EDITORIAL
E
stamos nos aproximando das comemorações natalinas e finalizando
mais um ano de produtivas transferências de trabalho. Certamente,
muitas seriam as possibilidades de escrita para compor o último
número do ano do Correio. Entretanto, pensamos em resgatar um debate
que sempre esteve em pauta ao longo da história da APPOA, seja pelo seu
compromisso com as interrogações advindas das complexas articulações
do sujeito com a polis, seja pela sensibilidade e persistência de seus membros em abordarem temas, que não se deixam capturar por explicações
causalísticas, pois interrogam as insuficiências de nossos saberes e os limites de nossas categorias de análise, a saber, as nossas Violências Cotidianas.
Quando abordamos o estranhamente-familiar universo da violência,
sentimos uma necessidade imperiosa de recorremos aos plurais. Talvez isto
se dê porque estamos diante de um excesso com infinitos repertórios e
formas de materialização, o qual, por vezes nos cala, por outras nos fala,
ainda que, sempre exala um resto impossível de nomear. Seu território obscuro de múltiplas tensões, de um lado insiste em apontar os limites de nossa compreensão; de outro, do ponto de vista psicanalítico, convoca-nos a
interrogar a nossa cômoda posição de vítima de supor a violência sempre no
campo do outro. Além disso, conforme destaca a passagem presente no
editorial da revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – “Psicanálise em tempos de violência”, em se tratando da violência, podemos ser
facilmente fisgados pelo gozo do espectador:
“Seria muito agradável acreditar que a violência nos encontra em posição passiva, vitimizada. Porém se pensarmos que ela subjaz ao pai, à lei,
enfim a tudo aquilo que embasa e viabiliza uma sociedade, podemos por fim
compreender porque a contemplamos com fascínio compulsivo e a rondamos com verdadeira evitação fóbica.” (ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE
PORTO ALEGRE, 1995, p. 04)
Neste sentido, quer seja na dimensão do fascínio, quer seja na tentativa de repudiar veementemente qualquer ato violento, as diferentes maneiras de materialização da violência nos defrontam com algo estranhamente
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006.
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EDITORIAL
NOTÍCIAS
familiar, ou seja, com resíduos do recalcado ameaçador, incestuoso e parricida.
Hana Arendt em seu livro “Eichmann em Jerusalém”, ao desenvolver o
célebre conceito de banalidade do mal, mostra-nos com muita clareza que a
crueldade se dá mediante a absoluta incapacidade de se identificar diante da
dor e do sofrimento dos outros. Ao perceber que Eichmann era um “idealista”
disposto a sacrificar a tudo e a todos, estando apenas determinado a fazer
sua linha de montagem operar de forma rápida e eficiente, assim como,
genuinamente incapaz de pronunciar uma única frase que não fosse um
clichê, ou seja, um simples burocrata seguidor de ordens, convoca-nos de
maneira enfática a pensar nas relações entre as micro-burocratizações da
vida cotidiana e suas relações com a violência.
Desta maneira, o presente número do Correio busca manter a discussão aberta e levantar novas questões que possam lançar luz a esse tema tão
desafiador, justamente por nos convocar desde a banalidade do nosso cotidiano até as expressões massivas da violência1.
FESTA DE FIM DE ANO DA APPOA
Caro Colega,
Estaremos realizando no sábado, dia 02 de dezembro a tradicional
festa de fim de ano da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre).
Venha comemorar conosco, contamos com a sua presença!
Data: 02 de dezembro, sábado
Horário: 21h
Local: Sede da APPOA
Para maiores informações entrar em contato com a Secretaria.
TRADUÇÃO DOS SEMINÁRIOS DE LACAN
A seguir publicamos material enviado por Claudia Berliner sobre a
tradução dos seminários de Lacan. Os leitores do Correio da APPOA têm
acompanhado a tradução do “Seminário XI – Os conceitos fundamentais da
psicanálise”, feita por Claudia, e que está sendo aqui publicada, lição a lição.
No material a seguir, acompanhamos a pesquisa e debate em torno da tradução da expressão “maque-à-être”. Na seqüência, os sites da Internet que
oferecem material sobre os seminários e as traduções, bem como uma lista
de publicações brasileiras dos seminários.
Maria Cristina Poli
ALGUMAS REFLEXÕES SUSCITADAS POR MEU CONVITE PARA
TRADUZIR MANQUE-À-ÊTRE
(PUBLICADO NO CORREIO DE OUTUBRO)
POR CLAUDIA BERLINER
1
Editorial escrito por Norton Cezar da Rosa Jr. e Márcio Mariath Belloc.
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006.
Minhas sugestões
querer-ser
falta-de-ser (confunde com Sartre, mas é a melhor tradução)
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NOTÍCIAS
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falta-do-ser
falto-de-ser
manco-de-ser
falta-ser
faltasser
manquesser
manquejar-do-ser
caresser
ser-falto
Ricardo Goldenberg sugere falta-para-ser e enviou seus comentários
por e-mail:
Celebro a iniciativa. Há anos que prego no deserto por uma empreitada desta feita. Sobretudo, acho fundamental partir do uso corrente da língua
do autor a ser traduzido. Neste sentido, parabéns para o francês. Quanto ao
inglês... Embora seja inegável a intenção de servir-se do verbo “querer”,
você deixou passar o fato de que Lacan queria deixar ouvir o substantivo
“carência” e “falta” que está bem corriqueiramente na palavra want, como
em: the ship is rotting for want of paint. Safouan, que estava presente nas
conferências de Baltimore, me disse que Lacan tentava fazer os americanos escutar que the subject fades away for want of being. Logo, “querer ser”
erra o alvo.
Por outra parte, seria bom evitarmos fazer naufragar o conceito por
trás da mera tradução. Isso quer dizer que é necessário sine qua non atentar
para o que Lacan diz sobre o ser e que o leva a forjar, a partir das expressões
que você oportunamente comenta, o sintagma em questão. Isto posto, “faltapara-ser” dá conta da causalidade retroativa pelo significante (o futuro do
pretérito, o imperfeito, etc.), ou seja, “quase era, mas ainda falta para ser” e
também do “ser que está em falta”, como uma mercadoria na quitanda, que
você muito bem observa na expressão para “lucro cessante”: manque à gagner.
Portanto, para que complicar quando é possível simplificar?
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006.
Comentários e sugestões de Maria Lopes, amiga tradutora, acrescidos de considerações sobre a tradução de parlêtre, para o qual sugere parlente.
Experimentando:
O sujeito como manco-de-ser é sujeito a desejar.
O sujeito como falto-de-ser é sujeito a desejar.
O sujeito como faltasser é sujeito a desejar.
O sujeito como caresser é sujeito a desejar.
O sujeito em falta do ser é sujeito a desejar.
Gosto de todas essas opções acima. Caso tivesse que optar, iria em
“falto-de-ser”, ou “faltasser”.
Por falar nisso, também não gosto de “falasser” para parlêtre.
Estive dando umas olhadinhas:
1) em inglês eles usam talking being, “ser falante”;
2) em alemão, das Sprechwesen (“o ente falante”, ou “o ser que fala”);
3) em italiano quase nunca traduzem, mas quando o fazem usam
essere parlante ou parlessere – que, aliás, fica uma perfeição (embora perca
ainda o sentido do signo, da letra, que só mesmo o francês tem).
4) Em espanhol rebuscaram tanto que ficou ser palavreante que, convenhamos, é verdadeiramente um horror!
Agora, sabia que existe o verbo “parolar” em português?
PAROLAR Datação 1634 cf. BPPro
Acepções
– verbo
transitivo indireto e intransitivo
1 falar demasiadamente; tagarelar
Ex.: <parola com qualquer um> <parolou tanto que ficou rouco>
transitivo indireto
2 trocar palavras, idéias; conversar
Ex.: gosta de p. com os vizinhos
Etimologia
parola + -ar; ver palavr-
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NOTÍCIAS
NOTÍCIAS
Sinônimos
ver sinonímia de conversar
“Parolar” vem de parola, ao passo que “falar” vem de “fabular”, “contar
fábulas”. Ambos têm o sentido de “conversar” o segundo vem do latim, o
primeiro vem do grego. Veja só essas referências, todas do Houaiss:
FALAR - Etimologia
lat. fábùlo, ás, ávi, átum, áre ‘falar, entreter-se conversando, conversar’, por ‘fabulari’; segundo Cornu, Huber e SSNeto com prov. infl. de calar,
com o qual figura em muitos provérbios; divg.: fabular; ver falar
Etimologia
regr. de palrar; ver palavr-; f.hist. sXV palrra
Sinônimos
ver sinonímia de conversa e loquacidade
Bom, então, se temos “palrar”, ”parlar” e também “parolar”, podemos
criar um termo muito melhor que ‘“falasser” (que até parece ”falo-a-ser”), como
por exemplo “parolente” , ou simplesmente “parlente”, para traduzir o parlêtre
(lembrando que existe a palavra “parlante”, e que ela significa exatamente o
mesmo que “falante”).
Não fica bonito, “parlente”?
PARLAR Datação sXIII cf. CBN
Acepções
– verbo
transitivo indireto e intransitivo
m.q. parolar
Etimologia
parolar, com síncope; ver palavr-; f.hist. sXIII parllar, sXV parlar
ANEXO 1: FONTES DE CONSULTA (ON-LINE) SOBRE OS SEMINÁRIOS DE LACAN E A TRADUÇÃO
De “PALAVRA” originaram-se: palra, palrador, palrar, pálrea, palraria,
palratório..... isso pra citar apenas alguns. Vejam a etimologia de
PALRA Datação sXV cf. FLCron
Acepções
- substantivo feminino
Uso: informal.
palavra ou troca de palavras; conversação; palraria, palratório, pálrea
http://www.erudit.org/revue/meta/ revista online de e sobre tradução
http://www.erudit.org/revue/meta/1982/v27/n1/index.html número especificamente sobre trad de psicanálise, coincide com lançamento tradução
Laplanche
http://www.erudit.org/revue/meta/1982/v27/n2/index.html com texto de Betty
Milan sobre a trad do seminário 1
http://213.251.159.110/ListRecord.htm?list=table&table=5 thesaurus da Ecole
de la cause freudienne por tema
http://perso.orange.fr/espace.freud/topos/psycha/psysem/semin.htm Espaces Lacan biblioteca de textos online, Freud, Lacan e outros textos de
referencia, links diversos
http://www.lutecium.fr/Psychoanalysis.html transcrições de seminários de
Lacan, links
http://pros.orange.fr/espace.freud/ Espaces Lacan psicanálise e política, biblioteca, links para textos e seminários de Lacan
http://www.psy-desir.com/biblio/spip.php?article1217 O mito individual do
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006.
E veja só PALAVRA (vem de parábola, emprestado do grego parabolê):
Etimologia
lat. parabòla,ae (pelo vulg.), tomado de emprt. ao gr. parabolê pela
língua da retórica no sentido de ‘comparação’; (...)
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NOTÍCIAS
NOTÍCIAS
neurótico em várias versões – francês
http://www.etudes-lacaniennes.net/Etudes/Psychanalyse/
Lexique_de_lacan.htm lexique de Lacan, principais termos definidos por meio
de trechos extraídos da obra
http://www.ecole-lacanienne.net/bibliotheque.php?id=19 contém relação das
versões existentes de cada seminário.
http://jacsib.lutecium.org/thesaur4/node304.html relação dos principais conceitos lacanianos. Clicando-se em cada um deles, tem-se acesso às passagens da obra em que aparecem (em francês)
http://www.nosubject.com/Main_Page propõe-se a ser uma enciclopédia de
psicanálise lacaniana em inglês. Também aborda a obra de Zizek.
http://www.psicomundo.org/lacan/textes.htm links vários Psicomundo
http://www.freud-lacan.com/ Navegar no site da Association Lacanienne
Internationale: existem vários trabalhos sobre trad em fr, pt e esp.
http://pages.globetrotter.net/desgros/carte.html La Psychanalyse site francês com textos de Freud, de psicanálise e psicanalistas de múltiplas escolas
http://soc.enotes.com/psychoanalysis-resources/translation-concepts-notions
glossário de psicanálise em 5 línguas
http://soc.enotes.com/psychoanalysis-encyclopedia/ dictionary of
psychoanalysis
http://www.oedipe.org/fr/archives Oedipe - site de psicanálise
http://www.carnetpsy.com/ Le carnet Psy – site da revista
http://epf-eu.org/glossary/ glossário da IPA para várias línguas
http://www.elortiba.org/ El ortiba – imenso site argentino de política, cultura
(letras de tango para quem gosta), psicanálise, dicionário de lunfardo, tem
até um dicionário de psicanálise em lunfardo muito engraçado, na janela
http://www.elortiba.org/faunapsi.html textos de Freud, Lacan e outros, dicionários, link para comprar o CD-rom ou DVD com as obras completas de
Freud (Ballesteros e Amorrortu) e Lacan em espanhol (tudo em um único
CD, com busca cruzada), vídeos e muito mais
http://aejcpp.free.fr/biblio.htm biblioteca da Associação dos jovens pesqui-
sadores em psicopatologia e psicanálise com arquivo para baixar de l’index
thématique des oeuvres de Freud, Abraham et Ferenczi, organisées par mots
clefs:
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006.
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DICIONARIOS;
http://www.sensagent.com/dictionnaires/fr-fr/
http://francois.gannaz.free.fr/Littre/accueil.php
http://atilf.atilf.fr/tlf.htm
http://elsap1.unicaen.fr/dicosyn.html
http://www.wordreference.com/index.htm
http://www.lib.uchicago.edu/efts/ARTFL/projects/dicos/
ANEXO 2: Os seminários que estão e que não estão traduzidos, e por quem
(cf. informações fornecidas pelas respectivas instituições):
Sem. 1 os escritos técnicos - Jorge Zahar
Sem. 2 o eu na teoria técnica de Freud e na técnica da psicanálise - Jorge
Zahar
Sem. 3 as psicoses - Jorge Zahar
Sem. 4 a relação de objeto - Jorge Zahar // APPOA
Sem. 5 as formações do inconsciente - Jorge Zahar
Sem. 6 o desejo e sua interpretação - CEF de Recife, publicado pela APPOA/
/ Hamlet por Lacan Liubliu/Escuta
Sem. 7 a ética da psicanálise - Jorge Zahar
Sem. 8 a transferência - Jorge Zahar
Sem. 9 a identificação - CEF de Recife
Sem. 10 a angústia - Jorge Zahar // CEF de Recife
Sem. 11 os 4 conceitos fundamentais da psicanálise - Jorge Zahar// trad.
Claudia Berliner, publicado mensalmente pelo Correio da APPOA (em andamento)
Sem. 12 problemas cruciais para a psicanálise - CEF de Recife (finalizando)
Sem. 13 objeto da psicanálise
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NOTÍCIAS
SEÇÃO TEMÁTICA
Sem. 14 a lógica da fantasia
Sem. 15 o ato psicanalítico - Unisinos (Mario Fleig e colegas) (em
andamento)
Sem. 16 de um outro ao Outro - CEF de Recife
Sem. 17 o avesso da psicanálise - Jorge Zahar
Sem. 18 de um discurso que não seria do semblante - CEF de Recife
Sem. 19 ... ou pior. - Espaço moebius (Bahia)
Sem. 19 o saber do psicanalista (1971-1972) - CEF de Recife
Sem. 20 mais, ainda - Jorge Zahar// Letra freudiana do Rio de Janeiro
(em andamento)
Sem. 21 les nos-dupes errent
Sem. 22 RSI
Sem. 23 o sintoma - Letra freudiana do Rio de Janeiro
Sem. 24 l‘insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre
Sem. 25 o momento de concluir
Sem.26 a topologia do tempo
Sem. 27 dissolução
TORTURA: ASPECTOS PSICOLÓGICOS1
Paulo Endo2
É
no apagar dos holofotes que a tortura sofrida mostra sua insídia.
Quando a imprensa se desinteressou, porque o assunto saiu de moda,
quando a sociedade civil já não debate, nem suporta mais ouvir sobre
seu passado recente, é quando a tortura se reinstala no corpo do torturado,
como um grito silencioso que não pode mais ser escutado. Assim a experiência traumática adquire uma outra virulência: a do desconhecimento e da
invisibilidade. Ela passa a operar como um defeito, uma deficiência, uma
idiossincrasia negativa impossível de esquecer, mas que se procura, paradoxalmente e com esforço, apagar, ocultar, colocar longe dos próprios olhos e
dos olhos alheios e assim misturá-la entre as experiências desagradáveis do
cotidiano.
A tortura, os massacres e as formas contemporâneas do extermínio
não são ainda, de modo algum, intoleráveis para grande parte da população.
Ao contrário, elas parecem ganhar uma consistência nova, cuja somatória
pesa demasiado nos ombros de quem quer que se aventure a voltar a elas e
combatê-las.
Ao que parece, não é desejável falar mais do que uma e única vez
sobre o assunto. Não é desejável voltar a reproduzir o que não deveria mais
ser dito. A tortura, o massacre, a chacina, em instantes, viram tabus. Não se
pode falar neles, mas eles permanecem ali, fixos, indenes – pelas vítimas
que mortificaram – e soberanos.
1
Esse trabalho foi originalmente apresentado no seminário Todos contra a Tortura, realizado
na Secretaria da Justiça do Estado de São Paulo em dezembro de 2004.
2
Psicanalista, Professor Doutor do Instituto de Psicologia da USP, pós-doutorado CEBRAP/
CAPES, autor do livro A Violência no Coração da Cidade: Um estudo psicanalítico-prêmio
Jabuti 2006, Pesquisador Colaborador do LIPIS (Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e
Intervenção Social)
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006.
C. da APPOA, Porto Alegre, n.153, dezembro 2006.
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SEÇÃO TEMÁTICA
Freud nos alertou para o caráter ambivalente dos tabus.3 Eles prometem certa ordem e pacificação em troca do silêncio e da submissão. Recaise na ilusão supersticiosa que faz das violências um fato em si, imutável e
aceito.
Assim, as violências reinam no território dos silêncios. A linguagem –
única forma de atormentá-las – fica inibida diante da sua força e contundência.
Quando isso acontece, fracassamos todos.
Aos que não desistem, aos que insistem em voltar ao assunto, voltar
ao sintoma revelando seu dolo repetitivo, permanece o compromisso e a
relutância em retornar a essas experiências sob diversas formas e diferentes
linguagens. Àquelas que nos permitirão olhar novamente para o intolerável e
ressignificá-lo. Evidenciando outros aspectos não vistos, outras repercussões escamoteadas e, também, outras saídas possíveis.
À Psicanálise cabe uma responsabilidade especial nessa tarefa. O
que ouvimos e vemos na clínica cotidiana não é propriamente o evento violento, mas suas repercussões, seqüelas e restos. A escuta analítica escuta o
que ainda é inaudível, aquilo que, muitas vezes, o analisando ainda não pode
dizer a si, não pode escutar de si. Uma proibição que envergonha e maltrata
o ego e que permanece ferindo e fazendo estragos.
Mais ainda, trata-se também de acompanhar a luta dos sujeitos, o
esforço de singularização que insiste naqueles que combatem a própria dor;
aquela que perdura para além da sua consciência, para além de sua vontade, freqüentemente no escuro e no silêncio. Luta singular e solitária que, se
não pode ser delegada a nenhum outro, também não deve ser relegada ao
íntimo, ao privado, como lugar secreto onde escondemos nossas vergonhas.
Encontrar essa dupla via, singular e coletiva, tem se evidenciado como forma
necessária para o ultrapassamento das violências em todos os níveis.
Retomo aquilo que aprendemos com Blanchot 4 e que está presente
no trabalho psicanalítico com todas as formas do traumático: para aquele
ENDO, P. Tortura: aspectos...
que foi atravessado, de algum modo, pela violência, a linguagem se impõe
como tarefa.
Por isso faz-se necessário, produzindo confrontos linguageiros,
reinventar outras formas de falar do mesmo, atordoando os sentidos possíveis que repousam magnânimos no silêncio dos que foram torturados, violentados, exterminados. Faz-se necessário reinstaurar falas coletivas que acolham as falas singularizadas na expressão da dor própria, peculiares àqueles que se dispõem a revisitar a própria dor.
Georges Vigarello em sua “História do estupro”5 permite dar a ver que
o saber psicológico contribuiu decisivamente para evidenciar: as marcas do
corpo são díspares das marcas da alma e do psiquismo. As marcas do
corpo podem desaparecer, cicatrizar, enquanto o psiquismo já as absorveu,
já as alojou em lugares que só a linguagem pode dar a ver e já se incumbiu
de fazê-las aparecer em outro lugar. As marcas do corpo quando são acompanhadas de humilhação e crueldade são inultrapassáveis. Perduram e resistem à ação do tempo.
Ferreira Gullar6, em comentário sobre a tortura, dizia: a dor, quando
dói mesmo, é estéril. Ou seja, a dor no seu limite de tolerância não gera
poema, nem obras plásticas, nem música. Sua única e fundamental expressão é o grito e depois, o silêncio. O silêncio diante daqueles que gritam.
O CORPO E O PSIQUISMO DIANTE DA TORTURA
O risco de perder o corpo e a alma nas mãos de quem mais se combateu, permanecer à mercê daqueles que se queria ver derrotados, impotente diante de um algoz disposto a qualquer tipo de crueldade é uma experiência ante a qual o psiquismo freqüentemente fracassa.
A experiência de tortura política é o exemplo típico do excesso. Excesso que insiste no ultrapassamento do psiquismo para derrotá-lo e impeli-
5
3
Remeto o leitor à leitura de Totem e Tabu, texto de Sigmund Freud escrito em 1913.
4
Blanchot, Maurice. L’ecriture du desastre, Paris: Galimard, 1980.
12
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006.
Vigarello, Georges. “História do Estupro: Violência Sexual nos séculos XVI-XX”. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
6
Em entrevista para a TV Cultura em 2004.
C. da APPOA, Porto Alegre, n.153, dezembro 2006.
13
SEÇÃO TEMÁTICA
ENDO, P. Tortura: aspectos...
lo a acreditar em sua própria derrota. A tortura e o torturador visam melancolizar o sujeito. Querem que ele sobreviva como morto-vivo. Um vivo que
desejaria não estar mais entre outros, um vivo que não tem o prazer e o
direito de viver. Aquele que entristeceu para sempre, aquele que desprezará
a si mesmo por não ter suportado o pior e o impossível, aquele que se
desconhecerá para sempre porque não pôde suportar o que imagina que
outros suportariam.
Sabemos como o psiquismo trabalha. Diante da experiência excessiva, consciente ou inconscientemente, ele se põe ao trabalho. Sabemos que
um bebê recém-nascido, logo após o parto, quando ocorre a mudança radical ao seu corpo, que marca o fim da simbiose com o corpo materno, realiza
seu primeiro feito psíquico extraordinário: ressimbiotiza com a mãe. Isto é,
ele reinventa, psiquicamente, uma mãe que lhe é contínua e não apartada.
Assim como havia um corpo para dois, agora a criança reinstaura um
psiquismo para dois.
É fundamental que, num primeiro momento, a mãe atenda esse arranjo do recém-nascido. Que ela reconheça nos sinais que o bebê emite um
pedido, uma demanda, um rudimento de linguagem para que a criança possa suportar a separação, desta vez psíquica, que ocorrerá mais tarde. O
importante aqui é que a primeira tarefa do psiquismo, do ponto de vista da
Psicanálise, é juntar o separado, e ele o faz.
A dor da separação do corpo materno é então parcialmente restaurada para ser, mais tarde e sucessivamente, perturbada ao longo do processo
de autonomização do corpo do adolescente e do adulto do corpo e psiquismo
maternos. Diante da dor o aparelho psíquico se põe ao trabalho para evitá-la.
Não importa agora discutirmos a eficácia desse trabalho, mas destacar que sempre trabalhamos psiquicamente para evitar o que acreditamos,
imaginamos e esperamos seja o pior.
Vemos isso numa criança muito pequena que chora desesperadamente quando bate a cabeça ou é picada por um inseto. Há a dor e há
também o desespero. Em geral uma aproximação cuidadosa do adulto reconhece a dor (doeu?) e ao mesmo tempo garante que a dor vai passar. Qual-
quer dor que não passa gera o desespero e a inaptidão para quaisquer outras
formas de satisfação.
Uma dor que se eterniza desloca toda a atividade psíquica para salvaguardar o ego e se desabilita para outras funções vitais do psiquismo, entre
elas a satisfação e o prazer. É isso que o torturador reconhece e salienta
quando diz a Pedro, um militante político latino-americano, na descrição do
Psicanalista Marcelo Viñar:
“Tenho o tempo que for necessário, uma semana, um mês um ano.
Alguns resistem mais, outros menos, mas você viu, no fim todo mundo cede,
eles falam. Você vê o que lhe convém, você me economiza trabalho e se
poupa de sofrimento, no final, vai ceder”. 7
O torturador avisa: eu tenho a eternidade, você a espera.
O tempo que for necessário para lhe provocar dor, o tempo necessário
para subjugar sua alma, já que seu corpo já está ostensivamente subjugado
e derrotado. Tempo para fazer o torturado abdicar de sua autonomia em troca
da anomia e do fracasso identitário. Um tempo maior que a história extraordinária de tantos militantes que, diante da violência da ralé (como diz Hannah
Arendt 8), acabam por renunciar à própria história.
Esse tempo largo que o torturador possui é o tempo da demolição,
como diz Marcelo Viñar, tomando o termo de empréstimo de um analisando
seu. Tempo de fazer emergir a vergonha onde havia orgulho, de fazer jorrar o
medo onde havia coragem, de fazer advir um superego cruel, onde havia a
esperança no porvir, que a ação política, egóica, viria a possibilitar.
Não é por mera analogia que recorremos à experiência infantil. Reconhecemos na regressão um mecanismo do qual o sujeito lança mão a fim de
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006.
C. da APPOA, Porto Alegre, n.153, dezembro 2006.
14
7
Viñar, Marcelo e Viñar, Maren1989). “Exílio e Tortura”. São Paulo: Escuta, 1992, p.40.
Hannah Arendt(1949), em As Origens do Totalitarismo, faz uma distinção fundamental
entre a ralé(“grupo no qual são representados resíduos de todas as classes”) e o povo.
Essa distinção se aplica inteiramente ao grupo de torturadores cujos padrões seguem a
risca a necessidade de, por todos os meios, acumular privilégios. Ver especialmente p.129140 e p.176-187
8
15
SEÇÃO TEMÁTICA
reencontrar algum indício, algum sinal identitário esfacelado repetidamente
nas sessões de tortura. O psiquismo trabalhando para restituir alguma lembrança de prazer, ainda inscrita num corpo ferido e desolado.
O torturador quer convencer que a dor não vai cessar, a tortura não vai
cessar, senão por uma informação, atitude ou comportamento do torturado
que dependeria única e exclusivamente dele. A salvação do corpo e do eu do
torturado estariam, então, sob sua inteira responsabilidade. Só ele, o torturado, poderia fazer cessar a dor.
Ao se recusar, apostando que a informação, a resistência e a manutenção dos princípios é a única maneira de garantir uma sobrevida anímica,
o torturado é relançado para uma outra senda estreita, para uma outra armadilha, a da auto-responsabilização. Está muito próxima da identificação com
o agressor que, mais adiante, comentarei.
Primo Levi observa a esse respeito sobre aqueles que sobreviveram –
incluindo ele mesmo – tendo passado por Auschwitz:
“Você tem vergonha porque está vivo no lugar de um outro? E, particularmente, de um homem mais generoso, mais sensível, mais sábio, mais
útil, mais digno de viver? É impossível evitar isso: você se examina, repassa
todas as suas recordações, esperando encontrá-las todas, e que nenhuma
delas tenha se mascarado ou travestido; não você não vê transgressões
evidentes, não defraudou ninguém, não espancou (mas teria força para tanto?), não aceitou encargos (mas não lhe ofereceram...), não roubou o pão de
ninguém; no entanto é impossível evitar. É só uma suposição ou, antes, a
sombra de uma suspeita: a de que cada qual seja o Caim de seu irmão e
cada um de nós (mas desta vez digo “nós” num sentido muito amplo, ou
melhor, universal) tenha defraudado seu próximo vivendo no lugar dele. É
uma suposição, mas corrói; penetrou profundamente como um carcoma; de
fora não se vê, mas corrói e grita.”9
9
Levi, Primo. Afogados e Sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p.46
16
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006.
ENDO, P. Tortura: aspectos...
Ter sobrevivido gera mal-estar. Uma experiência que pode desautorizar
o viver. O que fizemos para continuarmos vivos onde tantos morreram? Qual
nossa culpa? Qual o erro?
Novamente gostaria de recorrer à experiência do estupro. Sob vários
aspectos ela se assemelha à tortura. O uso do corpo de outrem, o prazer
obtido desse uso, a radicalidade do excesso onde se imbricam todas as
formas de violência e onde o prazer exclusivo do agressor, pode desabilitar
permanentemente o agredido ao prazer.
Tanto o estuprador quanto o torturador, afogados em sua necessidade de prazer e poder, estão submetidos a um fundamento que os isola e os
confunde: a prática covarde e subalterna que exige o esquecimento da própria alteridade e o dilema indeciso que os rebaixa a animais, de onde jamais
se erguerão.
Pensar exclusivamente em si, em sua própria satisfação é, como lembra Helene Clastres, em seu livro “A terra sem mal”10, igualar-se aos bichos.
Ela extrai seus exemplos de várias tribos sul-americanas onde aquele que
não dá aos outros a comida que caçou, vira animal; mais ainda, bestializa-se
quem come, no mato, a comida caçada. E isso porque o correto é levar a
caça para a aldeia, distribuí-la aos outros e, por isso mesmo, nem sequer
tocar nela, não a comer. Quem come o que caçou, ou quem come escondido, é porque não quer repartir, e por isso vira bicho.
Todavia, a bestialização que envolve os torturadores, os grupos de
extermínio e de intolerância, é mais radical e inconsciente; trata-se de fazer
o outro desistir de desejar, abdicando de sua singularidade por intermédio da
violência. Tal como nas práticas inquisitoriais, o torturador político quer criar
artificialmente a submissão para, artificialmente, circunstancialmente e às
escondidas, se fazer superior. Ele sabe que tem de fazê-lo escondido, ele
sabe que seu grupo, sua escória, o ampara. Ele sabe da covardia que comete contra aqueles que jamais poderá ser, aqueles que por falar e agir em
10
Clastres, Helène. A Terra sem Mal, São Paulo: Brasiliense, 1978.
C. da APPOA, Porto Alegre, n.153, dezembro 2006.
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SEÇÃO TEMÁTICA
primeira pessoa são presos e torturados por isso. Ao contrário, o torturador
passará a vida desmentindo o que é, o que fez e o que disse, escondendo-se
em suas máscaras rotas. A democracia os envergonha, nós os envergonhamos.
Sàndor Ferenczi, psicanalista húngaro e discípulo de Freud, traz uma
série de reflexões importantíssimas feitas na década de 30, que retomarei
brevemente já no contexto do processo que costuma se denominar de identificação com o agressor. 11
Ele examina a situação do estupro em crianças, cometidas pelo pai.
A criança tem, na figura paterna, um alvo de investimento amoroso maciço.
Custa muito para uma criança pequena constatar seu ódio pelas figuras
parentais, o que a obriga a fraturar os objetos dicotomicamente: o bom e o
mau.
A mãe boa não é a má, de modo que a mãe que desaparece do
quarto, a que frustra, a que dá bronca ou expressa seu cansaço e insatisfação, não é a mesma que acolhe, conversa e dá de mamar. A criança percebe
duas figuras díspares e o faz para preservar, de seu ódio, a mãe como objeto
só bom. Pois bem, o mesmo ocorre com a figura paterna, especialmente no
caso da menina e, mais especialmente, quando a menina enamora-se do
pai, a partir dos seis, sete anos até uma fase tardia de sua vida.
Vejamos então, com o auxílio de Ferenczi, a complexidade desse
processo. A criança está diante de um pai abusador que invade seu quarto,
única e exclusivamente para sua satisfação pessoal. Este age como um
agressor, mas não é um agressor qualquer.
Como um animal em busca da presa que devota toda sua força, suas
palavras e seu comportamento a um único fim: a obtenção de seu próprio
prazer. Para a criança é uma cena estarrecedora. Pior do que ser atacada
ENDO, P. Tortura: aspectos...
Ferenczi, Sandor. Confusão de línguas entre os adultos e a criança..In: Sandor FerencziObras Completas.São Paulo: Martins Fontes, 1992, v.4, p.97-106
por um animal, a criança se vê e se sente atacada por um objeto de amor.
Pelo pai que ela tanto ama quanto admira e teme.
Entretanto o que funda a dor psíquica da criança, obviamente, não
são as eventuais dores físicas que possa sentir durante o abuso, mas a dor
em perceber, de modo inequívoco, que seu objeto de amor age em prol de
seu aniquilamento, de sua humilhação e subserviência. Que aquele com
quem ela deveria experimentar relações ternas e lúdicas, sexualiza absolutamente a relação e destrói uma passagem já extremamente difícil para a
menina – a travessia do Édipo feminino –, sobre o qual falaremos em outra
ocasião.
Diante dessa catástrofe perceptiva e desse sofrimento psíquico que
inclui a perda de seu alvo de investimentos amorosos – em relação ao qual
sente que deposita a própria vida – a menina, muitas vezes, recorre a uma
ação psíquica que procura poupar o objeto, preservá-lo, em detrimento de
seu próprio ego. Assim, a criança se culpabiliza, atribui a si a culpa pelo
ocorrido e se melancoliza, tornando-se muitas vezes apática e desinteressante. A menina salvou o objeto pai e destruiu-se, subjetivamente falando.
Não é incomum vermos meninas atribuírem a culpa a si pelo ocorrido,
ou apresentarem um histórico com várias tentativas de suicídio; ou ainda se
culpabilizarem permanentemente noutras ocasiões potencialmente amorosas e sexuais, indicando a presença de uma condenação interna que não
cessa, condenação por uma culpa indesculpável, atribuída a si.
Esse é o modelo do que indiquei a vocês lá atrás como a identificação
com o agressor. A introjeção do estuprador em nós, a introjeção do torturador em nós. Ter-se reduzido ao discurso de quem, uma vez, colocou em
risco nossa vida, violou nossos corpos e, por esse meio, colapsou nossos
recursos de sobrevivência psíquica apenas para satisfazer uma vontade unilateral que, sem a violência extrema, não poderia ser realizada.
Há identificação com o agressor quando ele é, por instantes, confundido com um salvador benevolente, uma autoridade suprema que tudo pode
fazer cessar, um pai dedicado que traveste de ternura um objetivo exclusivamente sexual.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006.
C. da APPOA, Porto Alegre, n.153, dezembro 2006.
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Mas a troca é mais espúria: oferece-se a vergonha em troca do alívio;
o desejo, a fidelidade, a honra e o compromisso, sustentado até então a
duras penas, em troca da própria vida. Nada mais justo e perdoável. Mas, ao
contrário, àquele que se permitiu sobreviver resta a culpa de ter se animalizado,
como diz Helène Clastres, virado bicho.
Nada mais ingrato para aquele que foi castigado pela força de suas
palavras, de seu discurso e de sua ação política. Aquele que lutou por uma
nova cidade, um novo país, e que se vê, muitas vezes, auto exilado, incapaz
de ser devolvido a ela.
É isso que perfaz a identificação com uma figura sórdida que, num
instante de fragilidade extrema, foi admirada, querida ou idealizada. Uma
ilusão forjada pelo trabalho psíquico para poupar-se da dor e do sofrimento.
Encontrar algo familiar em meio ao deserto da tortura. Criar uma miragem
pacificada onde tudo é isolamento, dor e eternidade.
Embora fracassada, a identificação com o agressor é um recurso limite de sobrevida do psiquismo e deve ser acolhido como uma forma de sobrevivência psíquica em meio ao sofrimento absoluto e ao terror da aniquilação.
Conduz a culpabilização e ao sofrimento, mas seu princípio é a sobrevivência. Paradoxo que só pode ser explicado através da elucidação dos processos inconscientes e dos mecanismos de proteção do eu.
Circunscrevi-me nesses breves comentários à tortura política, porque
julguei importante voltar a falar sobre ela. Convivemos com muitas e novas
formas de tortura, onde os resultados, os processos e os personagens são
outros. Outrora os militantes, agora os pobres. Em outra ocasião é preciso
continuar falando sobre isso.
BLEY, S. M. Violências e aspectos...
VIOLÊNCIAS E ASPECTOS DO CONSTITUINTE
Sonia Maria Bley1
O
que se convenciona situar no âmbito das violências tem delimitações e matizes diversos. Os delineamentos por onde elas se inscrevem como questão, são partilhados por diferentes áreas do conhecimento e que, com abrangências singulares, abrem novas e velhas interrogações. Algumas abordagens, por vezes, implicam recuos e esvaziamentos no desconforto dos efeitos de violências assistidos, compactuados,
vividos, sentidos na pele, no corpo individual, social e cultural.
As violências não são novidades, mesmo que se acrescente a, não
menos violenta, exploração por nuanças sensacionalistas, do que instiga o
desafio sempre maior a padrões já conhecidos de sua materialização. Então, um dos questionamentos comuns é sobre as possíveis modificações
que especifiquem o engendramento de suas formatações na atualidade.
Não raras vezes se atribui às “mudanças” a um avanço quantitativo,
por conta do desenvolvimento tecnológico e científico, que proporcionam
condições cada vez maiores ao homem para afinação de seus instrumentos
potencialmente destruidores. No entanto, a orquestração do instrumental
oriundo da ciência é linguageira. Ela, em seus moldes, consiste na depuração crescente de um conjunto de enunciados esterilizados e higienizados
de fatores intervenientes e de incompatibilidades. Em que medida isso favorece uma violência operacional de banir o sujeito falante da cena, onde esse
produz sua singularidade, até mesmo e, principalmente, quando se trata de
tentar explicar cientificamente as “causas” das violências? No entanto, na
era científica, tecnológica, articulada ao estágio atual do capitalismo, cujo
modelo econômico é promotor de exclusões e objetivador de relações, per-
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006.
Presidente da Associação Clínica Freudiana – São Leopoldo – RS
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BLEY, S. M. Violências e aspectos...
duram singularidades regionais, diferenças pessoais e culturais entre comunidades e países, também no que tangencia as apresentações das chamadas violências. Diferenças e peculiaridades essas que não declinam diante
de explicações homogeneizantes e simplificadoras. Neste sentido, uma complexidade específica também acompanha as tentativas metapsicológicas de
abordagem dessa temática.
Considerando que a entrada da cria humana na linguagem não se dá
sem uma violência de efeito humanizante, as marcas singulares atravessam, tanto a criatura, como o contexto onde ela se insere e, para o qual também contribui singularmente. Tendo como matriz que o encontro com o outro
é sempre violento, uma vez que se trata sempre da alteridade que é capaz de
brotar do si próprio, está sempre lançada a questão de suportar o si mesmo
em outrem. Ou seja, suportar a diferença, pois no surgir do outro não se tem
a si próprio. É o que Freud propõe como matriz desse exercício de estrangeiridade, desde seu “Projeto para uma Psicologia” (1885), quando em relação às vivências (erlebnisse) de satisfação e de dor, situa a “ajuda alheia”
(fremde Hilfe), como presentificação do outro em ação específica, enquanto
requisitada a partir de um escoamento (Abfuhr) condutor de alteração interna, como o choro ou o grito. Alteração essa, enquanto “via de escoamento”
(Abfuhrbahn), que supõe a luta ativa, viva e “[...] alcança assim, a mais
importante função secundária do entendimento/ do acordar [...]” (p. 410-11).
Nessa interação ativa desde o início, na instigação para que o outro se
apresente, é que o objeto hostil substitui, do mesmo modo, o estado da dor,
caso haja algum investimento (Besetzung) por uma nova percepção. Ora,
são os resíduos dos dois tipos de vivências que passam a engendrar, a
desdobrar-se, desde o começo no topar com o Outro, os estados de afeto e
desejo.
Um ano após a escrita do “Projeto”, Freud escreve a Fliess, em sua
carta 52, de 06 de dezembro de 1896, ao referir-se às vertigens e ao choro
“[...] tudo isso é creditado (berechnet) a outrem (auf den Anderen), em geral,
aquele inesquecível pré-histórico Outro, o qual não mais é acessado/alcançado posteriormente.”(p.9)
Instaurado o âmbito da falta no Outro, o falante terá que articulá-la em
níveis constitutivos muito diferenciados de descompasso entre a palavra e a
coisa que se presentificam, ora mais, ora menos, quando algo representa
uma ameaça que incide na constante revisita dialética eu-outro.
Se é a ajuda alheia, então, que primeiro se presentifica como Outro,
ela não é em si suficiente no que vai se constituindo como o complexo
processo das identificações, no qual o não mais alcance no Outro e do
Outro, no desdobramento da Coisa enquanto perdida, sofre destinações que
dão tinturas na gradação da suportabilidade ao lidar com a alteridade. No
capítulo VII do texto “Psicologia das Massas e Análise do Eu” (1921) a identificação é dita como: “[...] desde o começo precisamente ambivalente, ela
se presta tanto para expressão de ternura como para virar desejo de eliminação”. (p.44) O ato canibal implica que a apreciação do objeto equivale a
aniquilá-lo pela incorporação em si.
Lacan situou a antecipação no plano psíquico da unidade ideal do
corpo, que seria uma captação pela imagem como primeiro momento na
arrancada da dialética das identificações. Essa captação vem, desde então,
demonstrar toda a dialética do comportamento da criança na presença de
seu semelhante, cujas reações emocionais estão articuladas em um
transitivismo normal, como no exemplo da criança que bate e diz que bateram nela. É numa identificação com o outro que ela vive da impotência à
ostentação uma ambivalência estrutural que faz identificar o seduzido com o
sedutor, o submetido com o tirano e o autor com o espectador. Há aí uma
“encruzilhada estrutural” que, se fixada na imagem que aliena em si mesmo
o eu, cristaliza numa tensão interna que desperta o seu desejo pelo objeto
de desejo do outro, o que não se dá sem uma concorrência agressiva.
Como observa Freud, no texto Das Unheimliche (1919), na história de
Heródoto bem como nas de outros autores, passeamos por lugares como,
por exemplo, no do ladrão e não no lugar da princesa (vítima). Noutros momentos a vitimização nos causa efeito risível e em outros, ainda, efeito repulsivo. Ou seja, há uma veiculação do si mesmo na conduta do outro, seja por
ação, cumplicidade, vitimização ou como algo expectável.
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A agressão enquanto tensionamento da estrutura narcísica de identificação com o rival só é possível se preparado pela primitiva rivalidade consigo mesmo. A identificação edipiana transcende essa primeira agressividade
constitutiva numa possibilidade outra da assunção afetiva do próximo. Por
vezes as “frustrações” ficam “detidas num curto-circuito na situação edipiana,
sem nunca mais se engajar numa elaboração [...]” (Lacan, 1950, p.136).
Para tanto, o exercício da agressividade humana, enquanto um motor pulsional,
deve seu início a essa precariedade e desamparo do aparelho psíquico. Aparelho esse que, segundo Freud, percebe, traceja, inscreve traços simultâneos, de tempos em tempos revira-os, ou seja, promove uma Umordnung. A
memória de traços, por sua vez, é desdobrada em vários tempos, onde sempre sob novas circunstâncias é também passível de uma mudança nessa
inscrição/reordenamento de escrita (Umschrift). Os descompassos do corpo psicofísico, enquanto inscritos (Niederschrift) e retranscritos (Umschriften),
implicam representações das perdas na tradução em vários níveis de
estratificações.
O desdobramento desse operador sempre Outro desfusionador de
um corpo unificado na dupla mãe-criança, na abolição do “tudo amor” ou
“tudo indiferença” é violência necessária. Sem essa operação, não resultaria no Um que é outro contável e, portanto simbolizador da falta. Sem
ela, um fusionamento unificador massivo imporia sua violência maior.
Desse modo, o Outro é alteridade não só, porém prioritariamente discursiva
que permeia e agencia, dentre outras coisas, violências. Essa instância
Outra abrange aquilo que Freud reitera no “Mal-Estar na Civilização” (1923),
enquanto sendo a relação do humano com o outro o que lhe impõe sua
maior fonte de sofrimento. E, de certa maneira, as outras duas fontes,
por ele apontadas, subordinam-se a mesma questão no Outro, uma vez
que a relação consigo mesmo e com os bens e a propriedade portam e
veiculam as mesmas marcas de sofrimento que a relação com o semelhante.
Desse modo, a complexidade que pode suscitar as preocupações
com as roupagens violentas no social, abre-se da mesma forma na escuta
de cada falante. Cada singularidade é constituída por violências e que ela,
por sua vez, engendra como co-partícipe em seu contexto.
Como ressalta Freud (1915), fundamentando seu posicionamento sobre a não existência da “erradicação do mal”, apesar da consistência das
pulsões, em si mesmas, não ser nem boa nem má, a manifestação do mal
se dá na “relação com as necessidades e as exigências da comunidade
humana”. (p.41)
As moções pulsionais passariam por um longo caminho de desenvolvimento para ativarem-se com a expressão que têm no adulto. Sofreriam
inibições, novos endereçamentos, fusões, alterações, transmutações e reversões, inversões e fixações como possíveis destinos. Então o humano
seria “[...] ‘bom’ em algumas relações; ‘ruim’ em outras ou ‘bom’ sob certas
condições externas; sob outras, decisivamente ‘mau’”. (p.41-2)
Muito embora mal e violência não se recubram enquanto conceitos,
os malefícios da violência humana, às vezes se mostram como irrompimentos
bruscos e em outras situações como imbricados de forma mais sutil no
tecido linguageiro.
Abordamos no texto “Familiaridade Estranha da Violência” (2005) uma
“complexização necessária do estranho-familiar”, naquilo que tende a fecharse em polarizações convencionadas por seu caráter de incompatibilidade.
Um dos exemplos iniciais trabalhados naquela ocasião trazia a notícia de
uma pesquisa, a qual veiculava a idéia de violência por oposição à docilidade,
presteza e solidariedade, demonstradas na população da mesma cidade. Ao
mesmo tempo surgia ali uma abertura para o lugar da surpresa e do
estranhamento, onde comumente se esperaria que um pólo ocultasse,
secretasse ou anulasse o outro. O vir à luz de algo que deveria ter permanecido inacessível participa da abrangente questão do Unheimliche. É o
estranhamento, a partir do familiar, que dá a este último algum estatuto de
identidade. A identidade do lado da alteridade, da estrangeiridade abre um
leque em que se perdem as purezas das antíteses. Em que registros então
estariam operando os contrastantes heimlich e unheimlich para, por vezes,
um recobrir o seu oposto?
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O Unheimliche está ligado a uma desorganização fantasmática onde
os limites imaginários entre sujeito e objeto, como irreconciliáveis, precipitam um delineamento pela saída destrutiva, violenta. O estranhamento enquanto inquietante não é específico de um único tipo estrutural escutado na
clínica, e sim participa de vários, onde ativadas algumas representações, ou
restos de imagens estratificadas de forma variável para cada um, não se
encontra, às vezes, definitivamente no que já estaria recalcado. Como já
mencionei2 em outra oportunidade, pode estar rejeitado, recusado ou ainda
em reserva de ser construído, falado, elaborado.
O temor, o estarrecimento, o amortecimento, a banalização, a queixa,
a vitimização, a visão, o ato e, mesmo o relato de algo violento praticado,
engendram recursos de linguagem como obscurecimentos, deslocamentos,
deturpações, alheamentos, alienações, repúdios, negações e recusas que
dizem do jogo de ações defensivas (Abwehren). Jogo esse, que é articulador
nos meandros também daquilo que irrompe como mal na aparência de fratura exposta a ser nomeada como violência.
O estranhamento como expressão crua do íntimo, primitivo engolfador
familiar, no que traz de aparência inatingível, inexplicável, estrangeira, comparece quando o que comanda a cena não é ainda nomeado. O não nomeado ancora-se no desamparo do que seria o extremo do familiar, longe do
olhar interventor forasteiro. Esse endosso incide na possibilidade do retorno
da alteridade viabilizar-se como hostil e persecutória. As negações mortíferas são geradas, confundindo dois momentos em que o sujeito nega a si
mesmo e acusa o outro, imputa algo a ele, na estruturação paranóica do eu,
que pode mostrar-se pela projeção.
A “execração” do diferente, daquele que às vezes é visto apenas como
obstáculo a uma satisfação pessoal imediata, e que não se suporta em
diferentes medidas, mas que é identificado sempre a partir do si próprio, ou
BLEY, S. M. Violências e aspectos...
seja, de um outro do si mesmo, diz do que se fixa no empossamento do
Outro. Fixação unificadora essa, que materializa o diferente, o estrangeiro
como inimigo.
A imaginária positivação da mesmice mortífera pode, na tentativa de
lidar com estilhaçamentos do eu primitivo, solucionar-se pela agressão como
processo resultante do fracasso de outra solução defensiva. A ação defensiva ancorada na relação dual e igualitária é forclusiva do Outro. E o que se
impõe, desde Lacan, é que as “modificações”, que também podemos estender para as formatações violentas atuais, implicam em grande parte, que a
referência triádica vem se reduzindo à autoridade paterna. Essa, enquanto
traço de palavra subsistente, cada vez mais encontra-se instável e obsoleta
na valorização e participação social, incidindo com força violenta nas
psicopatologias.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLEY, S. M. Familiaridade Estranha da Violência. In. HARTMANN, F; ROSA JR,
N.C. D. da (org.) Violências e Contemporaneidade. Porto Alegre. Artes e ofícios, 2005.
FREUD, S. Carta 52(1886). In . Bulletin de L’Association Freudienne Internationale
(Novembro, 2001), n o 95.
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Bücherei. 1967.
______, S. Das Unheimliche(1919). Frankfurt-am-Main:S.Fischer Verlag,
Studienausgabe, 1989.
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LACAN, J. Introdução Teórica às Funções da Psicanálise em Criminologia. 1950.
Rio de Janeiro: Zahar. 1995.
2
BLEY, S. M. Familiaridade Estranha da Violência. In. HARTMANN, F; ROSA JR, N. C. D. da
(org.) Violências e Contemporaneidade. Porto Alegre. Artes e ofícios, 2005.
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ESTAMIRA – UMA MULHER COM QUALIDADES
1
Edson Luiz André de Sousa
“Hoje em dia ninguém mais parece como devia ser, pois usamos
nossas cabeças de maneira ainda mais impessoal do que nossas mãos.”
Robert Musil em “O homem sem qualidades”
F
ui ver Estamira. Experiência do limite. Pude entrar em um cenário
onde talvez jamais entraria. Pude ver o que talvez jamais veria. Pude
ouvir o que certamente jamais teria a chance, não fosse a coragem e
a sensibilidade de Marcos Prado, que dirige este documentário. Lembrei do
grito de Münch na célebre pintura: a angústia líquida se esvaindo no meio da
travessia da ponte. Lembrei também do grito de Paolo (Massimo Girotti), o
rico industrial caminhando em seu deserto de desespero no final do clássico
Teorema de Pasolini. Lembrei ainda de Alain Resnais e seu perturbador
Hiroshima, mon amour. Para quem se lembra, o filme começa com um embate de vozes entre o ver e o não ver. Diz uma voz feminina em off: “Eu vi os
hospitais em Hiroshima!”. A voz masculina: “Você não viu Hiroshima!”. A
pergunta que se impõe, depois de tantas imagens, é a seguinte: o que ainda
é possível ver?
Estamira nos surpreende com inúmeros excessos: da miséria, da
dor, da negligência, da violência, do abuso sexual, das toneladas de lixo que
chegam diariamente no aterro sanitário de Jardim Gramacho, na Baixada
Fluminense no Rio de Janeiro. Este excesso, contudo, é contido, em parte,
na determinação de Estamira, uma mulher de 63 anos, diagnosticada como
esquizofrênica e que há mais de 20 anos vive recolhendo seu sustento no
lixão. Ela fala, grita, pensa, demonstra, faz, olha, argumenta. Sua voz é o fio
1
Publicado no Caderno de Cultura do Jornal Zero Hora em 4 de novembro 2006.
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condutor de toda a narrativa do documentário e revela o quanto o poder narrar
e expressar um sofrimento faz a vida resistir, mesmo no meio dos escombros e dos detritos. Por isto, este filme fala de limite. Mário Peixoto, em um
de seus inúmeros poemas sobre o mar, traz uma imagem inquietante e infelizmente tão atual. “Há os que preferem não ver. A vista das coisas é profunda demais para tão pequeno contato”. No conforto do cinema, podemos ouvir
e ver a vida resistindo em palavras e tirando da invisibilidade e do esquecimento tanta potência. Diante da tela, fazemos contato com nossa cegueira,
contato com nosso desprezo pelos miseráveis, contato com o que é abjeto e
nojento, sensações que nada mais são do que ver o que produzimos, nas
mãos de outros e nas bocas de outros.
A indignação de Estamira é seu alimento e nossa esperança. No meio
dos restos de uma sociedade cada vez mais voraz, ela tem o tempo de
mostrar o avesso das boas intenções, desmascarar o que ela chama dos
“espertos ao contrário”, elaborar um longo discurso em defesa da verdade (“A
minha missão, além de ser a Estamira, é mostrar a verdade e capturar a
mentira”). O lixão armazena restos e pensamentos e nos surpreende com os
laços de solidariedade e reconhecimento mútuo entre Estamira e alguns
parceiros de trabalho. Ela é a porta-voz desse coletivo de seres humanos
potentes e esquecidos que sobrevivem graças à força do que tem a dizer.
Estamira não tem papas na língua. Sua revolta surge misturada com seu
delírio, o qual tem a lucidez de apontar alguns traços do sintoma social de
nosso tempo: a burocratização do saber se faz presente em sua queixa de
encontrar doutores “copiadores de receitas semifabricadas”; o declínio do
político, o engano da religião, o catastrófico das pequenas e grandes violências. Estamira é como um espelho quebrado que revela fragmentos da vida
de muitos brasileiros. Conta, por exemplo, que aos 12 anos foi levada à
prostituição pelo avô materno, que abusava sexualmente da filha. Segue-se
um casamento infeliz, marcado por um enredo tão conhecido: álcool e violência. Ela sabe o valor do que tem a dizer, e o filme se sustenta em grande
parte em suas palavras. Elabora uma teoria contra o que nomeia o “trocadilo”.
Segundo ela, este “faz as pessoas viverem na ilusão, e acreditar em coisas
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que não existem”. O que existe está diante de nossos olhos, para quem
quiser ver. O documentário é potente em imagens e costurado com uma
trilha musical densa e no ritmo dos contrastes luz/escuridão, vida/morte,
palavra/silêncio, terra/mar. Discordo dos que têm falado em estetização da
pobreza. Prado tenta mostrar outro universo, outro olhar, e que nem sempre
estamos dispostos a ver. Há muitas imagens eloqüentes e que nos ajudam a
pensar: Estamira caminhando em silêncio e um mar revolto no fundo da
cena, indicando uma espécie de transbordamento interior; os plásticos pretos do lixão no céu junto com os urubus e o som inquieto do vento mostram
uma monocromia e sinfonia do desespero. Contudo, uma das cenas que
mais me comoveu foi ver um dos amigos de Estamira surgir do meio do lixo
e nomear um a um seus cães. Ele surge, como Fênix do meio das cinzas, e
recria o mundo com a força das palavras. Aqui nomear é reconhecer, e talvez
por isto Estamira insista tanto em repetir seu nome. Prado foi preciso ao
intitular o documentário com um nome próprio. O nome reconhecido faz a
vida resistir.
Marcos Prado precisou de mais de três anos para preparar este
documentário. Soube ser paciente e respeitar o tempo do acontecimento.
Teve a autorização de Estamira e foi para ela que mostrou em primeira mão
a versão final, pedindo o seu consentimento. Portanto, este é um filme de
verdadeira parceria e legitimidade. Prado também produziu em 2002 o excelente documentário Ônibus 174 dirigido por José Padilha.
Estamira nos humaniza, abre outros horizontes e recupera na voz e
gritos de indignação a responsabilidade do viver. Mostra também a mulher/
mãe que, mesmo na miséria e mergulhada no sofrimento psíquico, soube
cuidar dos filhos. Ela nos indica o limite, mas sonha com o além dele. Ainda
bem! Como lembra Ernst Bloch, em seu Principio Esperança, “A falta de
esperança é, ela mesma, tanto em termos temporais quanto em conteúdo, o
mais intolerável, o absolutamente insuportável para as necessidades humanas”. A filosofia de Estamira se move em outros universos mas não deixa de
mirar esta esperança. Olha o que nos diz: “Tem o eterno, o infinito, o além e
o além dos além. Este vocês ainda não viram...”.
Em um tempo tão asséptico e técnico, seduzido pelo capital e velocidade, pela imagem e as vitrines coloridas, pelo prestígio sem obra e pelos
espertos, pela indiferença com o outro, pela violência que nos afoga e o
silêncio diante do horror, pela burocratização do amanhã o “além dos além”
pode ser simplesmente a recuperação de uma sensibilidade que possa se
indignar diante do intolerável. Não basta o talento e a coragem de mostrar
em imagens esta realidade, como fez Marcos Prado, é preciso ainda de
pessoas que queiram ver, cumprindo a fundamental função de testemunhar.
Certamente, destas imagens outras atitudes surgirão.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006.
C. da APPOA, Porto Alegre, n.153, dezembro 2006.
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SEÇÃO TEMÁTICA
ROSA JR, N. C. DA. Desamparo e violência...
DESAMPARO E VIOLÊNCIA:
O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI E A BUSCA
DESESPERADA PARA ENLAÇAR UM OLHAR1
Norton Cezar da Rosa Jr
C
erta feita, numa interlocução, foi abordado o fragmento de sonho
analisado por Freud (1900) no célebre texto “A interpretação dos
sonhos”, no capítulo VII – “A psicologia dos processos oníricos”. Trata-se de um momento especial, no qual o autor analisa as implicações acerca
do esquecimento dos sonhos, mostrando-nos que o trabalho do psicanalista
requer uma certa paixão pelo detalhe, na medida em que muitas vezes é possível reconstruir aquilo que fora perdido mediante o recalcamento do sonho, a
partir de um único fragmento remanescente, no caso, em especial, um “canal”.
Freud refere que uma paciente cética tivera um sonho meio longo do
qual algumas pessoas lhe falaram de seu livro sobre os Chistes. Surgiu
então algo sobre um “canal”, parecendo tudo muito evanescente, uma espécie de resíduo de lembrança que esboçava apenas um “canal”. O autor chama atenção que o elemento “canal”, por ser tão indistinto, poderia parecer
inacessível à interpretação. Num primeiro momento, nada ocorreu à paciente
a propósito do elemento aparentemente insignificante. Entretanto, posteriormente, ela recorda de algo, um chiste que ouvira no vapor que liga Dover a
Calais, onde um autor famoso começou a conversar com um inglês e este
citou a máxima: “Du sublime au ridicule il n’y a qu’ un pas”. “Sim” respondeu
o autor – “le Pas de Calais”, referindo à França como sublime e à Inglaterra
como ridícula. Freud refere que a lembrança fornece a solução para o elemento aparentemente intrigante no sonho – “um canal”.
Logo após esta discussão, estive num evento apresentando um trabalho sobre “Adolescência e violência”, e uma pessoa, informalmente, perguntou-me quando começou o meu interesse pelo tema. Inicialmente, parecia
1
O presente texto é baseado em minha dissertação de mestrado, “Adolescência e violência:
direção do tratamento psicanalítico com adolescentes em conflito com a lei”, orientada por
Edson Luiz André de Sousa junto ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e
Institucional – UFRGS, defendida em 30 de novembro de 2006.
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que a experiência de escuta com adolescentes em conflito com a lei poderia
facilmente ser a resposta mais lógica e racional. No entanto, naquele momento, resolvi dizer apenas que precisava pensar. Creio que tanto a questão
quanto a resposta possibilitaram alguns efeitos enunciativos, pois na manhã
seguinte, tão logo acordei, ainda tropeçando nos fragmentos que restavam
do meu sonho, pronunciei uma única palavra: “tomate”. Isto era tudo o que
até então eu podia lembrar do meu sonho – apenas um tomate! Quanto mais
forçava para resgatar algum outro esboço qualquer de imagem, maior parecia o esquecimento. O que certamente é relativamente óbvio, até mesmo,
para os iniciados em psicanálise.
Então, quando percebi o quão inútil seria a minha insistência, resolvi
fazer o desjejum. Olhei para minha ajudante e pronunciei um lapso: gostaria
de café com “toradas”. Ela recentemente fora contratada e tinha um sotaque
muito forte, típico da colônia. Diante disso, achou por um instante que eu
poderia estar brincando, riu e repetiu – “torada”? Quando ouvi a sua voz (em
espelho), lembrei-me de um estimado amigo da adolescência que não vejo
acerca de 20 anos, chamava-se: Torata.
Torata era um japonês, filho de um homem muito íntegro que, além de
ser um plantador de “tomates”, fora o nosso mestre de Karatê durante a
infância e adolescência. Esta lembrança, imediatamente, produziu-me uma
sucessão de imagens desde as nossas aulas, que sempre eram acompanhadas de alguns princípios de filosofia oriental e de técnicas de meditação
e controle respiratório – o que me produziu uma sensação de muito bem
estar naquele momento –, até a recordação de uma imagem muito forte,
petrificadora, haja vista os efeitos de emudecimento que o caráter violento
de seu ato precipitou-me enquanto espectador. Aos poucos começava a
perceber que a partir da lembrança de um “tomate” e de seus imprevisíveis
desdobramentos, gradativamente, tornava-se possível responder a questão
colocada pelo meu interlocutor, a saber, quando começou o meu interesse
pela conjunção dos temas adolescência e violência.
Era uma tarde de sábado – eu devia ter 11 ou 12 anos – estava acompanhado dos meus colegas e amigos “Torata” e “João”. Estávamos exaustos
porque havíamos treinado durante longas horas, para o importante exame de
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troca de faixa, que iríamos prestar na próxima semana. João era o melhor e
mais dedicado aluno da academia, além da postura conciliadora de ser completamente avesso a conflitos e incapaz de agredir ou revidar com agressão
a qualquer pessoa, possuía um domínio técnico admirável, principalmente
com a destreza e flexibilidade de suas pernas, o que lhe rendeu os principais
títulos nacionais e internacionais de sua categoria. Quanto a sua vida particular, sabia-se pouco, pois além de disciplinado era muito reservado. Apenas tínhamos conhecimento que era de família humilde e que seu pai enfrentava alguns problemas com a bebida.
Ouvimos alguém dizer que o nosso professor – cerca de seis anos
atrás – sensibilizado com a situação do menino, que periodicamente aparecia para assistir os treinos, ofereceu-lhe uma bolsa gratuita, fazendo apenas
dois pedidos: que não se envolvesse em conflitos e cuidasse da limpeza do
Dojo (local onde ocorriam os treinos). Os pedidos para João soavam como
exigências, o que certamente mostrava-nos que nosso Mestre teria muitos
motivos para se orgulhar de seu futuro discípulo.
Naquela tarde, logo após o treino, quando estávamos descontraidamente retornando para as nossas residências, já nas proximidades da casa
de João, como numa espécie de relâmpago, vimos um homem, tomado por
um acesso de fúria, agarrá-lo violentamente no pescoço e jogá-lo em direção
a um portão, deixando-o completamente encurralado e fitando-o de forma
fulminante e aniquiladora. Tanto a violência do corpo que se impunha abruptamente quanto o poder destrutivo de seu olhar pareciam imobilizar e
anestesiar o nosso amigo que, certamente, teria plenas habilidades para se
livrar do agressor em frações de segundos, caso esse não fosse o seu próprio pai. Quando percebemos de quem se tratava, ficamos tão ou mais paralisados que o próprio João. Neste momento, estávamos todos congelados
numa cena que nos incapacitava de ensaiar qualquer tentativa de reação, a
qual possivelmente iria retornar em nossos pensamentos por muitos anos,
marcando sensivelmente as nossas vidas.
Foram apenas alguns segundos em que todos pareciam medusados
em face de tamanha barbárie. O silêncio foi rompido com uma única frase do
pai do menino – “vamos, reage... reage que eu também o destruo”. O poder
destrutivo de suas palavras, acompanhado do ódio, que saltava de seus olhos
esbugalhados, e da força brutal de seus braços, que insistiam em marcar
dolorosamente o corpo do seu filho, rapidamente anestesiou as pernas de
João, e ele subitamente desmaiou.
Logo após, seu pai largou-lhe no chão e, novamente, como numa
espécie de relâmpago, se dissipou pela estreita e infinita rua, donde cegamente foi embora sem sequer olhar para o seu horrível feito. Ao vermos o
corpo do nosso amigo estirado no chão, finalmente conseguimos sair de
nosso estado de petrificação e rapidamente procuramos então acordá-lo e
levá-lo para sua casa. Assim que chegamos, era possível escutar os soluços de seu irmão caçula. As marcas em seu corpo denunciavam que recentemente havia sido espancado. Como única e desesperada tentativa para
defender-se de seu algoz, havia pronunciado ao seu pai – “O João um dia vai
me proteger e bater em você”. Passados alguns meses, ficamos sabendo
que o menino era espancado com relativa freqüência.
João gradativamente foi se afastando das aulas, suas pernas pareciam anestesiarem-se para sempre, pois, freqüentemente, sofria distensões e
contusões musculares, curiosamente sempre nos membros inferiores. Durante muitos anos perdemos o contato com ele, algumas informações apontavam
que sua família mudara-se para uma cidade vizinha. Passados alguns anos,
tomamos conhecimento de que ele havia se envolvido com pequenos furtos e
tornara-se líder de gangue, adquirindo em sua história as tristes marcas de
algumas passagens pela antiga FEBEM, vindo infelizmente a falecer.
Este pequeno fragmento que restou do meu sonho – um “tomate” –,
resgatou um universo de recordações, nas quais pude perceber que o meu
interesse para pesquisar as relações entre adolescência e violência, também decorre de uma cena traumática2 que vivenciei quando adolescente.
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Quanto às relações entre a pesquisa psicanalítica e a cena traumática, sugerimos a leitura de
dois textos muito importantes: “A cena primária do psicanalista”, de autoria de Mário Corso e,
“A violência no coração da cidade, de Paulo Endo. Ambos, através de diferentes caminhos,
demonstram que a pesquisa psicanalítica decorre de um certo resíduo traumático, o que nos
leva a pensar que a formação do psicanalista, além de ser uma espécie de tentativa de
resolução deste enigma, implica, necessariamente, ter que se haver com o processo de escrita.
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SEÇÃO TEMÁTICA
ROSA JR, N. C. DA. Desamparo e violência...
Emudecido e paralisado, percebia o olhar fulminante de um pai que parecia
denunciar o sofrimento em face ao desamparo a que João estava jogado, à
mercê de uma continência paterna, jogando-o, posteriormente, na delinqüência,
como uma espécie de tentativa desesperada de buscar reconhecimento,
desafiando as bordas da lei diante da avassaladora angústia de tentar refundar
um pai a cada instante.
Em nossa prática clínica com adolescentes em situação de conflito
com a lei, alguns detalhes, a partir da escuta dos pais, defrontou-nos com a
questão do desamparo. Num primeiro momento, estes nos pareciam, aparentemente, contraditórios. Entretanto, no transcorrer do trabalho, percebemos que a suposta contradição implicava num mesmo destino, a saber:
jogavam-lhes num sentimento de profundo e radical desamparo. De um lado,
apontam a quase absoluta incapacidade de reconhecer um saber próprio
acerca do que se passa com o seu filho, delegando a quaisquer outros (juízes,
assistentes sociais, psicanalistas, educadores, etc...), a possibilidade de
lidar e impor limites mediante a fragilidade de simbolização das leis que
regem o seu precário convívio social; de outro, evidencia-se um discurso que
parece encarnar um saber absoluto, onde a truculência se apresenta como
única saída para responder aos atos delinqüentes de seus filhos; em
contrapartida, ressalta-se também, uma espécie de sutil autorização dos
pais em relação aos delitos de seus filhos, representados ora através da
negação da gravidade do ato cometido, ora pela incapacidade de reconhecêlo como autor e responsável pelo dano causado a si mesmo, enquanto sujeito, e à sociedade, a qual, permanentemente, busca “desalojar”. Diante disso, seja através da impossibilidade de, minimamente, conter os ímpetos de
violência, seja mediante a imposição da violência física, ou até mesmo em
função da incapacidade de reconhecer a gravidade e a autoria do ato infrator
cometido, estes discursos denunciam a fragilidade simbólica dos pais em
lidar e servir de continência frente às fraturas da relação de seus filhos com
a lei.
A fragilidade das referências paternas, somada à falta de perspectivas
dos adolescentes em relações aos seus ideais – a ponto de demonstrar
quase uma absoluta incapacidade de esboçar um horizonte de futuro qualquer –, a privação de acesso aos objetos de consumo, tendo como resposta
o furto ou a depredação como uma espécie de tentativa, ainda que às avessas, de exercer um poder, jogam-lhes, não raras vezes, em condições sociais ultrajantes. O desamparo que daí possa advir se materializa como um
terreno fértil para a busca de reconhecimento e visibilidade social a qualquer
preço, onde a violência pode se apresentar como uma via perigosa para
suportar a dor da própria existência. É justamente aí, que o acesso ilegítimo
aos objetos, seja para ser destruído, furtado ou roubado, seja simplesmente
para utilizá-lo enquanto uma espécie de amuleto de ostentação de insígnias
de poder ou, até mesmo, como um banal objeto de troca, pode levá-los a
confrontar a lei. Entretanto, ao interrogá-la, o adolescente demanda um olhar
que o reconheça e ao mesmo tempo o contenha, demarcando assim, tanto
a fragilidade dos laços simbólicos que o singulariza, quanto a sensibilidade
de precipitar-se em face de um real que insiste em invadi-lo, colocando a sua
vida sempre em risco, através da tentativa desesperada e paradoxal de se
manter vivo, estando sempre no limiar da morte.
Nessa busca desenfreada, a angústia facilmente dá vazão à velocidade e ao oportunismo, presentes no famoso lema da banda Sex Pistols: “viva
rápido e morra jovem”. O intrigante enunciado, estampado na camiseta de
alguns adolescentes, os quais tive a oportunidade de escutar, aponta um
imperativo a não sacrificar o prazer de hoje pelo fragilizado e incerto ideal de
segurança de um possível amanhã. Ocorre que esta angústia e busca de
reconhecimento situa-o numa lógica desesperada para fisgar uma espécie
de brilho qualquer no olhar do outro, pois o adolescente em conflito com a lei
parece estar encurralado numa trágica lógica especular, pois supõe que, do
ponto ao qual este outro o espia, recaem insígnias de morte. Isto os leva a
formular a hipótese que este requer a sua perda, evidenciando assim, uma
espécie de fixação no terceiro tempo do circuito pulsional proposto por Freud,
em “As pulsões e os destinos das pulsões”, a saber, “se fazer ver”.
Após esta hipótese, de imediato pode surgir a seguinte questão: quais
seriam os fatores que contribuem para esta imperiosa necessidade de “se
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SEÇÃO TEMÁTICA
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fazer ver” a qualquer custo? Desde o início deste trabalho, supomos que esta
angústia era um sinal, o qual, através de um tímido pedido de socorro, buscava enlaçar um olhar que pudesse testemunhar a sua condição de desamparo. Isto nos levou a escutar a dimensão do conflito com a lei, como uma
denúncia, em face da situação de desamparo que estavam submetidos, haja
vista a impotência da função paterna para situar limites aos excessos
pulsionais e ímpetos de violência de seus filhos, bem como a fragilidade
destes adolescentes em lidar com alguns dos imperativos e valores sociais
priorizados em nossa cultura (os apelos frenéticos do consumismo, a exposição do corpo enquanto mercadoria mediante o imperativo do gozo escópico,
o individualismo exacerbado face ao rechaço às já fragilizadas heranças simbólicas). Ambos, potencializados pelos impasses próprios da adolescência,
configuram-se como alguns dos dispositivos que parecem jogá-los na solitária rede do individualismo contemporâneo, através da busca desesperada de
reconhecimento.
Esta busca faz de suas vidas um insuportável sofrimento cotidiano,
pois esse brilho que eles tanto reivindicam, parece-lhes evanescente, pulverizado e indiferenciado no social, podendo ser todo mundo e ninguém ao
mesmo tempo, ou seja, pouco importa de que lugar advenha este olhar, pois
o que importa mesmo é, simplesmente, atestar as insígnias que ele supõe
que o outro lhe endereça, insígnias de morte. Isto os leva a se defrontarem
com um horizonte que tende a se dissipar constantemente, restando-lhes o
arrombamento, a violação, a captura, ou seja, um verdadeiro “vale tudo”,
como tentativa de testar todas as possibilidades para fisgar um naco de
olhar, ainda que, para isto se dar, seja necessário ir para a prisão ou, até
mesmo, pagar com a própria vida. Neste sentido, sua lógica especular de
supor que o outro requer a sua perda, pode levá-lo ao encontro de uma prisão
real, como uma espécie de materialização do cárcere subjetivo que vive,
confirmando assim, a hipótese suposta no campo do Outro.
A peculiaridade do sofrimento psíquico que o apelo deste olhar produz
nestes sujeitos mostra-nos apenas alguns dos inúmeros questionamentos e
desafios deste trabalho. É preciso considerar também que, precipitadamen-
te, podemos supor, que o adolescente infrator não possui demanda de análise, pois geralmente a busca de tratamento segue uma prescrição jurídica,
a qual, muitas vezes, comporta um pedido explícito de padronização às normas que regem um convívio social harmonioso. O que, por sua vez, requer
um delicado manejo transferencial, sobretudo no que diz respeito às demandas corretivas e adaptacionistas, tão evidentes nas falas das fontes
encaminhadoras, interrogando sensivelmente o lugar do psicanalista mediante a demanda que lhe é endereçada.
É neste sentido que estes adolescentes vão testar até que ponto o
psicanalista deseja escutá-lo, ou simplesmente, responder do lugar de uma
engrenagem que está “perfeitamente” instrumentalizada com manuais
psicologizantes e saberes generalistas, ou até mesmo, em sintonia com as
violentas burocratizações instituicionais para situá-lo nos perigosos, senão
perversos, caminhos do bem. Muitas vezes, esta dúvida inicialmente se
manifesta através de endereçamentos pejorativos e, até mesmo, com uma
certa assepsia de “desqualificação” do trabalho suposto no lugar do analista,
como por exemplo, “e aí, trouxa...”, esta foi a primeira palavra endereçada
por um menino quando nos encontramos pela primeira vez. Em outros momentos, o repúdio à análise poderá estar ordenado a partir de um enunciado
que tende a se repetir de forma muito intensa, qual seja: “desista de mim”.
Ao nos depararmos com esta prática, perceberemos a força da suposição
que, na verdade, recai no sujeito com o estatuto de uma sentença, a saber:
o seu entorno deseja a sua perda. O sentimento de desamparo e a necessidade de reativá-lo a qualquer custo, jogam-o numa constante repetição de
insistir por diversos mecanismos que desistam dele, mesmo porque isto
comprovaria sua hipótese de que o outro lhe endereça insígnias de morte.
Isto nos leva a supor que a escuta de adolescentes em conflito com a
lei tem como princípio ético fundamental, semelhante a qualquer outro trabalho clínico, acolher e apostar nas palavras enunciadas pelo analisante. Diante disso, é somente a partir do reconhecimento de sua condição desejante,
ou seja, não segregando os ouvidos na dimensão do ato violento/infrator do
qual o sujeito é autor, que viabiliza-se um espaço possível de escuta de
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“algo” que singularmente pode se constituir enquanto demanda em suas
falas. Entretanto, este “algo” não se trata de qualquer coisa, ou até mesmo,
de “algo” que possamos julgar importante ou essencial para o tratamento.
Trata-se apenas de um detalhe que, aos olhos do adolescente, possa ser
reconhecido como um testemunho de sua história. Isto requer a sensibilidade do psicanalista em apontar determinados significantes presentes no discurso do analisante, os quais, além de situarem a sua condição de desamparo, evidenciam o lugar de ignorância acerca do que se passa com ele.
Caso contrário, o adolescente em conflito com a lei continuará vindo ao analista, simplesmente, para responder ao ordenamento jurídico que lhe é imposto.
É justamente nesta condição de reconhecimento da ignorância do
sujeito, em relação aos impasses que, sobretudo, ele os reconhece enquanto tal, que reside a possibilidade do início de um trabalho psicanalítico. Conforme ressalta Lacan (1953), se o sujeito não se posiciona num lugar de
ignorância, não existe entrada possível numa análise, pois é essa posição
que poderá implicá-lo na pesquisa da verdade, ocasionando, assim, uma
espécie de abertura à transferência.
Como podemos perceber, a leitura de Lacan pode trazer importantes
contribuições neste complexo, inquietante e obscuro universo. Destacamos
neste momento, dois clássicos de sua obra: “Introdução teórica à função de
psicanálise em criminologia”, pois ao propor uma discussão sobre os complexos caminhos do crime, percebe a necessidade de recorrer ao tema do
desamparo na história do sujeito; assim como, “Agressividade em psicanálise”, onde o autor refere que uma suposta ranhura na imagem idealizada,
pode desencadear uma espécie de desmantelamento da imago, da identificação original, o que pode levar o sujeito a precipitar-se num ato violento.
Portanto, Lacan lança algumas luzes para refletirmos acerca das possibilidades de direção de tratamento com adolescentes em conflito com a
lei, convocando-nos a acolher os significantes que no transcorrer do processo analítico situam o desamparo vivenciado pelo sujeito ao longo de sua vida,
deixando-o jogado num excesso de excitação que não pôde ser suficiente-
mente simbolizada face ao eminente desmantelamento da sua própria imago.
Isto nos parece fundamental, pois entendemos que o sujeito, impotente em
face dessa posição de desamparo, pode encontrar como defesa, possível e
eminente, o ataque ao outro, ou seja, o desamparo vivenciado retorna através da impactante crueza que o real da violência lhe impôs. Então, ao tocarmos nesses significantes, possivelmente, estaremos possibilitando-lhe uma
certa apropriação simbólica de “algo” que poderia lhe precipitar num ato real,
aniquilador de sua subjetividade, ou até mesmo, mortífero.
Enfim, o trabalho implica uma certa paixão pelo detalhe, detalhe esse
que busca um testemunho na medida em que parece enunciar algo da dimensão do sofrimento do outro, quer seja: um “canal”, um “tomate” ou, até
mesmo, um “trouxa”. Como sabemos, a clínica psicanalítica nasceu da paixão de Freud pelos detalhes (sonhos, atos falhos, chistes, sintoma histérico), ainda que estes fossem considerados uma espécie de lixo para o modelo de ciência vigente em sua época. A partir da ressignificação destes detalhes, talvez o adolescente em conflito com a lei, não precise mais responder
ao imperativo de viver tão rápido e, tampouco, morrer tão jovem.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CORSO, M. A cena primária do psicanalista. In: Narrativas em psicanálise. Correio da APPOA. Porto Alegre, nº.133, março, 2005.
ENDO, P. A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico sobre as
violências na cidade de São Paulo. São Paulo: Escuta/Fapesp, 2005.
FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900) In: Obras completas. Trad. Jaime
Salomão Edição Standart brasileira, vol.IV, Rio de Janeiro, Imago, 1996.
_________. As pulsões e os destinos da pulsão (1915) In: Obras Completas.
Trad. Jaime Salomão, Edição Standard brasileira, vol. XIV, Rio de Janeiro,
Imago, 1996.
LACAN, J. O Seminário – Livro 1 : Os escritos técnicos de Freud (1953-54). Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1996.
_________. Agressividade em psicanálise (1948). In: Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998, p.104-125.
_________. Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia (1950).
In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p 127- 151.
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SEÇÃO DEBATES
ENTREVISTA COM PAULO ENDO
Nesta entrevista, a equipe do Correio da APPOA propôs algumas questões a respeito da temática desse número.
Correio da APPOA: O seu livro, recentemente publicado pela FASEP/
ESCUTA: ”A violência no coração da cidade – um estudo psicanalítico sobre
as violências na cidade de São Paulo”, recebeu o prêmio Jabuti – 2006, na
categoria Educação, Psicologia e Psicanálise. Acreditamos que esse é
um importante reconhecimento na cultura do trabalho de um pesquisador,
diante disso, gostaríamos que você pudesse falar um pouco acerca da leitura que fizestes deste momento, bem como, das interessantes relações presentes no título entre violência, corpo e cidade.
Paulo Endo – Primeiro, gostaria de agradecer a possibilidade de conversar com os leitores do Correio sobre este trabalho. Lembro com prazer do
número do Correio que, junto com meu grande amigo Edson Sousa, organizamos há um tempo atrás intitulado “As faces da Violência”. Queríamos,
naquele momento, indicar a importância fundamental das diferentes expressões faciais, epidérmicas das violências a partir da leitura de alguns psicanalistas que já trabalhavam nesse campo interdisciplinar e tenso, onde se
discute clínica e sociedade, metapsicologia e teoria política.
O mais importante é que as expressões façais das violências não
podem, de modo algum, serem negligenciadas por quem quer que queira
refletir sobre seu impacto; isto porque em uma série imensa de situações o
modo da expressão da violência define quase tudo do ponto de vista social e
político. Por exemplo, a fobia coletivizada, sempre mosaica, mas coletivizada
pode ser apaziguada com a boa informação ou com a truculência dos agentes de segurança públicos nas ruas. São expressões epidérmicas, mas radicalmente diferentes uma da outra. Em geral, no Brasil, sempre se optou pelo
segundo caminho. Para nós, psicanalistas, há sempre um trabalho adicional
nesse caso. Temos de nos debruçar sobre alguns pontos bastante comple-
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ENDO, P. Entrevista.
xos e centrais, que são exatamente os mesmos problemas que Freud e o
grupo freudiano enfrentou nas várias incursões do pensamento freudiano em
direção aos fenômenos sociais e políticos. Ou seja, não podemos aceitar
acriticamente usos analógicos transpostos dos processos de singularização
vigentes na situação analítica para a leitura dos fenômenos sociais. Assim,
termos como sintoma social, superego da cultura, fobia social, sociedade
traumatizada e outros, utilizados as pressas por psicanalistas ou não, recaem numa mercadologia do uso social da Psicanálise que não nos ajuda, e
pior, não contribui em quase nada no debate interdisciplinar.
Creio que o uso analógico de termos psicanalíticos, recai num conformismo teórico que não pode nos fazer avançar neste debate, sendo de pouca importância tanto para a psicanálise quanto para outros saberes. Então
propus, em meu livro, um debate interdisciplinar tendo como ponto de partida
as descrições fundamentais desta face epidérmica, complexa e fundamental
das violências, dialogando, sobretudo, com a antropologia urbana e o pensamento social contemporâneo que, por sua vez, indicaram a direção de minha
pesquisa metapsicológica.
A alegria do prêmio foi sentir que o mais importante prêmio literário do
país reconheceu e compreendeu estas minhas preocupações e este meu
projeto, embora o livro represente apenas o início deste trabalho.
Correio da APPOA: Em que medida a complexa relação da violência
urbana, geralmente consagrada como campo de investigação da sociologia,
história e antropologia, pode ser compreendida a partir das formulações
conceituais psicanalíticas?
Paulo Endo – Esta é uma pergunta importante. A violência urbana é a
violência institucional, ela compreende estas formações e sistemas violentos que se enraízam em determinados contextos e que neles adquire uma
capacidade de multiplicação extraordinária. Se no debate sobre a violência
intra-familiar, a violência de gênero, a violência contra a criança sempre há
um lugar reservado para o psicanalista e para o psicólogo, o mesmo não
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 153, dezembro 2006.
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SEÇÃO DEBATES
ENDO, P. Entrevista.
acontece quando se trata da violência do Estado, da violência dos aparatos
de segurança pública, a violência dos esquadrões da morte, a violência dos
homicídios. Há diversas razões para isto. Por um lado a prática clínica, o
dispositivo clínico pode ser transportado inteiramente para o trabalho com as
famílias, casais e crianças. Ele não é tecnicamente afetado e é imediatamente aceito e assimilado nas equipes interdisciplinares. Algo completamente diferente ocorre com as violências institucionais. Sua base não é o
sujeito violento mas o grupo, a corporação, o aparato, o Estado, a nação que
não podem, em momento algum, serem negligenciadas nas considerações
sobre a violência nas cidades. Diante destes conglomerados e sistemas
parece não haver lugar para o psicanalista trabalhar. Como se só restasse a
eles patologizar o sujeito criminoso. Quando isto é feito os limites do conhecimento psicanalítico são mediocremente reduzidos e suas ambições
interdisciplinares fracassam.
Minha opinião vai numa direção completamente diferente. Creio que a
escuta analítica pode restaurar e contribuir enormemente para discriminar,
diferenciar os inúmeros processos em jogo que conduzem os sujeitos inscritos nesses sistemas a aderir, a recusar, se alienar e a se disporem a matar
ou a morrer no interior destes sistemas. Este trabalho, entretanto supõe a
sustentação tensa, teoricamente falando, entre a escuta psicanalítica do
sujeito inscrito aí e as repercussões dessa inscrição na dinâmica desses
sistemas, momento em que precisamos dialogar com outros pesquisadores
e com os movimentos sociais.
O que o pensamento social, os pesquisadores da área da segurança
pública e as muitas lideranças do movimento social tem mostrado de forma
esclarecedora e exemplar é que processos singulares de aliciamento, proteção, sobrevivência, identificação e resistência obedecem a um fluxo cujos
padrões estão cada vez mais enraizados subjetiva e geograficamente. Para
isso não precisaram da ajuda dos psicanalistas, mas o aprofundamento dessas questões requer a contribuição da Psicanálise.
São várias cidades numa mesma cidade onde os cidadãos se definem por suas diferenças em relação ao risco de vida que correm. Alguns
mais ou menos vulneráveis que outros, vidas mais ou menos importantes
que outras. O paradoxo da aceitação da subalternidade, da auto-exposição
dos corpos dos sujeitos vulneráveis ao risco e da resignação à própria
matabilidade, fenômenos antigos no Brasil, são focos centrais das pesquisas sobre a violência urbana.
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Correio da APPOA: Em seu artigo “Tortura aspectos psicológicos”,
você faz uma importante observação dizendo-nos: “Quando a imprensa se
desinteressou pelo tema porque o assunto saiu de moda; quando a sociedade
civil já não debate, nem suporta mais ouvir sobre seu passado recente é o
momento em que a tortura se reinstala no corpo do torturado, como um grito
silencioso que não pode mais ser escutado. Assim a experiência traumática
adquire uma outra virulência: a do desconhecimento e da invisibilidade”. Isto
nos levou a pensar em qual aproximação que o senhor faz entre tortura e
estupro com o conceito freudiano de neurose traumática? E ainda,
existiria uma especificidade da direção do tratamento com padecimentos
desta natureza?
Paulo Endo – Há dois aspectos importantes que exigem considerações maiores, vou tentar simplificar. Há necessariamente um reconhecimento público, que determina e orienta a nossa freqüentação pelas cidades. Não
nos movemos de forma absolutamente livre e nem aleatória em qualquer
cidade em que estivermos. Há um índice de previsibilidade em nossa circulação cívica que é o que nos permite andar desarmados, por exemplo. Se,
como na idade média, houvesse o risco constante de ser pego em alguma
emboscada, saque ou ataque surpresa a arma seria uma condição de nossa
circulação.
A tortura política no Brasil degradou o espaço cívico e criou a figura do
elemento surpresa. Ninguém está seguro em sua circulação pelo espaço
público. Todos são suspeitos e podem ser traumatizados. Alvos de uma
violência abrupta que ocorre sem aviso e sem previsão. Desde então, a prática da tortura no Brasil, tornou-se um hábito de nossas polícias e a violação
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SEÇÃO DEBATES
do corpo do cidadão, uma possibilidade. A diferença é que agora se trata
mais ostensivamente do corpo do pobre e não do militante. Estes não têm
influência e voz pública. O difícil acesso à justiça e a irrelevância de suas
mortes para as várias mídias torna a violação de seus corpos um evento
privado, distinto dos eventos públicos que, como tais, deveriam ser reparados, tanto quanto possível, na cena pública.
A ausência radical deste nível imprescindível de reparação desloca o
sujeito violentado para o segredo, o silencio, a interiorização muda e a
privatização da sua dor. De certo modo, quando o paciente chega ao consultório do analista, o que está em jogo é o necessário e incerto compartilhamento
do não-dito e o desejo de ruptura com a privatização da dor, que de outro
modo, ficaria à deriva das experiências alteritárias e linguageiras, relegadas
ao ato e ao sintoma.
Um dos aspectos relevantes, psicanaliticamente falando, é a reflexão
sobre o reconhecimento do trauma. Reconhecimento que no par analítico
ocorre por via de afetos mobilizados no analista e originados ali, no espaço
analítico, isto é, não necessariamente de natureza propriamente
transferencial, mas são afetos originais, digamos assim. Como se o reconhecimento daquela intensidade traumática mobilizada na sessão tivesse a
força de gênese, onde a pulsão de morte seria parcialmente estancada,
diante do encontro libidinal que possibilita o reconhecimento do trauma.
O desconhecimento a posteriori do trauma, Freud já o disse, é a força
motriz da repetição, em geral violenta.
ENDO, P. Entrevista.
Paulo Endo – Exatamente. Em geral, o suspeito é uma vítima preferencial e quem suspeita um acusador imaculado. Se, com Totem e Tabu,
reconhecermos que a atualização das leis, regras, contratos e normas só
são possíveis se rememorarmos o sangue fresco que escorre em nossas
mãos, após a morte do tirano, então teremos uma leitura mais realista de
ultrapassamento das formas dicotômicas e caducas para lidar com a questão das violências.
Correio da APPOA: Atualmente, constata-se uma sensível degradação dos espaços públicos, sobretudo, nas grandes cidades, o que de alguma forma limita as possibilidades de circulação do sujeito, bem como, do
exercício pleno de sua condição de cidadão. A recuperação destes espaços
pode contribuir para minimizar a geração de atos violentos?
Correio da APPOA: Quando se aborda o tema da violência, seja através
de repertórios silenciosos e sutis, seja mediante situações de grande impacto
e repercussão social, é muito comum adotarmos uma posição vitimizada, supondo-a sempre no campo do outro, colocando-o assim, no lugar de suspeita, o
que pode jogar o sujeito no desenvolvimento de infindáveis estratégias para
se proteger dos supostos inimigos. Isto seria uma espécie de negação da violência que nós mesmos exercemos na relação com outro, contribuindo assim, para o aumento de suas materializações no cenário contemporâneo?
Paulo Endo: Pode, mas não é tudo. Recuperação de espaços públicos implica em dispositivos de manutenção desses espaços para que não
sejam novamente deteriorados, nesse caso as estratégias são sempre conjuntas, múltiplas e permanentes. A recuperação e manutenção do convívio
citadino está na ossatura desse processo. A importância em se reconhecer
causas, conseqüências e seqüelas das violências caminha lado a lado com
a necessidade de reconhecer que há também o irreparável, danos subjetivos que não podem ser reparados; são eles que permitem relembrar continuamente o mal que podemos fazer a nós mesmos.
Recentemente vi uma iniciativa do Memorial da Paz em Hiroshima
que foi muito impressionante. Mais de sessenta anos depois da explosão da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki a população foi convidada a trazer para o museu objetos representativos do ataque atômico
americano a Hiroshima em 1945. Muitos objetos foram trazidos. Objetos
de casa e pertences de entes queridos que ainda permaneciam com as
pessoas 60 anos após o ocorrido. Louças, roupas, fotos, cartas e uma
porção de pequenos objetos foram trazidos enriquecendo o acervo do
Memorial. No convite explicitava-se o desejo de compartilhar sentimen-
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SEÇÃO DEBATES
tos diante de experiências e perdas jamais esquecidas ou devidamente
reparadas.
Os doadores, que haviam guardado cuidadosamente esses objetosvestígios daqueles que amavam, sessenta anos depois os entregavam ao
público e ao futuro para não serem mais esquecidos, precisamente em sua
dimensão irreparável. Sem dúvida, as mortes em nosso país já são merecedoras de muitos memoriais como esse.
Correio da APPOA – Quais seriam as implicações subjetivas que a
violência urbana produz nos habitantes das grandes cidades?
Paulo Endo: Inúmeras. Falamos de algumas, as pesquisas subseqüentes-intermináveis nos ajudarão a reconhecê-las. Essas implicações não
são apenas subjetivas, por isso é preciso sondá-las em seus processos de
coletivização que, uma vez deflagrados já não são regidos apenas por dinâmicas e processos inconscientes mas adquirem forma, estratégia e são
instrumentadas por grupos e setores específicos da sociedade com objetivos bem determinados e planejados.
O sujeito traumatizado, por exemplo, é aliciado em discursos e práticas sociais cujos padrões de repetição são instrumentados segundo estratégias bem determinadas. Quando um secretário de segurança pública se
permite agir reativamente diante de situações críticas, como ocorreu em São
Paulo em maio e junho deste ano, está chamando para si o direito de responder, de forma imediatista, ao suposto trauma da população. Ao fazê-lo,
iguala-se ao traumatizado sem sê-lo e abre mão de seu papel de liderança
política, cujo dever é buscar formas mediação diante dos conflitos sociais.
Instaura-se então o pânico que se coletiviza fortalecendo padrões de conduta violentos, sem qualquer conseqüência a médio e longo prazo, senão o
fortalecimento dos sistemas violentos.
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OLIVEIRA, I. M. A. DE. Paixão pela morte...
PAIXÃO PELA MORTE NA VIDA DOS
“PASSIVOS MENINOS VIOLENTOS”
Iza Maria Abadi de Oliveira 1
D
urante o final de semana repleto de homenagens às mães (maio/
2006), assistimos um massacre da “paixão pela morte”: criminosos
ligados ao PCC (Primeiro Comando da Capital) provocaram atentados e rebeliões em prisões estaduais, atacando delegacias de polícia, agências bancárias, incendiando ônibus. No decorrer daquela semana, mais de
160 pessoas morreram, entre policiais e suspeitos pelos ataques.
São muitos elementos que servem para distintas perspectivas de análise acerca deste “ato terrorista” ocorrido na maior capital do país; destacaremos aqui um destes aspectos na tentativa de situar a sensação de horror
que as imagens/reportagens nos causaram – sentimento esse que, facilmente, pode nos convocar a posições guiadas pelo fascínio do horror.
Acaso a frase de um dos integrantes do PCC acerca de seu ato – “Era
uma ordem” – não remete a uma posição análoga, senão próxima, ao depoimento de Eichmann? Este, no seu julgamento, considerou a vontade de
Hitler inquestionável, sendo assim, procederia da mesma forma, se assim a
“obediência exigisse”. É certo que tanto o Nazismo quanto esse “terrorismo”
se organizaram em torno de causas distintas; no entanto, encontramos elementos concomitantes nessas estruturas tirânicas de poder. Ou seja, as
posições de paixão pela dominação, de paixão por um Outro absoluto, tirânico, numa relação de gozo, de assujeitamento. Relações que só podem produzir morte. O funcionamento deste tipo de estrutura remete ao conceito de
“montagem perversa”, noção criada pelo psicanalista Contardo Calligaris 2.
1
Psicóloga, mestre em Literatura Brasileira pela UFSM, membro do Laboratório de
Psicopatologia Fundamental da Unicamp e do Espaço Psicanalítico de Ijuí, RS.
2
Num artigo na Folha de São Paulo (13/5/2006), ele referencia que, frente à extenuante
tarefa de ser sujeito na modernidade, o sujeito se oferece como instrumento a um grupo,
pois há “grupos que oferecem férias, férias da subjetividade”. A isso ele chama de “paixões
de grupo”.
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SEÇÃO DEBATES
Por exemplo: quando membros do PCC incendiaram ônibus e alçaram suas metralhadoras, certamente não estavam inscritos na “livre escolha
moderna”, ou a indagação shakespeariana “ser ou não ser”. Talvez, não houvesse dúvida entre a vida e a morte, talvez entre a morte e a morte (o que não
há diferença) – mate ou morra. Há, portanto, aí uma montagem: de um lado
um Outro tirânico (imperativo de um grupo); de outro, a subserviência a estes
mandatos. Este tipo de estrutura só pode levar à paixão pela morte – o
extermínio da diferença. Cabe ressaltar o item nº 9, do Estatuto da Organização: “O partido não admite mentiras, traição, inveja, cobiça, calúnia, egoísmo, interesse pessoal, mas sim: a verdade, a fidelidade, hombridade, solidariedade e o interesse comum ao bem de todos, porque somos um por todos
e todos por um.” Pacto perfeito para produzir a morte. O que as relações
totalitárias produzem é um massacre que se situa tanto na ordem subjetiva
como no puro corpo. A servidão absoluta ao Outro produz a morte.
Esses seres que executaram os ataques fazem parte, na organização, dos endividados. Não conseguindo pagar seus encargos mensais para
com a organização, foram cobrados, tiranicamente, sob forma de executar
tais crimes. O psicanalista francês Charles Melman, num estudo sobre delinqüência, refere que quando as estruturas sociais são reais, se paga com o
simbólico3. Assim, o ato delinqüente seria uma tentativa do sujeito se inscrever como sujeito numa rede social. Dessa forma, “pagam suas dívidas” como
parte e representantes de uma organização. No entanto, por esta não ser
simbólica, o pagamento é no Real do corpo – de si e do outro – numa posição de completos instrumentos de morte: “Homens-bombas”, “bin ladens”,
como são denominados.
Nota final (não menos importante): este partido foi criado num jogo de
futebol. Na quadra do Piranhão, oito presos fundaram o Primeiro Comando
da Capital, também chamado de Partido do Crime e de 15.3.3 em relação à
ordem posicional das letras “P” e “C” no alfabeto. Uma das razões dos “ata-
OLIVEIRA, I. M. A. DE. Paixão pela morte...
ques terroristas” a que assistíamos no Dia das Mães, juntamente como forma de retaliação à decisão do governo estadual de isolar lideranças da facção, foi a privação de televisores para membros do PCC assistirem à Copa
do Mundo. Uma interpretação possível: uma vez que não puderam ter a sorte
e o talento de serem um pobre menino rico, como os “Ronaldinhos”, os
“passivos meninos violentos” cobravam no corpo do Outro a falta de relação
amorosa, intermediada pela palavra, que lhes possibilitasse outro lugar simbólico. Sem a mãe-pátria, tornam-se instrumentos à mercê de um Outro
tirânico, que lhes exige uma entrega absoluta: “somos um por todos e todos
por um”. Com atos reais buscam exterminar um corpo materno, interditado,
que, por não lhes possibilitar uma transmissão amorosa, lhes delegou a
paixão pela morte.
3
Melman, C. Alcoolismo, delinqüência e toxicomania: uma outra forma de gozar. São Paulo:
Escuta, 2000.
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RESENHA
RESENHA
REVISTA DA APPOA N° 30 –
NARRAR CONSTRUIR
INTERPRETAR
Associação Psicanalítica de Porto Alegre. N° 30, 2006.
Porto Alegre: APPOA. 234p.
“
N
arrar Construir Interpretar” é o título da
última edição da revista da APPOA. Po
deríamos nos perguntar por que não há
vírgula entre os verbos. Serão sinônimos? Uma
seqüência? Estarão escalonados como na capa?
Três estrofes de uma poesia? Mero acaso? Questões que, sob o meu ponto de vista, repercutem
ao longo dos textos que compõem esta edição.
Narrar, construir, interpretar... Verbos que nos atravessam cotidianamente na prática clínica. Esta edição também nos atravessa, fazendo-nos
parar para pensar... Criar um tempo de suspensão...
A diversidade dos textos reunidos remete ao estilo de cada autor – às
vezes, quase nos é possível escutar a voz de quem escreve – e à possibilidade de encontros de diferença compartilhada. São textos que exprimem processos de produção e de autoria do pensamento analítico. Mesmo que, em
vários momentos, seus autores já iniciem seus relatos demarcando que se
trata de uma questão pontual ou de um ensaio.
Nesta edição, encontramos um fértil debate com as questões que a
contemporaneidade nos coloca, seja na forma de exigências da clínica ou
por desassossegos à teoria provocados com o impacto de certos textos
literários, filmes ou outras produções da atualidade.
O que narramos? Por que narramos? Qual o papel da memória? Quais
suas relações com a temporalidade? Trabalhado, a partir dos conceitos de
antecipação e de a posteriori, o primeiro artigo de imediato nos lança a estas
questões. Fato interessante é que, de uma forma caleidoscópica, estes
questionamentos seguem nos tocando nos textos seguintes, seja nos arti-
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gos aparentemente mais relacionados ao fazer clínico, como aqueles que se
referem aos modos de narrativa da neurose, da psicose e da melancolia,
seja nos trabalhos que utilizando-se da literatura, da dança e da discussão
da ciência nos colocam a pensar sobre a pluralização das tentativas de
inscrição psíquica na contemporaneidade.
É marcante nesta revista o entrelaçamento das produções da cultura
com o fazer analítico. Sem abrir mão do passado, avança-se na construção
de novos conceitos. Trata-se de uma revista onde a riqueza da produção
autoral está na constatação de que cada artigo traz uma problematização
própria calcada na transferência dos autores com a psicanálise. Deste modo,
há implicação daqueles que escrevem no seu fazer.
Para a seção “Recordar, repetir e elaborar”, dispomos de um fragmento de “Interpretações psicanalíticas dos contos de Edgar Allan Poe” de Marie
Bonaparte. Neste texto, a psicanalista interpreta a obra de Poe, tensionandoa com a biografia do autor. A contribuição deste fragmento situa-se na possibilidade de lermos uma construção psicanalítica datada que buscava na
interlocução com a literatura um espaço para abordar as suas próprias questões conceituais.
Na seção “Entrevista”, sob o título de “Narrativas do infantil”, contamos com a entrevista de Diana e Mário Corso, que versa sobre o caminho de
dois psicanalistas acerca da apropriação e construção teórica no campo da
psicanálise e da cultura. A partir da discussão sobre a escrita do livro “Fadas
no Divã”, Mário e Diana Corso debatem sobre as narrativas do infantil, tendo
o cuidado de contextualizar todas as afirmações, o que denota o respeito
conceitual e a abertura dos autores à aprendizagem com a experiência da
clínica, da escrita e da cultura. Trata-se de uma entrevista que remete à
inscrição de saber de dois analistas que, ao escreverem, compartilham e
fazem avançar o conhecimento psicanalítico.
A edição “Narrar Construir Interpretar” é diversificada, o que nos dá a
possibilidade de várias escolhas. Assim, caberá a cada leitor escolher o
texto que, naquele momento, parecer melhor compor a sua narrativa, em um
link ou em uma ruptura necessária com o que lhe passa. É uma revista para
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RESENHA
AGENDA
ler e reler com calma, compondo o tempo de uma suspensão de saber necessária às novas aprendizagens.
Luciana Fim Wickert
DEZEMBRO – 2006
Dia
07, 14
e 21
07
01 e 15
04 e 18
01 e 08
14
Hora
19h30min
Local
Sede da APPOA
Atividade
21h
8h30min
20h30min
15h15min
20h30min
Sede da APPOA
Sede da APPOA
Sede da APPOA
Sede da APPOA
Sede da APPOA
Reunião da Mesa Diretiva
Reunião da Comissão de Eventos
Reunião da Comissão de Aperiódicos
Reunião da Comissão do Correio
Reunião da Comissão da Revista
Reunião do Serviço de Atendimento Clínico da APPOA
PRÓXIMO NÚMERO
DANÇA
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Revista da APPOA
e
Correio da APPOA
Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events
in the last decade. London, Hogarth, 1992.)
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2a Tesoureira: Ester Trevisan
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S
U
M
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R
I
EDITORIAL
NOTÍCIAS
SEÇÃO TEMÁTICA
TORTURA:
ASPECTOS PSICOLÓGICOS
Paulo Endo
VIOLÊNCIA E ASPECTOS
DO CONSTITUINTE
Sonia Maria Bley
ESTAMIRA – UMA MULHER
COM QUALIDADES
Edson Luiz André de Sousa
DESAMPARO E VIOLÊNCIA:
O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM
A LEI E A BUSCA DESESPERADA
PARA ENLAÇAR M OLHAR
Norton Cezar da Rosa Jr
SEÇÃO DEBATES
ENTREVISTA
Paulo Endo
PAIXÃO PELA MORTE NA VIDA DOS
“PASSIVOS MENINOS VIOLENTOS”
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NARRAR CONSTRUIR INTERPRETAR
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AGENDA
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DEZEMBRO – 2006
VIOLÊNCIAS
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