XXIII SEMANA ACADÊMICA DA MATEMÁTICA
Expansão de Números Reais em Frações Contı́nuas
Leandro Antunes1 , Rodrigo Ribeiro Lopes1 , Clezio A. Braga2
1
2
Acadêmicos do 4o ano do Curso de Matemática da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
85819-110 - Cascavel - PR - Brasil
Colegiado do Curso de Matemática - Centro de Ciências Exatas e Tecnológicas da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Caixa Postal 711 - 85819-110 - Cascavel - PR - Brasil
leandro antunes @hotmail.com, rodrigoribeiro [email protected], [email protected]
Resumo. A teoria das frações contı́nuas é uma importante ferramenta matemática,
possuindo aplicações em diversos ramos, como, por exemplo, na análise, na teoria de
números, na teoria de probabilidades, dentre outras. Neste trabalho buscaremos introduzir algumas noções básicas dessa teoria, como o algoritmo para expandir números
racionais em frações contı́nuas, a expansão de alguns números irracionais e a relação
dessa expansão com a Transformação de Gauss.
Palavras Chaves. Frações
contı́nuas,
Representação
de
números
reais,
Transformação de Gauss
1. Introdução
Uma fração contı́nua correspondente a um número real x é uma expressão da forma
1
,
x = a0 +
1
a1 +
1
a2 +
.
a3 + . .
onde a0 é um número inteiro, e os demais ai são números naturais. Sua notação usual é
x = a0 + [a1 , a2 , a3 , ...].
Isso significa que x é o limite da sequência
1
pk
= a0 +
.
1
qk
a1 +
1
a2 +
1
.
a3 + . . +
1
ak−1 +
ak
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Os números ai são denominados quocientes de x, e se truncarmos em um k-ésimo
pk
é chamado k-ésimo convergente de x.
quociente, o resultado da fração resultante
qk
Qualquer número real pode ser representado por frações contı́nuas, e podemos obter propriedades importantes desse número apenas olhando essa sua forma de
representação. Por exemplo, podemos provar que os números racionais possuem expansão em frações contı́nuas finita, números irracionais que são raı́zes de funções
quadráticas possuem expansão periódica, e em alguns casos é possı́vel determinar se um
número é transcendente apenas observando sua expansão em frações contı́nuas.
Esse é um dos temas mais fascinantes da matemática, sendo objeto de estudo de
grandes matemáticos dos séc. XVII e XVIII, como Leonhard Euler, Johan Lambert e
Joseph Louis Lagrange, sendo ainda hoje tema de pesquisas. Há traços de seu estudo já
em 306 a.C., aparecendo também em um trabalho do matemático indiano Aryabhata (475
- 550 d.C.), que as usou para resolver uma equação linear. Porém, até o século XVII as
frações contı́nuas
foram usadas apenas em estudos de casos especı́ficos, como para re√
√
presentar 13 ou 18, realizados por Rafael Bombelli e Pietro Cataldi, respectivamente.
Pietro Cataldi, matemático nascido em Bologna, Itália, em 1548, interessado inicialmente
em números perfeitos, encontrou aproximações para raı́zes quadradas de números usando
frações contı́nuas, mas não fez uma investigação aprofundada sobre o assunto.
Podemos dizer que John Wallis (1616 - 1703) foi o pioneiro em um trabalho aprofundado nesse tema. Em 1656 publicou o livro Arithemetica infinitorium, em que mostrou
que
π
3 x 3 x 5 x 5 x 7 x 7 x 9 x ...
=
.
4
2 x 4 x 4 x 6 x 6 x 8 x 9 x ...
Apesar do membro direito da expressão não ser uma fração contı́nua, Lord Brouncker
(1620 - 1684) a reescreveu da seguinte forma:
π
=1+
4
12
.
32
2+
52
2+
2+
72
.
2 + ..
Em 1695, Wallis mostrou em seu livro Opera Mathematica como encontrar os
convergentes de um número, demonstrando importantes propriedades, além de introduzir
o termo frações contı́nuas. Huygens (1629 - 1695) foi o primeiro a encontrar aplicações
práticas à teoria, usando convergentes para encontrar a melhor aproximação racional para
a razão entre os dentes de engrenagens acopladas, motivado por seu desejo de construir
um planetário mecânico.
Boa parte da teoria moderna de frações contı́nuas foi desenvolvida por Euler e
publicada em 1737 em seu livro De fractionbous continuis. Ele mostrou que todo número
racional pode ser expresso como uma fração contı́nua finita, além de dar a expressão de e
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em fração contı́nua:
1
e=2+
;
1
1+
1
2+
1
1+
1
1+
1
4+
1
1+
1+
1
.
8 + ..
essa representação nos dá uma importante informação sobre e: ele é irracional.
Euler também mostrou como encontrar a representação em frações contı́nuas de
um número dada sua representação usual, e vice-versa. Em 1763 Lambert ampliou o
trabalho de Euler sobre e mostrando que tanto ex quanto tg x são irracionais, se x for
racional. Lagrange usou frações contı́nuas para encontrar o valor de uma raiz irracional
de uma equação do segundo grau, e também provou que essa raiz pode ser expressa por
uma fração contı́nua periódica.
No século XIX esse tema já era conhecido por boa parte dos matemáticos, tendo
tido um crescimento expressivo em pesquisas. Grandes contribuições no tema nesse
século vieram de Karl Jacobi, Oskar Perron, Charles Hermite, Karl Friedrich Gauss, Augustin Cauchy e Thomas Stieltjes. No século XX a teoria teve grandes avanços, graças ao
trabalho inicial de Wallis.
2. Frações Contı́nuas
Proposicao 2.1. Seja x um número racional 0 < x < 1. Então, existe uma sequência
finita ai de números naturais tal que x = [a0 , a1 , . . . , an ].
Demonstração. Como x é racional e está entre 0 e 1, existem r0 e r1 naturais primos entre
r1
si tais que x = , com r1 < r0 . Pelo algoritmo da divisão de Euclides, podemos obter
r0
de forma única números a1 ≥ 1 e r2 ≥ 0, com 0 ≤ r2 < r1 tais que
1
r0
=
r0 = a1 r1 + r2 , a1 =
.
r1
x
Se r2 = 0 a expansão está terminada:
x=
r1
r1
r1
1
=
=
=
= [a1 ].
r0
a1 r1 + r2
a1 r 1
a1
Se r2 6= 0, podemos escrever
r1 = a2 r2 + r3 ,
r1
,
a2 =
r2
com 0 ≤ r3 < r2 < r1 . Assim,
r0 = a1 (a2 r2 + r3 ) + r2 .
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Se r3 = 0 terminamos o processo:
x=
a2 r2 + r3
a2 r 2
r1
=
=
=
r0
a1 (a2 r2 + r3 ) + r2
a1 (a2 r2 ) + r2
1
1
a2
a1 +
= [a1 , a2 ].
Caso contrário:
r1
a2 r2 + r3
1
1
r3
x=
.
=
=
=
= a1 , a 2 +
r2
1
r0
a1 (a2 r2 + r3 ) + r2
r2
a1 +
a1 +
r3
a2 r2 + r3
a2 +
r2
Continuamos o processo indutivamente, fazendo
rk = ak+1 rk+1 + rk+2 ,
ak+1 =
rk
rk+1
,
obtendo dessa forma uma sequência
rk+2 < rk+1 < rk < · · · < r2 < r1 < r0 ,
e expressões
1
x=
1
a1 +
..
a2 + . +
1
rk+1
ak +
rk
rk+1
= a1 , a 2 , · · · , a k +
.
rk
Esse processo é necessariamente finito, pois cada resto ri+1 é menor do que o
anterior, e tem como limitante inferior 0. Então, existe n ∈ N tal que:
0 = rn < rn−1 < · · · < ri+1 < ri < · · · < r2 < r1 < r0 .
4828
em fração contı́nua, usando o algoritmo desenvolvido
Exemplo 2.2. Expandiremos
346
na Proposição 2.1:
4828
330
1
1
1
1
= 13 +
= 13 +
= 13 +
= 13 +
= 13 +
346
16
1
1
346
346
1+
1+
1+
330
10
330
330
20 +
16
16
1
= 13 +
1+
1
1
20 +
16
10
1
= 13 +
1
1+
20 +
1
= 13 +
1+
1
1+
1
1
10
6
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1
20 +
1+
1
1+
4
6
12
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1
= 13 +
1+
1+
1
20 +
1
1+
Assim, a expansão de
1
1+
1
20 +
1
= 13 +
1
1
6
4
1
1+
1+
1
1+
1
2
4828
é dada por 13 + [1, 20, 1, 1, 1, 2].
346
Um fato importante a ser observado é que a expansão de um número racional em
4828
fração contı́nua não é única. De fato, no exemplo anterior podemos representar
346
tanto por 13 + [1, 20, 1, 1, 1, 2] quanto por 13 + [1, 20, 1, 1, 1, 1, 1]. Porém, o algoritmo
anterior nos fornece apenas uma dessas expansões, a mais curta. A menos da mudança
1
no último termo da expansão (representando an por (an − 1) + ), podemos dizer que a
1
expansão é única; porém, no caso irracional a unicidade ocorre sem qualquer restrição.
3. Transformação de Gauss
Definição 3.1. A Transformação de Gauss T é definida por T : [0, 1) → [0, 1)

 1 − 1 , se x 6= 0,
x
x
T (x) =

0, se x = 0
Note que tanto o domı́nio quanto a imagem da função estão em [0, 1). Assim,
podemos aplicar a função iteradamente a partir de um ponto sem sairmos desse intervalo.
Esse fato nos possibilita estudar a órbita de um ponto qualquer de [0, 1) em relação a essa
transformação, ou seja, a sequência dos pontos (x, T (x), T 2 (x), T 3 (x), . . . ). Este estudo
está na área da matemática conhecida como Sistemas Dinâmicos.
Definimos T 0 (x) = x e indutivamente T i+1 (x) = T (T i (x)). Por exemplo,
3
3
3
1
2
= −
= −1= ;
T
3
2
2
2
2
e
2
2
3
1
2
T
=T T
=T
= −
=2−2=0
3
2
2
1
1
2
A Transformação de Gauss possui uma ı́ntima relação com a expansão em frações
contı́nuas, como veremos a seguir.
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3.1. Caso Racional
Considere x = [a0 , a1 , . . . , ak ]. Então os coeficientes ri como definidos demonstração da
Proposição 2.1 satisfazem: rk+1 = 0 e ri 6= 0, para 0 < i < k. Mostraremos por indução
que
rn+1
1
n
.
e an =
T (x) =
rn
T n−1 (x)
Lembrando que definimos rk = ak+1 rk+1 + rk+2 ,
temos:
rk−1
r1
ak =
, e que x = ,
rk
r0
r0 = a1 r1 + r2
r2
r0
= a1 +
r1
r
1
r2
1
1
=
+
x
x
r1
r2
T (x) =
r1
1
1
=
=
. Logo a relação é válida para k = 1.
x
T 0 (x)
rk+1
1
k
e ak =
.
Suponha agora que T (x) =
rk
T k−1 (x)
1
rk
. Para a primeira,
=
A segunda relação é imediata: ak+1 =
rk+1
T k (x)
usando novamente o algoritmo da divisão:
r0
Além disso, a1 =
r1
rk = ak+1 rk+1 + rk+2
rk
rk+1 + rk+2
rk =
rk+1
rk
rk+2
rk
+
=
rk+1
rk+1
r
k+1
rk
rk+2
rk
=
−
rk+1
rk+1
r
k+1
rk+2
rk+1
= T
rk+1
rk
rk+2
= T (T k (x)) = T k+1 (x).
rk+1
terminando, assim, a demonstração
Portanto, para uma expansão de
das relações.
1
, k = 1, . . . , n.
x = [a1 , a2 , . . . , an ] vale a relação ak =
k−1
T (x)
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3.2. Caso Irracional
Para o caso irracional usaremos
para os racionais. Para x ∈
a mesma ideia
desenvolvida
1
1
[0, 1) definiremos a1 (x) =
, a2 (x) =
e, de uma forma geral,
x
T (x)
an (x) = a1 (T
n−1
(x)) =
1
T n−1 (x)
para n ≥ 1.
Note que podemos escrever x da seguinte forma:
x=
1
a1 (x) + T (x)
Usando a mesma representação T (x) para
x=
1
1
a1 (x) +
a1 (T (x)) + T (T (x))
=
1
1
a1 (x) +
a2 (x) + T 2 (x)
.
Então, indutivamente:
x=
1
1
.
a1 (x) + . . +
an−1 (x) +
,
1
an (x) + T n (x)
ou seja,
x = [a1 (x), a2 (x), . . . , an (x) + T n (x)].
Para x 6∈ [0, 1) fazemos a0 = ⌊x⌋ e
ai (x) = ai (x − ⌊x⌋),
i ≥ 1,
obtendo:
x = a0 (x) + [a1 (x), a2 (x), . . . , an (x) + T n (x − ⌊x⌋)].
Assim, para todo número irracional x temos uma sequência infinita de números
naturais ai associada.
√
Exemplo 3.2. Encontraremos a representação em fração contı́nua de 2:
√
√
Como 2 > 1, faremos a0 =⌊ 2⌋ = 1, e obteremos os demais quocientes
1
√
.
usando a relação: ai =
T i−1 ( 2 − 1)
%
$√
1
2+1
a1 = √
=
=2
1
2−1
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a2 =










1
√
=

T ( 2 − 1)





= 
√
 2+1
−
1
1
1
1
√
− √
2−
2−1
1

 $
%
√


2
−
1
1
$√
%
= 2.
=
1
2+1 
1
√
√
√
Note que T (√ 2 − 1) = √2 − 1. Dizemos
que
2 − 1√é um ponto fixo de T .
√
Consequentemente, 2 − 1 = T ( 2 − 1) = T 2 ( 2 − 1) = T 3 ( 2 − 1) = . . .
1
1
√
= √
= 2, i ≥ 1, ou seja,
Logo, ai =
T i−1 ( 2 − 1)
2−1
√
1
2=1+
.
1
2+
2+
1
.
2 + ..
4. O número de ouro
O número de ouro, também conhecido com proporção áurea, ou divina proporção, é um
número irracional, com valor 1,618 até três casas decimais. Esta proporção foi utilizada
na arquitetura grega, em particular pelo arquiteto Phidias, motivo pelo qual usualmente é
representado pela letra grega ϕ (phi). Também foi utilizado em pinturas renascentistas, e
frequentemente é associado a observações da natureza, como no crescimento de plantas,
espirais das galáxias, no corpo humano, no DNA, dentre outros.
Esse número é obtido dividindo-se um segmento de reta AB em duas partes por
um ponto C, de forma que a razão entre o todo e a parte maior é igual a razão entre a parte
maior e a menor, ou seja,
AB
AC
=
= ϕ.
AC
CB
Pela equação acima vemos que AC = CB · ϕ. Além disso, AB = AC + CB, de
forma que podemos reescrever a equação da seguinte forma:
CB · ϕ + CB
CB · ϕ
=
CB · ϕ
CB
ϕ+1
= ϕ
ϕ
ϕ + 1 = ϕ2
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√
1± 5
. Usualmente
Resolvendo essa equação do segundo grau, chegamos a ϕ =
2
√
1+ 5
é tomado apenas o valor ϕ =
≈ 1, 618.
2
Note que, dividindo a última equação por ϕ, temos
ϕ=1+
1
.
ϕ
Repetindo infinitas vezes esse processo, obtemos a expansão em frações contı́nuas
de ϕ:
1
ϕ=1+
= 1 + [1, 1, 1, 1, . . . ].
1
1+
1
1+
1+
1
.
1 + ..
5. Conclusão
As frações contı́nuas podem ser uma ferramenta valiosa de pesquisa, podendo ser usada para diversos fins, como a determinar se um número é racional ou não, resolução de
problemas práticos como o de Huygens para a construção de seu planetário, resolução
de equações diofantinas lineares, dentre outras. As noções básicas, como apresentadas
em [MOORE, 1964] são acessı́veis a qualquer aluno do ensino médio, podendo ser usadas inclusive como instrumento de ensino e para despertar o interesse dos alunos pela
matemática, devido a beleza e elegância dessa forma de representação de números reais,
que tem fascinado os matemáticos há vários séculos.
Referências
DÍAZ, L. J.; JORGE, D. R. Uma introdução aos sistemas dinâmicos via frações
contı́nuas. Rio de Janeiro: IMPA, 2007. (Publicações Matemáticas, 26o Colóquio
Brasileiro de Matemática). 211p.
JORGE, D. R. Frações contı́nuas: propriedades ergódicas e de aproximação. 2006.
125 f. Dissertação (Mestrado em Matemática) - Programa de Pós-graduação em
Matemática, Pontifı́cia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2006.
LIMA, E. L. Curso de análise. 11. ed. Rio de Janeiro: IMPA, 2008. (Projeto Euclides)
v. 1. 431 p.
MOORE, C. G. An introduction to continued fractions. Washington, D.C.: NCTM,
1964. 95 p.
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