Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais - Almanaque On-line no 9 A escuta analítica numa instituição prisional Autora: Mynéia Campos Oliveira Santos Psicóloga, servidora pública efetiva, atuou na Secretaria de Estado de Defesa Social, atualmente trabalha na Fhemig, no Instituto Raul Soares. E-mail: [email protected]. Resumo: Trata-se de uma investigação sobre os possíveis efeitos da escuta analítica numa unidade de triagem do sistema prisional da região de Belo Horizonte, considerando a problemática envolvida no que se refere à instalação da transferência neste contexto. A partir da análise das particularidades da instituição no que tange às formas de intervenção e tratamento do preso, baseadas em estratégias de vigilância e padronização do comportamento, elaboramos algumas questões sobre a possibilidade de inclusão de um novo discurso que permita o acolhimento do particular. A escuta analítica surge como uma aposta de trabalho, abrindo espaço para a introdução da contingência e um efeito surpresa no discurso do sujeito. Palavras-chave: escuta analítica, transferência, unidade prisional. The analytical listening in a prisional institution Abstract: This is an investigation into the possible effects of an analytical hearing of the sorting unit of the prison system in the region of Belo Horizonte, considering the issues involving the transfer process, in that context. From the analysis of the particularities of the institution, in terms of forms of intervention and treatment of the prisoners based on strategies of surveillance and standardization of behavior, we prepared some questions about the possibility of the inclusion of a new discourse that allows the particular host. The analytical hearing comes as a work bet, making room for the contingency introduction and a surprise effect in the discourse of the subject. Keywords: analytical listening, transfer, prison unit. Página 1 de 7 Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais - Almanaque On-line no 9 A escuta analítica numa instituição prisional Mynéia Campos Oliveira Santos Este trabalho tem por objetivo pesquisar o papel da escuta psicanalítica e seus efeitos numa unidade de triagem do sistema prisional da região de Belo Horizonte. Trata-se de uma investigação sobre as possibilidades de instalação da transferência, com suas implicações e nuances, no contexto dessa instituição. Para tal, faremos uma breve descrição de seu funcionamento e de suas particularidades em relação às demais unidades do sistema. O Ceresp – São Cristóvão surgiu no contexto de delineamento de uma nova política estadual de Segurança Pública a partir da criação da Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS), no ano de 2003.1 O modelo de gestão implantado estabeleceu como diretriz o combate à criminalidade e a reforma e profissionalização do sistema prisional, visando à reintegração social do preso, à qualificação das vagas do sistema, à racionalização da gestão das unidades prisionais e, por fim, à transferência gradativa dos presos da polícia civil para a Subsecretaria de Administração Prisional (SUAPI). A partir dessa nova configuração e rearranjo de papéis, o Ceresp – São Cristóvão foi criado como estratégia fundamental na articulação de vagas, como um ponto de interseção entre a prisão realizada pelas polícias militar e civil e o posterior remanejamento dos presos para as demais unidades prisionais, de acordo com a situação jurídica de cada detento. Trata-se, portanto, de um centro de triagem, responsável pela admissão do preso no sistema, sua identificação e matrícula, constituindo-se como um aparato burocrático e operacional necessário ao funcionamento da engrenagem do sistema prisional. Como porta de entrada, caracteriza-se pelo fluxo intenso de entrada e saída diária de presos (homens adultos) flagrados ou detidos na capital por mandado de prisão.2 Apesar da alta rotatividade e curta permanência do preso na instituição, o Ceresp deve disponibilizar os primeiros cuidados referentes à atenção ao preso, e, para isso, conta com uma equipe mínima de técnicos, dentre eles, o psicólogo. Entretanto, apesar do aparato formado, são inúmeras as dificuldades enfrentadas pela equipe (psicossocial e de saúde), como a ausência de um local adequado para a realização dos atendimentos com a privacidade Página 2 de 7 Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais - Almanaque On-line no 9 e o sigilo necessários, a falta de uma política efetiva que oriente a atuação dos profissionais e, principalmente, os atravessamentos da Segurança. O discurso da Segurança tem como imperativo a manutenção de todo um conjunto de procedimentos para garantir a ordem e a disciplina. Os atendimentos da equipe técnica, bem como os encaminhamentos externos para tratamento, são submetidos ao seu aval, o que dificulta a regularidade dos atendimentos e a efetivação do trabalho, pois, no caso de qualquer desfalque no contingente de escolta da unidade, a atuação da equipe é restringida. Constata-se que não existe, na cultura da instituição, um trabalho realizado “entre muitos”3, que possa abrir espaço ao trabalho dos técnicos, permitindo, assim, a introdução de outros discursos. Além disso, detém-se uma forma de saber sobre o preso, difundida em toda a unidade, que torna difícil sua desconstrução, mostrando-se resistente a mudanças e refletindose num “não querer saber” próprio da instituição a outras formas de intervenção que possam vacilar suas certezas. Desse modo, certas nomeações encerram em si significações precisas sobre o comportamento do preso e ditam fórmulas sobre como lidar com ele. Como exemplo, tem-se o preso “lero-lero”, aquele cujo discurso é vazio e sem valor, constituindo-se como mera enrolação ou fingimento com o intuito de obter alguma vantagem. Um outro personagem muito conhecido é o preso “vinte e dois”, ou o louco, muitas vezes confundido com o “lero-lero”, e aquele cujas manifestações são vistas com descrédito e até mesmo com divertimento, quando não atrapalham a disciplina na carceragem. Considerando o exposto até aqui, levantamos algumas questões. É possível, em instituições de discurso tão consistente como essa, introduzir uma nova forma de saber que possa fazer vacilar essa certeza sobre o sujeito, e, a partir daí, desconectá-lo desses significantes que o definem, abrindo espaço para a instauração de uma transferência? Como introduzir um furo nesse saber que é construído para garantir que tudo funcione? Pois bem, contrapondo-se os obstáculos institucionais às exigências do Estado em desenvolver ações pautadas em conceitos como ressocialização e reintegração social, chegamos a um ponto delicado. De acordo com a legislação,4 “o tratamento reeducativo consiste na adoção de um conjunto de medidas médico-psicológicas e sociais, com vistas à reeducação do sentenciado e à sua reintegração na sociedade” (Lei nº 11.404 de 25 de janeiro de 1994, art.8º). O tratamento do detento, que se propõe individualizado, baseia-se na observação do preso em todas as situações da execução da pena, mas, principalmente, é Página 3 de 7 Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais - Almanaque On-line no 9 determinado pela construção de um saber sobre ele, baseado em avaliações médicas, psicossociais, exames criminológicos, entre outros. Todo o aparato referente à execução da pena acaba por evidenciar uma vigilância e observação constantes (com respaldo técnico-científico), ligadas a medidas de controle, cujo produto final seria um indivíduo normatizado e adaptado aos padrões estabelecidos para retornar ao convívio na sociedade. Miller (2008), no texto “A máquina panóptica de Jeremy Bentham”, destaca o panopticismo como um princípio geral que preconiza a vigilância e o controle sobre tudo aquilo que é contingencial. Nessa lógica utilitarista, não há espaço para o acaso, tudo é quantificável e ajustável a uma finalidade. Essa concepção cai bem ao discurso da Segurança, na medida em que este busca silenciar o sujeito e abafar qualquer manifestação que possa obstruir a lógica de funcionamento da instituição, tornando-se, assim, um discurso, por vezes, autoritário. Entretanto, constatamos que o sujeito escapa ao enquadre institucional: ele resiste, recusa-se a comer, faz exigências, entra em crise, surta, subverte a disciplina. É preciso escutar isso, saber do que se trata esse real em jogo que, muitas vezes, pode levar ao pior, como as passagens ao ato. Pois bem, apesar do discurso consistente da instituição, baseado nas estratégias de vigilância e controle do comportamento do preso, existe um lugar de acolhimento do particular. O psicólogo, orientado pela escuta analítica, aparece como aquele que quer saber sobre a história do sujeito e, ao assumir esse lugar de “não saber”, introduz a contingência por meio da “escuta interessada”,5 aquela que faz laço, abrindo espaço para o efeito surpresa no discurso e para a possibilidade de que esse encontro exerça um efeito sobre o sujeito. Guy Briole (2002), psicanalista francês, afirma que o analista leva com ele a questão do desejo de saber e de aprender com o paciente. Seu desejo é o que faz obstáculo à aplicação de saberes estabelecidos e aquilo que nos coloca a trabalho, fazendo com que nos tornemos sujeitos supostos interessados. Ainda segundo o autor, a instituição pode ser um espaço de acolhimento daquilo que, no discurso, não faz mais laço social. Dar lugar a um questionamento sobre o real em jogo na instituição é se centrar sobre o paciente e sobre seu lugar na mesma, considerando o gozo e suas modalidades de expressão. Éric Laurent (2008) chama a atenção justamente para a impossibilidade de tratar o sujeito por meio da padronização das condutas e categorização das técnicas de intervenção, Página 4 de 7 Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais - Almanaque On-line no 9 pois, para a Psicanálise, o que há de verdadeiramente humano é, decerto, o sintoma, ou seja, aquilo que é singular de cada um e que permite aos homens fazer laço social. Uma proposta de “humanização” do tratamento pautada na política do “todos iguais” desconsidera esse pressuposto ético, pondo em xeque seu ideal de integração ou reintegração. Miller destaca justamente que a prática lacaniana não inclui a noção de sucesso, baseada num princípio do “isso funciona”. Trata-se de uma prática a ser inventada e que opera na dimensão de um real que falha, pois a “falha não é contingente, é a manifestação da relação com um impossível” (MILLER, 2005, p.12). O discurso analítico, portanto, privilegia o sujeito, marcado por sua falta. Opera num lugar diferente do discurso do Mestre, que solidifica o Sujeito Suposto Saber numa figura encarnada, sem furo, e que detém o saber sobre o indivíduo (BENETI, 2008). O Ceresp – São Cristóvão é um lugar de urgências, e a atuação do psicólogo não se desvencilha desse imperativo. Porém, não se trata de aceitar o discurso instituído nem tampouco confrontá-lo de forma a inviabilizar o trabalho, mas sim promover uma torção nesse discurso para daí instituir o novo. Resta inventarmos, no cotidiano da instituição, essa torção. E, para tal, é preciso fazer aparecer o sintoma do sujeito em relação à instituição, para não operarmos do lado do regulador. Destituir algo desse discurso burocrático e, de alguma forma, desfazer o movimento de massa na equipe de segurança, que desqualifica o sujeito, mostra-se um desafio. Como introduzir, na relação com os agentes penitenciários, um desejo de querer saber sobre o sujeito que ali se apresenta? A questão não se refere apenas à possibilidade de instalação da transferência no caso a caso dos atendimentos, mas se trata da necessidade de instalação de uma transferência de trabalho com o grupo, o que permitiria a passagem do discurso da Impotência para o discurso do Impossível. A transferência de trabalho se inscreve no laço de um sujeito com o outro, do um ao um, no qual estes se põem a trabalho, movidos pelo desejo de saber (MILLER, 2000). Quando se supõe o saber ao outro, e este saber não dá espaço para o contingente, não há lugar para o trabalho. Do que se trata, portanto, quando o detento, determinado pela lógica institucional que o submete como objeto, tem um encontro com o psicólogo na unidade prisional? Nossa aposta é que esse encontro, mesmo quando limitado a um único atendimento, mesmo distante do enquadre analítico habitual e na ausência de demanda espontânea, pode gerar um efeito surpresa no discurso do sujeito, pois se trata de colocá-lo em jogo através do ato analítico. Se, Página 5 de 7 Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais - Almanaque On-line no 9 a partir da escuta oferecida ao sujeito, abrir-se a possibilidade de que este se questione sobre o motivo que o traz ali, introduzindo uma pergunta sobre aquilo que o causa, obteve-se uma conquista. O essencial — ou seja, o modo de encontro — é inventar sempre, no instante em que acontece o encontro. A posição psicanalítica não é a de compreender, mas deixar um lugar para a surpresa, para o encontro, para a contingência. Trata-se de nós mesmos aprendermos a ser leves, a fim de descongelar o outro, para que se abra novamente um espaço de potencialidade [...] (ANSERMET; BORIE, 2007, p.154). REFERÊNCIAS: ANSERMET, François; BORIE, Jacques. Apostar na contingência. In: PERTINÊNCIAS da Psicanálise Aplicada: trabalhos da Escola da Causa Freudiana reunidos pela Associação do Campo Freudiano. Trad. Vera Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p.152-158. BENETI, Antonio. Crença e sintoma. Curinga, Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise, Seção Minas, n.27, p.39-44, nov. 2008. BRIOLE, Guy. Dês pychanalystes en institution. La Lettre Mensuelle, Paris, École de la Cause Freudienne, n.211, p.19-24, sept. 2002. LAURENT, Éric. El delírio de normalidad. Conferência pronunciada em 20/11/2008 no Rio de Janeiro, no marco da semana preparatória do XVII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano (Psicanálise e Felicidade), manhã dedicada às relações entre a psicanálise e o campo da “saúde mental”. Trad. Carolina Alcuaz. Revisão Clarisa Kicillog. Disponível em: <http://virtualia.eol.org.ar/019/template.asp?dossier/laurent.html. Acesso em: 12 jun.2011. Lei Delegada nº 56 de 29/01/2003 (Dispõe sobre a SEDS), revogada pelo art. 14 da Lei Delegada 117/07, de 25/01/2007 (Dispõe sobre a estrutura orgânica básica da SEDS). Disponível em: Página 6 de 7 Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais - Almanaque On-line no 9 <http://www.almg.gov.br/index.asp?grupo=legislacao&diretorio=njmg&arquivo=legislacao_ mineira>. Acesso em: 12 jun.2011. Lei nº 11.404 de 25 de janeiro de 1994 (Institui a Execução Penal no âmbito do Estado). Disponível em: <http://www.conselhos.mg.gov.br/ccpc/page/legislacao/lep-estadual> Acesso em: 12 jun. 2011. MILLER, Jacques-Alain. Transferencia de trabajo. In: El Banquete de los analistas. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2000. p.179-195. ______. Uma fantasia. Opção Lacaniana, São Paulo, Eólia, n.42, p.7-18, 2005. ______. A máquina panóptica de Jeremy Bentham. In: TADEU, Tomaz. (Org.) O panóptico: Jeremy Bentham. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p.89-124. 1 Lei Delegada nº 56 de 29/01/2003 (Dispõe sobre a SEDS), revogada pelo art. 14 da Lei Delegada 117/07 de 25/01/2007 (Dispõe sobre a estrutura orgânica básica da SEDS). 2 O Ceresp - São Cristóvão chega a receber até 30 presos por noite e o número de presos transferidos para as demais unidades ultrapassa 120 por semana. 3 A prática feita por muitos se fundamenta sobre o desejo de saber sobre o sujeito e é o que orienta o trabalho da equipe. Foi desenvolvida por Antonio Di Ciaccia no contexto do tratamento de crianças psicóticas, e a expressão foi denominada como tal por Jacques-Alain Miller. Para maiores informações sobre o tema, cf. CIACCIA, Antonio. Da fundação por Um à prática feita por muitos. Curinga, Escola Brasileira de Psicanálise, Belo Horizonte, n.13, p.60-65, set. 1999. 4 Lei nº 11.404 de 25 de janeiro de 1994 (Lei de Execução Penal Estadual). 5 Termo utilizado por Elisa Alvarenga durante encontro do Núcleo de Psicanálise e Direito, no dia 21 de março de 2011, ao tratar sobre a ação lacaniana nas instituições. Página 7 de 7