caridade ao próximo. Obrigado também por terdes começado a responder ao Senhor, como o profeta Isaías: «Eis-me aqui, envia-me» (Is 6, 8). L’OSSERVATORE ROMANO página 6 quinta-feira 6-13 de Agosto de 2015, número 32-33 Entre prática clínica e experimentação médica Quando os riscos violam a ética CARLO PETRINI A terapia que o doutor me propõe é uma prática consolidada ou uma inovação experimental? A resposta deveria ser clara através do consentimento prévio. Na realidade, por vezes, isso não acontece. O motivo, excepto eventuais comportamentos fraudulentos do médico, não reside no facto de que o médico quer silenciar a verdade ao paciente, mas no facto de que os confins entre a normal prática terapêutica e a experimentação são, por vezes, indistintos: portanto, difícil traçar linhas de separação precisas. Contudo, por decénios, as normativas sobre a pesquisa no campo da saúde basearam-se numa distinção entre investigação e prática clínica. As mesmas normas preveem que a pesquisa, diferentemente da prática, deve estar sujeita de modo obrigatório a avaliações por parte de um comité ético. Geralmente, afirma-se que a necessidade da avaliação depende sobretudo dos riscos que a pesquisa comporta. Todavia, muitas vezes intervenções consideradas «não-pesquisa» comportam riscos relevantes. Por esta razão, diversos autores propõem que para estabelecer se é necessária uma avaliação ética é oportuno basear-se sobre o grau e a probabilidade dos riscos, e não numa distinção teórica entre pesquisa e prática. Alguns pesquisadores publicaram recentemente na revista «Bmc Medical Ethics» um instrumento útil a este propósito. O instrumento consiste numa espécie de questionário electrónico finalizado a identificar os possíveis riscos para quem participa numa pesquisa/prática e, por conseguinte, a estabelecer se é preciso uma avaliação ética. O instrumento é composto por vinte temas divididos em cinco áreas, que incluem também riscos que não incidem directamente sobre a integridade da pessoa como, por exemplo, explorações comerciais indevidas. A proposta é útil, mas merece algumas observações. O leitor está avisado: depois das observações, não encontrará a solução para poder responder à pergunta inicial. Com efeito, uma resposta definitiva provavelmente não existe. Em primeiro lugar, é evidente que a dúvida sobre a distinção entre prática clínica e experimentação não se apresenta quando não está disponível qualquer terapia validada ou, no caso oposto, quando a eficácia da terapia é comprovada por um longo uso numa ampla parte da população. Um exemplo do primeiro caso são os diversos tratamentos (ainda?) não convalidados utilizados para procurar curar pessoas afectadas pelo vírus ébola. Um exemplo do segundo caso são os antibióticos contra bactérias específicas. Uma segunda observação diz respeito ao dever de informar os pacientes, para que estejam conscientes se o tratamento que lhes é proposto consiste numa prática consolidada ou numa inovação que se quer experimentar. Em 1982 Paul Appelbaum e alguns autores cunharam a expressão «mal-entendido terapêutico». Eles observaram que os participantes num estudo com fármacos psiquiátricos, mesmo tendo sido informados sobre a possibilidade de receber um placebo, continuavam a acreditar que o médico lhes teria administrado um fármaco activo. Em 2001, a National Bioethics Advisory Commission (Nbac) estado-unidense definiu o mal-entendido terapêutico como «a convicção de que o objectivo primário de um teste clínico é o benefício de cada paciente e não, ao contrário, a recolha de informações necessárias para o conhecimento científico». A comissão especificou também que «o mal-entendido não consiste em acreditar que os participantes provavelmente receberão boas curas médicas durante uma pesquisa. O mal-entendido consiste em acreditar que o objectivo do teste clínico é a administração de um tratamento e não a gestão de uma pesquisa». Aqui surge uma terceira consideração. As experimentações clínicas são finalizadas a produzir conhecimentos generalizáveis. Contudo, experimentar sobre pacientes actuais com o objectivo de desenvolver unicamente terapias para doentes futuros constituiria uma grave violação dos princípios fundamentais da ética: a pessoa tornar-se-ia um meio em vez de um fim e isso seria contrário ao imperativo categórico de Kant. Este é um requisito sobre o qual concordam os documentos mais influentes de ética médica como, por exemplo, a Declaração de Helsinque da Associação médica mundial. Com efeito, na Declaração estabelece-se que «embora o objectivo primário da pesquisa médica seja gerar novos conhecimentos, estes não podem prevalecer sobre os direitos e os interesses de cada indivíduo envolvido na pesquisa». Procurar conciliar o benefício de cada indivíduo actual com o interesse para o progresso dos conhecimentos não é fácil. Há décadas a ética médica estuda este tema. A tal propósito é útil também recordar que a distinção entre «experimentação terapêutica» e «experimentação não terapêutica» que se encontrava na versão inicial da Declaração de Helsinque (1964) foi mantida nas versões sucessivas até ao ano 2000: na versão adoptada em 2000 a distinção foi abandonada e foram inseridos alguns «princípios adicionais para a pesquisa médica associada a curas médicas». O motivo é evidente: a experimentação deve ter sempre como finalidade o benefício dos pacientes (e, portanto, ser terapêutica). Razão pela qual sobressai uma quarta consideração: quando uma terapia é inovadora? Isto também é um tema estudado há decénios. Já nos trabalhos da comissão norteamericana que elaborou o Belmont Report (1979), Robert J. Levine propunha que se utilizasse a expressão «prática não convalidada» em vez de «terapia inovadora»: a caracterís- tica qualificadora, de facto, não é a novidade, mas a falta de validação (ou seja, de demonstração da segurança e da eficácia). À luz de tudo isso, o novo instrumento publicado na «Bmc Medical Ethics) para avaliar o impacto ético das «iniciativas que geram evidências» pode ser operacionalmente útil, mas são necessárias algumas cautelas. Duas entre estas parecem particularmente importantes. A primeira: a avaliação ética deve incluir alguns aspectos e não é suficiente avaliar se uma prática é arriscada. A segunda: como afirma o Institute of Medicine (Iom), «o desenvolvimento e a aplicação do conhecimento constrói-se em todas as fases do processo de cura» e os procedimentos terapêuticos e experimentais estão inseridos num quadro que o Iom define learning healthcare system, onde prática consolidada e inovação se entrelaçam. Maternidade sub-rogada Uma grande fábrica Apresentamos a sinopse de um artigo publicado recentemente no site da revista «Internazionale». MARTÍN CAPARRÓS É um clássico: quando te querem distrair de uma crise explicam-te que cada crise é uma oportunidade e dão-te exemplos, histórias mais ou menos antigas. Seguramente não te contarão que o Nepal se tornou um produtor de crianças para ricos. A grande fábrica, claro, permanece a Índia. O país transborda de clínicas que contratam mulheres muito pobres para serem usadas como ventres. Mães e pais do mundo rico enviam os seus embriões, e os médicos locais implantamnos no útero de uma mulher autóctone que, pondo o seu corpo a produzir a tempo inteiro por nove meses, lucra o que não conseguiria ganhar em muitos anos de trabalho, se tivessem um: cerca de 4.000 euros. Para o mesmo trabalho uma mulher estado-unidense pode ganhar 40.000, e o preço total de uma criança made in Usa é mais ou menos 90.000 euros; na Índia é possível ter uma por 12.000 euros. As suas clínicas parecem cada vez mais uma linha de montagem. A mulher que aluga o seu ventre recebe um embrião fertilizado por um óvulo que pode ser da mãe (ou não) e o esperma que pode ser do pai (ou não). Mas se houver doadores, obviamente são anónimos, um não vale como o outro: a contribuição de um modelo profissional ou de uma profissional modelo custa muito mais que a de uma pessoa qualquer, porque produzirá crianças mais bonitas ou mais inteligentes. O design chega a todos os lugares. Existem algumas particularidades: nesta profissão, as operárias danificam o negócio se se alimentarem ou viverem mal, por esta razão todas são internadas em casas comuns onde podem concentrar-se exclusivamente na gestação, e onde são bem controladas e bem alimentadas. E quando dão à luz, claramente, assinam um documento no qual declaram que nunca procurarão saber o que aconteceu com o seu produto. Os preços indianos abriram o mercado. Aquela que nasceu como uma técnica para casais heterossexuais com problemas de fertilidade tornou-se uma saída para quem antes não tinha uma: homens e mulheres solteiras, casais homossexuais. A relação entre a técnica e os usos e costumes foi sempre emaranhada: influenciam-se reciprocamente. Empresários e usuários exploram os vazios legislativos de uma praxe demasiado nova para ser bem regulamentada pela lei. TodaCONTINUA NA PÁGINA 15 número 32-33, quinta-feira 6-13 de Agosto de 2015 L’OSSERVATORE ROMANO página 7 Sandro Botticelli, «A juventude de Moisés» (1481-1482, Capela Sistina) Em «Le Monde» intelectuais dizem não às mães-fantasma Coragem dos leigos LUCETTA SCARAFFIA Vida de Raquel A estéril visitada Escrito a quatro mãos por uma clarissa e uma beneditina, o volume «Sequela» (Bolonha, Ed. Dehoniane, 2015, 192 páginas), com prefácio de Raniero Cantalamessa e o posfácio de Cristiana Dobner propõe catorze retratos de personagens bíblicos. Publicamos excertos do capítulo dedicado a Raquel. SANDRO CAROTTA E MARIA MANUELA CAVRINI ambém Raquel, como Sara e Rebeca, é estéril. A esterilidade é ausência de futuro e antecipação da morte. Não obstante tudo, parece uma passagem obrigatória para a realização da promessa de Deus. Passagem difícil, inexplicável, dolorosa, mas necessária. Por quê? A maternidade não é um automatismo biológico e o filho não é um direito; ser mãe é sinal da graça de Deus, o milagre sempre novo da sua misericórdia. Em Deus a memória coincide com o seu amor, com a sua intervenção na história do homem. A memória de Deus abrange e transfigura tudo no amor. Há uma memória que, desde a origem do mundo, preserva tudo, como desejado pela sabedoria divina. «A memória é um princípio dinâmico: o esquecimento é cansaço, interrupção do movimento, regresso a um estado de relativa estagnação». Hoje, infelizmente, não é por acaso que o esquecimento adquiriu domínio e vigor: juntamente com o de Deus, também de nós mesmos, dos outros, da verdade dos seres e das coisas. Também Vjačeslav Ivanov constatava na carta a Charles Du Bos: «O enfraquecimento do sentimento religioso produz aquele simulacro da memória autêntica que é o eclectismo das recordações destacadas da sua ligação orgânica (...). Entretanto, o esquecimento, por sua vez, procura organizar-se baseando-se na negação radical da espiritualidade, dissimulando materialmente a verdadeira cultura, que é a organização da memória espiritual». T Deus ordena a Jacob que volte para a terra dos seus pais (cf. Gn 31, 3); no caminho de regresso Raquel morre dando à luz Benjamim. Para uma mulher, o parto é uma espécie de antecipação da morte, pelo sofrimento que provoca e pela renúncia que comporta. Com efeito, o filho que nasce coloca-se sempre perante a mãe como uma alteridade separada e diferente. Porém, esta morte simbólica tornase real para Raquel. Eis, então, que ao dar à luz o seu secundogénito, antes de exalar o último respiro chama-lhe Benoni, ou seja, «filho da minha dor». Mas imediatamente intervém Jacob, chamando a criança de Benjamim, «filho da direita», isto é, da força, da felicidade. Esta ingerência paterna expropria Raquel da sua própria recordação. Não só perde a vida, mas até a sua memória (que é uma espécie de sobrevivência além da morte) é cancelada na existência da criança. O texto (cf. Gn 35, 16-20) ilumina-se ulteriormente se prestarmos atenção ao termo oni, que não é apenas a forma com sufixo do substantivo awen («dor, desgraça, luto»), mas também do substantivo on («força, vigor, riqueza»). Portanto, o termo oni oferece uma dupla possibilidade de leitura. O nome dado por Raquel ao filho faz referência contemporaneamente à dor e à força. Realça Bruna Costacurta: «Entre os dois nomes há, por conseguinte, uma continuidade desejada pela própria mãe e que se torna possível graças à sua decisão de dom. Ela exprime a angústia da morte (awen), da qual liberta o filho colocando-o sob o sinal de um destino feliz (on). Ambas as realidades são verdadeiras e expressas no nome, portanto necessariamente ambíguo, que na sua intervenção Jacob explicita na única direcção da felicidade. A expropriação e a perda radical de tudo, por parte de Raquel, não são portanto simplesmente suportadas, mas acolhidas e oferecidas, e é ela mesma que, ao entrar na morte, a torna lugar de vida para o filho, transformando-a em dom total de si». «As leis não são feitas para abafar as injustiças, mas para as prevenir». Termina com esta afirmação indiscutível um apelo, assinado na França por cinco intelectuais e políticos importantes, de proveniência diversa e até oposta, nenhum deles católico. Os filósofos Sylviane Agacinski e Michel Onfray, a escritora Eliette Abécassis, o deputado europeu José Bové e a jurista Marie-Anne Frison-Roche opõem-se a uma forma de tácito consenso legal que está a ganhar terreno no país acerca do reconhecimento do filho nascido do recurso à mãe sub-rogada, reconhecimento na realidade proibido pela lei. De facto, com a desculpa de proteger os filhos nascidos desta prática no estrangeiro chega-se a reconhecer a paternidade e a maternidade a pessoas que segundo a lei não a deveriam ter. Os signatários denunciam esta prática que utiliza motivações falsamente tristes para comprovar «a aplicação da lei de mercado à procriação». Por exemplo, na Califórnia, Estado no qual é legal a prática do aluguer do útero, a filiação é estabelecida «com base num intercâmbio comercial» entre as partes, e o bebé torna-se o pro- duto de uma espécie de encomenda, como mercadoria. Mas os autores do apelo recordam que a lei francesa faz uma distinção entre as coisas que podem ser doadas ou vendidas e as pessoas: o problema é decidir se a procriação de um filho se pode tornar objecto de um intercâmbio mercantil. Isto é, decidir se pode ser negado o vínculo filial, que une física, simbólica e juridicamente o filho à mãe que o deu à luz. Em síntese, se se pode com tanta leviandade negar o estado de mãe às mulheres que aceitaram ser usadas desta maneira. Não às mães-fantasma! Intitula «Le Monde», que acompanha o apelo com um artigo que ao contrário afirma a licitude desta prática quando se verifica de modo totalmente desinteressado. Condição que, como se sabe, muito dificilmente se constata na realidade. Noutros países (entre os quais a Itália) existe o mesmo problema, mas não foi aberto um debate verdadeiro e os leigos parecem todos resignados àquilo que é considerado um «progresso». Mais uma vez os leigos franceses têm a coragem de empreender uma batalha para defender o respeito do ser humano e um jornal laico como «Le Monde», de difundir o seu ponto de vista. Sobre o tráfico de órgãos ligado às actividades abortivas Onde vence a cultura do lucro Práticas que «negam o respeito devido à humanidade e à dignidade da vida humana»: no debate surgido nos Estados Unidos depois da difusão de uma série de vídeos que mostram que a «Planned Parenthood» através das suas organizações nacionais realizava práticas abortivas ilegais e comercializava partes dos fetos humanos, insere-se também o pronunciamento do cardeal Sean Patrick O’Malley, arcebispo de Boston e presidente do Comité das actividades pró-vida da Conferência episcopal norte-americana. Citando o Papa Francisco, o purpurado explicou que «o aborto é o produto de uma mentalidade de lucro, de uma cultura do descartável que, actualmente, escravizaram os corações e as mentes de muitas pessoas». Segundo O’Malley — cuja declaração foi difundida no site do episcopado e retomada por numerosas agências de imprensa — os recentes casos de crónica chamam a atenção «para dois temas de amplo alcance» que envolvem também as instituições da sociedade: o aborto, definido «um ataque directo contra a vida humana na sua condição mais vulnerável», e a prática, «já padronizada», de obter tecidos e órgãos fetais atra- vés do aborto. Ambas as práticas, afirma, não respeitam a humanidade nem a dignidade da vida humana. Diversos Estados e inclusive o Congresso dos Estados Unidos anunciaram investigações sobre a «Planned Parenthood», considerada — refere a Aica — a maior «multinacional do aborto» do mundo, que recebe mais de meio milhão de dólares por ano de financiamento público através dos impostos. L’OSSERVATORE ROMANO número 32-33, quinta-feira 6-13 de Agosto de 2015 página 8/9 Em diálogo com o cardeal Angelo Amato Mario Gonzalez Chavajay, «Tijo’nem/Teaching» (2004) Santos da América Latina Recordados durante a viagem ao Equador, Bolívia e Paraguai GIANLUCA BICCINI Das três grandes estátuas brancas colocadas nestes últimos anos nos nichos externos da abside da basílica de São Pedro, uma trata-se de de uma jovem religiosa, esculpida com um ramo de lírios nas mãos. Mariana de Jesus Paredes y Flores, padroeira do Equador. O Papa Francisco durante a recente viagem à América Latina falou dela e das principais figuras exemplares de santidade nos três países visitados. Figuras muito veneradas no continente que o viu nascer, mas muitas vezes desconhecidas aquém do Atlântico. Por isso pedimos que um perito na matéria as apresentasse. No seu escritório, do qual se vê a praça de São Pedro, cheia de peregrinos não obstante o forte calor do meio-dia, o cardeal Angelo Amato, prefeito da Congregação para as causas dos santos, aceitou de bom grado explicar quem são os heróis da fé citados pelo Pontífice, pedindo contudo para fazer uma premissa. to, nesta igreja, o processo de integração entre culturas indígenas e cristianismo originou três santos e uma beata. A mais conhecida é sem dúvida santa Mariana de Jesus (1618-1645), o «lírio de Quito», padroeira do país, proclamada heroína nacional pela assembleia constituinte. Nasceu na capital, última de oito filhos, e ficou órfã. Uniu-se espiritualmente aos padres jesuítas, mas tornou-se professa na terceira ordem de são Francisco. Viveu virgem e na pobreza, praticando obras de caridade e de bem. Em 1645 para cessar os terremotos que arrasavam Quito e invocar o fim da sucessiva epidemia, ofereceu a própria vida ao Senhor. Morreu com 26 anos. Uma multidão impressionante participou nas suas exéquias. Pio IX beatificou-a a 20 de Novembro de 1853 e a 9 de Julho de 1950 foi solenemente canonizada por Pio XII na basílica de São Pedro. Por fim, há dez anos, a 19 de Outubro de 2005, Bento XVI inaugurou a estátua branca de mármore, alta mais de cinco metros que se pode admirar no Vaticano. riana citada pelo Papa Bergoglio: santa Narcisa de Jesus Mortillo y Morán. É verdade que a sua vida se cruzou com a da beata Mercedes Molina? Parece que sim. De facto, numa ocasião partilharam inclusive a casa. E ela sentiu muito o fascínio espiritual de santa Mariana Paredes. Contudo, diferentemente da primeira não foi uma religiosa. A «Niña de Guayaquil» (18321869) viveu como leiga. Era a sexta de nove filhos e quando tinha seis anos perdeu a mãe. Aprendeu a ler, escrever, cantar, tocar, costurar, tecer, bordar, cozinhar. Transformou em capela um pequeno quarto de casa, continuando a colaborar nos trabalhos domésticos e nos campos. Catequista, quando morreu o pai, transferiu-se para Guayaquil. Mudou várias vezes de casa, vivendo do trabalho de costureira e ajudando os pobres e doentes. Morreu no Peru para onde se tinha transferido, no mesmo dia no qual Pio IX abria em Roma o concílio Vaticano I. Tinha 37 anos. Em 1955 o seu corpo foi trasladado para Guayaquil e em 1964 o processo foi entregue à Congregação para as causas dos santos. João Paulo II beatificou-a a 25 de Outubro de 1992. Bento XVI canonizou-a no dia 12 de Outubro de 2008. bretudo, mulheres jovens, criando um padronado feminino para a sua promoção. Morreu em Buenos Aires em 1943 e foi beatificada por João Paulo II a 27 de Setembro de 1992. Naturalmente, o papa que foi arcebispo na capital argentina conhece bem esta figura, dado que evocou o seu «prato do pobre» para quantos não tinham o que comer. Ainda mais actual é a figura de Virginia Blanco Tardío (1916-1990), cujo decreto de venerabilidade foi promulgado a 22 de Janeiro passado. Segunda de quatro filhos, recebeu uma formação muito superior à da maior parte das mulheres do seu tem- Na universidade de Quito, o Papa Francisco propôs uma figura masculina: são frei Miguel Febres. O Papa no lugar onde foi encontrado o corpo martirizado do jesuíta Espinal Qual? É preciso partir do pressuposto que o Papa Francisco dedica uma atenção particular aos santos, sobretudo aos que evangelizaram as Américas. Disto são testemunho as canonizações equipolentes do francês Francisco de Laval (1623-1708), primeiro bispo do Quebeque; de José de Anchieta (1534-1597), missionário jesuíta originário das Canárias; e de Maria da Encarnação (15991672), ursulina francesa, que o Pontífice inscreveu no catálogo dos santos alargando o seu culto à Igreja universal. E o mesmo pode ser dito do franciscano espanhol Junípero Serra, que canonizará a 23 de Setembro em Washington, durante a viagem a Cuba e aos Estados Unidos. Trata-se contudo de missionários europeus. Durante a visita o Pontífice latino-americano quis dar espaço sobretudo às testemunhas locais. Comecemos pelos do Equador? Diria que sim, considerando que são também os mais numerosos. Com efei- Entretanto, em 1873, fundou-se uma congregação com o seu nome. Sim, não foi fundada por ela mas por outra pessoa que o Papa Francisco recordou, a beata Mercedes de Jesus Molina y Ayala (1828-1883). A fundadora do instituto das irmãs de Santa Maria Ana de Jesus teve uma juventude bastante mundana mas depois de uma grave queda do cavalo mudou de vida: começou a dedicar-se aos cuidados de meninas órfãs e abandonadas e a colaborar com os jesuítas comprometidos na evangelização dos índios. Estabeleceu-se em Riobamba e fundou as que hoje são conhecidas em toda a América Latina como marianitas. O processo, iniciado três anos depois da sua morte, foi interrompido por longo tempo e retomado em 1929. João Paulo II elevou-a às honras dos altares durante a viagem que realizou há trinta anos. A cerimónia teve lugar a 1 de Fevereiro de 1985 em Guayaquil. Está ligada t ambém à cidade costeira do oceano Pacífico a terceira mulher equato- O santo «hermano Miguel» (18541910), canonizado por João Paulo II a 21 de Outubro de 1984, era um lassalista. Nasceu com uma grave deficiência, entrou como aluno num instituto dos irmãos das escolas cristãs e depois decidiu frequentar o noviciado e foi o primeiro equatoriano admitido. Dedicouse principalmente ao ensino, realizando também actividades de pesquisa e estudo sobre literatura e linguística. Enviado para a Europa, morreu de pneumonia na Espanha. Beatificado por Paulo VI a 30 de Outubro de 1977, foi proclamado santo por João Paulo II a 21 de Outubro de 1984. Na Bolívia, embora não havendo santos nativos, o Papa Francisco fez referência à beata Nazaria Ignazia de santa Teresa de Jesus e à venerável Virginia Blanco Tardío. Quem são? Uma fundadora e outra leiga. A religiosa Nazaria Ignazia (1889-1943) nasceu em Madrid, mas pouco depois transferiu-se para o México juntamente com a numerosa família: tinha dez irmãos. No mesmo navio viajavam algumas Pequenas irmãs dos idosos abandonados, e ela escolheu a vida religiosa naquele instituto. Voltou à pátria para o noviciado e logo retomou o caminho para as Américas, destinada à missão boliviana de Oruro, onde viveu doze anos. Em 1925 fundou a nova congregação das missionárias cruzadas da Igreja. Depois, transferiu-se para a Argentina, onde deu início a instituições a favor dos pobres, idosos, crianças órA estátua de santa Mariana de Jesus no Vaticano fãs, feridos de guerra e, so- po. Catequista e professora de religião, conhecendo a língua quechua preparou crianças, jovens e adultos para os sacramentos. Ensinou por mais de quarenta anos nas escolas públicas de Cochabamba, dez dos quais sem salário. Activa na Acção católica e por muitos anos presidente do ramo feminino diocesano, quando morreu com 74 anos deixou diversas iniciativas sociais ainda activas. Contudo, até agora não foi apresentado à Congregação o milagre para a beatificação. Sobretudo na Bolívia, o Pontífice rezou no lugar onde foi encontrado o corpo martirizado do jesuíta Luis Espinal Camps: assassinado em Março de 1980, no mesmo período em que em San Salvador foi assassinado o arcebispo Romero... Como prefeito devo dizer imediatamente que não há causa alguma no protocolo do nosso dicastério para o padre Espinal. Contudo, é pertinente a menção sobre a concomitância com a morte do beato Romero. Nascido em 1932, Espinal — como disse o Papa — «era um homem especial, com muita genialidade humana, e que lutava em boa fé». E o seu assassínio ocorreu num contexto semelhante ao do arcebispo de San Salvador, mártir do Evangelho e da fraternidade do seu povo. Também no Paraguai, além de são Roque González, emergiu uma figura menos conhecida, a da venerável Felicia de Jesus Sacramentado. Em diversas ocasiões Francisco foi recebido por coros que celebravam a «Chiquitunga santa ya» e os bispos do país falaram-lhe sobre ela muitas vezes. No que se refere ao primeiro (15761628), trata-se de um jesuíta missionário junto dos índios guaranis do Rio Grande do Sul, fundador de numerosas reduções. A sua causa foi iniciada em 1932 e a 3 de Dezembro de 1933 Pio XI autorizou a Congregação para as causas dos santos a promulgar o decreto relativo ao martírio. O Papa Ratti a 28 de Janeiro de 1934 beatificou-o. Depois João Paulo II canonizou-o a 16 de Maio de 1988, por ocasião da viagem apostólica ao Paraguai juntamente com os seus dois companheiros de martírio. E durante a recente visita a Assunção, o Papa Francisco rezou diante da relíquia do seu coração carbonizado na igreja de Cristo-Rei. O que nos pode contar sobre Chiquitunga? Que para esta jovem há um aparente milagre que está a ser estudado por dois peritos médicos. Nascida na família Guggiari Echeverria (1925-1959), primeira de sete filhos, até aos trinta anos foi uma leiga muito activa na Acção católica juntamente com o médico Ángel Sauá Llanes, ao qual ligava um vínculo de amizade profunda: ambos optaram pela consagração: ele como sacerdote — foi também psiquiatra — e ela como carmelitana descalça. E transcorreu o último período da sua jovem existência no mosteiro contemplativo de Assunção. As exéquias foram um triunfo de multidão. O decreto de venerabilidade remonta a 27 de Março de 2010. O catolicismo latino-americano depois de Medellín e Puebla Lindíssimos bancos vazios MARIA BARGAGALLO ive a ventura de desempenhar a minha missão na América Latina nos anos setenta e parte dos anos oitenta do século XX, período no qual nós religiosos, mulheres e homens, vivíamos sob a influência eclesial da Conferência episcopal de Medellín de 1968 e mais tarde de Puebla de 1979. Durante aquele tempo quase todos os países da América Latina eram governados por ditaduras de vários géneros ou por regimes militares. Não havia motivos para estar felizes: a emergente teologia da libertação vivia tempos difíceis, acusada de se fundar sobre análises marxistas, de produzir sínteses pouco ortodoxas e por conseguinte de exercer uma influência perigosa, que podia suscitar revoluções e guerrilhas desestabilizadoras dum status quo que convinha a todos. Nós, religiosos, éramos considerados seguidores destas ideias subversivas e por isso vigiados e muitas vezes ameaçados. As duas Conferências episcopais de Medellín e Puebla tiveram a inteligência de enfrentar as questões sob pontos de vista estreitamente pastorais, determinando uma verdadeira mudança na reflexão teológica e eclesial com repercussões indiscutíveis sobre a actividade do clero e dos religiosos. Em termos gerais, podemos dizer que Medellín teve diante dos olhos a dramática realidade da América Latina e do Caribe e a confrontou com o evento e os documentos do concílio Vaticano II (1962-1965), desenvolvendo uma aceitação conciliar, ao mesmo tempo fiel e criativa, selectiva e inovadora. Ouvir o grito dos pobres, como apelo evangélico, comprometer-se juntamente com eles e agir para transformar a Igreja e o mundo, foi a inspiração que animou a assembleia de Medellín: «Não é suficiente reflectir, obter mais clareza e falar disso. É preciso agir. Esta continua a ser a hora da palavra, mas tornou-se, com dramática urgência, a hora da acção» (de Medellín: quarenta anos de José Beozzo, São Paulo, Brasil). As denúncias de injustiça institucionalizada que as duas Conferências T episcopais fizeram, atingiram obviamente todas as instituições sociais e culturais e também as religiosas. Em síntese, dizia-se que se comentava, nas várias reuniões organizadas para os religiosos pós-Medellín, que também a vida religiosa se devia sentir interpelada porque, não obstante os nossos fundadores e fundadoras fossem conhecidos por se terem orientado para os pobres, a nossa vida tinha-se aburguesado e a prova disto era que a maior parte das nossas escolas, hospitais, centros de evangelização, estava concentrada nas grandes cidades e muitas vezes servia a classe média com escassa influência sobre as classes rurais, as periferias marginalizadas, os pobres em geral. Todas nós, congregações religiosas com casas e missões na América Latina, sentimos a paixão por estas conclusões que nos punham sob acusação, algumas vezes com razão, outras sem uma verdadeira análise aprofundada, mas o efeito foi fulminante: muitíssimas congregações religiosas femininas e masculinas, celebrando os seus capítulos ordinários ou extraordinários, renovando as suas constituições, aplicando os documentos do concílio Vaticano II, decidiram responder à chamada de Medellín. Sobretudo as religiosas ou os padres mais jovens e menos inclines à missão a desempenhar no âmbito das grandes instituições escolheram dedicar-se às classes marginalizadas, aos indígenas, às periferias, às zonas rurais. Apesar de algumas ambiguidades, conflitos e divergências que dividiam a sensibilidade da vida religiosa tradicional daquela mais progressista, foi impressionante o facto que, indo ao encontro «dos pobres», se compreendeu imediatamente que eles recebiam a mensagem do concílio Vaticano II primeiro e melhor do que muitas outras categorias mais instruídas e abastadas. O método pastoral que Medellín sugeria, «Ver — Julgar — Agir», levou os religiosos, quase sempre na vanguarda missionária, a realizar uma aceitação do Evangelho entre as classes mais pobres e a descobrir a riqueza que as pessoas pobres possuíam, ou seja, de receber a mensagem imediata- mente e de a aplicar à sua realidade concreta. «A Palavra de Deus, restituída ao povo nos círculos bíblicos, nas comunidades eclesiais de base e no movimento de leitura popular da Bíblia, estava no centro da revolução desencadeada por Medellín. Para isto muito contribuiu a generosa iniciativa da comunidade de Taizé na França a qual, depois do concílio, ofereceu às igrejas da América Latina, sobretudo às católicas, um milhão de exemplares do Novo Testamento em espanhol e outro milhão em português, para que fossem distribuídos gratuitamente às comunidades mais pobres» (ibidem). A experiência positiva que se obtinha descobrindo como as pessoas mais humildes eram capazes de compreender o Evangelho, serviu-nos de exemplo, a nós religiosos para as nossas próprias comunidades, mesmo se muito mérito se deve às numerosíssimas religiosas que contribuíram para fazer compreender ao povo como viver concretamente o Evangelho. Recordo uma comunidade de camponesas indígenas de Guatemala, quase todas analfabetas: ouviam a proclamação da Palavra de Deus e depois duma pausa de silêncio cada uma podia partilhar o que significavam para ela e para a sua comunidade as palavras acabadas de ler. Todas, indistintamente, intervinham recordando exactamente o que tinha sido lido e aplicavam-no com facilidade impressionante à sua situação. E faziam-no com brevidade e essencialidade. Recordo que uma senhora concluiu: «Isto significa que Jesus está aqui, no meio de nós, conhece e partilha a nossa história». No Brasil as comunidades das áreas rurais só podiam contar com a presença do sacerdote duas ou três vezes por ano. As extensões imensas das paróquias dispunham muitas vezes de um só sacerdote. Quem mantinha e cultivava as comunidades cristãs eram as comunidades organizadas com chefes especificamente preparados para a sua guia. Uma vez encontrei-me numa área rural um pouco impérvia na zona do Rio de Janeiro, era domingo: não havia um padre para celebrar a Missa, mas estava ali reunida a comunidade cristã para a celebração da Palavra e para receber a sagrada Comunhão. Naquele dia a organização de tudo competia ao grupo das pré-adolescentes. Meninas perfeitamente instruídas sobre o que era preciso fazer preparavam o altar, distribuíam as leituras, comprometiam o ministro da Eucaristia, distribuíam os livros e entoavam os cânticos, diante de uma assembleia perfeitamente ordenada e silenciosa. Capazes de criar partilha da Palavra de Deus, óptima gestão do tempo e uma seriedade comovedora. Noutra zona, ao contrário, era um camponês cristão idoso que dirigia o luto e depois da celebração dava conselhos, organizava os cursos de preparação para o baptismo ou para o matrimónio, distribuía as tarefas. No centro da cidade do Rio havia e ainda há bonitas igrejas antigas. Uma CONTINUA NA PÁGINA 13 L’OSSERVATORE ROMANO página 10 quinta-feira 6-13 de Agosto de 2015, número 32-33 Salgado entre meio ambiente e agricultura Os rostos do café GAETANO VALLINI ara um brasileiro talvez seja estranho admitir, mas eu nunca bebo café». Revelou Sebastião Salgado ao apresentar o elegante volume Perfume de um sonho — Uma viagem no mundo do café, que contém cento e cinquenta imagens sugestivas. Uma viagem de treze anos que o grande fotógrafo realizou em dez países nos quais se produz o precioso grão: Brasil, Índia, Indonésia, Etiópia, Guatemala, Colômbia, China, Costa Rica, El Salvador e Tanzânia. Salgado não bebe café mas — acrescentou — «ele escorre no meu sangue». E não poderia ser diferente, dado que conhece bem a vida dos cultivadores, a qual observou «P desde a infância. Nascido em 1944, último de oito filhos, desde pequeno acompanhava o pai no caminhão a retirar os grãos que tinham sido moídos e deveriam ser transportados através do Estado de Minas Gerais até aos portos ao longo do litoral. Muito cedo, e até aos quatorze anos, ajudou o pai também no moinho, enxugando os grãos e costurando os sacos de juta. Por conseguinte, não foi por acaso se mais tarde, vivendo em Paris para continuar os estudos de economia, aceitou um trabalho na International Coffee Organization, depois de se ter formado. Não surpreende também se após alguns anos, ao abraçar a carreira de fotógrafo, optou por ser defensor do desenvolvimento sustentável do planeta, sem esquecer as origens. De Cultivação de café Llano Bonito de Sarcero, Região Central Costa Rica 2013 © Sebastião Salgado/Amazonas Images 2002 a 2015, com olhar atento Salgado documentou a vida nas plantações, os momentos da floração e as várias fases da produção do café. Mas sobretudo fotografou as pessoas — «cerca de 25 milhões disseminadas em 42 países», revelou ele mesmo no prefácio do livro — que com amor e dedicação, mas também com suor e dificuldade, realizam diariamente esse trabalho. «Talvez o que mais me impressionou — observou o fotógrafo — foram as analogias nas vidas dos cultivadores de café, embora separados por oceanos e continentes. Só em poucos lugares as máquinas substituíram algumas fases do processo de produção, e a maior parte dos produtores são pequenos agricultores que colhem à mão os grãos de café, juntamente com esposa e filhos que ajudam a enxugá-los, e depois a transportá-los, utilizando jumentos, até aos compradores. E não é difícil para mim imaginar que um cultivador de café do vale do Lijiang, na província chinesa do Yunnan, se adapte facilmente a trabalhar no vale Todos los Reys na Costa Rica». Através das fotos, Salgado convida-nos «a olhar para o fundo da chávena, não para entrever o nosso futuro, mas para decifrar a longa fila de homens e mulheres que escalam as estreitas subidas até acima das nuvens ou que atravessam bosques obscuros e húmidos, no dorso de jumentos, para chegar à plantação de café», escreveu Luis Sepúlveda no texto que acompanha as imagens. E acrescentou: «Sebastião Salgado faz isto: restitui a épica do esforço humano, a dignidade omnipresente do trabalho na maravilhosa sobriedade No Estado brasileiro do Rio Grande do Sul Juventude em missão entre os mais pobres Proporcionar aos jovens algumas experiências de reflexão missionária em contextos diversos: com pessoas que convivem com a vih, presos, desabrigados, catadores de papel. Foi o objectivo da Semana missionária que se realizou em Porto Alegre (Brasil), de 20 a 26 de Julho. Participaram jovens provenientes de todas as dioceses da região Sul 3 da CNBB, que inclui o Estado do Rio Grande do Sul. Uma experiência que levou os jovens a contactar diversas realidades sociais, em ligação com outros sectores do compromisso pastoral. Para a coordenadora do Serviço de evangelização dos jovens da região Sul 3, irmã Zenilde, entrevistada pela agência Fides, tratou-se da oportunidade de contactar um preso ou uma pessoa contaminada pelo vih, «libertandose de preconceitos e fazendo experiência de um encontro, para ver a pessoa independentemente do estado social no qual vive». Trata-se de «um encontro entre pessoas e nesse encontro deixamos que Deus se manifeste». O objectivo final desta experiência missionária foi que os jovens pudessem encontrar, no âmbito dos vários ministérios da Igreja, o seu lugar para se pôr ao serviço dos outros: «Gostaria que os jovens de todo o Estado pudessem fazer esta experiência tão importante, que os levam a acções concretas em prol de todas as pessoas, especialmente das mais vulneráveis, porque Deus se manifesta na cura dos que sofrem», concluiu a religiosa. Por outro lado, um vídeo que documenta a primeira Missão jovem na Amazónia, organizada no passado mês de Dezembro pela Comissão dos jovens da CNBB, foi transmitido pela primeira vez aos jovens participan- tes no Meeting nacional dos movimentos juvenis e das novas comunidades, que teve lugar em Belém, capital do Estado do Pará. O vídeo de seis minutos apresenta os setenta e dois jovens seleccionados para ir à Amazónia, às missões organizadas pelos Comités para a Amazónia, pela Acção missionária e cooperação intra-eclesial e pela Comissão para a missão continental do episcopado. Após um período de preparação e formação em Manaus, os jovens foram enviados a Parintins, Borba, Coari, Boa Vista e à aldeia indígena de Raposa Serra do Sol. Nas imagens vêem-se os jovens missionários na floresta, com as crianças e outros jovens, durante as celebrações ou comprometidos a explicar os diversos aspectos da fé. A experiência teve ampla ressonância nos meios de comunicação locais e no âmbito da própria Igreja católica, porque ainda são poucos os grupos que trabalham naquelas regiões de difícil acesso e de grande necessidade, onde a Igreja está presente através dos missionários. Tais eventos põem-se em continuidade com a primeira Missão da vida religiosa jovem, organizada — entre os meses de Março e Abril, na diocese de Óbidos e na prelazia territorial de Itaituba — pela Comissão episcopal para a Amazónia, juntamente com as comissões para a Juventude e para a Acção missionária, em colaboração com a Conferência dos religiosos do Brasil. Cerca de cinquenta jovens religiosas e religiosos de dez Estados brasileiros, após um período de formação em Santarém, foram enviados em missão às duas Igrejas particulares. Colhedor de café na plantação de Shangri La, Rift Valley, encosta da cratera Ngorongoro, Tanzânia 2014 © Sebastião Salgado/Amazonas Images (detalhe) das suas acções, isto é, narra com imagens a história do mundo». E fálo, como de resto noutros projectos, «com um olhar antropológico — explicou Angela Vattese num ensaio crítico — constantemente dirigido aos aspectos mais problemáticos tanto do trabalho de fotógrafo, como do trabalho em si: quase a explicar que o primeiro, embora criativo e autoral, se for conduzido de maneira honesta contém sempre uma pergunta sobre o seu sentido e sobre o sentido mais geral do produzir». Também nesta circunstância — já tinha acontecido com o projecto Gênesis, uma carta de amor ao nosso planeta «escrita» com as imagens dos lugares ainda incontaminados — o autor concede-se uma pausa, uma espécie de resgate positivo depois das cruas reportagens de denúncia da injustiça, da exploração, da pobreza e da guerra. Todavia não se dispensa a si mesmo nem o observador de reflectir sobre temas cruciais, como o respeito devido quando nos aproximamos de culturas distantes, a ética do trabalho, os perigos de uma agricultura agressiva e, sobretudo, a sustentabilidade ambiental e económica. Sustentabilidade que é também um compromisso concreto para além da fotografia. De facto, juntamente com a esposa Lélia, a partir do início dos anos 90 Salgado trabalhou na revitalização de uma parte da mata atlântica no Brasil. Em 1998 conseguiram transformar esse território numa reserva natural e fundar o Instituto Terra com o objectivo de sanear, tutelar e preservar a Mata atlântica, um dos cinco ecossistemas mais importantes do mundo. Sob o ponto de vista puramente artístico Perfume de um sonho deve ser inserido num contexto mais amplo. «Sem dúvida — afirmou Andrea Illy, patrocinador desse projecto — podemos dizer que o café é a bebida oficial da cultura. Todas as artes e artistas, a partir do Iluminismo, mantiveram estreitíssimas relações com ela: o trabalho extraordinário de Salgado é um novo tributo a este vínculo, que se exprime através da arte e da beleza». O volume é acompanhado por duas exposições homónimas: na Expo de Milão até 31 de Outubro e em Veneza até 27 de Setembro na Fundação Bevilacqua La Masa, onde o projecto foi apresentado em antestreia mundial. número 32-33, quinta-feira 6-13 de Agosto de 2015 L’OSSERVATORE ROMANO página 11 participarão duzentos e cinquenta delegados de todo o mundo. O senhor acabou de voltar da Amazónia, onde participou num congresso de representantes de cerca de quarenta movimentos e novas comunidades. Em colóquio com o responsável da secção jovens do dicastério para os leigos Desafio dos três pês MAURIZIO FONTANA «O que digo aos jovens quando viajo pelo mundo? Digo que o Papa Francisco tem grande confiança neles e lhes pede para se encarregarem das coisas que mais o preocupam»: responde prontamente o padre João Chagas, responsável pela secção para os jovens do Pontifício conselho para os leigos. E imediatamente acrescenta: «Depois naturalmente Mencionou o Papa Wojtyła. Uma figura que o comove de maneira particular: entre outras coisas, a comunicação da sua nomeação como responsável pela secção para os jovens do Pontifício conselho para os leigos foi publicada a 22 de Outubro de 2013, dia ligado à memória do santo Pontífice. Ele foi o iniciador das Jmj e nos anos oitenta relançou a pastoral juvenil em todo o mundo, graças inclusive à criação desta secção para os jovens. Aprazme recordar que também a comunidade Shalom, à Queridos jovens qual pertenço, tem as suas raízes na viagem de João não tenhais Paulo II ao Brasil em 1980, medo do matrimónio quando o jovem fundador Moysés Azevedo, durante o Cristo acompanha ofertório apresentou o seu com a sua graça os esposos compromisso a dedicar a vida pela evangelização dos que permanecem unidos a Ele jovens. Portanto, o facto de ter recebido a nomeação (@Pontifex_pt) precisamente naquele dia foi muito significativo para mim. Todos os dias no convido-os para a próxima Jornada Pontifício conselho recitamos o Anmundial de Cracóvia». De facto, a gelus na capela onde se conserva organização do encontro na Polónia uma relíquia do Papa santo: é a ocano Verão de 2016 passa pelas mãos sião diária para confiar a ele todo o do sacerdote brasileiro de 41 anos, nosso trabalho. que nesta entrevista ao nosso jornal O vínculo com a comunidade Shalom fala também sobre os principais deremonta à sua juventude? safios da pastoral juvenil, resuminComecei a frequentar os grupos do-os no que define o confronto com três «pês»: possuir, prazer, po- praticamente quando tinha 14, 15 anos. Depois, quando conclui o lider. ceu, entrei na comunidade e logo Poderia antecipar algo sobre o progra- após a formação propedêutica dei início aos estudos de preparação pama de Carcóvia? ra o sacerdócio. Os primeiros encontros serão realizados no parque central da cidade O que encontrou na Shalom? chamado Błonie, onde foram realizaA comunidade propõe formas dos também encontros com João criativas de abordagem pastoral aos Paulo II e Bento XVI. Contudo, dado jovens, no espírito do que João Pauque no fim de semana se prevêem lo II no início dos anos oitenta chauma noitada para a vigília e a missa mava a «nova evangelização». Tudo final, será necessário utilizar um es- começou com uma lanchonete-pizzapaço maior, o chamado Campus mi- ria. O fundador pensava que os josericordiae, que é um grande terreno vens que não vão à igreja, que não a cerca de dez quilómetros do centro aceitam participar num retiro, talvez da cidade. É importante frisar o fac- saíssem juntos para comer uma pizto de que, como aconteceu em Ro- za, um lanche, e então idealizou uma espécie de lanchonete temática, ma e Colónia, também na Polónia com jovens voluntários que serviam haverá a catequese itinerante: os diàs mesas e acolhiam: através da conversos grupos irão em peregrinação versa procuravam dar testemunho da ao santuário da Divina Misericórdia, sua experiência de fé. Hoje a comuque está ao lado daquele de são nidade difunde-se em todo o mundo João Paulo II, e lá encontrarão a e desenvolveu muitas obras de evanpossibilidade de confessar e também gelização, formação e promoção humana. a porta santa para o jubileu. O senhor participou também na preparação das jornadas do Rio de Janeiro. O Pontifício conselho na época tinha necessidade de um apoio por parte de um sacerdote local. Chamaram-me. Assim de 2011 a 2013 trabalhei ao lado do responsável da secção para os jovens do dicastério para os leigos, o sacerdote francês Eric Jacquinet. E depois da jornada carioca sucedi-lhe no cargo. Quais são os seus compromissos principais? Trabalhamos em diversos âmbitos. Não só na organização das Jornadas mundiais da juventude. Mantemos contactos com conferências episcopais e directores nacionais de pastoral juvenil, e também com movimentos, associações e novas comunidades. Sem esquecer a responsabilidade que temos em relação ao centro juvenil San Lorenzo em Roma, animado diariamente pela comunidade Emmanuel. À actividade em sede acrescentam-se os esforços itinerantes nos vários países onde somos convidados. Em particular, animamos as Conferências episcopais a realizar jornadas da juventude nas dioceses, a utilizar a mensagem Em Belém, no Estado do Pará, falei sobre os desafios para os quais estão chamados os jovens no mundo contemporâneo. Muitos deles estão ligados à dimensão socioeconómica — o desemprego, o trabalho precário, o consumismo, e assim por diante — enquanto outros dizem respeito às relações, à afectividade; e há os problemas relacionados com as guerras, a violência e o terrorismo. Podemos resumir estes desafios ligandoos aos três «pês»: possuir, prazer, poder. Vêm-me à memória também as tentações de Jesus no deserto. No congresso evoquei quanto Francisco repete sobre a actualidade das bemaventuranças. Bem-aventurados os pobres de espírito, por exemplo, é uma resposta a toda a problemática do consumismo, e a bem-aventurança dos puros de coração, obviamente, inclui o tema da afectividade, da sexualidade, das relações. Depois, há a questão da misericórdia que se confronta com uma realidade marcada pela violência e pelos abusos de poder. Os jovens com certeza podem sentir-se envolvidos. Convidou-os para ir a Cracóvia? Naturalmente. Sobretudo depois da Jornada de 2013 no Rio, o interesse por essas peregrinações cresceu muitíssimo entre os jovens brasileiros. A Conferência episcopal, as dioceses, os movimentos e novas comunidades estão a mobilizar-se para levar muitos jovens a Cracóvia. O senhor estava presente na catedral do Rio de Janeiro, quando o Papa, dirigindo-se aos jovens argentinos, usou a expressão «hacer lío»... O Pontífice conta muito com eles. Com esta exortação impele-os a ser revolucionários no sentido evangélico, a ir contra a corrente, a «fazer-se Site oficial Desde domingo 26 de Julho, já escorrem os segundos no contador que marca o tempo que falta para o encontro de Cracóvia. O site oficial www.krakow2016.com oferece informações úteis sob o ponto de vista logístico e organizativo, e subsídios para uma preparação adequada ao evento. anual do Papa para a formação dos jovens e oferecemos instrumentos de apoio, como as actas dos congressos que organizamos. Proximamente? No final de Novembro haverá o segundo encontro em preparação para Cracóvia 2016. Depois de Roma far-se-á outro na Polónia no qual ouvir» em todos os ambientes. Ele deseja que se distingam numa sociedade que corre o risco do imobilismo diante dos grandes desafios do nosso tempo. Sabe que são corajosos e estimula-os a sair e levar às ruas a novidade perene do Evangelho. Confia-lhes temas que lhes estão muito a peito, como a mensagem de 2014 na qual entregou aos jovens a tarefa de pôr a solidariedade de novo no centro da cultura humana. página 12 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 6-13 de Agosto de 2015, número 32-33 História de uma comunidade entre testemunho e perseguição Na carne dos cristãos do Iraque ALBERTO TREVISIOL Nas duzentas e cinquenta páginas deste texto, o leitor é conduzido a percorrer os eventos históricos sem nunca perder de vista o verdadeiro protagonista do livro: o povo cristão. Sublinha-o bem o autor desde a introdução: «Conhecer a história da cristandade do Oriente Próximo e, em particular, da Mesopotâmia não é uma extravagância cultural ociosa, mas uma abordagem que faz compreender as razões e as vicissitudes dramáticas daquela região e apreciar a vida, a cultura, o testemunho de fé e os motivos de apego dos cristãos à própria terra, mas também o ódio dos seus inimigos». Este é o fio condutor da narração que faz emergir com vigorosa evidência o carácter do cristianismo do Médio Oriente e do Iraque em particular. Ele caracteriza-se por algumas peculiaridades que sobressaem claramente da leitura do livro. Em primeiro lugar, a sua complexidade. O autor segue as linhas complicadas, por vezes tortuosas como um bordado, que desenharam as vicissitudes das várias comunidades cristãs nas terras orientais. História dolorosa de divisões, controvérsias doutrinárias, cismas, conflitos, favorecidos pela aspereza do território e por ser terra de confim, mas também de riqueza de tradições diversas, amalgamadas com o sentir dos povos ao qual pertencem. A segunda característica que emerge claramente é que a Mesopotâmia é sem dúvida Oriente, mas também uma ponte com o Ocidente e encruzilhada de encontro e intercâmbio entre civilizações: a cristã, zelosamente conservada, a árabe, a persa e, mais recentemente, a moderna europeia. Este papel é desempenhado de maneira exemplar por aquelas comunidades cristãs, encontrando as formas da convivência e da elaboração de um denominador característico do próprio sentir e acreditar. Uma Igreja, que nasceu e se desenvolveu num vasto território atravessado por movimentadas rotas de comunicação entre Ocidente e Extremo Oriente, aceita deste modo a provocação a considerar-se grande. A este propósito, o autor destaca muito bem o processo que leva a Igreja a encontrar no monaquismo uma possibilidade de elaboração espiritual, mas também de missionariedade que alarga em grande medida os próprios confins até à Índia e à China. Mas talvez a parte mais interessante, e certamente a mais minuciosamente documentada com uma análise cuidadosa das fontes de arquivo, é aquela na qual sobressai a paixão do diplomata competente em descrever e reconstruir o papel da Santa Sé no horizonte mesopotâmico. Um papel que podemos definir «em dois sentidos». Se, por um lado, as comunidades cristãs orientais, tendo sofrido por séculos devido ao isolamento geográfico e cultural, deviam enfrentar arduamente a dimen- são católica e renunciar a uma perspectiva demasiado localista e provincial para assumir uma de diálogo construtivo com a instância superior capaz de garantir uma organização e uma abertura cultural necessária aos desafios dos tempos, por outro, também Roma teve que aprender do Oriente a complexidade, por vezes fragmentária e conflitual, de tradições, perspectivas, patrimónios culturais e espirituais ciosamente conservados como identidades irrenunciáveis. O cardeal Filoni percorre pormenorizadamente as primeiras tentati- vas de união de representantes influentes da Igreja oriental com Roma, e os sucessivos insucessos, devidos também à distância cultural que Apresentação do livro em Outubro Intitula-se «La Chiesa in Iraq. Storia, sviluppo e missione, dagli inizi ai nostri giorni» o livro que o cardeal prefeito da Congregação para a evangelização dos povos dedica aos cristãos do Médio Oriente e a todas as minorias perseguidas. O volume, editado pela Libreria Editrice Vaticana (Cidade do Vaticano, 2015, 255 páginas), é a terceira edição amplamente renovada da obra publicada em 2006 no Iraque e depois em 2008 pela Rizzoli com o título «La Chiesa nella terra di Abramo. Dalla diocesi di Babilonia dei latini alla nunziatura apostolica in Iraq». No final de Outubro esta nova edição será apresentada na Pontifícia universidade Urbaniana. Publicamos a recensão escrita pelo reitor do ateneu e a introdução do volume cujo autor é o mesmo purpurado. separava os dois mundos, primeiras ocasiões problemáticas de encontroconfronto entre sensibilidades tão diversas. Sobressai claramente da descrição destas vicissitudes a capacidade expressa por figuras notáveis de homens que dedicaram toda a sua vida a compor rasgões e a lançar pontes entre dois mundos tão distantes. Sobressai também em toda a sua grandiosidade o esforço da Igreja católica para construir a nível institucional, estruturas capazes de apoiar este compromisso enorme com competência e dedicação. É possível constatar isso nas páginas dedicadas ao pós-concílio de Trento que assiste, em poucos anos, ao nascimento de novos órgãos dedicados a dar impulso às expectativas conciCONTINUA NA PÁGINA 15 Para não repetir os erros FERNAND O FILONI Conhecer a história da cristandade do Próximo Oriente e em particular da Mesopotâmia — hoje Iraque — não é uma ociosa extravagância cultural mas uma abordagem que ajuda a compreender as razões e as vicissitudes dramáticas daquela região e a apreciar a vida, a cultura, o testemunho de fé e os motivos de apego dos cristãos à própria terra, mas também o ódio dos seus inimigos. Ao mesmo tempo, compreende-se a nobreza de ânimo daquele povo marcado por duas realidades fundamentais: ser minoria, que gera forte apego aos próprios valores, à origem e cultura, e ser herdeiros de mártires e confessores da fé, portadores daqueles valores, insítos na fé dos antepassados, dos quais outros não podem orgulhar-se do mesmo modo. Quantos viveram entre eles, ou lêem e conhecem, não podem deixar de amar este povo. Porque o conhecimento une e torna capaz de partilha e participação. A história é vitória contra a ignorância, o obscurantismo, a intolerância; é respeito, é estímulo a não repetir os erros. Por isso penso que escrever esta história é útil. Ela faz entender que estas comunidades sobreviveram a séculos de pressões feitas de tributos e pesos, de induções matrimoniais e proibições, de discriminações e ódios, de intolerâncias e invejas, e por fim, até de perseguições. Os cristãos sobreviveram a tudo isto com incrível capacidade de resistência, de adaptação prática e cultural, sem abatimentos na fé. Quando o Senhor voltar, encontrará ainda fé nesta terra? Portanto, o presente volume pretende oferecer um conhecimento, um pouco mais adequado, do nascimento, da evolução e do desenvolvimento da comunidade cristã na Mesopotâmia; mas também da sua beleza, das crises e das humilhações sofridas que explicam, no contexto sociopolítico, a natureza fortíssima e o testemunho de fé até nas actuais perseguições. A comunidade cristã, como comunidade que remonta à era apostólica, traz consigo a bagagem de vinte e um séculos de amor a Cristo e à Igreja e está disposta a deixar tudo em vez de se submeter ao vencedor de turno. É uma Igreja heróica, como a definiram Bento XVI e o Papa Francisco. Sem ela, aliás sem elas — pensando em todas as Igrejas do Médio Oriente, igualmente portadoras da mesma característica — esta região não seria a mesma. Contudo, não posso deixar de pensar também nas outras minorias étnico-religiosas, com frequência perseguidas e sofredoras nesta terra. De facto, aqui existe um mosaico de nacionalidades, religiões, confissões sem as quais ele seria destruído para sempre; o que é reconhecido inclusive por eminentes autoridades muçulmanas e por simples cidadãos, como muitas vezes me foi repetido. Isto é positivo. Contudo, é preciso acrescentar, é necessário facilitar a permanência e a vida das minorias. Quando a 10 de Agosto de 2014 o Papa Francisco me enviou como seu representante pessoal ao Iraque para encontrar, falar, ver, acariciar, rezar e solidarizar com os sofrimentos inefáveis das vítimas do fanatismo islâmico do Is, foi terrível e causou-me emoções profundas. Emoções que senti novamente na «peregrinação» da Semana Santa de 2015. Este livro nasce para dar testemunho àquelas vítimas; às mulheres e homens cristãos e não cristãos que se encontraram comigo e dizer-lhes: obrigado pela vossa coragem! E obrigado também a quantos, com sacrifício e amor, tornam menos pesados os seus receios e preocupações. Nunca faltem neles a coragem e, ao mesmo tempo, a esperança. São os votos mais vivos e fortes de quem escreve, dando ao prelo estas páginas. número 32-33, quinta-feira 6-13 de Agosto de 2015 L’OSSERVATORE ROMANO página 13 A proposta do Papa Francisco acerca da data da Páscoa Unidos na Ressurreição LUCETTA SCARAFFIA As palavras do Papa Francisco, que mais uma vez se declarou disponível para estabelecer uma data comum a todos os cristãos para a festa da Páscoa suscitaram um imediato interesse mediático mundial. E um consenso geral: para o projecto de pacificação entre as confissões mas também, como escreveu Armando Torno, porque se trataria de uma espécie de racionalização do calendário, na direcção indicada há tempos pelo mundo laico. Contudo parece que ninguém se apercebeu de que a intervenção do Pontífice frisa implicitamente um aspecto importante: também em países nos quais a identidade cristã vai desvanecendo, a cadência do tempo ainda é a que está ligada à vicissitude terrena de Jesus. E sabemos que o calendário não é só uma convenção, mas algo profundo e simbolicamente relevante. De facto, não se trata de um elemento indiferente que em grande parte do mundo se viva segundo um calendário intrinsecamente ligado ao momento da Encarnação, um tempo que é aquele marcado por Cristo e que se desenvolve de maneira linear rumo à sua vinda. Como escreve Montini num texto de 1961, a vida cristã «propende toda para algo que deve vir, que nós esperamos, a ponto que a vida presente mais não é do que a expectativa da futura». A Páscoa e as festas com ela relacionadas constituem um aspecto diverso do ano litúrgico porque estão ligadas a um tempo cíclico, que se repete todos os anos e que indica o regresso das estações. De facto, as outras festas, como o Natal, estão inseridas num tempo linear, aquele que foi inaugurado pela Encarnação. Ao contrário, a data da Páscoa é estabelecida pelo ritmo da lua, marcando o ponto no qual o cristianismo se cruza mais visivelmente com a tradição judaica. No judaísmo — como no islão — ainda hoje as datas das celebrações sagradas estão estabelecidas todos os anos com base no calendário lunar. Naturalmente esta percepção perdeu-se, dado que, também no âmbito do ritmo lunar, judeus e cristãos se regulam por calendários diversos, mas o sentido da datação móvel é precisamente este. A ancoragem numa datação lunar significa de facto pôr em evidência um vínculo com o tempo cósmico, relacionar os ritos sagrados com os ciclos astronómicos e com as estações. Ao contrário, o vez, entrando numa delas num dia de festa, observei os lindíssimos bancos com genuflexórios e assentos almofadados revestidos de pele verdadeira: a igreja estava quase deserta. Ao contrário, na favela do Morro do Céu a pequena capela ao domingo estava apinhada de gente e fora estava também muita que participava na Missa olhando pelas janelas. No momento da proclamação da Palavra de Deus essas pessoas tomavam a palavra e comentavam até quando o sacerdote convidava a prosseguir a Missa que durava mais de uma hora. No momento da saudação da paz, as pessoas olhavam para mim sorrindo: «De onde vem?», «De Roma» respondi, «Sê bem-vinda à nossa comunidade» e todos me beijavam. Algum tempo mais tarde em Roma, antes do Natal, a nossa comunidade decidiu convidar os vizinhos de casa para fazer juntos uma preparação espiritual. Vieram várias pessoas, todas educadas e de um certo nível social. Preparámos a paraliturgia com a leitura bíblica. O no qual os cristãos, onde não são perseguidos, se estão a confrontar com um inimigo, a indiferença, que em certos aspectos é ainda mais insidioso, o Pontífice com a sua proposta de mudança no calendário intervém para imprimir uma mudança que reforce a sua identidade. A Ressurreição, celebrada juntamente por todos os cristãos, aumentaria a importância desta festa central para a fé num momento em que no mundo global as mudanças são vistas como imposições que se aceitam com resignação. Porque a mudança que viveremos — parece sugerir o Papa Francisco — nunca deve ser efeito passivo das agitações da história, mas responsabilidade de cada cristão, seja qual for a confissão à qual pertence. Sobre a situação dos cristãos e das outras minorias no mundo Perseguidos «Perseguidos»: é explícito o título do dossier publicado pela Cáritas italiana, dedicado a mais de cem milhões de cristãos vítimas, juntamente com outras minorias, de discriminações, perseguições e violências perpetradas por regimes totalitários ou adeptos de outras religiões. Só na Coreia do Norte calcula-se que estão presos nos campos de detenção entre 50 e 70.000 cristãos. Existe também a realidade dos países africanos e do Próximo e Médio Oriente onde os cristãos são perseguidos com uma violência evidente. A Cáritas calcula que de Novembro O catolicismo latino-americano CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 8 cristianismo ritmou desde as origens o ano litúrgico segundo uma cadência que, frisa ainda Montini, «é a da projecção da vida temporal de Cristo na nossa». Não é ocasional que o Papa tenha decidido propor esta mudança precisamente agora, oferecendo-a como dom de unidade às outras confissões: os cristãos no mundo estão a viver um momento dramático, as perseguições são fortes e contínuas como nunca. E trata-se de perseguições que atingem de maneira especial as Igrejas orientais que correm o risco de desaparecer. O que será do cristianismo se deixar de haver fiéis que rezam em aramaico, a língua de Jesus? Num momento no qual se estão a dilacerar os vínculos com as origens, texto era especificamente natalício, da visita de Maria a santa Isabel. Procurámos criar um pouco de atmosfera e começámos a convidar as pessoas presentes a partilhar as suas impressões sobre o Evangelho acabado de ouvir. Depois de um longo silêncio durante o qual ninguém tomava a palavra, um senhor, médico cirurgião muito bom, finalmente falou: «Sabe, irmã — disse — eu não concordo muito que as mulheres façam a leitura bíblica na Igreja». Foi necessário muito tempo para reconduzir o grupo ao tema principal, porque criou-se um debate. Por fim, voltámos ao Evangelho e uma senhora — culta e erudita, tinha estudado num colégio de freiras — disse: «Na realidade eu não compreendo uma coisa: mas quando se vai visitar uma pessoa, como Maria visitou Isabel, fica-se ali seis meses? A fazer o quê?». Não conseguimos dizer nada. Era deveras uma tragédia. Sim, tem razão Jesus ao dizer: «a boa nova é anunciada aos pobres... e bem-aventurados os pobres de espírito». A boa nova do concílio Vaticano II, foi acolhida e vivida sobretudo pelos «pobres». de 2013 a 31 de Outubro de 2014 os cristãos assassinados por razões estreitamente ligadas à sua fé foram 4.344, ao passo que as igrejas atacadas pela mesma razão foram 1.062. Uma barbárie que, aliás, atinge muitas outras minorias religiosas e étnicas e que revela um aumento preocupante da intolerância, como já foi mencionado, não só no Médio Oriente, teatro de conflitos e da actividade das milícias do chamado Estado islâmico (Is). O dossier da Cáritas italiana, que pode ser descarregado do site da internet, descreve portanto um problema dramaticamente actual. Ele, revela o organismo caritativo, tem um dúplice objectivo: esclarecer as causas da perseguição dos cristãos no mundo, tendo em conta as variáveis económicas, culturais e geopolíticas de cada país envolvido e, ao mesmo tempo, dar voz aos numerosos testemunhos silenciosos dos numerosos cristãos que continuam a preservar a fé arriscando a própria vida. Há um ano, em Julho de 2014, os homens do Is irromperam em Mossul e tal acção marcou o início do êxodo que em poucas semanas levou mais de um milhão de pessoas a refugiar-se na região iraquiana do Curdistão. Trata-se de cristãos, yazidis e outras minorias, acolhidos em particular na região de Erbil, Dohuk e Zakho. Depois, a situação agravou-se gradativamente com ondas cíclicas de desabrigados que chegavam à mesma região do Curdistão. «A Igreja local mobilizou-se imediatamente dando acolhimento nos pátios, nas igrejas e em todos os espaços disponíveis», frisou o direc- tor da Cáritas Italiana, padre Francesco Soddu, que juntamente com o secretário-geral da Conferência episcopal italiana, D. Nunzio Galantino, no mês de Outubro passado, visitou os campos de prófugos em Erbil. Depois da missão, o compromisso da Cáritas Italiana concentrou-se em projectos de assistência nas dioceses de Erbil e Dohuk com um programa de geminação de cidades por mais de um milhão de euros a favor de 13.000 famílias de cristãos e de yazidis, obrigados a fugir das suas residências. Desde 2003 até hoje o apoio económico da Cáritas Italiana aos projectos da Cáritas Iraque e da rede das organizações ligadas à Igreja local foi de 3,3 milhões de euros. O dossier evidencia que muitas vezes as chamadas guerras de religião nascem devido a precisos interesses políticos e hegemónicos, explicam os responsáveis pelo dossier, e afirma com factos concretos que é possível partir das diferenças religiosas para trabalhar juntos a favor da paz, como não cessam de testemunhar as Cáritas do Médio Oriente, onde a colaboração activa entre cristãos e muçulmanos é cada vez mais frequente. página 14 L’OSSERVATORE ROMANO «Satanás tem no seio o Anticristo» (séc. XIII, igreja de Nossa Senhora da Assunção, ilha de Torcello, Veneza) quinta-feira 6-13 de Agosto de 2015, número 32-33 Na era moderna as heranças da mística medieval alemã e do humanismo confrontam-se sobre o tema do Anticristo de maneira mais profunda e espiritual No último livro de Marco Vannini O regresso do Anticristo LUCETTA SCARAFFIA figura do Anticristo está presente, quase há dois mil anos, nas culturas de cunho judaico-cristão, e por conseguinte também na tradição muçulmana, como imagem poderosa do mal mascarado de bem, e por conseguinte ainda mais perigoso porque enganador. São sempre poucos os heróis positivos que o conseguem desmascarar — ou seja, vê-lo com um olhar diverso do olhar daqueles que ele mesmo manipulou — e são os mesmo que o conseguirão expulsar definitivamente do mundo. Marco Vannini (L’Anticristo. Storia e mito, Milão, Mondadori, 2015) reconstrói agora a sua história, a partir das sagradas Escrituras que desenham o seu perfil, sobretudo os escritos atribuídos a João, as Cartas e o Apocalipse. Mas o autor requintado estudioso de mística, não renuncia a revelar a sua particular teoria sobre o Anticristo nem a tomar posição, com clareza, sobre o presente, e isto torna o livro particularmente interessante. O estudioso relaciona a denúncia da presença de um ou mais anticristos nos escritos de João com o facto de que João é o único que fala abertamente de divindade de Cristo, o único que restabelece como a dimensão do eterno seja só a do espírito. Os Padres da Igreja retomam esta tradição, enriquecendo-a com outros pormenores: Ireneu define-o «o homem da iniquidade» e abre a porta à interpretação antijudaica, enquanto Orígenes priva o Anticristo de qualquer característica de personagem real, fazendo-lhe assumir o significado simbólico da contrafacção da verdade. Mas se o anticristo são todos os seres humanos que mentem — escreve Vannini — segundo Orígenes «torna-se e é um Anticristo qualquer homem que não passou pela morte da alma e pelo renascimento do espírito». Também Agostinho avança a hipótese de que não é só um homem, um chefe, uma figura emblemática, mas toda a multidão dos iníquos. Contudo estas interpretações metafóricas e espirituais não impediram que a sociedade cristã visse o Anticristo encarnado em protagonistas concretos da história que se opunham aos cristãos, como os imperadores romanos perseguidores ou Maomé. Na Idade Média a fantasia de muitos escritores dá livre curso à imaginação ao descrever as características do Anticristo, nascido do fruto de um incesto e sexualmente pervertido, correspondente ao número da besta, 666 segundo o Apocalipse. As interpretações deste número multiplicaram-se, até chegar a reconhecê-lo no actual código de barras, obrigatório para todos os produtos e que torna o consumo e a tecnologia o instrumento de acção do Anticristo no mundo de hoje. Nos anos que precederam e nos que se seguiram à ruptura da sociedade cristã as acusações recíprocas de ser o Anticristo tornaram-se um costume: se os protestantes — e antes deles os espirituais e todos os movimentos heréticos — o viam encarnado no Papa e na hierarquia eclesiástica, para os católicos o epíteto era perfeitamente apro- A priado para Lutero. Segundo os heréticos, o tema de base à propaganda anti-semita, Os Protocolos do Anticristo estava em estreita relação com o mi- dos Sábios de Sião. Um dos livros modernos mais significativos solenarismo, ou seja, com uma concepção do tempo que vê na era presente o momento final da luta bre o Anticristo é o que foi escrito pelo inglês entre o bem e o mal, com a vitória certa do bem, Robert Benson, O Senhor do Mundo, que imagina o domínio de uma figura política aparentemente mesmo se depois de muito sofrimento. O milenarismo pressupõe um progresso moral capaz de grandes valores humanos, portadora de da humanidade, e a possibilidade de alcançar de- paz e bem-estar, mas na realidade simplesmente pressa a terceira fase, a que prevê a inversão defi- um imitador e falsificador de Cristo. Só quem nitiva do mal com a derrota do Anticristo. Forma- consegue resistir ao seu fascínio pode ler com luram-se heresias e seitas na esperança de que tives- cidez a situação, e ir à batalha definitiva que leva se chegado o momento fatídico e que pudéssemos o verdadeiro bem ao triunfo. A matriz judaico-cristã do islamismo revela-se ficar indiferentes ao bem e ao mal, voltando a um estado mítico de natureza. Dando lugar a expe- com particular clareza na sua concepção de Antiriências trágicas, como a quinhentista de Münster, cristo, caracterizado por um forte elemento apoainda é possível encontrar as últimas e terríveis calíptico e messiânico. Na tradição muçulmana sementes de milenarismo nos grandes totalitaris- estão presentes duas figuras messiânicas, o Madhi e Jesus, que desempenham sempre um papel pomos do século XX, o nazismo e o comunismo. Na era moderna as heranças da mística medie- sitivo na batalha final contra o mal, personificado val alemã e do humanismo confrontam-se sobre o numa figura de carácter ambivalente, o Dajjal, setema do Anticristo de maneira mais profunda e melhante ao Anticristo. Segundo uma tradição isespiritual: se a luz divina reside no fundo de cada lâmica os judeus tomarão partido do Dajjal — alma humana, ou seja, se é o Cristo interior o ver- identificado por muitos com o império americano dadeiro, anticristos são todos os que se opõem a — também acariciando o projecto de reconstruir o esta verdade, e portanto todos os teólogos, todas Templo de Jerusalém, onde hoje se encontram as as Igrejas historicamente constituídas. Em parti- duas mesquitas, e o seu instrumento de corrupção cular, é interessante a reflexão sobre o Anticristo são os meios de comunicação que difundem notíde Sebastian Franck que — escreve Vannini — se cias tendenciosas e erradas. Por conseguinte, Ismove segundo o sentido originário de João, isto rael e os Estados Unidos representariam o Grané, que o vê «dentro da Igreja, ou contudo dentro de Satanás. A vitória do bem será restabelecida da que se proclama tal e, de maneira totalmente graças ao regresso de Cristo, que reconhecerá nos correcta, é visto como o defensor de valores mun- muçulmanos os seus verdadeiros seguidores. Contudo, não devemos esquecer que também danos, quer dizer, anticristãos, que disfarça como se fossem cristãos, e por isso beneficia dos louvo- algumas seitas fundamentalistas protestantes norte-americanas consideraram o regresso dos judeus res e da aprovação do mundo». Outro aspecto que deve ser aprofundado para à Palestina como o sinal que se estão a cumprir as compreender o Anticristo é a tradição messiânica, profecias bíblicas, e que por conseguinte se aproxima o fim do mundo. realizada por uma corrente do judaísmo reNovo e particularmente interespresentado por Sabbatai Zevi e pelo seu sante é o capítulo do livro que sucessor Jacob Franck, ambos depois analisa o Anticristo de Nietzsche, adeptos do antinomismo, ou seja, da porque Vannini reconhece na sua ideia que se cumpre o preceito de crítica ao cristianismo a vontade lei violando-o. Por conseguinde permanecer fiel à mensate, o antinomismo configem de Cristo: a ideia evangégura-se como licença selica é a do reino de Deus xual, erotismo pervertidentro de nós, e por isso, tudo, isto é, profanação do o que toma o nome de do carácter sagrado da cristianismo é fruto de um beleza e da inocência. equívoco, e por conseguinte é A categoria do anticristo um anticristo. Portanto, o filósofoi cultivada com grande fo tem por finalidade desmascaintensidade na tradição russa, no rar a mentira, em particular a reliâmbito da qual nasceram dois giosa, a que esconde uma vontade textos muito significativos, ambos de auto-afirmação, de egoísmo. firmemente analisados por VanniNietzsche pode então ser interni: Os irmãos Karamazov — no pretado como um místico, para o qual o grande Inquisidor se revequal «a verdadeira essência do la como Anticristo — de Fiódor cristianismo é a fé na verdade, Dostoiévski, e Relato do Antinão a moral e a crença». cristo de Vladimir Soloviev, que Em conclusão Vannini critica descreve esta figura como um as actuais tendências que rejeitam super-homem jovem, dotado de todos os elementos do cristianistodas as virtudes, mas capaz de mo inconciliáveis com o judaísmo se amar só a si mesmo: mostrae portanto, em primeiro lugar, o se bom, mas no fundo não é; evangelho de João, chegando asgraças à saciedade universal sim a obscurecer a divindade de quer destruir todos os valores Jesus. Sobretudo, denuncia a tenhumanos verdadeiros, comedência de cancelar a distinção ençando pela instituição famitre natureza e graça, «dado que liar, primeira geradora destes se ignora a graça e se pensa na valores. Deste tipo de cultunatureza como boa, sem necessiLuca Signorelli ra — mesmo se Soloviev cerdade alguma de graça, de conver«Pregação e factos do Anticristo» tamente não era anti-semita são: deveras a perfeita sedução do (Catedral de Orvieto, 1499-1502, detalhe) Anticristo». — nasce o livro que servirá número 32-33, quinta-feira 6-13 de Agosto de 2015 L’OSSERVATORE ROMANO INFORMAÇÕES Trinta anos da Academia Marial de Aparecida EDSON LUIZ SAMPEL* Nomeações A 4 de Agosto Bispo de Margarita (Venezuela), D. Fernando José Castro Aguayo, até hoje Auxiliar de Caracas. O Sumo Pontífice nomeou: A 1 de Agosto Núncio Apostólico na Jordânia e no Iraque, o Rev.mo Mons. Alberto Ortega Martín, até agora Conselheiro de Nunciatura, simultaneamente eleito Arcebispo Titular de Midila. D. Alberto Ortega Martín nasceu em Madrid (Espanha), a 14 de Novembro de 1962. Recebeu a Ordenação sacerdotal no dia 28 de Abril de 1990. Director da Direcção de Saúde e Higiene do Governatorado do Estado da Cidade do Vaticano, o Dr. Alfredo Pontecorvi, Professor Ordinário de Endocrinologia e Director da I Escola de Especialização em Endocrinologia e Doenças do Metabolismo, na Policlínica Universitária Agostino Gemelli, Universidade Católica do Sagrado Coração, Roma. Prelados falecidos Adormeceu no Senhor: No dia 3 de Agosto D. Salvatore Cassisa, Arcebispo Emérito de Monreale (Itália). O venerando Prelado nasceu a 12 de Dezembro de 1921. Foi ordenado Sacerdote no dia 3 de Setembro de 1944. Recebeu a Ordenação episcopal em 24 de Janeiro de 1974. Início de Missão de Núncio Apostólico D. Adolfo Tito Yllana, Arcebispo Titular de Montecorvino, na Austrália (24 de Junho). Em 2015, a Academia Marial de Aparecida (AMA), situada na cidade homônima, no Estado de São Paulo, completa 30 anos de existência. O que é uma academia marial ou mariana? Vejamos. A palavra «academia» explica bem: trata-se de uma associação de estudo. No caso, a AMA congrega teólogos e canonistas especializados na pesquisa da hiperdulia (devoção à mãe de Jesus). A sublime devoção a nossa Senhora não é algo facultativo para o católico. Consoante o magistério do Papa beato Paulo VI, cuida-se de um elemento central da doutrina, de modo que não se pode ser cristão sem venerar a virgem Maria (Alocução no Santuário de Nossa Senhora de Bonaria de Cagliari, em 24/4/1970; AAS 62, 1970, p. 299). A propósito, o poeta Dante Alighieri comunicou lindamente este dogma, escrevendo que «querer chegar a Jesus sem Maria é querer voar sem asas» (Divina Comédia, Paraíso, canto XXXII, 12). Maria é a deípara, ou seja, a que pariu Deus, a mãe de Jesus. Portanto, chegamos a Jesus, nosso salvador, por intermédio de Maria de Nazaré. O código canônico recomenda aos católicos «a veneração especial e filial à bem-aventurada sempre virgem Maria, mãe de Deus, a quem Cristo constituiu mãe de todos os homens (...)» (cân. 1186 do CIC). Dentro em breve, no fausto ano de 2017, comemoraremos os 300 anos da invenção (achado) de uma imagem de Maria no Rio Paraíba, no Estado de São Paulo. Dessa es- Na carne dos cristãos do Iraque CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 12 liares: em 1573 a Congregatio de rebus Graecorum, transformada por Clemente VIII em Congregatio super negotiis fidei et religionis catholicae, em 1622 em Sacra Congregatio de Propaganda Fide, em 1627 no Colégio de Propaganda Fide. A partir do século XVIII o horizonte oriental entra cada vez mais nas aspirações das potências ocidentais, mas ao mesmo tempo já é parte integrante das preocupações dos Papas que entram com firmeza e audácia nas vicissitudes políticas turbulentas a fim de proteger as comunidades cristãs e apoiar o catolicismo oriental que se vai consolidando gradualmente em estruturas cada vez mais estáveis. Pensemos, por exemplo, no papel decisivo desempenhado pelas delegações apostólicas através das quais o Papa e os seus colaboradores entravam de forma discreta, mas enérgica na vida dos cristãos orientais, garantindo a sua união com Roma, contribuindo com conselhos e apoio para o episcopado local, mantendo relações com as entidades estatais, trazendo para Roma notícias pormenorizadas. Outra característica do cristianismo oriental, gravada profundamente na própria carne dos cristãos iraquia- nos, e que o livro segue fielmente como um fio vermelho constante, é o martírio. Desde os primeiros passos os cristãos da Mesopotâmia encontraram oposições duras e com êxitos sangrentos: a hostilidade dos bizantinos, a perseguição dos persas, a invasão islâmica e as consequentes limitações, a grande crise da convivência étnico-religiosa que acompanhou a dissolução do império otomano no início do século XX . História de dor e de sangue derramado que não afectou a fidelidade do povo cristão iraquiano ao Evangelho e à Igreja. Um testemunho que sobressai claro e forte das páginas apaixonadas escritas por quem experimentou pessoalmente as últimas turbulentas vicissitudes de guerra e perseguições que continuaram a marcar o cristianismo iraquiano, até aos nossos dias. O último capítulo delineia a relação entre a Santa Sé e o Iraque após o concílio Vaticano II. É um exemplo claro de como uma Igreja renovada pelo Espírito, que se confrontou com coragem com uma realidade histórica profundamente mudada, soube encontrar novas linhas de intervenção e outras abordagens de uma realidade complexa e problemática como a do Médio Oriente. As linhas-guia, ditadas pelos documentos conciliares e pelos grandes Papas página 15 dos últimos cinquenta anos, são claras: busca da paz; construção de relações respeitadoras e profícuas com as diversas comunidades religiosas e com as outras Igrejas; desenvolvimento das Igrejas locais, do seu clero autóctone, da espiritualidade autêntica dos fiéis, livres de influências culturais e políticas ocidentais; colaboração e apoio recíproco entre os diversos ritos católicos. Em síntese, o livro oferece um amplo afresco de um mundo difícil e fascinante. A riqueza de documentação e o rigor histórico fazem dele uma fonte preciosa para os estudiosos do cristianismo oriental. Mas sobretudo este texto tem o valor de um testemunho dúplice. Por um lado, sobre como a mensagem evangélica deu a um povo a força necessária para passar ileso entre provas indizíveis e manter vitoriosa a própria fé sobre os reveses da história. Por outro, como se pode conjugar a competência do historiador, a fineza cultural e política do diplomata com a paixão de um pastor que tem a peito sobretudo a vida e o bem do seu povo. Com efeito, esta é a pergunta, um pouco angustiada, mas cheia de esperança que o autor faz na conclusão: «Haverá ainda um futuro de bem para este país e para os seus habitantes?». tatueta tão simples medrou para todo o país a veneração à mãe de Deus sob o nome de Nossa Senhora Aparecida. Na assembleia da AMA realizada em dezembro de 2014, surgiu, também, a ideia de se instituir uma faculdade de mariologia em Aparecida; seria o primeiro instituto do gênero na América Latina. Que a Academia Marial de Aparecida, com a proteção de nossa Senhora, continue a produzir excelentes frutos de evangelização do povo brasileiro. Parabéns à AMA e a todos os consócios pelos 30 anos de amor e dedicação à genitora do Filho de D eus! *Professor da Faculdade de Direito Canônico São Paulo Apóstolo Maternidade sub-rogada CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 6 via, há mais de um ano o governo indiano proibiu aos solteiros e aos casais gays recorrerem à maternidade sub-rogada, e esta crise tornou-se uma oportunidade para o Nepal: um mercado, um nicho. Tornaram-se peritos em genitores 2.0. Em Katmandu, as fábricas de maternidade por conta de terceiros brotaram como cogumelos: já existem mais de uma dezena. O governo não interfere se a transição for entre estrangeiros, e as clínicas contratam mulheres indianas ou bengalesas para usar os seus ventres. O «Nouvel Observateur» define assim esta expressão da globalização: «Os recém-nascidos são quebracabeças compostos por peças que provêm de todo o mundo. Óvulo disponibilizado por uma polaca ou uma ucraniana, para que o bebé seja caucásico; esperma americano, sueco ou japonês; embrião congelado na Índia e implantado no útero de uma bengalesa numa clínica do Nepal». A tendência está a aumentar, mas não existem números globais: muitas destas crianças não são registadas de forma clara no Cartório e ninguém sabe quantas são produzidas todos os anos no mundo. Surgem também dúvidas e perguntas sobre o que significa ser mãe e pai, até que ponto é tolerável comprar corpos para realizar determinadas funções. E criou-se um novo mercado, um dos mais humilhantes que se possam imaginar. Há quase duzentos anos um alemão reabilitou uma palavra latina incomum, fazendo-a circular novamente. Proletário era aquele que era tão pobre que podia contar unicamente com a sua prole. O alemão não podia saber que a sua palavra seria tão apropriada. L’OSSERVATORE ROMANO página 16 quinta-feira 6-13 de Agosto de 2015, número 32-33 Durante a audiência geral Francisco recomendou acolhimento e cura das famílias feridas Não às portas fechadas Quantos estabeleceram uma nova união depois do fracasso do matrimónio não estão excomungados «Não às portas fechadas!», repetiu o Papa Francisco na audiência geral de quarta-feira 5 de Agosto, convidando os cristãos a garantir acolhimento e cura pastoral a quantos estabeleceram uma nova união depois do fracasso do matrimónio sacramental. Concluída a pausa de Julho, o Pontífice retomou na sala Paulo VI os encontros semanais com os fiéis, dando continuidade às catequeses dedicadas à família. Amados irmãos e irmãs, bom dia! Com esta catequese retomemos a nossa reflexão sobre a família. Depois de ter falado, na última vez, das famílias feridas por causa da incompreensão dos cônjuges, hoje gostaria de chamar a nossa atenção para outra realidade: como ocupar-nos daqueles que, depois do fracasso irreversível do seu vínculo matrimonial, empreenderam uma nova união. A Igreja sabe bem que tal situação contradiz o Sacramento cristão. Contudo, o seu olhar de mestra haure sempre de um coração de mãe; um coração que, animado pelo Espírito Santo, procura sempre o bem e a salvação das pessoas. Eis o motivo pelo qual sente o dever, «por amor à verdade», de «discernir bem as situações». Assim se expressava João Paulo II, na Exortação apostólica Familiaris consortio (n. 84), dando como exemplo a diferença entre quem sofreu a separação em relação a quem a causou. Este discernimento deve ser feito. Se considerarmos depois também estes novos vínculos com o olhar dos filhos pequenos — e os pequeninos vêem — com o olhar das crianças, vermos ainda mais a urgência de desenvolver nas nossas comunidades um acolhimento real para com as pessoas que vivem essas situações. Por isso é importante que o estilo da comunidade, a sua linguagem, as suas atitudes, estejam sempre atentas às pessoas, a partir dos pequeninos. São eles que mais sofrem, nestas situações. De resto, como poderíamos recomendar a estes pais que façam de tudo para educar os filhos na vida cristã, dando-lhes o exemplo de uma fé convicta e praticada, se os mantivéssemos à distância da vida da comunidade, como se estivessem excomungados? Devemos fazer de maneira que não se acrescentem outros pesos além dos que os filhos, nestas situações, já se encontram a ter que suportar! Infelizmente, o número destas crianças e jovens é deveras grande. É importante que eles sintam a Igreja como mãe atenta a todos, sempre disposta à escuta e ao encontro. Na realidade, nestes decénios a Igreja não foi nem insensível nem indolente. Graças ao aprofundamento realizado pelos Pastores, guiado e confirmado pelos meus Predecessores, aumentou muito a consciência de que é necessário um acolhimento fraterno e atento, no amor e na verdade, em relação aos baptizados que estabeleceram uma nova convivência depois da falência do matrimónio sacramental: não estão excomungados; com efeito, estas pessoas não devem absolutamente ser tratadas como tais: elas fazem parte da Igreja. O Papa Bento XVI interveio sobre esta questão, solicitando um discernimento atento e um acompanhamento pastoral sábio, consciente que não existem «receitas simples » (Discurso no VII Encontro Mundial das Famílias, Milão, 2 de Junho de 2012, resposta n. 5). Eis o motivo do repetido convite dos Pastores a manifestar aberta e coerentemente a disponibili- dade da comunidade a acolhê-los e a encorajá-los, para que vivam e desenvolvam cada vez mais a sua pertença a Cristo e à Igreja com a oração, com a escuta da Palavra de Deus, com a frequência da liturgia, com a educação cristã dos filhos, com a caridade e o serviço aos pobres, com o compromisso pela justiça e a paz. O ícone bíblico do Bom Pastor (Jo 10, 11-18) resume a missão que Jesus recebeu do Pai: dar a vida pelas ovelhas. Esta atitude é um modelo também para a Igreja, que acolhe os seus filhos como uma mãe que oferece a sua vida por elas. «A Igreja está chamada a ser sempre a casa aberta do Pai [...]» — Não às portas fechadas! Não às portas fechadas! — «todos podem participar de alguma forma na vida eclesial, todos podem fazer parte da comunidade. A Igreja [...] é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fatigante» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 47). Do mesmo modo todos os cristãos estão chamados a imitar o Bom Pastor. Sobretudo as famílias cristãs podem colaborar com Ele ocupando-se das famílias feridas, acompanhando-as na vida de fé da comunidade. Cada qual faça a sua parte assumindo a atitude do Bom Pastor, o qual conhece cada uma das suas ovelhas e não exclui nenhuma do seu amor infinito! No final da audiência, o Pontífice saudou em várias línguas os numerosos fiéis e peregrinos presentes, dirigindo-lhes entre outras as seguintes palavras. Queridos peregrinos de língua portuguesa, nomeadamente os acólitos e escutas de Portugal, bem como os fiéis brasileiros: sede bem-vindos! Saúdo-vos como membros desta família que é a Igreja, pedindo-vos que renoveis o vosso compromisso para que as vossas comunidades sejam lugares sempre mais acolhedores, onde se faz experiência da misericórdia e do amor de Deus. Que o Senhor vos abençoe a todos! Dirijo um pensamento particular aos jovens, aos doentes e aos recém-casados. Hoje, celebramos a Dedicação da Basílica de Santa Maria Maior, onde se venera o ícone da Salus populi Romani. Amados jovens, invocai a Mãe de Deus para sentir a docilidade do seu amor; estimados enfermos, rogai a Ela nos momentos da cruz e do sofrimento, de maneira especial vós, Anjos da Liberdade de Siracusa; e queridos recém-casados, contemplai-a como modelo do vosso caminho conjugal de dedicação e fidelidade.