1. Acolhendo-vos neste VI Colóquio de Direito do Trabalho, o STJ cumpre a sua missão de instância referencial da Justiça, abrindo-se à reflexão e à discussão de questões essenciais, que importam à comunidade jurídica, mas essencialmente aos cidadãos em nome de quem a justiça é administrada. Este Colóquio foi ideia e é obra do Presidente e dos Juízes da Secção Social do STJ, em parceria com a APODIT, organizado com o entusiasmo contagiante e a inexcedível dedicação de todos. Agradeço vivamente à APODIT e aos Juízes da Secção Social toda a disponibilidade e o sentido de serviço público que permitiram a realização do Colóquio, bem como o auxílio indispensável dos membros do meu Gabinete e da Administração do STJ. 2. As crises que há mais de duas décadas afectam as velhas economias projectam-se sobre as condições de trabalho; a crise económica teve e tem consequências de devastação nos mercados de trabalho, produzindo inquietudes e perplexidades no direito do trabalho. O respeito pelo valor e função social trabalho, as liberdades colectivas, a solidariedade, a democracia social e a dignidade da pessoa humana constituem princípios sedimentados, sobre os quais o direito do trabalho construiu a sua autonomia dogmática na densificação de valores essenciais de justiça social. São os princípios fundadores da Declaração de Filadélfia de 1944, que estão afirmados por forma explicitamente dogmática como verdadeiro acto de fé, mas que foi também, nas circunstâncias da época, um acto de razão. O direito do trabalho nasceu, cresceu e foi conquistando autonomia científica como direito adequado a enquadrar e regular relações estruturalmente assimétricas na essência e carecidas de recomposição, protecção e compensação da 1 debilidade prática do trabalhador. A deslocalização, a desindustrialização e os progressos fulgurantes da técnica determinaram alterações substanciais, provocando a redução de postos de trabalho em espaços económicos nacionais. Ao mesmo tempo, a prosperidade e o aumento de riqueza, possibilitados pelo desenvolvimento tecnológico, são conseguidos à custa da redução de postos de trabalho apresentada como exemplo da excelência da gestão. Como resultado, instalou-se perante nós um denso paradoxo nas políticas económicas e sociais: manter a competitividade num mundo globalizado, sem perder a coesão social, quando o trabalho, ou o emprego, ficou um bem cada vez mais escasso. 3. Neste ambiente político, económico e social, a crise foi sendo o pretexto para a emergência de um discurso que exige a recomposição de categorias jurídicas com a consequente modificação do direito do trabalho. No espaço entre a «inevitabilidade» que pretende impor a excepção, emerge o enfraquecimento e a erosão dogmática do direito do trabalho, acentuando a regressão dos direitos dos trabalhadores. A identidade política e jurídica do direito do trabalho dissolve-se na imperatividade do «horizonte dos possíveis». A fragilização do carácter protector do direito do trabalho, através do esbatimento do estatuto em favor da dimensão especificamente contratual e privatística, enfraquece a garantia dos vínculos e a protecção do trabalhador enquanto condição de liberdade, gerando a «balcanização» das formas de emprego. 2 Poderemos dizer que a reconfiguração do direito do trabalho percorre um caminho rápido para o direito civil. As empresas procuram adaptar-se às alterações de percurso, por vezes súbitas, resultantes das globalizações, e as oscilações bruscas dos mercados diminuem consequentemente o trabalho estável. Os novos postos de trabalho são, assim, temporários, precários, com jornadas reduzidas; ou os tempos de trabalho aumentam com salários mais reduzidos. Há uma maior segmentação dos mercados de trabalho com enorme heterogeneidade das formas de emprego. Em suma, o agravamento das condições de trabalho, o risco de fractura social e a emergência social de um segmento de excluídos - os excluídos dos mercados de trabalho. 4. O direito do trabalho sofre a desconstrução das suas categorias fundamentais, enfraquecendo-se, a pretexto da «crise», em cedências à colonização economicista. As construções normativas são, neste campo, instrumentos de mediação e, por isso, de comunicação de fórmulas impostas no cruzamento sincrético das dinâmicas da economia, de políticas económicas e dos direitos sociais. Por vezes, em ruptura; outras na acomodação possível no imperativo democrático dos consensos. Os consensos devem ser obtidos sobre políticas económicas, de promoção do emprego, de formação profissional, de protecção no desemprego, e na confluência de políticas activas, com instrumentos de protecção social das pessoas e das famílias. 3 O direito do trabalho, não enquanto agregado de estritas regulações, mas como construção com autonomia científica, tem hoje a missão de contribuir para a prevenção da insegurança e para a estabilidade relacional. As construções jurídicas sedimentadas, e as formulações teórica e tecnicamente apuradas, devem servir para enquadrar a discussão e apurar a correcção das soluções que a dimensão política e económica tornem, porventura, inevitáveis. A instabilidade de conceitos e o desassossego das normas não dão tempo para consolidações jurisprudenciais, precisamente nas matérias mais problemáticas sobre a consistência e a espessura dos direitos. Os tempos não vão propícios à construção da certeza, da segurança, da estabilidade e da confiança que sociedades socialmente inseguras e economicamente instáveis exigem da justiça. A dissolução de categorias, a cedência das construções dogmáticas aos imperativos da «razão económica», a fragilização dos conjuntos normativos teoricamente organizados em disciplina autónoma, vão certamente afectar a natureza e a função de arbitramento judicial nas questões de trabalho. E novas abordagens estão na «ordem do dia» dos dias que vivemos, no que se nos apresenta como «desafios de séc. XXI». Num campo tão sensível, onde se cruzam valores inerentes à dignidade da pessoa humana e à inclusão como condição de realização da personalidade e de integração na cidadania efectiva, o juiz tem de realizar uma função que é a um tempo de limite e resguardo da efectividade. O direito do trabalho é também, em boa parte, direito constitucional em acção. 4 Em relevantes momentos, na interpretação e aplicação da lei, o juiz deve temperar as relações laborais com os princípios denominadores comuns das democracias sociais, que são modos de comunicação política de injunções vinculativas das constituições. As categorias referenciais continuaram a ser, decerto, a natureza dos vínculos laborais; a definição dos equilíbrios aceitáveis na assimetria das relações: o lugar da vontade na definição do conteúdo da relação laboral e a extensão das regras vinculísticas; a prevenção da erosão e da incerteza relativa aos elementos determinantes e essenciais da relação. O direito ao trabalho, o direito a condições de trabalho equitativas, o direito à segurança, o direito à negociação colectiva, os direitos sindicais, a formação profissional, bem como a protecção contra os despedimentos sem justa causa, constituem outras tantas injunções que integram o núcleo não renunciável das obrigações constitutivas do direito do trabalho. Mas a fragilidade das relações de trabalho faz acentuar a necessidade dos reequilíbrios impostos pelos grandes princípios inscritos nos documentos internacionais e nas constituições. Novas abordagens, ou a construção ou reconstrução de categorias jurídicas de enquadramento, podem gerar soluções de continuidade internormativas em espaços carecidos de regulação; a integração de eventuais lacunas será tarefa do juiz com apelo a critérios sistémicos ou deduzidos de princípios fundamentais. O respeito pela dignidade da pessoa humana nas relações de trabalho – tanto nos pressupostos das vinculações como nas condições de execução das prestações; a protecção dos direitos de personalidade, e a garantia dos direitos fundamentais devem respeitar a integridade do núcleo intocável de direitos constitucionais, através da mediação judicial na definição da concordância prática 5 em caso de conflito. É um campo para onde irradiam valores constitucionais, e que fica cada vez mais impregnado pela vinculação e efeito directo dos direitos fundamentais, com é também revelado pela jurisprudência do TEDH em interessantes decisões sobre a conteúdo e acção nas relações de trabalho, particularmente – situando-nos nas matérias do Colóquio – no âmbito do artigo 8º da CEDH. 5. Os temas do Colóquio procuram chamar-nos a esta reflexão. Desde a recomposição processual – instrumento essencial e espaço de garantias – até novas e inesperadas refracções da interacção em «territórios de conflito», entre a dinâmica da direcção e os interesses dos empregadores e as condições de dignidade e direitos de personalidade dos trabalhadores. A privacidade, mesmo espaços de reserva, limites à auto-determinação comportamental, direitos de expressão, manifestações de liberdade pessoal dos trabalhadores e as condições de vinculação no interesse do conteúdo efectivo da relação laboral podem cruzar-se em momentos de colisão. A construção dos limites, mas também das imposições da concordância prática ficará mais enriquecida com as vossas reflexões dinâmicas e plurais. Agradeço a todos a vossa presença, que contribui para a certeza do êxito do Colóquio. (António Henriques Gaspar) 6