Coleção CONPEDI/UNICURITIBA Vol. 26 Organizadores Prof. Dr. Orides Mezzaroba Prof. Dr. Raymundo Juliano Rego Feitosa Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira Profª. Drª. Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr Coordenadores Profª. Drª. Helena Elias Pinto Prof. Dr. Manoel Messias Peixinho DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS II 2014 2014 Curitiba Curitiba Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE D597 Nossos Contatos São Paulo Rua José Bonifácio, n. 209, cj. 603, Centro, São Paulo – SP CEP: 01.003-001 Acesse: www. editoraclassica.com.br Redes Sociais Facebook: http://www.facebook.com/EditoraClassica Twittter: https://twitter.com/EditoraClassica Direitos sociais e políticas públicas II Coleção Conpedi/Unicuritiba. Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira / Viviane Coêlho Séllos-Knoerr. Coordenadores : Helena Elias Pinto/Manoel Messias Peixinho. Título independente - Curitiba - PR . : vol.26 - 1ª ed. Clássica Editora, 2014. 494p. : ISBN 978-85-8433-014-0 1. Saúde. 2. Educação. 3. Previdência - trabalho. I. Título. CDD 341.2722 EDITORA CLÁSSICA Conselho Editorial Allessandra Neves Ferreira Alexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves Fernando Knoerr Francisco Cardozo de Oliveira Francisval Mendes Ilton Garcia da Costa Ivan Motta Ivo Dantas Jonathan Barros Vita José Edmilson Lima Juliana Cristina Busnardo de Araujo Lafayete Pozzoli Leonardo Rabelo Lívia Gaigher Bósio Campello Lucimeiry Galvão Equipe Editorial Editora Responsável: Verônica Gottgtroy Capa: Editora Clássica Luiz Eduardo Gunther Luisa Moura Mara Darcanchy Massako Shirai Mateus Eduardo Nunes Bertoncini Nilson Araújo de Souza Norma Padilha Paulo Ricardo Opuszka Roberto Genofre Salim Reis Valesca Raizer Borges Moschen Vanessa Caporlingua Viviane Coelho de Séllos-Knoerr Vladmir Silveira Wagner Ginotti Wagner Menezes Willians Franklin Lira dos Santos XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBA Centro Universitário Curitiba / Curitiba – PR MEMBROS DA DIRETORIA Vladmir Oliveira da Silveira Presidente Cesar Augusto de Castro Fiuza Vice-Presidente Aires José Rover Secretário Executivo Gina Vidal Marcílio Pompeu Secretário-Adjunto Conselho Fiscal Valesca Borges Raizer Moschen Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa João Marcelo Assafim Antonio Carlos Diniz Murta (suplente) Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente) Representante Discente Ilton Norberto Robl Filho (titular) Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente) Colaboradores Elisangela Pruencio Graduanda em Administração - Faculdade Decisão Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira Graduada em Administração - UFSC Rafaela Goulart de Andrade Graduanda em Ciências da Computação – UFSC Diagramador Marcus Souza Rodrigues Sumário APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................ 14 A DIVERSIDADE E O PLANEJAMENTO: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA O PLANEJAMENTO URBANÍSTICO PARTICIPATIVO PLURAL (Frederico Garcia Guimarães) ................................................... 19 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 21 A DIVERSIDADE ......................................................................................................................................... 22 O PLANEJAMENTO .................................................................................................................................... 29 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 33 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 36 A PESSOA EM CONDIÇÃO ESPECIAL DE DESENVOLVIMENTO E A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL (Maria da Glória Colucci e Marta Marília Tonin) ................................................ 38 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 39 A PESSOA EM DESENVOLVIMENTO ......................................................................................................... 40 O ESTATUTO: DIALOGANDO COM A LEI MAIOR ...................................................................................... 53 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 59 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 61 A TEORIA GERAL DO GARANTISMO E A ESTRITA LEGALIDADE APLICADA A DIREITOS SOCIAIS: O EXEMPLO DA LEI 12.010/2009 (Francisco José Rodrigues de Oliveira Neto) ............................................. 63 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 64 A TEORIA GERAL DO GARANTISMO ......................................................................................................... 65 AS MUDANÇAS PROVOCADAS PELA INTRODUÇÃO DO GARANTISMO JURÍDICO EM UM MODELO DE POSITIVISMO CLÁSSICO ...................................................................................................................... 70 A TÍTULO DE CONSIDERAÇÕES FINAIS: A LEI 12.010/2009 COMO UM EXEMPLO DE APLICAÇÃO DA ESTRITA LEGALIDADE E A LIMITAÇÃO POSITIVA DA ATIVIDADE JURISDICIONAL ................................. 78 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 85 A TERCEIRIZAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E OS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE (Marcos de Oliveira Vasconcelos Júnior) ................................................................................................................... 86 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 86 TERCEIRIZAÇÃO ........................................................................................................................................ 87 TERCEIRIZAÇÃO NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ............................................................... 88 TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE .............................................................................. 91 TERCEIRIZAÇÃO NA ÁREA DE SAÚDE POR MEIO DE ORGANIZAÇÕES SOCIAIS .................................... 96 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 99 REFERÊNCIA .............................................................................................................................................. 100 CRISE DA PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA: CONSIDERAÇÕES SOBRE OS FATORES QUE COMPROMETEM A PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS E BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS (Raul Lopes de Araújo Neto) ............................................................................................................................................... 102 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 103 MUDANÇAS SOCIAIS: CRISE DO BEM ESTAR SOCIAL E O ESTADO REGULADOR ................................... 103 A INEFICIÊNCIA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL NO BRASIL ........................................................................... 109 CONCLUSÕES ............................................................................................................................................ 115 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 116 DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL: A ESCASSEZ DE CRECHES E PRÉ-ESCOLAS E A VIOLAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO (Ivan Dias da Motta e Luiz Fellipe Preto) ............................................................... 119 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 120 ESBOÇO HISTÓRICO DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL ................................................................... 121 A OBRIGATORIEDADE DO DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL JUNTO AO TEXTO CONSTITUCIONAL DE 1988 ............................................................................................................................................................ 122 O DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ............................... 125 O DIREITO À EDUCAÇÃO E A LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL ............................... 126 O DIREITO À EDUCAÇÃO E O CÓDIGO PENAL .......................................................................................... 126 DA CARÊNCIA DE CRECHES E PRÉ-ESCOLAS. CARÊNCIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS? ............................... 127 DA INEXISTÊNCIA DE IMPEDIMENTO PARA CONSECUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM FACE DO PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL ..................................................................................................... 128 DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA INERENTE À OBRIGATORIEDADE DE VAGAS EM CRECHES E PRÉ-ESCOLAS PARA EDUCAÇÃO INFANTIL ........................................................ 132 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 135 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 135 DIREITO SOCIAL À SAÚDE: ANÁLISE A PARTIR DA PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO CASO BRASILEIRO (Aline Maria Hagers Bozo e Bárbara Guasque) ..................................................... 137 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 138 AS DIMENSÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................................................................... 139 OS DIREITOS SOCIAIS E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ................................................................ 141 OS DIREITOS SOCIAIS ................................................................................................................................ 144 O DIREITO SOCIAL À SAÚDE ..................................................................................................................... 147 COMPETÊNCIA DOS ENTES FEDERADOS QUANTO À SAÚDE ................................................................. 151 O MÍNIMO EXISTENCIAL E A RESERVA DO POSSÍVEL FRENTE À EFETIVIDADE DA PRESTAÇÃO ESTATAL ...................................................................................................................................................... 154 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 160 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 161 EDUCAÇÃO AMBIENTAL ENQUANTO INSTRUMENTO DE DEFESA E PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE (Andreza de Souza Toledo) ...................................................................................................... 164 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 165 EDUCAÇÃO AMBIENTAL ........................................................................................................................... 166 OBJETIVOS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL SEGUNDO A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 ................................................................................................................................... 171 EXPRESSÃO DA LEI Nº 9.795/1999 ............................................................................................................ 173 EXPRESSÃO DA LEI Nº 12.608/2012 E REFLEXOS NA LDB – LEI Nº 9.394/1996 ....................................... 175 O PAPEL DO ESTADO BRASILEIRO QUANTO À EDUCAÇÃO AMBIENTAL, INSTRUMENTO DE DEFESA E PRESERVAÇÃO AMBIENTAL ................................................................................................................... 178 POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ...................................................................................... 180 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 183 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 185 EMBARAÇOS ADMINISTRATIVOS ARBITRÁRIOS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL: CONSEQUÊNCIAS (Carlos Luiz Strapazzon e Maria Helena Pinheiro Renck) ............................................................................. 188 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 189 OS EMBARAÇOS ADMISTRATIVOS ARBITRÁRIOS E O DANO MORAL POR OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ..................................................................................................................................... 190 EMBARAÇOS ADMINISTRATIVOS ARBITRÁRIOS .................................................................................... 197 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO ................................................................................................... 199 QUANTUM INDENIZATÓRIO: PRESSUPOSTOS DE UM CÁLCULO JUSTO ............................................... 203 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 204 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 205 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PRIVADA: REQUISITOS EXIGIDOS AO MUNICÍPIO PARA LEGITIMAR A ADOÇÃO DAS ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS NO TEMPO (Hertha Urquiza Baracho e Sulamita Escorião da Nobrega) ................................................................................................................... 208 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 209 CONSTITUIÇÃO, PROPRIEDADE, FUNÇÃO SOCIAL E DESENVOLVIMENTO ........................................... 209 CONTORNOS CONCEITUAIS DAS FUNÇÕES DOS TRIBUTOS .................................................................. 212 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO IPTU NO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL .......................................... 214 DEFINIÇÃO DE PROGRESSIVIDADE .......................................................................................................... 216 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 222 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 222 O DIREITO À MORADIA COMO OBRIGAÇÃO ESTATAL NO CONTEXTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO (João Emilio de Assis Reis) ..................................................................................................... 225 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 225 DIREITO À MORADIA: NOTAS HISTÓRICAS .............................................................................................. 226 OS DIREITOS SOCIAIS NO TEXTO CONSTITUCIONAL .............................................................................. 232 A EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS E AS OBRIGAÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO E A OBRIGAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO CONCERNENTES AO DIREITO DE MORADIA .................................................. 235 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 239 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 240 O DIREITO À PARTICIPAÇÃO POPULAR E OS MEGAEVENTOS ESPORTIVOS: A (IN)EFETIVIDADE DA PARTICIPAÇÃO PREVISTA PELA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE INFRAESTRUTURA PARA A COPA DO MUNDO DE FUTEBOL DE 2014 (Alex Feitosa de Oliveira) ..................................................................................................................................... 242 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 243 LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL E A PARTICIPAÇÃO POPULAR ......................................................... 244 OS MEGAEVENTOS E AS OBRAS PÚBLICAS DE INFRAESTRUTURA ........................................................ 249 A (IN)EFETIVIDADE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR PREVISTA NA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL . 252 O CASO DAS OBRAS DO VLT DE FORTALEZA E A INFLUÊNCIA DA PARTICIPAÇÃO POPULAR ................... 255 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 257 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 259 O DIREITO À SAÚDE: EQUIDADE VERSUS ALTA COMPLEXIDADE (Sandra Maciel-Lima e Miguel Kfouri Neto) .......................................................................................................................................................... 261 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 262 DESIGUALDADE VERSUS EQUIDADE ....................................................................................................... 264 SUS: UNIVERSALIZAÇÃO E INTEGRALIDADE EM ANÁLISE ..................................................................... 267 A INTEGRALIDADE E A ALTA COMPLEXIDADE NO SISTEMA DE SAÚDE ................................................. 277 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 284 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 285 O DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À SAÚDE E A RESPONSABILIDADE DO CIDADÃO (Rogério Gesta Leal e Daniela Menengoti Ribeiro) .............................................................................................................. 287 OS POSSÍVEIS CONSENSOS SOBRE OS DEVERES FUNDAMENTAIS À SAÚDE NO BRASIL .......................... 288 O DIREITO À SAÚDE NA DIMENSÃO INTERNACIONAL DO DESENVOLVIMENTO HUMANO ................... 298 A GARANTIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: ANÁLISE A PARTIR DE UM CASO CONCRETO .... 300 REFLEXÕES ACERCA DO CASO ANALISADO ............................................................................................. 304 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 309 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 310 O DIREITO SOCIAL À MORADIA E AS POLÍTICAS PÚBLICAS HABITACIONAIS NO BRASIL (Rogério Luiz Nery da Silva e Thuany Klososki Piccolo) .............................................................................................. 313 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 315 EVOLUÇÃO HISTÓRICA E LEGISLATIVA .................................................................................................... 316 POLÍTICAS PÚBLICAS HABITACIONAIS NO BRASIL ................................................................................. 319 VISÃO CRÍTICA DO PROBLEMA ................................................................................................................ 325 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 330 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 332 O ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL É COMPATÍVEL COM A GLOBALIZAÇÃO?! (José Vagner de Farias) 336 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 337 LIBERALISMO, SOCIALISMO E AS ORIGENS DO “ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL” ............................... 338 NEOLIBERALISMO E GLOBALIZAÇÃO ...................................................................................................... 345 A CRISE CAPITALISTA DO “ESTADO DO BEM ESTAR SOCIAL”, GLOBALIZAÇÃO E REFORMAS .................. 349 CONCLUSÕES ............................................................................................................................................ 352 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 353 O SISTEMA JUDICIAL DE PROTEÇÃO À CULTURA NO ORDENAMENTO BRASILEIRO, POLÍTICAS PÚBLICAS E LEGISLAÇÃO PARA A CULTURA: ASPECTOS GERAIS DE UM SISTEMA JURÍDICO CULTURAL (Gustavo Rosa Fontes) .............................................................................................................. 356 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 358 O CARÁTER COLETIVO DO DIREITO À CULTURA E A TUTELA COLETIVA JUDICIAL ................................ 359 POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITOS CULTURAIS ......................................................................................... 371 A ESTRUTURA ADMINISTRATIVA, LEGISLAÇÃO DE PROTEÇÃO, PROMOÇÃO E INCENTIVO À CULTURA, E A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 71/2012 .......................................................................... 374 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 378 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 380 O TRABALHO PENOSO DOS BANCÁRIOS: ADOECIMENTO, GRAVOSIDADE E DESIQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES LABORAIS (José Ricardo Ceatano Costa e Liane Francisca Hüning Birnfeld) ............................... 383 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 384 O AMBIENTE DO TRABALHO COMO PARTE DO AMBIENTE COMO UM TODO ...................................... 385 GÊNESE DA APOSENTADORIA ESPECIAL ................................................................................................. 387 LABOR E NOCIVIDADE: APROXIMAÇÕES COM O CONCEITO DE TRABALHO PENOSO .............................. 391 A PENOSIDADE VISTA PELA ÓTICA DO TRABALHADOR BANCÁRIO ....................................................... 394 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 398 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 399 OS DIREITOS SOCIAIS TRABALHISTAS E PREVIDENCIÁRIOS E O PROCESSO DE INCLUSÃO ECONÔMICO-SOCIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO: A IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE VALORIZAÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO E DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA (Érica Fernandes Teixeira) ..................................................................................................................................... 402 OS DIREITOS SOCIAIS TRABALHISTAS E PREVIDENCIÁRIOS E A INCLUSÃO ECONÔMICO-SOCIAL ...... 403 O PAPEL DAS POLÍTICAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA ....................................................................... 409 AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE VALORIZAÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO ....................................................... 421 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 426 REFERENCIAS ............................................................................................................................................ 428 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MICRO E PEQUENAS EMPRESAS NO BRASIL: UMA VERTENTE PARA NOVAS PERSPECTIVAS (Marco Antonio Lorga e Co-autoria Prof. Dr. Paulo Ricardo Opuszka) ..................... 432 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 433 A MICRO E PEQUENA EMPRESA NA ORDEM ECONOMICA BRASILEIRA ............................................... 434 A CRISE ECONÔMICA MUNDIAL 2008-2009 ............................................................................................ 451 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 454 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 457 POR UMA NOVA INTERPRETAÇÃO EM BUSCA DA EFETIVIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS FRENTE À SOCIEDADE DO RISCO (Lucas Antônio Bueno) .................................................................................... 458 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 461 A SOCIEDADE DE RISCO E A EFETIVAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS .................................................... 462 A JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E A NOVA INTERPRETAÇÃO NEOCONSTITUCIONAL: EM BUSCA DOS OBJETIVOS SUSTENTÁVEIS DA REPÚBLICA .................................................................. 470 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 480 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 481 REFORMA POLÍTICA E DEMOCRACIA: A IMPLEMENTAÇÃO DO FINANCIAMENTO PÚBLICO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS COMO GARANTIA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA (Heyde Medeiros Costa Lima e Andréa Micaelle Santos Sousa) .................................................................. 483 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 484 BREVE PANORAMA DAS TENTATIVAS DE REFORMA POLÍTICA NO BRASIL ........................................... 485 FINANCIAMENTO PÚBLICO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS E SUAS IMPLICAÇÕES ............................... 488 PRINCÍPIO DA ISONOMIA COMO PILASTRA DO FINANCIAMENTO PÚBLICO DOS PLEITOS ELEITORAIS ............................................................................................................................................... 495 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 499 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 501 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Caríssimo(a) Associado(a), Apresento o livro do Grupo de Trabalho Direitos Sociais e Políticas Públicas II, do XXII Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI), realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias 29 de maio e 1º de junho de 2013. O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito, nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas. Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos, tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos. Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2) aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiramnos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores 11 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido mais difícil. Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto para eventos. O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de 2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que inserirem seus dados. Futuramente, o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –, mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da segunda versão, disponível em 2014. Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05, além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07. 12 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras parcerias e editais para a área do Direito. Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro. Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais. Curitiba, inverno de 2013. Vladmir Oliveira da Silveira Presidente do CONPEDI 13 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Apresentação O XXII Encontro Nacional do CONPEDI teve como tema “Os 25 Anos da Constituição Cidadã: os atores sociais e concretização sustentável dos objetivos da República”. O tema invoca grandes debates e relevantes questões para o universo acadêmico. O Grupo de Trabalho “Direitos Sociais e políticas públicas II” trouxe sua contribuição, abordando uma gama de questões interessantes e de grande atualidade, que podem ser apresentados em três eixos temáticos: (1) Saúde, educação, cultura, trabalho e previdência social; (2) Função social da propriedade, direito à moradia, planejamento urbano e meio ambiente e (3) Democracia, participação popular e políticas públicas. Participaram desses debates, apresentando trabalhos e defendendo seus pontos de vista, pesquisadores de importantes e renomadas instituições, das mais diversas localidades do Brasil: PUC/MG, PUC/SP, UFPI, UNICURITIBA, UNIBRASIL, UNIVALI, UFSC, CESUMAR, UNISC, PUC/PR, UCS, UNOESC, UNIPÊ, FUIT, UNIC, FURG, UEA, UNIFOR e UFC. No primeiro eixo temático, abrangendo questões relativas à saúde, educação, cultura, trabalho e previdência social, foram apresentados diversos estudos que enfocam aspectos relevantes desses temas. O direito saúde, analisado a partir da perspectiva dos direitos fundamentais no direito brasileiro, é objeto de estudo de Aline Maria Hagers Bozo e Bárbara Guasque. Miguel Kfouri Neto e Sandra Maciel-Lima abordam a equidade no contexto da gestão do SUS, buscando verificar se esse conceito aparece nos serviços de alta complexidade. “O direito fundamental social à saúde e a responsabilidade do cidadão”, de Rogério Gesta Leal e Daniela Menengoti Ribeiro questiona sobre a parcela de responsabilidade que “o cidadão tem em face do direito à saúde, buscando defender, a partir da análise de caso concreto, que é um dever de todos garanti-lo, não excluindo desse exame o próprio indivíduo, a família e as instituições privadas”. 14 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II O debate sobre a terceirização na Administração Pública e os serviços públicos de saúde, com ênfase na delegação por intermédio de organizações sociais, aparece como foco de atenção do texto apresentado por Marcos de Oliveira Vasconcelos Júnior. Outro tema que mereceu destaque no contexto desse primeiro eixo temático é a questão da educação. Maria da Glória Colucci e Marta Marília Tonin abordam a questão da educação como direito fundamental social da pessoa em condição especial de desenvolvimento. Ivan Dias da Motta e Luiz Fellipe Preto tratam do direito à educação infantil e sua violação em decorrência da escassez de creches e pré-escolas. Gustavo Rosa Fontes lança luzes sobre o fato de ter sido acrescentado, pela Emenda Constitucional nº 71/2012, o artigo 216-A à Constituição Federal, introduzindo em nível constitucional o Sistema Nacional de Cultura. Partindo da premissa de que o direito à cultura exige a elaboração de políticas culturais voltadas à proteção, promoção e universalização do acesso aos bens e serviços culturais, aborda os diversos mecanismos e programas próprios desenvolvidos com esse objetivo. Na vertente trabalho e previdência social, são apresentados estudos sobre inclusão social e a importância das políticas públicas de valorização do salário mínimo e de transferência de renda”, de autoria de Érica Fernandes Teixeira, e sobre o trabalho penoso dos bancários, resultando em adoecimento, gravosidade e desequilíbrio nas relações laborais, por José Ricardo Ceatano Costa1 e Liane Francisca Hüning Birnfeld. Raul Lopes de Araújo Neto enfrenta o desafiador tema da crise da previdência social brasileira e dos fatores que comprometem a prestação dos serviços e benefícios previdenciários. O bloco de textos deste primeiro eixo temático se completa com o estudo feito por Carlos Luiz Strapazzon e Maria Helena Pinheiro Renck, que abordam os embaraços administrativos arbitrários da previdência social e suas consequências. No segundo eixo temático, foram debatidos temas relativos à Função social da propriedade, direito à moradia, planejamento urbano e meio ambiente. 15 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II No trabalho intitulado “O direito à moradia como obrigação estatal no contexto constitucional brasileiro”, João Emilio de Assis compartilha suas reflexões sobre a evolução dos direitos fundamentais sociais, tendo como foco especial o direito constitucional à moradia. A questão é, ainda, abordada por Rogério Luiz Nery da Silva e Thuany Klososki Piccolo, que destacam a atualidade dessa temática, cada vez mais mencionada nas discussões jurídicas e sociais no país. Da moradia o debate se amplia para a cidade, e o foco passa a ser o estudo das questões que envolvem o planejamento urbanístico participativo plural, no trabalho apresentado por Frederico Garcia Guimarães. Reportando-se aos mecanismos definidos no Estatuto da Cidade, defende a importância de o planejamento urbanístico ser elaborado de forma democrática, com a participação social na sua construção. Dentre os diversos mecanismos que o Estatuto da Cidade prevê para exigir o cumprimento da função da propriedade urbana, está a progressividade das alíquotas do IPTU, cujos requisitos para implementação são objeto de estudo elaborado por Hertha Urquiza Baracho e Sulamita Escorião da Nobrega. Andreza de Souza Toledo completa o bloco de textos desse segundo eixo temático, apresentando um estudo que relaciona o tema da preservação do meio ambiente com a educação, destacando que a educação ambiental é um instrumento que pode e deve ser utilizado como instrumento de política pública para se alcançar o máximo de efetividade dos preceitos legais e constitucionais que disciplinam a tutela do meio ambiente. No terceiro eixo temático, os trabalhos versaram em torno das questões sobre Democracia, participação popular e políticas públicas. Enfrentando debates atuais e de máxima relevância nesses tempos de fortes demandas por mudanças no cenário das velhas estruturas políticas, o tema da reforma política e sua relação com a democracia é abordado por Heyde Medeiros Costa Lima e Andréa Micaelle Santos Sousa, que defendem a implementação do financiamento público das campanhas eleitorais como garantia do princípio constitucional da isonomia. 16 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A participação popular é tema escolhido por Alex Feitosa de Oliveira, com foco na questão da (in)efetividade da participação prevista pela Lei de Responsabilidade Fiscal na implementação de políticas públicas de infraestrutura para a Copa do Mundo de Futebol de 2014. Com foco nas políticas públicas para as Micro e Pequenas Empresas, Marco Antonio Lorga e Paulo Ricardo Opuszka destacam que tais entes “possuem no contexto econômico e social brasileiro uma posição de destaque justificado pela participação do número de pessoas e empreendimentos envolvidos”. Apresentam, assim, um estudo que tem por objetivo demonstrar uma visão ampla desse segmento no Brasil, por intermédio de dados econômicos e da abordagem das políticas públicas para o setor, com vistas ao pleno desenvolvimento econômico e social brasileiro. Partindo da realidade brasileira para um contexto mais amplo, merecem atenta leitura os estudos feitos por José Vagner de Farias (“O Estado de bem estar social é compatível com a globalização?!”) e Lucas Antônio Bueno (“Por uma nova interpretação em busca da efetividade das políticas públicas frente à sociedade de risco”), que enfrentam o debate sobre esses grandes dilemas da contemporaneidade. Por fim, o interessante trabalho de Francisco José Rodrigues de Oliveira Neto, sobre a teoria geral do garantismo e a estrita legalidade aplicada a direitos sociais, com foco nas inovações trazidas pela Lei 12.010/2009, fecha o conjunto de textos que compõem o terceiro eixo. Os trabalhos apresentados demonstram que o CONPEDI é um espaço importante para o debate acadêmico que envolve pesquisadores de todas as idades e de todas as formações: graduação, mestrandos, mestres, doutorando e doutores. A diversificação dos Grupos de Trabalho permite o compartilhamento do conhecimento por meio da exposição do que os pesquisadores estão fazendo em suas diversas áreas, mas, também, há a oportunidade de debates ricos em que correm a disseminação de teses jurídicas, políticas, sociais, econômicas que produzem convergências e divergências essenciais a um debate científico em que o pensamento dialético se monstra imprescindível. 17 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Podemos constar nos trabalhos apresentados e nos debates que se seguiam preocupações que transcendiam as meras especulações positivistas, simplistas e racionalistas. Antes, os trabalhos de pesquisa foram apresentados com espírito crítico e com a preocupação de ofertar proposições transformadoras não somente do direito, mas do Estado e da sociedade. É verdade que O Grupo de Trabalho “Direitos Sociais e políticas públicas II” favorece, de plano, a efervescência das ideias porque reúne num mesmo eixo metodológico os direitos sociais previstos constitucionalmente como cláusulas pétreas de todos os Estados Sociais de Direito, disso se extraindo o dever de concretização destes direitos sociais por meio de políticas públicas em que a máquina estatal é a principal protagonista, além, é claro de outros sujeitos institucionais, a exemplo do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia, dentre outros, sem deixar de mencionar um dado importante, que é controle social feito pela mídia e pela própria população. Acreditamos que os trabalhos que ora são publicados contribuirão para o fomento do saber científico e para o aprimoramento dos debates na academia. Coordenadores do Grupo de Trabalho Professor Doutor Manoel Messias Peixinho – UCAM Professora Doutora Helena Elias Pinto – UFF 18 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A DIVERSIDADE E O PLANEJAMENTO: Uma contribuição para o Planejamento Urbanístico Participativo Plural THE DIVERSITY E THE PLANNING: A contribution to the Participatory Urban Planning Plural Frederico Garcia Guimarães1 SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A Diversidade: 2.1 A diversidade de Gilles Deleuze; 2.2 O diverso e a heterogeneidade do Novo Constitucionalismo Latino Americano; 2.3 A pluralidade e participação. 3 O planejamento: 3.1 O planejamento como função do Estado e da Administração Pública; 3.2 O planejamento urbanístico participativo e plural. 4 Conclusão. Resumo: A diversidade é pontuada por Gilles Deleuze ao apresentar a ideia de Lucrécio que sustenta como ponto central do Naturalismo. A partir dessa visão filosófica, debruça-se sobre a convivência do diferente no Estado Democrático de Direito, que com a nova visão do Novo Constitucionalismo Latino Americano apresenta-se a ideia da heterogeneidade. A Constituição pátria assegura essa diversidade a partir do momento que consagra como uma das bases do Estado o seu caráter plural. Este mesmo Estado ao instituir normas de conduta o deve fazer a partir de um planejamento, no qual se constrói conceitos e diretrizes que irão afirmar acerca de uma determinada política pública. No âmbito urbano, garantido está a participação popular, que se assenta em norma constitucional e no Estatuto da Cidade. Este instrumento – o planejamento – construído a partir dos próprios atores sociais diversos visa concretizar direitos fundamentais. Palavras-chaves: diversidade; planejamento; urbanístico; democracia; participativo; pluralidade 1 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Pesquisador extensionista do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas da PUC/Minas. 19 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Abstract: Diversity is punctuated by Gilles Deleuze to present the idea of Lucretius argues that as the centerpiece of Naturalism. From this philosophical view, focuses on the coexistence of different in a democratic state, that with the new vision of the New Latin American Constitutionalism presents the idea of heterogeneity. The Constitution ensures that diversity homeland as soon as it enshrines one of the foundations of your State plural character. This same rule to establish standards of conduct should do it from a planning, in which to build concepts and guidelines that will assert about a specific public policy. In urban areas, people's participation is guaranteed, which is based on constitutional law and the City Statute. This instrument - planning - built from the various social actors themselves intended to embody fundamental rights. Keywords: diversity; planning; urban; democracy; participatory; plurality 20 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II 1. INTRODUÇÃO A discussão sobre o diverso ou o diferente, diante do reconhecimento de direitos do denominados excluídos, toma hoje contorno em diversas discussões doutrinárias e jurisprudenciais. A ideia do diferente já estava presente em Lucrécio quando este define o Naturalismo – um dos vieses da filosofia – o que foi retomada pelo na segunda metade do Século XX em diversos dos seus trabalhos. Aqui, o texto se debruça sobre um Apenso apresentado por este filósofo francês em que ele reafirma a ideia do diverso a partir do que Lucrécio já havia afirmando. A partir da leitura deste Apenso, reporta-se a afirmação do diferente tendo como perspectiva a constatação de uma sociedade heterogênea, diferente daquela definida como una quando surgiu o Estado Moderno Europeu no final do Século XVIII (um único povo, uma única língua, um único exército, um único direito). O Novo Constitucionalismo Latino Americano veio então apresentar um novo modelo de Estado Constitucional que se fundamenta justamente na concepção que não á essa unidade em uma determinada sociedade, que é constituída de diversas camadas e extratos, ao qual são dirigidas as normas legais. Assim, existentes as novas subjetividades. No âmbito constitucional brasileiro um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito que o define é a pluralidade política (art. 1º, inciso V, da Constituição da República de 1988). Esse pluralismo visa justamente garantir que este mesmo Estado deva atender a diversidade de uma sociedade e que deve este mesmo Estado construir todo o seu sistema jurídico partindo-se dessa perspectiva na afirmação dos direitos fundamentais que também estão garantidos no âmbito da Constituição brasileira. Com isso, na segunda metade o trabalho, traz-se o instituto do Planejamento que é uma das funções da Administração Pública que o meio dos meios de exercício do próprio Estado. O planejamento que define políticas, diretrizes e objetivos, é consubstanciado em uma norma legal que vem então reger determinada política pública direcionada justamente para a garantia de concretização de direitos fundamentais. 21 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Na construção da normatização urbana, o planejamento se tornou condição indispensável (art. 2º, II, da Lei 10.257/01) para a formatação de uma política pública da cidade que se expressa seja através do próprio Plano Diretor (art. 182, parágrafo único da Constituição da República de 1988 e art. 40 e seguintes da Lei 10.257/01), seja para outras formas de programa ou planos de natureza urbanística (art. 2º, inciso II, da Lei 10.257/01, última parte). O planejamento urbanístico deve ser elaborado de forma democrática o que se impõe a participação social na sua construção, que se revela através de mecanismos definidos pelo Estatuto da Cidade. Sendo, então, esta participação popular uma condição para a que se garanta um conteúdo democrático do planejamento urbanístico, ela deva o ser de forma plural, o que se dá pelo respeito às concepções histórico, culturais, econômicas dos atores sociais que se apresentam de forma diversa, diferente. Garantindo que a cidade, bem público, bem de todos, res publica, deva atender a sua função o bem estar de seus viventes (art. 182, da Constituição da República de 1988) e garantindo o concretização de direitos fundamentais. 2 A DIVERSIDADE 2.1. A diversidade de Gilless Deleuze. Gilles Deleuze, na obra Lógica do Sentido, apresenta a visão do simulacro tanto na perspectiva de Platão quanto de Lucrécio, em dois apêndices diferentes, sendo que aqui se tratará do segundo. O pensamento de Lucrécio é trazido por Deleuze a partir da definição do que seja simulacro, de como ele se manifesta e quais as suas formas, tudo para identificar o falso infinito e o verdadeiro infinito. Assim, Lucrécio, depois de Epicuro, “soube determinar o objeto especulativo e prático da filosofia como ‘naturalismo’” (DELEUZE, 1998, p. 272). As perspectivas de Lucrécio e Epicuro, mais aquele do que este, acerca do que seja o Naturalismo, parte de uma análise do movimento dos átomos (clinamem) desenvolvido por aquele primeiro filósofo. A partir daí, identificam o que seria as formas de simulacros - falsos 22 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II infinitos - presentes na vida do homem, que ao mesmo tempo em que lhe trás prazer pode lhe trazer dor. (DELEUZE, 1998, p. 280). Os simulacros apresentados são três, sendo o primeiro e o segundo se revelam pelos próprios sentidos. Já o terceiro é que merece destaque, denominado fantasma, pois, sendo independe do próprio objeto, possuem extrema mobilidade, tomando, inclusive, o próprio lugar do objeto. Este simulacro têm três variáveis: teológica, onírica e erótica (DELEUZE, 1998, p.280/282). Partindo-se do reconhecimento deste terceiro simulacro, o autor, referindo-se a Lucrécio apresenta o Naturalismo como sendo aquele que “irá denunciar a ilusão, o falso infinito, o infinito da religião e todos os mitos teológicos-eróticos-oníricos em que se exprime” (DELEUZE, 1998, p. 285). Traz, portanto, a concepção de que o Naturalismo poderá identificar o verdadeiro infinito, pois: A Natureza não se opõe ao costume, pois há costumes naturais. A Natureza não se opõe à convenção: que o direito dependa de convenções não exclui a existência de um direito natural, isto é, de uma função natural do direito que mede a ilegitimidade dos desejos à perturbação de alma de que se fazem acompanhar. A Natureza não se opõe à invenção, mas sendo as invenções senão descobertas da própria Natureza. Mas a Natureza se opõe ao mito. Ao descrever a história da humanidade, Lucrécio nos apresenta uma espécie de lei de compensação: a infelicidade do homem nos provém de seus costumes, de suas convenções, de suas invenções, nem de sua indústria, mas da parte de mito que ai se mistura e do falto infinito que introduz em seus sentimentos como em suas obras. Às origens da linguagem, à descoberta do fogo e dos primeiros metais se juntam a realeza, a riqueza e a propriedade, míticas em seu princípio; às convenções do direito e da justiça, a crença dos deuses: ao uso do bronze e do ferro, o desenvolvimento da guerra; às invenções da arte e da indústria, o luxo e o frenesi. Os acontecimentos que fazem a infelicidade da humanidade não são separáveis dos mitos que os tornam possíveis. Distinguir do homem o que provém do mito e o que provém da Natureza, e, na própria Natureza, distinguir o que é verdadeiramente infinito e o que não o é: tal é objeto prático e especulativo do Naturismo. (DELEUZE, 1998, p. 285) A partir disso, apresenta-se o Naturalismo, por meio da Natureza, que traz a concepção do que é individual, do que é múltiplo, do que é diferente. O Naturalismo para Deleuze, em referência a Lucrécio, seria a possibilidade de que na Natureza os seus signos estariam desprovidos dos simulacros/fantasmas do mito, que cunham nas coisas/comportamentos um viés que pode levar a desvirtualização do que seria a própria coisa/comportamento. 23 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Seria, então, o Naturalismo aquele que libertaria do homem das falsas ilusões, isto a considerar que esta filosofia Natural possui em seu valor o reconhecimento do indivíduo, da multiplicidade e principalmente do diferente: Em nosso mundo a diversidade natural aparece sob três aspectos que se recortam: a diversidade natural das espécies, a diversidade dos indivíduos que são membros de uma mesma espécie, a diversidade das partes que compõe um indivíduo. (DEULEZE, 1998, p. 273) Cunha-se o reconhecimento do valor do Naturalismo no reconhecimento do indivíduo e de sua diferença, reconhecendo-se a heterogeneidade. Deleuze na maioria das suas obras baseou-se na identificação do que seja o indivíduo, na diferença contida no próprio homem, na diferença deste com o seu entorno, assim como deste entorno em relação ao próprio homem. Pautou ainda em diversos trabalhos sobre o que seria a diversidade, a multiplicidade, mas repita-se sob a perspectiva do que da diferença.2 Considera-se, assim, para este trabalho que o Naturalismo de Lucrécio afirmado por Deleuze trás em si a concepção da diferença, sob o enfoque do indivíduo em seu contexto social, afirmando a multiplicidade, a heterogeneidade, a pluralidade. 2.2. O diverso e o heterogêneo no Novo Constitucionalismo Latino Americano. Ao se construir e afirmar os primeiros Estados Nacionais na Europa na era moderna, a linearidade de uma sociedade se impunha para afirmação desde próprio Estado e para afirmação e concretização do próprio capitalismo. Criou-se um Estado em que se reconhecia um povo homogêneo, uma única língua, em um único território, uma única soberania. Tem-se o Estado Nação, seguindo um padrão hegemônico e uniformizador. (MAGALHÃES, 2012). O Estado de Direito foi construído com fundamento em uma Constituição de concepção uníssona de um povo igual, sem qualquer distinção, firmando-se em um povo homogêneo. 2 Destaca-se a obra Diferença e Repetição de 1968, como um marco neste reconhecimento da diferença: Rio de Janeiro: Graal, 1988, 24 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Sampaio (2004, p. 45), citando Cícero3, apresenta: (...) O povo, por seu turno, era um todo homogêneo em cultura, língua, história e tradições, unido por interesses comuns, que, seguindo às distantes lições de Cícero, compunha um coetum iuris consensu ET utilitatis communione sociatum, não somente omnem coetum multdidudinis. Contudo, um direito linear e plano sob a perspectiva a de uma homogeneidade do próprio povo não mais corresponde ao que hoje se apresenta. A complexidade social é fato inconteste no mundo pós-moderno ou contemporâneo, sendo que este variado composto de povos, etnias, culturas, condições sociais, concepções de vida, caracterizam um mundo heterogêneo. A monocultural teoria política importada garantiu a intensa disparidade entre constituição e realidade, garantindo direitos a uma ínfima parcela da população e anulando a outra. O que se vislumbra no que é denominado de ‘velho constitucionalismo’ era uma retórica ideológica. (NOVAIS, 2012) Reconhecida esta diversidade ou mesmo heterogeneidade de um povo, necessário o reconhecimento pela Constituição deste fato, o que importa, portanto, no reconhecimento também pelo Estado do povo que o constitui. O novo constitucionalismo impõe-se nos dias atuais. Este movimento constitucional, de uma forma, geral, é fenômeno reconhecido, baseando-se em um novo reconhecimento. As transformações sofridas pela teoria política e constitucional nos últimos vinte anos têm levado á reflexão necessária sobre a concepção adequada de Constituição de nosso tempo. O desgaste da ‘soberania’ e a ‘complexidade social’ crescente, aliados, em países periféricos e semiperiféricos, à submissão a uma ordem internacional orienta pela lógica econômica, remetem, em lugar de particularismos ou de retorno às figuras pré-modernas de comunidades, á ideia de uma ‘sociedade multicultural’ que pode aspirar a ser cosmopolita. (SAMPAIO, 2004, p. 50) Há que ser reconhecer a existência de o diferente no meio social caracteriza a diversidade. El primer paso en esa dirección es estar muy atentos a la diversidad del mundo que es inagotable. Y esa diversidad es cultural. Pero, lo que es nuevo en nuestro tiempo, a inicios del siglo XXI, es que lo cultural también es económico y también es político. Por eso nos pode cuestiones como la una refundación del Estado y una refundción de la democracia. (BOAVENTURA, 2007, p. 14) 3 Citação contida na obra: CÍCERO, Marco Túlio. La Republica. In: CICERÓN. La República y lãs leyes. Edición de Juam Ma. Nuñes Gonzáles. Madrid: Akal, 1989, I, p. 39) 25 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Desta forma, a diversidade, em sendo um dos nortes do Novo Constitucionalismo Latino Americano, deve ser incluída na pauta dos fundamentos constitucionais e na construção normativa, já que a este a norma também é direcionada. Este constitucionalismo se distingue del constitucionalismo moderno en varias características. Primero, en la equivalencia entre lo simultáneo y lo contemporáneo. Una de las grandes características de la modernidad fue separa simultaneidad de contemporaneidad. ¿Por qué? Porque puso una fecha de progreso; los que van delante están en el progreso, son avanzados, mientras todos los otros son atrasados. Es por eso que los países menos desarrollados no pueden ser nunca en nada más desarrollados que los desarrollados, porque la lógica de la flecha del tiempo impide esa posibilidad. Sin embargo, la idea de simultaneidad sin contemporaneidad expresa situaciones cotidianas. Cuando un campesino se encuentra con un ejecutivo del Banco Mundial el encuentro es simultáneo, pero no ocurre entre contemporáneos. El campesino es un residual, es un atrasado; el ejecutivo del Banco o el ingeniero de la agroindustria es el progreso, es el avanzado. Tenemos simultaneidad, pero no contemporaneidad. El constitucionalismo intercultural e plurinacional, está haciendo, de diferentes maneras, una equivalencia entre lo que es simultáneo e lo que es contemporáneo; cada uno a su manera, pero contemporáneos al fin. (BOAVENTURA, 2007, p. 23) E é justamente neste sentido que Gilles Deleuze se expressa, como acima exposto: A especificidade, a individualidade e heterogeneidade. Não há no mundo que não se manifeste na variedade de suas partes, de seus lugares, de suas margens e das espécies que os povoa Não há individuo que seja absolutamente idêntico ao outro indivíduo; (...) Infere-se daí a diversidade dos próprios mundos sobe estes três pontos de vista: os mundos são inumeráveis, frequentemente de espécies diferentes, às vezes semelhantes, sempre compostos de elementos heterogêneos. (1998, p. 273) Portanto, fundado está o Novo Constitucionalismo Latino Americano que se finca na noção de uma nova concepção de um povo e da sua pluralidade: O novo constitucionalismo encontra respaldo no reconhecimento da condição humana da ação que compreende a sua imprevisibilidade e pluralidade e que permite compreender os semelhantes como tais. Tal concepção funda-se na admissão dos conflitos e incongruências ínsitos na natureza, sem a intolerância ao distinto, pois nesse sentido que o outro quando não visto pela dimensão desestrutura a compreensão que se tem de si mesmo. Se pensada a existência num único plano de vivência, será excluída a existência do outro, concebendo-o como causador do caos. Ou se vislumbrada a pluralidade da capacidade individual de transmutar-se dentro de uma natureza multíplice, ou perde-se na tentativa de encontrar a universalidade o que não é admissível em uma realidade que se pretenda solidária e emancipatória. Vê-se assim, a convergência entre teorias democráticas e solidárias e o novo constitucionalismo que se estabelece.” (NOVAIS, 2012) 2.3. A pluralidade e participação. 26 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Dessa perspectiva do Novo Constitucionalismo Latino Americano, de onde se extrai a ideia de uma sociedade heterogênea, pode-se destacar que garante esse novo pensamento constitucional de que um Estado Democrático de Direito é plural. A Constituição da República de 1988 impõe como um de seus fundamentos a pluralidade: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) V - o pluralismo político. (BRASIL, 2012) A definição constitucional não deixa dúvida quanto à afirmativa lançada no parágrafo acima. Havendo o reconhecimento pela Ordem Constitucional de tal aspecto, o Direito não é pode ser construído a partir de uma democracia baseada numa homogeneidade, visto que não se estaria atendendo ao pluralismo, a existência de níveis diferentes de cidadãos. A partir disso: que o diferente é também cidadão, de que a multiplicidade individual e de grupos; o direito regulamentador, o direito principiológico e garantidor, como posto na Constituição, deve ser construído a partir da identificação destes indivíduos, destas diferenças, destas multiplicidades (individuais ou de grupos). Não se pode mais impor um ordenamento que não lhes reconheça esta diferença. E a pontuação desta diferença somente poderá ser trazida por eles, por todos. Portanto, neste ponto, para a afirmação do individuo, do diferente, do múltiplo, do plural, necessário que todos participem de uma forma dialógica e consensual. O artigo único do artigo constitucional transcrito acima traz outro aspecto: o poder emana do povo e pode ser exercido de forma direta. Tem-se, assim, a democracia participativa. Decorrente disso, a construção normativa passa não ser unicamente representativa, mas sim participativa, justamente para o atendimento a esta diversidade e complexidade social. A participação social na construção do Estado e na formulação dos instrumentos legislativos que por sua vez irão regrar suas relações interpessoais. O direito e seu regramento não são construídos a partir de uma homogeneidade daqueles sobre os quais recai a 27 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II ordenação, como houvesse uma pré-determinação, mas da participação dos próprios cidadãos, agentes de direito, que são reconhecidamente diversos individualmente e plural na sua coletividade. Estes agentes de direito, portanto, de forma livre e igualitária, se colocam frente a frente, e participam do processo normativo. O projeto de realização do direito, que se refere às condições de funcionamento de nossa sociedade, portanto de uma sociedade que surgiu em determinadas circunstâncias históricas, não pode ser meramente formal. Todavia, divergindo do paradigma liberal e do Estado social, este paradigma do direito não antecipa mais um determinado ideal de sociedade, nem uma determinada visão de vida boa ou de uma determinada opção política. Pois ele é formal no sentido de que apenas formula as condições necessárias segundo as quais os sujeitos de direito podem, enquanto cidadãos, entender-se entre si para descobrir os seus problemas e o modo de solucioná-los. (HABERMAS, 2003, p. 189/190) Com isso, a norma extraída deste contexto dialógico pode refletir toda a pluralidade social. No entanto, esta participação não exclui o papel do Estado como normatizador, apenas acresce a este tendo em vista os anseios da própria sociedade construtora do Direito. Este procedimento é bem disposto por José Nilo de Castro quando se refere a tal participação no processo legiferante em matéria de natureza urbanística, que é o ponto central do trabalho apresentado: Por conseguinte, a injunção participativa não se opõe, à evidência, à democracia representativa, ela é um complemento desta, um plus, em enriquecimento que se realiza pelos diálogos civis e sociais, pela deliberação reflexiva e coletiva, e, por fim, pela interação e negociação permanentes, sustentados esses diálogos nas cidades, espaço privilegiado para os aconchegos da cidadania e da democracia. (CASTRO, 2010, p. 425) Logo, a Teoria Discursiva assegura o exercício do Estado Democrático de Direito Participativo: Esse princípio deve assumir – pela via da institucionalização jurídica – a figura de um princípio de democracia, o qual passa a conferir força legitimadora ao processo de normalização. A ideia básica é a seguinte: o principio da democracia resulta a interligação que existe entre o principio do discurso e a forma jurídica. Eu vejo esse entrelaçamento como uma gênese lógica de direitos, a qual pode ser reconstruída passo a passo. Ela começa com a aplicação do principio do discurso ao direito a liberdades subjetivas de ação em geral – constitutivo para a forma jurídica enquanto tal- e termina quando acontece a institucionalização jurídica de condições para um exercício discursivo da autonomia política, a qual pode equipar retroativamente a autonomia privada, inicialmente abstrata, com forma jurídica. Por isso o principio de democracia só pode aparecer como núcleo de um sistema de direito. (HABERMAS, 2003, p. 158, vol. I.) 28 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II E neste ponto, a Teoria Discursiva se fundamente no procedimentalismo que se torna uma forma de garantir que o discurso e o consenso sempre se renovem: O paradigma procedimental do direito nutre a expectativa de poder influenciar, não somente a autocompreensão das elites que operam o direito na qualidade de especialistas, mas também a de todos os atingidos. E ta expectativa da teoria do discurso, ao contrário do que se afirma muitas vezes, não visa doutrinação, nem é totalitária. Pois, o novo paradigma submete-se às condições da discussão contínua, cuja formulação é o seguinte: na medida em que ele conseguisse cunhar o horizonte da precompreensão de todos os que participam de algum modo e à sua maneira na interpretação de constituição, toda transformação histórica do contexto social poderia ser entendida como um desafio para um reexame da compreensão paradigmática do direito (HABERMAS, 203, P. 190). E é justamente neste sentido que se fundamenta o Novo Constitucionalismo Latino Americano: (...) compreendidos os mecanismos de construção destes consensos democráticos não majoritários, não hegemônicos, não hierarquizados, plurais nas perspectivas de compreensão de mundo, podemos compreender um novo constitucionalismo e uma nova perspectiva para os direitos fundamentais.” (MAGALHÃES, 2012). Portanto, entende-se que reconhecido o diferente, como meio de se afastar os simulacros, para uma melhor vida, estes integram uma determinada sociedade, que é então adjetivada de heterogênea. Neste ponto, o Novo Constitucionalismo Latino Americano apresenta-se como um novo paradigma de novas subjetividades. No contexto constitucional atual brasileiro, há o reconhecimento do diferente e da heterogeneidade, já que o fundamento do Estado de Democrático de direito está assegurado no artigo 1º, da Constituição da República de 1988. Nesta também há mecanismos para o exercício da pluralidade, na medida em que o poder, o poder do Estado, deve ser exercido pelo povo, afirmando-se a democracia participativa, que se apresenta de forma dialógica. 3 O PLANEJAMENTO 3.1 O planejamento como função do Estado e da Administração Pública 29 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A atuação do Estado no contexto social se apresenta de várias maneiras, seja legislando, seja executando, seja dirimindo conflitos. No âmbito da função reguladora, cabe a ele dispor sobre normas que em a finalidade de regrar seja a auto-conduta, seja da sua conduta para com os cidadãos. Este exercício regulamentador do Estado se dá através de implementação de políticas públicas que são expressas por meio da atuação do braço executivo do estado: a Administração Pública. Esta tem por sua vez então que se basear naquela regulamento que se constrói, hoje, a partir do planejamento. Portanto, o planejamento é hoje uma função do Estado e por consequência uma função da própria Administração Pública. O planejamento, portanto, tomando contorno jurídico, se faz presente nos instrumentos legais, sendo que ainda começa a se despregar de um caráter puramente formal. É o planejamento que confere consistência racional à atuação do Estado (previsão de comportamento, formulação de objetivos, disposição de meios), instrumentando o desenvolvimento de políticas públicas, no horizonte do longo prazo, voltadas à conclusão da sociedade a um determinado destino. (GRAU, 2007, p. 347) Esta forma de estratégia de administração já o era executada no âmbito privado, sendo incorporada da Ciência da Administração para o âmbito da Administração Pública. Mas ao agregar tal procedimento, a Administração Pública apenas reconhecia o aspecto que se pode denominar formal, pois o planejamento dependia apenas do administrador, podendo utilizá-lo ou não, não sendo juridicamente imposto (SILVA, 2008, p 89). Mas com o tempo, o planejamento se destacou apenas da noção de um modo de administração e tornou-se um mecanismo jurídico-constitucional, visto que tem ele finalidade de se atingir uma realidade social. O planejamento, assim, não é mais um processo dependente da mera vontade dos governantes. É uma previsão constitucional e uma provisão legal. Tornou-se imposição jurídica, mediante a obrigação de elaborar planos, que são instrumentos consubstanciadores do respectivo processo. (SILVA, 2008, p. 90) A título de exemplo pode-se extrair alguns dispositivos constitucionais que fazem menção explicita ou implícita ao planejamento, se destacando ao final o art. 183, sobre os quais nos deteremos com maior atenção no presente trabalho: agrícola (Artigo 187); 30 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II previdenciária (Artigo 202); educação (Artigo 208; 212, §3o; 214; 30, VI);cultura (215, §3o; 216, §6o); juventude (Artigo 227) habitação e saneamento básico (23, IX); reforma agrária (184, §4o); assistência social (204, I e parágrafo único); transporte (Artigo 208, VII); alimentação (Artigo 208, VII); saúde (Artigo 227, §1o); assistência ao deficiente (Artigo 227, §1o, II); prevenção do uso de entorpecentes (Artigo 227, §3o, VII); idoso (230, §1o) e fundo de erradicação a pobreza (Artigo 79 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT), art. 183 (Plano Diretor). Robertônio Santos destaca ainda que o planejamento se tornou um instrumento jurídico justamente porque o Estado, através da Administração Pública, tomou uma dimensão mais social, o que se traduz como sendo o planejar o instrumento indissociável para que o Estado atenda as necessidades de seus cidadão através da implementação de políticas públicas: Uma das características da Administração Pública atual é seu caráter preponderantemente coletivo. Mais do que a prática de atos administrativos isolados (que não deixaram de existir), Administração Pública se caracteriza pela sua dimensão social. Importa cada vez mais os efeitos ou resultados que a atuação administrativa produz relativamente à sociedade em seu conjunto, nos mais diversos setores da vida, de tal forma a garantir satisfatória ‘qualidade de vida’ tanto a sociedade presente como a sociedade futura (futuras gerações). A atividade deve ser necessariamente eficiente (princípio da eficiência), produzindo resultados concretos para o conjunto da sociedade. Exigência desta envergadura demandam, forçosamente, a necessidade do planejamento. Proliferam em todos os níveis da atividade administrativa (federal, estadual e municipal) práticas de programação ou de planejamento (pleno de desenvolvimento, planejamento financeiro, planejamento urbanístico, planejamento educacional, plano isso, plano daquilo etc.) Fala-se cada vez mais em ‘políticas públicas’, associando-se à necessidade de planejamento. (2003, p 40) Voltando-se o Estado e Administração pública para o atendimento ao que a sociedade almeja, e utilizando-se do planejamento para tanto, ao construir esse instrumento, deve ele estar atento à pluralidade. Enquanto o planejamento praticado nos anos 1970 tinha um caráter eminentemente impositivo, em razão do regime político vigente, o de hoje não pode ignorar a pluralidade da representação política e a intensa mobilização que ocorre na sociedade brasileira com vista à promoção e à defesa de seus particulares interesses. (REZENDE, 2011, 201) 3.2 O planejamento urbanístico participativo e plural. 31 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A participação popular como detentor do poder conferido ao Estado é imperativo fundamental do Estado Democrático de Direito, conforme previsto no caput do art. 1º, da Constituição da República de 1988. No âmbito das normas urbanísticas a participação popular na construção do planejamento urbanístico se extrai do próprio art. 182, quando que determina que a política urbana, que é uma política pública, deve objetivar o pleno desenvolvimento das funções sócias da cidade e garantia do bem estar de seus habitantes. Já no art. 183, apresenta o instrumento que irá ser o substrato deste planejamento: plano diretor. Seguindo estes princípios constitucionais, o Estatuto das Cidades (Lei 10.274/2001) impõe diretrizes, políticas, instrumentos que asseguram a participação social no planejamento urbanístico (arts. 2, inciso II; art. 4º, inciso III, alínea a); art. 41; art. 42, alínea III; art. 43; art. 44; art. 45). Para se planejar, dentro do contexto da Administração pública moderna, e para se executar o que se previu no planejamento urbano, impõe-se hoje se faça uma extraordinária aliança entre a cidade e o cidadão. Por que aliança? A aliança entre o cidadão e a cidade decorrerá do diálogo que deve existir entre o cidadão e o próprio Estado. E como se operará este diálogo? Pela participação da sociedade junto aos projetos estatais e comunitários. Participar é fazer com. Fazer em conjunto com os segmentos da sociedade e com o Estado. É ter afinidade. E ter afinidade é sentir com. O papel do cidadão é o de gestor do espaço urbano. Gestor é agente, e hoje é agente de transformação, que põe em marcha e em execução os seguintes passos: o aprendizado (cívico, político e social), a convicção (acredita-se e tem-se fé e compromisso), a determinação (a vontade), a ação (atitude positiva afirmativa) e o esforço (busca-se empenho e desempenho de qualidade). (CASTRO, 2010, p. 434). Este planejamento se consubstancia no próprio Plano Diretor que tem como fim dar transparência e democracia à política urbana (BLANC apud Braga, 2006, p. 108)4. O planejamento urbanístico tem duas características que lhe são essenciais: dimensão territorial e dimensão instrumental. Com isso, a participação popular visa, por meio do devido diagnóstico e da própria construção normativa procedimental e dialógica, construir uma cidade que atenda aos fins sociais dela e o bem estar dos seus próprios habitantes (art. 182, caput). (...) (i) a vinculação da política urbana a instrumentos de planejamento, especialmente ao plano diretor, que adquire o status de instrumento básico de política de desenvolvimento urbano (art. 182, parágrafo 1º); (ii) a descentralização 4 BRAGA, Roberto. In: Plano Diretor Municipal: três questões para discussão. Disponível em: <www.rc.unesp.Br/igce/planejamento/publicações.> Acesso em setembro de 2003. 32 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II do planejamento urbano que passa explicitamente a valorizar a cidade, lócus de manifestação do poder local (art. 182 e art. 30 I e VII); e (iii) a inclusão da redução das desigualdades sociais entre os princípios da ordem econômica brasileira (art. 170, III e art. 182). (ARAÚJO, 2008, p. 170) A participação popular no planejamento urbanístico se impõe justamente para confirmar a pluralidade, que se aceita a linguagem de todos os interessados, as vivências populares, a ciências, tudo de uma forma integrada e respeitando a ecologia dos saberes5. O cidadão é aquele que mais vivencia e usufrui da cidade, sendo o seu agente mais ativo. A partir disso, a participação social no planejamento urbanístico é uma imposição constitucional e legal que é condição de validade do próprio Plano Diretor. Este reconhecimento da pluralidade que é assegurada pela participação social pode ser destacado em alguns incisos do art. 2º, do Estatuto da Cidade, dos quais podem ser citadas algumas locuções: (...) atendimento ao interesse local (inciso III); (...) evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente (inciso IV); (...) adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais (inciso V); integração e complementariedade entre as atividades urbanas e rurais (inciso VII); (...) privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais (inciso X). A partir, então, dessa participação popular plural de forma dialógica, na construção de um planejamento, legitima-se o próprio papel do Poder Público “permite que a cidade seja realmente construída à luz seus moradores e, especialmente, garante os grupos excluídos possam ter voz ativa (MELO, 2010, p.81). O planejamento urbanístico deve, por imposição constitucional e legal, ser participativo e plural. Este planejamento deve ser consubstanciado em lei respectiva, como o Plano Diretor, devendo, portanto, ser executado pelo administrador na implementação da política pública urbana. 4. CONCLUSÃO 5 Ler mais sobre o tema em: SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Epistemologias do Sul. SANTOS, Boaventura de Souza. MENESES, Maria Paula (coord.) SP: 2010. Ed. Cortez. 31-67. 33 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II O presente trabalho pretende, como exposto do subtítulo, contribuir para a discussão acerca do planejamento urbanístico participativo, acrescendo-se a esta locução o adjetivo plural. Assim, para justificar a pluralidade, deve-se primeiro reconhecer a existência do diferente, que se revela, na visão filosófica apresentada a partir do momento em que o Naturismo, como uma de suas vertentes, é invocado para afastar as falsas impressões – simulacros – sobre tudo o que nos cerca. Com isso, o diverso ou o diferente é desta forma reconhecido, dando-se o devido valor a quem se encontra nesta condição, já que ele estaria despedido de qualquer falseamento – repita-se simulacro – acerca de si mesmo. A partir dessa visão que é defendida na contemporaneidade, que se invocou do filósofo Gilles, apresentou-se a perspectiva coletiva do diferente quando se vislumbra que a sociedade é no seu conteúdo heterogênea. Com isso, a conceito do Estado Constitucional Moderno não mais reflete o contexto real de um povo, não lhe sendo, o reflexo. Num segundo momento, expõe-se acerca da nova concepção constitucional que se apresenta com o Novo Constitucionalismo Latino Americano, sendo formulado, que parte, como um de seus vetores, justamente a existência das novas subjetividades que se reflete nas diversas culturas, histórias e economias de um povo. Considerado tal ponto, no âmbito constitucional brasileiro, esta diversidade e heterogeneidade se revela no próprio fundamento do Estado Democrático do Direito que tem como uma de suas bases o pluralismo. Aliado a isso, tem-se a concepção da democracia participativa, visto que reconhecido também pela Constituição da República de 1988 que o poder emana do povo, de forma direta. Esta participação, diante do contexto diverso social, deve ter como procedimento o diálogo de todos aqueles que compõe essa sociedade, na construção do seu próprio ordenamento. Portanto, somente com o reconhecimento do diverso, da heterogeneidade social e da pluralidade é que se pode afirmar que o Estado seja de fato democrático, pois este ente se sustenta a partir do reconhecimento real da sociedade que o mantém. E a legitimidade desse mesmo Estado somente se firma quando então essa mesma sociedade é que irá, no exercício do poder que ela mesmo criou e se outorgou, participar da composição do seu próprio regramento. 34 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Num outro ponto, parte-se para a exposição da função de planejar do Estado e da própria Administração Pública. Esta função tem hoje um novo conceito no mundo jurídico, visto que, sendo ela devidamente constitucionalizada, é instrumento que visa a implementação de políticas públicas que se pretende estabelecer. Especificamente, o planejamento urbanístico, também com status constitucional e de norma geral, foi firmado como sendo ele participativo, justamente, porque ele deve ter como finalidade a implementação da função social da cidade e do bem estar de quem vive nela. Assim, figura o próprio cidadão como o agente de construção do direito, por meio o planejamento, que irá dispor sobre a sua vida no âmbito do lócus onde mora. A participação, então, irá garantir a presença do diverso, do diferente, de todos que se encontram em seus determinados patrões, que foram uma todo social heterogêneo. À participação se alia então a pluralidade na formação do planejamento urbano. Tudo isso revela o pluralismo – reconhecimento do diverso - como fundamento real do Estado Democrático de Direito se manifesta por meio da participação social na construção de planejamento urbanístico, que expressa uma política pública. A participação, por sua vez, assegura a expressão do próprio pluralismo, revelado no conteúdo do planejamento urbanístico, visando a concretização de direitos fundamentais aos atores sociais 35 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Referências Bibliográficas. ARAÚJO, Marinella Machado. Política de Desenvolvimento Urbano no Estatuto da Cidade: em que realmente avançamos com o modelo de planejamento regulado pela Lei 10.257, de 10 de julho de 2001? In: COSTA, Geraldo Magela; MENDONÇA, Jupira Gomes (orgs). Planejamento Urbano no Brasil: trajetória, avanços e perspectivas. Belo Horizonte: Editora C/Arte. 2008. p. 169-181. BLANC, Priscila Ferreira. Plano Direto Urbano & Função Social da Propriedade. Curitiba: Juruá Editora, 3ª tiragem. 2006. BRAGA, Roberto. In: Plano Diretor Municipal: três questões para discussão. Disponível em: <www.rc.unesp.Br/igce/planejamento/publicações.> Acesso em setembro de 2003. BRASIL. 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Alianza Interinstitucional CENDA, CEJIS, CEDIB. 3-4 de abril/2007. Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. Agosto/2007. _______, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Epistemologias do Sul. SANTOS, Boaventura de Souza. MENESES, Maria Paula (coord.) SP: 2010. Ed. Cortez. 31-67. SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Melhoramento. 5º edição. 2008. 37 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A PESSOA EM CONDIÇÃO ESPECIAL DE DESENVOLVIMENTO E A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL THE PEOPLE IN SPECIAL DEVELOPMENT CONDITION AND THE EDUCATION AS A SOCIAL FUNDAMENTAL RIGHT Maria da Glória Colucci Marta Marília Tonin** Resumo: Educar é formar e transformar para a vida. A deterioração dos valores morais, acrescida de outros fatores desencadeantes do individualismo, materialismo e falta de solidariedade, só podem ser suplantados pela educação, a começar do ambiente familiar. Por outro lado, preparo para o exercício da cidadania pressupõe a superação de vários obstáculos, a partir do combate – mediante iniciativas oficiais e particulares – da evasão escolar, que leva ao abandono dos bancos escolares e ainda no ensino fundamental. Também, a exclusão social dos evadidos, acrescida da violência intrafamiliar e urbana, estimula o ingresso na marginalidade. A educação para o trabalho (profissionalização) é regulada no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e na Constituição Federal (1988), além de outras normas presentes na Consolidação das Leis do Trabalho (1943). Inúmeros danos podem ser creditados à falta de acesso à educação profissionalizante, como se examinou no texto, o mesmo ocorrendo em relação à evasão escolar e ao abandono afetivo e material de crianças e adolescentes. Políticas Públicas voltadas à superação destes desafios têm sido implementadas, mas ainda são insuficientes os investimentos na educação em geral. Palavras-Chave: Educação; Estatuto da Criança e do Adolescente; Exclusão Social; Profissionalização. Políticas Públicas. Mestre em Direito Público pela UFPR. Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Professora titular de Teoria Geral do Direito do UNICURITIBA. Professora Emérita do Centro Universitário Curitiba, conforme título conferido pela Instituição em 21/04/2010. Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética – Jus Vitae, do UNICURITIBA, desde 2001. Professora adjunta IV, aposentada, da UFPR. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética – Brasília. Membro do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Membro do IAP – Instituto dos Advogados do Paraná. ** Mestre e Doutora em Direito das Relações Sociais (UFPR). Coordenadora Geral do Curso de Direito das Faculdades Integradas do Brasil (UNIBRASIL). Professora do Direito de Família e Direito da Criança e do Adolescente. Advogada. Membro consultor da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/PR (2013-2015). Conselheira do Conselho Penitenciário do Estado do Paraná (CONPEN - 2011-2014). Membro do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Membro do IAP – Instituto dos Advogados do Paraná. Coordenadora do Mestrado em Direito do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) de 2002 a 2005. Coordenadora do Curso de Direito das Faculdades Santa Cruz (INOVE) de 2009 a 2012. Conselheira do CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (2004-2007). Presidente, da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da OAB (2005-2006). Presidente da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/PR (1997-2002; 2010-2012). Vice-presidente (2007-2009) e membro da Comissão Especial Criança, Adolescente e Idoso (CECAI) do Conselho Federal da OAB (20102012). 38 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II ABSTRACT To educate is to form and transform lives. The deterioration of moral values, plus other triggering factors of individualism, materialism and lack of solidarity, can only be overcome by affection, starting with the family environment. The preparation for the exercise of citizenship presupposes the overcoming of many obstacles, from combat - through official and private initiatives - truancy that leads to the abandonment of banks still in school and elementary school; social exclusion of evaded and family violence and urban. Education for work (professionalism) is regulated by the Statute of the Child and Adolescent in the Federal Constitution, beyond the norms present in the Consolidation of Labor Laws. Many injuries can be credited to the lack of access to vocational education, as examined in the text, the same being true for truancy and dropout affective and material for children and adolescents. Public policies aimed at overcoming these challenges have been implemented, but the improvements on education in general are still insufficient. Keywords:. Education; Statute of the Child and Adolescent; Social Exclusion; Education for work; Public Policies. 1 INTRODUÇÃO As tentativas de respostas à problemática educacional no País, notadamente, de crianças, adolescentes e jovens, têm sido esboçadas em diversos modelos teóricos, mas, ainda, incipientes, ou até mesmo contraditórios. Na análise a ser construída pretende-se estabelecer nexos entre as diretivas do art. 205 da Constituição da República (1988) e os princípios da “proteção integral” e “prioridade absoluta” presentes tanto na Lei Maior (art. 227 e seguintes), quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), nos arts. 1º a 6º, como diretrizes hermenêuticas e processuais. O pleno desenvolvimento da pessoa e a natural vulnerabilidade infanto-juvenil serão a chave mestra das reflexões a serem encetadas, considerando-se o processo educacional como instrumento transformador do ser humano desde a mais tenra idade até à velhice. O atraso crônico de medidas, por intermédio de políticas públicas, que promovam e incentivem a educação no País, contribuem para o agravamento do cenário ainda desanimador da evasão escolar ou mesmo da precariedade de condições do ensino no Brasil, como se examinará no texto. Desinformação, exclusão social e econômica, constituem no seu conjunto intrincado contexto cujos meandros se encontram abertos às novas teorias pedagógicas. Serão estudados os princípios basilares que fixam diretrizes para a construção estatutária dos direitos da criança e do adolescente na Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, seguidos de breve síntese do texto regulador dos precitados direitos. 39 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II No decorrer da exposição diferentes fontes bibliográficas serão utilizadas, levando-se em consideração a crescente necessidade de interlocução com outras áreas do saber. A Carta da República deverá receber relevância acentuada por ser a raiz vital à qual se ligam todas as questões jurídicas, não só em matéria de educação, mas sempre que se procure ressaltar a força vinculante do texto da Lei Maior com a realidade social brasileira. O pacto social representativo da vontade soberana popular se evidencia no teor das palavras das disposições constitucionais, como ocorre em educação, na proteção da criança e do adolescente como se verificará. 2 A PESSOA EM DESENVOLVIMENTO 2.1 Diretrizes do art. 205 da Constituição (1988) Dentre os seres viventes, a pessoa humana ao nascer possui tamanha vulnerabilidade, que não consegue sobreviver sem cuidados especiais por um longo espaço de tempo. Sua infância se prolonga por doze anos, durante os quais necessita receber não só alimentos, mas atenção, educação e afeto que são essenciais à formação de sua futura personalidade. No entanto, o reconhecimento da vulnerabilidade infantil e o respeito às suas peculiaridades, bem como das contradições que acompanham a adolescência, não ocorreu sem grandes divergências entre pais, educadores, psicólogos e todos os que se dedicam ao mister de desvendar os meandros destas importantes fases da vida humana. Psicologia e Pedagogia têm desenvolvido pesquisas, teorias, relatórios e profusas análises sobre a temática, explorando-a sob diferentes ângulos, visando encontrar possíveis respostas. Educar é, desde cedo, moldar o comportamento da criança e do adolescente, preservando os valores da família, da sociedade e da cultura às quais pertence. Educação é direito fundamental, reconhecido no texto constitucional no art. 205 da Lei Maior, objetivando o desenvolvimento das potencialidades da pessoa que ao nascer traz consigo habilidades inatas, que afloram com o processo educacional. Respeitar as características pessoais, propiciar o aprendizado de um ofício, profissão ou trabalho; além de incentivar a dedicação às artes, são objetivos da educação profissionalizante. 40 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Os obstáculos enfrentados pela criança, cuja personalidade se encontra em formação, são múltiplos, a começar pela socialização, pelo desenvolvimento da afetividade e da solidariedade. No adolescente, as mudanças causadas pela transição que caracteriza a puberdade, respondem pelos conflitos que são frequentes nesta fase. Se bem trabalhada, a adolescência pode permitir aos educadores prepararem pessoas, cidadãos éticos, com um sentido de participação social e política, respeitando as instituições democráticas. No entanto, a desinformação e a exclusão social, somadas à violência intrafamiliar e urbana, causam sérios danos à vida da pessoa em desenvolvimento. Em consonância com a Lei Maior, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 19 preceitua que a criança e o adolescente têm o direito a ser criado e educado no seio da família. A família biológica ou substituta há de assegurar aos seus filhos uma convivência salutar, em “ambiente livre” da presença de pessoas que sejam viciadas em substâncias entorpecentes; sendo que a mesma exigência se impõe à comunidade à qual pertence a criança ou adolescente. 1 O texto constitucional, no Art. 205, deixa evidente a corresponsabilidade do Estado, da família e da sociedade na educação, “[...] visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. 2 Comparando os princípios presentes no supramencionado artigo da Lei Maior e o disposto no art. 53 do Estatuto, verifica-se que há coincidência entre os dois preceitos, estabelecendo-se uma hierarquia entre os três campos que a educação deve atender em ambos os diplomas legais precitados: a) o pleno desenvolvimento da pessoa (sobretudo se estiver na infância e adolescência); b) o preparo para o exercício da cidadania, visando o conhecimento dos direitos fundamentais e seu efetivo exercício; e 1 Idem, art. 19: Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio e sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença e pessoas dependentes e substancias entorpecentes. 2 BRASIL, Constituição da República Federativa do: promulgada em 5 de outubro de 1988. Art. 205: “A educação direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno conhecimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. 41 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II c) a qualificação para o trabalho, diante da crescente exigência de formação profissional que o mercado impõe aos ingressantes. Assim, ao considerar a educação como direito fundamental (art. 205), a Lei Maior traçou três diretrizes, válidas como princípios, que devem nortear ações públicas, privadas ou particulares em educação, quais sejam: a) pleno desenvolvimento da pessoa; b) preparo para o exercício da cidadania e c) qualificação para o trabalho. 2.2 Pleno Desenvolvimento da Pessoa O desenvolvimento físico do ser humano leva à mudança da aparência, o que se nota desde os primeiros dias, em que o recém-nascido modifica seu rosto e demais características corporais, com impressionante rapidez e grande vitalidade. Simultaneamente, do ponto de vista emocional, a criança vai se construindo, desenvolvendo uma crescente percepção da realidade que a rodeia, e vai, gradativamente respondendo aos estímulos com maior facilidade. Ao ampliar seu leque de respostas, sua sensibilidade e consciência dos fatos e da vida se estruturam. Neste contexto, a educação tem papel decisivo, representando a base da formação da individualidade, a começar dos primeiros hábitos de higiene pessoal, de respeito, de gentilezas etc, até alçar à futura construção de vigorosa intelectualidade, que redundará em sucesso profissional. De sorte que educar não só consiste no oferecimento de informações, visando à profissionalização do adolescente ou ao despertar de vocações na criança, mas reside, antes de mais nada, desde tenra idade, na formação moral da pessoa em desenvolvimento. Nas práticas diárias, pais e professores devem ensinar pelo exemplo, pelas próprias atitudes, quais são os atos corretos (que devem ser elogiados) e os incorretos (que devem ser corrigidos). O processo de transformação do pequenino ser, a criança, se inicia logo após os primeiros momentos de vida, com a educação para a afetividade. Sendo criada com amor, a criança irá incorporar gestos de afeto (abraços, beijos, acenos, sorrisos etc.) à sua prática diária, tornando-se mais feliz e comunicativa, porque o amor alegra o coração. A educação é, por natureza, um processo, envolvendo uma cadeia de atos e fatos que, juntos, quando bem direcionados, tanto pelos pais, quanto pelos professores, podem levar o educando ao esperado resultado final – a transformação do caráter, quando este for o caso 42 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II (adolescentes infratores) ou à formação (no caso de adolescentes e crianças em processo regular de educação). Educar é formar e transformar para a vida em grupo, tanto na família, quanto na sociedade. A transformação pretendida pela educação secular, religiosa, familiar etc, deve ser embasada nos valores, princípios e tradições próprios de uma determinada sociedade, de modo que o ambiente em que vive o educando é marcante para a estruturação de sua personalidade. Considerando que a família é o primeiro ambiente com o qual a criança tem contato, caber-lhe-á prover abrigo, proteção, cuidado e um sentimento de aconchego, para que sua personalidade se desenvolva equilibradamente. Por isso, é prudente lembrar, conforme acentua João Malheiro, doutor em Educação pela UFRJ, que: Quando a criança aprende antes as lições que também são vivenciadas pelos pais e professores, ela aceitará depois com maior facilidade toda a ação educativa, que na prática é quase sempre ensinar a amar os outros, por meio do caminho árduo das virtudes éticas. Aceitará, por exemplo, as correções, as exigências escolares, os castigos, as broncas, enxergando-os como formas corretivas para amar mais os pais, professores, e os próprios colegas de classe. 3 Um fator importante na construção de uma personalidade equilibrada é a dedicação à missão de ensinar, somada à paciência, uma vez que os pais devem esperar os frutos da transformação gerada pela educação, gradativamente, surgirem, em razão da criança e do adolescente estarem, ainda, em processo de lenta assimilação dos valores do meio em que vivem. Os valores assimilados no lar são válidos para a vida inteira, modelando a personalidade do futuro cidadão para que exerça seu papel com responsabilidade. Ted Ward, em exaustiva análise sob o papel da família na construção da personalidade acentua: A criança humana é quase que totalmente dependente. Comparados com outras criaturas, chegamos, a este mundo, totalmente dependentes. Nascemos precisando de ajuda. Nascemos carecendo de amor e o calor do afeto. Em virtude de sermos tão insuficientes, começamos logo a agir como criaturas sociais, precisando nos relacionar com outros seres humanos. 4 3 MALHEIRO, João. Educar no amor: um desafio. Jornal Gazeta do Povo, Paraná, p. 2, 5 dez. 2010. WARD. Ted. Os valores começam no lar. Trad. Darci e Nancy Gonçalves Dusilek. Rio de Janeiro: JUERP, 1981, p. 16. 4 43 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Em razão das diversas necessidades que se apresentam à pessoa em desenvolvimento, além da família, a sociedade tem papel de destaque na formação da personalidade, contribuindo com os valores, entendidos como bens culturais, lapidados pelo grupo, com o passar dos séculos, variando de época para época, mas, preservando uma essência universal. Os valores é que dão sentido, significado aos bens culturais, possuindo, eles mesmos uma natureza histórica, resultantes do processo de evolução da sociedade, vinculados às necessidades humanas: Como todo conceito-limite, o valor não comporta uma definição lógica ou real. Pode-se dizer, contudo, que a ideia de valor se compreende na noção que temos entre o bem e o mal, entre as coisas que promovem o homem e as que o destroem. O valor não existe no ar, desvinculado do objeto. Vem impregnado na realidade, na existência. 5 A decadência dos valores morais, somada a outros aspectos da sociedade pósmoderna, que pendem para o individualismo, em menosprezo para a vida em sociedade, têm contribuído, em muito, para a desagregação da família e a deseducação do ser humano. O art. 28 § 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente ressalta os laços de afetividade, afinidade e, preferentemente, o grau de parentesco entre a criança e a família substituta, visando a preservação dos vínculos familiares originários, tanto quanto possível. 6 Assim, como se pode observar, no dizer de Rafael Becco Rossot: O afeto deve ser provido por quem exerça o papel de pai e mãe. Deve-se adotar sentido amplo de família na intenção de acolher também os parentes (tios, primos e avós, por exemplo), e inclusive terceiros que não possuam qualquer vínculo sanguíneo (como os que detêm a guarda provisória da criança quando de sua colocação em família substituta). 7 Portanto, à família biológica ou socioafetiva cabe a importante missão de educar com afeto a criança e o adolescente, incutindo-lhes os valores morais que lhes fornecerão a base para a formação de sua personalidade. 5 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 30. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 66. BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente, (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990). Art. 28: “A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta lei”. § 2°: “Na apreciação do pedido levar-se-á em conta o grau de parentesco e a relação de afinidade ou de afetividade, a fim de evitar ou minorar as consequências decorrentes da medida”. 7 ROSSOT, Rafael Bucco. O afeto nas relações familiares e a faceta substancial do principio da convivência familiar. Anais da VIII Jornada de Iniciação Científica da Faculdade de Direito da UFPR/ centro acadêmico Hugo Simas e PET/direito – UFPR (organizadores) – n°. 01 (2006). Curitiba: Mulgraphic, p. 21. 6 44 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II 2.3 Preparo (Despreparo) para a Cidadania A par da educação familiar, carente de bases morais de natureza firme, o País vive grave crise na educação formal, em razão das ineficientes políticas públicas. O Ministério da Educação, após pesquisa desenvolvida pelos órgãos destinados à aferição dos resultados em educação no País, assinalou que dos “[...] 10,3 milhões de jovens entre 15 e 17 anos, apenas 50,9% estavam no ensino médio”. 8 O abandono do ensino médio, segundo dados do Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP), está relacionado ao desempenho escolar no ensino fundamental, de modo que os alunos que foram aprovados ou estão em idade escolar apropriada, no ensino fundamental, é que prosseguem o ensino médio. A taxa de abandono dos bancos escolares é alarmante, em razão do desestímulo ou desinteresse que os alunos têm em relação à frequência à escola. Múltiplas razões são apresentadas para tentar explicar a evasão escolar, dentre estas, a baixa escolaridade dos pais e a situação econômica da família que precisa dos eventuais recursos obtidos com o trabalho de crianças e adolescentes. A formação da cidadania está diretamente vinculada à frequência à escola, visto que o despertar para o exercício dos direitos se dá pelo seu conhecimento. Ao tomar conhecimento dos seus direitos e deveres, a criança e o jovem vão construindo uma personalidade firme, adquirindo consciência do seu papel e presença na sociedade. O preceito constitucional da “dignidade da pessoa humana” somente será plenamente respeitado quando a sociedade e o Estado, ao lado da família, promovê-la como bem último, expressão máxima da cidadania no País. À educação incumbe a complexa tarefa de transformar crianças, adolescentes e jovens em cidadãos. João Evangelista, educador e pedagogo, após análise detalhada dos erros e acertos das escolhas educacionais brasileiras, conclui que: [...] a qualidade na educação básica depende, exclusivamente, da participação, do comprometimento, do compartilhamento e da persistência indômita da escola e da comunidade para o estreitamento da relação educando-educador. Talvez a evasão 8 DUARTE, Tatiana. Nota baixa afasta aluno do ensino médio. Jornal Gazeta do Povo. Paraná, p. 9, 5 dez. 2010. 45 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II escolar se constitua na pior chaga da comunidade, incluindo-se como uma de suas causas a responsabilidade dos poderes públicos constituídos. 9 O atraso crônico de medidas que visam garantir a permanência do educando na escola tem sido um dos grandes vetores do exercício de uma cidadania pela metade. O contingente de analfabetos amplia o grau de ignorância que tem marcado a formação dos futuros cidadãos, marginalizados pela pobreza, pelo analfabetismo e pela doença. Diante desse fato, medidas precisam ser adotadas, motivadoras de continuidade dos estudantes no ensino médio, única forma de formar cidadãos para o exercício dos seus direitos. A conscientização da importância da educação para o pleno exercício da cidadania depende de políticas públicas voltadas para este fim, valendo-se das mídias sociais, tão atraentes aos adolescentes e jovens na atualidade. Podem ser apontados, dentre outros, os seguintes reflexos do despreparo para o exercício da cidadania, causados pelo abandono da escola (evasão) ou mesmo falta de acesso à educação no País: a) Desinformação quanto aos Direitos e Deveres O fato de mal saber ler e escrever impede grande contingente de brasileiros de conhecer os seus direitos, sendo facilmente, enganados, por exemplo, quando da aquisição de bens ou a receber a prestação de serviços. Pode-se constatar tal situação nos inúmeros casos de prejuízos sofridos pelos consumidores de baixa renda, quando, atraídos pela publicidade, não conseguem se aperceber das ciladas armadas por comerciantes e pessoas inescrupulosas. Ao se endividarem em empréstimos consignados, por exemplo, não conseguem calcular a real taxa de juros e o montante final da dívida, durante os meses (e até anos) em que se comprometem a pagá-la. Ao assinar contratos cuja linguagem não compreendem, fazem-no louvando-se na confiança e na boa-fé do prestador de serviços ou da mercadoria, o que nem sempre ocorre. Este e outros exemplos são evidências rotineiras dos males que a desinformação, causada pela ignorância, analfabetismo e abandono dos bancos escolares, pode causar ao cidadão brasileiro. 9 EVANGELISTA, João. Um país que clama por educação. Os acertos e erros das escolas educacionais brasileiras. Revista Resol, ano 2, set/Nov. 2005. p. 14. Maiores informações disponíveis em: <www.resol.org.br> 46 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II No exercício do sagrado direito de votar e ser votado, o cidadão analfabeto ou semianalfabeto, é levado pela lábia de candidatos populistas, que lhes prometem o que não podem fazer, angariando grande número de votos, sem que seus eleitores tenham noção dos verdadeiros danos acarretados à democracia quando escolhem candidatos que trocam, por exemplo, votos por mantimentos, cadeiras de rodas, próteses etc. Prejudicam-se diretamente e a sociedade brasileira como um todo é agredida no que possui de mais valioso – os valores democráticos. b) Exclusão Social e Econômica Vivendo-se na “era da informação”, da “sociedade de consumo” e da “liberdade de valores”, a exclusão social se apresenta sob os mais diferentes matizes, fortemente sentidos pelos adolescentes e jovens quando em contato com a dura realidade social. Marginalizados economicamente, os adolescentes e jovens tornam-se frustrados pelo fato de não poderem ter acesso a bens e serviços de sua faixa etária (a exemplo dos tão festejados “objetos de marca”). Ao serem excluídos pela sua condição social e financeira da participação de eventos desportivos, shows musicais etc, tornam-se agressivos, violentos etc, reagindo a seu modo às limitações de sua condição. O Estatuto da Criança e do Adolescente atento à importância do acesso à cultura, ao esporte, ao lazer e, sobretudo, à educação, nos arts. 53 a 59 estabelecem regras quanto à sua utilização pelas crianças e adolescentes. Encontram-se dispostos nos incisos I a V do art. 53 (direitos dos educandos); art. 54, incisos de I a VII (deveres do Estado) e parágrafos; art. 55 e 56 (deveres dos pais ou responsável, dos dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental); art. 57, 58 e 59 (deveres do Poder Público, dos professores e entes federados no tocante à destinação de “recursos e espaços para programações culturais, esportivas e de lazer voltadas à infância e juventude”). Muitos são os efeitos perversos da exclusão social, de sorte que o Poder Público tem procurado, pelos mais diferentes meios, a inclusão de adolescentes e crianças, resguardandoos do abandono e da discriminação. Referida proteção se inicia com o nascimento, ou mesmo antes de sua ocorrência (na gestação), conforme prevêem os arts. 7º e 8 º do Estatuto. Os danos provocados pela evasão escolar não se limitam apenas à vida intelectual, mas se refletem sobre todos os aspectos da condição humana, repercutindo sobre as futuras famílias que serão constituídas pelos que hoje abandonam os bancos escolares. 47 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Dentre os prejuízos advindos da exclusão social, ao lado de outros componentes do meio, da família e da personalidade da criança e do adolescente, aparece a violência intrafamiliar, além da urbana, ambas vivenciadas intensamente pela sociedade globalizada. c) Violência Intrafamiliar e Urbana A segurança pública no Brasil está enfrentando grave crise, sem que se procure identificar as reais causas de sua ocorrência, cujas raízes são, sem dúvida, a violência doméstica. Algumas iniciativas legais foram tomadas para combater os conflitos intrafamiliares, a exemplo, da denominada Lei Maria da Penha (nº 11.340, de 7/8/2006); todavia, as políticas públicas voltadas para a reestruturação da família, da educação infantil e da instrução dos pais para o bom trato com os filhos ainda são incipientes. 10 A violência urbana nada mais é do que uma extensão dos conflitos familiares, uma vez que os filhos tendo modelos domésticos de agressão, em que a violência e os maus tratos são banalizados, reproduzem na escola, na rua e nos ambientes externos o que aprendem nos lares. O uso da força física na correção dos filhos, nem sempre se enquadra nos castigos considerados “moderados” (...), como “palmadinhas”, mas chegam ao absurdo de provocarem fraturas, feridas, queimaduras e outros graves danos físicos, gerando, como é de esperar, revolta em crianças e adolescentes, sendo que muitos chegam a abandonar a família, aumentando as estatísticas de “desaparecidos”... A Constituição Federal, nos arts. 226 a 230, regula a família, estabelecendo-lhe os fundamentos, a começar pela afirmação de que “a família é a base da sociedade” (art. 226), ampliando o conceito tradicional de “família civil”, para o que identifica como “união estável” (entidade familiar), como aparece no parágrafo 3º do precitado artigo. 11 O parágrafo 4º do art. 227, ao reconhecer como entidade familiar a “família monoparental”, constituída por “qualquer dos pais e seus descendentes”, alarga os horizontes legais da família no Direito brasileiro. Além do reconhecimento da família como “base da sociedade”, podem ser invocados os princípios da “dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável”, atribuindo a Lei Maior a “liberdade de decisão no planejamento familiar” ao casal (art. 226 § 7º). 10 11 Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006. BRASIL, Constituição da República Federativa do: promulgada em 5 de outubro de 1988. 48 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Ao invocar o princípio da “absoluta prioridade” no trato da criança e do adolescente, o art. 227 conferiu à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar-lhes o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Prevê ainda, a Lei Maior que à família, à sociedade e ao Estado cumpre colocar a salvo crianças e adolescentes de “toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (art. 227, in fine). Igualmente no mesmo dispositivo constitucional, em seu § 4º, expressamente o abuso, a violência e a exploração sexual de criança ou adolescente são previstos como passíveis de punição severa, consistindo no Estatuto crimes contra a criança e o adolescente (arts. 225 e seguintes). Descrevendo o cenário perturbador que envolve a violência familiar, Ana Maria Iencarelli, psicóloga e psicanalista da criança e adolescente, afirma que: A violência é um recurso eficaz, mas ilusório, para dar o alívio imediato de uma “solução”. Enquanto distorção, a violência faz aquele que está sofrendo por uma falta afetiva, assumir uma onerada autoria passível de punição, de rejeição, deixando, por vezes, como saldo a culpa. Além disso, como praticamos, inexoravelmente, a repetição de modelos pelos processos de imitação e identificação, negligenciado hoje, negligente amanhã, agredido hoje, violento amanhã, fica muito reduzida a chave de mudança desta engrenagem. 12 O espancamento dos filhos fere muito mais a sua formação moral e afetiva do que apenas o seu corpo físico. Os abusos físicos, sexuais e psicológicos sofridos por crianças e adolescentes nem sempre são computados pelos pesquisadores, embora as estatísticas existentes já sejam alarmantes. 13 O medo do abandono, da separação da família, dos irmãos, dos pais, leva a criança e o adolescente a se calarem quando indagados pelas autoridades, vizinhos, parentes etc. Também a habitualidade dos maus tratos torna fragilizados os agredidos, de tal sorte que perdem a noção da gravidade das ofensas sofridas. Com o passar dos anos, tornando-se jovens, adultos e idosos conservam as marcas dos sofrimentos recebidos na infância e na adolescência, sendo que muitos explodem em atos de violência urbana, como se vê noticiado com bastante frequência. 12 IENCARELLI, Ana Maria. Quem cuida ama – sobra a importância do cuidado e do afeto no desenvolvimento na saúde da criança. In Cuidado e vulnerabilidade/ coordenadores Tânia da Silva Pereira, Guilherme de Oliveira. São Paulo: Atlas, 2009, p. 168. 13 FREIRE, Albino de Brito. Palmadas racionais. Jornal Gazeta do Povo. Paraná, p. 2, 7 ago. 2010: o autor procura defender o que denomina de palmadas de advertência; como simples sinalização de que o filho está fazendo algo errado. 49 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Apesar da Constituição da República, no art. 144, considerar a segurança pública como dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, a violência urbana tem tomado alarmantes proporções. A impotência das autoridades no controle dos atos de violência urbana transparece da Cartilha Comunitária de Segurança, editada pela Polícia Militar do Paraná, com normas visando a colaboração das comunidades na promoção da segurança: Além de cuidar da sua segurança e da de sua família, conforme ensinado neste manual, ajude a cuidar da segurança de seus vizinhos. Inicie desenvolvendo e compartilhando uma lista telefônica com o seu nome e de seus vizinhos, das organizações locais que são encarregadas de prover segurança, assistência social, emergência médica, aconselhamento, trabalho, treinamento, orientação e outros tipos de serviços que vocês possam necessitar. 14 E ainda prossegue a mesma Cartilha: Esforce-se para retirar os que já são criminosos de seu edifício ou de seu bairro. Isto inclui solicitar rigorosa fiscalização às autoridades federais, estaduais e municipais quanto às leis de silêncio, códigos de postura municipal, códigos de saúde, normas contra-fogo do corpo de bombeiro, vigilância sanitária e qualquer outra obrigação legal. 15 Inúmeros relatos, comentários, sugestões etc. podem ser adicionados à questão em análise, mas o objetivo do texto é analisar a educação como instrumento transformador e formador da cidadania, de modo que as observações já aduzidas são suficientes. Os danos decorrentes da desinformação, da exclusão social e da violência intrafamiliar e urbana são exemplos dos perversos efeitos da falta de acesso à educação ou mesmo da evasão escolar. 2.4 Qualificação para o Trabalho Dentre os princípios fundamentais presentes no art. 1º, IV da Constituição aparecem “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”, além do previsto nos arts. 6º a 11 da Lei Maior que regulam os denominados “direitos sociais”. 14 15 Paraná, Cartilha Comunitária de Segurança: Projeto povo, 2005. p. 15. Idem, p. 16. 50 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II O trabalho, ofício ou profissão são “livres” no tocante ao seu exercício (art. 5º, XIII), desde que “atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. As expressões sinônimas que, usualmente, se utilizam, como enumera De Plácido e Silva, são, por exemplo: “... obra, ocupação, tarefa, função, ofício, serviço, mister, emprego, missão, cargo, encargo, faina etc.” 16 No sentido econômico toda atividade que possua valoração pecuniária, que produza riqueza, utilidade, bens e serviços apreciáveis monetariamente, é considerada “trabalho”. Para o Direito, o trabalho é uma espécie de contrato que se caracteriza pela existência de condições estabelecidas em lei e que devem ser cumpridas, de parte a parte, para produzir os efeitos jurídicos esperados. Dentre as características do contrato de trabalho estão, por exemplo, a fixação de um horário, de um salário ou remuneração, podendo ser em local predeterminado ou em domicílio, observando normas preestabelecidas, de acordo com a sua natureza. Por se tratar de um direito social (art. 6º) suas condições, direitos e deveres estão expressamente previstos no art. 7º; reconhecendo a Lei Maior a liberdade de associação profissional ou sindical (art. 8º); o direito de greve (art. 9º); a participação dos trabalhadores e empregadores nos órgãos públicos em defesa dos seus interesses (art. 10), bem como a eleição de representantes dos empregados para entendimento direto com os empregadores (art. 11). Quanto às regras especiais regentes da atividade laboral, a Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei nº 5452, de 1º/05/1943) as estabelece, além de copiosa legislação existente sobre as diferentes situações que envolvem a relação empregatícia. 17 Como se pode observar, a atividade que requer qualificação, observância de regras técnicas, procedimentos próprios que, geralmente, são ensinados em cursos, periodicamente fixados, com currículos, práticas, etc., corresponde ao que se denomina atividade profissional ou, simplesmente, profissão. Ao comentar a educação profissional e tecnológica, Osvaldo Vieira do Nascimento afirma que a adequação dos currículos, ajustes e correção são essenciais à formação dos futuros profissionais: O êxito na Educação Profissional e Tecnológica depende sensivelmente dos seus currículos como essência dos conteúdos de cursos e programas de refletirem e 16 17 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 70. ed. vol. IV. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 392. BRASIL, Consolidação das Leis do Trabalho (decreto–lei 5.452, de 1º de maio de 1943). 51 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II responderem às solicitações atuais, relativas às ocupações e práticas de instruções adequadas.18 No caso das crianças e adolescentes, o art. 6º do Estatuto proíbe, expressamente, “[...] qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz”. Os princípios que devem reger a formação técnico-profissional do adolescente estão no art. 63 do Estatuto, visando, acima de tudo, o seu desenvolvimento. Ao adolescente até quatorze anos de idade é assegurada bolsa de aprendizagem (art. 64); àquele maior de quatorze anos são garantidos os direitos trabalhistas e previdenciários (art.65); e ao portador de deficiência é reconhecido o direito ao trabalho protegido (art. 66). Quanto aos programas sociais que tenham por base o trabalho educativo, os adolescentes deverão ter atendimento prioritário, uma vez que o trabalho educativo é, pelo que dispõe o art. 68, §1º, “[...] a atividade laboral em que as exigências pedagógicas relativas ao desenvolvimento pessoal e social do educando prevalecem sobre o aspecto produtivo”. Os precitados programas sociais podem ser de responsabilidade governamental ou não, e a remuneração paga pela atividade não a desfigura como possuindo caráter educativo (art. 68, §2º do Estatuto). Por fim, garante o Estatuto que o adolescente tem direito à profissionalização e à proteção no trabalho, desde que sejam levados em consideração os seguintes aspectos (art. 69): “I – respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento; II – capacitação profissional adequada ao mercado de trabalho”. 19 Roberto João Elias faz lembrar que houve significativa mudança do trato da atividade laboral pelo texto do Estatuto, em relação ao disposto na legislação vigente anteriormente: Anteriormente o trabalho era permitido a menores de quatorze anos (art. 60 do ECA), porém agora, de acordo com o art. 7º, XXXIII, da CF, aos menores de dezesseis anos é proibido qualquer trabalho, exceto na condição de aprendiz, que é a partir de quatorze anos. Contudo, o trabalho noturno, perigoso ou insalubre é proibido aos menores de dezoito anos. 20 18 NASCIMENTO, Osvaldo Vieira do. Educação profissional e tecnologia: princípios e filosofia. Curitiba: J.M. Livraria, 2010, p. 59. 19 BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990). 20 ELIAS, Roberto João. Direitos fundamentais da criança e do adolescente. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 87. 52 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Uma vez constatado o reconhecimento legal do direito à educação e à qualificação para o trabalho, não só pelo Estatuto, mas pelo texto constitucional e estabelecidas diretrizes para a erradicação do trabalho infantil (PETI: Portaria nº 458, de 4 de outubro de 2001), fica evidenciada a carência de políticas públicas, sobretudo, para combater os efeitos prejudiciais aos interesses da criança e do adolescente. Dentre os danos causados ao futuro das crianças e adolescentes pela falta de acesso à educação profissionalizante podem ser citados: a) O subemprego; b) O consumo de entorpecentes e o seu tráfico; c) O trabalho infantil, em razão da miséria causada pela desqualificação profissional dos pais; d) A violência intrafamiliar e urbana, gerada, em muitos casos, pela pobreza no ambiente familiar, motivando a prática de crimes contra o patrimônio, dentre outros; e) A carência de formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa e tecnologia (art. 218, §3º, CF); 21 f) A crescente dependência de bolsas, programas, auxílios, pensões etc da parte de um contingente de brasileiros, cada vez maior, nutrida pelo despreparo profissional destes cidadãos. Assim, sem tentar exaurir os efeitos prejudiciais ao País, decorrentes da desqualificação profissional de seus cidadãos, a enumeração feita visa, apenas, despertar reflexões sobre a matéria. 3 O ESTATUTO: DIALOGANDO COM A LEI MAIOR 3.1 Perfis O Estatuto da Criança e do Adolescente representou, quando de sua entrada em vigor, um significativo avanço na proteção e na abordagem das questões referentes ao mundo infantil e juvenil, cujo conhecimento, mesmo hoje, ainda está em fase inicial. 21 BRASIL, Constituição da Republica Federativa do Brasil (5 de outubro de 1988), art. 218, § 3º: “O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas”; §3º: “O estado apoiará a formação de recursos humanos nas áreas e ciência, pesquisa e tecnologia, e concederá aos que elas se ocupem meios e condições especiais de trabalho.” 53 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A Psicologia tem dado grandes passos no sentido de investigar o “universo paralelo” em que vivem, cada um a seu tempo, a criança, o adolescente e o jovem. Como bem assinala Ted Ward, professor da Universidade Estadual de Michigan, em East Lansing, Michigan, o mundo infantil é povoado de ansiedades, de fobias, de sentimentos contraditórios, mas acima de tudo, de “mistérios”, representados pelos padrões, regras, etc., fixados pelos adultos e incompreensíveis à criança. 22 Com o desenvolvimento físico e mental, as limitações sensoriais infantis vão, aos poucos, desaparecendo, ocorrendo a descoberta e utilização de formas mais adultas de pensar. Com o passar do tempo, o raciocínio da criança evolui, por isso os pais não podem exigir que pensem amadurecidamente antes do momento certo. Jean Piaget (1896–1980), psicólogo suíço, passou toda a sua vida estudando o comportamento das crianças, tendo publicado algumas das mais célebres obras de Psicologia Infantil, a exemplo das seguintes: A Formação dos Símbolos (1946); A Biologia e o Conhecimento (1967) e Memórias (1968). Utilizou a observação em crianças, em todos os tipos de situações – nos brinquedos, na escola, no lar etc., procurando ouvir atentamente como falam com os adultos, com outras crianças e consigo mesmas. 23 Diversos componentes interferem ou contribuem para a formação do raciocínio de uma criança, influenciando como é de se esperar, o seu modo de ser e agir quando adolescente, jovem e adulto. Por exemplo, a hereditariedade, ou seja, a criança herda o material genético dos pais, mas a capacidade de desenvolvimento de ideias abstratas, ou mesmo de senso artístico, dependerá de outros fatores e experiências que vier a ter, no meio em que vive. As experiências obtidas no trato com as pessoas, sobretudo da família, formam em seu desenvolvimento mental uma categoria especial, porque à medida que a criança se desenvolve vai se tornando diferente, com identidade própria, construindo sua personalidade.24 22 WARD, Ted. Os valores começam no lar. Trad. Darci e Nancy Gonçalves Dusilek. Rio de Janeiro: JUERP, 1981, p. 50. 23 PIAGET, Jean. O raciocínio na criança. Trad. Valerie R. Chaves. Rio de Janeiro: Distribuidora Record, 1967, p. 15-67. 24 WARD, Ted. Op. Cit., p. 51-54. 54 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A socialização é que permite o desenvolvimento mental, afetivo e moral da criança, porque lhe propicia tornar-se mais independente, não só pela interação com os outros, mas pelo tratamento que recebe. 25 À medida que a criança se relaciona com outras pessoas, além da própria família, é modelada pelo processo de socialização. A escola, o clube, a Igreja, a família etc., permitem este processo de socialização se intensificar. O desenvolvimento da compreensão, processo mental que permite apreender o significado dos seres e das coisas, se verifica quando as experiências não se ajustam ao que é esperado pela criança que aprende, então, a lidar com as decepções, a ganhar, perder, tolerar, repartir, emprestar etc. O processo inicial de desenvolvimento mental da pessoa se completa em torno dos 12 (doze) anos, começando a adolescência que vai até os 18 (dezoito) anos completos. Como bem assinala Munir Cury, o ser humano vive diferentes fases da vida de modo que cada etapa é, a seu modo, “plena”, porque irrepetível, única, não retornando mais. 26 Brincar é essencial ao desenvolvimento da personalidade infantil; praticar esportes é para adolescentes e jovens; a profissionalização e a formação da família para o adulto e o descanso para o idoso. No entanto, nada impede que possa o indivíduo brincar, divertir-se, praticar esportes, realizar-se profissionalmente, formar família ou descansar em qualquer época da vida, mas na fase própria a vivência e os resultados são mais satisfatórios, proveitosos, as alegrias que trazem, também, dão à pessoa a sensação de plenitude. O Estatuto, no art. 2º, identifica o adolescente como a pessoa entre doze e dezoito anos de idade, acrescentando, no parágrafo único, que a Lei poderá, excepcionalmente, ser aplicada às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade. 27 A adolescência é vista como uma importante fase de transição na vida do ser humano, entre a infância e a adultícia: Esse conceito deve ser orientador do trabalho: adolescência não como crise, mas sim como uma importante fase de transição entre duas etapas da vida, na qual o indivíduo moldará a sua identidade, fará suas escolhas e se preparará para o ingresso no mundo adulto. É uma etapa em que o ser humano está deixando de ser criança, sem ainda ser adulto. 28 25 Idem, loc. cit. CURY, Munir. Estatuto da criança e do adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. 7. Ed. São Paulo: Malheiros Ed, 2005, p. 55. 27 BRASIL, Estatuto da criança e do adolescente, (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990). 28 IASP, Cadernos do. Compreendendo o adolescente. Paraná: Imprensa Oficial do Paraná, 2006, p. 15. 26 55 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II As mudanças corporais ocorridas na adolescência correspondem ao período denominado de puberdade; as principais modificações são as alterações hormonais que se iniciam entre 9 e 14 anos para os meninos e entre 8 e 13 anos para as meninas. 29 Os aspectos sociais da adolescência são influenciados pelo ambiente em que vive, uma vez que as relações com a família, com os amigos, com os grupos, com a religião etc., é que vão determinar a formação de sua identidade pessoal. Os componentes psicológicos da adolescência são contraditórios, uma vez que se trata de uma fase em que a instabilidade, a incerteza, as flutuações de humor, a rebeldia, os conflitos familiares etc., constroem um quadro de grande intensidade emocional nesta etapa da vida humana. 30 Um dos conflitos mais frequentes na adolescência é representado pela repulsa à autoridade dos pais, dos professores, dos adultos em geral e por um acentuado ímpeto pela emancipação, pela independência; tornando-se, em razão disto, o adolescente, uma pessoa insubordinada. A insubmissão à autoridade pode ser tolerada desde que represente uma fase transitória, sendo que detectados sinais de desequilíbrio mental, torna-se necessário identificar a possível presença do consumo de drogas, doenças etc. É importante salientar que os revezes que a instituição familiar têm sofrido resultam de inúmeras causas, desde as de natureza econômica, passando pelas mais comuns, quais sejam, a ausência dos pais nos lares, o enfraquecimento dos laços afetivos etc. Paulo Lúcio Nogueira, ao analisar a crescente vulnerabilidade de crianças e adolescentes em razão da fragilização da família comenta que: Não há dúvida que o grande problema consiste na reestruturação e auxílio à própria família, que é o fundamento primeiro da formação humana. A situação de desajuste e de pobreza da família gera a condição do menor carente ou abandonado. E a educação mais eficaz é justamente aquela dada no lar. 31 Crianças e adolescentes têm seus direitos elencados no Estatuto (Lei n. 8069, de 13 de Julho de 1990), construídos com base nos preceitos constitucionais (art. 227 e parágrafos), que repousam em dois princípios basilares, a saber, proteção integral e prioridade absoluta de atendimento. 32 29 Idem, ibidem, p. 16-17. Idem, ibidem, p. 20-23. 31 NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 12-13. 32 BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente, (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990). 30 56 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II 3.2 Princípios Basilares A “proteção integral” e a “prioridade absoluta” são dois princípios presentes no texto constitucional que estabelecem os pilares processuais e hermenêuticos do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069, de 13 de julho de 1990). A criança e o adolescente são reconhecidos pelo art. 3º do Estatuto como sujeitos de direitos fundamentais, gozando de proteção integral, além de plenitude de respeito à sua condição de desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social. Como discorrem Murillo José Digiácomo e Ildeana de Amorim Digiácomo: Tal disposição é também reflexo do contido no art. 5º, da CF/88, que ao deferir a todos a igualdade em direitos e deveres individuais e coletivos, logicamente também os estendeu a crianças e adolescentes. O verdadeiro princípio que o presente dispositivo encerra, tem reflexos não apenas no âmbito do direito material, mas também se aplica na esfera processual, não sendo admissível, por exemplo, que adolescentes acusados da prática de atos infracionais deixem de ter fielmente respeitadas todas as garantias processuais asseguradas aos acusados em geral, seja qual for sua idade [...] 33 Quanto à prioridade absoluta, é regulada pelo art. 4º do Estatuto como “dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público” a preservação dos direitos elencados pelo mesmo artigo, além de sua efetivação. Trata o parágrafo único do art. 4º de distintas situações em que as autoridades públicas devem, obrigatoriamente, garantir prioridade na atenção da criança e do adolescente. Não se pode interpretar este parágrafo de forma restritiva, mas, extensiva, uma vez que a clareza do texto estatutário não deixa margem a dúvidas quanto à prevalência dos interesses, carências e necessidades infanto-juvenis: Como se depreende em rápida exegese do precitado dispositivo estatutário, existe [...] um verdadeiro comando normativo dirigido em especial ao administrador público, que em suas metas e ações não tem alternativa outra além de priorizar – e de forma absoluta – a área infanto-juvenil, como vem sendo reconhecido de forma reiterada por nossos Tribunais [...] 34 33 DIGIÁCOMO, Murillo José. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado e interpretado/Murillo José Digiácomo e Ildeara Amorim Digiácomo. Curitiba: Ministério Público do Estado do Paraná – Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do adolescente, 2010, p. 13. 34 Idem, p. 14. 57 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II O disposto no art. 227 da Constituição, seus parágrafos e incisos, encontra ecos diretos e objetivos não apenas no art. 4º, parágrafo único do Estatuto, mas em todas as suas prescrições, de modo que é evidente o diálogo que se estabelece com a Lei Maior. Com a finalidade de correlacionar os preceitos da Carta da República com o Estatuto, será feita breve síntese assim delineada: 35 Além da proteção integral aos seus direitos fundamentais e à efetivação dos mesmos, com absoluta prioridade, as normas estatutárias deve ser interpretadas sempre levando-se em conta a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento (art. 6º), em que se encontram a criança e o adolescente. Os seus direitos se apresentam no Estatuto arrolados em cinco grupos, a saber, vida e saúde (arts. 7º - 14); liberdade, respeito e dignidade (arts. 15- 18); convivência familiar e comunitária (arts. 19 - 52); educação, cultura, esporte e lazer (arts. 53 - 59); profissionalização e proteção no trabalho (arts. 60 - 69). Ocupa-se o Estatuto da prevenção de ocorrência de ameaça ou violação aos direitos da criança e do adolescente, em todos os aspectos, mas em especial no que respeita à informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos, produtos e serviços que possam afetar-lhes a personalidade em desenvolvimento, sob qualquer ângulo (arts. 70 a 84). Quanto à ação das políticas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, cabe ao Poder Público articulá-las mediante a colaboração com organizações nãogovernamentais, além da atuação da União, Estado, Municípios e Distrito Federal (art. 86 97). As medidas de proteção (arts. 98-102) e a prática de ato infracional (arts. 103-126), somadas às medidas aplicáveis aos pais ou responsável (art. 129-130) compõem a garantia de respeito e dignidade que o Estatuto visa promover, ao afastar, no art. 5º, “qualquer forma de negligencia, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” praticada contra criança ou adolescente. Com a participação da comunidade são escolhidos os membros do Conselho Tutelar (arts. 131 a 140), cujas atribuições estão previstas no art. 136 do Estatuto, objetivando o atendimento e a promoção de iniciativas voltadas ao bem-estar da criança e do adolescente. O acesso à Justiça da criança e do adolescente se dá pela Defensoria Pública, Ministério Público e Poder Judiciário, respeitados a gratuidade e o sigilo dos atos judiciais 35 BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990). 58 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II (arts. 141-144), sempre que os seus interesses assim o exigirem, sendo vedada qualquer forma de discriminação ou restrição ao pleno exercício de seus direitos em juízo. Caberá à Justiça da Infância e da Juventude julgar as ações previstas no art. 148, incisos e alíneas, bem como disciplinar, mediante portaria e alvará, os atos que estão previstos no art. 149, incisos e alíneas do estatuto. Os procedimentos adotados pela Lei n. 8069/1990 se aplicam subsidiariamente às normas gerais previstas na legislação processual pertinente (arts. 152 a 224). Os crimes e infrações administrativas são regulados pelo Estatuto nos arts. 225 a 258, sem prejuízo do disposto na legislação em vigor. Diante da analise sumaria realizada e das questões por este diploma legal arroladas, é evidente a interlocução existente entre os preceitos da Lei maior e do Estatuto, traduzindo sua relevância social e ética para o País. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao conferir à educação a natureza de direito fundamental, o art. 205 da vigente Constituição especificou diretrizes que foram examinadas detidamente nas reflexões ora concluídas. Por primeiro foi analisado o pleno desenvolvimento da pessoa, cujo leque de situações envolve desde os aspectos físicos, aos emocionais e intelectuais. Considerou-se a educação como processo, portanto, com prolongamento no tempo, que na infância e adolescência deve ser lastreado pela afetividade e embasado nos valores, princípios e tradições de uma comunidade, grupo ou família. Assim, sendo o ambiente doméstico acolhedor, a criança e o adolescente se tornarão pessoas amáveis e com responsabilidade social. Conforme destacado, em palavras de Ted Ward, o ser humano é “totalmente dependente”, vale dizer, somente se realiza em grupo, construindo sua personalidade como reflexo dos valores e, na infância, tal insuficiência é marcante, pelas mais distintas razões, a começar pela carência afetiva, somada à alimentar e sanitária. Cabe, igualmente, ao teor do art. 205, à sociedade o dever de colaboração, ao lado do Estado e da família, promovendo e incentivando ações educativas. Na sequência, abordou-se o preparo para a cidadania como diretriz do processo educativo, à luz do texto constitucional. Verificou-se a presença de situações persistentes, a exemplo da evasão escolar, causada por inúmeros fatores, dentre estes a baixa escolaridade dos pais, além da situação econômica da família. À educação incumbe a missão de 59 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II transformar crianças, adolescentes e jovens em cidadãos compromissados com os valores da sociedade à qual pertencem, além de conscientes de seu papel político. Foram levantadas no texto três questões problemáticas, representativas dos reflexos do despreparo para o exercício da cidadania, causados pelo abandono escolar ou mesmo falta de acesso à educação no País: desinformação quanto aos direitos e deveres (apatia, alienação, acomodação), sobretudo dos analfabetos, iletrados ou com letramento precário; exclusão social e econômica, com crescente marginalização de um elevado contingente de cidadãos e, por fim, a violência intrafamiliar e urbana, cujos efeitos perversos estão, a todo momento na mídia. Representada pelo espancamento, abandono, maus tratos físicos, emocionais etc a insegurança social nada mais é do que o espelho das condições de precariedade afetiva, moral e intelectual das famílias. Quanto à qualificação para o trabalho deu-se atenção a questões remanescentes do próprio sistema ou decorrentes da falta de êxito na formação profissional e tecnológica de grande número de adolescentes (menores aprendizes) e jovens (mão de obra informal). O trabalho é um direito social (art. 6º) na Lei Maior, cujas condições, direitos e deveres estão expressamente previstos no art. 7º, também, da Carta Constitucional. Proibições aparecem no tocante a qualquer trabalho por menores de 14 (quatorze) anos, no texto da Constituição, cujos princípios que devem reger a formação técnico-profissional do adolescente se encontram no art. 63 do Estatuto. Valores do trabalho devem ser incutidos desde os primeiros momentos de contato do adolescente aprendiz com a atividade profissionalizante, intensificando-se com a formação do jovem. Deu-se no texto destaque ao diálogo do Estatuto com os princípios constitucionais não só do art. 205, mas que permeiam as disposições em geral, pela necessidade de contínua interlocução com a realidade socioeconômica educativa do País. Os perfis da criança e do adolescente foram esboçados no texto sob o enfoque psicopedagógico, socorrendo-se a análise de fontes diversas, legais, científicas e técnicas, não só do Direito, mas de outras áreas, conforme referenciado nas reflexões elaboradas. Fundamentou-se uma breve síntese do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069, de 13 de julho de 1990) nos princípios presentes na Lei maior (“proteção integral” e “prioridade absoluta”), igualmente diretores da hermenêutica material e formal da mencionada legislação estatutária. Considerando-se que a pedra de toque do texto foi a análise das diretrizes do art. 205 da vigente Constituição e a percepção da urgente necessidade de promoção, incentivo e acesso à educação quanto, sobretudo, à infância e adolescência; verificou-se que as políticas públicas ainda são insuficientes para atender a demanda reprimida. 60 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II As possíveis soluções atravessam diversas áreas dos setores públicos e privados, mas, o começo de qualquer iniciativa em educação está, sem dúvida, na conscientização dos educadores e na mobilização da sociedade. REFERÊNCIAS BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil (5 de outubro de 1988). BRASIL, Consolidação das Leis do Trabalho (decreto – lei 5.452, de 1 de maio de 1943). BRASIL, Estatuto da Criança a do Adolescente, (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990). CURY, Munir. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. 7. Ed. São Paulo: Malheiros Ed, 2005. DIGIÁCOMO, Murillo José. Estatuto da criança e do adolescente anotado e interpretado/Murillo José Digiácomo e Ildeara Amorim Digiácomo. Curitiba: Ministério Público do Estado do Paraná – Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do adolescente, 2010. DUARTE, Tatiana. Nota baixa afasta aluno do ensino médio. Jornal Gazeta do Povo. Paraná, p. 9, 5 dez. 2010. ELIAS, Roberto João. Direitos fundamentais da criança e do adolescente. São Paulo: Saraiva, 2005. EVANGELISTA, João. Um país que clama por educação. Os acertos e erros das escolas educacionais brasileiras. Revista Resol, ano 2, set/Nov. 2005. p. 14. Disponível em: < www.resol.org.br> FREIRE, Albino de Brito. Palmadas racionais. Jornal Gazeta do Povo. Paraná, p. 2, 7 ago. 2010. IASP, Cadernos do. Compreendendo o Adolescente. Paraná: Imprensa Oficial do Paraná, 2006. IENCARELLI, Ana Maria. Quem cuida ama – sobra a importância do cuidado e do afeto no desenvolvimento na saúde da criança. 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Tal questão tem sido objeto de um debate permanente que envolve, além das justificativas para esta atuação, os limites da mesma. Dentre as teorias que podem auxiliar e dar respostas efetivas a essa questão, está a Teoria Geral do Garantismo, a qual tem como espaço privilegiado de aplicação o Estado Constitucional de Direito e trás um conceito que se mostra fundamental no enfrentamento da questão relaciona ao ativismo judicial: a estrita legalidade que, em face da dupla artificialidade do sistema (formal e material), possibilita um controle mais democrático das políticas públicas. E foi justamente o que ocorreu com a edição da Lei 12.010/2009 a qual reformou parte do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8069/90), reduzindo o espaço de discricionariedade judicial de forma adequada e positiva. PALAVRAS-CHAVE: Estado Constitucional de Direito. Ativismo Judicial. Garantismo. Direitos Sociais. ABSTRACT One of the most significant changes in the Brazilian legal system relates to judicial prominence that occurred after the enactment of the 1988 Constitution. Such a question has been the subject of an ongoing debate that involves the justifications for this action and its limits as well. Among the theories that can help and give effective answers to this question, there is the General Theory of Guaranteeism, which has as a privileged space for the application of State Constitutional Law and brings a fundamental concept in addressing the issue related to the judicial activism: the strict legality that, given the dual artificiality of the system (formal and material), enables a more democratic control of public policies. And it was precisely what occurred with the enactment of Law 12.010/2009 which reformed part of the Children and Adolescents Statute (Law 8069/90), reducing the area of judicial discretion in an appropriate and positive manner. KEYWORDS: State Constitutional Law. Judicial Activism. Guaranteeism. Social Rights. 1 Doutor em Direito (UFSC). Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajaí-SC (UNIVALI) e do curso de graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Juiz de Direito de 2º Grau (Desembargador Substituto) do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC). Lattes: http://lattes.cnpq.br/9181238721519519. Email: [email protected] 63 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II 1 INTRODUÇÃO Analisadas as transformações ocorridas no cenário jurídico nacional, uma das características mais marcantes é, sem dúvida alguma, o protagonismo judicial a partir da edição da Constituição da República em 1988. Defendido por alguns, criticado por outros, o fato é que em nenhum outro momento de nossa história republicana o Poder Judiciário esteve tão à frente do atendimento das políticas públicas incorporadas ao texto constitucional como hoje. E é justamente daí que surge o debate sobre os limites da atuação jurisdicional, já que para alguns o poder de escolha do administrador público e do legislador não pode ser invadido pela atuação do Poder Judiciário. Para eles, tal quadro leva a um rompimento do princípio da separação de poderes, causando a substituição de um governo ou de um legislador democraticamente eleito, pela vontade de um agente político não legitimado para tanto. Já para outros, tal se mostra normal e aceitável em um Estado Democrático de Direito, cuja característica principal é a total submissão aos comandos colocados na Constituição, documento esse que tem a pretensão de dirigir todos os setores da vida em sociedade. Outra questão importante que resulta dessa oposição de ideias a respeito dos limites da atuação dos Juízes está ligada a segurança jurídica, a qual – se adotada a tese que admite a inexistência de limites quando se trata da realização de direitos constitucionalmente assegurados – restaria comprometida ante a ausência de soluções uniformes para problemas comuns. Partindo de uma visão negativa dessa atuação, o que se aclarará ao longo do texto, o objetivo aqui é demonstrar como é possível a utilização da Teoria Geral do Garantismo para fazer frente a esse protagonismo. Afinal, Luigi Ferrajoli – seu idealizador –sustenta uma concepção negativa do exercício do poder, combatendo claramente o autoritarismo na política e o decisionismo no Direito. Diz ele que, no exercício do poder há sempre presente um potencial abuso e sua neutralização somente ocorrerá de modo eficaz com a sustentação de uma visão instrumental do Direito e do Estado. Disso decorre uma complexidade específica dos ordenamentos de constituição rígida: uma dupla artificialidade que não resulta somente do caráter positivo das normas produzidas – marca fundamental do positivismo jurídico –, mas também pela sua sujeição ao Direito – marca fundamental do Estado Constitucional de Direito. A produção jurídica está disciplinada por normas, tanto formais como substanciais, de direito positivo. Eis o resgate do princípio da legalidade, através da chamada “dupla artificialidade”, que é um dos caminhos mais seguros 64 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II para enfrentar essa difícil questão, a exemplo do que ocorreu com o direito penal, onde o princípio da legalidade (formal e material) tem sido utilizado com sucesso para evitar a permanente tentativa de endurecimento do sistema penal como resposta à criminalidade. Igual prática deveria e poderia ser adotada como os direitos sociais, onde há ainda um campo fértil para a busca de tais limites, a fim de que ajudem a justiça brasileira a encontrar parâmetros mais claros em relação à satisfação dessa modalidade de direitos. Exemplo disso foi o que ocorreu com o direito da criança e do adolescente, e essa é a questão se pretende explorar a seguir. 2 A TEORIA GERAL DO GARANTISMO Como já dito nos capítulos anteriores, duas transformações paralelas e semelhantes deram-se em campos diversos do conhecimento e influenciaram não só o modo de compreensão do Direito, mas também as funções reservadas ao Estado contemporâneo. A primeira ocorreu na Filosofia do Direito, que admitiu a existência de um novo momento, o “pós-positivismo”, cuja essência reside no reconhecimento de que há um novo paradigma a merecer atenção, o paradigma constitucional, o qual tem como marca fundamental a superação do mero legalismo. A segunda ocorreu na Teoria do Estado. Nela, em lugar de um Estado de Direito e da centralidade do princípio da legalidade como norma de reconhecimento do Direito vigente, surge um Estado Constitucional de Direito, que se apresenta como superação do primeiro. A mudança reside na crescente importância das constituições contemporâneas, nelas destacadas duas características fundamentais: supremacia e rigidez. Esses documentos tornam-se os elementos centrais da nova formulação, que requer instrumentos aptos para a realização dos direitos fundamentais, categoria que se apresenta como elemento central desse novo momento. A prática de declarar direitos em cartas constitucionais, ação iniciada com as revoluções liberais – especialmente a francesa no século XVIII, ganha força com esses movimentos. Nasce a esperança de que, transformadas as aspirações sociais em direitos fundamentais, e estes, por sua vez, colocados a salvo em Constituições protegidas das maiorias eventuais, ter-se-ia proteção suficiente para criar uma sociedade livre das barbáries ocorridas ao longo dos anos. Constatou-se, porém, sua insuficiência, já que a dificuldade atual está localizada não mais no reconhecimento de direitos e na sua declaração, mas sim “em como juridicizar o 65 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Estado Social, como estabelecer ou inaugurar novas técnicas ou institutos processuais para garantir os direitos sociais básicos, a fim de fazê-los efetivos” (BONAVIDES, 2005, p. 338). Tal é, sem dúvida alguma, o ponto fundamental para a superação final das antigas estruturas do Direito e do Estado – que ainda privilegiam antigas técnicas –, estruturas essas totalmente inadequadas para fazer frente a este novo desafio. O pensamento que proclama uma compreensão do sistema apenas e tão somente pela vinculação formal do conjunto normativo, já não tem mais lugar no pós-positivismo e no Estado Constitucional e Democrático de Direito. Daí que cuidadoso exame merecem as ideias de Ferrajoli, expostas inicialmente em Diritto e Ragione, obra publicada na Itália em 1989 e traduzida para o espanhol em 1995. Desde então protagonista de grandes discussões, foi depois detalhada em uma série de trabalhos publicados, com especial atenção aos livros que apresentam os debates com outros professores, os quais serão analisados mais à frente. A pretensão de Ferrajoli é construir uma “teoria geral do Garantismo”, razão pela qual dedica os dois últimos capítulos de sua obra Direito e Razão a tratar do assunto. Na base de seu pensamento, há a identificação de três aspectos de uma crise profunda e crescente vivida pelo Direito na atualidade. A primeira crise é a chamada “crise da legalidade”, ou seja, do valor vinculante associado as regras pelos titulares dos poderes públicos, que se expressa pela ausência ou pela ineficácia dos instrumentos de controle. Seu resultado imediato é a ilegalidade do poder. Um reflexo dessa situação pode ser encontrado em vários Estados – europeus ou não – em que há uma espécie de Estado paralelo que funciona baseado na corrupção e se estende por todas as áreas (política, economia, administração pública etc.) (FERRAJOLI, 2001, p. 15). A segunda está ligada à inadequação das estruturas do Estado de Direito para dar conta das novas funções a ele atribuídas no chamado Welfare State. Se antes a marca fundamental do modelo na sua versão liberal era a de protetor de uma esfera de individualidade, cuja atuação não exigia apenas a imposição de limites e proibições, agora tudo muda. Exige-se do Estado de Direito Social uma atuação positiva, atuante, pró-ativa, de que resulta uma inflação legislativa que é provocada pelos mais diversos setores sociais com leis cada vez mais específicas, parecendo meros atos administrativos. Há dificuldade para a consolidação de um sistema de garantias tão eficiente como foram aqueles criados para proteger os postulados do liberalismo, situação agravada pela acentuação do caráter 66 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II incompleto, seletivo e desigual que se manifesta na crise pela qual este modelo de Estado passou no início dos anos setenta. A terceira crise está relacionada ao debilitamento do Estado Nacional e se manifesta no deslocamento dos lugares da soberania, já que as questões relacionadas, por exemplo, às questões militares, de política monetária e políticas sociais escapam de suas fronteiras, passando a depender mais de questões externas do que de questões internas. Além disso, há um enfraquecimento do constitucionalismo, ante a inexistência de suporte teórico em Direito Internacional que resolva a inserção desses novos espaços decisórios externos no sistema das fontes de Direito. No raciocínio de Ferrajoli, o problema central está em que essas três crises podem colocar em colapso a própria Democracia, já que, por trás de todas elas, está presente uma crise da legalidade, ou seja, do princípio da legalidade na sua versão mais pura e naquilo que tem de mais precioso: a vinculação de todos às normas legais. Sua ausência gera a ilegalidade do poder e formas neoabsolutistas de exercício do poder público “carentes de limites y de controles y gobernadas por intereses fuertes y ocultos, dentro de nuestros ordenamentos” (FERRAJOLI, 2001, p.17). A esse respeito pode ser dito ainda que – como se trata de uma teoria que se desenvolve no ambiente do Estado Constitucional de Direito e é própria dele – não traz consigo a simples defesa de um mero legalismo, até porque o Garantismo é incompatível com a falta de limitação jurídica do poder legislativo, já que a mera sujeição do juiz à lei possibilitaria a convivência com as políticas mais autoritárias e antigarantistas (ABELLÁN, 2005, p. 21). Sustenta sim, a partir de uma concepção negativa do exercício do poder, vez que reconhece que há sempre presente um potencial abuso, que sua neutralização somente ocorrerá de modo eficaz com a sustentação de uma visão instrumental do Direito e do Estado. O Garantismo se opõe de modo veemente “al autoritarismo en política y al decisionismo em derecho, propugnando, frente al primero, la Democracia sustancial y, frente al segundo, El principio de legalidad; en definitiva, El gobierno sub leges (mera legalidad) y per leges (estricta legalidad)” (ABELLÁN, 2005, p. 22). Pensar o contrário colocaria em risco as conquistas do Estado Moderno, em especial, os direitos fundamentais, já que é inegável a perda de confiança que pode gerar, especialmente após a constatação das crises existentes que afetam diretamente o sistema normativo e, como já destacado, o princípio da legalidade. É bem verdade, afirma Ferrajoli, 67 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II que, na época da implantação do sistema juspositivista, o quadro não era diferente, ou era até pior, mais complexo e irracional. Contudo, não se pode negar que a razão jurídica atual tem a seu favor um aliado importante: os progressos do constitucionalismo, que permitem configurar e construir o Direito atual – muito mais do que se permitiu no velho Estado Liberal – com um sistema artificial de garantias constitucionalmente preordenadas para a tutela dos direitos fundamentais (FERRAJOLI, 2001, p. 18). Tal decorre de uma complexidade específica dos ordenamentos de constituição rígida: uma dupla artificialidade que não resulta somente do caráter positivo das normas produzidas – marca fundamental do positivismo jurídico –, mas também pela sua sujeição ao Direito – marca fundamental do Estado Constitucional de Direito. A produção jurídica está disciplinada por normas, tanto formais como substanciais, de direito positivo (FERRAJOLI, 2001, p. 19). Nesse passo, Garantismo e Estado Constitucional de Direito são expressões que se identificam, podendo até mesmo afirmar-se que o segundo expressa a fórmula política do primeiro, de modo que, apenas por meio desse, aquele consegue realizar seu programa, até porque “solo este modelo político incorpora um riguroso ‘principio de estrita legalidad’, que supone el sometimiento del poder no únicamente a limites formales, sino también a los limites sustanciales impuestos por los principios y derechos fundamentales” (SANCHÍS, 2005 p. 41). Pois bem, voltando à mencionada “dupla artificialidade”, é preciso dizer que ela se constitui na mais importante conquista do Direito contemporâneo, já que o modelo garantista se opõe frontalmente ao modelo paleopositivista, na medida em que se apresenta como uma garantia diante do Direito ilegítimo. Nessa construção, as Constituições são fundamentais, já que é na sua primazia como sistema de limites e vínculos para a maioria que deve ser reconhecida uma das suas dimensões essenciais, não menos importante que sua dimensão política. É o que Ferrajoli chama de dimensão substancial da Democracia, em contraposição à dimensão meramente formal, constituída precisamente pelo princípio da maioria. Há, contudo, um aspecto importante que leva necessariamente ao reconhecimento da segunda dimensão, a substancial: no cerne da primeira, está localizada a confusão entre Democracia e princípio da maioria, de forma a se entender esta última apenas como o poder da maioria legitimado pelo voto popular. Tal compreensão [...] ignora la que es la máxima adquisición y al mismo tiempo el fundamento del Estado constitucional de derecho: la extensión del principio de legalidad también al poder de la mayoría y, por consiguiente, la rígida sujeción a la ley de todos los 68 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II poderes públicos, incluindo el legislativo, y su funcionalización a la tutela de los derechos fundamentales constitucionalmente garantizados (FERRAJOLI, 1995, p. 11). Eis o reconhecimento de uma dimensão substancial da Democracia, com o importante detalhe de que estes vínculos materiais não são outra coisa senão as garantias dos direitos fundamentais, desde os direitos de liberdade até os direitos sociais: [...] cuya estipulación ha introdocido, en la estructura misma del principio de legalidad propio del actual estado constitucional del derecho, una racionalidad sustancial que se ha añadido a la racionalidad formal propia del viejo positivismo jurídico y del paradigma roussoniano de la Democracia Política, basados ambos en la omnipotencia del legislador de mayoria (FERRAJOLI, 1995, p. 12). Partindo de uma base de Direito Penal, em que se visualiza com perfeição a divergência entre a normatividade do modelo constitucional e a ausência de efetividade nos níveis normativos inferiores, Ferrajoli sustenta a já referida "Teoria Geral do Garantismo". Como ele mesmo afirma: La orientación que desde hace algún tiempo se conoce por el nombre de 'Garantismo' nació en el campo penal como una réplica al creciente desarrollo de la citada divergencia, asi como a las culturas jurídicas y políticas que la han avalado, ocultado e alimentado, casi siempre en nombre de la defensa del estado de derecho y del ordenamiento democrático (FERRAJOLI, 1995 p. 851). A partir daí, Ferrajoli propõe o significado da palavra "Garantismo" em três concepções diversas, suscetíveis de ser trasladadas para todos os campos do conhecimento jurídico. A primeira delas decorre do entendimento de Garantismo como um modelo normativo de Direito, já que é justamente a partir do Direito Penal que a palavra representa a ideia de estrita legalidade, própria do Estado de Direito; a segunda representa a acepção do termo Garantismo como uma teoria jurídica da validez e da efetividade, consideradas categorias distintas entre si, e também da vigência ou existência das normas. Nesse caso, a palavra Garantismo expressa uma aproximação teórica que mantém separados o ser do dever ser do Direito, além de propor como questão central a divergência existente – nos ordenamentos complexos – entre: modelos normativos (tendencialmente garantistas) y práticas operativas (tendencialmente antigarantistas), interpretándola mediante la antinomia – dentro de ciertos limites fisiológica y fuera de ellos patológica – que subsiste entre validez (e inefitividad) de los primeros y efectividad (e invalidez) de las segundas (FERRAJOLI, 1995, p. 85). Por fim, na terceira forma de compreender Garantismo, a palavra designa uma filosofia política que impõe ao Direito e ao Estado uma “carga de la justificación externa conforme a los bienes y a los intereses cuya tutela y garantia constituye precisamente la finalidad de ambos” (FERRAJOLI, 1995, p. 853). 69 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Ferrajoli explica ainda que esses três sentidos, que até aquele momento haviam sido usados com uma conotação unicamente relacionada ao Direito Penal, contêm um alcance teórico mais amplo e desenham uma teoria geral fundada nos seguintes aspectos: 1) caráter de vinculação do poder público no Estado de Direito; 2) divergência entre validade e vigência produzida pela existência de normas em níveis diversos dentro do sistema jurídico e certo grau (irredutível) de ilegitimidade jurídica das atividades normativas de níveis inferiores; 3) distinção entre ponto de vista externo (ou ético-político) e ponto de vista interno (ou jurídico) e daí a divergência entre justiça e validade; e, por fim, 4) autonomia e precedência da justiça e um certo grau de ilegitimidade política das instituições vigentes com relação a ela (FERRAJOLI, 1995, p. 854). Por todos esses motivos, fica evidente que a ampliação do campo de incidência do Garantismo jurídico é perfeitamente possível, já que a similitude de questões a ser superadas do antigo Estado de Direito e a construção de estruturas para a plena vigência do Estado Constitucional de Direito, assim apontam. Some-se a isso a identidade estrutural entre os diversos sistemas presentes no ordenamento jurídico, elemento que torna possível a ampliação dessas estruturas para os mais diversos campos do Direito que, na atualidade, passam pelos mesmos problemas. 3 AS MUDANÇAS PROVOCADAS PELA INTRODUÇÃO DO GARANTISMO JURÍDICO EM UM MODELO DE POSITIVISMO CLÁSSICO A apresentação das mudanças trazidas pelo novo modelo de Garantismo leva necessariamente a um confronto direto com a concepção de Direito sustentada pelo positivismo clássico, diferença essa que pode ser percebida nos seguintes planos: 1) no plano da Teoria do Direito, em que se faz necessária uma revisão da concepção de validade das normas jurídicas, que decorre da diferenciação que é feita entre validade e vigência; 2) no plano da teoria política, já que agora se postula o reconhecimento da dimensão substancial da Democracia, não sendo mais suficiente apenas sua compreensão no plano formal; 3) no plano da teoria da interpretação e da aplicação da lei, vez que agora se impõe ao juiz uma nova postura, com a redefinição do seu papel, e, ainda, das condições para que se dê sua vinculação; e, 4) no plano da ciência jurídica, que se afasta de uma postura meramente descritiva do sistema, para assumir uma postura crítica em relação ao seu objeto. 70 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II 3.1 O Garantismo e a Teoria do Direito No que se refere à primeira alteração, evidencia-se uma clara superação das teses apresentadas por três dos mais importantes teóricos do Direito no século passado: Kelsen, Bobbio e Hart. Isto porque, conforme Ferrajoli, a validade da norma não é mais identificada unicamente por sua conformidade com as normas que regulam sua produção e que também pertencem a esse ordenamento (FERRAJOLI, 2001, p. 20). Para o autor, essa concepção é uma simplificação indevida do sistema normativo e resulta da falta de compreensão da complexidade do princípio da legalidade no Estado Constitucional de Direito, já que não se pode desconhecer que neste, o sistema de normas sobre a produção de normas não se compõe unicamente de regras formais que tratam de competência ou procedimentos, mas sim – e também – traz “normas sustanciales, como el principio de igualdad y los derechos fundamentales, que de modo diverso limitan y vinculan al poder legislativo excluyendo o imponiéndole determinados contenidos” (FERRAJOLI, 2001, p. 21). Isso significa que uma norma deixa de ser reconhecida somente pelo atendimento aos requisitos previstos para sua criação. Passa a exigir também respeito à matéria que é objeto dessa lei, que não poderá jamais contrariar o conteúdo da “norma de reconhecimento”. Para os aspectos formais, há o conceito de vigência, que serve justamente para a verificação do respeito, ou não, aos procedimentos para a elaboração da norma, da competência para sua edição e do atendimento aos requisitos necessários para produzir seus efeitos. Para as questões relacionadas à sua substância, ao seu conteúdo, ao seu aspecto material, busca-se o conceito de validade, que é resultado direto da dupla artificialidade do sistema jurídico que hoje se reconhece. Há uma imposição de limitação ao poder do legislador – já que na compreensão de Ferrajoli a possibilidade do abuso do poder está sempre presente – a qual é feita fundamentalmente através da separação dos conceitos de vigência e validade da norma, que deixam de ser compreendidos como um só, o que ocorria no estado paleopositivista de Direito. Agora uma norma será justa, se merecer a aprovação moral, juízo que é externo ao sistema; será válida, se não contiver vícios materiais, ou seja, não contrariar normas hierarquicamente superiores; será vigente, se preencher os requisitos formais previstos no sistema; e, por fim, será eficaz se observada pelos destinatários (ABELLÁN, 2005, p. 26). Contudo, apesar das vantagens identificadas na teoria apresentada por Ferrajoli – considerada como uma completa Filosofia do Direito que inclui teses metodológicas, 71 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II conceituais e axiológicas – ainda assim algumas dificuldades podem ser encontradas, especialmente no que se refere à separação entre vigência e validade. Nesse sentido, Abellán afirma que, ao se considerar a vigência como uma categoria submetida a um juízo interpretativo e não um mero juízo de fato, e a validade também como um juízo de interpretação e não de valor indecidível, em ambos os casos não há como se afastar de uma discricionariedade interpretativa, no segundo caso mais presente do que no primeiro (ABELLÁN, 2005, p. 33). A consequência disso é que a validade se torna então um juízo externo, afirmação reforçada pela interpretação de Ferrajoli apresentada por Abellán, para quem: interpretar la constituición no consiste solo en atribuir significado al texto normativo según el canon interpretativo de la intención de su autor, sino según la filosofia política que subyace a la misma y que esta solo imperfectamente recoge; es decir, según el modelo axiológico del Garantismo (ABELLÁN, 2005, p. 35). Apesar de apontar que esse efeito pode levar ao enfraquecimento do Garantismo, vez que o coloca em posição próxima àqueles a quem critica, é preciso dizer que esse detalhe pode ser compreendido de outra forma. É que – além de se tratar de um juízo interno e não externo – detém um forte componente de racionalidade sistêmica, ausente no exame da justiça da norma, uma vez que, como lembra Serrano: el juicio de validez depende de los mecanismos internos de control del sistema jurídico, en mucha mayor medida que el juicio de justicia pueda depender de mecanismos de control de los sistemas Morales. Los sistemas jurídicos están más diferenciados y son, en este sentido, mucho más cerrados que los sistemas Morales (SERRANO, 1999, p. 53). Ainda em relação ao entendimento de validade sustentado por Ferrajoli, tal sustentação leva ao reconhecimento de que – a partir daí – se constroem três novas esferas de decisão política, inexistentes na compreensão do sistema jurídico no modelo paleopositivista do Estado de Direito, em que validade e vigência se confundem. São elas: 1) a do indecidível formada pelo conjunto de direitos de liberdade e de autonomia que impedem decisões – expectativas negativas – que podem lesioná-los ou reduzi-los; 2) a do indecidível formada pelos direitos sociais que impõem decisões – expectativas positivas – dirigidas a satisfazê-los; e, por fim, 3) a do decidível, instância em que se legitima o direito de autonomia, tanto política (através da representação) como privada (através das regras do mercado). E é justamente nesse ponto, de acordo com Sanchís: [que a] Democracia formal aparece generada por los derechos de autonomia que determinan quién y cómo se manda; la Democracia sustancial viene delimitada por los derechos de liberdad que dan lugar a obligaciones de abstención o respeto de âmbitos de inmunidad (lo indecidible) y por lo derechos sociales que reclaman 72 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II acciones positivas de dar o de hacer (lo indecidible que no) (SANCHÍS, 2005 p. 43). Dá-se então o ponto de encontro das duas formas de compreender o sistema, promovendo a ligação entre o aspecto formal e o substancial, com especial ênfase aos direitos fundamentais. 3.2 O Garantismo e as Dimensões da Democracia (Formal e Substancial) Na relação entre Garantismo e Democracia, o que sobressai é a compreensão de um aspecto até então encoberto ou desconhecido da Democracia, que é a sua dimensão substancial, já que de um olhar para a Democracia que servia apenas para ditar procedimentos de coleta da vontade popular, passa-se a perceber a existência de outro aspecto em relação a ela, agora voltado para a garantia de direitos não só da maioria, mas também da minoria, vez que seu reconhecimento impede que a primeira anule ou aniquile os direitos da segunda, sem qualquer possibilidade de existência de uma onipotência da primeira, o que resulta de uma compreensão de Democracia plebiscitária ou majoritária. E é justamente em oposição a essa compreensão limitada de Democracia que Ferrajoli aponta a existência de uma Democracia constitucional, a qual se contrapõe a uma Democracia legitimada unicamente pela vontade da maioria que desqualifica os limites impostos ao poder executivo, tido como um poder absoluto no modelo paleopositivista de Estado de Direito (FERRAJOLI, 2008, p. 25). A esse pensamento se opõe a moderna concepção de Constituição, já que reduz (ou elimina) sua principal função por meio da imposição de limites ao poder. Para Ferrajoli, a essência do constitucionalismo e do Garantismo – e da Democracia constitucional reside precisamente en el conjunto de limites impuestos por las constituciones a todo poder, que postula en consecuencia una concepción de la Democracia como sistema frágil y complejo de separación y equilíbrio entre poderes, de limites de forma y de sustância a su ejercicio, de garantias de los derechos fundamentales, de técnicas de control y de reparación contra sus violaciones (FERRAJOLI, 2008, p. 27). Nesse novo modelo, o Estado constitucional está submetido ao Direito, tanto quando os demais poderes do Estado, o que se dá em função da supremacia constitucional, elemento que se apresenta como uma das grandes novidades nos sistemas políticos do pós-guerra. Dáse o surgimento de um novo paradigma que passa a informar todo o Direito, redefinindo sua função dentro do sistema social, o qual pode ser mais bem compreendido se observado que é a partir do fim da Segunda Guerra mundial – quando o homem percebe que sua capacidade de destruição é superior a sua capacidade de construção – que se dá o seu surgimento. É 73 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II justamente ali que se veem os malefícios que podem ser causados pela maioria diante da ausência de limites a ela e, ainda, que o consenso das massas não pode ser a única fonte de legitimação do poder (FERRAJOLI, 2008, p.28). Há uma redescoberta das constituições com uma leitura mais ampla do artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, em que estava dito que só tinha Constituição a sociedade que garantisse direitos e separasse poderes. A tudo isso se agrega um novo elemento: a rigidez constitucional, elemento que se apresenta com a concepção hierarquizada do sistema jurídico – de onde decorre a supremacia do texto constitucional – e que resulta, conforme Ferrajoli: en la sujeición al derecho de todos los poderes, incluso el poder legislativo, em el plano del derecho interno y también el del derecho internacional: su sujeición, precisamente, al imperativo de la paz y a los princípios de justicia positiva, y ante todo a los derechos fundamentales, establecidos tanto em las constituciones estatales como en ese embrión de constituición mundial constituido por la Carta de las Naciones Unidas y la Declaración universal de los derechos humanos (FERRAJOLI, 2008, p. 29). Esse novo elemento faz com que o momento de elaboração de uma Constituição seja um momento especial, único. Com isso, retira-se da maioria o poder de supressão de direitos e garantias, e asseguram-se os direitos à minoria, o que autoriza a afirmação de que o Estado Constitucional é mais do que Estado de Direito, já que o elemento democrático nele introduzido não foi apenas ali colocado para travar o poder, foi também inserido pela necessidade de legitimação desse mesmo poder (CANOTILHO, 2003, p.100). Há uma constitucionalização da ordem jurídica, que pode ser identificada com as chamadas “sete condições de constitucionalização” já mencionadas, que é preciso repetir: 1) rigidez constitucional, de modo que qualquer reforma do texto maior somente poderá se dar através de um processo mais agravado do que aquele utilizado para a aprovação, modificação ou revogação das leis ordinárias; 2) controle de constitucionalidade, decorrente da rigidez e da supremacia da Constituição, que funciona como mecanismo de proteção da autoridade do texto fundamental, ao prever modos de retirar do sistema o que lhe for contrário; 3) força vinculante da Constituição, já que não se pode admitir que um texto com essa importância deixe de gerar obrigação aos cidadãos e ao poder público, até porque “al asegurar el carácter normativo de las constituciones se garantiza la vinculación a las cláusulas constitucionales de los poderes públicos y los ciudadanos en los momentos de política ordinária” (PEÑA FREIRE, 2004, p. 34); 4) A adoção de uma interpretação extensiva da Constituição, ou seja, uma compreensão da Constituição de modo a extrair também as normas implícitas nela inseridas; 5) Aplicação direta das normas constitucionais, o que impõe a compreensão de que 74 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II se trata de um documento que – em lugar de estar no topo do ordenamento jurídico – também pode ser visto no centro de uma estrutura de onde irradia toda sua força normativa; 6) Interpretação das leis ordinárias conforme a Constituição, o que significa levar a extremos o controle de constitucionalidade, incorporando as modernas técnicas de fiscalização da constitucionalidade das leis, alçando, inclusive, as variações de interpretação das normas fora do texto maior; e, por fim, 7) Influência da Constituição nas relações políticas, o que decorre diretamente da aceitação do documento perante a comunidade em geral (GUASTINI, 2005, p. 50-58). De todas as mencionadas, não há dúvida de que as duas primeiras são essenciais e fundamentais nesse processo, já que são justamente elas que determinam a colocação da Constituição em um novo espaço que a diferencia daquele que lhe era reservado no antigo Estado Paleopositivista de Direito. Com isso, tem-se uma Constituição resultante da compreensão de que com ela esse espaço servirá como um elemento de superação da debilidade estrutural presente no antigo Estado de Direito. Afirma-se o caráter jurídico e vinculante dos textos constitucionais, a rigidez e a qualificação de determinados referentes jurídicos, tais como os direitos fundamentais, signos desse processo (CADEMARTORI, 2006, p. 20). Nesse passo, torna-se explícita a compreensão de que os direitos fundamentais constituem a base da igualdade moderna, igualdade em direitos que evidencia duas características estruturais que diferenciam essa categoria de direitos de todas as demais. A primeira pode ser percebida no direito de propriedade, este, um tipo de direito que pode ser chamado de universal, já que corresponde a todos na mesma medida, diferentemente do que ocorre com os direitos patrimoniais, que são direitos excludentes, posto que um sujeito pode ou não ser detentor, com um importante detalhe que deve ser levado em consideração: ao ser uma pessoa titular de um direito desse tipo, dá-se a exclusão dessa possibilidade para todas as demais. A segunda está relacionada à indisponibilidade e à inalienabilidade, tanto ativa como passiva, características que “los sustrae al mercado y a la decisión política, limitando la esfera de lo decidible de uno y otra, y vinculándola a sua tutela y satisfacción” (FERRAJOLI, 2001, p. 23). Aqui também, evidentemente, estão presentes os elementos que sustentam um Estado Constitucional de Direito em superação ao velho Estado de Direito de matrix paleopositivista, já que essenciais se mostram duas de suas características já ressaltadas, a saber, a supremacia 75 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II e a higidez do texto constitucional. Ocorre dessa forma pelo simples fato de que esses dois elementos colocam a salvo de toda e qualquer maioria eventual os direitos da minoria. Adianta Ferrajoli que a dupla artificialidade – que determina a existência de normas que tratarão da vigência e de normas que tratarão da validade das normas – serve também para o reconhecimento de que a dimensão formal da Democracia estará atenta a quem decide e a como se dá a decisão política, ao passo que a dimensão substancial (ou material) está focada sobre o que pode ou não ser objeto da decisão política (FERRAJOLI, 2001, p. 23). 3.3 O Garantismo e o Papel do Juiz Se na Teoria do Direito e na extensão de mais um significado ao entendimento do que é Democracia, os reflexos do Garantismo se fazem presentes, idêntica situação ocorre em relação à atividade jurisdicional e às possibilidades interpretativas que se abrem para o operador do Direito. Em verdade, e especialmente no que se refere ao primeiro ponto, há uma redefinição do papel que o juiz pode ocupar dentro do sistema, já que será a jurisdição uma função que dará a garantia ao cidadão de que a norma inválida e que não diga respeito aos parâmetros substanciais, deixará de ser aplicada por falta de vinculação. Com isso, a ilegitimidade do poder que a colocou no sistema ficará evidenciada, já que, no novo sistema, a vinculação do juiz não será mais à lei, como no velho Estado Paleopositivista de Direito. Agora, no Estado Constitucional de Direito, a vinculação se dá à Constituição, pois nela estão depositados os valores fundamentais da sociedade expostos sob o título de direitos fundamentais. Como explica Ferrajoli: En esta sujeición del juez a la Constituición, y, en consecuencia, en su papel de garante de los derechos fundamentales constitucionalmente establecidos, está el principal fundamento actual de la legitimación de la jurisdición y de la independencia del poder judicial de los demás poderes, legislativo y ejecutivo, aunque sean – o precisamente porque son – poderes de mayoría. (FERRAJOLI, 2001, p. 26). Disso decorre uma importante consequência que diz respeito ao fundamento do exercício da atividade jurisdicional, a partir do reconhecimento de que sua atribuição é a garantia de direitos fundamentais com o respeito à dupla artificialidade do sistema. Cai por terra o dogma de que sua legitimação está relacionada apenas e unicamente à separação de poderes. Há, como se vê, um deslocamento, de modo que: Esta legitimación no tiene nada que ver com la de la Democracia Política, ligada a la representación. No se deriva de la voluntad de la mayoría, de la que asimismo la ley es expresión. Su fundamento es únicamente la intangibilidad de los derechos fundamentales (FERRAJOLI, 2001, p. 27). 76 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II O que se pode extrair disso é uma mudança fundamental que se dá com a alteração na concepção do Estado de Direito – e sua passagem para um Estado Constitucional de Direito – e a compreensão do Garantismo não mais como apenas uma mera proteção dos direitos de liberdade em relação ao Estado, ou diante dele, entendimento histórico da expressão. Se antes era assim entendido, o que gerava uma função jurisdicional típica do liberalismo calcada na ideia de separação dos poderes, agora a concepção de Garantismo representa uma forma de identificar a Democracia constitucional própria do Estado Constitucional de Direito (IBANHES, 2005, p. 61). Isso explica sua raiz penal e a ampliação para a garantia de todos os demais direitos fundamentais, legitimando e justificando a atuação judicial para essa proteção – já que o sistema constitucional atual impõe de maneira vinculante uma Teoria Crítica do Direito, não mais limitada e na ocultação das divergências entre o ser e o dever ser, mas que problematiza o Direito, perdendo o juiz seu papel tradicional imposto pela visão kelseniana do ordenamento. 3.4 O Garantismo e a Ciência Jurídica No que se refere à quarta e última das alterações produzidas no velho Estado de Direito em sua versão juspositivista, está ela relacionada à afirmação de que situações como a incoerência, a falta de plenitude, as antinomias e as lacunas são vícios insuperáveis do sistema jurídico. Na visão de Ferrajoli, tal situação – em lugar de alimentar um pessimismo em relação às possibilidades do Direito – no Estado Constitucional e Democrático de Direito, constituem-se em seu maior mérito. O que à primeira vista se mostra paradoxal, deixa de sê-lo ao se observar que justamente as características do Estado Democrático de Direito é que excluem as formas de legitimação absoluta e permitem sempre “más que la legitimación, la deslegitimación del ejercicio de los poderes públicos por violaciones o incumplimientos de las promesas altas e difíciles formuladas en sus normas constitucionales” (FERRAJOLI, 2001, p. 28). Diante disso, evidencia-se um papel destinado à ciência jurídica inexistente no antigo modelo, que é justamente o de exercer um papel crítico em relação ao seu objeto de estudo, e não apenas e tão somente descritivo. Com a já falada dupla artificialidade existente no sistema de normas jurídicas, surgem possibilidades dentro do sistema – e não mais de fora dele – de se promoverem as correções necessárias para impedir o abuso de poder manifestado pela 77 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II inserção de normas que violem esse mesmo conjunto normativo, agora não unicamente pela forma de inserção, mas também pelo conteúdo. Importante observar que esse papel crítico, que se dá no campo da legitimidade da norma, está ligado – também – ao seu conteúdo, a partir do exame da sua validade que, como já exposto, difere da vigência. A esse respeito, ainda é preciso destacar a questão relacionada à justiça da norma, que difere tanto da vigência quanto da validade. Em relação ao primeiro, tal se evidencia pelo fato de que a vigência é apenas e tão somente relacionada à existência jurídica da norma, ou seja, é um juízo de fato que abre a possibilidade de observação dos aspectos meramente formais exigidos para que a norma possa fazer parte do ordenamento jurídico. Quanto ao segundo, as diferenças se mantêm, já que se trata de um juízo de adequação entre o conteúdo da norma e o conteúdo das normas superiores a ela. Contudo, há um ponto que merece destaque: aqui há uma identidade entre o juízo de justiça da norma e a sua validade, relacionada à estrutura do exame que é feito. Tais coincidências ocorrem em dois pontos: 1) juízos valorativos e 2) juízos complexos, difusos ou de grau, em oposição ao de vigência, que é simples ou binário (sim ou não), já que “establecer que uma norma jurídica deriva de otra o, cuando menos, que no es incompatible com Ella no es uma operación geométrica o posibilística, sino una determinación probabilística de grados” (SERRANO, 1999, p. 52). Em síntese, pode-se lembrar com Cademartori quando afirma que essa forma de compreender e abordar o Direito “coloca em questão dois dogmas do positivismo jurídico dogmático: a fidelidade do juiz à lei e a função meramente descritiva e avalorativa do jurista em relação ao direito positivo vigente” (CADEMARTORI, 2006, p.104). 4 A TÍTULO DE CONSIDERAÇÕES FINAIS: A LEI 12.010/2009 COMO UM EXEMPLO DE APLICAÇÃO DA ESTRITA LEGALIDADE E A LIMITAÇÃO POSITIVA DA ATIVIDADE JURISDICIONAL Quando o assunto é direitos sociais, um dos pontos mais sensíveis da Constituição da República é o que trata do direito das crianças e dos adolescentes e se evidencia na ênfase dada ao assunto, tratado em um capítulo inteiro da Constituição de 1988. Dos artigos que tratam da matéria, o principal é o de número 227, em que está dito: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 78 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Pela simples leitura desse artigo, percebe-se uma ênfase especial à chamada “política da proteção integral”, expressão que resume a visão doutrinária adotada pelo sistema constitucional brasileiro, deixando para trás as formas antes privilegiadas que, ao longo dos anos, mostraram-se insuficientes para dar conta do problema, ainda mais violadoras do que garantidoras de direitos e, por isso mesmo, inadequadas como mecanismos de proteção às crianças e adolescentes. Para compreender o alcance dessa mudança de paradigma, é preciso voltar ao início do século passado, quando o Brasil editou o Decreto n. 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, ato legislativo que modificou a situação de total descaso até então existente em relação aos menores. Esse documento, na época considerado um avanço, olhado com a distância do tempo, mostra-se insuficiente, já que trata a criança e o adolescente de forma única, desconsiderando as diferenças entre as duas fases do crescimento, o que se percebe ao observar que todos eram tratados de forma geral como “menores abandonados” e, a partir daí, colocados na condição de “filhos do Governo”. Alguns dispositivos são interessantes e bem demonstram a visão equivocada, como é o caso do art. 15 que preconizava: “A admissão dos expostos á assistencia se fará por consignação directa, excluido o systema das rodas”. Essa norma possibilitava a entrega da criança para o Estado sem a identificação da genitora, de forma anônima. Admitir essa condição significa tratar a criança como um objeto à disposição do adulto, sem levar em consideração a existência de seu direito à convivência familiar. Outro exemplo está no art. 26 do já mencionado Decreto que considerava como abandonados e colocava sob a tutela do Estado, não só aqueles que tinham menos de 18 anos sem habitação certa ou meios de subsistência por serem os pais falecidos ou desaparecidos, como também os “que se encontrem em estado habitual de vadiagem, mendicidade ou libertinagem” mesmo que seus pais fossem conhecidos (inciso V, do art. 26, do Decreto n. 17.943-A, de 12.10.1927). Como se vê, para situações completamente diversas, era o mesmo o tratamento previsto. Caso houvesse o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direito, seria outra a intervenção proposta. Essa compreensão equivocada manteve-se nas legislações posteriores, dentre as quais merece destaque o Código de Menores de 1979, que adota a chamada “Doutrina da Situação Irregular” e afirma em seu artigo 1º que aquele código tratava da “assistência, proteção e vigilância a menores”. O mencionado código descreve no art. 2o o que entende por 79 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II menor em “situação irregular”: aquele que estivesse em falta, omissão ou impossibilidade dos pais; fosse vítima de maus tratos; corresse perigo moral; estivesse em desvio de conduta ou fosse autor de infração penal. Mais uma vez, em lugar da individualização, o trato genérico exclusivamente focado no adulto. Com o já mencionado art. 227 da Constituição de 1988 e a adoção da política de proteção integral, muda-se por completo essa concepção que traz como marca: 1) a compreensão de que a violação de qualquer direito da criança ou do adolescente é de responsabilidade da família, da sociedade ou do Estado; 2) desaparecem as caracterizações ambíguas como “risco”, “perigo moral”, “situação irregular” que nelas permitiam o enquadramento de qualquer situação fora do padrão ditado pelos adultos; 3) as crianças e os adolescentes são sujeitos de direitos, e não mais meros problemas ou objetos à disposição dos adultos; e, por fim, 4) há uma forte atenção à garantia dos direitos, não se preocupando o legislador apenas com sua declaração. Dentro dessa linha foi editado o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069/90), ato normativo que tem por pretensão detalhar toda a “política da proteção integral” – como anuncia já nos seus primeiros artigos – e o faz a partir de uma estrutura dividida em três sistemas de garantias: em primeiro, as políticas públicas de atendimento (arts. 4a a 87); em segundo, as medidas de proteção destinadas às crianças e aos adolescentes em situação de violação de seus direitos (arts. 98 a 101); e, por fim, um sistema que trata de medidas sócioeducativas aplicáveis a adolescentes em conflito com a lei. Os demais dispositivos tratam das estruturas que darão suporte a este sistema de garantias, como os Conselhos, a Justiça da Infância e da Juventude, as infrações administrativas e os crimes específicos, bem como suas penalidades. De início, uma das características que pode ser percebida no trato do direito da infância e da juventude no Direito brasileiro é que, de uma concepção que nominalmente era protetiva, mas na prática era seletiva, já que deixava aos aplicadores da norma um largo espaço para, inclusive, escolher quem deveria se enquadrar nos seus conceitos, caminhou-se para a adoção de uma legislação que identificava melhor os casos que a ela deveriam se submeter, abandonando as denominações ambíguas e o espaço de escolha do aplicador da norma. Agora, embora evidente a escolha desse caminho, há ainda um largo espaço de discricionariedade deixado ao aplicador da norma (seja na esfera administrativa, seja na esfera jurisdicional) quando se trata da implementação de qualquer dos direitos ali previstos. O que 80 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II se vê é que, na aplicação concreta desses dispositivos, ainda persistem inúmeras possibilidades de interpretação, a exemplo, registre-se, do que ocorreu com a distribuição de remédios nos casos de portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida). É bem verdade que, com a edição da Lei n. 9313/96 (que determina a distribuição gratuita de medicamentos), houve uma redução das decisões judiciais contraditórias, caminhando-se para uma uniformização. Mas é preciso recordar o que ocorria antes dela: de um lado, decisões determinando a concessão do remédio de forma gratuita a toda e qualquer pessoa que dele necessitasse; ao mesmo tempo, de outro, decisões negando essa possibilidade pelos mais diversos argumentos, os quais iam desde a falta de estrutura do Estado para atender a todos, até julgamentos morais relacionados aos portadores da referida síndrome. É inegável que parte do problema foi resolvida, mas também é inegável que em muitas outras situações ele persiste, o que se dá pela existência de um ponto comum entre eles: a existência de “vazios” legislativos que possibilitam arbítrios jurisdicionais e tratamento desigual a situações semelhantes. Tanto isso é verdade que, na tentativa de resolver esse problema, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação n. 31, de 30 de março de 2010, documento que apresenta várias medidas que devem merecer a atenção do juiz quando se depara com pedidos dessa natureza, tudo com o objetivo de evitar decisões conflitantes que importem em gastos inadequados ao Estado, seja com medicamentos ainda em fase experimental, seja com medicamentos de eficácia duvidosa ou destinados a pessoas em condições de arcar com seus custos. É justamente aqui que se aplicaria a noção da estrita legalidade, agora redimensionada em face da dupla artificialidade proclamada por Ferrajoli, ou seja, em face do vínculo formal e do vínculo substancial, sempre tendo por parâmetro a Constituição Federal e a possibilidade de uso dos seus instrumentos de defesa, em especial, o controle de constitucionalidade. A exemplo do que já ocorre com o Direito Penal, abre-se a possibilidade de construção de um sistema garantista de ordem social mais claro e aplicável com maior facilidade, evitando a contaminação de concepções pessoais, que estariam impedidas de invadir a esfera de atuação judicial como forma de limitar o exercício dos direitos fundamentais. Além disso, obrigaria de modo mais claro o administrador a implementar tais direitos. 81 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Retomando o caso do direito da criança e do adolescente, foi justamente isso que ocorreu com a edição da Lei 12.010, de 03 de agosto de 2009, com o objetivo de aperfeiçoar a sistemática prevista para garantia do direito à convivência familiar a todas as crianças e adolescentes. Pela leitura dos seus diversos artigos, que promovem alterações substanciais no Estatuto da Criança e do Adolescente, o que se percebe não é uma mudança de concepção no trato da matéria como antes colocada, mas sim uma especificação dos institutos previstos, detalhando-os de modo mais claro, não só em relação aos procedimentos que devem ser adotados, mas também em relação às condições para a ocorrência de uma série de situações jurídicas. Exemplo disso é o que diz agora o art. 19, § 2º: “A permanência da criança e do adolescente em programa de acolhimento institucional não se prolongará por mais de 2 (dois) anos, salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentada pela autoridade judiciária”. Antes dele, não havia qualquer prazo fixado para a busca de uma solução, abrindo-se um grande espaço de liberdade ao juiz para a escolha do destino a ser dado à criança naquela situação, sem qualquer justificativa. Isso agora não será mais possível diante da obrigatoriedade de justificar quando o prazo previsto for superado. Outro ponto que igualmente demonstra a opção pelo detalhamento em lei com o objetivo de evitar manifestações contraditórias é o que trata da habilitação para adotar. Desde a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069/1990), foi implantado na maioria dos juizados da infância e juventude espalhados pelo Brasil um sistema que dispunha que toda adoção deveria ser antecedida por uma habilitação prévia. Esta era feita por meio de um pedido assinado pelos próprios requerentes, em que, além de apresentar as características da criança ou adolescente por eles desejado, anexavam alguns documentos. Depois, os pretendentes eram submetidos a um estudo social e, com manifestação do Ministério Público, era prolatada uma decisão judicial declarando-os habilitados, ou não, ato que poderia merecer recurso à instância superior. A lei determina os cuidados referentes à adoção em artigo específico em que se lê: Art. 50. A autoridade judiciária manterá, em cada comarca ou foro regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção. § 1º O deferimento da inscrição dar-se-á após prévia consulta aos órgãos técnicos do Juizado, ouvido o Ministério Público. § 2º Não será deferida a inscrição se o interessado não satisfizer os requisitos legais, ou verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 29. 82 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Percebeu-se, no entanto, que, em inúmeras comarcas espalhadas pelo Brasil, tal procedimento era limitado à simples colocação do nome do interessado em um livro após contato com as assistentes sociais, o que era feito sem qualquer formalidade maior que permitisse conhecer mais o pretendente e, após isso, elaborar um juízo seguro sobre sua preparação para a responsabilidade de assumir uma criança ou adolescente. A falta de uniformidade no proceder levou à necessária regulamentação de modo mais detalhado daquilo que antes já era a intenção do legislador, ou seja, uma avaliação preliminar do pretendente a fim de dar maior segurança às novas adoções. Para tanto, o legislador detalhou de modo mais claro o procedimento a ser seguido, reduzindo a possibilidade de dispensa do procedimento. É o que se vê nos parágrafos e incisos incluídos no art. 50, da Lei 8069/90 a partir da Lei n. 12010/2009, merecendo destaque a obrigatoriedade de “preparação psicossocial e jurídica”, agora prevista no novo parágrafo 3º, do art. 50, o que torna explícita a intenção da habilitação: preparar as pessoas para a adoção. É ali que está colocado: A inscrição de postulantes à adoção será precedida de um período de preparação psicossocial e jurídica, orientado pela equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar. Além disso, o novo parágrafo 4º também trata e regulamenta algo que na prática já ocorre, mas que precisa ser organizado, o contato dos pretendentes com as crianças e adolescentes disponíveis para adoção: Sempre que possível e recomendável, a preparação referida no § 3º deste artigo incluirá o contato com crianças e adolescentes em acolhimento familiar ou institucional em condições de serem adotados, a ser realizado sob a orientação, supervisão e avaliação da equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude, com apoio dos técnicos responsáveis pelo programa de acolhimento e pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar. Com isso, evitam-se situações indesejáveis como, por exemplo, o contato com todas as crianças, inclusive aquelas não disponíveis para adoção, o que pode gerar sofrimento desnecessário aos pretendentes e às crianças, já que – caso haja interesse na adoção – essa seja obstada pela existência de vínculos com os genitores. Com a visita e o contato orientados, os encontros se darão somente com as crianças e adolescentes em condições de adoção. Idêntica é a situação quando se trata do deferimento do pedido de adoção. Na redação anterior do Estatuto da Criança e do Adolescente, não havia qualquer menção expressa de que a adoção deveria ser deferida apenas a pessoas previamente habilitadas no cadastro de adoção. Havia a previsão desse cadastro em apenas dois artigos e nada mais. Tal situação gerou uma grande divisão na doutrina e na jurisprudência, havendo quem afirmasse a 83 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II obrigatoriedade da inscrição prévia, ao lado de outros que afirmavam ser ela desnecessária e mera formalidade. Com isso, admitiam-se adoções que, na maioria dos casos, acobertavam transações comerciais. Com a nova lei, a situação aclarou-se. O parágrafo 13 do art. 50 afirma: Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando: I - se tratar de pedido de adoção unilateral; II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade; III - quando oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei. Com esse dispositivo, mais uma vez, limita-se a liberdade do julgador, de modo a obrigá-lo a seguir um critério mais claro, e menos pessoal, no deferimento das adoções, tornando explícita a necessidade de que o cadastro seja a principal opção para a aproximação de crianças e adolescentes e pretendentes, colocando a adoção direta (ou pronta) – aquela em que as pessoas já comparecem ao juizado com a criança ou adolescente que pretendem adotar – como uma exceção limitada à hipótese prevista no inciso III. Isso evita o comércio, a intermediação indevida e a exploração que poderá daí decorrer. Garante o direito à convivência familiar, já que é possível um trabalho com a família biológica para a recolocação da criança ou adolescente entre seus membros, além de aumentar as possibilidades de sucesso da adoção por força da preparação anterior já tratada, fundamental para evitar as devoluções. Estes exemplos demonstram como é possível tornar a atividade jurisdicional mais democrática e menos pessoal, privilegiando a compreensão de que o fato de ser instrumento para a garantia de direitos fundamentais ou de agente político não autoriza qualquer agente do Estado a se arvorar em detentor de uma legitimidade inexistente em um sistema político em que a busca do equilíbrio no exercício do poder é uma das marcas fundamentais. Evidentemente que haverá casos em que a estrita legalidade não será suficiente. Contudo, não se pode esquecer que hoje temos um sistema de controle de constitucionalidade bem desenhado, com imposição de respeito aos limites formais e materiais ditados pela Constituição, o que, por certo, contribuirá para impedir abusos legislativos ou, ainda, abusos nas decisões judiciais. 84 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II REFERÊNCIAS ABELLÁN, Marina Gascón. La teoría general del garantismo: rasgos principales. 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O ponto de partida é a compreensão das normas da Constituição brasileira relacionadas ao tema. Entre as várias formas de terceirização de serviços públicos de saúde, é analisada aqui, a título exemplificativo, a delegação por meio de organizações sociais, que tem encontrado grande resistência nos meios acadêmicos devido à sua má utilização pelo Poder Público. PALAVRAS-CHAVE: ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA; SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE; TERCEIRIZAÇÃO; LIMITES; ORGANIZAÇÕES SOCIAIS. ABSTRACT: This article is about the outsourcing of public health services by Public Administration, in order to describe the main characteristics of this typical business management’s method. The objective of this study is basically to define the rules and principles that are applied to the use of outsourcing by the Government. The starting point is the understanding of Brazilian Constitution’s rules related to the subject. Among the various forms of outsourcing of public health, it is analyzed here, as an example, the delegation through social organizations, which has found great strength in academic circles due to its misuse by the Government. KEYWORD: PUBLIC ADMINISTRATION; PUBLIC OUTSOURCING; LIMITS; SOCIAL ORGANIZATIONS. HEALTH SERVICES; 1 INTRODUÇÃO 1 Mestrando em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduado em Direito Público (2012) e Direito Processual (2009) pelo Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007). Advogado. 86 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Busca-se no presente estudo analisar o instituto da terceirização de serviços públicos, com foco no compartilhamento de responsabilidades entre a iniciativa privada e o Estado, especialmente no que diz respeito ao serviço público de saúde, a fim de investigar alguns limites para a utilização desse processo de gestão da atividade do Poder Público. Em um primeiro momento, pretende-se avaliar o conceito de terceirização, tanto no meio empresarial, no qual surgiu, quanto no âmbito estatal, em que vem sendo intensamente utilizada atualmente. A partir daí, vai-se indagar a respeito das possibilidades constitucionais e legais para a terceirização de serviços públicos de saúde, adentrando, especificamente, na transferência desses serviços às organizações sociais. 2 TERCEIRIZAÇÃO O termo terceirização é uma criação linguística derivada do latim tertius, que quer dizer terceiro. Não se trata, porém, sob o aspecto puramente técnico, da figura normativa do “terceiro”, típica das relações civilistas ou processuais. Nessas, enquanto o terceiro é exatamente o estranho em uma relação jurídica entre duas ou mais partes, na terceirização este sujeito integra, efetivamente, a relação jurídica e, embora seu vínculo seja como interveniente ou intermediário, ele não é um estranho. Segundo Maurício Godinho, esse “neologismo [terceirização] foi construído pela área de administração de empresas, fora da cultura do Direito, visando enfatizar a descentralização empresarial de atividades para outrem, um terceiro à empresa” (DELGADO, 2006, p. 428). Acerca do conceito de terceirização, Maria Sylvia Zanella Di Pietro esclarece que “existe certo consenso entre os doutrinadores do direito do trabalho em definir a terceirização como a contratação, por determinada empresa, de serviços de terceiro para o desempenho de atividades-meio”. (DI PIETRO, 2012, p. 212). No âmbito do Direito do Trabalho, Maurício Godinho traz a seguinte definição acerca do tema: Para o Direito do Trabalho terceirização é o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente. Por tal fenômeno insere-se o trabalhador no processo produtivo do tomador de serviços sem que se estendam a este laços justrabalhista, que se preservam fixados com uma entidade interveniente. A terceirização provoca uma relação trilateral em face da contratação de força de trabalho no mercado capitalista: o obreiro, prestador de serviços, que realiza suas atividades materiais e intelectuais junto à empresa tomadora de serviços; a empresa terceirizante, que contrata o 87 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II obreiro, firmando com ele os vínculos jurídicos trabalhistas pertinentes; a empresa tomadora de serviços, que recebe a prestação de labor, mas não assume a posição clássica de empregadora desse trabalhador envolvido. O modelo trilateral de relação socioeconômica e jurídica que surge com o processo terceirizante é francamente distinto do clássico modelo empregatício, que se funda em relação de caráter essencialmente bilateral. Essa dissociação entre relação econômica de trabalho (firmada com a empresa tomadora) e relação jurídica empregatícia (firmada com a empresa terceirizante) traz graves desajustes em contraponto aos clássicos objetivos tutelares e redistributivos que sempre caracterizaram o Direito do Trabalho ao longo de sua história. (DELGADO, 2006, p. 428) Diversamente ao entendimento citado, Sérgio Pinto Martins defende que a terceirização deve ser entendida de forma mais ampla, como o simples fato de a empresa contratar serviços de terceiros para a execução de suas atividades-meio. De acordo com o Autor: Consiste a terceirização na possibilidade de contratar terceiro para a realização de atividades que não constituem o objeto principal da empresa. Essa contratação pode envolver tanto a produção de bens, como de serviços, como ocorre na necessidade de contratação de serviços de limpeza, de vigilância ou até de serviços temporários. Envolve a terceirização uma forma de contratação que vai agregar a atividade-fim de uma empresa, normalmente a que presta os serviços, à atividade-meio de outra. É também uma forma de parceria, de objetivo comum, implicando confiança mútua e complementariedade. O objetivo comum diz respeito à qualidade dos serviços para colocá-los no mercado. A complementariedade significa a ajuda do terceiro para aperfeiçoar determinada situação que o terceirizador não tem ou não quer fazer. O objetivo principal da terceirização não é apenas a redução de custos, mas também trazer maior agilidade, flexibilidade e competitividade à empresa. (MARTINS, 1997, p. 22) Desses conceitos até então trazidos à tona, pode-se destacar dois aspectos fundamentais na conceituação de terceirização. O primeiro diz respeito ao fato de se tratar de execução indireta de atividades-meio, de serviços de apoio, em oposição às atividades-fim, que são o próprio produto final da empresa. O segundo aspecto está ligado à inexistência de vínculos, quer dizer, laços trabalhistas, entre o ente tomador de serviços e o empregado terceirizado, já que o ônus social dessa relação fica a cargo da entidade interveniente. Essa noção privatista de terceirização pode ser transposta para a Administração Pública, seara em que esse processo de gestão empresarial de transferência de serviços a terceiros contribui, em tese e se bem aplicado, para a otimização da atuação administrativa na consecução do interesse público. 3 TERCEIRIZAÇÃO NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 88 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Em que pese o fato de o conceito de terceirização aplicável ao Poder Público ser basicamente o mesmo já delineado para o setor privado, a diferença fundamental está no fato de que o regramento atinente à Administração Pública exige a observância de um complexo principiológico específico, que se funda na supremacia e na indisponibilidade do interesse público, e não na autonomia da vontade, como ocorre na iniciativa privada. Essa noção deve sempre ser a base de fundo para aplicação e interpretação da terceirização no âmbito da Administração Pública. Em uma concepção ampla, haverá terceirização junto ao Poder Público sempre que o Estado se socorrer da ajuda de terceiros para a execução de atividades que lhe são afetas. Já em 1967 o Decreto-lei n.º 200 consignava em seu texto a possibilidade (na verdade, necessidade) de a Administração desobrigar-se, mediante contrato com particulares, da realização material de tarefas executivas (atividades-meio) e, através da Lei n.º 5.645/70, exemplificaram-se quais seriam essas atividades que deveriam ser objeto de execução indireta. Além da citada norma, o Decreto Federal n.º 2.271/1997 prevê o seguinte: Art. 1º No âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional poderão ser objeto de execução indireta as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade. § 1º As atividades de conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações serão, de preferência, objeto de execução indireta. § 2º Não poderão ser objeto de execução indireta as atividades inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade, salvo expressa disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal. Art . 3º O objeto da contratação será definido de forma expressa no edital de licitação e no contrato exclusivamente como prestação de serviços. Atualmente, dois são os principais diplomas legais que tratam da possibilidade de a Administração terceirizar suas atividades e serviços, muito embora não utilizem a expressão em questão, a saber: a Lei n.º 8.666/93 e Lei n.º 8.987/95. Nos termos da legislação atual, a terceirização em relação à Administração Pública pode assumir as mais variadas formas, mas, sinteticamente, podem-se categorizar dois grandes tipos de terceirização: a dos próprios serviços públicos e de atividades ligadas aos serviços públicos. 89 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II O que é possível ocorrer junto à Administração Pública é a terceirização como contrato de prestação de serviços (terceirização de atividades ligadas aos serviços públicos), regulada pela Lei n.º 8.666/93, e a terceirização como contrato de concessão ou permissão (terceirização de serviços públicos), cuja base legal é a Lei n.º 8.987/95 e a Lei n.º 11.079/2044 (parceria público-privada). A primeira encontra fundamento constitucional no art. 37, inc. XXI2 e a segunda, no caput do art. 1753. Fato é que a terceirização de atividades-fim no âmbito da Administração Pública, que não seja sob a forma concessão ou permissão, não tem respaldo constitucional ou legal, nem mesmo com base na Lei 6.019/74. É o que corriqueiramente se vê como contrato de fornecimento de mão de obra O fundamento para tal proibição é a regra geral do concurso público, prevista no art. 37, inciso II, da Constituição da República de 1988, que só admite duas exceções: a contratação temporária, que depende de lei específica de cada ente federativo, e a nomeação para cargos em comissão. Embora manifestamente ilegais, esses contratos de fornecimento de mão de obra têm sido celebrados sob a forma de prestação de serviços técnicos especializados, o que mascara a relação de emprego que seria própria da Administração Pública, favorece o nepotismo e o apadrinhamento político, burla a regra do concurso público e o regime dos servidores públicos, além de afrontar os princípios administrativos constitucionais da impessoalidade, moralidade e eficiência. Esses terceirizados irregularmente são, na verdade, funcionários de fato, que só podem praticar atos materiais, sem nenhum conteúdo decisório. De qualquer modo, sua atuação pode ensejar a responsabilidade objetiva da Administração Pública, com fundamento no art. 37, § 6º, da Constituição da República de 1988. O que se admite é a contratação de atividades-meio sob a forma de prestação de serviços (art. 37, XXI), por meio da Lei n.º 8.666/93, como já previam o Decreto-lei 200/67 e o 2.300/86, que determinam a prioridade da execução indireta de tarefas executivas e acessórias da Administração Pública. 2 “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.” 3 “Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.” 90 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Destaque-se, ainda, que a Lei de Responsabilidade Fiscal prescreve que os gastos com a terceirização de serviços (“fornecimento de mão de obra”) devem ser contabilizados como despesas de pessoal (art. 18, § 1º), obviamente para que tais despesas sejam incluídas nos limites de gastos fixados. Isso não abrange gastos com a regular contratação de empreitadas e prestação de serviços, pois o objeto do ajuste é o resultado. 4 TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE Como já ressaltado, só se admite a prestação de serviços públicos diretamente pelo Estado (por meio da Administração Direta ou Indireta) ou sob o regime de permissão ou concessão (art. 175, CR/88), inclusive com base na concessão da Lei nº 11.079 (parceria público-privada). O serviço público, em sua totalidade, não pode ser terceirizado por meio de locação de serviço ou de contrato de fornecimento de mão de obra. O que justifica essa impossibilidade são as distinções jurídicas entre locação de serviços e concessão de serviços públicos, que acabam por delimitar o âmbito de legalidade da terceirização: a) Distinção quanto ao objeto: por meio da concessão o Estado transfere o serviço público ao particular, com todo o seu complexo de atividade; não há transferência de uma determinada atividade ligada ao serviço público na concessão, muito embora a concessionária possa terceirizar determinadas atividades. Na locação de serviços, o objeto do contrato é a execução de determinada atividade acessória ao serviço público, complementar à atividade-fim do Estado (que continua sendo executada pela entidade pública). b) Distinção quanto à forma de remuneração: na concessão, na forma como previsto na Lei n.º 8.987/95, a regra é que a remuneração se faça pelos usuários, admitidas formas acessórias e alternativas. Na locação de serviços, a remuneração é paga pelo Poder Público. Nesse ponto, a concessão administrativa (parceria públicoprivada) até se assemelha à locação de serviços (pois o Poder Público pode remunerar a concessionária total ou parcialmente), mas com ela não se confunde em razão do regime jurídico e das prerrogativas públicas. 91 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II c) Distinção quanto às prerrogativas públicas: as concessionárias assumem a posição do Poder Público na prestação do serviço e, portanto, detém determinadas prerrogativas (como promover desapropriações, exercer o poder de polícia sobre os bens vinculados ao serviço, promover a subconcessão, etc.). Na locação de serviço, não há transferência de prerrogativas, pois o contratado é mero executor material de uma atividade-meio. d) Distinção quanto ao poder de intervenção: o poder concedente pode intervir na concessionária (art. 32 a 34 da Lei nº 8.987/95), mas não pode fazê-lo com relação ao contratado na locação de serviços. Especificamente com relação à saúde, não há dúvida de que trata de um serviço público, que deve ser prestado de forma gratuita pelo Estado, mas não é exclusivo do Poder Público. Em diversos artigos a Constituição da República de 1988 trabalha a noção de execução dos serviços de saúde em parceria com a iniciativa privada. São alguns exemplos: Art. 197, CR/88: São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. Art. 198, CR/88: Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; Art. 199, CR/88: Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1º As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. § 2º É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos. Há, portanto, espaço para que a iniciativa privada preste serviços de saúde em parceria com o Poder Público. Segundo Ives Gandra da Silva Martins e Fátima Fernandes Rodrigues de Souza: De todas essas disposições decorre que a ideia de parceria permeia a prestação da assistência à saúde. Sob regime de direito privado, mediante a participação mais próxima do Estado, no tocante à sua regulação e fiscalização; sob regime de direito público, mediante a efetiva participação do particular no regime único, em caráter complementar. (MARTINS; SOUZA; 2007, p. 106) 92 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Analisando a questão da descentralização das ações e serviços de saúde (art. 198, I, CR/88), DI PIETRO esclarece que a forma adequada para tanto seria a descentralização por serviços4. Segundo a Autora, a melhor forma de descentralização administrativa dos serviços de saúde é por meio da criação de autarquias, fundações e empresas públicas (esta última deve ser sob a forma de sociedade civil, sem fins lucrativos, pois o serviço de saúde é necessariamente gratuito). A princípio, a concessão e a permissão (formas de descentralização por colaboração) não são adequadas para a terceirização de serviços de saúde, pois os delegatários não podem ser remunerados pelos usuários do serviço, que é gratuito. Admite-se, entretanto, a utilização da parceria público-privada (concessão administrativa da Lei n.º 11.079), na qual o Estado remunera integralmente o parceiro privado (é o que já ocorre no Hospital do Subúrbio de Salvador, e vai ser implantado no Hospital Metropolitano de Belo Horizonte). Nos termos do que prevê o citado art. 199, § 1º, da Constituição da República de 1988, a participação de instituições privadas na execução de serviços públicos de saúde deve ocorrer de forma complementar, por meio de “contrato de direito público” ou “convênio”. Admite-se como contrato de direito público, nesse caso, aqueles voltados para atividades complementares aos serviços do Sistema Único de Saúde, fundamentado na Lei de Licitações, ou aqueles de concessão da Lei n.º11.079 (PPP), que é espécie de descentralização por colaboração, por meio da transferência da própria atividade-fim para particulares. Como a Constituição somente permite às instituições privadas participarem dos serviços de saúde “de forma complementar”, DI PIETRO entende que não há validade na formalização de um contrato cujo objeto seja a transferência para os particulares da totalidade de um serviço público. Não se admite, por exemplo, a transferência de toda a administração e execução das atividades de saúde de um hospital público para um particular. 4 Descentralização territorial ou geográfica: criação de uma entidade local, com personalidade de direito público, capacidade de autoadministração, delimitação geográfica, capacidade genérica para a prestação de serviços públicos e sujeição a controle pelo poder central (territórios federais). Comum em Estados Unitários (França e Itália). Descentralização por serviços, técnica ou funcional: criação, por meio de lei, de pessoa jurídica de direito público ou privado, que assume a titularidade e a execução de determinado serviço público. Autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas públicas. - Características: personalidade jurídica, capacidade de autoadministração, patrimônio próprio, capacidade específica (especialização), sujeição a controle ou tutela (nos limites da lei) Descentralização por colaboração: transferência a pessoas jurídicas de direito privado (estranha ao aparelho estatal), por meio de acordo de vontades ou por ato administrativo unilateral, da execução de serviços públicos, mantendo a titularidade do mesmo com o Poder Público. 93 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Para a Autora, somente pode haver a terceirização de atividades de execução material, como atividades-meio (tais como limpeza, vigilância, contabilidade, etc.) e serviços técnico-especializados (como é o caso de hemocentros, realização de exames médicos, etc.). O Estado, de acordo com o que esse argumento, não pode abrir mão da prestação de um serviço que lhe incumbe, transferindo-o integralmente a terceiros. Pode contar com a iniciativa privada de forma complementar, mediante contrato ou convênio. Em suas palavras, “apenas se admite a terceirização de determinadas atividades materiais ligadas ao serviço de saúde; nada mais encontra fundamento no direito positivo brasileiro.” (DI PIETRO, 2008, p. 227) O que justifica tal argumento é o fato de que a prestação de um serviço público deve estar subordinada a um regime de direito público, ainda que parcialmente, nos termos do que determina o art. 175 da Constituição da República de 19885. Voltando-se ao art. 199 da Constituição, há a possibilidade ainda de transferência de serviços públicos de saúde por meio de convênios, os quais são admitidos com pessoas jurídicas de Direito Público, com entidades da Administração Indireta e com instituições privadas. Quando a atividade é entregue por convênio à iniciativa privada, a orientação legal é no sentido de dar preferência (e não exclusividade) às entidades filantrópicas e sem fins lucrativos. É o que dispõem os artigos 24 e 25 da Lei n.º 8.080/90: Art. 24. Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada. Parágrafo único. A participação complementar dos serviços privados será formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público. Art. 25. Na hipótese do artigo anterior, as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos terão preferência para participar do Sistema Único de Saúde (SUS). Vigora a lógica da subsidiariedade da sociedade civil na prestação de serviços de saúde. O Estado é o titular do serviço público e tem o dever constitucional inarredável de prestá-los, observando os princípios administrativos gerais, como o da eficiência (art. 37, caput, CR/88), e os princípios específicos do serviço de saúde, como o da universalidade e igualdade de acesso (art. 196, CR/88). Esse dever, entretanto, não torna o serviço de saúde 5 “Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.” 94 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II exclusivo do Estado, na medida em que a iniciativa privada pode atuar em parceria com o Poder Público, mas sempre de forma subsidiária. Não se admite, portanto, que o Estado se abstenha de prestar os serviços de saúde, entregando-o totalmente à iniciativa privada. Tampouco se admite que a atuação do Estado seja menor que a dos particulares na área de saúde pública, pois essa relação de dependência foi expressamente vedada pelo texto constitucional. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, os serviços públicos de saúde estão entre aqueles que o Estado tem obrigação de prestar, mas sem exclusividade. Os particulares podem desempenhar essas atividades (inclusive independente de concessão), mas “o Estado não pode permitir que sejam prestados exclusivamente por terceiros” (BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 705) É esse também o entendimento da Profa. Cristiana Fortini, para quem a terceirização não traduz alternativa para o Estado se desvencilhar de suas obrigações constitucionais, especialmente na área de saúde. Em suas palavras: Certamente não há como desconsiderar a redação do art. 197 da Constituição da República, segundo o qual ‘são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado’. Entretanto, não há como enxergar na norma autorização para que todos os serviços ligados à saúde sejam privatizados, mediante terceirização. A participação de terceiros faz-se possível em caráter de complementariedade da atuação estatal, jamais em caráter substitutivo. (FORTINI, 2007, p. 5) Em decisão recente, de 28/08/2012, o Ministro Cezar Peluso do Supremo Tribunal Federal, analisando o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n.º 445.167, do Município do Rio de Janeiro, ratificou seu entendimento de que O serviço público de saúde não pode e não deve, ser terceirizado, admitindo o art. 197 da Constituição da República, em caráter complementar, permitir a execução dos serviços de saúde através de terceiros. O caráter complementar não pode significar a transferência do serviço à pessoa jurídica de direito privado. Em que pese o eminente Ministro negar a possibilidade de terceirização, admite ele que a Constituição considera como lícita a execução dos serviços de saúde através de terceiros, o que, contraditoriamente, é exatamente a terceirização. Tal contrassenso, porém, não altera sua conclusão, no sentido de que a transferência do serviço de saúde à pessoa 95 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II jurídica de direito privado não pode ocorrer como um todo, sob pena de violação ao caráter complementar da participação privada nesse importante setor público. Entre as inúmeras formas de terceirização, pretende-se fazer uma breve incursão na transferência de serviços de saúde às organizações sociais. 5 TERCEIRIZAÇÃO NA ÁREA DE SAÚDE POR MEIO DE ORGANIZAÇÕES SOCIAIS As organizações sociais foram instituídas pela Lei Federal nº 9.637/98, dentro das iniciativas de reformas neoliberais do Estado do Governo Fernando Henrique Cardoso e do chamado “Plano Nacional de Publicização”. O objetivo desse movimento reformista foi a descentralização de atividades não exclusivas do Estado e a transferência, para organizações sociais, de atividades desempenhadas por órgãos públicos, inclusive na seara da saúde pública. De certo modo, a pretensão do Governo era de que o serviço público passasse a ser considerado como atividade privada de interesse público, para que, uma vez prestado por particulares, sob fomento do Estado (que se dá por meio da celebração de contrato de gestão), pudesse se extinguir o órgão público ou a pessoa jurídica de direito público inicialmente incumbida de sua execução. A partir de uma análise da Lei Federal n.º 9.637/98, algumas características das organizações sociais podem ser traçadas: a) A titulação de organização social é, na verdade, uma qualificação, uma habilitação jurídica outorgada a pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos (art. 1º); b) As entidades qualificadas como organizações sociais são declaradas como entidades de interesse social e utilidade pública, para todos os efeitos legais (art. 11); c) Áreas possíveis de atuação das organizações sociais: ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde (art. 1º); d) Conselho de Administração das organizações sociais (órgão de deliberação) tem composição mista, com representantes do Poder Público e da sociedade civil (art. 3º); 96 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II e) A parceria (fomento) é estabelecida por meio da formalização de contrato de gestão; f) A Fiscalização e o controle do contrato de gestão têm como foco as metas estabelecidas e os resultados alcançados (art. 8º); g) Formas de fomento pelo Poder Público: recursos orçamentários, permissão de uso de bens públicos (dispensada a licitação – art. 12), cessão de servidor público; h) Contratos de prestação de serviços realizados com organizações sociais, para atividades contempladas no contrato de gestão, podem dispensar licitação (art. 24, XXIV, da Lei 8.666/93) i) O descumprimento do contrato de gestão pode acarretar a desqualificação da organização social, mediante processo administrativo (art. 16). No contexto da legislação em comento, as organizações sociais podem exercer atividade privada de interesse público, com incentivo do Poder Público, ou podem desempenhar o próprio serviço público, como atividade delegada. Nesse caso de transferência do próprio serviço público, não pode o Estado se abster totalmente dos serviços sociais, pois esses são deveres constitucionais do Poder Público. Uma crítica que comumente se faz à transferência de serviços públicos de saúde às organizações sociais é no sentido de que essa absorção visaria, em verdade, fugir do regime de direito público, que, em certa medida, impõe inúmeras restrições à Administração Pública (como teto salarial, proibição de acumulação de cargos, entre outras). Em São Paulo, Estado em que a terceirização de serviços de saúde para a iniciativa privada ocorreu (e vem ocorrendo) em grande medida por meio de parcerias com organizações sociais, a legislação é um pouco mais rígida quanto à atuação dos particulares na prestação de serviços públicos. As organizações sociais paulistas, de acordo com a Lei Complementar Estadual nº 846/98, administram o serviço público de saúde por delegação do Estado, investindo-se de determinadas prerrogativas públicas, assim como ocorre nas concessões e permissões da Lei n.º 8.987/95. Algumas características específicas da legislação estadual diferenciam as organizações sociais de São Paulo daquelas qualificadas em âmbito federal: a) Atuação restrita às áreas de saúde e cultura (art. 1º); b) Não podem absorver atividades exercidas por entes públicos; 97 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II c) Não podem utilizar bens do patrimônio público que estejam sendo utilizados por entidades públicas (art. 14, § 4º); d) Não contam com representantes do Poder Público em seus órgãos de administração (art. 3º); e) Existe um procedimento de convocação pública para escolha da entidade (art. 6º, 3º). Atualmente, segundo dados disponibilizados pela Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo, 37 hospitais, 38 ambulatórios, 1 centro de referência, duas farmácias e três laboratórios de análises clínicas são administrados por organizações sociais. Os novos hospitais colocaram a serviço do SUS cerca de 4.300 leitos no Estado de São Paulo6. Experiência semelhante tem sido vivenciada, também, no Estado de Goiás, onde vários hospitais tiveram sua administração transferida para organizações sociais, como o Hospital Materno Infantil (HMI), o Hospital de Doenças Tropicais (HDT), o Hospital de Urgências de Aparecida de Goiânia (Huapa). Nesses dois exemplos, um aspecto que deve ser levado em consideração é o fato de que a absorção de serviços públicos por organizações sociais não desobriga o Estado da prestação desses serviços. Novamente segundo Celso Antônio Bandeira de Mello: Anote-se que, como os serviços em questão não são privativos do Estado, não entra em pauta o tema da concessão de serviços públicos, que só tem lugar nas hipóteses em que a atividade não é livre aos particulares, mas exclusiva do Estado. Aliás, se entrasse, seria obrigatória a aplicação do art. 175 da Constituição Federal, que estabelece que tanto a concessão como a permissão serão ‘sempre’ precedidas de licitação. Assim, os serviços trespassáveis a organizações sociais são serviços públicos insuscetíveis de serem dados em concessão ou permissão. Logo, como sua prestação se constitui em ‘dever do Estado’, conforme os artigos citados (art. 205, 206 e 208), este tem que prestá-los diretamente. Não pode eximir-se de desempenhá-los, motivo pelo qual lhe é vedado esquivar-se deles e, pois, dos deveres constitucionais aludidos pela via transversa de ‘adjudicá-los’ a organizações sociais. Segue-se que estas só poderiam existir complementarmente, ou seja, sem que o Estado se demita de encargos que a Constituição lhe irrogou. (BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 245) As organizações sociais devem, enfim, atuar ao lado do Estado, por meio de uma política de fomento. Não pode haver a transferência integral de serviços públicos sociais para organizações sociais ou quaisquer entidades do terceiro setor (como OSCIPs, por exemplo), 6 http://www.saude.sp.gov.br/ses/acoes/organizacoes-sociais-de-saude-oss. 98 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II pois esses serviços são da titularidade do Estado, como atribuição constitucional típica (VIOLIN, 2012, p. 122/123). 6 CONCLUSÃO Com a transição do Estado Liberal para o Estado Social e, finalmente, para o Estado Democrático de Direito, a Administração Pública sofreu intensas modificações estruturais, influenciadas pelo nível de intervenção do Poder Público nas atividades privadas. Atualmente, dentro do contexto constitucional brasileiro, depreende-se uma lógica da subsidiariedade, segundo a qual o Estado deve se abster de determinadas atividades que podem ser exercidas satisfatoriamente pela iniciativa privada. A terceirização de serviços públicos é uma das formas de parceria entre o público e o privado para a execução indireta de atividades estatais, que decorre da aplicação do citado princípio da subsidiariedade. Na seara do direito privado, a terceirização é tida como um processo de gestão empresarial de transferência de serviços, essencialmente ligados à atividade-meio da empresa, para terceiros, sem o estabelecimento de vínculos diretos trabalhistas com a tomadora do serviço. Essa concepção foi albergada pela Administração Pública, mas com as ressalvas que o sistema principiológico de Direito Público impõe ao citado instituto. De modo geral, sempre que o Estado se socorrer da ajuda de terceiros para a execução de atividades que lhe são afetas, estar-se-á diante da terceirização, que poderá ser dos próprios serviços públicos (por exemplo, por meio de concessão ou permissão) ou de atividades ligadas aos serviços públicos (por exemplo, por meio de contratos de prestação de serviços, cujo objeto só pode estar vinculado a atividade-meio do Poder Público). No que diz respeito aos serviços públicos, a Constituição determina que eles só podem ser prestados diretamente pelo Estado ou sob o regime de permissão ou concessão (incluindo PPP). Logo, é manifestamente ilegal a terceirização de serviços públicos por meio de locação de serviço ou de contrato de fornecimento de mão de obra. A saúde, embora seja serviço público típico, não tem sua execução afeta exclusivamente ao Poder Público. A execução dos serviços públicos de saúde em parceira com a iniciativa privada é uma orientação constitucional expressa (art. 197, 198 e 199, CR/88), mas somente pode ocorrer sob o prisma da complementariedade. Essa participação complementar da iniciativa privada nos serviços de saúde se opera por meio de contratos de direito público (contratos de prestação de serviços, para atividademeio, e contrato de concessão – PPP, para atividade-fim) ou por meio de convênios, os quais 99 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II devem ser celebrados preferencialmente com entidades filantrópicas e sem fins lucrativos. Em qualquer dos casos, não está o Poder Público autorizado a se abster da prestação do serviço público ou prestá-lo de forma dependente da iniciativa privada, sob pena de violação da regra da complementariedade, prevista no art. 199, § 1º, da Constituição da República de 1988. Entre as inúmeras formas de terceirização dos serviços de saúde, a Administração Pública tem se valido muito do estabelecimento de parcerias com organizações sociais, o que em âmbito federal ocorre com base na Lei nº 9.637/98. Nesse caso, pode haver tanto a assunção de um determinado complexo de serviços de saúde, quanto de atividades acessórias aos serviços públicos, mas em ambas as hipóteses, a absorção de serviços de saúde por organizações sociais deve ocorrer de forma complementar, sem desobrigar o Estado da sua prestação, a qual sempre se submeterá aos princípios administrativos gerais, como o da eficiência (art. 37, caput, CR/88), e aos princípios específicos do serviço de saúde, como o da universalidade e igualdade de acesso (art. 196, CR/88). REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira Baracho. Responsabilidade Civil por Dano ao Meio Ambiente. 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BRAZILIAN SOCIAL SECURITY CRISIS: Considerations about the factors that affect the provision of services and social security benefits. Raul Lopes de Araújo Neto RESUMO O crescimento dos investimentos nos planos de previdência complementar trouxe uma oportunidade para reflexão sobre o papel da previdência social pública brasileira. Esse trabalho propõe apresentar os principais argumentos responsáveis pela crise da previdência pública. A análise histórica sobre a formação da previdência e a evolução das políticas publicas nas ultimas cinco décadas demonstram o comprometimento da gestão pública com atual crise previdenciária. Temas como a longevidade, desemprego, avanço tecnológico e administração serão os principais pontos para a condução do trabalho. O estudo será conduzido do ponto de vista critico utilizado como referencia dados socioeconômicos e estatísticos do atual sistema securitário. Palavras Chave: Seguridade Social; Previdência Pública; Crise Econômica. ABSTRACT The growth of investment in pension plans has brought an opportunity for reflection on the role of public social welfare in Brazil. This paper proposes to present the main arguments in charge of public pension crisis. The historical analysis on the formation and evolution of the welfare of public policy in the last five decades has demonstrated the commitment of public management with the current pension crisis. Topics such as longevity, unemployment, technological advancement and administration are the main points for the conduct of work. The study will be conducted from the standpoint of critical socioeconomic data used as reference and the current statistical system of security. Keywords: Social Security; Public Security; Economic Crisis 102 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II 1. INTRODUÇÃO Desde o início da década de 90 houve um significativo crescimento dos planos de previdência complementar, tanto na quantidade de optantes, como pelo aumento do capital formador de poupança interna. Um dos motivos desse crescimento é o atual comprometimento dos serviços e benefícios prestados pelo Regime Geral de Previdência Social. O sistema previdenciário tem sofrido modificações quase ininterruptas desde o fim da década de 1980, em função da influência do pensamento conservador que varreu a América Latina, promovendo reformas privatizantes e da clara dominância de políticas econômicas ortodoxas nos últimos quinze anos. Essas políticas estão baseadas no diagnóstico de que o déficit público das últimas décadas resultou em inflação elevada ou em aumento na relação dívida/PIB. O ingrediente principal do déficit estaria no descontrole das contas da previdência. A crise da previdência não vem desacompanhada da crise do Estado. Inicialmente será feita uma analise da evolução da nova ordem econômica a partir do Welfare State, passando pelo plano Beveridge e as ideias liberais do pós guerra de Keynes até a mudança na concepção do Estado provedor para o Estado regulador e posteriormente serão apresentados e discutidos os principais fatores causadores da crise no sistema protetivo. Não é objetivo desse estudo detalhar o funcionamento e a gestão da previdência pública, mas sim, apontar os fatores que contribuem para a crise previdenciária e desmistificar diversas causas que não passam de criações políticas de “fabricação do consenso”1 . 2. MUDANÇAS SOCIAIS: CRISE DO BEM ESTAR SOCIAL E O ESTADO REGULADOR 1 A expressão "fabricação do consenso" foi inicialmente cunhada por Edward S Herman e Noam Chomsky. O "fabrico do consenso" implica a manipulação e a modelação da opinião pública. Institui a conformidade e a aceitação à autoridade e à hierarquia social. Procura a obediência a uma ordem social instituída. A "fabricação do consenso" descreve a submissão da opinião pública à narrativa dos meios de comunicação predominantes, às suas mentiras e maquinações. 103 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II As grandes crises econômicas de 1929 e situação calamitosa dos países envolvidos na segunda grande guerra, fez com que o Estado se preocupasse com chamados os riscos sociais, que segundo Durand (1991, p. 55), são classificados em: Os infortúnios, que sugerem um revés da sorte, um infortúnio, uma desgraça, como a morte ou a invalidez e os venturosos, que manifestam-se por fatos ditosos, afortunados, felizes, como a sobrevivência da pessoa (a aposentadoria por idade é uma contrapartida ao fato da sobrevivência do segurado). Horvath Júnior (2004, p. 27) faz usa das palavras de Santoro-Passarelli, para definir o risco social: Risco social é o perigo que ameaça o indivíduo e se transfere para a sociedade atingindo toda a coletividade, fazendo surgir a necessidade social. Cabe à previdência social a função de aliviar a necessidade social surgida em virtude da ocorrência dos eventos previamente selecionados, garantindo uma tutela de base (mínimo vital). Diante da nova ordem social, os riscos sociais merecem resposta do Estado, que depende dos impostos para existir e como contrapartida deve estruturar a rede de proteção dos trabalhadores aos riscos sociais que só alguém que vive em sociedade tem. Dentro desse processo encontra-se o Social Security Act. Remetendo a crise econômica de 1929, o Estado passou a ter importância na vida social das pessoas, a importância do risco social para os indivíduos passou a ser também preocupação do Estado. O plano de recuperação americano, idealizado por Franklin Delano Roosevelt fundamentou a ideia do Bem Estar Social (Welfare State) caracterizada com um tipo de organização política e econômica que coloca o Estado (nação) como agente da promoção (protetor e defensor) social e organizador da economia. Segundo Schumpeter (1908) nesta orientação, o Estado é o agente regulamentador de toda vida e saúde social, política e econômica do país em parceria com sindicatos e empresas privadas, em níveis diferentes, de acordo com a nação em questão. Cabe ao Estado do bemestar social garantir serviços públicos e proteção à população. 104 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Weintraub (2005, p. 32) resume a ideia americana que possuía o objetivo de “distribuir riqueza entre os velhos (sofriam mais que a maioria com a grande depressão) era também permitir que a distribuição de renda gerasse fluxo de mercado, reativando a economia”. Evoluindo na preocupação do Estado em prover os riscos sociais da população, surgiu na Inglaterra o plano Beveridge em 1941. Esse plano serviu para que o governo inglês criasse, em 1946, um sistema tão abrangente de proteção social que possuía como slogan característico: from the cradle to de grave (do berço ao tumulo). Lord Beveridge recomendou que o Governo inglês devería encontrar formas de combater os cinco grandes males da sociedade: a escassez, a doença, a ignorância, e miséria e a ociosidade. Para tanto, era necessário garantir um padrão mínimo de sobrevivência, tratando-se de uma universalidade plena com proteção mínima para manutenção de um padrão de vida digno. Esse padrão mínimo seria garantido por uma contribuição semanal ao Estado por parte de todas aquelas pessoas com idade e capacidade laborativa. Esse dinheiro seria posteriormente usado como subsídio para doentes, desempregados, reformados e viúvas. Essas ideia inspiraram a formação de nossa ordem social. Nos países da América Latina, os sistemas previdenciários passaram também por reformas, em alguns deles num processo de imitação do modelo de estratégia liberal, baseadas na privatização da previdência social, ênfase na desregulamentação do mercado de trabalho e nos benefícios seletivos ao invés de universais, enquanto em outros as mudanças foram mais limitadas. Países como Chile (1981), Peru (1993), Argentina e Colômbia (1994), Uruguai (1996), Bolívia e México (1997), El Salvador (1998) e Costa Rica (2001) optaram por substituir, parcial ou integralmente, os sistemas públicos de repartição por sistema privados obrigatórios de capitalização individual (GENTIL, 2007). A ordem social brasileira da Constitução Federal (1988), apresenta a Prvidencia Social como direito social. Inserido nesse contexo, o artigo 201 da Carta Magna, disciplina: Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; II - proteção à maternidade, especialmente à gestante; III - proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; 105 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II IV - salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º. Assim com o plano Beveridge a proteção brasileira é ampla, mas necessita de prévia contribuição para o recebimento de benefícios, caracteristica compulsoria e contributiva que não existe nos outros dois ramos da seguridade: Assistência Social e da Saúde. Sobre a Previdência Social brasileira, Carvalho e Murgel (2007, p. 26) explicam: Por meio da previdência social vem o Estado garantir a dignidade humana, impedindo a degradação do homem e propiciando ao individuo uma existência material mínima em período de infortúnio ou de dificuldade no exercício do seu oficio. Desse modo, promove a igualdade de direitos entre todos os homens; garante a independência e autonomia do ser humano; observa e protege os direitos inalienáveis do homem; não admite a negativa dos meios fundamentais para o desenvolvimento de alguém como pessoa ou a imposição de condições subumanas de vida. Gentil (2007) complementa que no Brasil, as alterações no sistema de seguridade social ao longo dos anos 1990 não foram tão extensas a ponto de mudar suas características mais fundamentais. O sistema ainda é o mesmo previsto pela Constituição de 1988, ou seja, permanece público, em regime de repartição e continua a caracterizar-se pela universalidade da cobertura, muito embora sua implementação tenha resultado em grande afastamento dos princípios constitucionais. O sistema previdenciário tem sofrido modificações quase ininterruptas desde o fim da década de 1980, em função da influência do pensamento conservador que varreu a América Latina, promovendo reformas privatizantes e da clara dominância de políticas econômicas ortodoxas nos últimos quinze anos. Essas políticas estão baseadas no diagnóstico de que o déficit público das últimas décadas resultou em inflação elevada ou em aumento na relação dívida/PIB. O ingrediente principal do déficit estaria no descontrole das contas da previdência. Já adentrando aos motivos ensejadores da crise previdenciária, o sistema protetivo brasileiro enfrenta graves problemas estruturais dos quais Derzi (2003) elenca quatro grupos: 106 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II a) Atuariais, uma vez que precocemente o Brasil introduziu a aposentadoria por tempo de serviço, desvinculada da idade do trabalhador, alongando-se em demasia a sua duração. b) Administrativos, pois a burocracia, a corrupção, o empreguismo e o nepotismo agigantaram os órgãos previdenciários, elevando-se o seu custo. c) Caixa, pois desvios de recursos da previdência social para outras finalidades do Estado advieram de lacunas existentes na Constituição de 1967-69; o caixa da previdência social confundiu-se com o caixa do Tesouro Nacional e seus recursos foram canalizados até para construção de hidroelétricas. d) Econômicos-conjunturais ou estruturais, desencadeados pelas crises de recessão, desemprego e queda dos salários no produto interno bruto, o que provoca o acentuado decréscimo no produto da arrecadação das contribuições previdenciárias, incidente sobre a massa dos salários. Diante desses fatores, torna-se importante a opinião de Carvalho e Murgel (2007) sobre o modelo do Estado do Bem Estar Social e a crise previdenciária brasileira: Sabe-se que o Estado do Bem Estar Social, o Estado Providência, eminentemente protecionista, é modelo desestruturado e esgotado. Por outro lado, a prestação positiva dos direitos sociais não pode permanecer no alvedrio da vontade do legislador ou dos governantes, embora esteja na dependência do orçamento do Estado. Ora, trata-se de dever e obrigação do Estado zelar pela proteção dos direitos sociais, de forma positiva. A falência do Estado do Bem Estar Social deu início ao uma nova ordem social. O apogeu do Estado mínimo e a ineficiência do Estado em prover o mínimo necessário para garantir os direitos sociais ocasionaram uma paralisação do primeiro setor, que é o próprio Estado. Ao Estado era confiado o papel de provedor e agora, diante das mudanças econômicas globais, o Estado passou a ser o regulador dos serviços sociais. Fatores como os acima apontados, foram os causadores do comprometimento do tripé formador da Seguridade Social: Saúde, Assistência Social e Previdência Social. Para exemplificar a crise no sistema securitário, o setor da saúde passa por uma crise crônica que se arrasta ao longo de décadas, problemas que vão do atendimento até a capacitação dos servidores. Sobre o tema Sabroza (2007) explica: A primeira limitação seria fundamentalmente econômica, centrada na inviabilidade do estado provedor, e em última instância da sociedade, de suportar o aumento dos custos da atenção médica. Sumetidos às pressões de demandas inesgotáveis por 107 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II cuidados que exigem recursos de alto nível tecnológico, promovidas pelos interesses de setores industriais e de grupos médicos organizados a partir da lógica do lucro, associados à ideologia da saúde como panacéia, estes sistemas teriam ficado inviáveis, quando o setor público perdeu a capacidade de regulação. A segunda, com implicações ainda mais sérias, decorreria da incapacidade deste tipo de atendimento de necessidades individuais e coletivas resultar em um nível maior de bem-estar e aumento da produtividade social. No setor da Assistência Social a instabilidade das medidas assistenciais compromete a implementação de programas visem proteger os gastos sociais e que seja de ao mesmo tempo fiscalmente sustentável e economicamente compensadora. A previdência social amarga uma crises que já dura cinco décadas e além das dificuldades de funcionamento da Previdência Social, outras, mais comuns, são apresentadas: aposentados enfrentam enormes filas no INSS e nem sempre conseguem receber seu benefício; os serviços são bastante precários, faltam remédios, os hospitais e asilos de idosos estão em condição de miséria. O capital é mal empregado pelo governo. A falência do providencialismo causou o surgimento dos órfãos do Estado que contribuiu para o crescimento da pobreza e a exclusão social. Clarck, Nascimento e Correia (2006) define o papel do Estado nessa na evolução da ordem econômica: No mesmo sentido, o New Deal (baseado no reformismo keynesiano) e o Estado Social jamais representaram um socialismo puro. Tanto no início (Revolução Russa de 1917) como no fim (Consenso de Washington) do século XX surgiram posições teóricas extremistas quanto à função do Estado no mercado, mas a implementação delas nos meios jurídico e econômico é realizada com diversas adaptações, e por causa destas é que podemos chamar neoliberais todos os arranjos que se fizeram na estrutura dos Estados. Essas adaptações aproveitaram sempre princípios liberais originais, preservando-se o mercado, porém, ora o Estado intervém com mais vigor na economia, ora com menos. No neoliberalismo sugerido na por Clarck, Nascimento e Correia (2006) tem como fase inicial a exigência de um Estado Social, cuja atuação no domínio econômico se dava diretamente (via empresa pública, sociedade de economia mista e fundações) e indiretamente (mediante rígidas normatizações), tudo em nome do desenvolvimento ou do crescimento. Em seguida se realiza no Estado Democrático de Direito, e as intervenções diretas passam a ser minimizadas e priorizam-se a intervenção indireta (normas) e a intermediária (eis que aparecem no cenário jurídico as Agências Reguladoras). 108 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II O neoliberalismo não requer necessariamente o Estado mínimo, mas pode apresentarse no Estado Social ou no Estado Democrático de Direito. Na mudança dos modelos de Estado encontramos o liberalismo, passamos pelo neoliberalismo de regulamentação e chegamos ao neoliberalismo de regulação2. O surgimento do Estado Regulador decorreu de uma mudança na concepção do conteúdo do conceito de atividade administrativa em função do princípio da subsidiariedade e da crise do Estado de Bem-Estar, incapaz de produzir o bem de todos com qualidade e a custos que possam ser cobertos sem sacrifício de toda a sociedade. Daí a descentralização de funções públicas para particulares (SOUTO, 2005). Esse novo modelo de Estado caracteriza-se principalmente pela utilização de competência normativa e outras providências para regular a atuação dos particulares. Sobre a reforma do Estado no Brasil, Barroso (2003, p. 291), defende que é fundamental compreensão de que as reformas econômicas não chegaram a produzir um modelo que possa ser identificado com o de Estado mínimo. “Pelo contrário, apenas deslocou-se a atuação estatal do campo empresarial para o domínio da disciplina jurídica, com a ampliação de seu papel na regulação e fiscalização dos serviços públicos e atividades econômicas”. 3. A INEFICIÊNCIA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL NO BRASIL Partindo da premissa do artigo 194 da Constituição Federal de 1988 que a Seguridade Social é um conjunto de medidas de iniciativa do poder público e da sociedade que tem com objetivo assegurar a saúde, a assistência e a previdência social, verifica-se o tripé formador do sistema protetivo social do Brasil O principio da tríplice forma de custeio introduzido em nosso ordenamento em 1934, define que a seguridade será financiada por três atores: o governo com aportes de capital nos déficits da previdência, os trabalhadores com o pagamento de contribuições sobre seus rendimentos e a empresa que sobre a folha de salário, lucro, faturamento e receita. 2 É neoliberal, não porque se trata de uma tendência de retorno ao liberalismo econômico clássico, mas porque preserva princípios originários deste e os faz conviver com técnicas diferentes de ação econômica do Estado. As reformas do New Deal, portanto, instituíram as técnicas do neoliberalismo de regulamentação, e as reformas constitucionais e políticas pós-Consenso de Washington, as do neoliberalismo de regulação (CLARK, NASCIMENTO e CORRÊIA, 2006). 109 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Nota-se que para dar mais sustentabilidade e segurança à seguridade social, as contribuições sociais devem respeitar o principio da diversidade da base de financiamento, que protege o sistema evitando a sobrecarga em uma só fonte de financiamento. Mesmo com toda proteção constitucional, a prestação de serviços relacionados à saúde, assistência e previdência social é deficiente. Mais especificamente no campo previdenciário, as aposentadorias não representam dignamente uma contrapartida por todas as contribuições vertidas por 35 anos no caso da aposentadoria por tempo de contribuição A forma de contribuição que a maioria dos segurados brasileiros estão vinculados é o de repartição simples, daí aparecer como legítima a preocupação do governo em manter seu orçamento equilibrado, ainda que se deva reconhecer, de imediato, que a corrosão das receitas previdenciárias pelo crescimento do desemprego, da informalidade do trabalho e da sonegação é desdobramento natural da sua própria política econômica. Cresce, paralelamente, um sistema privado complementar de capitalização para aquela minoria que volta do mercado com mais do que o tal troco da cesta básica no bolso. O sistema previdenciário brasileiro foi instituído, a partir da década de 30, com o advento da Lei Eloy Chaves, como um sistema de capitalização, que só se transformou, por razões que precisam ser mais elucidadas, num sistema de repartição simples pelo menos duas décadas depois. Ora, isso significa que, por bons e longos anos, os fundos previdenciários arrecadaram muito mais do que despenderam, e a questão que se coloca é a seguinte: o que foi feito do dinheiro acumulado? A resposta dos especialistas não poderia ser conclusiva, pois um levantamento histórico dos dados ainda está por ser feito. Entretanto há uma presunção bem-amparada de que os governos brasileiros das décadas de 1930 a 1960 se valeram desses recursos para financiar muitas das obras de infra-estrutura do período. No período pós 1964 Oliveira et al (1999. p. 8) resume: O financiamento do INPS continuava a basear-se em um sistema de contribuição tripartite, no entanto a União passou a se responsabilizar unicamente pelos custos de administração (cerca de 11% das despesas totais do INPS) e pessoal do instituto. A maioria das cotizações de empregados e empregadores era da ordem de 8% sobre o salário. Porém, a União permanece como uma grande devedora, na medida em que honra seus compromissos somente de forma parcial (em 1968 dos R$ 1.505.938.136,46 despendidos com pessoal e administração somente R$ 846.777.579,32 foram efetivamente repassados à previdência pelo governo federal). 110 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Para ilustrar a evolução da divida no referido observa-se os seguintes gráficos: Gráfico 1 Gráfico 2 Fonte:INSS/Coordenadoria Geral de Contabilidade Essa prática de saques dos recursos previdenciários para outras finalidades está se repetindo nos últimos 20 anos. O artigo 90, da Lei 8.212/91 autorizou o Conselho Nacional de 111 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Seguridade Social a apurar o montante do grande devedor da previdência social. Porém, no governo anterior, foi extinto o Conselho Nacional de Seguridade Social. Deste modo, o débito da União3 nunca foi apurado e está crescendo cada vez mais, comprometendo a papel do Estado em cumprir com o preceito constitucional do artigo 201. O comprometimento dos benefícios prestados pelo Regime Geral de Previdência Social sede principalmente a essa má gestão pública. Não se pode apontar que o crescimento das entidades de previdência complementar são responsáveis por um impacto financeiro negativo aos cofres públicos, sob a alegação de que o segurado destinaria suas contribuições para outro regime que não seja o público. Os segurados do Regime Geral não optam por qual regime deverão ser vertidas suas contribuições, eles são obrigados4 a contribuir como regime público durante o período e forma predeterminada pelo Estado, portanto, o financiamento do Regime Geral está garantido por todos aqueles maiores de 16 anos que exercem atividade remunerada licita. O insucesso do Regime Geral está na ineficiência do Estado, como bem assevera Fabrício et al. (2003, p. 37): A culpa toda seria do Estado-pai, que distribuiu benesses excessivas e compatíveis com as forças do sistema; a solução seria entregar ao miraculoso poder de autoregulamentação do mercado mais esse lucrativo campo de atuação, afastando o poder publico do inepto e perdulário. Ao apontar a má gestão e a inadequada aplicação das contribuições previdenciárias não se defende a desnecessidade do Estado cumprir com o que determina o artigo 201 da 3 Segundo Wagner Balera no artigo intitulado “poço sem fundo” publicado no site consultor jurídico a crise a divida da previdência tem como principal responsável a União e cita que no ano de 2004, foram aprovadas 17 leis que desviaram quase R$ 10 bilhões da seguridade social para outras finalidades que não guardam relação com saúde, previdência social e assistência social. Afirma ainda que, nesse contexto, a existência da dívida do governo federal para com o sistema de seguridade social prejudica a todos os setores que dela dependem: a saúde, a previdência social e a assistência social. O setor de saúde funciona mal. Até as camadas mais pobres da população se obrigam a contratar um seguro médico particular. O setor da previdência social funciona mal, distorcendo os valores dos benefícios com correções que sempre perdem da inflação e obrigando as pessoas a buscarem amparo no Poder Judiciário. São milhões e milhões de processos nos quais todos querem a mesma coisa: o valor justo para os benefícios que lhes custaram muitos anos de contribuições. O setor de assistência social é o mais vulnerável de todos. Não há previsão legal ou constitucional de quanto se deve gastar com as medidas assistenciais, nem que medidas devem ser tomadas. Por essa razão, a cada governo que assume o poder mudam completamente os programas sociais. 4 No Regime Geral de Previdência Social também exista a possibilidade do segurado filiar-se como facultativo, sendo considerado todo aquele maior de 16 anos que não exerça atividade remunerada. 112 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Constituição Federal, mas alertar e chamar atenção para a importância da previdência complementar na vida dos segurados, quando visa proporcionar mais dignidade quando do recebimento de sua aposentadoria. A ineficiência administrativa não justifica a possibilidade de privatização da previdência, nem sugerir discussão sobre qual deve ser o regime ideal, se exclusivamente público ou privado, apesar do primeiro, teoricamente, ser mais suscetível de controle efetivo. Importante frisar a relação da crise previdenciária pública com o desenvolvimento da economia e a sociedade. Com o aumento da longevidade cumulado com o baixo índice de natalidade reserva aos cofres públicos a diminuição da arrecadação decorrente da subtração do número de segurados (financiadores) e o aumento do número e do tempo de concessão dos benefícios. A questão do envelhecimento da população brasileira não pode ser pontuada a única causa para o atual déficit previdenciário. O momento demográfico para a questão previdenciária é positivo, existem teoricamente mais pessoas em atividade para financiar aquelas que estão aposentadas. A tabela abaixo demonstra claramente a projeção da relação entre a população de jovens e idosos no Brasil: Gráfico 3 113 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Matijascic, pesquisador do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (Nepp) da Unicamp, concorda que a questão do envelhecimento da população brasileira não pode ser pontuado entre as causas para o atual déficit previdenciário e que o momento demográfico para a questão previdenciária é positivo, pois existem teoricamente mais pessoas em atividade para financiar aquelas que estão aposentadas. Por outro lado, segundo o pesquisador, a questão do envelhecimento é um fator secundário e assim, mesmo que sejam executadas medidas com relação a esse fator, o problema previdenciário pode persistir e se aprofundar se não forem atacadas suas reais causas que, para ele, não pertencem ao sistema. Na base arrecadatória para manutenção do Regime Geral estão às contribuições dos segurados pagas sobre seus rendimentos, a principal delas vem da categoria dos empregados, surge daí um novo fator que justifica a atual crise previdenciária, o desemprego. Sobre o tema Esteves (2008, p. 114) explica: Contudo, partir dos anos 80, a crise econômica fortaleceu-se e o cenário empregatício mudou, declinando os seus índices. Nos anos seguintes, o crescimento do setor produtivo deu-se pela inserção das novas tecnologias e não pela mão de obra. Assim, diminui-se a produção de emprego e o acesso ao mercado de trabalho, e os que aparecem vêm de forma cada vez mais precárias. O desemprego não só atinge o Brasil, em tempos de globalização essa crise atinge escala global como exemplifica Martin e Shumann (1998, p.11): Alemanha, 1996. Mais de seis milhões de pessoas não conseguem arranjar emprego permanente – um número que nunca havia sido atingido desde a fundação da Alemanha Federal. A penas na indústria, serão suprimidos pelo menos um milhão e meio de postos de trabalho ao longo da próxima década. Nos Estados Unidos, Rifkin (1995, p.5) explica: Só nos Estados Unidos, isto significa que, nós próximos anos, mais de 90 milhões de empregos, de uma força de trabalho de 124 milhões de pessoas, estão seriamente ameaçadas de serem substituídos pelas máquinas. Dentre os mais variados motivos de comprometimento dos serviços prestados pela Previdência Social pública, a má gestão administrativa continua sendo a causa mais relevante do agravamento da ineficiência previdenciária. O gráfico abaixo demonstra o déficit da 114 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II previdência social nos últimos quatorze anos, que apesar do aumento da arrecadação em 5,1% no ano passado, a divida não para de crescer. Gráfico 4 Fonte: http://oglobo.globo.com/economia/miriam/posts/2009/08/19/arrecadacao-da-previdencia-sobemas-nao-se-sustenta-215510.asp Pela leitura dos índices acima resta demonstrado a progressão do crescimento da divida pública da União com a Previdência Social brasileira. Por mais delicada que possa ser, mas não seria absurda a afirmação de que a dívida da previdência é falsa, pois se forem excluídos os desvios públicos da conta da previdência seria possível o Estado buscar efetivar os direitos sociais de cada beneficiário. 4. CONCLUSÕES A falência do Estado do Bem Estar Social deu início ao uma nova ordem social. O apogeu do Estado mínimo e a ineficiência do Estado em prover o mínimo necessário para garantir os direitos sociais ocasionaram uma paralisação do primeiro setor, que é o próprio Estado. 115 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Ao Estado era confiado o papel de provedor e agora, diante das mudanças econômicas globais, o Estado passou a ser o regulador dos serviços sociais. Fatores como os acima apontados, foram os causadores do comprometimento do tripé formador da Seguridade Social: Saúde, Assistência Social e Previdência Social. Dentre os vários fatores do comprometimento dos serviços e benefícios da previdência pública brasileira a má administração é o principal deles. Os recursos destinados ao financiamento da Seguridade Social são frequentemente desviados pela própria União para serem aplicados em áreas que não guardam finalidade com a previdência social. A diminuição da folha de salários causada pelo desemprego e o avanço tecnológico, a crise internacional, a longevidade ou ate mesmo a baixa natalidade são fatores que isoladamente não geram o déficit previdenciário, mas exigem da administração pública medidas que preservem o sistema protetivo nacional. Medidas ou reformas orçamentárias que não violem os direitos sociais nunca foram objeto do poder legislativo o que se criou atualmente foi a inversão dos pilares de sustentação da previdência, pois diante do quadro apresentado, ao invés do Estado realizar aportes de capital para os déficits da previdência, como garante o Princípio da Tríplice Forma de Custeio como é a previdência que vem sustentado o Estado em momentos de crise. REFERÊNCIAS BARROSO, Luís Roberto. Agências Reguladoras. Constituição, Transformações do Estado e Legitimidade Democrática. In: Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Nº1, 2003. CARVALHO, Fábio Junqueira; MURGEL, Maria Inês. 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Aludido direito social, na realidade, é igualmente direito da personalidade e compõe, indubitavelmente, o princípio magno da dignidade da pessoa humana. Neste ínterim, é dever do Estado promover a garantia do acesso à educação infantil, até mesmo em decorrência do insculpido em nossa Carta Magna junto ao Artigo 205, bem como junto ao próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, além da Lei de Diretrizes Escolares e Declarações Universais. Há, no entanto, notória precariedade na prestação e efetivação desta garantia constitucional. Desta forma, o tema está delimitado pela demonstração do papel das políticas públicas como forma de garantir a todos o direito social, fundamental e da personalidade à educação, como forma de formação humana, transformação da sociedade e manutenção da democracia, analisando-o sob o enfoque não recair a favor do ente público a possibilidade de escolha na consecução e efetivação de direitos fundamentais. PALAVRAS-CHAVE: Educação infantil; Dignidade da pessoa humana; Crianças. ABSTRACT: Children 0-5 years of age have long having curtailed their right to education. Alluded to the social right, it is actually also the right personality and composed undoubtedly the magnum principle of the dignity of the human person. Meanwhile, it is the duty of the State to promote secure access to early childhood education, even as a result of insculpido in our Constitution with the Article 205, as well as with the actual Statute of Children and Adolescents, and the Law School and Guidelines Universal Declarations. There are, however, notoriously unreliable delivery and effectiveness of this constitutional guarantee. Thus, the theme is bounded by the demonstration of the role of public policies in order to guarantee everyone the right social and personality fundamental to education as a form of human, societal transformation and maintenance of democracy, analyzing it under focus does not lie in favor of the public entity a choice in achieving and enforcing fundamental rights. 1 Pós-doutor em Direito Educacional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor permanente do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário de Maringá – CESUMAR, advogado e consultor em Direito Educacional. Endereço eletrônico: <[email protected]> 2 Formado em Direito pela Universidade Norte do Paraná, especialista em Direito Tributário, Direito Civil, Direito Processual Civil e Direito Público, Mestrando em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Maringá – CESUMAR, advogado com escritório profissional situado em Londrina/PR e professor universitário da Universidade Norte do Paraná. 119 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II KEYWORDS: Early childhood education; dignity of the human person; Children. 1 INTRODUÇÃO A Constituição Federal de 1988 insere o direito à educação como direito fundamental, incluindo-o no rol dos direitos sociais3. O direito à educação também encontra previsão legal no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (art.4º) e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional, Lei nº 9.393/1996 (art. 2º). O direito ao saber possui também uma dimensão universal estando consolidado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948), Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1848), Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais da ONU (1966), Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), a Declaração Mundial sobre Educação Para Todos (1990), entre outros. Ainda, nos termos dos artigos 205 e 227 da Constituição Federal de 1988, a educação é dever do Estado, como gestor e fomentador da educação, que deve realizar as políticas públicas necessárias para que efetivamente haja educação para todos. É também um dever da família, que é instrumento mestre, sem a qual o processo educativo é relegado a um segundo plano, não havendo perspectivas de uma verdadeira transformação no homem e, igualmente, deve ter a colaboração da sociedade que sofrerá todas as consequências da ausência de um sistema educacional perfeito e acabado. Nesta toada, o Estado tem o dever de garantir o acesso à educação a todos. Isto em razão do direito social à educação constituir um avanço para minimizar distorções da sociedade, visando à melhoria de condições de vida e a minoração das desigualdades sociais. Desta forma, o Estado tem o dever de implementar políticas públicas para a garantia do acesso de todos à educação. Para tanto, há previsão de dotação orçamentária (art. 212 e 213 da Constituição Federal de 1988) afastando qualquer argumento de que o acesso à educação é norma de cunho programático, dependente da vontade do gestor. Como direito público subjetivo o particular tem a faculdade de exigir o cumprimento da obrigação pelos poderes públicos e as autoridades públicas devem ser responsabilizadas. Pois bem, ultrapassadas estas premissas iniciais, cumpre salientar que as crianças de 0 a 5 anos de idade há tempos vêm tendo cerceado o seu direito à educação, mesmo a 3 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. 120 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II educação infantil sendo obrigação estatal. Aludido direito social, na realidade, é igualmente direito da personalidade e compõe, indubitavelmente, o princípio magno da dignidade da pessoa humana. Tem-se, portanto, diante do defeituoso fornecimento da educação infantil a violação do princípio da dignidade da pessoa humana. Neste ínterim, é dever do Estado promover a garantia do acesso à educação infantil, até mesmo em decorrência do insculpido em nossa Carta Magna junto ao Artigo 205, bem como junto ao próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, além da Lei de Diretrizes Escolares e Declarações Universais. Há, no entanto, notória precariedade na prestação e efetivação desta garantia constitucional. Desta forma, o tema está delimitado pela demonstração do papel das políticas públicas como forma de garantir a todos o direito social, fundamental e da personalidade à educação, como forma de formação humana, transformação da sociedade e manutenção da democracia, analisando-o sob o enfoque não recair a favor do ente público a possibilidade de escolha na consecução e efetivação de direitos fundamentais. 2 ESBOÇO HISTÓRICO DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL É inegável que o direito à educação faz parte das condições para a existência digna da pessoa humana, muito embora o conceito de dignidade seja extremamente amplo e, ainda, nos dias de hoje, de difícil conceituação e delimitação, se é que se pode limitar a dignidade humana. É justamente em razão da importância do direito à educação que nosso ordenamento jurídico prevê, junto a inúmeras legislações, o dever do Estado e a necessidade de garantia do acesso à educação a toda coletividade, fazendo-o junto à Constituição Federal, Código Civil, Estatuto da Criança e do Adolescente, Código de Defesa do Consumidor e também junto à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, além da previsão, igualmente, em diversas declarações universais. Neste ínterim, pode-se afirmar que a disposição do direito à educação junto ao texto constitucional e que, tal disposição, em conjunto com as demais, é reveladora da tendência das constituições em favor de um Estado Social, que tem como valor final a justiça social em uma democracia pluralista exigida pela sociedade de massas. Desde a Constituição do Império, datada de 1824, já havia disposição no sentido de garantir o direito à educação, em seu artigo 179, XXXII, ao dispor que: “A instrução primária é gratuita a todos os cidadãos”. Muito embora fosse singela aludida disposição constitucional, 121 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II depreende-se a preocupação com a educação e a verificação de sua importância desde os primórdios. Já a Constituição de 1934 deu passos significativos ao elencar um capítulo próprio para os temas relativos à educação, estabelecendo ser direito de todos, evidenciando, ainda, que deveria ser ministrada pela família e pelos poderes públicos, consoante o artigo 149 de referido diploma legal. Este mesmo regramento constitucional estabeleceu que a educação deveria possibilitar “eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação” e que deveria ser desenvolvida “num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana”. Junto a Constituição de 1946 houve a inauguração de um curto período de Estado de Direito, a qual, junto ao artigo 168 estabelece a obrigatoriedade do ensino primário oficial e gratuito para todos e o ulterior também terá assegurada a gratuidade para aqueles que comprovadamente não tiverem recursos suficientes. Nem mesmo com o golpe militar houve a alteração substantiva no que concerne à previsão constitucional relacionada à educação, pois, também junto ao artigo 168 do texto constitucional de 1967, de forma expressa, residiu a menção de ser a educação um direito de todos podendo ocorrer no lar e na escola e devendo ser inspirada, paradoxalmente, nos ideais de liberdade e de solidariedade humana, porquanto o Estado era de exceção, com cerceamento da liberdade. Além da garantia constitucional da educação universal, o ensino torna-se obrigatório dos sete aos quatorze anos e ministrado nos diferentes graus pelo Poder Público. De simples análise deste breve percurso histórico pelas constituições brasileiras pode se perceber que o direito a educação jamais foi suprimido. Mesmo nos momentos ditatoriais este direito manteve-se presente nos textos constitucionais, demonstrando que é essencial, necessário e fundamental. 3 A OBRIGATORIEDADE DO DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL JUNTO AO TEXTO CONSTITUCIONAL DE 1988. A expressão educação possui sua origem no latim, educatio, educationis, e sua tradução lato senso significa o ato de criar. O ser humano nasce com uma série de habilidades e de possibilidades, oportunidade em que é a educação o instrumento capaz de garantir e, principalmente, transformar aludidas potencialidades em realidade. Nesse sentido a educação se reveste de notória e evidente necessidade e, por isso, é considerada essencial para integral desenvolvimento da personalidade humana e, consequentemente, fundamental para o desenvolvimento da cidadania. 122 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A educação é pressuposto integrante para a edificação do Estado Democrático de Direito, o qual exige cidadãos capazes, críticos e prontos para desempenharem seus papéis sociais e exercerem na plenitude a cidadania. É sabido que um dos principais objetivos da educação é justamente o preparo para a cidadania e que a proteção dos direitos humanos demanda um processo educacional sério, eficaz e capaz de despertar nas gerações presentes e futuras a consciência de participação na sociedade, o que, infelizmente, não ocorre nos dias de hoje diante da precariedade dos sistemas de ensino atuais e, também, da promoção de políticas públicas por parte do ente estatal. A educação detém a finalidade, como direito fundamental que é, de destinar-se em um primeiro momento, ao substrato da sociedade, ou seja, às crianças, embora, até recentemente estas e os adolescentes não tenham sido tratados como cidadãos e nem mesmo como sujeitos de direitos. Todavia, embora seja prioridade, a garantia do acesso à educação para as crianças, como prioridade, não pode compactuar com a exclusão da universalização do ensino para as demais faixas etárias, inclusive para os adultos, como ocorre nos dias de hoje, em que o próprio sistema educacional é desigual. A formação intelectual, social e cidadã, função primordial da educação, deve voltar-se, sem nenhuma forma de exclusão. Somente assim poderemos iniciar a busca por um efetivo Estado Democrático de Direito. Como já dito, o ordenamento jurídico brasileiro apresenta vários diplomas legais que buscam garantir a dignidade da pessoa humana, incluindo, por decorrência e obviedade, a criança. A função primordial de tais disposições legais é a de garantir uma vida digna a todos que estão sob seu manto. Neste ponto inclui-se a educação das crianças, a qual passa a fazer parte do mínimo existencial4. No entendimento de Simone de Sá Portella: “O mínimo existencial refere-se ao ensino fundamental. Assim se em um determinado Município não houver vagas nas escolas de ensino oficial, pode o munícipe ingressar com uma ação, obrigando o Poder Público Federal, estadual ou municipal, pois a competência é concorrente das três entidades, a efetuar a matrícula em uma escola particular. [...] No que tange ao ensino médio, não constitui mínimo existencial”.5 4 PORTELLA, Simone de Sá. Considerações sobre o conceito de mínimo existencial. Âmbito Jurídico, Rio Grande. 2007. P. 41. 5 PORTELLA, Simone de Sá. Considerações sobre o conceito de mínimo existencial. Âmbito Jurídico, Rio Grande. 2007. P. 42. 123 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Também, o direito à educação infantil é um direito inalienável, pois a matrícula é obrigatória e a disponibilidade de vagas é obrigação do Estado, o qual resta compelido a garantir a todos quanto delas necessitarem. Para que possa existir referida garantia, imprescindível é, portanto, a promoção de políticas públicas com vistas à necessidade de a União Federal e os demais entes federados aplicarem, anualmente, receitas provenientes de impostos na manutenção e no desenvolvimento do ensino, conforme preleciona o Artigo 212 do texto constitucional. Desta feita, é de suma importância registrar que não somente ao Estado incumbe o dever de garantia do direito à educação, mas, também, por ser um direito fundamental, o ordenamento jurídico pátrio confere à família e à sociedade a responsabilidade de, igualmente, de garantir e proteger o direito das crianças à educação. É exatamente neste sentido, também, a Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia das Nações Unidas, a qual dispôs, em seus princípios, que a criança terá direito a receber educação, gratuita e compulsória, pelo menos no grau primário. O direito à educação infantil é direito fundamental, inalienável, indisponível e impostergável, sendo exatamente neste sentido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o qual dispõe ser a educação infantil prerrogativa constitucional indisponível. A sociedade brasileira, entendendo a importância do direito à educação e a necessidade de garantia de seu acesso, deu mostras nas últimas décadas do empenho pela universalização do acesso à educação nas escolas, especialmente no que tange à educação infantil. Esta reivindicação garantiu que nossos legisladores pátrios trouxessem junto ao texto constitucional a educação como um direito de todos, definindo a quem cabe a responsabilidade por sua promoção e incentivo e estabelecesse seus fins junto ao Artigo 205. A idéia da educação como direito subjetivo e dever do Estado e da família deve ser analisada sob o enfoque da escola republicana, ou seja, “para todos”. No entanto, não basta a simples oferta de vagas na rede pública de ensino, uma vez que ente público deverá garantir também todos os meios necessários para a permanência do educando nas salas de aula. Resta inegável, portanto, embora não haja menção expressa nos textos legais, que além do acesso e da permanência é indispensável a efetividade. Sem este último quesito, o dispositivo constitucional citado perde sua razão de existir, tornando-se inócuo. Compete ao ente estatal, através das instituições de ensino, em colaboração com a família e a sociedade de modo geral, buscar os meios para que a escola desempenhe seu papel e garanta a aplicabilidade do artigo 205 da Constituição Federal. Desta feita, o Estado tem o 124 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II dever de garantir o acesso e a permanência das crianças na escola, pois o ensino fundamental, até a oitava série ou o nono ano, será obrigatório e gratuito. 4 O DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Atualmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente é considerado um marco na garantia e afirmação consolidada dos direitos das crianças e dos adolescentes brasileiros. Em razão de aludido dispositivo legal criou-se um conjunto de atenção à infância e à adolescência, em especial, inerente à inserção escolar. Nesta toada, o Artigo 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente eleva a educação a direito positivado e enumera seus princípios basilares ao dispor a necessidade de igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, direito de respeito pelos educadores, direito de contestar critérios avaliativos, direito de organização e participação em entidades estudantis, e o acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência. Depreende-se, portanto, que o foco central do processo educativo é a criança, oportunidade em que o ensino deve garantir a sua plena realização, como pessoa, como sujeito de direito. Portanto, depreende-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente encontra-se em perfeita sintonia com o texto constitucional ao determinar, igualmente, o acesso em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade. Em razão disto garante-se, em um primeiro momento, a educação de crianças a partir dos primeiros meses de vida junto às creches e, em segundo lugar, confere condições aos pais para que possam permanecer no mercado de trabalho, com a tranquilidade de ter onde deixar o filho. As creches, nos últimos anos, vêm ganhando conotação de entidade capacitada a garantia da educação infantil. Infelizmente, a obrigatoriedade de acesso às creches e préescolas não foi acompanhada pelo pleno atendimento da demanda, fato este que prejudica, em muito o desenvolvimento das crianças. Ainda, o legislador pátrio editou dispositivos legais determinando a quem remanesce a responsabilidade pelos cuidados e zelo com as crianças e adolescentes. Aos dirigentes de instituições de ensino o Estatuto da Criança e do Adolescente outorgou uma única tarefa, que é a de comunicar ao Conselho Tutelar acerca das infrações praticadas junto à escola por parte dos educadores e alunos ou decorrentes do processo de aprendizagem. Por fim, constata-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, também, que o Poder Público deverá instigar a pesquisa e novas propostas relacionadas à educação em 125 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II geral, de forma que novas possibilidades alcancem o objetivo primordial que é o de manter as crianças na escola e formá-las como efetivos cidadãos. O Estatuto da Criança e do Adolescente corrobora a tese defendida até o presente momento, qual seja, a de que a educação é um direito fundamental e existem, assim, normas cogentes pertinentes. 5 O DIREITO À EDUCAÇÃO E A LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional surge em um contexto não muito favorável, qual seja, a crise econômica de 1990. Apostou-se, com isso, no receituário neoliberal e, ao apostar-se neste ponto específico para resolver os graves problemas econômicos, afetou-se, por consequência, as políticas sociais, repercutindo nas políticas públicas de educação. Nesta toada, a educação acabou tendo que adequar-se às necessidades de ajustes da economia propostos pela equipe econômica. Assim, a legislação em comento estabelece em seu primeiro artigo que “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. Também, o diploma legal em análise, ao traçar os princípios e fins da educação nacional, evoca a Constituição Federal, especialmente seu artigo 205, ao estabelecer em seu Título II, artigo 2º e seguintes, que “a educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Nesta toada, a criança por meio da educação tem que estar preparada para exercitar sua condição de cidadão que é, ou seja, de titular de direitos e deveres, tanto por uma condição universal, uma vez que se encontra assegurada na Carta de Direitos da Organização das Nações Unidas, quanto por uma condição particular, amparada no princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei. 6 O DIREITO À EDUCAÇÃO E O CÓDIGO PENAL O Código Penal igualmente é um importante meio de proteção e garantia do direito à educação. Junto a seu artigo 246, estabelece que os pais ou responsáveis que deixarem de 126 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II prover a “instrução primária” dos filhos em idade escolar terão a pena de detenção pelo prazo de 15 dias a um mês, ou multa. O tipo penal é o abandono intelectual. Abandono nada mais é do que a falta de amparo. Pratica abandono intelectual os pais que deixam, sem justa causa, de prover a educação dos filhos menores. O dispositivo do Código Penal em análise busca proteger um bem jurídico determinado que o direito ao ensino fundamental dos filhos menores e desta forma almeja-se assegurar-lhes a educação necessária capaz de facilitar-lhes o convívio social. A criança tem o direito fundamental à educação e seus responsáveis não podem deixar de dar a devida atenção a ele. Aos que se esquivarem dessa garantia de forma dolosa aplicar-se-á a pena prevista no artigo 246 do Código Penal. 7 DA CARÊNCIA DE CRECHES E PRÉ-ESCOLAS. CARÊNCIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS? É notório em nosso País a carência de creches e pré-escolas, questão esta que, indubitavelmente contribui para a idêntica notoriedade da precariedade da educação infantil. É urgente a necessidade de concretização e consecução de políticas públicas no setor, pois, atualmente, o Brasil está com 84,5% de crianças fora das creches6. Em razão da deficiência apresentada pelo setor público, tem-se que é somente com um macro esforço, pela mobilização junto aos municípios, à iniciativa privada e sociedade civil é que conseguirá cumprir as metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação elaborado em 2001. Neste sentido, de acordo com pesquisa realizada por Oman Carneiro: Segundo a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD) 2006, o quadro da carência de creches é comum em todas as regiões: Norte com 94,2%; Centro-Oeste, 90%; Nordeste, 88,3%; Sudeste , 84,2% e Sul, com 83,9% de crianças não assistidas, índices estes que comprovam o levantamento que considera apenas 30% dos municípios brasileiros com algum investimento em infraestrutura para a criação de espaços educacionais para a infância.7 6 Disponível em: <http://www.omancarneiro.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=670:educacao-infantil-ea-carencia-de-creches&catid=47:noticias&Itemid=96>, acessado em 24.jan.13. 7 Disponível em: <http://www.omancarneiro.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=670:educacao-infantil-ea-carencia-de-creches&catid=47:noticias&Itemid=96>, acessado em 24.jan.13. 127 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A justificativa apresentada pela grande maioria dos municípios é a falta de recursos para investimento na construção de creches e pré-escolas para atender a educação infantil. Para conter o déficit, e atendendo à justificativa da insuficiência de recursos, alegada por maior parte dos municípios, o Governo Federal em nota publicou que estará investindo R$ 800 milhões na construção e equipagem das creches. Mas, para atender a estimativa de 11 milhões de crianças com idade de 0 a 3 anos que estão desprovidas deste direito constitucional, o País precisa construir, pelo menos, de 9 a 12 mil creches por ano. Com vistas à estas informações, dúvidas não remanescem. Existe evidente problemática inerente à promoção de políticas públicas pelo poder estatal e, não só isso, mas, também, vícios na consecução das políticas públicas já existentes, como, por exemplo, o Plano Nacional de Educação. As idéias e tentativas são válidas de consecução de políticas públicas. Todavia, não são eficazes e, na grande maioria das vezes acabam por esbarrar na burocracia e também na própria corrupção. Dúvidas, portanto, não existem com relação à deficiência enfrentada nos dias de hoje inerente à educação infantil a qual não prospera em razão da ineficácia, tanto de elaboração como de procedimento, das políticas públicas. 8 DA INEXISTÊNCIA DE IMPEDIMENTO PARA CONSECUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM FACE DO PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL Antes de adentrar ao foco principal do presente tópico, importante deixar registrada, novamente, a fundamentalidade do direito à educação, como sendo o principal fundamento de gerar ao país a ultrapassagem de uma situação de terceiro mundo para, finalmente, passar a ser o país do presente e não mais o eterno país do futuro, como tem em mente nossos legisladores pátrios. Com vistas ao afirmado, pode-se, ainda, firmar o entendimento de que a própria justificativa adotada, inerente à não consecução de políticas públicas no setor educacional infantil, é de terceiro mundo. É periférica e superficial por não ser capaz de, sequer, buscar compreender e conferir eficácia a nossos princípios magnos constitucionais. Em nosso País, meninos de rua e jovens à deriva são o resultado da pobreza em que vivem suas mães, da ausência dos pais, da violência dentro e fora de casa e do total abandono do Estado a quem dele precisa. É, sim, urgente e necessário reforçar os espaços e tempos de 128 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II acolhimento de crianças e jovens pelos adultos, pais e, principalmente, pelo Estado para que não tenha, quando adultos, que puni-los e privá-los da liberdade. Esta é a idéia. Nesta toada, imprescindível colacionar o entendimento de Luiz Edson Fachin ao dispor que: “em todo campo do saber (daí a pertinência quiçá especial com a instância jurídica), há o desafio de conhecer para transformar, pois a educação que tão-só reproduz não liberta”.8 É, neste sentido, igualmente pertinente invocar as palavras de Paulo Freire, para quem: “a educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa”.9 Pertinente, também, os dizeres de Marilena Chauí, para quem: As leis, porque exprimem os privilégios dos poderosos ou a vontade pessoal dos governantes, não são vistas como expressão de direitos nem de vontades e decisões públicas coletivas. O poder Judiciário aparece como misterioso, envolto num saber incompreensível e numa autoridade quase mística. Por isso mesmo, aceita-se que a legalidade seja, por um lado, incompreensível e, por outro, ineficiente (a impunidade não reina livre e solta?) e que a única relação possível com ela seja a da transgressão (o famoso “jeitinho”). 10 A democracia, no Brasil, ainda está por ser inventada e não há, nem nunca haverá democracia, isonomia e justiça social sem o acesso pleno à educação como único caminho a ser trilhado no sentido de ver concretizados os anseios do legislador constituinte. A carência de políticas públicas ou sua ineficiência, contribuem para má formação dos cidadãos e a consequente manutenção de nossa sociedade em um estado de alienação quase que completo. Na situação atual, não há que se falar em civismo, em democracia, em justiça social ou sequer em dignidade, pois, aludidos institutos podem ser considerados, hoje, irreais e um objetivo a ser atingido. Veja, portanto, a importância da educação. Neste ínterim, é inconcebível que se admita, como justificativa para negativa de implementação e garantia deste direito fundamental, a carência de recursos públicos. A pergunta que se deve fazer neste momento é: o administrador público possui, em todos os casos, carta branca para escolher as prioridades, ou seja, para decidir quais 8 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. RJ-SP: Renovar, 2000, p.3. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 42. 10 CHAUI, Marilena. Contive à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2004, 13ª ed. 2ª tiragem. 9 129 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II valores serão contemplados e, consequentemente, quais serão postergados em face da escassez dos recursos públicos? Tal pergunta deve ser respondida com cautela. A regra é que, por atribuição constitucional, cabe ao Poder Executivo definir os programas de governo que serão tratados com prioridade; boa parte deles, referendados pela vontade manifestada nas urnas. Todavia, há um núcleo de direitos que não pode, em hipótese alguma, ser preterido, pois constitui o objetivo e fundamento primeiro do Estado Democrático de Direito. O termo "em hipótese alguma" frisa que nem mesmo a vontade da maioria pode tratar tais direitos como secundários. Isso, porque a democracia não se restringe na vontade da maioria. O princípio do majoritário é apenas um instrumento no processo democrático, mas este não se resume àquele. Democracia é, além da vontade da maioria, a realização dos direitos fundamentais. Explica-se. Só haverá democracia real onde houver liberdade de expressão, pluralismo político, acesso à informação, à educação, inviolabilidade da intimidade, o respeito às minorias e às ideias minoritárias etc. Tais valores não podem ser malferidos, ainda que seja a vontade da maioria. Caso contrário, se estará usando da "democracia" para extinguir a Democracia. Com isso, observa-se que a realização dos Direitos Fundamentais não é opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que depende unicamente da vontade política. A não priorização de direitos essenciais implica o destrato da vida humana como um fim em si mesmo, ofende, às claras, o sobreprincípio da dignidade da pessoa humana. Assim, aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana, dentre os quais os relacionados às liberdades civis e aos direitos prestacionais essenciais como a educação e a saúde, não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do administrador. A argumentação até aqui apresentada expõe a existência de duas questões que precisam ser conciliadas. De um lado, tem-se o real problema da ausência de recursos orçamentário; do outro, a necessidade de realização dos Direitos Fundamentais. A tese não deixa de ser uma decorrência do reconhecimento da reserva do possível. Por não haver recursos para tudo, é que se deve garantir, ao menos, o suficiente para que se possa viver com dignidade. Esse mínimo existencial não pode ser postergado e deve ser a prioridade do Poder Público. 130 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Somente depois de atendido é que se abre a possibilidade para a efetivação de outros gastos, não entendidos, num juízo de razoabilidade, como essenciais. Por esse motivo, pelo menos a priori, a teoria da reserva do possível não pode ser oposta ao mínimo existencial. Antes, mais uma consideração. O mínimo existencial não se resume ao mínimo vital, ou seja, o mínimo para se viver. Não deixar alguém morrer de fome é, certamente, o primeiro passo, mas não é, nem de longe, o suficiente para fazê-lo viver com dignidade. O conteúdo daquilo que seja o mínimo existencial abrange também as condições socioculturais, que, para além da questão da mera sobrevivência, asseguram ao indivíduo um mínimo de inserção na "vida" social. Definido o conteúdo do mínimo existencial, não fica difícil perceber que dentre os direitos considerados prioritários encontra-se o direito à educação. O que distingue o homem dos demais seres vivos não é a sua condição de animal social. Animal social a abelha é, a formiga é, inúmeros outros são. O traço diferencial do homem é a sua condição de ser um animal político; a sua capacidade de relacionar-se com os demais e, através da ação e do discurso, programar a vida em sociedade. A distinção é importante, pois denota a existência de uma dupla dimensão da vida humana. Há a vida natural, biológica, que faz do homem um animal como qualquer outro. Há, também, uma espécie de segunda vida, a que é exercida na esfera pública, nas relações intersubjetivas e políticas que o indivíduo realiza com os demais integrantes da sociedade. A consciência de que é da essência do ser humano, inclusive sendo o seu traço característico, o relacionamento com os demais em um espaço público - onde todos são, in abstrato, iguais, e cuja diferenciação se dá mais em razão da capacidade para a ação e o discurso do que em virtude de atributos biológicos - é que torna a educação um valor ímpar. Em outras palavras, no espaço público - onde se travam as relações comerciais, profissionais, trabalhistas, bem como onde se exerce a cidadania - a ausência de educação, de conhecimento, em regra, relega o indivíduo a posições subalternas, o torna dependente das forças físicas para continuar a sobreviver e, ainda assim, em condições precárias. Daí surge a necessidade do insculpido junto aos Artigos 205 e 227 da Constituição Federal. Observa-se, nesse ponto, que a priorização dos investimentos na educação infantil, devido a sua essencialidade, não é resultado de opções políticas dos ocupantes momentâneos do cargo chefe do Poder Executivo, mas sim uma imposição da própria Carta Federal. Com efeito, o princípio da reserva do possível não pode ser oposto - quando a escassez é resultado de um processo de escolha das atividades que serão atendidas - ao 131 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II mínimo existencial, aos direitos que a própria Constituição Federal elege como prioritários, como é o caso do direito à educação infantil. 9 DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA INERENTE À OBRIGATORIEDADE DE VAGAS EM CRECHES E PRÉ-ESCOLAS PARA EDUCAÇÃO INFANTIL. Conforme já exaustivamente disposto, a acesso dos cidadãos ao saber contribui para a expansão dos conhecimentos e cria subsídios individuais e coletivos para o engrandecimento da consciência sobre a realidade social em que vivem e sobre as relações existentes nos contextos dos quais são sujeitos históricos, econômicos e políticos. Ao firmar esta conscientização, o sujeito se transforma e passa a viver de maneira mais efetiva e presencial. Na esteira desse entendimento, são esclarecedoras as palavras de Octávio Ianni: Poucos são os que dispõem de condições para se informarem e posicionarem diante dos acontecimentos mundiais, tendo em conta suas implicações locais, regionais, nacionais e continentais. Quando se criam condições mais plenas para a elaboração da autoconsciência, no sentido de consciência para si, então a cidadania se realiza propriamente como soberania.11 Nesta toada, educação e escola, principalmente infantil, são essenciais para o indivíduo e para a sociedade vez que promove e garante o avanço da humanidade. Todavia, para que isto ocorra, indispensável é a promoção de políticas públicas voltadas para a educação. Infelizmente, a realidade brasileira é precária em propostas e ações concretas que enaltecam compromisso com as efetivas necessidades dos indivíduos, oportunidade em que aludido fato é refletido junto aos entendimentos jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça conforme se demonstrará. Nosso País herdou do período Imperial um contexto educacional extremamente complicado, com vistas ao fato de que a alfabetização das crianças não era preocupação do Poder Público. Neste sentido, tem-se o entendimento de Florestan Fernandes: 11 IANNI, Octávio. A sociedade global. 8 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. P. 115. 132 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II É certo que a República falhou em suas tarefas educacionais. Mas falhou por incapacidade criadora: por não ter produzido os modelos de educação sistemática exigidos pela sociedade de classes e pela civilização correspondente, fundada na economia capitalista, na tecnologia científica e no regime democrático. Em outras palavras, suas falhas provêm das limitações profundas, pois se omitiu diante da necessidade de converter-se em Estado educador, em vez de manter-se como Estado fundador de escolas e administrador ou supervisor do sistema nacional de educação. Sempre tentou, não obstante, enfrentar e resolver os problemas educacionais tidos como “graves”, fazendo-o naturalmente segundo forma de intervenção ditada pela escassez crônica de recursos materiais e humanos. Isso explica por que acabou dando preeminência às soluções educacionais vindas do passado, tão inconsistentes diante do novo estilo de vida e das opções republicanas, e por que simplificou demais a sua contribuição construtiva, orientando-se no sentido de multiplicar escolas invariavelmente obsoletas, em sua estrutura e organização, e marcadamente rígidas, em sua capacidade de atender às solicitações educacionais das comunidades humanas brasileiras.12 Mais do que um problema localizado no setor educacional, o Manifesto dos Pioneiros situa o problema educacional como eminentemente social, conforme analisou Otaíza de Oliveira Romanelli, indicando a educação como possibilidade para alavancar o desenvolvimento econômico brasileiro e conseqüentemente possibilitar também o desenvolvimento da sociedade. Desprendendo-se dos interesses de classes, a que ela tem servido, a educação perde o “sentido aristológico”, para usar a expressão de Ernesto Nelson, deixa de constituir um privilégio determinado pela condição econômica e social do indivíduo, para assumir um “caráter biológico”, com que ela organiza a coletividade em geral, reconhecendo a todo o indivíduo o direito a ser educado até onde o permitam as suas aptidões naturais, independente de razões de ordem econômica e social. A educação nova, alargada a sua finalidade para além dos limites das classes, assume, com uma feição mais humana, a verdadeira função social, preparando-se para formar “a hierarquia democrática” pela “hierarquia das capacidades”, recrutadas em todos os grupos sociais, a que se abrem as mesmas oportunidades de educação. Ela tem, por objeto, organizar e desenvolver os meios de ação durável com o fim de “dirigir o desenvolvimento natural e integral do ser humano em cada uma das etapas de seu crescimento”, de acordo com certa concepção de mundo.13 12 FERNANDES, Florestan. Educação e Sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus, 1966. P. 4. AZEVEDO, Fernando de. et. al. Manifesto dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores (1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2010. P. 40. 13 133 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Uma vez reconhecida a educação como direito de todos, o Manifesto dos Pioneiros confere um progresso qualitativo junto à compreensão da educação como fundamental para o desenvolvimento da cidadania. O papel desempenhado no contexto do Manifesto, que trouxe em seu bojo as importantes reivindicações de uma educação pública, obrigatória, gratuita, leiga e igual para ambos os sexos. Neste sentido, tem-se os dizeres de Fernando de Azevedo: Assentado o princípio do direito biológico de cada indivíduo à sua educação integral, cabe evidentemente ao Estado a organização dos meios de o tornar efetivo, por um plano geral de educação, de estrutura orgânica, que torne a escola acessível, em todos os seus graus, aos cidadãos a quem a estrutura social do país mantém em condições de inferioridade econômica para obter o máximo de desenvolvimento de acordo com suas aptidões vitais. Chega-se, por esta forma, ao princípio da escola para todos, “escola comum ou única”, que tomando a rigor, só não ficará na contingência de sofrer quaisquer restrições, em países em que as reformas pedagógicas estão intimamente ligadas com a reconstrução fundamental das relações sociais.14 Neste sentido, a educação é, assim, “um direito social fundante da cidadania e o primeiro na ordem das citações”15 Sem educação, não há cidadania. Sob este enfoque, a educação é considerada como direito de todos e dever do Estado e da família, sendo indispensável para a evolução do ser humano. Realizados aludidos esclarecimentos, importa salientar que há notória tendência do Superior Tribunal de Justiça em assegurar as crianças o acesso à educação infantil, oportunidade em que, a totalidade dos Mandados de Segurança que foram ajuizados e chegaram a análise desta Corte Superior tiveram seu deferimento como medida imposta, no tocante a garantir e a assegurar vagas junto à instituições de ensino mantenedoras da educação infantil. Neste sentido, tem-se o entendimento unânime do Superior Tribunal de Justiça – STJ, junto ao Recurso Especial 1345330/RS: Hipótese em que o Tribunal a quo concluiu que "o direito à educação infantil constitui direito fundamental social, que deve ser assegurado pelo ente público municipal, garantindo-se o atendimento em creche ou pré-escola às crianças de zero a cinco anos de idade, com absoluta 14 15 FERNANDES, Florestan. Educação e Sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus, 1966. P. 44. CURY, Carlos Roberto Jamil. Legislação educacional brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A ,2002. 134 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II prioridade, nos termos do artigo 208, IV, da CF, e artigo 54, IV, do ECA. Ainda, a Corte Superior junto ao Recurso Especial 782196/SP, consignou que: “Hipótese em que o Tribunal a quo concluiu que "o direito à educação infantil constitui direito fundamental social, que deve ser assegurado pelo ente público municipal, garantindose o atendimento em creche ou pré-escola às crianças de zero a cinco anos de idade, com absoluta prioridade, nos termos do artigo 208, IV, da CF, e artigo 54, IV, do ECA." Desta forma, o Superior Tribunal de Justiça – STJ é uníssono em entender o direito à educação infantil como fundamental, indispensável e obrigatório, razão pela qual concede, aos que buscam sua tutela jurisdicional, o acesso e garantia de vagas em instituição que atuam neste setor educacional. 10 CONCLUSÃO A educação como direito social e como um dos componentes da consolidação da cidadania de um povo pressupõe a criação e efetivação de estratégias pelo poder público para que o mesmo seja garantido no âmbito da concretude. Para que a educação possa contribuir para a efetivação da cidadania do povo brasileiro é preciso entendê-la enquanto direito, ou seja, a garantia da educação deve ocorrer integralmente e não apenas como possibilidade de acesso à escola, pois para que esta contribua com o exercício da cidadania de forma geral, precisa ser organizada de forma a possibilitar que seus alunos usufruam de todas as possibilidades de acesso, aquisição e desenvolvimento de novos conhecimentos para o exercício de seus direitos e deveres. Para isso ocorrer é preciso efetivar ações que garantam a previsão legal. 11 REFERÊNCIAS: PORTELLA, Simone de Sá. Considerações sobre o conceito de mínimo existencial. Âmbito Jurídico, Rio Grande. 2007. IANNI, Octávio. A sociedade global. 8 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. FERNANDES, Florestan. Educação e Sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus, 1966 CHAUI, Marilena. Contive à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2004, 13ª ed. 2ª tiragem 135 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 AZEVEDO, Fernando de. et. al. Manifesto dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores (1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2010. FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. RJ-SP: Renovar, 2000, CURY, Carlos Roberto Jamil. Legislação educacional brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A ,2002 136 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II DIREITO SOCIAL À SAÚDE: ANÁLISE A PARTIR DA PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO CASO BRASILEIRO SOCIAL RIGHT TO HEALTH: ANALYSIS FROM THE PERSPECTIVE OF FUNDAMENTAL RIGHTS IN THE CASE OF BRAZIL Aline Maria Hagers Bozo1 Bárbara Guasque2 RESUMO O presente artigo versa sobre discussão teórica acerca dos direitos fundamentais, enfatizando que são eles absolutos, como tal, só podem ser relativizados mediante lei e em caráter excepcional. Os Direitos Fundamentais de primeira a terceira dimensão pautaram-se no ideário da Revolução Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade, no entanto, só serão objeto de estudo os direitos de primeira e segunda dimensão, com ênfase no direito social à saúde. O direito social à saúde é previsto na Constituição Federal de 1988 em vários dispositivos, como no artigo 6º, 196, 197, 198, 199 e 200. O Brasil possui um sistema de saúde público, de caráter universal, igualitário e gratuito, financiado pelo Estado. Contudo, o Sistema Único de Saúde se apresenta deficitário, restando a pergunta se o direito fundamental à saúde é garantido no Brasil. Entende-se que o SUS não atende satisfatoriamente as garantias fundamentais previstas na Constituição Federal de 1988, precisando que a União invista mais recursos no sistema hoje proposto. PALAVRAS-CHAVE: Direitos Fundamentais; Direito Social, Humana, Sistema Único de Saúde-SUS. Dignidade da Pessoa ABSTRACT This article deals with a theoretical discussion about fundamental rights, emphasizing that they are absolute and as such they can only be put into perspective by law and in exceptional character. The Fundamental Rights of first to third dimensions were based on the ideology of the French Revolution, liberty, equality and fraternity. However, the rights of first and second dimensions will be the object of study, with emphasis on the social right to health. The social right to health is provided in the 1988 Federal Constitution through various instruments, such as the 6th article, 196, 197, 198, 199, and 200. Brazil has a public health system of universal character, egalitarian and free, financed by the State. However, this Unified Health System is deficient, leading to question whether the fundamental right to health is guaranteed in Brazil. It is understood that the Unified Health System does not meet the fundamental guarantees provided in the 1988 Federal Constitution satisfactorily and this fact represents a need for the State to invest more resources in the system proposed. KEYWORDS: fundamental rights, social rights, human dignity, Unified Health System. 1 Especialista em Direito Criminal pela UNICURITIBA e Mestranda em Direito Econômico e Socioambiental pela PUC/PR. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 2 Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2011/2013), com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Advogada graduada em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (2003). Pós-Graduada em Direito Ambiental pelo Centro Universitário Positivo - UNICENP (2009). 137 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Sumário: I.Introdução; II.As Dimensões dos Direitos Fundamentais; III. Os Direitos Sociais e a Dignidade da Pessoa Humana. IV. Os Direitos Sociais. V. O Direito Social à Saúde. VI. Competência dos Entes Federados quanto à Saúde. VII. O Mínimo Existencial e a Reserva do Possível frente à Efetividade da Prestação Estatal. VIII. Considerações Finais. IX. Referências. I. INTRODUÇÃO A Constituição Federal de 1988 fora chamada de Constituição Cidadã por ter inserido vários direitos fundamentais em seu texto. Dentre eles podemos destacar os direitos fundamentais de primeira geração que são os garantidores de direitos básicos como a liberdade de ir e vir. Por sua vez, os direitos fundamentais de segunda geração exigem do Estado uma prestação para sua efetivação, como o direito à saúde. Precisar um marco histórico para o surgimento dos direitos fundamentais é árdua tarefa, da mesma forma que conceituar ou caracterizá-los. Muitos são os conceitos para os direitos fundamentais, o que afasta a simplicidade de tal tarefa, visto que inúmeras são as possibilidades de um resultado não satisfatório, uma vez que faltariam exatidão e especificidade que abarcasse todo o conteúdo. De acordo com Hesse3 os direitos fundamentais visam “criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana.” Enquanto Schmitt4 entende que os direitos fundamentais podem ser caracterizados como direitos do homem livre e isolado, direitos que possui em face ao Estado. Este autor menciona que os direitos fundamentais são absolutos e não se relativizam, exceto se obedecerem a critérios da lei ou se estiverem dentro de limites legais. E continua dizendo que “as limitações aos chamados direitos fundamentais genuínos aparecem como exceções, estabelecendo-se unicamente com base em lei, mas lei em sentido geral; a limitação se dá sempre debaixo do controle da lei, sendo mensurável na extensão e no conteúdo”. 5 O presente trabalho questiona o direito fundamental, pautado no princípio da dignidade da pessoa humana, à saúde, previsto na Constituição Federal de 1988, se o mesmo está sendo oferecido pelo Estado conforme preconizado pelo texto constitucional. 3 HESSE, Konradi, Grundechte, in Staatslexikon, v.2.In: Paulo Bonavides - Curso de direito Constitucional. 26 ed. p.560. 4 SCHMITT, Carl, Verfassungslehre, p.164 Apud. Paulo Bonavides - Curso de direito Constitucional. 26 ed. p.561. 5 Id. Ibid. p. 562. 138 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II II. As Dimensões dos Direitos Fundamentais Os direitos fundamentais habitualmente são classificados em gerações de direito. Há algumas manifestações quanto à terminologia geração ou dimensão de direito, de forma que Lenza6 explica que a doutrina mais atual prefere a expressão “dimensões” dos direitos fundamentais, considerando que uma nova “dimensão” não abandonaria as conquistas da “dimensão” anterior e, assim, a expressão se mostraria mais adequada. Sarlet, Marinoni e Mitidiero, julgam as críticas dirigidas ao termo “gerações” de direito bem fundadas, uma vez que o reconhecimento de novos direitos fundamentais exercem processo cumulativo, posto que os novos complementam os já existentes e não há exclusão ou alternância, como a expressão “gerações” poderia sugerir uma substituição gradativa, de uma geração para outra. Assim como fez Lenza, os autores citados também preferiram utilizar-se do termo “dimensão”, também de acordo com as mais modernas doutrinas. 7 Abandonando a questão de terminologia, no que tange a classificação dos direitos fundamentais, eles podem ser ordenados em várias dimensões, sendo que as três primeiras partem do lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade, ideário da Revolução Francesa 8, mas apenas os de primeira e segunda geração serão objetos do presente estudo. 9 Os direitos fundamentais de primeira dimensão correspondem aos direitos de liberdade, da não intervenção do Estado – os chamados direitos negativos - e vão se atrelando também ao princípio da igualdade, em que todos são iguais no usufruto da liberdade. Nas palavras de Paulo Bonavides10 “são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do 6 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado.16ª edição atualizada e ampliada. Editora Saraiva, 2012, p. 958. 7 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2012, p. 258. 8 LENZA. Op. Cit. p. 958. 9 Na terceira dimensão dos direitos fundamentais encontram-se os ditos direitos de solidariedade e fraternidade, cuja consagração decorre dos impactos ocasionados pela evolução tecnológica e científica. A principal diferença entre os direitos de terceira dimensão com os anteriores, encontra-se na questão da titularidade. Isso porque, ao contrário das dimensões anteriores, aqui a titularidade pertence a todo gênero humano, como os direitos difusos e os direitos coletivos. São dessa dimensão os direitos relativos ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos, à paz, ao meio ambiente e à qualidade de vida, à conservação e utilização do patrimônio comum da humanidade – histórico e cultural, e à comunição. Alguns autores mencionam a existência de direitos fundamentais de quarta dimensão. Para Bonavides a quarta dimensão de direitos fundamentais decorre do fenômeno da globalização dos direitos fundamentais e compreende direitos como à informação, à democracia e ao pluralismo. 10 BONAVIDES. Op. Cit. p. 563. 139 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Ocidente”. O autor afirma que os direitos de primeira dimensão alcançaram projeção de universalidade formal, de modo que qualquer Constituição os reconheça em toda a sua extensão. Esses direitos tangem ao homem das liberdades abstratas e têm por titular o indivíduo subjetivo; eles opõem-se ao Estado. Os direitos de primeira dimensão refletem o pensamento do liberalismo-burguês do século XVIII, preocupados com as questões individuais, ficando caracterizados como direitos de defesa do indivíduo frente ao poder estatal. Tais direitos almejam uma abstenção por parte dos poderes públicos, sendo assim, direitos de resistência ou de oposição ao Estado. Conforme Sarlet: Neste contexto, assumem particular relevo os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei, posteriormente complementados por um leque de liberdades, incluindo assim denominadas liberdades de expressão coletiva (liberdade de expressão, imprensa, manifestação, reunião, associação etc.) e pelos direitos de participação política, tais como direito de voto e a capacidade eleitoral passiva, revelando, de tal sorte, a íntima correlação entre os direitos fundamentais e a Democracia. 11 Os direitos humanos de primeira dimensão referem-se ao indivíduo e suas liberdades – liberdade de ir e vir, ao culto religioso, de expressão, de reunião, de fazer escolhas na esfera afetiva, e também a liberdade de propriedade e privacidade, sem nenhuma intervenção estatal.12 Os direitos de segunda dimensão estão relacionados às liberdades concretas e na perspectiva cronológica, dominaram o século XX. A Revolução Industrial, no século anterior, representou o marco do fim da soberania burguesa. Nesse contexto, se evidenciaram o acúmulo de capital nas mãos dos mais ricos, a aceleração de desempregos e as precárias condições de trabalhos. Esses, dentre outros vários fatores acabaram por eclodir as manifestações e organizações da classe proletária, clamando por direitos como, por exemplo, do voto, o qual lhes concedia a escolha de seus representantes 13. Os direitos de segunda dimensão estão relacionados às questões sociais, ao Estado Social, Estado este que se preocupava com a redistribuição dos lucros, com a garantia de uma sociedade mais justa e igualitária que contasse com a intervenção Estatal, a fim de que cada indivíduo pudesse ter uma existência digna. Esses direitos, diferentemente dos de primeira dimensão, exigem ações 11 SARLET et al. Op. Cit. p. 260. PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Direitos Fundamentais Sociais: considerações acerca da legitimidade política e processual do Ministério Público e do sistema de justiça para sua tutela. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed, 2006, p 59. 13 Id. Ibid. p. 56. 12 140 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II positivas por parte do Estado para garantir o bem estar social - chamados também de direitos positivos. São os direitos sociais, culturais e econômicos que surgiram arraigados ao princípio da igualdade. Porto descreve os direitos de segunda dimensão como sendo aqueles que concernem, por sua vez, às conquistas no âmbito social, não apenas na esfera individual, contudo visando à coletividade dos trabalhadores, estudantes, aposentados, crianças, adolescentes, idosos, enfim, situando-os na condição de sujeitos de direitos. Este autor finaliza observando que “ademais, nesta segunda dimensão, passa-se a exigir uma ação positiva do Estado para concretização dessas novas categorias deônticas, daí serem chamados de direitos prestacionais”. 14 III. Os Direitos Sociais e a Dignidade da Pessoa Humana Dentre os direitos prestacionais sociais de segunda dimensão, o direito à saúde pede especial atenção e não há como falar em saúde, sem falar em dignidade da pessoa humana15. Como salienta Sarlet: A dignidade da pessoa humana é uma qualidade intrínseca, inseparável de todo e qualquer ser humano, é característica que o define como tal. Concepção de que em razão, tão somente, de sua condição humana e independentemente de qualquer outra particularidade, o ser humano é titular de direitos que devem ser respeitados pelo Estado e por seus semelhantes. É, pois, um predicado tido como inerente a todos os seres humanos e configura-se como um valor próprio que o identifica. 16 A dignidade da pessoa humana é valor axiológico, é a base, o núcleo de todos os direitos e garantias fundamentais e na Constituição Federal encontram-se importantes artigos nesse sentido, como o artigo 1º, inciso III, que coloca a dignidade da pessoa humana como fundamento da República; artigo 3º, inciso III que põe como objetivos fundamentais, entre outros, a erradicação da pobreza e da marginalização a fim de reduzir a desigualdade social e regional; artigo 5º, caput, que coloca todos iguais perante a lei, e seu inciso III, que proíbe a tortura, o tratamento desumano ou degradante; artigo 6º que determina a assistência aos 14 PORTO. Op. Cit. p. 60 e 61. “(...) no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade”. Conforme: KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução de Leopoldo Holzbach, São Paulo: Martin Claret, 2004. 16 SARLET, Wolfgang Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição da República de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 22. 15 141 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II desamparados; artigo 193 que menciona como base da ordem social o bem estar e a justiça social e, por último, artigo 231 que reconhece aos índios sua organização social como um todo, protegendo-os. Nas palavras de Torres “o direito à alimentação, à saúde e à educação, embora não sejam originariamente fundamentais, adquirem o status daqueles no que concerne à parcela mínima, sem a qual a pessoa não sobrevive” 17. Para Barroso, dignidade da pessoa humana é uma locução tão vaga, tão metafísica, que, embora carregue em si forte carga espiritual, não tem qualquer valia jurídica. Passar fome, dormir ao relento, não conseguir emprego são, por certo, situações ofensivas à dignidade humana. De fato, a dignidade da pessoa humana ganha destaque, não obstante esta se merecer como um conceito de contornos vagos e imprecisos, caracterizado por sua ambiguidade e porosidade, assim como por sua natureza necessariamente polissêmica. Tal relevância pode ser facilmente compreendida à luz dos avanços tecnológicos e científicos da humanidade. 18 Sarlet propôs uma conceituação jurídica para a dignidade da pessoa humana: Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos. 19 Há uma indissolúvel e intrínseca relação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, mesmos naquelas constituições em que a dignidade humana não seja explicitada em seus textos. Desta maneira, pode-se considerar que a dignidade da pessoa humana é um axioma irrefutável de valor jurídico-filosófico. 20 Moraes21 define os direitos humanos fundamentais como sendo “o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio da sua proteção contra o arbítrio do poder estatal”. E afirma que a complementaridade, a efetividade, a irrenunciabilidade, a inviolabilidade, a 17 TORRES, Ricardo Lobo. Os direitos humanos e a tributação. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 133. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 296. 19 SARLET. Op. Cit. 2001, p. 60. 20 Id. Idem. p. 26. 21 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 3º ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 39. 18 142 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II interdependência, a imprescritibilidade e a universalidade são as características destes direitos. Moraes22 ainda preceitua que a dignidade humana trata-se de valor moral e espiritual, intrínsecos e indissolúveis a toda pessoa, e que conscientemente se expressa por meio da determinação responsável pela própria vida, com o dever de exigir do outro a reciprocidade do respeito. Ao comentar o Art. 1º da Declaração dos Direitos Humanos, o festejado dispositivo que decreta a igualdade de todos os seres humanos em dignidade e direitos, Rocha faz as seguintes considerações: Gente é tudo igual. Tudo igual. Mesmo tendo cada um a sua diferença. Gente não muda. Muda o invólucro. O miolo, igual. Gente quer ser feliz, tem medos, esperanças e esperas. Que cada qual vive a seu modo. Lida com as agonias de um jeito único, só seu. Mas o sofrimento é sofrido igual. A alegria, sente-se igual. 23 Silva sobre o conceito de dignidade da pessoa humana, para que se possa entender o significado além de qualquer conceituação jurídica, uma vez que a dignidade é posta como condição inerente ao todo e qualquer ser humano, atributo que o caracteriza como tal, afirma que “a dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana”. 24 E por fim, não menos importante, Flávia Piovesan discorre sobre o processo de universalização dos direitos humanos e elucida que a formação de um sistema internacional, composto por tratados, tem sua fundação na acolhida da dignidade da pessoa humana como valor que norteia o universo de direitos. Conveniente se faz destacar a concepção da autora: Todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano. O valor da dignidade humana se projeta, assim, por todo o sistema internacional de proteção. Todos os tratados internacionais, ainda que assumam a roupagem do Positivismo Jurídico, incorporam o valor da dignidade humana. 25 22 MORAES. Op. Cit. p.40. ROCHA, Carmem Lúcia. Antunes. Direito de Todos e para Todos. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 13. 24 SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista de Direito Administrativo. v. 212 - abr./jun. 1998. 25 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. In: LEITE, George Salomão (Org.). Dos Princípios Constitucionais: Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. 23 143 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Assim, a Constituição brasileira de 1998 traz em seu artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana como direito fundamental. Porém, importante perceber que a dignidade da pessoa humana não foi inclusa no artigo 5º da Carta Magna, o qual estabelece os direitos e garantias fundamentais, todavia, concede-o o enfoque como princípio constitucional basilar do Estado Democrático de Direito. O Estado tem não apenas o dever de se abster de praticar atos que atentem contra a dignidade humana, como também o de promover esta dignidade através de condutas ativas, garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seu território. O homem tem a sua dignidade aviltada não apenas quando se vê privado de alguma das suas liberdades fundamentais, como também quando não tem acesso à alimentação, educação básica, saúde, moradia etc. 26 IV. Os Direitos Sociais Os direitos sociais são considerados direitos de segunda dimensão, aqueles que exigem prestações pelo Poder Público e requerem uma atuação positiva do Estado, de modo a diminuir ou ao menos amenizar a desigualdade social dos hipossuficientes. De acordo com André Ramos Tavares “são, por esse exato motivo, conhecidos também como direitos a prestação, ou direitos prestacionais”. 27 Os direitos sociais estão intrinsecamente relacionados aos direitos humanos. Independentemente de acordos pessoais ou determinações legais, tais direitos são atribuídos ao ser humano enquanto tal e eles correspondem aos princípios morais que visam ao fornecimento de garantias e satisfação do mínimo de condição para que o indivíduo tenha uma vida digna. De acordo com Martins, “Os direitos sociais possuem um status garantidor da autonomia do indivíduo, possibilitando-o exercer e usufruir de sua liberdade, mediante a garantia de acesso a uma formação educacional, ao trabalho, à moradia e à assistência à saúde”. 28 De acordo com Habermas: 26 SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p. 71. 27 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 10 edição revisada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 837. 28 MARTINS, Wal. Direito à saúde: compêndio. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 21. 144 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Os direitos sociais são uma condição para que os direitos básicos, tais como o direito à igual liberdade de ação, direito à livre associação entre os indivíduos, direito à proteção dos direitos dos direitos individuais, direito à igual participação no processo de formação de opiniões e vontades e direito à garantia de condições de vida, sociais, técnicas e econômicas, possam vir a ser exercidos. 29 Para o autor, os direitos básicos são aqueles conceituados como princípios que possibilitam o processo de legitimação de direitos. 30 Os destinatários dos direitos sociais são todos os indivíduos, no entanto objetivam dar maiores condições aos mais necessitados de amparo por parte do Estado. Os direitos sociais são institucionalizados na Constituição de 1934, sofrendo influência das Constituições Mexicana, de 1917, alemã Weimar, de 1919 e da espanhola, de 1931. De acordo com José Afonso da Silva “os direitos sociais, nessas constituições, saíram do capítulo da ordem social, que sempre estivera misturada com a ordem econômica” 31, mas o texto constitucional de 1988 dedica um capítulo próprio aos direitos sociais – capítulo II do título II e ainda, um título referente à ordem social – título VIII. Primeiramente, os direitos sociais foram classificados apenas como normatividade programática, no entanto, como proferiu José Afonso da Silva “a tendência é de conferir a esta normatividade maior eficácia. E, nessa configuração crescente da eficácia e da aplicabilidade das normas constitucionais reconhecedoras de direitos sociais, é que se manifesta sua principal garantia”. 32 Logo depois, a Constituição de 1937, desconsiderando o princípio da dignidade da pessoa humana, retirou direitos civis e políticos, concebendo uma ordem econômica em completa inobservância do princípio da justiça e das necessidades da população. 33 Já a Carta de 1946 devolveu o instituto dos direitos sociais e até inseriu em seu bojo ideias presentes na Constituição de Weimar, aliadas à ordem econômica, social e à liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano. 34 A Carta Magna de 1967 representou na seara dos direitos políticos um grande retrocesso, no entanto no que diz respeito aos direitos sociais, não apresentou modificações relevantes. O atual sistema Constitucional brasileiro tem como alicerce os direitos sociais e quanto ao seu status, Silva assim os define: 29 HABERMAS, Faktizität und Geltung apud MARTINS, Wal. Direito à saúde: compêndio. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 22. 30 Ibid. p. 22. 31 SILVA. Op. Cit., 2009, p. 285. 32 Id, Ibid, p. 465. 33 MARTINS. Op. Cit. p. 23. 34 Id. Ibid. p. 23. 145 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos dos gozos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade. 35 Há direitos sociais enumerados nos artigos 6º e 7º da Constituição Federal que têm cunho de universalidade, que propicia a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. Lê-se no Artigo 6º que são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e a infância e a assistência aos desamparados. Chimenti et al leciona que na forma como disposto na Constituição Federal, os direitos sociais são muito mais que normas programáticas; são direitos subjetivos do indivíduo, oponíveis ao Estado, que devem fornecer as prestações diretas e indiretas garantidas pela Constituição. 36 Novaes afirma que “ao lado dos direitos e liberdades clássicos – moldados e comprimidos, particularmente no que se refere ao direito de propriedade, à medida das novas exigências de socialidade – avultam, agora, os chamados direitos sociais indissociáveis das correspondentes prestações do Estado”. 37 A Constituição de 1988, retirando os direitos sociais da Ordem Econômica, inseriu-os no Título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, e deu-lhes o regime jurídico da Ordem Social. Fez um extenso rol de direitos e garantias fundamentais, no qual inseriu os direitos sociais, em razão da preocupação do constituinte em impedir que se repetissem as violações de direitos que o recém extinto regime militar havia propiciado” 38. E ainda, os direitos sociais se estendem a todos os residentes no País, em obediência à universalidade e à igualdade que os caracterizam. A justiça social só pode ser alcançada se a riqueza for equitativamente distribuída, o que é possível mesmo num regime essencialmente capitalista. 39 Para Alexy: 35 SILVA. Op. Cit. p. 289. CHIMENTI, Ricardo Cunha; CAPEZ, Fernando; ROSA, Márcio Fernando Elias;SANTOS,Maria Ferreira dos. Curso de Direito Constitucional – 5ª ed. Revisada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 128 e 129. 37 NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito: Do estado de direito liberal ao Estado social e democrático de direito. Coimbra: Coimbra, 1987, p. 130. 38 CHIMENTI et al. Op. cit. p. 509. 39 SILVA. Op. Cit., 2000, p. 764-765. 36 146 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Considerando os argumentos contrários e favoráveis aos direitos fundamentais sociais, fica claro que ambos os lados dispõem de argumentos de peso. A solução consiste em um modelo que leve em consideração tanto os argumentos a favor quantos os argumentos contrários. Esse modelo é a expressão da idéia-guia formal apresentada anteriormente, segundo a qual os direitos fundamentais da Constituição alemã são posições que, do ponto de vista do direito constitucional, são tão importantes que a decisão sobre garanti-las ou não garanti-las não pode ser simplesmente deixada para a maioria parlamentar. (...) De acordo com essa fórmula, a questão acerca de quais direitos fundamentais sociais o indivíduo definitivamente tem é uma questão de sopesamento entre princípios. De um lado está, sobretudo, o princípio da liberdade fática. Do outro lado estão os princípios formais da competência decisória do legislador democraticamente legitimado e o princípio da separação de poderes, além de princípios materiais, que dizem respeito sobretudo à liberdade jurídica de terceiros, mas também a outros direitos fundamentais e a interesses coletivos. 40 V. O Direito Social à Saúde A saúde é declarada na Constituição Federal de 1988 em vários dispositivos, como no artigo 6º, 196, 197, 198, 199 e 200. No artigo 6º, o constituinte declara a saúde como sendo um direito social, juntamente com a educação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, e a assistência aos desamparados. Conforme prescrito no artigo 196, Mendes define que o direito à saúde é estabelecido pelo artigo 196 da Constituição Federal como (1) “direito de todos” e (2) “dever do Estado”, (3) garantido mediante “políticas sociais e econômicas (4) que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos”, (5) regido pelo princípio do “acesso universal e igualitário” (6) “às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”. 41 O ministro no que concerne ao item primeiro - direito de todos - leciona que é possível que se identifique, na redação do artigo constitucional supracitado, tanto direito individual quanto um direito coletivo à saúde. Dizer que a norma do artigo 196, por tratar de um direito social, consubstancia-se tão somente em norma programática, não sendo capaz de produzir efeitos, tão somente norteando o que deverá ser observado pelo poder público, significaria negar a força normativa da Constituição. Desta forma, o Ministro Celso de Mello, destacou a dimensão individual do direito à saúde, ao reconhecê-la como um direito público subjetivo assegurado à generalidade das 40 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 511-512. 41 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em 12 de novembro de 2012. 147 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II pessoas, que conduz o indivíduo e o Estado a uma relação jurídica obrigacional42. Ressaltou o Ministro que “a interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconsequente”, cabendo aos entes federados um dever prestacional positivo. E finalizou dizendo que “a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse como prestações de relevância pública as ações e serviços de saúde (CF, art. 197)”, de forma a legitimar a atuação do Poder Judiciário caso haja omissão por parte da Administração Pública no que tange ao mandamento constitucional em questão. 43 Gilmar Mendes profere que inexiste um direito absoluto que proteja, promova ou recupere a saúde. No entanto, por meio de políticas sociais e econômicas, por meio de direito público subjetivo a políticas públicas esse direito passa a ser assegurado. Nesse sentido, em decisão proferida na ADPF n.º 45/DF, o Min. Celso de Mello assinalou: Desnecessário acentuar-se, considerando o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausentes qualquer desses elementos, descaracterizar-seá a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos. 44 Desta forma, a garantia judicial da prestação individual da saúde pode ser comprometida se não houver perfeito funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS), que deve ser sempre demonstrado claramente e de forma concreta, em cada caso. Quanto ao segundo aspecto do artigo 196 - dever do Estado – comentou-se que, a Constituição preconiza que, para além do direito fundamental à saúde, há o dever fundamental de prestação de saúde por parte do Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e também deve desenvolver políticas públicas que objetivam à redução de doenças, à promoção, à proteção e à recuperação da saúde, bem como está expresso no referido artigo.45 No artigo 23, inciso II, está prevista a competência comum dos entes da Federação no que diz respeito ao cuidado com a saúde e prevê assim, a solidariedade da União, Estados, Distrito Federal e Municípios na responsabilidade com a saúde, tanto individual quanto coletivamente, dessa forma, “são legitimados passivos nas demandas cuja causa de pedir é a 42 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. 43 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. AgR-RE N. 271.286- 8/RS, Rel. Celso de Mello, DJ 12.09.2000. 44 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012.ADPF-MC N.º 45, Rel. Celso de Mello, DJ 4.5.2004. 45 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. 148 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II negativa, pelo SUS (seja pelo gestor municipal, estadual ou federal), de prestações na área de saúde.” A obrigação solidária entre os entes da Federação e o objetivo de aumentar a qualidade de acesso aos serviços de saúde podem ser verificados na descentralização dos serviços do SUS e a conjugação dos recursos financeiros dos entes federados. Desta maneira, estabeleceram-se quatro diretrizes básicas para as ações de saúde: para cada nível de governo uma única direção administrativa; descentralização político-administrativa; atendimento integral valorizando prioritariamente as atividades preventivas; e a participação comunitária.46 O SUS baseia-se no financiamento público e na cobertura universal das ações de saúde. De forma que, para que se garanta a manutenção do Sistema Único de Saúde por parte do Estado é necessário que os gastos com a saúde sejam estáveis e que haja também a captação de recursos. Dentre outras fontes, de acordo com o artigo 195, o Sistema Único de Saúde opera com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Com o intento de proporcionar mais estabilidade aos recursos à saúde, a Emenda Constitucional n.º 29/2000 estabeleceu um mecanismo de cofinanciamento das políticas de saúde pelos entes da Federação. Com esta Emenda foram acrescentados dois novos parágrafos ao artigo 198 da Constituição, os quais com o intuito de aumentar e estabilizar os recursos à saúde asseguraram percentuais mínimos a serem destinados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. 47 Todavia, o § 3º do art. 198 dispõe que caberá à Lei Complementar consolidar quais serão os percentuais mínimos de que trata o § 2º do artigo em questão, quais serão os critérios de divisão entre os entes federados, quais serão as normas de fiscalização, avaliação e controle dos gastos com saúde, quais serão as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União, além da especificação das ações e serviços públicos de saúde. 48 O terceiro item do artigo 196- garantido mediante políticas sociais e econômicas – traduz exatamente a necessidade de formulação de políticas públicas que deem concretude ao direito à saúde por meio de escolhas alocativas. Dispensar os escassos recursos utilizando critérios distributivos é incontestável necessário, uma vez que a evolução da medicina impera um viés programático ao direito à saúde, uma vez que muitas serão as novas descobertas, 46 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acessado em Nov/2012. 47 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. 48 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. 149 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II novos exames, prognósticos ou procedimentos cirúrgicos, ou ainda uma nova doença ou então a volta de uma doença que se supôs eliminada. 49 Ainda analisando o artigo 196, o ministro comenta o quarto tópico- políticas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos – e neste item evidencia-se o caráter preventivo no que tange à saúde e as ações preventivas que nesta área tiveram indicação de prioridade no artigo 198, inciso II, da Constituição Federal. 50 Quanto ao quinto item - políticas que visem ao acesso universal e igualitárioconsolidou-se na Constituição um sistema universal de acesso aos serviços públicos de saúde e nesse sentido, a Ministra Ellen Gracie, na Suspensão de Tutela Antecipada 91, salientou que, em sua compreensão, o art. 196 do Texto Constitucional diz respeito à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo. 51 E de acordo com o artigo 7º, IV da lei 8.080/90 o princípio do acesso igualitário e universal só tende a reforçar a responsabilidade solidária dos entes federados, de modo a garantir a “igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie”.52 E finalmente no sexto item - ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde – menciona que a partir do estudo do direito à saúde no Brasil se pode chegar à conclusão de que os problemas no que diz respeito à eficácia social desse direito fundamental deve-se bem mais a questões relacionadas à implementação e à manutenção das políticas públicas de saúde que já existem - o que implica também a composição dos orçamentos dos entes federados - do que propriamente à falta de específica legislação. Noutras palavras, verifica-se que o problema não é a falta de legislação, mas é problema de cunho administrativo na execução das políticas públicas por parte dos entes da Federação. A Carta Magna brasileira preconiza de forma enfática a existência de direitos fundamentais sociais em seu artigo 6º, tornando específico conteúdo e forma de prestação nos artigos 196, 201, 203, 205, 215, 217, entre outros. Distingue também os direitos e deveres individuais e coletivos no capítulo I do Título II e os direitos sociais no capítulo II do Título II, ao consolidar que os 49 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. 50 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. 51 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. STA 91-1/AL, Ministra Ellen Gracie, DJ 26.02.2007. 52 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. 150 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata consoante o artigo 5º, §1º, da mesma Constituição. 53 Desta maneira, é notório que a Constituição Federal de 1988 acolheu os direitos fundamentais sociais como autênticos direitos fundamentais. Torna-se inquestionável que as demandas que visam à efetiva prestação ao direito à saúde devem ser resolvidas tomando como ponto de partida a análise do atual contexto constitucional. 54 VI. Competência dos Entes Federados quanto à Saúde A saúde é dever do Estado, sendo que não existe um dispositivo constitucional taxativamente enumerado que disponha a quem caberá tal responsabilidade. Portanto, como Estado compreende-se todos os Estados-Membros da Federação, ou seja, a saúde é dever da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, tratando-se de competência comum, sendo tarefa de todos os entes federados.55 O artigo 23, inciso II, da Constituição Federal de 1988 regula acerca da competência no que tange à saúde pública. Dalmo de Abreu Dallari assinala: A conclusão inevitável do exame da atribuição de competência em matéria sanitária é que a Constituição Federal vigente não isentou qualquer esfera de poder política da obrigação de proteger, defender e cuidar da saúde. Assim, a saúde – ‘dever do Estado’ (art.196) – é responsabilidade da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. 56 A Constituição Federal de 1988 atribuiu competência a respeito da proteção e desenvolvimento da saúde para legislar a todos os entes federativos, de forma concorrente, de maneira que a União legisla sobre normas gerais, os Estados e Distrito Federal de maneira complementar e os Municípios, conforme suas peculiaridades. Entende-se que assim o sistema objetivava delinear constitucionalmente, no caso da saúde pública, o que competia a cada ente, para que cada região pudesse ter tratamento adequado e o atendimento à saúde não deixasse de ser prestado pelo mero fato de não existir legislação que o abarcasse. Desta forma assim estabeleceu: à União responde pelas 53 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. 54 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. 55 SCHWARTZ, Gernano. O tratamento Jurídico do Risco no Direito à Saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004, p. 103. 56 DALLARI. Op. Cit. p.42. 151 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II competências previstas nos artigos 22, 23 e 24; aos Estados os artigos 23, 24 e 25; ao Distrito Federal corresponde o art. 32, § 1º; e aos Municípios as competências enumeradas nos artigos 23 e 30; todos da Constituição Federal de 1988. Para José Afonso da Silva57 competência é a faculdade juridicamente atribuída a uma entidade, ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões e divide-se, em regra, a competência pela predominância do interesse. A ideia de que divide-se a competência conforme a predominância de interesse não é uma premissa pacífica em que pese a extensão do território brasileiro impossibilitar que leis gerais consigam abarcar todo o território, acabando por enfatizar apenas algumas regiões. No entanto, assim o previu o legislador constitucional ao orientar ser de competência nacional matérias, a priori, interessantes a todo o território brasileiro, e os Estados e Municípios matérias específicas aos mesmos. Assim, o legislador constitucional nominou as competências para legislar pertinente à matéria saúde como sendo competências exclusivas e/ou privativas. Diferencia-se uma da outra pelo fato de a primeira se referir à competência indelegável a outro órgão legislativo, enquanto que a segunda pode ser delegável. No entanto, tanto no caso das competências exclusivas como nas privativas não existem grau de hierarquia entre elas, ou seja, o Município ao legislar privativamente sobre matéria de saúde, específica para sua região, não está subordinado ao que diz seu Estado sobre a mesma temática e nem ao que diz a União, por ser o assunto de interesse local. Conforme Souza58, essa forma de repartição das competências decorre do modelo de federalismo adotado pelo Brasil na Carta de 1988. No chamado federalismo clássico ou dual, conjugam-se competências enumeradas e remanescentes, sendo discriminadas, expressamente, as competências do poder central, remanescendo tudo quanto não for expresso para as esferas de poder regional ou local. A repartição de competências, neste caso é horizontal. É exemplo desse modelo a Constituição Americana de 1787, em sua origem. As constituições de Weimar, de 1919, e austríaca, de 1920, são tidas como as que inauguraram o federalismo cooperativo. Nesse modelo, se defere ao poder central a competência para a edição de normas gerais a serem observadas nacionalmente, e aos poderes regionais, competência para suplementá-las de acordo com o interesse local, a distribuição aqui é vertical. A Constituição da Índia, de 1950, misturou os dois modelos; coexistindo 57 SILVA. Op. Cit. 1990, p. 402 e 403. SOUZA, Mauro Luís Silva. A responsabilidade do Prefeito na concretização do direito Fundamental à saúde. Disponível em: <http://www.mp.rs.gov.br/dirhum/doutrina/id536.htm>. Acesso em: 18/11/2011. 58 152 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II competências exclusivas do poder central, competências exclusivas do poder regional e competências concorrentes. Conforme Custódio Filho Ubirajara (1988, p.54-56) apud SOUZA59, a Constituição Brasileira de 1988 optou por um modelo semelhante ao indiano, pois conjuga matérias de competência privativa ou exclusiva de determinado ente (distribuição horizontal) e matérias onde deve haver cooperação ou coordenação entre os três níveis da federação (distribuição vertical). A distinção é pertinente, pois, em caso de conflito de competências, é o tipo de distribuição (vertical/horizontal) que informará a solução. Se a matéria versar sobre competências distribuídas no regime de cooperação a distribuição é vertical, há hierarquia, prevalecendo a norma nacional sobre a regional, e esta sobre a local. Se a matéria versar sobre competências distribuídas em regime de exclusividade ou privativo não há hierarquia e prevalece a vontade do ente para o qual foi arrolada a competência sobre a dos demais, seja Município sobre o Estado ou este sobre a União . BERCOVICI, Gilberto (2003, p.156) apud Souza60 menciona que o federalismo cooperativo é o adequado ao Estado Social. Sendo este um Estado intervencionista, voltado para a implementação de políticas públicas, os níveis local e regional não têm como decidir sobre inúmeras tarefas da atuação estatal que necessitam de tratamento nacionalmente uniforme, notadamente no campo econômico e social, que necessitam unidade de planejamento e direção. Portanto, ao invés de o Estado Social estar em contradição com o Estado federal, ele influi de maneira decisiva no desenvolvimento do federalismo atual. Segundo CONOF/CD,61 em regra, o sistema federativo mostra-se adequado em países marcados pela diversidade e heterogeneidade, por respeitar valores democráticos em situações de acentuada diferenciação política, econômica ou social. Todavia, esse tipo de sistema torna mais complexa a implementação de políticas sociais de abrangência nacional, particularmente nos casos em que a diversidade se refere à existência de desigualdades e de exclusão social. 59 CUSTÓDIO FILHO, Ubirajara. As competências do Município na Constituição Federal de 1988. In: SOUZA, Mauro Luís Silva. Op. Cit. 60 BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. In: SOUZA, Mauro Luís Silva. Op. Cit. 61 Núcleo de Saúde da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados (CONOF/CD). Saúde no Brasil: História do Sistema Único de Saúde, arcabouço legal, organização, funcionamento, financiamento do SUS e as principais propostas de regulamentação da Emenda Constitucional nº 29, de 2000. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/atividadelegislativa/orcamentobrasil/orcamentouniao/estudos/2011/nt10.pdf>. Acesso em: 20/11/2011. p.6. 153 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II VII. O Mínimo Existencial e a Reserva do Possível frente à Efetividade da Prestação Estatal Política pública pode ser definida como uma expressão polissêmica que compreende, em sentido amplo, todos os instrumentos de ação do governo. Refere-se às “providências para que os direitos se realizem, para que as satisfações sejam atendidas, para que as determinações constitucionais e legais saiam do papel e se transformem em utilidades aos governados”62 Maria Paula Dallari Bucci compreende as políticas públicas como programas de ação do governo com o intuito de coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, com a finalidade de realizar os objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.63 Há nos dias atuais, uma íntima relação entre políticas públicas e orçamento público, pois “a decisão de gastar, é fundamentalmente, uma decisão política. O administrador elabora um plano de ação, descreve-o no orçamento, aponta os meios disponíveis para seu atendimento e efetua o gasto. A decisão política já vem inserta no documento solene de previsão de despesas.”64 Ricardo Lobo Torres afirma que “o relacionamento entre políticas públicas e o orçamento é dialético: o orçamento prevê e autoriza as despesas para a implementação das políticas públicas; mas estas ficam limitadas pelas possibilidades financeiras e por valores e princípios como o do equilíbrio orçamentário (...).65 Em um Estado Social e Democrático de Direito, o orçamento tem a função de instrumentalizar as políticas públicas para concretizar os direitos fundamentais garantidos na Constituição Federal. Percebe-se ao longo da história que o estudo do direito tem caminhado, constantemente, em direção a uma maior limitação do poder estatal e a uma proteção mais eficaz aos direitos fundamentais do homem, fato este que decorre da luta em defesa de novas liberdades em detrimento do que outrora fora estabelecido no que tange ao poder.66 Destarte, como já anteriormente abordado neste trabalho, os direitos fundamentais de primeira dimensão, também conhecidos como direitos negativos ou de defesa, são aqueles que 62 OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de direito financeiro. São Paulo: RT, 206, p. 251. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 241. 64 OLIVEIRA. Op. Cit. p. 243. 65 TORRES. Op. Cit. p. 110. 66 Acerca do tema ver : BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. 63 154 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II se destinam a limitar o poder do Estado em face do cidadão, como o direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade, à participação política, entre outros. Os direitos de segunda dimensão, por sua vez, são chamados positivos ou prestacionais. São direitos sociais, econômicos e culturais e diferentemente dos direitos de primeira dimensão, que eram reconhecidos por se traduzirem na abstenção estatal, os direitos de segunda dimensão impõem ao Estado o dever de atuação efetiva para a sua garantia, devendo o Estado atuar positivamente, dispondo de efetiva atuação material, a qual depende de investimento e previsão orçamentária. Conforme Sarlet “os direitos de defesa – precipuamente dirigidos a uma conduta omissiva – podem, em princípio ser considerados destituídos desta dimensão econômica, na medida em que o objeto de sua proteção (vida, intimidade, liberdades, etc) pode ser assegurado juridicamente, independentemente das circunstâncias econômicas”.67 Mas seriam apenas os direitos prestacionais que envolvem custos ou seriam todos os direitos fundamentais? De acordo com um trabalho realizado pelos professores Stephen Holmes e Cass Sunstein68- na obra The cost of rights : Why liberty depends on Taxes - os custos não se limitam aos direitos prestacionais, de segunda dimensão. Nesse sentido, leciona o professor José Casalta Nabais: Do ponto de vista do seu suporte financeiro, bem podemos dizer que os clássicos direitos e liberdades, os ditos direitos negativos, são, afinal de contas, tão positivos como os outros, como os ditos direitos positivos. Pois, a menos que tais direitos e liberdades não passem de promessas piedosas, a sua realização e a sua proteção pelas autoridades públicas exigem recursos financeiros. 69 As premissas doutrinárias referentes ao efetivo âmbito de proteção da regra constitucional do direito à saúde decorrem, principalmente, da essência prestacional desse direito e da necessidade de se compatibilizar o que doutrinariamente se convencionou chamar de “mínimo existencial” e “reserva do possível”.70 O mínimo existencial, como direito fundamental, deriva da própria Constituição, sem que precise de lei para regulamentá-lo e está intimamente relacionado à pobreza absoluta, 67 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 263. 68 Stephen Holmes e Cass Sunstein na obra The cost of rights: Why liberty depends on Taxes. 69 NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos, p. 12. Disponível em: <http://www.agu.gov.br/Publicações/Artigos/0504202JoseCasaltaAfaceocultadireitos01pdf>. Acesso em: 13 de novembro de 2010. 70 MENDES, Gilmar. Suspensão de Tutela Antecipada 278-6 Alagoas. Disponível em: <www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/STA278.pdf>. Acesso em: 13 de novembro de 2010, p.5. 155 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II assim compreendida como aquela que deve ser combatida pelo Estado, contrariamente à pobreza relativa, que depende da situação econômica do país, sendo sanada em consonância com o orçamento.71 Por sua vez o conceito de reserva do possível pode ser entendido como um conceito basilarmente econômico, decorrente da constatação de que são os recursos escassos, tanto públicos como privados, em face das necessidades humanas: sociais, coletivas ou individuais. Além de que os indivíduos, no momento em que fazem suas escolhas e elegem prioridades, sopesam os limites financeiros de suas disponibilidades econômicas. Valendo-se da mesma premissa as escolhas públicas, que devem ser feitas internamente ao Estado pelos órgãos competentes para fazê-las.72 Trazendo a conceituação e os entendimentos anteriormente levantados para o Direito à saúde pode-se afirmar que o mesmo está inserido no artigo 6º da Constituição Federal Brasileira, sendo um direito social e como tal, as normas que o regulamentam possuem caráter programático, as quais dependem de lei prévia e por isso são sujeitas ao conceito de reserva do possível. Os recursos públicos são escassos, devendo primeiramente ser garantidos os direitos fundamentais, levando-se em conta o princípio da dignidade da pessoa humana, mas sempre sopesando a forma de atingir a coletividade e não o sacrifício de todos em nome de um. Nessa linha de análise Gilmar Mendes argumenta que o Poder Judiciário, o qual realiza a justiça no caso concreto, micro-justiça, por algumas vezes, não possuiria condições de saber as consequências globais da destinação de recursos públicos em benefício da parte com invariável prejuízo para o todo.73 Sucede Rogério Gesta Leal citando que: [...] quando se fala em saúde pública e em mecanismos e instrumentos de atendê-la, mister é que se visualize a demanda social e universal existente, não somente a contingencial submetida à aferição administrativa ou jurisdicional, isto porque, atendendo-se somente aqueles que acorrem de pronto ao Poder Público (Executivo ou Judicial), pode-se correr o risco de esvaziar a possibilidade de atendimento de todos aqueles que ainda não tomaram a iniciativa de procurar o socorro público, por absoluta falta de informações ou recursos para fazê-lo.74 PORTELA, Simone de Sá. Considerações sobre o Conceito de Mínimo existencial. Publicado em: 14/10/2007. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/2400/1/Consideraccedilotildees-Sobre-OConceito-De-Miacutenimo-Existencial/pagina1.html#ixzz15yWFkyVY>. Acesso em: 09/11/2010 72 NUNES, Antonio José Avelãs; SCAFF, Fernando Facury. Os Tribunais e o Direito à Saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 97. 73 MENDES. Op.cit. p. 7 74 LEAL, Rogério Gesta. A Efetivação do Direito à Saúde – por uma jurisdição Serafim: limites e possibilidades. In Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos. v.6. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2006. p.71. 71 156 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II O professor Juliano Heinen certifica que os recursos na área da saúde são infinitamente menores que o necessário para atender a sistematização proposta pelo SUS dizendo que “[...] se a escassez é notória, (não há recursos públicos para atender a todos), a decisão judicial nada mais faz do que escolher quem será ou não atendido e quem será ou não excluído, criando um privilégio jamais encontrado na Constituição Federal”.75 Nunes e Scaff, na mesma linha de raciocínio, se manifestam: Adotar o procedimento de pleitear direitos individuais de saúde, sob o pálio do art. 196, seria transferir ao Poder Judiciário a fila de atendimento do SUS (ou ainda pior do que ela em face da morosidade deste Poder), sendo que de forma injusta, pois este não tem um critério de distribuição universal e simultâneo, distribuindo justiça apenas a quem lhe pede.76 Sobre a temática interessante mencionar a decisão judicial anexa, devido sua complexidade e sua impossibilidade de cumprimento, pois o município necessitaria utilizar todo o seu orçamento fugindo dos princípios constitucionais e legais para cumprir tal decisão judicial.77 75 HEINEN, Juliano: O custo do direito à saúde e a necessidade de uma decisão realista: uma opção trágica. Disponível em: <www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoaudienciapublicasaude/anexo/>. Acessado em 10 de novembro de 2012. 76 NUNES; SCAFF. Op. Cit. p. 133. 77 “Invocando expressamente a autoridade da jurisprudência do STF, um Juiz de Maceió (Ação Civil Pública, Processo nº 090.08.500162-7, 27.10.2009) decidiu favoravelmente um pedido do Ministério Público, condenando o Município a cumprir integralmente o extenso e complexo programa definido na sentença com o objetivo de retirar de condições de miséria material e moral crianças das zonas lagunares de Maceió. E como a liminar antes concedida não tinha sido integralmente cumprida, o Juiz determinou o bloqueio de um milhão e quinhentos mil reais da rubrica de contingência do Município, mandou depositar essa importância em conta corrente no Banco do Brasil ou na Caixa Econômica Federal e confiou a movimentação dessa conta ao Ministério Público Estadual e do Trabalho. Em caso de incumprimento, o Juiz condenou ainda ao pagamento de multa diária o Município (R$ 10.000,00), o prefeito (RS 300,00) e o Secretário Municipal de Ação Social (R$ 200,00). Caberá nas competências do Ministério Público a gestão de dinheiros públicos retirados do orçamento de um Município? Vale apena ler o programa definido pelo Juiz, que, ao elaborá-lo, se substituiu a meu ver, não só aos órgãos do Executivo, mas até a profissionais de outras áreas (técnicos de saúde, de serviço social, de segurança, etc.): ‘1- Formar uma comissão multidisciplinar de profissionais do Município, a serem acompanhados pelos autores [o Ministério Público] ou profissionais por eles indicados ou ainda pelo respectivo Conselho Tutelar da região, não componentes da estrutura deste juízo, para realizar um perfil sócio-econômico das crianças e adolescentes da comunidade da Orla Lagunar, no prazo de 90 (noventa) dias, identificando cada criança e adolescente pelo nome, idade, endereço, nome dos pais se possuem registro de nascimento ou qualquer outro documento de identificação, como sobrevivem, se passam fome, se já sofreram violência doméstica, se são vítimas de violência sexual, se estão na escola, se saíram da escola e por quê, se trabalham, se passam o dia na rua, se usam drogas, se seus pais são dependentes químicos, entre outras necessárias à identificação exata da situação de risco em que se encontram; 2- Oferecer condições adequadas, no prazo de 60 (sessenta) dias, para o funcionamento do Conselho Tutelar das Regiões I e II, dentre as quais: segurança, combustível em quantidade suficiente, computadores em perfeito estado, verba de custeio, pessoal de apoio e número telefônico gratuito (0800) para recebimento de denúncias de abuso, exploração e violência contra crianças e adolescentes, em caráter ininterrupto (24 horas), para que o referido Conselho possa exercer adequadamente suas atividades de proteção das crianças e adolescentes das regiões em que atuam, inclusive na comunidade da Orla Lagunar; 3- Apresentar um 157 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Por outra vertente, os que defendem a atuação do judiciário na concretização dos direitos sociais, especialmente quanto à saúde, alegam que tais direitos são indispensáveis para a materialização da dignidade da pessoa humana, manifestando que o “mínimo existencial” de cada um dos direitos, não pode deixar de ser apreciado pelo judiciário.78 Alexy manifesta-se sendo favorável a uma análise que considere os argumentos favoráveis e os contrários aos direitos sociais, raciocinando que ambos os lados dispõem de argumentos de peso. A solução consiste em um modelo que leve em consideração tanto as ideias favoráveis quanto às opostas. Tal modelo é a expressão da ideia-guia formal apresentada anteriormente, segundo a qual os direitos fundamentais da Constituição alemã são posições que, do ponto de vista do direito constitucional, são tão importantes que a decisão sobre garanti-las ou não, não pode ser simplesmente deixada para a maioria parlamentar. (...) De acordo com essa fórmula, a questão acerca de quais direitos fundamentais sociais o indivíduo definitivamente tem torna-se dissidência de sopesamento entre princípios. De um lado está, sobretudo, o princípio da liberdade fática. Do outro lado estão os princípios formais da competência decisória do legislador democraticamente legitimado e o princípio da separação de poderes, além de princípios materiais, que dizem respeito sobretudo à liberdade cronograma, em 30 (trinta) dias, para que seja ampliada a rede municipal de proteção à criança e ao adolescente, com a abertura de ABRIGOS para crianças e adolescentes, de ambos os sexos, em situação de risco, com até 18 ANOS INCOMPLETOS, com capacidade de atendimento das situações emergenciais identificadas no diagnóstico requerido no item 1 e deferido, a funcionar no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias a partir do diagnóstico; 4 – Ofertar creche em horário integral e educação infantil, em quantidade suficiente a atender à população de 0 a 6 anos da referida comunidade, apresentando o Município cronograma de abertura das unidades necessárias e critérios para preenchimento das vagas à medida da abertura, em até 30 (trinta) dias a com prazo estipulado para funcionamento em no máximo 180 (cento e oitenta) dias; 5 – Assegurar as matrículas de todas as crianças e adolescentes em idade escolar de ensino fundamental, que não estejam matriculadas, imediatamente, a partir do levantamento inicial; 6- Apresentar propostas de políticas públicas a serem implementadas pelo Município com abrangência suficiente e ofertando soluções de curto, médio e longo prazo para a referida população, no prazo de 90 (noventa) dias após o resultado do perfil apresentado; 7 – Incluir no projeto de Lei Orçamentária de 2008 as verbas necessárias para implementação das políticas públicas a serem executadas no ano, bem como nos anos seguintes, observando-se as reais necessidades da população infanto-juvenil; 8 – Utilizar a reserva de contingência do Município, caso este não apresente rubrica orçamentária diversa para fazer face às despesas com o cumprimento das medidas liminares ora concedidas; 9 – Implementar ações visando à expedição de registros de nascimento das crianças, adolescentes e pais residentes na região para incluí-los em Programas Sociais e transformá-los em Cidadãos; 10 – Promover campanha permanente de conscientização, por intermédio dos mais diversos meios de comunição , acerca da proibição do trabalho infantil, inclusive o doméstico, da prostituição infantil e males à saúde causados por drogas e, ainda, a importância do papel da sociedade na denúncia destes temas ao Conselho Tutelar da Região, explicitando que o Conselho Tutelar para cumprir o seu papel deve encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança e do adolescente, dentre outros, assim considerado o trabalho infantil, nos moldes do art. 136, inciso IV do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90)’”. Conforme: Nunes; Scaff. Op. Cit. p. 43-44. 78 MENDES. Op. Cit. p. 7 158 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II jurídica de terceiros, mas também a outros direitos fundamentais sociais e a interesses coletivos.79 Considerando os apontamentos acima elencados quanto à judicialização da saúde e o voto dissidente do Ministro Teori Zavascki80, se questiona se o orçamento proposto para a saúde no Brasil, sem considerar questões judiciais, se apresenta de maneira suficiente? Não. Soma-se a isso as premissas judiciais de conceder direitos que “desorganizam” toda a sistemática orçamentária proposta, qual solução resta. Talvez um aporte maior por parte do Estado, representado pelo ente federativo União, que possibilite que as políticas públicas na seara saúde possam ser executadas de maneira mais abrangente, além de um repensar no que compete exatamente ao sistema único de saúde financiar. Alguns juristas descrentes que a saúde e a educação recebam um orçamento condizente com o mínimo essencial se manifestam de maneira enfática, como Nunes e Scaff: Ocorre-me, contudo, dar uma sugestão ao final deste trabalho para garantir a efetividade de alguns dos direitos sociais, em especial os gastos em saúde e educação públicas. Não depende do Judiciário, mas do Congresso Nacional. Penso que resolveríamos grande parte dos problemas se fosse adotada a obrigação, certamente no âmbito constitucional, de que, quem fosse eleito devesse necessariamente usar os hospitais e as escolas públicas para si, seus filhos, netos e demais parentes. Seria uma injeção de estímulo na veia do SUS, que passaria a contar com mais recursos e melhor cuidado em sua aplicação-aí sim, para todos.81 Constitucionalmente existe previsão de direitos sociais mínimos, e são vastos. Há presciência também de regras orçamentárias básicas, que serão vistas no capítulo sequente. Dentre o regramento constitucional orçamentário e a lei de responsabilidade fiscal é manifesto que a União, Estados, Municípios e Distrito Federal não podem realizar gastos sem previsão 79 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 511-512. 80 “Destacou o Ministro que “não existe, na Constituição, direito subjetivo individual de acesso universal, incondicional, gratuito e a qualquer custo a todo e qualquer meio de proteção à saúde, médico ou farmacêutico.” O conteúdo do art. 196 da CF é o mesmo do previsto no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, ratificado pelo Brasil em 1992 (art. 12, §§ 1º e 2º). Disse ainda que cabe aos Poderes Legislativo e Executivo estabelecer e promover a execução das políticas públicas assim estabelecidas, bem como suprir sua inexistência ou insuficiência, se for o caso, com a garantia de prestação decorrente do direito a um mínimo existencial, o qual deve ser considerado como “o direito a uma prestação estatal que (a) pode ser desde logo identificada, à luz das normas constitucionais, como necessariamente presente qualquer que seja o conteúdo da política pública a ser estabelecida; e (b) é suscetível de ser desde logo atendida pelo Estado como ação ou serviço de acesso universal e igualitário”. Portanto, encerra o Ministro, à luz dos princípios democrático, da isonomia e da reserva do possível, não há dever do Estado de atender a uma prestação individual se não for viável o seu atendimento em condições de igualdade para todos os demais indivíduos na mesma situação”. Conforme: Nunes; Scaff. Op. Cit. p. 43-44. p. 112. 81 Antônio José Avelãs Nunes é professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito de Coimbra, sendo que foi diretor da Faculdade de Coimbra e Vice-Reitor, dentre vários outros títulos como Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Paraná e de Alagoas. Fernando Facury Scaff é Doutor em Direito pela USP e PósDoutor pela Universidade de Pisa-Itália. Conforme: Nunes; Scaff. Op. Cit. p. 43-44. p. 135. 159 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II orçamentária que os suporte, ato este reprovável e passível de punição conforme legislação vigente. Considerando tal premissa, como pode o judiciário “ordenar” ao administrativo, mediante invasão a esfera administrativa, que realize gasto sem previsão orçamentária, mas se não o fizer, como serão efetivados direitos constitucionais em que o administrativo não prevê orçamento. A questão é capciosa devendo existir bom senso, tanto pelo administrativo como pelo judiciário para não fazer com que um ato de injustiça caracterizado pelo não garantir por parte do administrativo estatal direito constitucional assegurado a um indivíduo, que pede auxílio ao judiciário, gere um desequilíbrio orçamentário que impossibilite o agir estatal a coletividade. VIII. CONSIDERAÇÕES FINAIS Evidenciou-se que os direitos sociais estão intrinsecamente ligados aos direitos humanos, devendo o Estado prover as mínimas garantias de condições de vida digna aos seus cidadãos. Conforme prescrito no artigo 196 da Constituição Federal, o direito à saúde é garantido a todos, independentemente de raça, religião, sexo ou condição financeira, sendo dever do Estado a ser garantido mediante políticas públicas adequadas, que devem estar previstas no plano plurianual, lei de Diretrizes orçamentárias e leis orçamentárias, objetivando reduzir o risco de doenças e outros agravos, visando não tão somente à medicina curativa como também preventiva e recuperativa, de maneira igualitária e de acesso universal. A promoção à saúde em todo território nacional cabe a todos os entes federados, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, não podendo nenhum deles eximir-se de suas responsabilidades alegando competência alheia. Desta feita, necessitam trabalhar conjuntamente para que o SUS funcione adequadamente, havendo financiamento por parte de todos os entes federados. Devido ao atendimento deficitário realizado pelo governo na área da saúde, muitas pessoas procuram o judiciário para garantirem seus direitos sociais fundamentais, surgindo assim o fenômeno da judicialização da saúde. Entende-se que muitos casos devem ser acolhidos, no entanto não cabe ao judiciário à postura de garantir os direitos que obrigacionalmente são de responsabilidade do executivo. As pessoas deveriam se socorrer do judiciário excepcionalmente e não corriqueiramente, como vem acontecendo. Isso demonstra 160 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II que o SUS ainda não atingiu o objetivo Constitucional, a saber, garantir a saúde pública de maneira efetiva, igualitária, gratuita e universal. IX. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. 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Acesso em: 09/11/2010. 162 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Direitos Fundamentais Sociais: considerações acerca da legitimidade política e processual do Ministério Público e do sistema de justiça para sua tutela. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed, 2006. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. SARLET, Wolfgang Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição da República de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. TORRES, Ricardo Lobo. Os direitos humanos e a tributação. Rio de Janeiro: Renovar, 1995. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2012. SCHWARTZ, Gernano. O tratamento Jurídico do Risco no Direito à Saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. SOUZA, Mauro Luís Silva. 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A educação ambiental é um instrumento que pode e deve ser utilizado mediante a instituição de uma efetiva política pública de educação ambiental, que coloque em prática os preceitos legais e constitucionais vigentes e que, além disso, propicie um tratamento diferenciado aos saberes ambientais e que os mobilize de maneira a gerar espaço nas grades curriculares de todos os níveis de ensino para um maior aprofundamento quanto a esse conhecimento. Tal conhecimento deve ser, o quanto antes possível, contínuo, permanente, universal, sistematizado, crítico, transdisciplinar, voltado à modificação de consciência e de atitudes humanas, e à consolidação prática dos saberes ambientais, contribuindo, dessa forma, para a defesa e preservação ambiental. No presente estudo, procura-se avaliar a atual política pública nacional de educação ambiental e sua estrutura legal, buscando identificar possíveis alterações que contribuam para a efetiva realização dos seus propósitos, no que tange ao despertar da consciência ecológica e a modificação prática das condutas humanas, em prol do meio ambiente. Para tanto, os métodos utilizados no presente estudo são o dedutivo e hipotético-dedutivo, em um estudo monográfico, através da revisão bibliográfica tradicional e da pesquisa legislativa. Objetiva-se avaliar e identificar, na conjuntura atual da política pública nacional de educação ambiental, as implicações advindas do seu arcabouço legal, as quais devam sofrer as respectivas adaptações, compatibilizando-as com a efetiva concretização do despertar da consciência ecológica e a promoção de mudanças práticas nas condutas humanas, em benefício do meio ambiente. Com isso, espera-se apresentar sugestões de alterações legais e para as rotinas educacionais relativas à educação ambiental que, coadunadas com a atuação do poder público nesse sentido, promovam o efetivo despertar da consciência ecológica e a respectiva adequação das condutas humanas em prol do meio ambiente. PALAVRAS-CHAVE: Educação ambiental; Defesa e preservação ambiental; Estado; Política Pública ABSTRACT The Brazilian state, with the constitutional mandate to promote environmental education in all levels of education, should do so more effectively by encouraging that, through the environmental education, be possible to glimpse up and spreading a new worldview, more critical, emancipatory and able to create awareness. Environmental education is an instrument that can and should be used by developing an effective public policy on environmental * Mestranda no curso de Especialização Stricto Sensu em Direito Ambiental e Sociedade, pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), na linha de pesquisa Direito Ambiental, Políticas Públicas e Desenvolvimento Socioeconômico, Bolsista PROSUP/CAPES, a partir de 2013. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade da Serra Gaúcha (FSG), Pós-graduanda Lato Sensu em Gestão Pública, pelo Instituto Federal do Paraná (IFPR), Bacharela em Direito pela UCS, com aprovação no Exame da Ordem nº 3/2007. Servidora Pública do Poder Executivo no RS. E-mail: [email protected]. 164 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II education, which put into practice the present legal and constitutional precepts and, moreover, provides a different approach to environmental knowledge, mobilizing them in order to make room in the curriculum for all levels of education for further development on that knowledge. Such knowledge should be, as soon as possible, continuous, permanent, universal, systematic, critical, interdisciplinary, focused on modification of conscience and human attitudes, practice and consolidation of environmental knowledge, thus contributing to the protection and preservation of the environment. The present study seeks to assess the current national public policy for environmental education and its legal structure in order to identify possible changes that contribute to the realization of its purpose, regarding the awakening of environmental awareness and practical modification of human behavior, in favor of the environment. The objective is to evaluate and identify the current situation of the national public policy on environmental education, the implications arising from its legal framework, which should suffer their adaptations, making them compatible with the effective implementation of the awakening of environmental awareness and promoting change practices in human behavior to benefit the environment. Thus, it is expected to make suggestions for modifications to the legal and educational routines concerning environmental education which should suffer their adaptations, making them compatible with the effective implementation of the awakening of environmental awareness and promoting change practices in human behavior to benefit the environment. Thus, it is expected to make suggestions for modifications to the legal and educational routines concerning environmental education that matched with the performance of the government in this regard, promote effective awakening of environmental awareness and adequacy of human behavior towards the environment. KEYWORDS: Environmental education; Environmental protection and preservation; State; Public Policy INTRODUÇÃO O presente artigo versa sobre a educação ambiental, como uma imprescindível ferramenta a ser utilizada, tanto em favor do Estado e por este, quanto pelo bem da coletividade e por esta, no sentido de impulsionar o real conhecimento acerca do meio ambiente, todas as relações a ele atinentes e que nele influenciam, mediante construções permanentes, contínuas e sistematizadas, em todos os níveis de ensino, a fim de consolidar a conscientização popular geral da necessidade premente de serem buscados, logo e na prática, meios para melhorar a qualidade de vida humana no Planeta, através da melhoria da qualidade do ambiente em que se vive. A efetiva educação ambiental pode e deve ser implementada pelo Estado, como uma política pública, a ser concretizada em comunhão de esforços com a coletividade, mas de forma diferenciada do que se tem hoje legalmente previsto, e que na prática, nem sequer nessa modalidade vem acontecendo e, quando eventualmente assim ocorre, evidencia um caráter fragmentário, pontual, eventual, descomprometido e descompromissado, corretivo, nãosistematizado e desorganizado. Nesse sentido, parece que, tratar sobre a preservação e defesa do meio ambiente e da 165 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II vida, seria prática fútil, desnecessária e desimportante, distante do homem, tanto em termos temporais, denotando a desnecessidade da urgência, quanto em termos locais, como se não dissesse respeito ao habitat em que se vive, como se o homem estivesse desagregado, dessituado de si mesmo, dos semelhantes, do tempo, do locus, da vida e do que é essencial para mantê-la. Evidencia-se, outrossim, o papel do Estado nesse contexto, dada a corresponsabilidade, determinada pela Carta Magna, entre o Estado e a coletividade, para atuarem no sentido de mutuamente contribuírem para a existência de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, tanto para as presentes quanto, como legado, para as futuras gerações, além da incumbência constitucional do Poder Público, para assegurar esse direito, de promover a educação ambiental. Alude-se aos principais eventos legais que instituíram a educação ambiental, tanto no universo mundial quanto brasileiro, buscando-se a análise dos mais consideráveis instrumentos legais do País que tratam desse tema, a fim de detectar a conexão entre as atuais e possíveis intervenções da educação ambiental, seus efeitos e abrangências na realidade atual do meio ambiente e conscientização humana em relação a este, além de tentar propor um diferencial na universalização dos saberes ambientais, na forma de política pública estatal, mais efetiva, conscientizadora, crítica, emancipatória e focada em uma nova visão de mundo. 1 EDUCAÇÃO AMBIENTAL A educação ambiental é indispensável para a realização de uma sólida política ambiental, podendo também ser considerada como ponto principal de partida para a conscientização popular quanto às práticas defensivas e protetivas do meio ambiente. Tanto isso é verdade que o legislador pátrio, ao referir-se à educação e ao meio ambiente, enfatiza que ambos são apresentados como “direito de todos” e que, em razão de suas insignes expressões, não estão adstritos somente à atribuição do Estado, “mas também à sociedade o dever de promovê-los e incentivá-los.” (LANFREDI, 2002. p. 123). Sob a ótica do Estado Democrático de Direito, a educação configura-se também um direito subjetivo do cidadão. Geralmente, pessoas desprovidas de maiores informações denotam caráter rudimentar em seus tratos com os semelhantes e com o meio. Logo, em sendo eventualmente indisponibilizada a educação ambiental, muito provável que as arbitrariedades ao ambiente resultarão em nefastas consequências à vida humana e a todas as espécies de vida planetárias. 166 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Dentre os principais eventos e aspectos mundiais, concernentes à educação ambiental, passe-se à menção de alguns. Tendo surgido a partir da preocupação humana com a crise ambiental, o uso da expressão “educação ambiental” iniciou-se em 1970, nos Estados Unidos, primeiro país a elaborar uma lei versando sobre ela, conceituando-a de maneira a ressaltar a compreensão e apreciação das “inter-relações entre o homem, sua cultura e seu entorno biofísico.” (DILL, 2008, p. 78). Ainda em 1972, na Conferência de Estocolmo, restou criado o Pnuma 1, destacandose, outrossim, a recomendação para a criação do Programa Internacional de Educação Ambiental (PIEA), que ficou conhecida como “Recomendação 96”, que enfatiza a importância da “educação ambiental como uma base de estratégias para atacar a crise do meio ambiente”(ONU, 1972). Além dessa recomendação, nesse evento houve a elaboração da Declaração de Estocolmo sobre Meio Ambiente, proclamando sete diretrizes e vinte e seis princípios importantes para a aplicabilidade dessa política ambiental. Dessas diretrizes, extraem-se trechos das de número 06 e 07, respectiva e especialmente por estarem diretamente relacionadas à necessidade de política pública de educação ambiental, nesses termos: 6 - […] Pela ignorância ou indiferença podemos causar danos maciços e irreversíveis ao ambiente terrestre de que dependem nossa vida e nosso bem-estar. Com mais conhecimento e ponderação nas ações, poderemos conseguir para nós e para a posteridade uma vida melhor em ambiente mais adequado às necessidades e esperanças do homem. São amplas as perspectivas para a melhoria da qualidade ambiental e das condições de vida. O que precisamos é de entusiasmo, acompanhado de calma mental, e de trabalho intenso, mas ordenado. Para chegar à liberdade no mundo da Natureza, o homem deve usar seu conhecimento para, com ela colaborando, criar um mundo melhor. […] 7 - A consecução deste objetivo ambiental requererá a aceitação de responsabilidade por parte de cidadãos e comunidades, de empresas e instituições, em equitativa partilha de esforços comuns. Indivíduos e organizações, somando seus valores e seus atos, darão forma ao ambiente do mundo futuro. Aos governos locais e nacionais caberá o ônus maior pelas políticas e ações ambientais da mais ampla envergadura dentro de suas respectivas jurisdições. Também a cooperação internacional se torna necessária para obter os recursos que ajudarão os países em desenvolvimento no desempenho de suas atribuições. (ARAÚJO, 2010, p. 14). A educação ambiental foi, outrossim, mencionada através do 19.º enunciado da Declaração de Estocolmo (ONU – 1972). Reza esse enunciado: É indispensável um esforço para a educação em questões ambientais, dirigida tanto à gerações jovens como aos adultos e que preste a devida atenção ao setor da 1 Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. 167 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II população menos privilegiado, para fundamentar as bases de uma opinião pública bem informada, e de uma conduta dos indivíduos, das empresas e das coletividades inspirada no sentido de sua responsabilidade sobre a proteção e melhoramento do meio ambiente em toda sua dimensão humana. É igualmente essencial que os meios de comunicação de massas evitem contribuir para a deterioração do meio ambiente humano e, ao contrário, difundam informação de caráter educativo sobre a necessidade de protegê-lo e melhorá-lo, a fim de que o homem possa desenvolver-se em todos os aspectos. (FIGUEIREDO, 2012, p. 181). Dill (2008, p. 78) refere que, posteriormente, em 1977, em Tbilisi (Geórgia – antiga União Soviética), ocorreu a I Conferência Intergovernamental sobre Educação Ambiental, a qual foi organizada pela Unesco em colaboração com o Pnuma, que denotou um marco significativo para que a educação ambiental se constituísse uma proposta pedagógica de fato, tendo por fim a transformação do homem em todas as formas de trato com a natureza, a fim de que ele seja o seu principal defensor. Foi após isso que se passou a ter a orientação da articulação das diversas disciplinas e conhecimentos educativos para um enfoque integrado do meio ambiente, o que veio a reiterar os termos da Conferência de Estocolmo. Mas foi nas décadas de 80 e 90 (século XX) que se verificou um maior crescimento da consciência ecológica, sendo isso corroborado a partir da conceituação de educação ambiental pela Unesco, no Congresso Internacional sobre Educação e Formação Ambiental (ocorrido em Moscou, em 1987), conceito esse bem próximo do que se vê exarado na Lei Federal Brasileira nº 9.795/1999, de Política Nacional de Educação Ambiental, com o diferencial de, esta, referir ser a educação ambiental processo essencial e permanente (art. 2º da Lei nº 9.795/99). Após, em 1992, decorrente da Rio-92 e do Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, foi acrescido ao conceito de educação ambiental o cunho interdisciplinar, permanente e holístico da aprendizagem. Logo depois, em 1997, a Conferência Internacional sobre Meio Ambiente e Sociedade: Educação e Conscientização Pública para a Sustentabilidade, ocorrida na Grécia, trouxe novas nuances para o referido conceito, propondo através da educação ambiental mudanças em comportamentos e estilos de vida humana, na disseminação de conhecimentos e conscientização da coletividade, rumo à sustentabilidade. Isso evidencia que o conceito de educação ambiental foi sendo modificado no decorrer dos tempos, acompanhando a evolução do conceito de meio ambiente e ficando atrelado ao modo como este é percebido. Em termos de Estado brasileiro, a educação ambiental já havia sido prevista no Antigo Código Florestal Nacional (Lei nº 4.771/1965 – artigo 42), in verbis: 168 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Art. 42. Dois anos depois da promulgação desta Lei, nenhuma autoridade poderá permitir a adoção de livros escolares de leitura que não contenham textos de educação florestal, previamente aprovados pelo Conselho Federal de Educação, ouvido o órgão florestal competente. § 1° As estações de rádio e televisão incluirão, obrigatoriamente, em suas programações, textos e dispositivos de interesse florestal, aprovados pelo órgão competente no limite mínimo de cinco (5) minutos semanais, distribuídos ou não em diferentes dias. § 2° Nos mapas e cartas oficiais serão obrigatoriamente assinalados os Parques e Florestas Públicas. § 3º A União e os Estados promoverão a criação e o desenvolvimento de escolas para o ensino florestal, em seus diferentes níveis. Aludida na Lei nº 6.938/1981, com a instituição da Política Nacional do Meio Ambiente (art. 2º)2, a qual foi após recepcionada pela Constituição Federal de 1988, desta partindo a Lei nº 9.795/1999 (Política Nacional de Educação Ambiental – arts. 1º e 2º) 3, regulamentada pelo Decreto Federal nº 4.281/2002, a educação ambiental foi abarcada em leis brasileiras, inclusive o fato de ela constar também na Carta Magna da República já faz desta uma Constituição de vanguarda. Nesse entremeio, cabe lembrar que a primeira norma brasileira a recomendar a inclusão da educação ambiental nos currículos escolares do Ensino Fundamental e Médio foi o Parecer nº 226/1987, do Conselho Federal de Educação. Tal como ensina Morin (2011, p. 36) “Em consequência, a educação deve promover a “inteligência geral” apta a referir-se ao complexo, ao contexto, de modo multidimensional e dentro da concepção global” (grifo do autor). Conforme Khalil Gibran (2012, p. 73) menciona: E então, disse um professor: Fala-nos do Ensinar. E ele disse: Ninguém pode vos revelar nada, a não ser o que jaz meio adormecido no âmago do vosso conhecimento. […] Se ele for realmente sábio, não vos convida a entrar na casa de sua sabedoria, mas vos guia até o limiar da vossa própria mente. Acerca do saber ambiental, Leff (2001, p. 239) cita as fracassadas pretensões 2 3 "Art. 2º - A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios: [...] X - educação ambiental a todos os níveis de ensino, inclusive a educação da comunidade, objetivando capacitá-la para participação ativa na defesa do meio ambiente." "Art. 1º Entendem-se por educação ambiental os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade. Art. 2º A educação ambiental é um componente essencial e permanente da educação nacional, devendo estar presente, de forma articulada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo, em caráter formal e não-formal." 169 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II interdisciplinares, atribuindo a isso resistências teóricas e pedagógicas, as quais teriam ocasionado significativa dificuldade quanto à transformação dos paradigmas atuais do conhecimento e os métodos educacionais, essenciais, no entender do autor, para a disseminação desses saberes. Além disso, expõe o referido autor: É que a interdisciplinaridade ambiental não é o somatório nem a articulação de disciplinas; mas também não ocorre à margem delas, como seria colocar em jogo o pensamento complexo fora dos paradigmas estabelecidos pelas ciências. A educação ambiental requer que se avance na construção de novos objetos interdisciplinares de estudo através do questionamento dos paradigmas dominantes, da formação dos professores e da incorporação do saber ambiental emergente em novos programas curriculares. (LEFF, 2001, p. 240). Segundo Capra (1996, p. 230), “Precisamos revitalizar nossas comunidades – inclusive nossas comunidades educativas, comerciais e políticas – de modo que os princípios da ecologia se manifestem nelas como princípios de educação, de administração e de política." O homem, principalmente após a Revolução Industrial, ancorado na concepção antropocentrista, passou a explorar a natureza de forma bastante acelerada e ilimitada, ao passo que a natureza dispõe de bens que são limitados (e, embora muitos sejam renováveis, tal renovação ocorre ao tempo natural de seus respectivos processos, cuja velocidade não consegue acompanhar a do desenfreado uso de tais bens), o que evidencia que o período moderno também esteve marcado por uma educação alienante, o que não se diferencia muito dos tempos contemporâneos. Firma-se isso na medida em que se analisa o pensamento de grande parte dos doutrinadores brasileiros, da área da educação ambiental, que acreditam ser um exagero a existência de uma disciplina específica para a educação ambiental, sob o fundamento de dever esta ser tratada de forma articulada e integrada aos conteúdos obrigatórios, com base na interdisciplinaridade. No entanto, nada impede a existência de uma disciplina específica que trate da matéria, que seja (e não há como não ser) articulada e integrada com os outros conteúdos, utilizando-se, da mesma maneira, a interdisciplinaridade, que é essencial. Assim entendida, essa ideia denota que a preocupação com a preservação da vida também deve ser assimilada como um exagero. Mas infelizmente, foi nessa linha de raciocínio que pendeu o legislador pátrio. Um outro aspecto que deve ser sublinhado quanto à educação ambiental é a inobservância de um currículo programático fundado no processo permanente ao qual aquela 170 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II deve estar vinculada, segundo a conceituação dada em 1987, em Moscou. Parece que uma mera articulação de conteúdos, sem fixação e programação de um início, de uma continuidade e de quando e como isso será feito, força uma ponderação calcada em um aspecto vago, impreciso, não-planejado, desprovido de seriedade, desvinculado e descompromissado com as significativas proporções e implicações que o tema enseja. A crise que assola a relação do homem com a natureza é incontestável e, no entanto, os benefícios advindos dos avanços científicos e tecnológicos “não foram e não estão sendo utilizados em prol da vida, mas sim do capital” (DILL, 2008, p. 30). Isso porque, os valores humanos estão norteados pela ideologia moderna do sistema de produção capitalista que, de certa forma, aliena4 o homem, na busca incessante e desenfreada pelo acúmulo de riquezas, desrespeitando os seus próprios limites e os da natureza. E é nesse contexto que a educação ambiental crítica faz-se imprescindível, inclusive para que a modificação desses valores prospere socialmente e ocasione, outrossim, a mudança da conduta humana para com o ambiente. Corrobora Capra (2005, p. 167), ao dizer que: Além de sua instabilidade econômica, a forma atual do capitalismo global é insustentável dos pontos de vista ecológico e social, e por isso não é viável a longo prazo. O ressentimento contra a globalização econômica está crescendo rapidamente em todas as partes do mundo. 2 OBJETIVOS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL SEGUNDO A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 A Constituição Federal de 1988, no artigo 225, evidenciou a preocupação do Estado Brasileiro Democrático e Socioambiental de Direito com a defesa, conservação e preservação do meio ambiente, tendo em vista as constantes e alarmantes degradações ambientais produzidas ao longo da existência humana no Planeta. Quando se fala em defesa, parte-se da ideia de que ela ocorra através de práticas diárias nesse sentido; em conservação, pensa-se no que diz respeito à utilização racional dos recursos naturais; e em preservação, atém-se à ideia da manutenção da integridade daqueles recursos essencialmente protegidos. O artigo 6º do mesmo diploma legal, por sua vez, elenca a educação como um dos 4 Para Bello e Keller (IN LUNELLI e MARIN, 2012, p. 108) - embasados na concepção marxiana -, a alienação, que contribui para a permanência da produção social da pobreza, é também o fruto do afastamento dos produtores com relação ao resultado dos seus trabalhos. (N.A.). 171 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II direitos sociais, sendo também considerada um direito fundamental da pessoa humana, em um primeiro momento, por estar inserida no direito à vida no seu aspecto integral e, num segundo, por ser o homem um ser social. Nesse sentido, leciona Sarlet (1998, p. 41) que “o fundamento dos direitos sociais encontra-se na constatação de que o homem não poderá viver uma vida plena, digna, enriquecedora, se não lhe forem satisfeitas as necessidades básicas”. Doyal e Gough, mencionados por Potyara A. P. Pereira (2011, p. 75-76), identificam como um dos satisfadores universais e específicos para a efetivação das necessidades humanas básicas (saúde física e autonomia dos seres humanos) a educação apropriada. O direito à educação formal integra o artigo 205 da Constituição Federal de 1988 e, tal como vem caracterizada neste dispositivo legal, ela “transcende a uma mera instrução, devendo desenvolver as potencialidades morais e intelectuais do homem, preparando-o para ser um cidadão e qualificando-o para o trabalho.” (DILL, 2008, p. 75). Apresentada pelo legislador pátrio como um dos elementos basilares para se conseguir a conscientização dos povos e o seu despertar para a necessidade de, mais que nunca, passarem a ter maiores cuidados com o ambiente em que vivem, sob pena de comprometerem as suas próprias existências, resta elencada a educação ambiental, a ser proporcionada em todos os níveis de ensino. Mais que isso, a educação ambiental é um dos instrumentos para a garantia da efetividade “do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. (LANFREDI, 2002, p. 123). Sendo dever do Estado e da coletividade a defesa e a preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, para as presentes e futuras gerações, entende-se que se pode chegar a esse patamar também através da educação ambiental prestada de forma extensiva e crítica, em todos os níveis de ensino, tanto para o público quanto para o privado, com a mesma qualidade de prestação. Considerando a qualidade do ensino disponibilizado atualmente no País, há que se evidenciar a necessidade de uma melhor preparação dos docentes de todos as escalas curriculares, para poderem trabalhar, de forma efetiva e a contento, com a matéria ambiental, como agentes ativos e conscientizadores, promovendo a mobilização popular a partir da interação do conhecimento com as práticas diárias. Porém, a educação ambiental precisa ultrapassar muitas barreiras e entraves, para efetivamente se disseminar pelas estruturas curriculares e emergir para o verdadeiro fim que a norteia, que é a conscientização e as consequências como reflexos incorporados no dia a dia 172 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II de cada cidadão. 3 EXPRESSÃO DA LEI Nº 9.795/1999 A Lei nº 9.795, que institui a Política Nacional de Educação Ambiental, denota as diretrizes nacionais que deverão servir de base para as Políticas Estaduais dos Estados Federados. Em que pese ser o meio ambiente equilibrado essencial para a sadia qualidade de vida, parece que, aos elementos que podem contribuir com isso ocorra, não são dados a devida atenção e investimento. Sendo a educação ambiental um desses elementos, considerada como um "componente essencial e permanente da educação nacional"(Art. 2º da Lei nº 9.795/99), não parece estar compatível à sua importância a prestação do saber ambiental de forma meramente articulada, em todos os âmbitos e modalidades do ensino. Ainda mais quando expressamente consta que a educação ambiental não deve ser ministrada "como disciplina específica no currículo de ensino." (Art. 10 da Lei nº 9.795/99). Essa menção parece anular toda a primordialidade e importância postas em torno desse elemento, pois em não havendo uma disciplina específica sob esse enfoque, as discussões esparsas e descomprometidas com o efetivo saber e conscientização sobre o tema, vão perdendo-se no tempo. Disposições nessa linha de raciocínio dão mostras de que o legislador pátrio parece entender que a maioria da população já possui todos os conhecimentos e a conscientização necessários para ter ações todas em conformidade com as prioridades defensivas e protetivas da vida. Mas não é essa a realidade: todos estão carentes dessa informação e conhecimento, sendo essencial a conscientização da população em geral, também tão absorta do automatismo eloquente imposto pela sociedade de consumo e das ilusões efêmeras de aquisição da felicidade. Comete, pois, um grande engano o homem da modernidade, ao compreender a felicidade e qualidade de vida estritamente através da acumulação de riquezas e do grande poder de consumo, pois, ao final, percebe-se sem atingir a felicidade almejada, seguindo uma trajetória de vida em um ambiente, ambos desprovidos de qualidade. Ademais, é consabido que, em geral, não são repassadas aos discentes todas as matérias previstas nas estruturas curriculares, normalmente por não haver disponibilidade de 173 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II tempo para isso, quanto mais para destinar algum tempo extra para a inclusão do saber ambiental e, ainda que assim ocorresse, com certeza esse conhecimento seria mitigado e muito rapidamente trabalhado, quando a sua importância remonta à essencialidade da vida. Por outro lado, a carência de tempo a ser destinado impede o estudo mais aprofundado dos conteúdos programáticos curriculares já previstos, que dirá poder então englobar mais a matéria ambiental que, ou não será nem mesmo mencionada ou se isso vier a ocorrer, será muito superficialmente tratada. Sob o viés da finitude da grande maioria dos bens ambientais e da atual escassez de bens essenciais à manutenção da vida, como é o caso da água, por exemplo, e da crescente rapidez dos efeitos degradantes, quanto ao meio ambiente urgem preocupações e ações mais específicas, contundes, eficazes e de maior repercussão nacional, de forma a destinar o verdadeiro tratamento necessário e imprescindível ao ambiente. Quando da elaboração da Lei nº 9.795, em 1999, não estavam sendo ainda tão veementemente sofridos os efeitos nocivos das modificações ambientais e da escassez, não tanto quanto na atualidade, sendo que, no momento, já estão disponíveis inclusive as projeções do crescimento acelerado no que tange aos prováveis danos ambientais. Sendo assim, em virtude da significativa relevância do tema e da premente necessidade de mudança de consciência e atitudes humanas, entende-se não mais comportar tratamentos e medidas extremamente sutis e desagregadas na noção acelerada e rápida dos acontecimentos presentes e, dessa forma, a incompatibilidade de uma educação que não leve em conta a profundidade do tema e que não abra espaço largo para o seu aprendizado e debate. Outrossim, a referida lei faculta a criação de disciplina específica de educação ambiental nos cursos de pós-graduação, extensão e nas áreas voltadas ao aspecto metodológico. Mediante essa faculdade, descarta-se a possibilidade do ensino continuado dos saberes ambientais que, pelo que se depreende da sua distinta missão, parecem estar relegados a meras informações descontínuas, que acabam por desarticular e não sistematizar continuamente o entendimento e o âmbito integralizado e universal que aqueles deveriam manter. Resta apenas mencionado nessa lei que deve ser incorporado conteúdo concernente à ética ambiental das atividades profissionais quando se tratar de cursos de formação e especialização técnico-profissional, em todos os níveis. Entende-se que, nessa senda, a simples incorporação de conteúdo acerca da ética ambiental não abarca toda a complexidade 174 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II das matérias inerentes a esse instituto. O artigo 11 dessa lei retrata a obrigatoriedade de constar, em todos os níveis e em todas as disciplinas, a dimensão ambiental dos currículos de formação de docentes, sendo que os que se encontram em atividade deverão receber uma formação complementar, em suas áreas de atuação, para atingirem os propósitos da política nacional de educação ambiental. Porém, há que se levar em conta que muitos professores que se encontram hoje ainda ministrando aulas nunca tiveram sequer noções básicas acerca do meio ambiente, sem contar que efetivamente essas formações complementares, na maioria das vezes, não saem do papel, o que já traz inúmeros efeitos nocivos à propagação desses saberes. Em termos da promoção da educação ambiental não-formal, tanto o Estado, a sociedade, os meios de comunicação de massa, quanto as escolas, as universidades e as organizações não-governamentais estão deixando muito a desejar quanto ao desenvolvimento de "ações e práticas voltadas à sensibilização da coletividade sobre as questões ambientais" 5, o que é visivelmente percebido pela quase que ausência dessas medidas. No que tange à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a única menção que contém sobre educação ambiental está prevista no § 7º do artigo 26 – incluído pela Lei 12.608, de 10 de abril de 2012, referindo que "Os currículos do ensino fundamental e médio devem incluir os princípios da proteção e defesa civil e a educação ambiental de forma integrada aos conteúdos obrigatórios." Sendo a LDB uma lei federal, incumbe a ela as disposições gerais em relação à educação, e até mesmo quanto à educação ambiental. Já a Lei nº 9.795/1999, referente à Política Nacional de Educação Ambiental, esta, em relação à LDB, trata-se de uma lei especial, que discorre especificamente sobre a educação ambiental. Na prática, entretanto, a educação ambiental, em geral, vem estando ausente nas abordagens curriculares e no quotidiano das salas de aula e, se existente, é efetuada de maneira insuficiente ou precária, não sendo prestada de forma permanente e continuada, mas sim de forma eventual, esparsa, desarticulada e desagregada do ensino de um conjunto de valores socioambientais condizentes com os fundamentos da educação ambiental. 4 EXPRESSÃO DA LEI Nº 12.608/2012 E REFLEXOS NA LDB – LEI Nº 9.394/1996 Uma alteração à Lei de Diretrizes e Bases da Educação passou a vigorar recentemente, em 2012, imiscuída entre os demais ditames da Lei nº 12.608/2012, que institui 5 Artigo 13 da Lei nº 9.795/99. 175 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil – PNPDEC. Inexistia anterior previsão na LDB acerca de educação ambiental, desde 1996, quando foi criada; somente em 2012 é que a LDB recebeu a inclusão dessa matéria, muito embora a Lei nº 9.795, de 1999, que instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental, já estivesse em vigor desde o ano de 1999. São alarmantes as expressões da morosidade e desinteresse nacional em torno dessas temáticas: educação e educação ambiental. Com essa alteração da LDB, passa a ser obrigatória a inclusão, nos currículos do ensino fundamental e médio, da educação ambiental de "forma integrada" aos conteúdos obrigatórios, semelhante ao que já previa nacionalmente a Lei nº 9.795, desde 1999, mencionando a educação ambiental de "forma articulada". Consultando dicionários para diferenciar exatamente essas duas expressões, obtém-se os seguintes conceitos: ar.ti.cu.lar [...] 1 unir(-se) pelas articulações 2 tornar(-se) ligado; unir(-se); juntar(se) [...] 3 dizer, pronunciar [...] in.te.grar [...] 1 incluir(-se) em (conjunto, grupo), formando um todo coerente; incorporar(-se) [...] 2 [...] sentir-se parte de (grupo, coletividade); adaptar(-se) [...] 3 unir-se, formando um todo harmonioso; completar-se. (grifos do autor) (HOUAISS e VILLAR, 2004, p. 66 e 422). ar.ti.cu.lar [...] 3. Juntar, unir, ligar uma coisa a outra. 4. Pronunciar (palavras). P. 5. Juntar-se; organizar-se. Integrar – [...] 1 Tornar inteiro ou integral; completar; integralizar; P. 2. Fazer parte de um todo; associar-se; incorporar-se. (grifos do autor) (LUFT, [198-], p. 48 e 319). Segundo a determinação estatal, a matéria ambiental deve estar presente de forma integrada, ou seja, associada e incorporada aos conteúdos obrigatórios. Entretanto, de acordo com esse enredo, ela, por si só, parece não representar um conteúdo obrigatório, como disciplina autônoma para, nessa condição, interligar-se às demais, incutindo um toque de secundariedade, dispensabilidade desse saber, incompatível com a primordialidade do aspecto condizente à preservação do ambiente e da vida. Já de forma articulada, entende-se que a educação ambiental deve ser trabalhada vinculada aos demais conteúdos, em todos os níveis e modalidades de ensino. Em síntese, ambos os vocábulos, embora muito pouco se diferenciem em seus conceitos e sinônimos, na verdade deixam a mesma mensagem essencial: que os saberes ambientais venham a ser repassados de modo associado e incorporado aos conteúdos obrigatórios. E esse tipo de tratamento ao tema parece deixar muito a desejar, ainda mais quando 176 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II há vedação legal para a existência de uma disciplina autônoma e específica. Logo, o ideal seria a supressão dessa vedação legal, para ser consolidada a verdadeira importância desse tema. Entretanto, essas articulações e integrações dos saberes ambientais com os demais conteúdos obrigatórios poderiam ocorrer igualmente, e de maneira ainda mais aprofundada se, através desse modelo educacional proposto, houvesse o espaço para uma disciplina específica, em todos os níveis e modalidades de ensino, jamais prejudicando a inter, a multi e a transdisciplinaridade. Quanto a essas últimas (inter, multi e transdisciplinaridade), depreende-se que, até então, elas não restaram bem compreendidas pelos atuais educadores, que têm a tendência de relacionar a educação ambiental “a práticas específicas (como coleta seletiva do lixo ou a organização de hortas), ou considerar que qualquer observação do cotidiano ou regra de civilidade” (VASCONCELLOS, 2011, p. 269) consiste no desenvolvimento da educação ambiental sob o prisma da inter, multi e transdisciplinaridade. É lógico que é inviável falar em educação ambiental sem pensar em vinculá-la aos outros saberes, mas da forma como está sendo proposta, dá mostras de pouco esmero em aprofundar os conhecimentos a ela atinentes e trabalhá-la com as crianças, jovens e adultos, desde os primórdios da constituição/formação dos seus saberes, hábitos e personalidades. Conforme já observado anteriormente, tampouco os conteúdos obrigatórios, às vezes, são vistos em sala de aula, por carência de tempo, ou se vistos, são marcados por uma superficialidade, face a impossibilidade do aprofundamento pelos motivos já expostos. Agora, imagine-se o que acontece com a educação ambiental nas rotinas das salas de aula do País todo. Ademais, insta salientar que, tanto sendo observada a forma integrada, quanto a forma articulada, em ambos os casos não resta preestabelecido se todos os professores trabalharão a temática ambiental, se apenas os das áreas das Ciências Naturais, ou Humanas, ou Sociais. Diante de todas essas inquietações, questiona-se: Em não havendo essa definição, e na maioria das vezes isso pode ocorrer, não por má-fé dos docentes, mas por outros motivos por hora irrelevantes, como/quando fica a prestação da educação ambiental e o atingimento dos seus objetivos? A quem reclamar isso, se não há responsável ou responsáveis específicos, destinados ao cumprimento desse dever, em um universo de vários docentes de cada nível de ensino, o que acaba remetendo a uma situação de indeterminação e indefinição originárias? 177 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II E após a consolidação, nos dias atuais, dos respectivos estudos dos alunos, tanto nos níveis fundamental quanto no ensino médio, sem terem sido alvo dos saberes ambientais, especificamente aqueles que não terão a oportunidade de chegarem ao ensino superior, como ficarão as suas situações? O que fazer diante disso? Como esperar de uma educação ambiental prestada de forma integrada ou articulada, que ela possa promover “processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade”, se a ela tampouco foi aberto um espaço sagrado e reservado para o conhecimento e o aprofundamento destes acerca das temáticas ambientais? De outra banda, o incentivo à pesquisa parece estar mais afeto e enfatizado ao campo da educação superior, porém constitui um dever do Estado para com a educação escolar pública a garantia de “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um” (Art. 4º, V, da LDB). No entanto, se a pesquisa sobre a matéria ambiental não for fomentada e incentivada desde a educação básica, a partir de sólidos conhecimentos proporcionados aos estudantes, dificilmente só na educação superior eles desenvolverão essas habilidades e pô-las em prática em tempo e a contento. Então, paira-se sob um ponto deveras crucial: o Estado tem o dever legal de promover a educação ambiental e a conscientização da coletividade para a preservação do ambiente, mas ele demonstra o efetivo interesse em promovê-las, na prática? Isso está ou tem acontecido na atualidade, em todas as realidades do País? 5 O PAPEL DO ESTADO BRASILEIRO QUANTO À EDUCAÇÃO AMBIENTAL, INSTRUMENTO DE DEFESA E PRESERVAÇÃO AMBIENTAL Tanto o Estado como a coletividade restaram designados constitucionalmente (artigo 225, caput, da CF/88) para o desempenho do dever de defesa e preservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Esse mesmo dispositivo constitucional, em seu § 1º, inciso VI, infere ao Poder Público, a fim de assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o dever de promover a educação ambiental e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente. Embora o tema acerca do ambiente não figure no artigo 5º da CF/88, o direito ao 178 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II meio ambiente é reconhecido doutrinariamente6 como um direito fundamental da pessoa humana (artigo 225, caput, da CF/88), atrelado ao respeito à dignidade da pessoa humana. Sérgio Luís Mendonça Alves (apud TEIXEIRA, 2006, p. 111), manifesta-se, dizendo que “A Constituição do Brasil, […] instituiu como instrumento para proteger o meio ambiente ecologicamente equilibrado a educação ambiental como princípio fundamental que decorre dos direitos e deveres fundamentais.” Além disso, o Estado Socioambiental de Direito definiu a educação ambiental também como um direito fundamental social (artigos 6º e 205 da CF/88). Entendendo-se que a efetividade social do Direito Ambiental consolida-se com a conscientização comunitária para a realização de uma cidadania participativa e solidária com as presentes e futuras gerações, sendo essa participação comunitária atuante “em conjunto com o Poder Público na proteção dos bens ambientais” (LEITE, 2002, p. 28-29), a educação ambiental não pode ser deixada a segundo ou terceiro plano, quanto à preocupação e efetivação de medidas para que ela realmente ocorra, por esse mesmo Estado. Antes mesmo da Constituição da República Federativa do Brasil prever a educação ambiental como dever do Estado, a Lei nº 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente), recepcionada pela Carta Magna brasileira, já previa esse dever estatal, em consonância com o Código Florestal Brasileiro vigente naquela época, consoante já exposto. A partir da Carta Constitucional de 1988, o Estado brasileiro instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental, através da Lei nº 9.795/1999, em vigência até o presente momento, e regulamentada pelo Decreto nº 4.281/2002. Todos esses diplomas legais, em suma, preconizam o dever do Estado na promoção da educação ambiental. Isso pode ocorrer, de forma efetiva, através da implementação de políticas públicas estatais sérias e comprometidas com a obrigação inerente à proteção e manutenção da vida humana na Terra. Por um lado, é bem verdade que o extensivo rol de corresponsáveis pelo dever de educar ambientalmente, previsto no artigo 3º da Lei nº 9.795/1999, apresenta opções várias de coadjuvantes para essa empreitada, porém, por outro, dos vários corresponsáveis, muitas vezes pode acontecer que nenhum deles esteja efetivamente empenhado e desempenhando a referida prestação esperada. Foi precisamente nessa lei que restou delineado o conceito de educação ambiental, que além de despertar a consciência, objetiva a modificação de atitudes humanas, em prol da melhoria da qualidade de vida planetária. 6 Pode-se citar, dentre outros MILARÉ, Édis. 2011, p. 1065; TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. 2006, p. 82. (N.A.). 179 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Sendo o Direito Ambiental um ramo do Direito Público, Figueiredo (2012, p. 129) sustenta que, logo, há “a obrigatoriedade da intervenção estatal na defesa do meio ambiente”. Para o autor supra, também é natural a aplicação e a exigência dos princípios constitucionais que elucidam acerca da Administração Pública em todo e qualquer tipo de políticas públicas. Devendo o Estado primar pela realização dos princípios constitucionais referentes à Administração Pública, é válido salientar o cumprimento do princípio da eficiência, o qual refere-se “não só à Administração Pública (setorial)”, como também, no entender de Gabardo (2002, p. 89-90), embasado no pensamento de Canotilho: [...]ao princípio da eficiência do Estado como vetor geral (de caráter ético) do sistema constitucional. Dessa forma, tão importante quanto à relação com os demais princípios da Administração Pública, que não é só externa, mas intrínseca, é a submissão do princípio da eficiência aos princípios estruturantes (ou fundamentais) do sistema constitucional, entre os quais se destaca o Princípio do Estado Social e Democrático de Direito. Incumbe, então, ao Estado, principalmente deixar de omitir-se declaradamente no que tange ao seu verdadeiro papel constitucional de atuação ativa quanto à implementação de efetiva educação ambiental prestada em todos os níveis de ensino, atingindo, dessa forma e por consequência, os deveres de defesa e proteção ambientais. Por tratar-se do tema ambiental, cuja preservação do meio denota a consequente preservação da vida humana, o assunto já tem importância suficiente para que o Estado se empenhe muito mais fervorosamente e o mais rápido possível para conscientizar e ensinar a coletividade a incluir em suas rotinas as práticas defensivas do meio ambiente. Considerando que educação ambiental é o princípio, o caminho principal que pode levar a coletividade a esse estágio, mas também não se olvidando que essa mudança de consciência e atitudes ambientais não acontecem imediatamente, com todos os indivíduos, levando em conta os diferentes níveis de assimilação e o despertar da consciência de cada um, primordial seria que a efetiva educação ambiental já estivesse ocorrendo não só em termos de Brasil, mas sim mundialmente, como preocupação estatal primeira. 6 POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL A área de estudos envolvendo políticas públicas configura uma múltipla interface entre as Ciências Sociais, Política e Economia. Sandro Trescastro Bergue (2011, p. 508), citando Heidemann, assim dimensiona 180 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II política pública “Entende-se por política pública (public policy) o conjunto coerente de decisões, de opções e de ações que a administração pública leva a efeito, orientada para uma coletividade e balizada pelo interesse público." Refere, outrossim, que ela "distingue-se de políticas de Estado por serem estas especificadas na Constituição da República, não restando aos atores políticos a possibilidade de disputa de espaços ou opção nesse campo, senão seu cumprimento". Faz ainda outra diferenciação entre a primeira ("produto da, e orientada para, a comunidade política mais ampla") e políticas governamentais, afirmando serem estas "empreendidas por atores governamentais, emanadas por órgãos e entes dos Poderes de Estado, constituindo "o subgrupo mais importante das políticas públicas". Em consonância com o pensamento de Freitas (2011, p. 288-290), insta salientar a necessidade de o Estado "aplicar a Constituição em tempo útil e de ofício", uma vez que ele "existe para prevenir e não para chegar tarde", evitando, assim, "(com prevenção e precaução) os danos oriundos de toda e qualquer atuação desproporcional por excesso ou inoperância, no atendimento, constitucionalmente imperativo, dos direitos fundamentais de todas as dimensões." E o que se espera da educação ambiental é justamente aproveitar e aprimorar os seus espectros de prevenção e precaução de maiores danos ao ambiente, sendo isso promovido essencialmente por iniciativa estatal, que deve atuar no modo antecipativo e não corretivo e pontual. Souza (2007, p. 5) caracteriza política pública como: [...] o campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo, colocar o 'governo em ação' e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente). A formulação de políticas públicas constitui-se no estágio em que governos democráticos traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações, que produzirão resultados ou mudanças no mundo real. Assim entendida, a educação ambiental, promovida na forma de uma política pública ativa e efetiva, estará direcionada à realização dos princípios do Direito Ambiental da prevenção e da precaução. Pautado na prevenção e precaução, através da educação ambiental, o Estado brasileiro pode em muito contribuir para a preservação e conservação do meio ambiente. Lógico que, inicialmente e sozinho, o Brasil não conseguirá uma transformação total e universal, porém, estará dando um bom exemplo a ser seguido pelas demais nações. Estará, outrossim, evidenciando o seu pioneirismo em práticas tais, contribuindo para 181 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II a lenta mas permanente modificação da consciência e de atitudes populares em termos ambientais e, num segundo momento, quiçá estará conseguindo a mobilização e efetiva sensibilização de todas as nações, para que realmente sejam colocadas em prática os magníficos escritos e legislações que tratam do tema ambiental, sua proteção e preservação. A partir do contexto explanado por Souza, os governos, através da utilização desse instrumento, que é a política pública, podem produzir resultados e promover mudanças no mundo real. Dessa forma, entende-se que os governos podem e devem direcionar os seus olhares para a efetiva modificação no modelo institucional/legal existente atualmente no que tange à educação e, mais especificamente, à educação ambiental, de modo a promoverem mudanças positivas no mundo real. E uma das maneiras de isso vir a ocorrer é mediante o investimento em educação, em educação ambiental, processo lento, gradativo, e que deve ser constante e permanente, mas que, pelo qual, é possível implementar a modificação da consciência humana rumo a uma convivência mais harmônica com a natureza e a veemente preocupação em cuidá-la e preservá-la. Consoante Bobbio (2004, p. 66-67): É supérfluo acrescentar que o reconhecimento dos direitos sociais suscita, além do problema da proliferação dos direitos do homem, problemas bem mais difíceis de resolver no que concerne àquela "prática" de que falei no início: é que a proteção destes últimos requer uma intervenção ativa do Estado, que não é requerida pela proteção dos direitos de liberdade, produzindo aquela organização dos serviços públicos de onde nasceu até mesmo uma nova forma de Estado, o Estado social. Quanto ao fato de existir uma política pública nacional de educação ambiental prevista legalmente, deve-se destacar, primeiro: isso não significa que ela está sendo colocada em prática em todo o País; segundo: que não significa que ela está sendo colocada em prática em todos os níveis de ensino; terceiro: isso não significa que ela é efetiva e cumpra com as suas finalidades constitucionais; e quarto: não significa que o Estado esteja atribuindo a devida importância ao tema, que esteja atuando satisfatoriamente e que esteja envolvido com a máxima dedicação sobre esse enfoque. Uma nova proposta de política pública de efetiva educação ambiental deve versar ou trabalhar a educação sob o prisma do abandono dos vícios antropocêntricos e “paradigma separatista da insaciabilidade patológica”. (FREITAS, 2011, p. 190).7 7 Nos termos empregados pelo autor, a insaciabilidade patológica refere-se ao consumismo exacerbado e a infinitude de necessidades consumistas criadas no/pelo homem através das crescentes e inovadoras ofertas do mercado. (N.A.). 182 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Sob o prisma do “posicionamento político-cultural emancipatório”, mencionado por Lima (apud SPAREMBERGER e WERMUTH, 2006, p. 31), faz-se essencial que uma séria política pública de educação ambiental seja implantada em que não só haja a preocupação em repassar conhecimentos atinentes ao uso racional dos recursos e manutenção dos ecossistemas (superficialismos). É imprescindível, entretanto, promover principalmente uma expressiva alteração de valores, sob uma nova visão de mundo, de acordo com a qual, “cada parte tenha valor em si própria e como parte do conjunto” (VASCONCELLOS, 2001, p. 269), parâmetro, do qual, a situação atual da política pública de educação ambiental brasileira ainda não consegue sequer se aproximar. Ao mesmo tempo em que a Política Pública Nacional de Educação Ambiental proíbe a existência de uma disciplina autônoma de educação ambiental, alegando que, dessa forma, estaria evitando “qualquer resquício compartimentalista cartesiano na sua implementação” (SPAREMBERGER e WERMUTH, 2006, p. 29), na prática, porém, não propicia o espaço adequado para que ela possa ser trabalhada de forma aprofundada e sob todos os aspectos (social, econômico, cultural, político, etc.). Mediante a proibição infracitada, a justifica também sob a alegação de estar expungindo o caráter reducionista até então presente, porém, simultaneamente, acaba impedindo, assim, que esse conhecimento sequer se propague, o que tampouco permitirá que a educação ambiental e a propagação dos saberes ambientais ocorram de maneira transversal, conforme seria o objetivo enfatizado. Poder-se-ia, de qualquer forma, trabalhar a educação ambiental em uma disciplina específica, abordando-a de maneira interdisciplinar, reservando para a sua interação com o todo (todo o universo de conteúdos a ela relacionados) a versão transdisciplinar, a ser buscada e executada pelo conjunto do corpo docente. No entanto, ainda que se considerasse inviável ao Poder Público assumir sozinho o encargo de promover políticas públicas de educação ambiental, logicamente o Estado pode e deve contar com a participação social em alguns momentos, no desenvolvimento dessas práticas, pois as aulas de educação ambiental poderão ser enriquecidas com palestrantes (profissionais liberais, funcionários públicos de outras instituições) e também materiais oriundos da colaboração comunitária. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, partindo da noção de educação ambiental como sendo um meio 183 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II de proporcionar uma modificação de valores e de atitudes nos seres humanos, concernentes à sua concepção e atuação em relação ao meio ambiente, evidencia-se a sua versão tímida, inexpressiva, imatura e ineficaz, denotando a precariedade com que vem sendo conduzida. É lógico que não se pretende direcionar o dever legal de implementá-la e promovê-la unicamente ao Estado, que pode ser auxiliado e subsidiado pela sociedade civil e coletividade. No entanto, é inegável a essencialidade de o Estado definir e estruturar as suas diretrizes, essencialmente no âmbito educacional e, em especial, no da educação ambiental, a fim de que possa se distanciar o bastante da letra das leis ao ponto de chegar à prática, concretizando a vontade política que, sem dúvida, deve ser compatível com os ditames constitucionais, como os de preservar e conservar o meio ambiente, tornando-o sadio e ecologicamente equilibrado, às presentes e futuras gerações. O instrumento que representa a educação ambiental não deve ser jamais desperdiçado, principalmente pelo Estado, que deve ser o propulsor da conscientização coletiva para a proteção e conservação ambiental, podendo ser ele utilizado como um meio eficaz para a prevenção e embasamento fundamental para a precaução em termos de danos e desequilíbrios ambientais, bastando ser bem direcionado e atuante de forma efetiva, constante e permanente nos ambientes escolares, em todos os níveis de ensino. Não obstante à previsão constitucional e à existência de leis federais dimensionando os objetivos e a realização da educação ambiental, ainda que essa realização eventualmente ocorra, é notável o seu caráter pontual, corretivo, esparso, eventual, fragmentário, nãosistematizado e descomprometido com a sua finalidade precípua. Quanto a esta finalidade, que é a conscientização e a mobilização popular no sentido de despertar uma nova visão de mundo que, contando com uma disciplina específica para melhor poder abordar e aprofundar os temas inerentes, sem com isso descartar outras disciplinas e, nesse âmbito, podendo valer-se da interdisciplinaridade, para inter-relacioná-las, é cabível depreender-se a possibilidade da utilização concomitante da transdisciplinaridade, enquanto analisados os temas ambientais sob todos os enfoques possíveis, para além das fronteiras de toda a ciência, desejo, ideologia e ética. Prima-se, pois, por uma atuação estatal que promova uma educação ambiental, através de uma efetiva política pública, que concretize os objetivos de análise crítica e emancipatória do meio e da realidade existentes, que permeie os horizontes até então não desvendados por uma visão mundana atrelada ao capital, ao individualismo, ao ter, ao consumo desenfreado, criação de necessidades desnecessárias, desperdício e carente de conscientização e atuação conjunta para o bem coletivo, inclusive para o do planeta Terra. 184 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II REFERÊNCIAS ARAÚJO, Adilson Ribeiro de. Educação Ambiental e Sustentabilidade: Desafios para a sua Aplicabilidade. Disponível em <http://pt.scribd.com/doc/50663454/6/Declaracao-deEstocolmo-sobre-o-Ambiente-Humano-Estocolmo72>. Acesso em: 09 dez. 2012. BERGUE, Sandro Trescastro. Modelos de Gestão em Organizações Públicas: Teorias e Tecnologias para Análise e Transformação Organizacional. 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O direito previdenciário, enquanto subsistema de direitos fundamentais, existe para proteger e promover, por meio de prestações pecuniárias a dignidade da pessoa humana. Este trabalho explica que embaraços jurídicos injustificados que impedem o acesso, ou a manutenção, de benefício previdenciário afetam não só a esfera patrimonial do titular segurado, mas também a extrapatrimonial. O trabalho reconhece que o atual esquema de restabelecimento de benefício previdenciário injustificadamente suspenso, ou a concessão do benefício devido (ainda que a destempo), é providência juridicamente adequada e necessária para efeitos de reparação. O texto sustenta, por outro lado, que esse modelo de proteção da eficácia dos direitos fundamentais previdenciários se enquadra no conceito de proteção insuficiente. O método de abordagem do problema foi o analítico-conceitual, posto que embasado em pesquisa teórico-conceitual. A teoria de base e a metodologia de abordagem são derivadas da dogmática dos direitos fundamentais, tal como concebida por Robert Alexy. Como conclusão principal, formula-se a tese jurídica de que a indenização por danos morais deve ser reconhecida como consequência jurídica válida e necessária no âmbito dos direitos previdenciários, haja vista que é meio adequado e necessário para aprimorar a eficácia protetiva dos direitos a benefícios sociais previdenciários. PALAVRAS-CHAVE Fundamentais Sociais. - Dano moral. Direito Previdenciário. Direitos ABSTRACT - The dignity of the human person is the moral and central element in the Brazilian social values system. It is also a legal and main good, which ensure the reliability of all the components that surround the Brazilian system of human rights. The social security law, as an important part of the fundamental rights, works to protect and promote, through monetary benefits the human dignity. This paper explains that unjustified legal obstacles prevent the access or the maintenance of the benefits in the social security, not only by affecting the equity in the social security holder, but also affecting all the facts that surround it. The research 1 Este texto foi desenvolvido como parte das atividades do Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais Sociais do PPGD, mestrado em direitos fundamentais da Unoesc. Os autores agradecem aos pesquisadores integrantes do grupo pelas críticas e sugestões oferecidas, em especial à pesquisadora Silvana Barros da Costa. 2 Pós-doutorando em Direito (PUC-RS). Doutor em Direito (UFSC). Professor do PPGD-Unoesc, Mestrado em Direitos Fundamentais. Coordenador do projeto de pesquisa em Direitos Fundamentais de Seguridade Social no PPGD-Unoesc. Editor-Chefe da Espaço Juridico Journal of Law [EJJL] - Qualis B1. Professor da Universidade Positivo (UP); Professor das Faculdades Dom Bosco. email: [email protected] 3 Mestranda em Direitos Fundamentais (Unoesc). Especialista em Direito Previdenciário; Pós-graduanda em Direito Constitucional e Novos Direitos. Integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Fundamentais sociais do PPGD|Unoesc. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário. Sócia do Escritório Pinheiro & Renck Advogados Associados. Maravilha – SC. Esta pesquisa tem o apoio financeiro do Fundo de Apoio à Manutenção e ao Desenvolvimento da Educação Superior - FUMDES, coordenado pela Secretaria de Estado da Educação - SED, de Santa Catarina. [email protected]. 188 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II recognizes that the current restoring law of social security benefits is not trustful, or in the granting of the due benefit (for being out of time), is legally appropriate and necessary. The investigation argues, however, that the protection efficiency model in the fundamental rights of social security is characterized for being an insufficient protection. The approach method to the problem used in the document was an analytical-conceptual method, since was made following a theoretical and conceptual research. The basic theory and methodology was taken from the fundamental rights dogmatic approach, as it was conceived by Robert Alexy. As main conclusion, the thesis formulates that legal indemnification for moral damages must be recognized as legal and necessary consequence under the social security rights, taking on count that it is appropriate and necessary in order to enhance the protective effectiveness of the social rights. Key Words. Moral Damage. Social Security. Fundamental social rights 1 INTRODUÇÃO O direito a benefício previdenciário é um direito fundamental social. O propósito de sua existência é proteger o titular contra os riscos básicos da sobrevivência, tais como a carência de bens relacionados com a própria subsistência e à saúde (alimentos, medicamentos). Benefícios previdenciários, por isso, resguardam o mínimo vital de seus titulares. Mas não é só. Benefícios previdenciários são reconhecidos pelo sistema internacional de direitos fundamentais como bens jurídicos indispensáveis para garantir, também, a existência (vida no trabalho, convivência em sociedade). Disso se segue, adicionalmente, que embaraços injustificados à concessão ou à manutenção dos benefícios previdenciários expõem o segurado a situações extremamente graves. Não só a autonomia (aptidão para o trabalho e para a vida em sociedade), mas também a saúde física de pessoas expostas a riscos especiais da sobrevivência digna ficam sobreexpostos à ocorrência de danos irreparáveis. A rigor, embaraços injustificados a direitos prestacionais fundamentais de seguridade social afetam severamente a dignidade de seus titulares na medida em que afetam a dignidade da sobrevivência e da existência (as condições mínimas) de seus titulares. No estudo dos embaraços injustificados ao exercício dos direitos fundamentais previdenciários é indispensável considerar-se, em primeiro plano, que a principal finalidade desses direitos prestacionais sociais é a proteção da dignidade da pessoa humana nessa dupla dimensão: vital e existencial. Em segundo plano, que os danos causados pela obstrução de acesso a esses bens jurídicos fundamentais não podem ser reparados do mesmo modo como são os danos causados a outros bens jurídicos não diretamente relacionados com a dignidade. Assim, não é correto o entendimento corrente de que a mera restituição, reajustada, das parcelas não pagas no momento devido é o meio adequado para assegurar uma justa compensação. 189 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Neste texto sustenta-se que a violação do direito à dignidade por embaraços injustificados ao exercício dos direitos a prestações de benefício previdenciário é conduta que gera, para seus titulares (1) o direito de restituição reajustada das parcelas não prestadas, (2) indenização por danos morais. Este trabalho sustenta, ainda, que a imposição da reparação do dano moral nas circunstâncias de comprovado embaraço injustificado na concessão ou manutenção do benefício previdenciário é meio juridicamente adequado, inclusive, para prevenir violações à dignidade da pessoa humana. 2 OS EMBARAÇOS ADMISTRATIVOS ARBITRÁRIOS E O DANO MORAL POR OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Direitos previdenciários fazem parte da categoria geral dos direitos fundamentais. Todos os direitos fundamentais resguardam e promovem a dignidade da pessoa humana, fundamento de validade de toda a ordem jurídica. Nessa configuração, os direitos previdenciários representam a garantia de vida digna daquele segurado do Regime Geral de Previdência Social que, acometido por uma contingência prevista em lei, não apresenta condições de se manter, nem à sua família, através de sua força de trabalho. Essa possibilidade socorrerá também o seu dependente. Em tal cenário, o sistema brasileiro de Seguridade Social, por via da Previdência Social, apresenta-se como uma seguradora pública, com o papel de garantir a sobrevivência (elemento vital) e a qualidade mínima de vida (elemento existencial) da dignidade do segurado, ou de seu dependente, por meio de prestações pecuniárias mínimas denominadas de benefícios previdenciários. Enquanto meio de proteção da dignidade em situação de risco, o direito previdenciário é um instrumento de guarda dos direitos fundamentais da pessoa humana (SAVARIS, 2011a, p.60). Tal função essencial exige especial cautela para que a concessão e a manutenção dos benefícios não sejam embaraçados por motivos desarrazoáveis ou injustificados (CAMPOS, 2011, p. 79). Muito embora a correta interpretação dos direitos fundamentais sociais aponte para essa direção, a experiência revela que as relações entre titulares de direitos previdenciários e Estado tem sido pautadas por graves situações de violação de expectativas legítimas (STRAPAZZON, 2012, pp. 134-5) dos segurados. Uma hipótese freqüente é a seguinte: o titular, segurado da previdência social, preenche todos os requisitos necessários ao recebimento do benefício do auxílio-acidente, ou do auxílio-doença ou da aposentadoria 190 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II por invalidez. Sua circunstância fática, embasada em laudos de médicos especializados, é de incapacidade laboral, que poderá ser total ou parcial, temporária ou permanente. Este titular hipotético, cumprido os demais requisitos legais indispensáveis, tem direito adquirido ao recebimento do benefício correspondente. Muito embora esse entendimento jurídico seja lógico e, sobretudo correto, mesmo assim, por embaraços administrativos injustificados, muitos titulares não recebem, in concreto, a prestação pecuniária correspondente. Isso pode advir do erro médico pericial, de má exegese de leis, de inobservância de súmulas, de extravio do processo administrativo, de descumprimento de decisão dos órgãos recursais (MARTINEZ, 2009, p. 151), ou ainda de descumprimento ou procrastinação do cumprimento de decisões judiciais, de suspensão indevida ou de cancelamento indevido do benefício4, não apreciação do pedido5, ou de outras possibilidades. Casos assim frequentemente expõem a pessoa uma situação dramática: tem de sobreviver com retorno ao trabalho, apesar de estar sem condições adequadas de saúde; ou terá de apelar para a caridade alheia ou, o que é ainda mais grave, da mendicância. Se laudos médicos sérios são apresentados pelo titular do benefício previdenciário para embasar, por exemplo, a condição de incapacidade para o trabalho, e se todos os demais requisitos legais para obtenção da prestação previdenciária devida estão cumpridos, então embaraços administrativos são injustificados sempre que o INSS recusa a prestação devida. A prestação previdenciária se refere ao ― direito de não depender da misericórdia ou auxílio de outrem‖ (SAVARIS, 2011a, p. 60) e aquele que, tendo direito ao benefício previdenciário, não o recebe ou o tem cessado de forma indevida, vindo a depender da misericórdia dos outros para sobreviver, sofre uma ofensa irreparável à dignidade de sua condição de pessoa humana. Na condição de núcleo essencial dos direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana deve ser sobreprotegida pelo sistema jurídico. Se os direitos fundamentais visam resguardá-la, qualquer embaraço injustificável a exercício de um direito fundamental é também uma ofensa desarrazoada à eficácia dos bens jurídicos mais importantes da ordem jurídica e, portanto, inadmissível em direito (SAVARIS, 2011a, pp. 264-266). A dignidade da pessoa humana, em sua dupla dimensão, 4 Ver, TRF2, AC 422880 2007.51.51003972-1 DJ 18/02/2009; TRF4 AC 2000.70.06.000998-8, D.E. 23/06/2008. 5 Ver, TRF4, APELREEX 5008427-06.2011.404.7003. 191 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II ontológica e relacional (SARLET 2009, p. 25), é elemento inerente do conteúdo do direito fundamental previdenciário, sem o qual esse direito se desnatura. É o que permite ao titular do direito a satisfação daquele interesse que o referido direito tem o condão de satisfazer (SAVARIS, 2011a, pp. 264-266). Uma vez esvaziado esse conteúdo essencial do direito previdenciário, não será possível qualquer forma de restauração do status quo ante. Com base nisso, sustenta-se que qualquer restrição à eficácia de um direito fundamental previdenciário jamais poderá ultrapassar essa linha, isto é, a do limite imposto pela dignidade da pessoa humana, pois sem a devida proteção da dignidade, o dano torna-se irreparável e a ordem jurídica compromete a sua legitimidade (SARLET, 2011 a, p. 108-109). Esta perspectiva permite a compreender que o direito previdenciário – como qualquer outro direito fundamental - deve ser protegido das arbitrariedades que afetam seu exercício regular. Só assim esse direito pode cumprir seu papel de instrumento da concretização, efetivação, da dignidade da pessoa humana. Mantido o núcleo, promovido seu conteúdo mínimo (vital e existencial), estará preservada a vida e existência da pessoa, quando afetada por um infortúnio que lhe impeça de garantir a sobrevivência própria, e dos seus, por sua força de trabalho. Nesse contexto é que as prestações previdenciárias se mostram como pressupostos do direito de existir condignamente, livre de adversidades desumanas. A liberdade real só pode ser exercida pela pessoa com recursos mínimos para sobreviver, planejar sua vida e dela fazer algo valioso. Se a liberdade física, traduzida no direito de ir e vir, é vista como uma inegociável expressão da dignidade humana, da mesma forma a liberdade real, em oposição à liberdade formal, deve ser pensada como um direito inalienável do ser humano, o direito de ir e vir, e viver. De que liberdade se fala afinal quando o indivíduo é cercado pela destituição, subnutrição e apenas com esforço extraordinário consegue ―v ender sua força de trabalho‖ para prover seu sustento imediato? (SAVARIS, 2011 a, p. 88). E nesta seara Wania Campos (CAMPOS, 2011, p. 70) destaca que os embaraços injustificados que impedirem o segurado, ou o dependente deste, de receber o benefício a que faz jus, configuram lesão à necessidade de alimentos e agressão à órbita psicológica e psíquica, pois afetam justamente as necessidades vitais básicas da pessoa. Assim, os embaraços administrativos injustificados relativos ao recebimento das parcelas dos benefícios previdenciários constituem-se num tormento a mais (CAMPOS, 192 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II 2011, p. 79), o que atenta contra a razoabilidade e, portanto, contra a própria ideia de exercício regular de um direito. Essa questão dos efeitos da privação injusta das prestações previdenciárias sobre a vida do segurado e de sua família é amplamente referida pela doutrina previdenciária: são sobretudo, efeitos de natureza psicológica, ligados à segurança econômica e à estabilidade pessoal proporcionadas pela segurança social, susceptíveis de evitar a angústia de um futuro incerto, quando os efeitos danosos dos riscos sociais atingem as pessoas, por vezes com particular violência (SAVARIS, 2011a, p. 293). Contudo não é somente neste sentido, de um sentimento de pesar, de injustiça ou inferiorização pelo desprezo da sociedade, não é apenas neste campo das emoções que o dano moral previdenciário deve ser concebido. Estes sentimentos são consequências da lesão, e podem se manifestar, como frequentemente ocorre, ou não, o que não é raro. É que, o titular de direitos previdenciários tem algumas singularidades: ele nem sempre, por sua condição social pessoal, que teve seu pedido recusado por embaraços injustificados, tem entendimento da natureza da lesão que sofreu, porque sequer sabe quais são e qual é a extensão de seus direitos. O dano moral é justamente aquele que não pode ser medido porque atinge o núcleo do direito fundamental, o elemento básico e inerente à pessoa, a substância da dignidade. Nesse contexto, impedimentos arbitrários ao recebimento das prestações previdenciárias devidas que afetarem a possibilidade de manutenção da vida digna, afetam a capacidade de autodeterminação da pessoa e a sua existência condigna com os demais, causando, pelo menos, dois tipos claros de danos: por um lado o dano patrimonial, visto que em casos assim sempre haverá privação de bens materiais vitais; e por outro o dano moral, visto que regularmente haverá ofensa à dignidade da pessoa, resultante da afetação de vários bens jurídicos fundamentais, tais como a vida, a saúde, a integridade física, a liberdade, o acesso ao mínimo existencial. Esses bens jurídicos fundamentais são afetados direta ou indiretamente, pelos embaraços administrativos injustificados. Nesse contexto há diversas possibilidades de ofensa à dignidade da pessoa por vícios na concessão e manutenção do benefício previdenciário. Ao se tratar da análise do direito concernente às prestações previdenciárias, há que se ter em mente que, não se está tratando de ciência exata, e nesse caso é indispensável considerar que ― a verdade a ser alcançada deverá ter o homem e sua contingência de destituição e de ameaça à 193 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II sobrevivência como referência primeira.‖(SAVARIS, 2011a, 47) Então, tendo em primeiro plano tais aspectos é que se verifica a peculiaridade de cada caso a fim de verificar se o núcleo do direito fundamental em questão, foi atingido, e a possibilidade de se considerar o dano moral como caminho que garanta o não desprezo por essa lesão. O ponto de partida da análise pode ser a fórmula proposta por Ingo Sarlet (SARLET 2009, p. 34), para quem a dignidade da pessoa humana pode ser considerada atingida sempre que a pessoa é tratada como coisa, objeto, mero instrumento, descaracterizada como pessoa enquanto sujeito de direitos. Sendo então a qualidade de sujeito de direitos menosprezada, também restará configurada lesão à dignidade da pessoa humana. Ingo Sarlet observa que apesar de essa fórmula não representar solução para todos os casos, representa um modo inicial de identificar, no caso concreto, se houve ou não agressão à dignidade da pessoa humana (SARLET, 2011a, p.103) A ciência dogmática dos direitos fundamentais já assentou que a verificação de uma lesão à dignidade humana pode ocorrer pela análise do objetivo da conduta, que tem dois rumos possíveis: (1)a intenção de coisificar a pessoa, tal como acima descrito (SARLET, 2011b, p. 63), ou — e isso é o que mais importa no contexto dos direitos sociais prestacionais — (2) o desprezo por sua condição de titular de direitos subjetivos. O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio de injustiças. A concepção do homem-objeto, como visto, constitui justamente a antítese da noção da dignidade da pessoa humana (SARLET, 2009, p. 35). O que é transparente é que a dogmática jurídica da atualidade, sobretudo a especializada no tema da proteção da dignidade da pessoa humana, não concebe a manutenção da pessoa num quadro de exclusão social, sobretudo num quadro de arbitrário de exclusão (STRAPAZZON 2011, 52). Neste sentido a posição de Sarlet: A pobreza configura violação da dignidade da pessoa humana sempre que ela implica em exclusão e déficit efetivo da autodeterminação. Isso se verifica ― sempre que as pessoas são forçadas a viverem na pobreza e na exclusão, em função de decisões tomadas por outras pessoas no âmbito dos processos políticos, sociais e econômicos‖ (SARLET, 2011b, p. 113) 194 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Esse é, precisamente, o cenário que decorre do arbitrário indeferimento do benefício previdenciário, ou da sua arbitrária cessação/cancelamento. Negar arbitrariamente ao titular de um direito fundamental subjetivo os recursos necessários para que viva condignamente, tal como o benefício que lhe socorra quando não tem mais condições de prover o sustento, corresponde, in concreto, a expô-lo a grave risco de morte por inanição (SARLET, 2011a, p. 348), de viver em condições de miséria ou de depender, de modo humilhante, da caridade alheia. A lesão ao direito fundamental, à realização da expectativa imperativa de ter uma vida digna (em sua dimensão vital e existencial mínimas), à característica da pessoa de ser sujeito de direitos, é facilmente verificada em tais situações. Normalmente os vícios que ferem o direito ao benefício previdenciário também atingem outros direitos fundamentais, tais como o fundamental direito à manutenção da vida, a liberdade, a saúde, integridade física, intensificando a lesão à dignidade da pessoa humana. Todos os direitos fundamentais visam cada um e todos, em interação, a Dignidade da Pessoa Humana. Não se isolam, mas se completam. A substância da dignidade da pessoa humana, além de compor o núcleo, compõe os capilares que unem os direitos fundamentais. Assim, se houver lesão à dignidade humana por lesão ao direito fundamental previdenciário, pode haver também a lesão a outros direitos fundamentais, afetando a dignidade – núcleo destes. É por isso que, no caso da injusta cessação, cancelamento ou indeferimento de benefício previdenciário por incapacidade, verifica-se também lesão à saúde e à integridade física, à liberdade, e à igualdade. E, como observa Sarlet, a dignidade da pessoa humana abrange a proteção da integridade física e corporal do indivíduo (SARLET, 2011a, p. 103), tal qual ocorre com a liberdade e com a igualdade. Essas são razões jurídicas bastante bem estabelecidas na dogmática dos direitos fundamentais e na jurisprudência dos direitos sociais, em âmbito nacional e internacional (LANGFORD, 2009; LANGFORD, 2009a). Então, quando sem condições de sustentar-se devido à incapacidade decorrente de doença, e sem receber a prestação do seguro que lhe deveria acudir em tal situação, o segurado regularmente é posto em situações econômicas muito desfavoráveis. E, se a causa desses eventos danosos forem decisões arbitrárias do Estado, está configurada a responsabilidade civil do Estado. É inegável que o sofrimento atinge a pessoa que passa pelo processo de dessocialização progressivo e enfrenta o medo quanto à subsistência. Afinal, como observa Christophe Dejours, psiquiatra e 195 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II psicanalista francês, especialista em psicologia do trabalho, ―ésabido que esse processo leva à doença mental ou física, pois ataca os alicerces da identidade‖ (SAVARIS, 2011b, p.303). O Conselho Federal de Medicina (CFM), na Resolução 1488/1998, expressou seu entendimento oficial, segundo o qual considera atentatório à dignidade da pessoa forçar alguém a trabalhar se estiver doente. O médico do trabalho, em casos de necessidade, deve recomendar o repouso, o acesso a terapias ou o afastamento de determinados agentes agressivos. Tudo isso faz parte das preocupações do CFM para assegurar uma relação harmônica e respeitosa entre atividade laboral e integridade física e moral dos trabalhadores. Retornar ao trabalho ou continuar as atividades,quando impera a necessidade de afastamento, por absoluta falta de opção pode agravar o quadro clinico do segurado; além do mais, em muitos casos de trabalhadores comissionados, repercute também na renda, pois é inegável que os resultados possíveis de serem alcançados por uma pessoa saudável e por uma pessoa incapaz são muito díspares. A economia da família é afetada. A segurança da continuidade do emprego também é atingida. Como se verifica, a negativa do direito ao benefício pode trazer consequências morais e materiais muito graves. Este panorama permite que se possa inferir de imediato que somente as prestações do benefício devido, se vierem a ser restabelecidas, ou concedidas, tardiamente, não podem recompor a dignidade da pessoa afetada por embaraços arbitrários. O dano à dignidade não pode mais ser desfeito em tais situações. A afetação da dignidade, enquanto bem jurídico nuclear dos direitos fundamentais e, de um modo especial, do direito ao benefício previdenciário, tem de ser apreciada nas demandas judiciais previdenciárias. Como se sustenta aqui, esses são casos em que é cabível a indenização por dano à moral e à personalidade do segurado. A partir disso, é necessário que o Poder Judiciário considere, na análise das impugnações que questionam a validade a atos administrativos que indeferem pedido de benefício previdenciário, ou que indevidamente o cancelam ou suspendem, tanto a natureza arbitrária do ato, quanto suas repercussões na esfera da dignidade da pessoa (em sua extensão mínima, ou seja, de mínimo vital e existencial). Esse é o meio correto de a jurisprudência aprimorar a proteção da dignidade da pessoa e da eficácia dos direitos sociais prestacionais. A compreensão refinada da extensão do dano permitirá avaliar a intensidade da agressão. 196 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Ademais, e inevitavelmente, outros direitos fundamentais estão diretamente ligados ao direito ao benefício previdenciário, tal qual o direito à vida, a saúde, a liberdade, a intimidade, por exemplo. A consideração da agressão através de um direito fundamental não exclui a causada pela lesão a outro direito fundamental. Isso significa que danos à dignidade da pessoa no âmbito previdenciário não dependam da existência de lesão a outros direitos fundamentais. Caso isso ocorra, é o grau da agressão que se agrava, não a natureza da agressão. Portanto, sempre que isso ocorrer, deve o Poder Judiciário levar em conta a extensão do dano e dosar, proporcionalmente, o quantum indenizatório. O dano, por isso, sempre deve ser avaliado caso a caso (ALEXY, 2008, p.295-296; SARLET, 2011b, p. 145), pois a precedência da dignidade da pessoa humana sempre é aferida na situação fática, da pessoa diretamente atingida. 3. EMBARAÇOS ADMINISTRATIVOS ARBITRÁRIOS Um exemplo de ato capaz de trazer dano à dignidade, resultando em dano moral, é a perícia equivocada. Aqui, é útil recorrer ao depoimento de um dos mais experientes previdenciaristas do Brasil: a prática diuturna mostra que, além da rapidez, da sumariedade e da singeleza dessas perícias, em alguns casos, são negados benefícios por julgar o perito estar o trabalhador apto e, noutras hipóteses, eles são concedidos para quem tem condições de trabalhar. (...).(MARTINEZ, 2009, p. 151). Outra possibilidade é a negativa de entregar o direito à pensão ou ao auxílio reclusão por não reconhecer a união estável ou a filiação. Esta situação além de cercear o acesso à verba alimentar, pode se apresentar como vexatória, comprometendo as relações sociais (CAMPOS, 2011, p. 150). Martinez (MARTINEZ, 2009, p. 130), menciona como fato possível de lesar a moral do segurado, a concessão tardia do benefício, a qual supera os 45 dias da entrega da documentação necessária ao INSS, pois tal conduta submete o segurado aos sofrimento e às necessidades. Frisa o autor que isso pode assumir maior dimensão a depender da situação concreta e do tempo que levar a implantação. 197 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A dignidade do segurado poderá ser atingida também pela falta de orientação da autarquia previdenciária em relação à melhor cobertura securitária cabível6. A entrega da prestação menos vantajosa resulta em prejuízo material ao segurado, que frequentemente o expõe a dificuldades pelas quais não precisaria passar. (MARTINEZ, 2009, p. 155) A recusa do protocolo de pedido além de ferir o direito à informação e à petição, pode submeter o segurado à agonia, à angústia, à decepção e ao não acesso ao órgão público (MARTINEZ, 2009, p. 140), privando-lhe da prestação a que faz jus. Estas situações e muitas outras que representem embaraços injustificados poderão causar não somente lesões matérias, como também ferir a dignidade do segurado. A análise sistêmica do caso concreto, máxime segundo interpretação que vise à preservação e promoção da dignidade da pessoa humana, é que possibilita a verificação ou não do dano moral. Apesar de já aparecer em julgados de vários Tribunais pátrios, esse tipo de dano moral ainda é tratado de forma tímida, não obstante a expressa proteção legal aos direitos fundamentais, à dignidade humana e a concepção dada a este valor maior. No Tribunal Regional da Segunda Região os danos morais se tornaram evidentes no julgamento da Apelação 200351010148011, devido ao cancelamento equivocado do benefício por suspeita de óbito do segurado. Também há condenações por dano moral no âmbito do direito previdenciário no Tribunal Regional da Quarta Região, como foi o caso da APELREEX 5003997-17.2011.404.7001. Neste julgado o INSS foi condenado a pagar danos morais ao segurado por ter cessado indevidamente seu benefício de aposentadoria. Este Tribunal, no APELREEX 5008427-06.2011.404.7003, também considerou devida indenização por dano moral porque a autarquia não apreciou o pedido de um dependente num processo de obtenção de pensão por morte: PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. DEPENDENTE FILHO MENOR DE 21 ANOS. BENEFÍCIO DEFERIDO À COMPANHEIRA QUE FORMULOU CONJUTAMENTE COM O AUTOR REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. CONCESSÃO A CONTAR DA DATA DO ÓBITO. DANOS MORAIS EM FUNÇÃO DO EQUÍVOCO ADMINISTRATIVO CONSISTENTE EM DESCONSIDERAR O PEDIDO DO AUTOR. 1. A concessão do benefício de pensão por morte depende da ocorrência do evento morte, da demonstração da qualidade de 6 Ver Enunciado CRPS nº 5 e o Prejulgado 1 da Portaria MTPS nº 3.286/73. 198 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II segurado do de cujus e da condição de dependente de quem objetiva a pensão. 2. É presumida a condição de dependência do autor, filho do exsegurado e menor de 21 anos. 3. Preenchidos todos os requisitos, o demandante faz jus à cota parte da pensão inicialmente deferida apenas à companheira do instituidor, a qual formulou pedido administrativo na mesma ocasião em que o autor, com termo inicial fixado na DIB (data do óbito). 4. O dano moral restou caracterizado pela omissão da autarquia consistente em não apreciar o pedido administrativo do autor, presente o nexo de causalidade entre a indevida inércia do serviço público e o abalo psíquico vivenciado, e mantendo-se o valor da indenização de forma adequada fixado pelo juízo a quo. (TRF4, APELREEX 5008427-06.2011.404.7003, Quinta Turma, Relatora p/ Acórdão Maria Isabel Pezzi Klein, D.E. 06/02/2013) A despeito da evolução desses valores na ordem nacional e internacional, tudo leva a crer que as medidas adotadas até aqui não têm alcançado efetividade. Infelizmente, como bem descreve Ingo Sarlet, mesmo no âmbito dos direitos de primeira dimensão a efetivação está longe de ser considerada satisfatória, ― a vida, a dignidade da pessoa humana, liberdades mais fundamentais continuam sendo espezinhadas, mesmo que disponhamos, ao menos no direito pátrio, de todo um arcabouço de instrumentos jurídico-processuais e garantias constitucionais.‖(SARLET, 2011a, p.55). Deste modo a ação de danos morais na esfera do direito a benefício previdenciário pode ser admitida como decorrente de uma nova forma de proteção da dignidade da pessoa humana, necessária a resguardá-la e restaurá-la dos embaraços administrativos ligados à concessão ou à manutenção de benefícios, os quais expõem o segurado injustamente à situação ainda mais gravosa dada a contingência que enfrenta. 4. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO As lesões no âmbito do direito previdenciário tem a particularidade de serem causadas pelo Estado. Isso revela uma inaceitável contradição com a visão contemporânea de Estado Constitucional e democracia. É preciso estar atento para o ― direito por princípios‖ do estado constitucional contemporâneo; e essa mudança estrutural do direito tem que comportar, necessariamente, conseqüências muito sérias também para a jurisdição (ZAGREBELSKY, 2007, p. 112). Kloepfer (KLOEPFER, 2009, p. 163) considera, por isso, especialmente cruel a lesão ocorrida quando o Estado 199 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II fere seus deveres de proteção decorrentes dos direitos fundamentais, como no caso da instituição pública que deixa de seguir as prescrições procedimentais que o Estado elegeu para colocar em prática seu dever de proteção à vida e à intangibilidade física. No âmbito previdenciário, a especial crueldade de que fala Kloepfer é bem saliente. Não se pode esquecer que as relações jurídicas previdenciárias são marcadas por contrastante disparidade de forças entre as partes envolvidas numa relação de direitos e deveres (MARTINEZ, 2009, p. 29). Num dos pólos, estão os ― frágeis, desinformados e desamparados cidadãos buscando meios de subsistência‖ (MARTINEZ, 2009, p. 23), e no outro o INSS, gestor da previdência social, entidade pública, Estado em sentido amplo, e que assim, dispõe de todas as informações hábeis a conduzir à concessão da prestação pretendida (SAVARIS, 2011a, p. 65). no mais comum dos casos os beneficiários da seguridade social são pessoas humildes, hipossuficientes culturalmente, sem noção de cidadania e dos seus direitos, que aceitam de cabeça baixa imposições descabidas, recusas indevidas, humilhações desnecessárias (MARTINEZ, 2009, p. 69). Como se vê, até mesmo a doutrina reconhece que os destinatários da proteção previdenciária não tem sequer consciência do tipo de lesão que estão sofrendo. Logo por isso é que o litígio com o INSS se torna um grande pesadelo; nem o direito de reparação advinda da afronta patrimonial, nem da compensação pela agressão moral são devidamente compreendidos como direitos subjetivos desses titulares. Os danos, de um modo geral, são suportados pelos segurados, até mesmo porque o órgão que detém o dever de zelar pelo seguro social goza de uma presunção de competência técnica que o segurado hesita em questionar. Nesse contexto destaca-se a máxima da proibição de proteção insuficiente como um dever do Estado para com a eficácia dos direitos sociais prestacionais. Assume particular ênfase no plano da dimensão positiva dos direitos fundamentais (SARLET, 2011a, p. 358). A administração não pode esquivar-se de seu papel central de sustentação do sistema. (...) Também é sua responsabilidade gerar uma rede público-privada que confira respostas às necessidades da sociedade como um todo. (...) Uma vez engendradas as políticas públicas voltadas à promoção dos direitos fundamentais – sobretudo daqueles de caráter social -, é por intermédio do exercício da função administrativa que o Estado irá efetivar tal direito. (OLIVEIRA, 2007. p. 324-325) 200 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Como os objetivos gerais da República estabelecidos no Art. 3o. do texto constitucional do Brasil indicam que Estado e sociedade devem estar orientados por: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduziras desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação as funções estatais legitimam-se como instrumento de realização e tutela da dignidade da pessoa humana. Isso vai pautar a função administrativa, a qual deve ser desempenhada de forma que as decisões tomadas efetivem aquele ideal constitucional (OLIVEIRA, 2007,pp. 324-325). Desta forma a pessoa lesada pelas arbitrárias ações ou omissões que lhe oneraram física, moral ou pecuniariamente, ficam, ipso facto, investidos de poderes para defesa dos interesses violados. Eis que compete ao Direito preservar a integridade moral e patrimonial das pessoas em sua busca incessante por uma vida feliz (BITTAR, 1998, p.15), o que só é possível ante a concretização da dignidade. Como bem salienta Goldschmidt, a vida e a dignidade humana são direitos da personalidade e assim, ante a lesão ou ameaça de lesão pode-se promover medidas para que cesse a lesão ou a ameaça, sem prejuízo ainda a outras sanções (GOLDSCHMIDT, 2010, p. 213). A responsabilidade do Estado por danos causados por embaraços arbitrários ao exercício de direitos subjetivos previdenciários, é hipótese formalmente estabelecida no direito brasileiro. Seu fundamento constitucional é a previsão do artigo 37§ 6º da Constituição da República de 1988, segundo o qual o Estado responde objetivamente pelos atos de seus agentes que, nessa qualidade, causem danos, materiais ou morais, a terceiros, seja por ação ou omissão. A disposição constitucional é repetida no estatuto básico das relações privadas (Art. 43 do Código Civil) e a reparação civil vem no artigo 186 e 927 do mesmo Código. O Estado deverá reparar ou indenizar o prejuízo, e poderá acionar o seu agente de forma regressiva. Responsabilizar a União por ofensa à dignidade da pessoa humana no âmbito do direito a benefício previdenciário, inclusive, é medida que tem respaldo no reconhecido ― objetivo de viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis dignos de subsistência‖, reconhecido pela Emenda Constitucional 67/2010, que instituiu o Art. 79 do ADCT e criou o Fundo de Combate e erradicação da pobreza; mas além disso a indenização por danos morais se respalda na Carta Constitucional em outros dispositivos, em especial nos seguintes: Art. 1o, III: que reconhece que a dignidade da pessoa humana é o 201 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II fundamento de validade da ordem republicana do Brasil; Art. 3o. I: que fixa o objetivo de construção de uma sociedade justa; e no inciso IV, que veda qualquer forma de preconceito neste país, dado que existe para proteger o bem de todos; Art. 4o. II, na prevalência dos direitos humanos; e o pouco discutido Art. 85, III, que define a conduta presidencial atentatória contra direitos sociais como crime de responsabilidade. A responsabilidade objetiva do Estado vincula-se ao risco administrativo. Para que haja responsabilidade é necessário que se demonstre a conduta do ente público, negativa ou positiva, seja de omissão ou ação; o dano e o nexo causal entre tais elementos. Além disso, é preciso que não haja excludente, representada por fato/culpa da vítima ou de terceiro, caso fortuito ou força maior. Mas o resultado do efeito preventivo e educativo, no caso do reconhecimento do dano moral tende a ser até superior ao resultado reparador/compensador porque o reconhecimento dos danos morais tem um papel social de desestimular futuras ofensas (MARTINEZ, 2009, p. 63). Nessa senda a doutrina destaca a elevada importância da ação regressiva como meio de efetivação desse caráter preventivo da responsabilização objetiva do Estado por danos morais, sem o que as condutas individuais ilícitas e arbitrárias se repetirão. a compensação em favor dos titulares do direito subjetivo violado, sistematicamente empreendida em relação ao culpado da ação, com alguma certeza produzirá o desaparecimento ou a minoração dessas causas determinantes (MARTINEZ, 2009, p. 63). Frisa-se que não se pode confundir a ação de reparação de danos morais atinente ao vício na concessão ou manutenção de benefício previdenciário com a ação relativa à obtenção ou restabelecimento do mesmo. As prestações visam acudir a pessoa quando submetida a uma contingência. Os danos morais derivam da lesão à dignidade, advinda do vício na concessão ou na manutenção do benefício. São de naturezas distintas (CAMPOS, 2011, p. 131). O dano em si é prejuízo, isto é afetação do ser humano. O dano moral agride a pessoa ou os seus bens, ainda no âmbito da individualidade, no que ela tem de mais relevante, a sua personalidade (MARTINEZ, 2009, p. 27). A indenização pelo dano moral no âmbito do direito ao benefício previdenciário buscará confortar as lesões à dignidade, concebidas como as lesões à capacidade de autodeterminação. Obviamente que não significa, como se tem insistido neste trabalho, a eliminação do prejuízo ou suas consequências, mesmo porque isso não é possível 202 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II (CAHALI, 2000, p.42). Também, cumprirá com o papel preventivo ao servir de desestímulo à repetição da ação ou omissão lesiva, desempenhando uma função de importância social, inibindo a repetição da conduta lesiva, incentivando a eficiência devida ao órgão previdenciário público existente num país cuja totalidade dos objetivos se guia pelo fundamento da dignidade da pessoa humana, tendo portanto a mesma, o dever e a finalidade de promovê-la 5. QUANTUM INDENIZATÓRIO: PRESSUPOSTOS DE UM CÁLCULO JUSTO Como ocorre em todos os temas implicados com a responsabilidade civil do Estado, também aqui nas relações jurídicas previdenciárias é grande a dificuldade para quantificar proporcionalmente a dor causada por embaraços administrativos arbitrários violadores do direito fundamental à prestação securitária. Todavia, na concessão de benefício previdenciário há contingências muito particulares, tais como a idade avançada, a doença, as atividades profissionais que prejudicam a saúde, o longo tempo de contribuição exigido, somados a fatores de especial agravamento de sofrimento, tais como o dever de cuidar dos filhos, a gestação, a adoção, acidentes morte, reclusão. Todas essas particularidades do sistema de direitos previdenciários ainda se deparam com os limites administrativos e financeiros da administração pública (reserva do possível). Logo se vê a complexidade do cenário que se antepõe à dosimetria do quantum indenizatório. Todavia, diferente das relações civis entre iguais, os danos causados pelo Estado, por atos arbitrários de indeferimento, decorrem de uma relação evidentemente desigual, pois se trata de uma relação entre a pessoa política soberana vs. o hipossuficiente. Ou seja, o poder soberano vs. o não poder. O quantum indenizatório, em casos como esse, não pode ser dimensionado segundo os critérios convencionais da responsabilidade civil a ponto de não se dar o devido peso à fundamentalidade dos bens jurídicos implicados e a assimetria colossal existente entre os titulares da relação jurídica (segurado vs. Estado); nem pode aviltar a situação sofrida e o valer o risco da conduta, mas também não poderá inviabilizar o ofensor. Porém, estas dificuldades não podem impedir a fixação do valor indenizatório (CAMPOS, 2011, p. 119). 203 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II É preciso considerar que o ato ilícito que causou o dano à dignidade não é bastante em si mesmo. Normalmente representa o agravamento de uma situação em que o segurado e dependente já se encontra debilitado física ou psicologicamente, por vezes das duas formas. Logo, constituindo uma causa de aumento de um problema já existente, deve impor uma reparação de certa monta que supere os prejuízos materiais e morais do ofendido e evite a repetição do ato lesivo por parte do ofensor (CAMPOS, 2011, p. 119). O segurado do Regime Geral de Previdência Social que sofrer lesão à moral, no âmbito do seu direito de obter benefício previdenciário tem direito a buscar a reparação dos danos junto ao Judiciário. Esse direito a ser reparado encontra base na dignidade da pessoa humana (MARTINEZ, 2009, p. 127). O critério hermenêutico da proteção preferencial da dignidade da pessoa humana impõe ao Judiciário mais do que a interpretação conforme a Constituição e os direitos fundamentais, mas que esteja presente o imperativo segundo o qual a única interpretação conforme a Constituição é a que sobreprotege (ALEXY 2008, pp. 300-301) a dignidade das pessoas e, portanto, os seus direitos fundamentais(PIEROTH; SCHILINK 2012, p. 71). Então, a interpretação dos danos decorrentes de lesões ao direito previdenciário não pode restringir-se à mera subsunção à lei. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS O direito previdenciário é um direito fundamental social. As prestações de caráter alimentar existem para garantir a vida digna dos seus titulares, quando afetado por uma das hipóteses fáticas estabelecidas no texto constitucional. Neste papel, tal qual os demais direitos fundamentais, o direito previdenciário resguarda e promove a dignidade da pessoa humana. Contudo, frequentemente o titular dos direitos fundamentais a prestações previdenciárias é frustrado em suas expectativas imperativas devido a embaraços administrativos injustificáveis, que impedem o acesso ou a manutenção das prestações. Pela peculiaridade do direito previdenciário, tais embaraços podem afetar a possibilidade de manutenção da vida digna, causando, pelo menos, dois tipos claros de danos: por um lado o dano patrimonial, visto que em casos assim sempre haverá privação de bens materiais vitais; e por outro o dano moral, pela ofensa à dignidade da 204 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II pessoa, resultante da afetação de vários bens jurídicos fundamentais, tais como a vida, a saúde, a integridade física, a liberdade, o acesso ao mínimo existencial. Este trabalho evidenciou que embaraços administrativos injustificáveis relativos à entrega ou manutenção das prestações previdenciárias violam o direito de acesso ao mínimo vital e ao mínimo existencial. Atos assim, porque lesivos à dignidade da pessoa humana, são atos inconstitucionais. Há que se considerar que a dignidade humana é elemento moral nuclear do sistema dos supremos valores constitucionais do Brasil e bem jurídico que fundamenta a validade de todo o sistema brasileiro de direitos humanos e fundamentais. Assim, considerando um valor de tal importância, tem-se que as prestações pagas a destempo, mesmo que corrigidas monetariamente, se mostram como uma forma de proteção insuficiente à dignidade da pessoa humana. A indenização por danos morais, nesse contexto, se mostra como um instrumento válido e indispensável no caminho que percorre a eficácia protetiva dos direitos sociais previdenciários, com vistas à adequada proteção. Por isso a afetação da dignidade, enquanto bem jurídico nuclear dos direitos fundamentais e, de um modo especial, do direito previdenciário, tem de ser apreciada nas demandas judiciais previdenciárias. Esse é o meio correto de a jurisprudência aprimorar a proteção da dignidade da pessoa e da eficácia dos direitos sociais prestacionais, uma vez que o critério hermenêutico da proteção preferencial da dignidade da pessoa humana impõe ao Judiciário que a única interpretação conforme a Constituição é a que sobreprotege (ALEXY 2008, pp. 300-301) a dignidade das pessoas e, portanto, os seus direitos fundamentais (PIEROTH; SCHILINK 2012, p. 71). Nesse contexto a responsabilização do Estado por danos morais decorrentes de violação à dignidade da pessoa humana no âmbito do direito a prestações previdenciárias, nas circunstâncias de comprovado embaraço administrativo injustificado, é meio juridicamente adequado à reparação parcial e à prevenção de danos à dignidade da pessoa humana. 7 REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgilio A. Silva, São Paulo: Malheiros, 2008. 205 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II BITTAR. 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Madrid: Trotta, 2007. 207 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PRIVADA: REQUISITOS EXIGIDOS AO MUNICÍPIO PARA LEGITIMAR A ADOÇÃO DAS ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS NO TEMPO SOCIAL ROLE OF PRIVATE PROPERTY: DETAILS REQUIRED TO MUNICIPALITY TO LEGITIMIZE THE PROGRESSIVE RATES ADOPTION OF THE TIME Hertha Urquiza Baracho * Sulamita Escorião da Nobrega** RESUMO: O texto versa sobre o papel do Estado Democrático de Direito na busca pelo desenvolvimento e reflete sobre a concretização do princípio da função social da propriedade através da progressividade do IPTU. Analisa a atividade interventora do Estado na economia através da tributação e a influência do sistema tributário na promoção do desenvolvimento. Permite visualizar a função extrafiscal da tributação e verificar o entendimento da doutrina acerca do tema, sobretudo quando a função interventora do Estado se efetua no sentido de desestimular determinado comportamento aumentando a alíquota do tributo incidente sobre ele. A tributação, quando utilizada para fins extrafiscais, se revela como uma via indireta de atuação do Estado hábil à efetivação dos princípios constitucionais e garantidora do cumprimento da função social da propriedade. Palavras-chave: função social; desenvolvimento; tributos. ABSTRACT: This paper analyzes the role of the democratic rule of law in the pursuit of development and reflects on the implementation of the principle of the social function of property through the progressivity of taxes. Analyzes activity intervening in the economy through taxation and the influence of the tax system in promoting development. Lets you view the role of taxation “extrafiscal” and check for understanding of the doctrine on the subject, especially when the function interventionist state takes place in order to discourage certain behavior by increasing the rate of tax on it. The taxation when used for purposes “extrafiscal”, is revealed as an indirect way of skillful performance of the State to effect the constitutional principles and guaranteeing the fulfillment of the social function of property. Keywords: social function; development; taxes. *Doutora em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade de São Paulo-PUC. Professora Associada III da Universidade Federal da Paraíba e Professora Titular do Centro Universitário de João Pessoa-UNIPÊ. Coordenadora do grupo de pesquisa: Constituição, propriedade, desenvolvimento e cidadania ambiental perante o núcleo de Pesquisa do UNIPÊ. **Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino(UMSA) Buenos Aires. Professora Assistente do Centro Universitário de João Pessoa/PB. Advogada. Membro do grupo de pesquisa: Constituição, propriedade, desenvolvimento e cidadania ambiental perante o Núcleo de Pesquisa do UNIPÊ. 208 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II 1. Introdução O artigo aborda o papel do Estado Democrático de Direito na busca pelo desenvolvimento e reflete sobre a concretização do princípio da função social da propriedade através da progressividade do IPTU. Analisa a atividade interventora do Estado na economia através da tributação e a influência do sistema tributário na promoção do desenvolvimento. O tributo além de ser uma forma de arrecadar receita para o Estado é também um meio de estimular ou desestimular condutas econômicas praticadas por agentes sociais, através da tributação extrafiscal do Estado. Esta pesquisa pretende responder às seguintes indagações: A progressividade do IPTU viabiliza o cumprimento da função social da propriedade? E quais os requisitos necessários para legitimar a adoção da progressividade do IPTU no tempo? O texto é relevante porque permite visualizar a função extrafiscal da tributação e verificar o entendimento da doutrina acerca do tema, sobretudo quando a função interventora do Estado se efetua no sentido de desestimular determinado comportamento aumentando a alíquota do tributo incidente sobre ele. Salienta-se que o método de abordagem escolhido para elaboração dessa investigação foi o método dedutivo, iniciando-se pelo estudo da Constituição, desenvolvimento, propriedade e função social, até a investigação da progressividade do IPTU e dos requisitos exigidos do Município para legitimar a adoção das alíquotas progressivas no tempo. Quanto à técnica de pesquisa para a coleta de dados, utilizou-se basicamente a pesquisa bibliográfica. 2. Constituição, propriedade, função social e desenvolvimento. Com o fim do constitucionalismo liberal, que afasta o Estado da atividade econômica e entende a propriedade como um direito individual e um bem absoluto, surge o constitucionalismo social. As Constituições Sociais ou Econômicas elaboradas no Final da Primeira Guerra Mundial marcam essa nova fase de constitucionalismo. As Constituições sociais assim como as liberais possuem a declaração dos direitos individuais, mas as constituições sociais vão mais além, dispõem sobre os direitos sociais, econômicos e culturais. 209 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A primeira Constituição Social ou Econômica foi a do México, de 1917, seguida da Constituição de Weimar de 1919. A primeira dispõe, no art. 27, que “ A Nação terá, a todo tempo, o direito de impor à propriedade privada as determinações ditadas pelo interesse público”. Enquanto esta última, no art.153 afirma que „„A propriedade obriga e o seu uso e exercício devem ao mesmo tempo representar uma função no interesse social”. No Brasil, a primeira Constituição Social ou Econômica foi a de 1934. É a partir desse momento que o direito de propriedade abandona a concepção romanística clássica e passa a ter finalidades sociais, coletivas. A noção de função social já estava presente implicitamente. A função social da propriedade só apareceu como um dos princípios da ordem econômica e social de forma explícita na Constituição Federal de 1967, art. 157. “Art. 157. A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: (...) III- função social”. A Constituição Federal de 1988 manteve a propriedade e sua função social como um dos princípios conformadores da ordem econômica. A propriedade é tratada na Constituição atual no art. 5º (incisos XXII, XXIII) como direito fundamental e no art. 170, II e III, como princípio da ordem econômica, isso quer dizer que o constituinte relativizou o conceito de propriedade ao condicioná-la à função social e ao submetê-la à existência digna e à justiça social. Oportuno realçar que a Constituição Federal refere-se a várias espécies de propriedade, tanto que os autores falam em “propriedades”, e diversos são os seus regimes em relação à sua função social. Da mesma forma, pode-se afirmar que não há uma única função social, mas diversas funções sociais que variam de acordo com a natureza da propriedade. No dizer de Silva, “onde ser cabível não falar em propriedade, mas em propriedades”. Na Constituição Federal de 1988 várias são as espécies de propriedade: propriedade autoral; propriedade de inventos; propriedade dos bens de família; propriedade dos bens de produção; propriedade dos recursos minerais; propriedade urbana; propriedade rural. Para Silva (2010, p.123) a função social é integrante do conceito de propriedade e a mesma só existe se e enquanto realiza a sua função social. Comunga com o pensamento de Pedro Escribano Collado: no entendimento de que a função social “introduziu, na esfera interna do direito de propriedade, um interesse que pode não coincidir com o do proprietário e que, em todo caso, é estranho ao mesmo”. 210 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Grau (2007, p.346) entende que a ideia de função social dá à propriedade um conteúdo específico, de sorte a moldar-lhe um novo conceito. Para ele a propriedade dotada de função social justifica-se pelos seus fins, seus serviços e sua função, sendo esta última a sua base de legitimação. A Constituição Federal brasileira de 1988 é uma Constituição Dirigente e Desenvolvimentista. É dirigente porque é repleta de normas „‟programáticas, sociais ou econômicas” (Bercovici, 2005). E é desenvolvimentista porque é extremamente minuciosa em relação a implantação de um desenvolvimento sustentável. Proporciona a diferença entre desenvolvimento e crescimento econômico diferentemente das Constituições da década de 60, época em que não se fazia essa distinção e como consequência tinha-se o desenvolvimento excludente. Necessário realçar que a Constituição econômica brasileira não é parte isolada dentro da Constituição total, e que deve ser interpretada em seu todo e nunca em tiras, como leciona Grau. (2007, p.166) E que a Constituição econômica atual não se restringe apenas aos Princípios Gerais da Ordem Econômica, art.170, mas está presente em toda a Constituição. Já no Preâmbulo da Constituição Federal de 1988 constata-se que o desenvolvimento é um dos fins do Estado Democrático brasileiro. Entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, está no art. 3°, II, a busca pelo desenvolvimento nacional. Os incisos I, III e IV do mesmo artigo também preconizam o desenvolvimento quando dispõem sobre a erradicação da pobreza, das desigualdades e da promoção do bem de todos. Para Celso Furtado (2008, p. 83), o desenvolvimento é um processo cultural e histórico, cuja dinâmica se apoia na inovação técnica posta a serviço de um sistema de dominação social. Celso Furtado (2004, p.484) distingue crescimento e desenvolvimento: O crescimento econômico, tal qual o conhecemos, vem se fundando na preservação do privilégio das elites que satisfazem o seu afã de modernização; já o desenvolvimento se caracteriza pelo projeto social subjacente. Dispor de recursos para investir está longe de ser condição suficiente para preparar um melhor futuro para a massa da população. Mas quando o projeto social prioriza a efetiva melhoria das condições de vida da população, o crescimento se metamorfoseia em desenvolvimento. 211 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II O Estado Democrático de Direito estabelecido em 1988 pela Constituição Federal busca o desenvolvimento, entre outros meios, através da tributação, que serve de instrumento de intervenção na sociedade, sobretudo no campo econômico e social, com o objetivo de concretizar as diretrizes constitucionais. O Estado, além de arrecadar tributos e aplicar os recursos arrecadados, estimula ou desestimula comportamentos, fenômeno denominado de extrafiscalidade. Enquanto a fiscalidade se refere à forma como o Estado arrecada tributos com o objetivo de obter recursos (receita) para realizar os seus fins, a extrafiscalidade arrecada tributos mas sua finalidade principal é alcançar resultados econômicos e sociais através da exigência fiscal. A tributação é um poderoso instrumento de concretização dos direitos fundamentais e de promoção do desenvolvimento. O Estado utiliza a tributação como instrumento de intervenção na sociedade, sobretudo no campo econômico e social, com o objetivo de concretizar as diretrizes previstas na Constituição. Nesse artigo interessa a propriedade urbana e o Imposto Territorial Urbano. 3. Contornos conceituais das funções dos tributos O Estado pode ser entendido como uma sociedade juridicamente instituída fincado nos elementos povo, território, soberania e finalidade. Pode-se afirmar que o último componente materializa-se no exato momento em que o Estado promove o bem comum, ou seja, possibilita a esse “povo” condições necessárias à vida em coletividade. Sabe-se que a satisfação das necessidades coletivas se viabiliza por meio do desenvolvimento de políticas públicas que, por sua vez, possuem um custo operacional considerável para implantação e manutenção. O meio do qual o Estado se vale para estruturar-se financeiramente denomina-se atividade financeira que pode ser compreendida como a busca de condições para que o Estado possa funcionar dentro de um planejamento estruturado. No entender de Guerra (2007, p.30), “o Estado deve criar meios de gerar recursos suficientes para cobrir os gastos com os serviços públicos e a sustentação da máquina administrativa”, haja vista que na ótica do mencionado autor, “o Estado não tem objetivo de enriquecer, mas tão somente, de arrecadar dinheiro na medida suficiente e necessária para realizar sua finalidade precípua” (2007, p.30). 212 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A constituição dos recursos que possibilitem o custeio das necessidades ocorre, em regra, através da obtenção dos ingressos públicos que adentram aos cofres via receitas patrimoniais, tributárias, creditícias etc. Hodiernamente, a tributação se revela como uma das principais vias, se não, a principal, de que o Estado moderno dispõe para formação de suas receitas públicas1. Doutrinariamente se classificam os tributos quanto a sua função – ou finalidade – como fiscais e extrafiscais. Um tributo possui finalidade ou função fiscal quando objetiva tão-somente dotar os cofres públicos de dinheiro para custeio das necessidades. O objetivo é meramente arrecadatório. Carvalho, ao discorrer acerca da finalidade fiscal da tributação, assim pondera: Fala-se, assim, em fiscalidade sempre que a organização jurídica do tributo denuncie que os objetivos que presidiram sua instituição, ou que governam certos aspectos da sua estrutura, estejam voltados ao fim exclusivo de abastecer os cofres públicos, sem que outros interesses – sociais, políticos ou econômicos – interfiram no direcionamento da atividade impositiva (CARVALHO 2009, p.254). Diferentemente da função fiscal ou arrecadatória, a tributação atinge a função extrafiscal quando é utilizada como instrumento de intervenção. No entender de Carvalho, a extrafiscalidade constitui-se “no emprego de fórmulas jurídico-tributárias para a obtenção de metas que prevalecem sobre os fins simplesmente arrecadatórios de recursos monetários” (2009, p.256). Assim, a face da extrafiscalidade tributária aparece na medida em que a exigência assume um papel indutor de condutas e se revela, conforme afirma Basso, como um “instrumento de desestímulo de comportamentos difusamente indesejáveis” (2010, p.224). Logo, o tributo é extrafiscal quando transcende o objetivo de ser mero veículo arrecadador. Quando destaca os principais critérios de classificação dos tributos, Ferreira Filho afirma que: tributo extrafiscal é aquele cuja finalidade não é a arrecadatória. Sua finalidade pode ser econômica – Ex.: alteração alíquota do IE (imposto sobre exportação) visando o controle da balança comercial – ou social – desestímulo à manutenção de propriedade improdutiva. Ex.: ITR (imposto territorial rural) ( FERREIRA FILHO e SILVA JÚNIOR, 2008, p.65). Ainda na perspectiva da extrafiscalidade, Buffon (2009, p. 227), esclarece que “[a] exação extrafiscal está direcionada a servir como meio de obtenção do bem comum, o qual deve ser entendido como a concretização dos objetivos constitucionalmente postos, via materialização dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais”. 1 Receita Pública é a entrada que, integrando-se ao patrimônio público sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo, vem acrescer o seu vulto, como elemento novo e positivo. (BALEEIRO, 2010, pág. 148). 213 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Torna-se oportuno o registro de que as finalidades da fiscalidade e da extrafiscalidade não são reciprocamente excludentes. Carvalho (2009, p.256) assegura que “os dois objetivos convivem, harmônicos, na mesma figura impositiva, sendo apenas lícito verificar que, por vezes, um predomina sobre o outro”. O mesmo pensamento é refletido no dizer de Basso e Reis (2012, p.40) ao afirmarem que “as finalidades fiscal e extrafiscal não se excluem reciprocamente, isto é, pode haver a presença das duas no mesmo instante, o que ocorre é a predominância de uma delas”. O IPTU é um exemplo de que essa premissa é verdadeira. Pode-se afirmar que, via de regra, esse imposto atende a função fiscal, ou seja, objetiva prover o Estado de receita pública. Entretanto, quando ele é utilizado como instrumento para desestimular o mau uso da propriedade urbana, nos termos no artigo 182 § 4º, II CF, vislumbra-se nitidamente sua face extrafiscal, que será detalhada em seguida. 4. Considerações acerca do IPTU no Sistema Tributário Nacional As regras gerais do tributo em discussão estão enumeradas nos artigos 32 a 34 do Código Tributário Nacional. São elas que balizam as leis locais criadoras do imposto, haja vista que para o exercício da competência tributária torna-se necessário que cada Município o institua através de uma Lei Municipal, desde que respeitado o princípio da legalidade tributária, podendo, entretanto, a instituição do imposto ser por meio de lei ordinária. O tributo em análise é da espécie imposto, por isso caracteriza-se como tributo não vinculado quanto a sua hipótese e de receita não afetada quanto ao destino de arrecadação. No que se refere à possibilidade de repercussão do encargo econômico-financeiro é imposto direto, uma vez que quem sofre o impacto do pagamento da exação é o próprio contribuinte; real porque incide sobre a coisa e não leva em consideração características pessoais de quem está pagando e em regra é predominantemente fiscal uma vez que se revela como uma importante fonte de receita para os diversos municípios brasileiros. Convém lembrar que possui função extrafiscal, na medida em que é utilizado como forma de desestimular a má utilização dos imóveis urbanos, e promove, deste modo, o princípio da função social da propriedade. O Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana – IPTU, sob o aspecto material, possui como hipótese de incidência a propriedade, o domínio útil ou a posse predial e territorial urbana. Ressaltando que a posse a que se refere o artigo 32 do CTN, é a posse que 214 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II pode conduzir ao domínio, ou seja, aquela que é exercida com o animus de definitividade2 e não a mera posse direta, decorrente do contrato de locação, por exemplo. Como se retira do texto Constitucional (art. 156, I, CF) o IPTU é de competência privativa dos Municípios. Todavia, com base na competência tributária cumulativa (art. 147 CF) pode também instituir o IPTU o Distrito Federal e a União no caso de ser criado um Território Federal e não estando este dividido em municípios. Assim, da análise do aspecto pessoal da regra matriz instituidora do imposto em questão retira-se que o sujeito ativo será o Município, o DF e na excepcional situação de criação de Território Federal, a União. Quanto à sujeição passiva, obriga-se ao pagamento do imposto toda e qualquer pessoa, física ou jurídica, que seja proprietária, titular do domínio útil ou detenha a posse imobiliária no espaço físico de uma área urbana, urbanizável ou de expansão urbana, nos exatos termos do artigo 32 parágrafos 1º e 2º do CTN, traduzindo-se desse modo a referida área como o aspecto espacial3 do tributo. Registre-se ainda que o elemento temporal que indica o momento de apuração do dever de pagar o imposto predial e territorial urbano é uma ficção jurídica definida na lei municipal instituidora do imposto e que, via de regra, as leis municipais que criam o IPTU indicam o primeiro dia de cada ano como a verificação da ocorrência do fato gerador. Em outro aspecto, o que importa para definição do contribuinte do IPTU é a pessoa que figurar na condição de proprietário naquele momento definido na lei (exemplo: dia primeiro de janeiro do ano X), independentemente da quantidade de transferências de titularidade que tenham ocorrido sobre imóvel no decorrer do ano. Sob a análise do último aspecto da regra matriz de incidência, o quantitativo, tem-se que esta possibilita saber a exata dimensão do quantum debeatur da obrigação tributária. O valor é encontrado através da seguinte equação: base de cálculo x alíquota. A base de cálculo para apuração do IPTU será o valor venal do imóvel, ou seja, o valor de mercado descoberto que se encontraria caso proceda à venda do bem, não importando para apuração dessa grandeza, conforme dispõe o parágrafo único do artigo 33 do CTN, o valor dos bens mantidos em caráter permanente ou temporário, no imóvel, para efeito de sua utilização, exploração, aformoseamento ou comodidade. 2 Para melhores esclarecimentos vide: REsp 1.205.250 – RJ.Rel Min. Luiz Fux e REsp 325.489 - Ministra Relatora Eliana Calmon. Apesar de corriqueiramente transferir ex contractu, no caso de locação de imóvel o ônus do pagamento do IPTU, não transforma o locatário em contribuinte do imposto. 3 Ainda sob o aspecto espacial do imposto em estudo vale o registro que por disposição do art. 15, Decreto-Lei 57/66, quando tratar-se de imóveis, mesmo que localizados em zona urbana, mas que se dedique a exploração extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou agroindustrial, o imposto devido será o ITR e não o IPTU. 215 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II No que se refere às alíquotas, impende registrar que no ordenamento jurídico pátrio não há definição do um patamar mínimo e máximo a serem observados. A lei municipal instituidora do imposto predial e territorial urbano é quem irá definir, respeitando obviamente os parâmetros constitucionais estabelecidos. No entender de Ferreira Filho e Silva Júnior (2008, p.564) “as alíquotas não podem atingir valores tais que representem a destruição do patrimônio do contribuinte”. 5. Definição de progressividade: O IPTU é imposto em que se observa a possibilidade da utilização de alíquotas progressivas, tanto de caráter fiscal como de caráter extrafiscal. Antes de se discutir o alcance da progressividade aplicada a esse imposto, se faz necessário, para fins de adequação didática do que se discute, que se entenda o que vem a ser progressividade4. Definição bastante esclarecedora é a trazida por Barreto (2009, p.250) quando assegura que “a progressividade opera-se pelo estabelecimento de alíquotas tanto maiores quanto forem os níveis de intensidade ou de grandeza de um específico fator ou aspecto tributário”. Ainda sob a ótica do autor “a progressão, implica em desigualação na medida em que extrapassa a mera graduação (proporcionalidade)” (2009, p.250). Para Torres (2007, p. 94), “o subprincípio da progressividade significa que o imposto deve ser cobrado por alíquotas maiores na medida em que se alargar a base de cálculo”. O autor aponta a progressividade como um subprincípio da capacidade contributiva. Cassone (2008, p.57) assegura que “a desproporcionalidade da tributação, em função do valor tributável, é o elemento que diferencia a progressividade da proporcionalidade”. Orientando-se pelas definições e exemplo exposto, pode-se entender a progressividade como uma técnica ou fenômeno que conduz à elevação de alíquotas na medida em que cresce o montante de riqueza demonstrada. Ou seja, para um imposto que atenda a progressividade, quanto maior a riqueza ou a capacidade econômica, maior será a alíquota (percentual) paga, objetivando-se com a progressividade a realização de uma justiça fiscal, estando, portanto, intimamente ligada ao princípio da capacidade contributiva. 4 A progressividade não deve ser confundida com a proporcionalidade. Assim como na progressividade, Torres (2007, p.94) entende a proporcionalidade como um subprincípio da capacidade contributiva, e a vislumbra quando “um imposto incide sempre pelas mesmas alíquotas, independentemente do valor da base de cálculo, o que produzirá maior receita na medida em que o bem valer mais”. 216 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Diante do que até agora foi exposto e guiados pelo critério da finalidade dos tributos tem-se que quando a progressividade é utilizada para fins meramente arrecadatórios existe a denominada progressividade fiscal; entretanto, quando sua utilização revela-se como regulatória, observe-se que se está diante da progressividade extrafiscal. 5.1. A progressividade do IPTU na Constituição Federal de 1988 Como já apontado no corpo deste trabalho, a progressividade enquanto técnica tributária pode ser utilizada tanto para fins fiscais como extrafiscais. Alexandrino (2009, p. 269) refere-se ao primeiro caso (fins fiscais) ponderando que “a técnica é utilizada segundo a capacidade econômica”. No segundo (fins extrafiscais), “é artifício utilizado para, por meio de exacerbação da carga tributária, obterem resultados diversos, não arrecadatórios, como desestímulo à manutenção de propriedades rurais improdutivas ou à subutilização de solo urbano”. Coelho ao analisar a progressividade no IPTU assim pondera: Pode-se dizer, sem medo, que o IPTU admite a progressividade estribado em duas matrizes: a) a matriz da política urbana, cujo fundamento constitucional tem sede na disposição que acabamos de transcrever (o autor transcreve em sua obra o artigo 182 CF), em prol da ordenação urbanística das municipalidades (progressividade extrafiscal no tempo) e; b) a matriz da capacidade do contribuinte que exsurge do artigo 145, § 1º, da CF. (COELHO 2009, p.347) Da análise do texto constitucional e de textos de abalizada doutrina, observe-se que a utilização da progressividade especificamente relativa ao IPTU ocorre tanto sob a ótica fiscal, expressamente trazida após a EC 29/2000 (nos termos do artigo 156 § 1º, I) quanto no caráter extrafiscal (art. 182 § 4º, II). Esta última, alvo de nossas ponderações, é denominada de progressividade no tempo, ou também chamada por alguns doutrinadores, a exemplo de Silva Junior (2008, p. 567) de “progressividade sanção” e se revela como um dos importantes instrumentos materializadores de viabilização para o cumprimento da função social da propriedade urbana, conforme veremos no tópico seguinte. 5.2. A progressividade do IPTU no tempo como instrumento de garantia do cumprimento da função social da propriedade 217 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II O planejamento racional das cidades é política que deve estar presente em todo município brasileiro. O Brasil (país com dimensões continentais) é formado hoje, segundo dados do IBGE5 por 5.564 municípios e possui uma população essencialmente urbana, haja vista que os dados oficiais6 remetem a um percentual de 84% dos habitantes vivendo na zona urbana contra 16% vivendo no meio rural. Desse modo, planejar racionalmente o meio urbano como forma de diminuir o crescimento desordenado, desestimulando a especulação imobiliária e coibindo os vazios urbanos, que se revelam muitas vezes como depósitos de lixo prejudicando a qualidade ambiental das cidades brasileiras torna-se uma questão salutar e imprescindível para toda a sociedade. Não é de hoje a preocupação com a racionalidade na ocupação do solo urbano, perquirindo-se a consagração da função social da propriedade urbana. O ordenamento jurídico Constitucional brasileiro, no título VII, ao estabelecer as diretrizes da Ordem Econômica e Financeira, mormente no Capítulo II, prescreve que a política de desenvolvimento urbano deve ter como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade de forma a garantir o bem-estar dos que nela vivem. Nesse contexto autoriza expressamente a utilização da tributação para consecução de tal desiderato que se encontra fixada no artigo 182, § 4º, II, mediante a previsão do emprego da progressividade no tempo para o IPTU. Assim, a progressividade no tempo se mostra como relevante e necessário instrumento que contribui, viabiliza e garante o cumprimento da função social da propriedade na medida em que os municípios foram legitimados a adotarem a utilização gradual de alíquota, ano após ano, segundo algumas condições e critérios que no tópico subsequente serão analisados mais detalhadamente. Cabe realçar com o devido respeito aos doutrinadores que utilizam da denominação “progressividade sanção” ao se referir à prevista para o IPTU, nos termos do artigo 182 § 4º, II CF, a inadequação da designação, haja vista que como bem demonstra Alexandrino “esta não deve ser entendida como penalidade, pois a subutilização não é ato ilícito e, principalmente, o IPTU é tributo, não podendo, portanto, em nenhuma hipótese, constituir sanção em sentido próprio” (2009, p. 271). 5 Disponível em: Informação retirada do site: http://www12.senado.gov.br/noticias/entenda-o-assunto/municipios-brasileiros. (último acesso: 01.03.2013). 6 Disponível em: Informações retiradas do site: http://noticias.uol.com.br/censo-2010/populacao-urbana-e-rural/ (último acesso: 01.03.2013). 218 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II 5.3. Requisitos que legitimam a adoção da progressividade extrafiscal. As condições que autorizam os municípios brasileiros a adotarem alíquotas progressivas no tempo para os imóveis que se revelem em disritmia com a função social da propriedade estão apostas no dispositivo constitucional do § 4º do art. 182 da CF. Da leitura do artigo mencionado observa-se que se trata de uma norma de eficácia contida, necessitando dessa feita de uma lei para sua regulamentação. A lei federal que regulamentou o dispositivo constitucional foi o Estatuto da Cidade (Lei 10.257 de 10.07.2001). Especificamente no artigo 7º desta lei está a previsão para os Municípios da legitimação de adoção de alíquotas progressivas no tempo para o IPTU mediante a majoração da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos, no caso de ocorrer o descumprimento das condições e dos prazos previstos na forma do caput do art. 5o da Lei em comento. O artigo quinto, por sua vez, refere-se à possibilidade de o Plano Diretor determinar as regras para o parcelamento, edificação ou utilização compulsória dos imóveis localizados na zona urbana. Interpretando os dispositivos regulamentadores, deve-se entender que é dever do Município zelar pela adequada utilização do solo urbano de forma a cumprir a função social da propriedade, caso verifique o seu não cumprimento devido à não edificação, subutilização ou não utilização, pode o Município primeiramente promover o parcelamento ou a edificação compulsória (inciso I do Art. 182, § 4º CF) e depois utilizar a tributação extrafiscal aplicandose as alíquotas progressivas para o IPTU (inciso II do Art. 182§ 4º CF) como forma indutora de comportamento ao titular da propriedade imobiliária urbana a imprimir uma adequada destinação ou utilização do imóvel que lhe pertence, sob pena de ver-se exigido a assumir uma carga tributária considerável. Nota-se pela leitura do artigo 7º do Estatuto da Cidade, precisamente no parágrafo 1º, que a alíquota máxima a ser alcançada atinge o patamar de 15%, devendo-se observar ademais que a alíquota subsequente não poderá exceder duas vezes o valor da alíquota anterior. No parágrafo 2º do artigo mencionado autoriza o Município a manter a alíquota máxima atingida pelo tempo necessário ao cumprimento da obrigação estipulada, no parágrafo anterior já comentado, podendo ainda após cinco anos o município proceder com a desapropriação do imóvel. Abre-se neste momento um mote de discussão a respeito das disposições do artigo 7º do Estatuto da Cidade, se não ofenderia o princípio de vedação de confisco, ante a permissão 219 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II de fixação máxima em 15% da alíquota para o IPTU quando se persegue a adequada utilização do imóvel urbano. Se existe unicidade por parte da doutrina em reconhecer a tributação como instrumento que viabiliza pela via finalística da extrafiscalidade a concretização do princípio da função social da propriedade, não existe, entretanto, consenso quando a discussão reside nos limites da faixa progressiva de alíquota para consecução desse desiderato. Nesse sentido a doutrina se revela fragmentada. Barreto é incisivo ao afirmar e defender que houve ofensa à Constituição quanto à regulamentação dos dispositivos 182 e 183 da CF por parte da Lei nº 10.257 de 2001 (Estatuto da Cidade), conforme destaque: Deveras, tal como estruturada, a progressividade no tempo do IPTU, prevista no Estatuto da Cidade, é manifestamente inconstitucional. Além de implicar absorção do valor da propriedade, configurando nítida exigência do tributo com efeito confiscatório [...] ainda que pareça que a intenção do legislador foi a melhor possível ao impor outras limitações à majoração da alíquota do IPTU no tempo, o fato é que a sistemática adotada esbarra no princípio constitucional que veda a utilização de tributo com efeito de confisco (BARRETO, 2010, p. 957). Contrapondo-se ao pensamento defendido por Barreto, Coelho assim assegura: A progressividade no tempo tem como único fundamento contrariedade ao plano diretor. Pode ser exercitada até a exaustão se o proprietário de solo urbano nãoedificado, subutilizado e não-utilizado se mantiver teimoso e recalcitrante em promover o seu adequado aproveitamento. (COELHO 2009, p.348). Posteriormente, o autor arremata seu pensamento, referindo-se à progressividade no tempo, afirmando: [...] dizer que a progressividade, aqui, tem que ser suave, não podendo atingir o exercício da propriedade, é desdizer a eficácia do remédio. Primeiro porque o princípio do não-confisco licencia a extrafiscalidade. Segundo porque, se a tributação não chegar às raias do insuportável, não há razão para a utilização da progressividade (como técnica extrafiscal), reduzida a mera figura de retórica. (COELHO 2009, p. 348) Respeitando-se os que defendem o reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei regulamentadora dos dispositivos constitucionais 182 e 183, não há como deixar de comungar com o pensar de Coelho (2009), não esquecendo, evidentemente que para a sua exigência há que se ter observado os requisitos para utilização desse instrumento de coerção e, 220 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II consequentemente, atingimento ou pelo menos busca, de uma política urbana eficaz e eficiente. Desse modo, para legitimar a adoção das alíquotas progressivas no tempo, primeiramente faz-se necessário que os municípios aprovem seus planos diretores, haja vista que é neste instrumento legislativo que se tem por definindo o que compreenderá solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado. Observa-se, nos termos da Constituição, art. 182 § 1º, a obrigatoriedade de tal instrumento para todos os municípios com população com mais de 20.000 habitantes. Assim, o Plano Diretor torna-se a referência obrigatória para a consolidação e atualização do conjunto de Leis de uma Cidade. Ocorre que em se tratando de estabelecer progressividade de alíquotas à lei instituidora do plano diretor municipal é condição essencial para legitimar a implementação das alíquotas progressivas no tempo, como pondera Enenberg, vejamos: [...] se determinado município pretender utilizar-se dos instrumentos de coerção previstos no § 4º do artigo 182 da Constituição Federal (o parcelamento ou a edificação compulsórios, IPTU progressivo no tempo e desapropriação-sanção), então deverá ter elaborado um plano diretor, no qual estejam estabelecidas as exigências fundamentais de ordenação da cidade, que descumpridas pelo proprietário urbano, podem ensejar a utilização pela municipalidade de tais instrumentos urbanísticos especiais, desde que previstos em lei específica baseada no plano diretor. (ERENBERG 2008, p.145) A título de informação, o Município de João Pessoa aprovou seu plano diretor através da lei complementar nº. 03/1992 tendo recebido atualizações através da Lei-Complementar n.º 04/1993 e adequações posteriores através da LC 54/2008. No Capítulo I deste instrumento, seção III, intitulado “Da Função da Social da Propriedade Urbana”, prevê o artigo 48, a possibilidade de Lei Municipal instituir a progressividade no tempo para o Imposto Predial e Territorial Urbano. Por sua vez, no mesmo ano foi aprovada mediante Lei Complementar Municipal de nº. 53/20087 – Código Tributário do Município de João Pessoa – no qual dispõem no artigo 195 das alíquotas progressivas no tempo para os imóveis que se encontrem como não edificados, subutilizados ou não utilizados, ou seja, estejam andando na contramão da função social da propriedade. Registre-se por fim que nos termos do Plano 7 Disponível em http://www.cmjp.pb.gov.br/. Código Tributário Municipal – João Pessoa-PB – LC 53/2008. Art. 195. O imóvel que não atender à sua função social, seja não edificado, subutilizado ou não utilizado, nos termos do Plano Diretor do Município ou legislação dele decorrente, ficará sujeito, durante 5 (cinco) exercícios consecutivos, à aplicação das seguintes alíquotas progressivas: I - 2,0% (dois por cento) para o primeiro exercício; II - 4,0% (quatro por cento) para o segundo exercício; III - 6,0% (seis por cento) para o terceiro exercício; IV - 8,0% (oito por cento) para o quarto exercício; V - 10,0% (dez por cento) para o quinto exercício. Parágrafo único. Caso as exigências definidas no Plano Diretor ou em legislação dele decorrente não sejam atendidas nos cinco exercícios, manter-se-á a aplicação da alíquota limite, até que se atendam as referidas exigências. (último acesso em 01.03.2013). 221 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Diretor do Município de João Pessoa-PB, tal dispositivo fixou como alíquota mínima 2% (dois por cento) e máxima o percentual de 10% (dez por cento). Para finalizar, verifique-se que a implementação em um município brasileiro do IPTU com fins extrafiscais deve-se primeiramente aprovar o Plano Diretor do Município e posteriormente observar a edição de uma lei local na qual se definam as alíquotas progressivas no tempo, tudo evidentemente observando e respeitando os princípios constitucionais tributários além dos requisitos insculpidos no artigo 182 do texto constitucional e das disposições contidas na Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade). 5. Considerações finais Pretendeu-se com o presente trabalho demonstrar a importância da tributação não apenas para fins arrecadatórios, mas também como instrumento indutor e viabilizador de políticas públicas. Para tanto, demonstra-se em que consiste a função social da propriedade, enaltecida na Constituição Federal de 1988. Desse modo, na tentativa de imprimir uma abordagem didática, busca-se estabelecer as funções ou finalidades da tributação, individualiza-se o imposto predial e territorial urbano, evidenciando suas principais características e métodos de classificação, demonstra-se a compreensão do termo progressividade, demonstrando que, hodiernamente, na Carta Magna, existe previsão para aplicabilidade fiscal e extrafiscal quanto ao IPTU, afunila-se a análise para a progressividade extrafiscal evidenciando os requisitos que os Municípios precisam observar para legitimar a fixação e a exigência de alíquotas progressivas nas suas legislações. Por derradeiro, reconhece-se que a tributação, quando utilizada para fins extrafiscais, se revela como uma via indireta de atuação do Estado hábil à efetivação dos princípios constitucionais e garantidora do cumprimento da função social da propriedade. Referências ALEXANDRINO. Marcelo, PAULO. Vicente. Direito Tributário na Constituição e no STF. 15ª ed. São Paulo-SP: Método, 2009. BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução a Ciências das Finanças. 17. ed. Atualizado por Hugo de Brito Machado Segundo. Rio de Janeiro-RJ: Forense, 2010. BARRETO. Aires F. Curso de Direito Tributário Municipal. São Paulo-SP: Saraiva, 2009. 222 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II BARRETO. A. F. Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU, In MARTINS. I. G. (Org), Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2010 BASSO, Ana Paula. O sistema tributário como instrumento de proteção ambiental e de desenvolvimento econômico. 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Rio de Janeiro-RJ: Renovar, 2006. 224 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II O DIREITO À MORADIA COMO OBRIGAÇÃO ESTATAL NO CONTEXTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO. João Emilio de Assis Reis* Resumo: Este trabalho é um ensaio teórico que busca refletir sobre a evolução dos direitos fundamentais sociais tendo como foco especial o direito constitucional à moradia. Partindo de uma reconstrução histórica do direito fundamental à moradia como direito humano no plano internacional, analisa a sua natureza com direito fundamental constitucional de cunho social, e seu contexto na constituição brasileira. Apresenta por fim reflexão a respeito da efetividade desse direito fundamental em razão das limitações enquanto norma constitucional programática e em razão das limitações de natureza orçamentária, que se apresenta como um óbice fático a efetivação de direitos fundamentais nos Estados contemporâneos. Palavras-chave: Direitos Sociais. Moradia. Efetividade de direitos. THE RIGHT TO HOUSING AS OBLIGATION IN BRAZILIAN CONSTITUTIONAL LAW. Abstract: This paper is a paper that seeks to reflect on the evolution of fundamental social rights focusing on particular constitutional right to housing. From a historical reconstruction of the fundamental right to housing as a human right in international level, analyzes its nature with fundamental constitutional right of a social nature, and its context in the Brazilian constitution. Displays finally reflection about the effectiveness of this fundamental right because of limitations while programmatic constitutional norm and because of the limitations of economic and budgetary nature, which presents itself as an obstacle to the accomplishment factual fundamental rights in contemporary states. Key-words: Social Rights. Housing. Effectiveness of Rights. 1. Introdução. O presente estudo busca analisar o direito à moradia como um Direito Fundamental Constitucional, sua eficácia ou possibilidades de concretização no ordenamento jurídico brasileiro. A moradia passa a ser entendida como direito humano a partir do reconhecimento do suprimento de necessidades mínimas ao ser humano e a partir da transformação do modelo de Estado Liberal, vigente a partir da revolução francesa, em um modelo de Estado Social, que positiva essas necessidades mínimas como direito de seus cidadãos, para além das * João Emilio de Assis Reis. Doutorando em Direito pela PUC-SP e Mestre em Direito Privado pela UNIFLU (RJ). Professor do Centro Universitário Adventista de São Paulo. 225 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II chamadas liberdades públicas ou deveres negativos. Guardadas algumas peculiaridades, esse é o caminho percorrido pelo Estado brasileiro. O reconhecimento do direito à prestações de cunho sócio-econômico perante o Estado implica em discutir a efetividade desses direitos, especialmente em situações como a do Brasil em que a desigualdade social acompanha a formação histórica, e que o Direito Constitucional tem a dignidade humana como princípio e tutela Direitos Sociais. Por outro lado, tem-se a dificuldade dos Estados hoje em implementar programas sociais, inclusive com relação ao Direito de Moradia, em razão de problemas de natureza orçamentária. Assim, a importância de se verificar e discutir a efetividade de direitos sociais nasce justamente da necessidade social dessa efetivação, principalmente partindo-se do pressuposto de uma Constituição como a nossa que mais do que garantias, trás em seu bojo um modelo de sociedade a ser construído e alcançado. Sob esse pano de fundo, desenvolve-se o presente ensaio teórico, baseado em pesquisa bibliográfica. Numa primeira parte, analisa-se a evolução histórica e o reconhecimento da moradia como um direito humano e como direito fundamental e seus fundamentos. Num segundo momento analisa-se a moradia contextualizada como um direito fundamental de cunho social no ordenamento jurídico brasileiro para, finalmente, proceder-se reflexão sobre sua efetivação e as possibilidades de exigência, perante o Estado Brasileiro. 2. Direito à moradia: notas históricas. Situar um instituto ou categoria jurídica no tempo, percebendo seu nascimento e evolução é premissa para sua compreensão. A norma jurídica não pode ser completamente compreendida, se não compreendido o contexto histórico no qual foi produzida e que esse processo criativo da norma fez-se em razão de um contexto futuro, ainda que hipotético. Se o homem é um ser histórico, que transforma a natureza e cria um mundo cultural para sobreviver, o direito necessariamente também o é, como fruto da genialidade humana. A determinação do sentido das normas, o correto entendimento do significado dos seus textos e intenções, tendo em vista a decidibilidade de conflitos constitui a tarefa da dogmática hermenêutica. Trata-se de uma finalidade prática, no que se distingue de objetivo semelhantes das demais ciências humanas. Na verdade, o propósito básico do jurista não é simplesmente compreender o texto, como faz, por exemplo, o historiador ao estabelecer-lhe o sentido e o movimento no seu contexto, mas também determinar-lhe a força e o alcance, pondo o texto normativo em presença dos dados atuais do problema. Ou seja, a intenção do jurista não é apenas conhecer, 226 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II mas conhecer tendo em vista as condições de decidibilidade de conflitos com base na norma enquanto diretivo de comportamento (FERRAZ JÚNIOR, 2008, 221) De forma que para esse processo de busca de sentido para a norma jurídica, tem entre os seus métodos, o histórico, em que se busca seu sentido na sua gênese ou evolução, que fornecerão ao interprete da norma jurídica importante subsídio para situar o jurista e, em conjunto com outras técnicas hermenêuticas lhe permitirá encontrar as respostas corretas na aplicação da norma jurídica. Assim, não é possível falar-se em norma jurídica, desprendida de um contexto qualquer. Além disso, compreendida a moradia no âmbito dos direitos humanos, deve ser compreendida necessariamente na característica histórica desses direitos. “Por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. (BOBBIO, 2004, 25). A questão da moradia é objeto de estudo nas mais variadas ciências, dada a compreensão da sua essencialidade na vida do homem. Essa essencialidade se dá por diversos motivos, desde os motivos mais simples que se pode imaginar como a necessidade do homem primitivo de um refúgio para se proteger dos animais ferozes e das condições do tempo, como a questão da idéia do homem como um ser cultural, que transforma e recria o mundo à sua volta para sobreviver. A questão da moradia como a necessidade de ter um espaço próprio, um “lugar pra ficar”, é própria da essência humana, seja pela necessidade de um ponto de referência que permite a localização e individualização de certa ou certas pessoas, por questões de saúde, ou mesmo pela condição de realizadora de outros direitos, como o Direito ao Sossego, à proteção da intimidade, à segurança e mesmo à liberdade, visto que a liberdade pressupõe um mínimo de espaço para a individualidade. Daí a sua compreensão unânime como Direito Humano, não só por representar em si uma condição essencial para uma vida humana digna, como em razão da sua conexão com tantos outros direitos também considerados como essenciais para o ser humano, como o seu reconhecimento e incorporação pelos diversos ordenamentos jurídicos, passando o amplo acesso à moradia como objetivo de sociedades politicamente organizadas e como direito dos cidadãos exercitáveis contra os Estados. Embora se possa encontrar como exceções a Constituição do México (1917) e a Constituição da República de Weimar (1919), nas origens do constitucionalismo social, o direito à moradia passa por um movimento de reconhecimento histórico paulatino, no plano 227 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II internacional primeiramente. Ao ser reconhecido como um direito humano básico e exigível dos Estados é continuamente conformado e reafirmado por diversos documentos que lhe dão densidade e contornos, para só então ser reconhecido pelos ordenamentos jurídicos internos dos Estados. “Os organismos internacionais elaboraram o conceito para o que se pode identificar como direito à moradia, com base na defesa de um adequado padrão de vida humano que toda pessoa tem direito para si e para seus familiares”. (MELO, 2010, 37) Isso se dá em razão da própria gênese do constitucionalismo moderno se dar sob o paradigma do Estado Liberal, fruto da luta das classes burguesas desprovidas de poder político contra o Estado absolutista, e que por isso preocupou-se apenas com os direitos políticos e com os direitos de liberdade. A constituição, que não podia evitar o Estado, ladeava, contudo, a Sociedade, para conservá-la por esfera imune ou universo inviolável de iniciativas privatistas: era uma Sociedade de indivíduos e não de grupos, embebida de toda uma consciência anticoletivista. À constituição cabia tão-somente estabelecer a estrutura básica do Estado, a espinha dorsal de seus poderes e respectivas competências, proclamando na relação indivíduo-Estado a essência dos direitos fundamentais relativos à capacidade civil e política dos governados, os chamados direitos de liberdade. (BONAVIDES, 2004, 229) O primeiro documento de grande repercussão internacional a referir-se a moradia, foram as cartas de Atenas, elaboradas no contexto do Congresso Internacional de Arquitetura e Urbanismo em 1933. Muito embora não seja um documento de repercussão jurídica, referese às funções sociais que uma cidade deve proporcionar, entre elas “habitar”. Se esse documento não tem repercussão jurídica por si só, acaba por criar a noção de cidade como função social, passando-se a compreensão do espaço urbano mais que simplesmente um aglomerado de pessoas e edificações. O espaço urbano passa a ter funções a realizar. Conforme a Famosa Carta de Atenas “o urbanismo é a ordenação dos lugares e dos locais diversos que devem abrigar o desenvolvimento da vida material, sentimental e espiritual em todas as suas manifestações, individuais e coletivas” (SILVA, 2006, 31). Essa noção de função social da cidade – incorporada posteriormente pela Constituição Federal de 1988 entre as diretrizes da política urbana - guarda o mérito inicial de compreender a essencialidade da moradia, como premissa para o desenvolvimento do ser humano em suas potencialidades. Estabelece-se como uma espécie de marco teórico inicial para a discussão da importância da 228 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II moradia participando do processo que terminará por reconhecê-la como objeto de proteção dos direitos humanos. A primeira previsão jurídica específica sobre moradia que para nós tem importância remonta à Declaração Universal dos Direitos Humanos, que estabelece em seu art. XXV “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis. Ao lado do referido dispositivo, o inciso XII da referida Declaração Universal prevê a tutela do lar do indivíduo dispondo que “Ninguém será sujeito a interferências em sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra ou reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”. Muito embora o dispositivo citado refira-se ao “lar” do indivíduo de forma indireta, reconhece-o direito a ele de certa forma, como pressuposto para o direito à vida privada sem interferência indesejadas ou abusivas. Em 1966, foi aprovado, também no âmbito das Nações Unidas, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que só entra em vigência em 1976, em cujo art. 11 fica estabelecido que “Os Estados Partes no presente pacto reconhecem o direito a toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive alimentação, vestimenta e moradia adequada, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida”. Em 1976, tem-se a realização de importante conferência internacional para debate do tema em Vancouver, no Canadá, denominada Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos – HABITAT I. Nesta conferência discutiu-se a necessidade de adequada habitação para todos e o desenvolvimento de assentamentos humanos sustentáveis em um mundo em urbanização estabeleceram-se metas a serem atingidas pelos signatários. A seção III, Capítulo II, estabelece que Adequada habitação e serviços são um direito humano básico, pelo qual coloca como obrigação dos Governos assegurar a realização destes para todas as pessoas, começando com assistência direta para os menos avantajados através de programas de ajuda mútua de ações comunitárias, os Governos devem se empenhar para remover todos os obstáculos que impeçam a realização dessas metas. 229 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Também no plano do Direito Internacional Particular Americano, destaque-se a Convenção Americana de Direitos Humanos, que culmina com a elaboração do Pacto de San José da Costa Rica. Esse documento, muito embora não enuncie de forma específica qualquer direito social, cultural ou econômico, determina em seu art. 26 que os Estados signatários alcancem, de forma progressiva, a plena realização desses direitos por meio de medidas legislativas ou outras que se mostrem apropriadas. A declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, de 1986, embora não se refira a direitos sociais específicos, tem como ponto de partida o reconhecimento de que o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa ao constante incremento do bem estar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e distribuição justa dos benefícios daí resultantes, afirmando o direito ao desenvolvimento como um direito humano inalienável. Esse destaque ao Direito Internacional com respeito ao Direito à moradia é aqui cabível, justamente pelo reconhecimento do Direito à moradia como um direito Humano no plano do Direito Internacional, dado o reconhecimento da Organização das Nações Unidas, e por estabelecer a vinculação jurídica dos Estados membros, a quem cabe o dever de assegurálo. Muito embora seja possível perceber em diversos momentos o estabelecimento ou a tentativa de estabelecer-se políticas de acesso à moradia, isso se dá de forma muito incipiente, limitada e pontual, sem jamais se ter uma política de acesso à moradia visto como algo exigível, de acesso amplo e democrático, muito mais ligada a idéia de voluntarismo político do que como um direito exigível. Assim, esses tratados do qual a República Federativa do Brasil é signatário†, tem como mérito inicial vincular o Estado brasileiro à moradia como um direito oponível e exigível por parte de seus cidadãos. Algo que no plano da legislação interna só irá ocorrer com a Emenda Constitucional No. 26 de 14 de fevereiro de 2000, que insere o Direito à Moradia como um direito fundamental social, passando a constar do art. 6º do texto constitucional. Não se pode contudo negar importância a esses tratados, principalmente por ser reconhecido † O Brasil é signatário da Carta das Nações Unidas desde a sua promulgação em 1948, da Declaração sobre o Direito ao desenvolvimento desde 1986, e do Pacto de San José da Costa Rica e do Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais desde 1992. 230 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II expressamente status a direitos e garantias que o Brasil incorporar por tratado internacional (Constituição Federal, art. 5º. § 2º). A primeira carta política a tratar a moradia como um direito constitucional é a Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos de 1917, que no Título I, Capítulo I, que trata dos Direitos Humanos e suas garantias, menciona o Direito à moradia no art. 4º ao dispor que toda família tem direito a desfrutar de uma moradia digna e adequada e que a lei estabelecerá os instrumentos e apoios necessários a fim de alcançar tal objetivo‡. Assim, a Moradia tem cunho constitucional, tratando-se por disposição expressa de norma programática, já que sua eficácia dependia de norma constitucional regulamentadora que viesse efetivar o Direito. Cabe observar contudo, que a mesma constituição estabelece como “base” da Seguridade Social, a disponibilização aos trabalhadores habitações baratas para aquisição ou locação e determina a criação de um fundo nacional de habitação que proporcione acesso a crédito barato e suficiente para aquisição de moradias adequadas.§ Da mesma forma a Constituição da República de Weimar (1919) também reconhece a importância da moradia em seu artigo 155 dispõe que o fracionamento e o uso do solo serão controlados pelo Estado de forma a impedir abusos e a permitir a todo alemão uma morada saudável e a todas as famílias alemãs, em especial as mais numerosas uma morada e um patrimônio que atenda suas necessidades. As nossas seis constituições anteriores nada mencionam sobre o direito à moradia. A Constituição Imperial de 1824 representa o modelo de constituição da época, em feições liberais, preocupada com as liberdades públicas. A Constituição de 1891, mantém a mesma feição liberal, inspirada principalmente no constitucionalismo americano, preocupando-se quanto a direitos fundamentais também com as liberdades públicas. É a partir da Constituição de 1934, seguida pela Constituição de 1946 e 1967 é que se pode passar a perceber a mudança de feições no constitucionalismo brasileiro que passa a ter gradativamente feições sociais. Pode-se perceber essa mudança através do instituto da propriedade que, a partir dessas Constituições passa a ser condicionada a interesses sociais e coletivos (REIS, 2006, 82-83) ou ‡ Texto literal: “Toda familia tiene derecho a disfrutar de vivienda digna y decorosa. La Ley establecerá los instrumentos y apoyos necesarios a fin de alcanzar tal objetivo” § Se proporcionarán a los trabajadores habitaciones baratas, en arrendamiento o venta, conforme a los programas previamente aprobados. Además, el Estado mediante las aportaciones que haga, establecerá un fondo nacional de la vivienda a fin de constituir depósitos en favor de dichos trabajadores y establecer un sistema de financiamiento que permita otorgar a éstos crédito barato y suficiente para que adquieran en propiedad habitaciones cómodas e higiénicas, o bien para construirlas, repararlas, mejorarlas o pagar pasivos adquiridos por estos conceptos. 231 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II no estabelecimento de direitos constitucionais sociais de caráter trabalhista. No entanto, a garantia de acesso à Moradia não recebe qualquer menção do direito brasileiro até o texto constitucional atualmente em vigência. 3. Os Direitos Sociais no texto Constitucional. O direito à moradia foi inserido no texto Constitucional por força da Emenda Constitucional No. 26 de 2000 no Titulo II, que trata dos direitos fundamentais. Este título subdivide-se em cinco capítulos: dos direitos individuais e coletivos, dos direitos sociais, dos direitos à nacionalidade e dos direitos políticos e partidos políticos, de forma que a Moradia passou a constar do Capítulo II, que trata dos Direitos Sociais. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e a infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (art. 6, Constituição Federal). Direitos Sociais, prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo de direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício de sua atividade. (SILVA, 2005, 286). Os direitos Sociais surgem no contexto do constitucionalismo social. Aquele Estado surgido das revoluções liberais do século XVIII preocupava-se basicamente com as liberdades públicas, com o arbítrio do soberano e por isso, tinha como função básica garantir a liberdade individual, mantendo a atuação do poder público eqüidistante da esfera privada e garantir a igualdade formal, no sentido de que o poder público trata-se todos como iguais. No entanto, essas conquistas pouco fizeram pela grande massa de despossuídos, de forma que pouco mais de um século depois de surgido, o modelo de Estado Liberal entrava em crise. Os Estados europeus se encontravam em profundas desigualdades sociais nos séculos XVIII e XIX, desigualdades que só se acirraram na Revolução Industrial, ao criar mais miséria de um lado, com pessoas que trabalhavam em condições sub-humanas e de outro mais 232 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II concentração de riqueza. A instabilidade social que se seguiu termina por permitir o reconhecimento de direitos sociais. Esses, nascem de concessões, diante do temor provocado pelas revoluções comunista e mexicana, pelo sindicalismo nascente que criavam riscos derrubada dos regimes liberais então vigentes. Desta forma, surgem os Direitos Sociais diante da compreensão de que o Estado deve atuar minimamente para garantir condições mínimas para os seus cidadãos, e que a mera garantia das liberdades públicas está aquém da função estatal. O Estado, que no liberalismo se colocava numa posição relativamente eqüidistante pelas declarações de Direitos das Constituições Liberais passa a ser imprescindível para a realização dos Direitos Sociais e Econômicos. Os direitos sociais são, sob essa perspectiva, fins da ação do Estado, e não limites desta ação, como o caso das liberdade públicas. obedecem, primordialmente, ao princípio da solidariedade (ou fraternidade, no tríptico da Revolução Francesa), a qual se impõe, segundo os ditames da justiça distributiva ou proporcional, a repartição das vantagens ou encargos sociais em função das carências de cada grupo ou estrato da sociedade (COMPARATO, 2004, 335). Muito embora todo esse processo histórico-conjuntural de consolidação dos direitos sociais, é preciso cuidado para que se vincule esses direitos a demandas sociais e econômicas de determinado contexto, atribuindo-lhes eventual função reparadora de desigualdades históricas ou função assistencial. Os direitos sociais devem ser compreendidos na sua essência de direitos fundamentais, como um conjunto de direitos essenciais e inafastáveis constitutivos da personalidade e da dignidade humana, tanto quanto os direitos civis e políticos, e tão inarredáveis quanto estes. Desnecessário enfrentar aqui suposta distinção entre Direitos Fundamentais e Direitos Sociais. Essa distinção, que é um movimento típico de resistência do liberalismo, renitente em reconhecer o mesmo status das velhas liberdades públicas aos Direitos Sociais, torna-se claramente obsoleta e mesmo equivocada, quando percebe-se o lugar reservado a esses direitos na Constituição como Direitos Fundamentais. Da fundamentalidade desses direitos decorre especial status de proteção, tanto em sentido material como em sentido formal. Da fundamentalidade formal resulta da compreensão dos Direitos fundamentais como ápices de nosso ordenamento jurídico e nesse sentido cuidam-se de direitos de natureza supralegal. Além disso, encontram-se submetidos aos limites materiais e formais de reforma da constituição e, por derradeiro, cabe salientar que são de aplicação imediata (Constituição 233 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Federal art. 5º. § 1º.). Da fundamentalidade material, decorre serem os direitos fundamentais elemento constitutivo da Constituição material, contendo decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da Sociedade. (SARLET, 2011, 75). Essas decisões, ou opções políticas do Estado, no caso da proteção que a Constituição brasileira concede aos direitos sociais são inequívocas, principalmente se observado o contexto constitucional, do qual consta verdadeira sensibilidade social, posto que o objetivo é uma sociedade mais justa e menos desigual, ao invés da idéia tradicional e ineficaz de simplesmente se garantir as liberdades. Essa leitura do texto constitucional é consistente, posto que conforma valores como os que emanam do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República, e ainda com outros valores e objetivos a se alcançar, estabelecidos na Constituição, como “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3, I); “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3, III); “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer formas de discriminação” (art. 3, IV). Daí percebe-se a importância da construção teórica que precede a positivação de Direitos Sociais e do caso específico do Direito à Moradia. Toda a Construção teórica e a evolução paulatina do reconhecimento dos Direitos Sociais e do Direito à moradia no plano internacional, permitem a própria conformação do direito, a explicitação de sua essencialidade, e proporciona a sua fundamentação quando da sua efetivação, o que, aliás é pressuposto da efetivação de qualquer direito na tradição ocidental. A positivação dos direitos sociais, por outro lado, é o que garante a sua eficácia social. O reconhecimento de Direito como essencial depende do seu reconhecimento jurídico, como tal. Num estado com princípios democráticos, a proteção jurídica de algo que se entenda por direito resulta de um processo de legitimação indispensável. Esse processo de legitimação em nível constitucional, é que torna o direito exigível explicitando sua origem como escolha da vontade coletiva, nos temos da Constituição, cabendo ao Estado Democrático, concretizador dessa vontade, instrumentalizá-lo. 234 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II 4. A efetividade dos Direitos Sociais e as obrigações do Estado brasileiro e a obrigação do Estado Brasileiro concernentes ao Direito de Moradia. Os direitos sociais, assim como os demais direitos fundamentais exigem distintos níveis de obrigações obrigação de respeitar, de proteger e de satisfazer direitos. O texto constitucional, dispõe, conforme já afirmado retro, que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata. No entanto, parte da doutrina, tem uma visão restritiva do disposto no art. 5, § 1º da Constituição Federal, de forma que a aplicabilidade imediata caberia apenas aos direitos e garantias dispostos no art. 5º da Constituição. Não obstante a localização topográfica do dispositivo, a literalidade do parágrafo aponta para todos os direitos e garantias fundamentais, e não apenas para os direitos individuais e coletivos do art. 5º. No entanto, os direitos que exigem prestações positivas do Estado, através da execução de políticas públicas, são concebidos tradicionalmente como normas de eficácia limitada, cuja aplicabilidade é mediata e de eficácia reduzida. No entanto a emergência cada vez maior um significativo número de normas de caráter programático, e o próprio risco de esvaziamento de sentido dos direitos sociais como direitos constitucionais, vem provocando uma ruptura com a teoria clássica, no sentido de conferir, pelo menos em certa medida, aplicabilidade direta e imediata. Não tem sentido, pelo próprio significado histórico do Direito Constitucional, não atribuir um mínimo de eficácia imediata a um direito positivado na Constituição, se a Constituição surge justamente como um remédio ao arbítrio, submeter um direito positivado na Constituição ao voluntarismo político significa privá-lo do seu caráter de direito constitucional fundamental. Em razão disso, leciona Canotilho “devido a essa ruptura à doutrina clássica, pode e deve-se dizer que hoje não há normas constitucionais programáticas. É claro que continuam a existir normas-fim, normas-tarefa, normas-programa que “ impõem uma actividade” e “dirigem” materialmente a concretização constitucional. Mas o sentido destar normas não é o que lhes assinalava tradicionalmente a doutrina: “simples programas, “exortações morais”, “declarações”, “sentenças políticas”, “aforismos políticos”, “promessas”, “apelos ao legislador”, “programas futuros”, juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade. Às “normas programáticas” é reconhecido hoje valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da Constituição. Mais do que isso: eventual mediação da instância legiferante na concretização das normas programáticas não significa a dependência deste tipo de normas de interposição do legislador; é a positividade das normas-fim e normas-tarefa (normas programáticas) que justifica a necessidade de intervenção dos órgãos legiferantes (CANOTILHO apud SAULE JÚNIOR, 1999, 93). 235 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Daí decorre a posição hoje mais aceita pela doutrina, de que o disposto contido no art. 5, § 1º se trata de uma norma de cunho inequivocamente principiológico, um princípio impositivo contendo um comando de maximização dos direitos fundamentais, estabelecendo o dever dos órgãos estatais de conceberem a maior eficácia possível aos direitos fundamentais. Isso significa, em última análise, que, no concernente aos direitos fundamentais, a aplicabilidade imediata e eficácia plena assumem a condição de regra geral, ressalvadas exceções que, para serem legítimas, dependem de convincente justificação à luz do caso concreto, no âmbito de uma exegese calcada em cada norma de direito fundamental e sempre afinada com os postulados de uma interpretação tópico-sistemática. (SARLET, 2011, 271) Assim, o Estado brasileiro tem obrigação de garantir minimamente o direito a moradia, de forma que ninguém possa ser privado de direito ou garantia sob o argumento de estar ele previsto em norma programática. Aceitar simplesmente esse argumento significa negar a própria função do direito fundamental e o processo histórico por meio do qual ele se desenvolveu desde sua gênese. É claro que a formulação e implementação de políticas públicas é, primariamente, uma atribuição do Legislativo e do Executivo, cujos membros são escolhidos democraticamente nos termos da própria constituição, mas negar-se eficácia aos direitos fundamentais simplesmente por dependerem de norma infraconstitucional integradora é submeter os direitos fundamentais ao voluntarismo político e dessa forma privá-los de sua própria essência. O maior entrave que é colocado a efetivação de todos os direitos de cunho prestacional por parte do Estado, é a questão do custo desses direitos. Sob os argumentos de que os direitos sociais dependem de uma economia forte e de que o custo dos direitos sociais superam os recursos orçamentários, cria-se a chamada “reserva do possível”, que busca legitimar por meio de ilusória racionalidade a efetivação dos direitos sociais prestacionais aos recursos orçamentários. Nesse sentido, a moradia se colocaria como um dos direitos de maior custo, principalmente em razão da forma historicamente excludente com que o acesso à terra se dá no Brasil. Observe-se ainda que, acesso à terra, não significa necessariamente moradia, mas apenas a superação de um provável obstáculo. O acesso a moradia pressupõe o espaço, mas demanda ainda uma série de outras intervenções estatais no sentido de garantir moradia em condições adequadas, e por isso, muito mais caro. 236 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Mas não se pode estabelecer uma relação de dependência entre a escassez de recursos orçamentários e a efetivação de direitos. Afinal, todo o aparato estatal tem um custo, inclusive quando é colocado em funcionamento para garantir os chamados direitos de defesa. Assim, “estabelecer uma relação de continuidade entre a escassez de recursos públicos e a afirmação de direitos acaba resultando em ameaça a existência de todos os direitos” (BARRETO, 2003, 121). Aqui se coloca então a questão que parece fundamental. É possível a uma pessoa compelir o poder público a alguma prestação material que venha a lhe assegurar o direito a uma moradia digna? A moradia é um direito social, e como tal se encontra enumerada expressamente entre os direitos fundamentais, por outro lado, é compreendida no contexto de uma norma constitucional programática, exigindo integração por normal infraconstitucional para que possa ser concretizada, o que não nega, e nem pode, a fundamentalidade dos direitos ali estabelecidos. De outro lado, tem-se a questão da limitação orçamentária, que se não é capaz de gerar verdadeiro argumento jurídico, apresenta-se como obstáculo fatal fático para a eficácia dos direitos sociais. Ora, sobre este último ponto, deve-se colocar a questão financeira do Estatal não deve se sobrepor aos direitos fundamentais. A sua condição de fundamentais o coloca no centro do ordenamento jurídico, a submeter toda a organização sócio-política da república por sua condição de essenciais à vida humana, de forma que se os recursos não são suficientes para atender os direitos fundamentais, devem ser tirados de outras áreas onde não a essa relação essencialidade para a vida humana. se os recursos não são suficientes, deve-se retirá-los de outras áreas (transporte, fomento econômico, serviço de dívida) onde sua aplicação não está tão intimamente ligada aos direitos mais essenciais do homem: sua vida, integridade física e saúde. Um relativismo nessa área pode levar a “ponderações” perigosas e anti-humanistas do tipo “porque gastar dinheiro com doentes incuráveis ou terminais? (KRELL, 2002, 53) A dignidade humana, como princípio fundamental da república, deve funcionar como vetor no sentido de se garantir um mínimo de efetivação dos direitos sociais, inclusive o direito à moradia, como um meio de garantir um mínimo necessário à própria existência 237 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II humana, a sobrevivência do indivíduo com um mínimo de dignidade. Se a limitação orçamentária do poder público se afigura como uma realidade com a qual o direito tem que lidar, isso não quer dizer por outro lado que os direitos sociais devem ser colocados como reféns do orçamento ou efetiváveis quando houver sobras de caixa. A maximização dos direitos fundamentais exige no mínimo posturas de todo o aparato estatal no sentido de garantir a máxima efetividade dos direitos fundamentais e, garantir sua efetivação como prioridade dada a sua fundamentalidade. No que tange a questão da eficácia imediata dos direitos fundamentais, o fato das normas constitucionais programáticas não regularem imediatamente um objeto, mas preestabelecerem a si mesmo um programa de ação com respeito ao próprio objeto e se obrigando a não se afastar dele sem um motivo, infere que o direito à moradia impõe a poder público o dever de atuar positivamente em sua promoção e proteção enquanto meta constitucionalmente estabelecida, no sentido de proporcionar moradia digna a toda a população. O fato da norma ser estabelecida como programática, não implica em perda de fundamentalidade pelo direitos sociais. Se por um lado tem eficácia eventualmente limitada, por outro possibilitam inúmeros caminhos de proteção, ou mesmo, a criatividade do poder público em fomentar o direito ali assegurado. Assim, a se considerar exigível não o direito a moradia propriamente, mas condutas estatais inequívocas, no sentido de promover o direito a moradia. No caso brasileiro, pode-se considerar nesse contexto, as flexibilização das regras, e dessa forma facilitação, da aquisição de propriedade pela usucapião a partir da Constituição Federal de 1988, permitindo a aquisição por posse ininterrupta e justa, num prazo de 5 anos de aquisição de imóvel para moradia própria e da família. No Estatuto da Cidade, pode-se destacar a edição do Estatuto da Cidade, Lei No. 10.257/2001, onde em mais um passo importante o legislador admitiu a figura da Usucapião Coletiva Urbana, instrumento de grande importância para regularização de assentamentos habitacionais urbanos informais. Mais recentemente, houve a implementação do programa governamental “Minha Casa, Minha vida”, instituído pela Lei 11.977 de 2009, através do qual o governo federal criou alguns mecanismos facilitadores da aquisição da casa própria. 238 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II São importantes avanços em termos de concretização de direitos fundamentais, podendo ser considerados inclusive sem parâmetros em nossa história constitucional, por outro lado, na medida em que se atribui a característica universalidade aos direitos fundamentais, é necessário que o aparato estatal tome medidas mais amplas, no sentido de permitir a todos o direito de desfrutar de moradia condizente com a dignidade havida em todo ser humano, especialmente quando trata-se da questão no âmbito do Brasil, um pais marcado por desigualdades sociais históricas. 5. Considerações finais. Os direitos fundamentais sociais, assim como os demais direitos fundamentais e direitos do homem, surgem de um contexto histórico próprio, a partir do momento em que se passou a compreender ao homem como essencial não apenas as liberdades e direitos políticos, mas também outros direitos, de natureza social e econômica para que pudesse desenvolver suas potencialidades enquanto ser humano com dignidade. Nesse contexto de direitos sociais, encontra-se a moradia, compreendida como essencial ao ser humano, não só no âmbito da construção histórica dos direitos humanos como dos direitos fundamentais constitucionais. Assegurada na constituição de 1988, o direito a moradia enfrenta o dilema dos direitos fundamentais sociais, normalmente de origem prestacional: a efetivação. Essa efetivação encontra óbice na própria doutrina constitucionalista, com dificuldades em identificar a mesma função e status nos direitos de cunho social, econômico e cultural daqueles direitos fundamentais primariamente reconhecidos, as chamadas liberdades. De fato, em um contexto constitucionalista que empresta ampla tutela à dignidade humana, imprescindível se falar também em direitos fundamentais, dentre eles a moradia. Embora se compreenda as limitações dos direitos fundamentais de cunho prestacional, sejam aquelas colocadas pelo próprio ordenamento jurídico, sejam aquelas de ordem fática, relacionadas ao custo financeiro da efetivação de direitos, é necessário que se preserve um núcleo fundamental nos direitos sociais, de forma que eles mantenham sua condição de fundamentos básicos da constituição e não se tornem reféns do voluntarismo político o que desnaturaria a sua própria condição de direitos fundamentais. Observa-se que, a compreensão atual do direito à moradia como norma programática, se não nos permite dizer que ele vem sendo efetivada claramente, vez que direitos 239 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II fundamentais tem entre suas características a universalidade, e muito se faz necessário para que todos os brasileiros tenham moradia digna, por outro lado, não é possível dizer que o Estado brasileiro vem descumprindo com suas obrigações para a efetivação do direito. Bibliografia: BARRETO, Vicente Paulo. Reflexões sobre os direitos sociais. Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Ingo Wolfgang Sarlet (Organizador). Rio de Janeiro: Renovar, 2003. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 9. Ed., São Paulo: Campus, 2004. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 14. Ed., São Paulo: Malheiros, 2004. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. 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Ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. 240 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II SAULE JÚNIOR. O direito à moradia como responsabilidade do estado brasileiro. Direito à cidade. Trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. São Paulo: Max Limonad, 1999. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. Ed., São Paulo: Malheiros, 2005. _______. Direito urbanístico brasileiro. 4. Ed., São Paulo: Malheiros, 2006. 241 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II O DIREITO À PARTICIPAÇÃO POPULAR E OS MEGAEVENTOS ESPORTIVOS: A (IN)EFETIVIDADE RESPONSABILIDADE DA PARTICIPAÇÃO FISCAL NA PREVISTA IMPLEMENTAÇÃO PELA DE LEI DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE INFRAESTRUTURA PARA A COPA DO MUNDO DE FUTEBOL DE 2014 THE RIGHT TO POPULAR PARTICIPATION AND THE MEGA SPORTS EVENTS: THE (IN)EFETICTIVENESS OF PARTICIPATION PROVIDED BY THE LAW OF FISCAL RESPONSIBILITY IN THE IMPLEMENTATION OF PUBLIC POLICY INFRASTRUCTURE FOR THE WORLD CUP OF FOOTBALL IN 2014 Alex Feitosa de Oliveira1 RESUMO O presente trabalho tem como objetivo principal analisar a efetividade da participação popular prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal, bem como em outras normas de nosso ordenamento, no caso de orçamentos para a construção de obras que visam a estruturação das cidades brasileiras para os megaeventos esportivos vindouros, em especial a Copa do Mundo de Futebol de 2014. Procuraremos estudar qual a efetiva participação da população diretamente afetada na definição orçamentária e no projeto de tais obras, não deixando também de verificar se tal participação, ao menos é garantida quando da concretização das obras. Dentro deste contexto, demonstrar-se-á a inexistência de participação inclusive nos processos de desapropriação de propriedades privadas para construção de obras de infraestrutura para os megaeventos, uma etapa necessária para a realização das obras, bem posterior à etapa orçamentária aqui discutida. Demonstrar-se-á, diante da análise de uma obra específica (VLT2 na cidade de Fortaleza) a inexistência da participação, desde a elaboração orçamentária até a execução das políticas públicas. Palavras-chave: Lei de responsabilidade fiscal, participação popular, orçamento, megaeventos. ABSTRACT This work has as main objective analyse the efectiveness of the popular participation provided by the Law of Responsability Fiscal, as well others norms of our ordering, in the public budgets for construction of works aimed at structuring of Brazilian cities for the upcoming mega sports events, especially the World Cup Football in 2014. This Study which will seek the active participation of the population directly affected in setting budget and design of such 1 Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Defensor Público Federal titular do 5º ofício cível na Defensoria Pública da União em Fortaleza/CE. 2 A sigla VLT irá ser utilizada neste trabalho para designar as obras do Veículos Leves sobre Trilhos na cidade de Fortaleza. Para maiores informações, consultar http://www.transparencia.gov.br/copa2014/fortaleza/mobilidade-urbana/vlt-parangaba-ucuripe/. 242 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II works, not leaving verify if such participation is guaranteed at least when the completion of works. Within this context, it will demonstrate the lack of participation even in cases of expropriation of private property for construction of infrastructure for mega events, a necessary step for the realization of works, well after the stage budget discussed here. It will demonstrate, before analyzing a particular work (VLT in Fortaleza), the lack of participation, from budgeting to execution of public policies. keywords: Law of responsability fiscal, popular participation, budget, mega events. 1 INTRODUÇÃO A lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada no ano de 2000 3, surgiu como um instrumento para propiciar uma gestão publica responsável, entre outros objetivos4. Objetivava tal lei mudar o pensamento dos gestores públicos, impondo-lhe um comportamento baseado na transparência, eficácia e eficiência, tendo como um dos pontos primordiais a ética dos gestores no exercício da função pública. A lei em questão está dividida em 10 capítulos, abordando assuntos diversos que envolvem o tema responsabilidade fiscal, despesa e receitas públicas, gestão patrimonial, dívida e endividamento, transparência, entre outros5. No presente trabalho pretendemos analisar um dispositivo específico da lei de responsabilidade fiscal contido no capítulo destinado à transparência, controle e fiscalização. Trata-se do art. 48, I da lei de responsabilidade fiscal, que dispõe sobre a participação popular na elaboração e discussão acerca das leis orçamentárias6. 3 Lei complementar 101, de 04 de Maio de 2000. Diversos são os objetivos da Lei de Responsabilidade Fiscal. Desde a transparência na gestão pública até a penalização dos maus gestores. Ficamos aqui com os objetivos inseridos no art. 1º da lei: “Art. 1o Esta Lei Complementar estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, com amparo no Capítulo II do Título VI da Constituição. § 1 o A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.” 5 De forma mais precisa, a lei se divide nos seguintes capítulos: i) Disposições preliminares; ii) Do planejamento; iii) Da receita pública; iv) Da despesa pública; v) Das transferências voluntárias; vi) Da destinação de recursos públicos para o setor privado ; vii) Da dívida e do endividamento; viii) Da gestão patrimonial; ix) Da transparência, controle e fiscalização; x) Disposições finais e transitórias. 6 Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos. Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante: (Redação dada pela Lei Complementar nº 131, de 2009). I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos; (Incluído pela Lei Complementar nº 131, de 2009). 4 243 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Tal análise terá como contraponto as obras destinadas aos megaeventos a serem realizados no Brasil nos próximos anos (Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016). Procuraremos então verificar se houve/está havendo ou não a efetiva participação das comunidades nos processos de elaboração dos orçamentos destinados às grandes obras a serem realizadas, desde a elaboração dos orçamentos públicos até sua implementação, visando a legitimação do procedimento7. Tentaremos responder a algumas perguntas, tais como: A população diretamente interessada tem possibilidade de opinar sobre os orçamentos para as obras de grande vulto, conforme dispõe a lei de responsabilidade fiscal? Há algum incentivo à tal participação popular? Há efetivamente participação popular? Os interesses principais realmente são os da comunidade que sofrerá os principais reflexos das obras? Se sim, porque não há participação da comunidade na elaboração dos orçamentos, ao menos para tomar conhecimento das quantias que serão despendidas? Por fim, traremos como estudo de caso a situação das obras dos Veículos Leves sobre Trilhos na cidade de Fortaleza, obra que, conforme dispõe o Governo do Estado do Ceará8, irá trazer inúmeros benefícios à população da cidade de Fortaleza. Questionaremos então se em tal obra houve ou está havendo obediência ao dispositivo da lei de responsabilidade fiscal que dispõe sobre a participação popular, bem como procuraremos responder às perguntas anteriormente formuladas, em especial verificando qual o grau de participação popular nas etapas de tal obra. Ressalte-se que, não é objetivo deste trabalho esgotar a questão relativa à participação popular, visto que o foco principal aqui discutido é a participação na elaboração dos orçamentos para tais obras e não na concretização ou execução de tais obras. 2 LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL E A PARTICIPAÇÃO POPULAR 7 A participação popular tem sido bastante utilizada como forma de legitimação dos atos através do procedimento, como, por exemplo, as audiências públicas propostas pelo STF antes de decisões envolvendo casos relevantes. Sobre o tema, Willis Guerra Santiago Filho afirma que “se mostra como a resposta adequada ao desafio principal do Estado Democrático de Direito, de atender a exigências sociais garantindo a participação coletiva e liberdade dos indivíduos, pois não se impõem medidas sem antes estabelecer um espaço público para sua discussão, pela qual os interessados deverão ser convencidos da conveniência de se perseguir certo objetivo e da adequação dos meios a serem empregados para atingir essa finalidade’ (GUERRA FILHO, Willis. Ensaios de Teoria Constitucional, Fortaleza, 1989, pp. 90/91).” 8 O site oficial do Governo do estado do Ceará, ao tratar da obra do VLT dispõe que: “A criação desta linha de VLT em Fortaleza favorecerá a dinâmica no transporte sob vários aspectos. Ele ligará a região hoteleira à Parangaba, atendendo às diretrizes do Governo Federal, ao passar por portos, aeroportos, rodoviária e estádio. Além disso, o VLT fará integração com o sistema de transporte público, o que o deixa em consonância com o Plano Diretor de Fortaleza. Para se ter ideia da importância do VLT, basta analisar os números que caracterizam a área por onde ele passará. No total, 62,14% das empresas instaladas em Fortaleza, 62,58% dos empregos gerados e 81% dos hotéis da capital serão contemplados pelo Veículo Leve sobre Trilhos.”. Disponível em http://transparencia.ce.gov.br/content/prioridades-de-governo/copa-2014/vlt-paranga-mucuripe. Acesso em 15.07.2012. 244 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Conforme já aqui exposto, há dispositivo expresso na lei de responsabilidade fiscal que prevê a necessidade de participação popular na elaboração dos orçamentos públicos. Vejamos o que dispõe o citado artigo: Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos. Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante: (Redação dada pela Lei Complementar nº 131, de 2009). I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos; (Incluído pela Lei Complementar nº 131, de 2009). Tal disposição legislativa corroborou o anseio da população brasileira em relação à participação da mesma na gestão Pública. Isto porque, antes mesmo da publicação da lei de responsabilidade fiscal, algumas iniciativas louváveis em termos de participação popular já haviam sido desenvolvidas, o que aumentou em muito a pressão popular para a existência de uma garantia de participação em nosso ordenamento, através de lei em sentido estrito9. O caso mais emblemático é o da cidade de Porto Alegre, que se tornou modelo de participação popular exaltado em todo o mundo. Boaventura de Sousa Santos ressalta tal importância afirmando que: Assim sucedeu na cidade brasileira de Porto Alegre onde, desde 1989, está implantada uma forma de democracia participativa, designada por orçamento participativo, cujo êxito hoje é amplamente reconhecido, tendo sido considerado pela ONU como uma das quarenta melhores práticas de gestão urbana do mundo. É conhecido que o êxito do orçamento participativo não foi estranho à escolha de Porto Alegre como sede do Fórum Social Mundial. (SANTOS, 2002, p. 7-8) Tal modelo baseou-se no denominado orçamento participativo, que permitia aos cidadãos da cidade participar ativamente do processo orçamentário da cidade. Neste modelo há três princípios básicos10, todos com ênfase na participação popular. A implementação se dá 9 Não se está aqui querendo afirmar que não seria possível defender a participação popular sem a existência de uma lei, até mesmo porque alguns dispositivos constitucionais expressos (por exemplo a afirmação de que todo poder emana do povo) poderiam justificar tal participação. Apenas discorre-se que o povo, com a existência de lei expressa que regule a situação, se sentiria mais protegido de eventuais violações. 10 “Os três princípios são os seguintes: a) Todos os cidadãos têm o direito de participar, sendo que as organizações comunitárias não detêm, a este respeito, formalmente, pelo menos, um estatuto ou prerrogativas especiais; b) a participação é dirigida por uma combinação de regras de democracia directa e de democracia representativa, e realiza-se através de instituições de funcionamento regular cujo regimento interno é determinado pelos participantes; c) os recursos de investimento são distribuídos de acordo com um método objetivo baseado numa combinação de critérios gerais – critérios substantivos estabelecidos pelas instituições 245 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II através de várias instituições, desde governamentais até organizações comunitárias. O fato é que a experiência de orçamento participativo de Porto Alegre foi amplamente reconhecida, não só na cidade e no Brasil, mas também internacionalmente. A respeito da implantação do orçamento participativo na Europa, Yves Sintomer, Carsten Hezberg e Anja Rocke afirmam que: Orçamentos participativos emergiram, simultaneamente, em sete países europeus, a maioria da Europa Ocidental. Atualmente, outros processos estão em andamento ou em fase preliminar em mais quatro países. No total, em 2008, existiam mais de cem cidades europeias com orçamento participativo. (SINTOMER; HERZBERG; ROCKE, 2010, v2, p. 41) Muitas outras cidades brasileiras também o implementaram. O certo é que, a despeito de críticas e possíveis adaptações, o caso do orçamento participativo de Porto Alegre trouxe benefícios para a população residente naquele município, demonstrando que, mesmo não efetivado de forma totalmente plena, a participação popular tende a trazer vantagens para os cidadãos. O orçamento participativo e outras formas de participação popular são instrumentos de implementação da democracia participativa, democracia esta que ganha bastante força após a fase autoritária vivida no Brasil11. Instaurada a democracia no País, em especial com o advento da Constituição de 198812, a população, principalmente através dos movimentos sociais, cada vez mais reivindica o direito de fazer parte do processo de gestão da coisa pública. Assim, o dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal aqui citado pode ser visto como um reflexo de tais reivindicações. A nova Constituição Federal consagra a República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito13. Desta forma, inegável que o Constituinte elegeu como direito fundamental a democracia, que tem como essência, a participação popular em seu governo14. Isto porque um país democrático não é só aquele que elege democraticamente seus participativas com vistas a definir prioridades – e de critérios técnicos- critérios de viabilidade técnica ou econômica, definidos pelo Executivo, e normas jurídicas federais, estaduais ou da própria cidade, cuja implementação cabe ao executivo.” Ibidem,2002, p.25-26. 11 Em especial com o regime militar ditatorial vivido por nosso País desde o golpe militar de 1964 até a redemocratização ocorrida a partir do ano de 1985 e com marco final com a Constituição de 1988. 12 O artigo 1º da Constituição Federal bem reflete o anseio democrático ao afirmar: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituise em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos”. 13 Art. 1º, caput da Constituição Federal de 1988. 14 Como exemplo de disposições constitucionais que indicam para o deito à participação popular podemos citas: No art. 14, assegura a idéia da soberania popular e o voto direto e secreto de igual valor para todos, prevendo ainda o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, instrumentos importantes da democracia participativa. No âmbito municipal, o art. 29, XII, garante participação no planejamento e o art. 31, § 3º, garante a ampla 246 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II administradores públicos, mas que também propicia aos cidadãos outras formas de participação no governo. Trazendo à baila a lição de Hugo de Brito Machado Segundo, quando discorre sobre a democracia em sua obra, temos que: a forma de governo na qual todos aqueles que se acham sob sua disciplina têm iguais oportunidades de, livremente, interferir na sua formação e na sua condução, podendo dele participar ou escolher,fiscalizar e criticar os que dele participam (MACHADO SEGUNDO, 2010. p. 153.) Assim, a democracia garante aos cidadãos não somente a escolha de seus representantes, mas a participação na tomada de decisões relevantes para a Sociedade. Entretanto, o que se tem verificado no início das obras para a Copa de 2014 é a total falta de participação das comunidades, em especial aquelas afetadas diretamente pelos atos. Em relação à participação política, o autor acima citado discorre: “Outra providência que pode ser adotada, para aperfeiçoamento da legitimidade da ordem jurídica, é o incremento na participação política dos cidadãos. Afinal, a democracia pressupõe a participação”. (MACHADO SEGUNDO, 2010, p. 225.) Assim, deve-se procurar incrementar a participação popular nos processos orçamentários que visem às obras para os megaeventos. Corroborando o caminho seguido pela Constituição Federal, o Estatuto da Cidade15, contrariando, por exemplo, o procedimento que vem sendo adotado pelo Governo do Estado fiscalização das contas. Ao disciplinar os princípios que regem a administração pública o Art. 37, § 3º, possibilita ainda a criação de outras formas de participação do usuário na administração pública. Há também a possibilidade da participação popular no processo legislativo, através de audiências públicas e reclamações contra atos das autoridades, nas comissões das casas legislativas, previstas no Art. 58, II e IV, bem como a participação diretamente na produção de leis, através da iniciativa popular prevista no Art. 61, § 2º. Prevê ainda a participação de cidadãos no Conselho da República, conforme disposto no Art. 89, VII, e a participação de entidades de representação de classe na escolha do quinto constitucional para integrantes dos Tribunais Regionais Federais, Tribunais Estaduais e do Distrito Federal, conforme disciplinado no Art. 94. Disciplina também a participação popular na gestão da atividade de administrar, tais como: dos produtores e trabalhadores rurais no planejamento da política agrícola (Art. 187); dos trabalhadores, empregadores e aposentados nas iniciativas relacionadas à seguridade social (Art. 194, VII); da comunidade em relação às ações e serviços de saúde (198, III); da população através de organizações representativas nas questões relacionadas à Assistência Social (Art. 204, II); a gestão democrática do ensino público (206, VI); da colaboração da comunidade na proteção do patrimônio cultural (Art. 216, § 1º); da coletividade na defesa e preservação do meio ambiente (Art. 225); de entidades não governamentais na proteção à assistencial integral à saúde da criança e adolescente (Art. 227, § 1º) e das comunidades indígenas, inclusive nos lucros, das atividades que aproveitem os recursos hídricos e minerais das suas terras (231, § 3º) 15 Lei nº 10.257/2001. 247 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II do Ceará, nas desapropriações para obras da Copa do Mundo de 2014 16, prevê expressamente a participação popular nas decisões17 que envolvam projetos urbanos para o Município. Em contraposição, ainda visualiza-se resistência dos gestores públicos em permitir tal participação, talvez como forma de não permitir um controle popular dos atos praticados, dando margem a práticas políticas que visam não o interesse da coletividade, mas sim interesses dos próprios gestores ou de particulares, em especial aqueles detentores do poder econômico. Assim, a despeito de existir norma legal que dispõe sobre a participação popular, na prática, tal dispositivo torna-se apenas mais uma norma que não possui implementação efetiva por parte do Poder Público. É sabido que a democracia participativa é umas das formas de legitimação do Poder. Permitindo a participação dos cidadãos nos processo orçamentários, os gestores públicos acabam por legitimar seus atos, que serão praticados com a participação dos cidadãos diretamente envolvidos. Partindo desta premissa, a participação popular somente traria benefícios aos gestores públicos, que veriam seus atos aprovados pelos cidadãos diretamente interessados, fazendo sua gestão possuir uma maior legitimação. Então, porque não se implementa de forma efetiva tal participação? Como já disposto aqui, outros interesses envolvidos acabam por frear o processo de participação popular. Citemos por exemplo o interesse dos grandes grupos econômicos envolvidos, em especial das construtoras. Para tais grupos, a manutenção de comunidades pobres em áreas consideradas de alta especulação imobiliária acaba por inviabilizar ou mesmo dificultar a venda de eventuais imóveis localizados naquela região, em virtude da presença de nichos de pessoas pobres. Assim, a pressão que tais grupos fazem nos gestores públicos é enorme no sentido de que as obras públicas atravessem os locais de moradia de tais pessoas de baixa renda, retirando-os daquele local. Assim, permitir a participação de tais pessoas na definição do orçamento público, o que conduz a uma inevitável participação nos projetos das obras a serem realizadas, acabaria por dificultar a implementação dos interesses dos grandes empreendedores. Tanto é verdade que as principais obras projetadas para a realização de infraestrutura em cidades que vão sediar o evento Copa do Mundo de 2014, não estão contando com a 16 Várias violações, principalmente ao direito à moradia, estão sendo denunciadas nas desapropriações para as obras da Copa do Mundo de 2014, nas mais variadas cidades-sedes, tendo a população cearense também sido vítima de tais violações.. 17 Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: (...) II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; 248 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II participação popular na elaboração dos orçamentos e dos projetos, nem mesmo daquelas pessoas que serão diretamente afetadas por tais obras. Talvez tal atitude seja motivada pelo incômodo que pode gerar ao povo tal participação que, muitas vezes não terá benefícios reais das obras a serem realizadas com orçamento público, visto que, em muito casos, as pessoas de baixa renda são na realidade desalojadas do local onde vive. Matéria publicada no jornal eletrônico A COMUNA bem expõe tal descaso: Moradores de favelas, população de rua, prostitutas, e outros trabalhadores informais já começam a sentir os efeitos negativos das operações urbanas e do avanço da especulação imobiliária nas regiões centrais e próximas aos estádios. Milhares de famílias estão sendo forçadamente removidas das áreas onde vivem para a construção de infra-estrutura para os eventos, moradores de rua estão sendo assassinados pela polícia, e muitos trabalhadores informais perderam a possibilidade de trabalhar quer diante da intensificação da fiscalização dos municípios, quer pelo avanço do grande mercado capitalista nas zonas onde trabalhavam. Para essas pessoas a Copa do Mundo provavelmente não será a grande festa do futebol, mas o pesadelo de serem removidas dos espaços urbanos em que durante anos moraram e trabalhara. (COPA...,, 2012) Assim, apesar de avanços significativos, muito ainda deve ser realizado para que consigamos implementar uma democracia participativa ideal. Isto porque, a despeito das experiências aqui citadas, muitas das obras públicas não permitem ao cidadão interessado opinar sobre a forma de realização bem como de qual maneira se efetivarão os gastos públicos. O caso dos megaeventos é um deles. 3 OS MEGAEVENTOS E AS OBRAS PÚBLICAS DE INFRAESTRUTURA Após ser escolhida como sede para a Copa do Mundo de futebol de 2014 bem como das Olimpíadas de 2016, várias cidades brasileiras iniciaram o planejamento com vistas à criação de infraestrutura para realização de tal evento. Sem aqui adentrar na questão que contorna a necessidade e os reais interesses de tais eventos 18, os mesmos podem ser sim ser utilizados como meio de melhorar a infraestrutura da cidade, bem como também propiciar melhoras sociais para os cidadãos residentes da localidade onde tal evento irá ocorrer. Entretanto, conforme expomos neste trabalho, contrariando disposições constitucionais e legais expressas, verifica-se que apenas uma pequena parcela da população, em geral a parcela dos grandes investidores, se beneficia de forma direta de tais obras. A 18 Várias são as críticas que afirmam ser econômico o grande interesse para realização de tais eventos. A FIFA, juntamente com várias empresas multinacionais, não nega a questão econômica envolvida nos jogos, como se nota através da imposição de exclusividade para alguns de seus patrocinadores para os eventos. 249 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II população de baixa renda, muitas vezes já com altos graus de pobreza e de violações de sua dignidade, com a realização das obras, têm seus direitos ainda mais violados. Assim, é certo que, após tal escolha do Brasil como sede de tais eventos, vários projetos de obras iniciaram seu ciclo. Grande parte delas, para não dizer a totalidade, estão projetadas para concretização com uso do orçamento público, seja ele federal, estadual ou municipal. O seguinte trecho realça a quantidade de dinheiro público que será inicialmente gasto com tal evento: Além desse aterrador cenário que parece suspender disposições constitucionais básicas, é preciso ressaltar que os ônus advindos da realização dos jogos no Brasil incidirão quase que inteiramente sobre o dinheiro do povo. Já foi anunciada pelo Governo Federal uma estimativa de 23 bilhões em gastos para a Copa, dos quais 98% devem vir dos cofres públicos. Estados e municípios que não tem nada a ver com o Mundial, ficaram fora da bolada, assim como investimentos nas áreas prioritárias como a saúde, a educação e a proteção social do governo já estão a ser cortados. Acresce-se a isso o risco do país não conseguir recuperar o dinheiro investido e acabar ficando com dívidas, assim como aquelas levantadas pela África do Sul, no Mundial de 2010, a Grécia, nas Olimpíadas de 2004 e o Rio de Janeiro, com os jogos Pan Americanos. Outras medidas como a privatização de aeroportos e estádios de futebol, também parecem indicar que a população tem muito a perder com o Mundial. (COPA..., 2012) Dentro destes gastos públicos, pode-se ainda, por exemplo, citar a inclusão das cidades escolhidas dentro do chamado Programa de Aceleração do Crescimento. O denominado PAC contempla uma série de ações voltadas à dotação de equipamentos de infraestrutura rural e urbana, atuando através de um conjunto de obras e ações nos segmentos de energia, habitação, saneamento, mobilidade urbana e pavimentação, desenvolvimento comunitário, universalização de acesso aos serviços de água e luz e ampliação da rede logística de transportes19. Em decorrência do PAC bem como de outros projetos, várias são as obras em andamento no País. Todas com grande pressão da FIFA20 para que as mesmas sejam concluídas a tempo de aproveitamento para a Copa do Mundo de 201421. Em relação às olimpíadas que ocorrerão no Rio de Janeiro no ano de 2016, a situação não é diferente. A pressão das entidades organizadoras é constante para que tudo esteja pronto è época do 20 Para maiores informações acerca do Programa de Aceleração do Crescimento, pode-se visitar a página do programa, disponível em http://www.brasil.gov.br/pac. 20 A FIFA é uma entidade privada que controla e organiza o futebol mundial. 21 Veja por exemplo cobrança da FIFA, uma de muitas, realizada em plena época dos Jogos Olímpicos de Londres. Disponível em http://www.brasilturis.com.br/noticias.php?id=3322¬icia=fifa-aproveita-encontronao-agendado-em-londres-e-. Acesso em 27.07.2012. Em contrapartida, não se viu, em qualquer fase escolha do Brasil como sede dos megaeventos, qualquer manifestação de tal entidade em prol da participação da população nas decisões governamentais. 250 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II evento, não importando a forma que se utiliza para que se concluam as obras, mesmo havendo graves violações aos direitos dos cidadãos. Assim, em muitos casos, para que as obras venham a ser concluídas a tempo do evento, direitos das pessoas que sofrem o reflexo de tais obras são violados. Um desses direitos violados é do da falta de participação no orçamento que visam tais obras. Participação esta prevista na lei de Responsabilidade Fiscal, bem como implicitamente extraída do princípio democrático. O fato é que sequer tais pessoas têm qualquer participação no processo de elaboração do orçamento que visa a construção de tais obras, verificando, por exemplo, a real necessidade das mesmas. Questiona-se então se o interesse na realização e conclusão de tais obras não é puramente financeiro e que visa beneficiar não a população que realmente sofre com os reflexos de tais obras, em especial aquela população que terá suas moradias removidas22, mas sim os grandes investidores e patrocinadores do evento. Acreditamos que sim. Tais entidades pouco se preocupam com o desenvolvimento do país-sede bem como com os reflexos que os eventos podem trazer para o avanço social de tais países. Ao contrário, as obras, buscando a história recente de outros megaeventos, têm sido marcadas por violações aos direitos dos cidadãos habitantes das cidades-sedes. A título de ilustração, pode-se citar relatório elaborado pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, infra: “Em Seul, por exemplo, 15% da população sofreram despejos forçados e 48.000 edifícios foram demolidos antes dos Jogos Olímpicos de 1988. Em Pequim, nove projetos para a construção de um local representaram a expulsão em massa de seus residentes, por vezes realizadas por homens nãoidentificados, no meio da noite e sem aviso prévio. Em Nova Delhi, 35 mil famílias foram expulsas das terras públicas para preparar os Jogos da Commonwealth 2010. Na África do Sul, o projeto de habitação N2 Gateway, que incluiu a construção de habitação para arrendamento para a Copa do Mundo de 2010, resultou na retirada de mais de 20 mil moradores de Joe Slovo, um assentamento informal, que se mudaram para áreas pobres nos limites da cidade”. (PLANEJAMENTO..., 2011). Não se está aqui negando que os megaeventos podem trazer melhorias sociais, como também já aconteceu na história dos mesmos23. Entretanto, pretende-se demonstrar que as 22 É certo que muitas das obras implicam em desapropriação de moradias, em virtude da necessidade de construção e ampliação de vias, dos próprios estádios, e de infraestrutura em geral. 23 A respeito de resultados positivos experimentados em outros megaeventos, v. o acima citado relatório, que aponta o seguinte: a) em Moscou, os Jogos Olímpicos de 1980 marcaram a culminação de uma política de construção de moradias sociais com a transformação da Vila Olímpica em 18 edifícios de apartamentos com 16 andares; b) em Atenas, a Vila Olímpica erigida para os Jogos Olímpicos de 2004 deixou 3 mil novas unidades habitacionais subsidiadas em benefício de 10 mil residentes6; c) em Londres, a metade das 2,8 mil unidades da Vila Olímpica se convertirá em moradias acessíveis após os Jogos, e os planos atuais para a área do Parque Olímpico contemplam ao redor de 10 mil novas moradias, 35% das quais poderão ser adquiridas. 251 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II violações aos direitos dos cidadãos são constantes quando se fala em grandes obras que servem de base aos referidos eventos. Como obras de grande interesse da população, as mesmas, em consonância com a lei de responsabilidade fiscal, deveriam, quando da aprovação dos orçamentos a elas vinculados, bem como antes mesmo de tal aprovação, quando de sua discussão, propiciar a participação da população diretamente interessada, para que a mesma pudesse discutir a melhor forma de realização de tais obras, buscando obras que realmente satisfaçam o interesse da população e minimizando os impactos negativos de tais obras sobre a população, em especial a de baixa renda. Entretanto, a realidade brasileira é outra. Muitas das obras realizadas visam beneficiar não a população como um todo, mas sim empresários e instituições privadas. E um dos meios para concretização de tais interesses é a negação da participação popular, conforme discorreremos em seguida. 4 A (IN)EFETIVIDADE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR PREVISTA NA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL Como vimos, existe previsão legal na lei de responsabilidade fiscal que determina o incentivo à participação popular quando da discussão, elaboração e aprovação dos instrumentos orçamentários. Em que pese as iniciativas aqui já citadas, em muito casos, a aprovação dos orçamentos se dá sem qualquer possibilidade da população diretamente interessada opinar sobre os gastos a serem realizados pelo Poder Público, em desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal. O exemplo focado neste trabalho é o das obras para os megaeventos esportivos. Assim, questiona-se a efetiva participação da população nos processos orçamentários quando estão em jogo outros interesses, em especial os interesses privados. Não data de hoje as críticas em relação a obras para megaeventos. Em relação aos Jogos Pan-americanos de 2007, realizado no Rio de Janeiro, várias violações foram denunciadas. No que tange aos orçamentos, objetos deste estudo, a situação foi a mesma. Os gastos com o pan-americano do Rio de Janeiro foram os maiores da história. Muitas vezes, para não alertar para a grande quantidade de gastos públicos, divulga-se um valor inicial a ser gasto que, quase sempre, não é o valor final gasto. Vejamos o que dispõe o dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, ao analisar os gastos com o evento de 2007: A divulgação de aumento de gastos frequentemente ocorre muito tempo após terem sido efetuadas e, mesmo assim, nem todos os valores são publicados. Neste sentido, 252 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II a experiência do PAN 2007 é emblemática. O orçamento estimado em 2001, no momento de pré-candidatura do município à sede era de R$ 390,15 milhões. Porém, apenas seis meses após o encerramento dos jogos, foram contabilizados os gastos que chegaram a R$ 3,58 bilhões, segundo dados do Tribunal de Contas da União (TCU), indicando o acréscimo de quase 1.000 % em relação ao valor projetado inicialmente. A ausência de transparência agravou a situação, pois há indícios de que os dispêndios possam ter sido ainda maiores em função do TCU ter constatado que os gastos não foram inteiramente contabilizados e divulgados. Em decorrência disso o órgão O instaurou três processos investigativos. Ou seja, o direito à informação pública novamente não foi respeitado. No caso da preparação para os Jogos Olímpicos, há apenas uma estimativa inicial de orçamento constando no dossiê de candidatura, mas que, segundo depoimento do presidente da Autoridade Pública Olímpica, pode ser reajustada em quase o dobro já neste ano de 2012. (MEGAEVENTOS..., 2012). E muitos destes gastos foram realizados não para beneficiar a população que realmente necessitava. Colacionamos outro trecho do relatório citado: Por fim, concluímos que a atuação do Estado, através de seus gastos em um festival esportivo, privilegiou as despesas que favoreceram o atual padrão de acumulação capitalista no meio urbano, através de uma transferência de R$ 2,8 bilhões de recursos públicos para poucos. De fato, os Jogos Pan-americanos de 2007 serviram de elemento aglutinador de dirigentes esportivos, empresários e governantes na construção do consenso político em torno do modelo de cidade global e visaram à elevação dos rendimentos econômicos das classes mais favorecidas. Em decorrência, ocorreu um aprofundamento da desigualdade social e concentração de renda a despeito do legado de bem-estar social prometido. (MEGAEVENTOS..., 2012). O mesmo dossiê traduz o sentimento em relação aos resultados obtidos com o megaevento Pan-americano: Enfim, a experiência do Pan/2007 é esclarecedora, pois serviu de etapa e ensaio para megaeventos esportivos maiores Copa do Mundo de futebol de 2014 e Olimpíadas de 2016. E é com este olhar que encontramos o seu maior e pior legado, pois ficou provado que é possível transferir recursos públicos para a esfera privada, privilegiar as maiores empreiteiras do país, alargar as fronteiras de atuação do capital, diminuir os direitos sociais, agravar os conflitos urbanos, reduzir o grau de informação sobre as atividades públicas e aumentar a desigualdade social. Tudo camuflado sob o manto de interesses da coletividade que cultua as competições esportivas. Mas igualmente serviu de alerta à sociedade do ovo da serpente gerado. Oxalá reverteremos essa herança maldita em estopim da necessária transformação social. (MEGAEVENTOS..., 2012). Como se vê, não houve os benefícios desejados com o citado evento esportivo. Muito desta desvirtuação dos gastos públicos se deve à falta de participação popular nas obras a serem realizadas. Com a efetiva participação popular, um maior controle dos gastos públicos poderia ter sido realizado. E a falta de participação popular ocorre não por falta de legislação que o incentive. A Lei de Responsabilidade Fiscal, já amplamente exposta neste trabalho é um 253 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II exemplo. Ainda, a Resolução n. 13/2010 emitida pelo Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas recomenda às autoridades do país-sede “dar chance de participação no processo de planejamento, desde a fase de licitação, a todas as pessoas que se verão afetadas pela preparação do evento, e levar verdadeiramente em consideração suas opiniões”. Além disso, também sugere ao COI24 e a FIFA que os países candidatos a megaeventos esportivos “realizem processos abertos e transparentes de planejamento e licitação, com a participação da sociedade civil, em particular as organizações que representam o setor de moradia e as pessoas afetadas”. Entretanto a participação popular não é efetivada. Não sai das legislações para a prática. Muito disto se dá em virtude dos reais interesses por detrás dos megaeventos esportivos. A maioria dos benefícios são direcionados para a classe dominante. Citemos mais uma vez a experiência do Pan-americano de 2007: Enfim, a experiência do Pan/2007 é esclarecedora, pois serviu de etapa e ensaio para megaeventos esportivos maiores Copa do Mundo de futebol de 2014 e Olimpíadas de 2016. E é com este olhar que encontramos o seu maior e pior legado, pois ficou provado que é possível transferir recursos públicos para a esfera privada, privilegiar as maiores empreiteiras do país, alargar as fronteiras de atuação do capital, diminuir os direitos sociais, agravar os conflitos urbanos, reduzir o grau de informação sobre as atividades públicas e aumentar a desigualdade social. Tudo camuflado sob o manto de interesses da coletividade que cultua as competições esportivas. Mas igualmente serviu de alerta à sociedade do ovo da serpente gerado. Oxalá reverteremos essa herança maldita em estopim da necessária transformação social. Como se vê, a experiência ocorrida no Rio de Janeiro demonstrou que as obras de infraestrutura, no geral, visam beneficiar a camada mais favorecida da sociedade. Com este objetivo, não há como os gestores públicos permitirem a participação popular, pois, com tal participação, o objetivo principal, favorecer os detentores do capital, restaria obstacularizado, pois a participação pressupõe discussão sobre a real necessidade dos gastos públicos, o que, obviamente, traria para os grandes investidores problemas com a população local, que, com certeza, não aceitaria as obras da forma com que são projetadas e concluídas. Não podemos deixar de realçar que, algumas vezes, a participação popular é formalmente permitida, no intuito de legitimar as obras que estão sendo realizadas, sem contudo poder refletir de forma efetiva no desenrolar das obras públicas. Convoca-se, por exemplo, uma audiência pública, exigida pela legislação, apenas para cumprimento da mesma, já estando os projetos e os requisitos dos mesmos já traçados antes mesmo de se ouvir a população diretamente interessada. Foi por exemplo o ocorrido com a audiência publica que 24 Comitê Olímpico Internacional. 254 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II visava discutir as obras do VLT. Apesar de realizada tal audiência, não foi dada oportunidade de manifestação das comunidades diretamente interessadas (VLT..., 2012). Como se vê, há clara violação da Lei de Responsabilidade Fiscal que, em muitos casos, apenas é cumprida formalmente, sendo materialmente violada. Aliás, esta é uma realidade de vários dispositivos legais brasileiros que, apesar de formalmente aprovados, são desrespeitados sem qualquer escrúpulo, principalmente quando tais violações partem dos gestores públicos. E isto se dá em benefício de atores externos, como, por exemplo, especuladores imobiliários. 5 O CASO DAS OBRAS DO VLT DE FORTALEZA E A INFLUÊNCIA DA PARTICIPAÇÃO POPULAR Iremos neste tópico analisar, como forma de trazer para a seara prática o que já foi aqui afirmado em relação à falta de participação popular nos orçamentos que envolvem obras para os megaeventos. O caso aqui posto é o de construção dos Veículos Leves sobre Trilhos, que pretendem ser uma alternativa de transporte urbano, pretendendo modernizar o deslocamento dos turistas presentes na cidade de Fortaleza para os megaeventos. É importante inicialmente ressaltar que toda obra pública, de alguma forma, tende a beneficiar uma camada da população. Acontece que, conforme veremos, o benefício sempre é direcionado para as camadas mais abastadas da sociedade, não havendo uma preocupação com a população mais necessitada que, em muitos casos, sofre prejuízos com tais obras. Exigir a participação popular na elaboração dos orçamentos e projetos de infraestrutura para os megaeventos, a despeito da legislação citada é, na prática, uma utopia. Nenhuma forma de participação é permitida. A população diretamente atingida somente toma conhecimento do projeto da obra, ou mesmo da obra, quando, por exemplo, o imóvel em que reside entra na lista de imóveis a serem removidos, através de desapropriação. No caso dos megaeventos, já foi noticiada na imprensa a falta de participação da população, por exemplo, nos processos de desapropriação que visavam as obras de infraestrutura relativas aos megaeventos, motivo pelo qual levou até mesmo a Relatoria Especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre o Direito à Moradia Adequada a enviar carta ao governo brasileiro com as denúncias recebidas25. 25 O dossiê traz relatos interessantes de violações que estão ocorerndo em todo o país. Para maiores detalhes visualizar o dossiê em: http://faltacopa2014.wordpress.com/2011/05/13/dossie-denuncia-remocoes-da-copa/. 255 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Entre as denúncias, no que toca à obra aqui relatada, está a existência de outros locais possíveis para a desapropriação, tendo a Administração Pública escolhido para a passagem do VLT, utilizando-se de sua discricionariedade, comunidades onde residiam pessoas sem poder de reação ao procedimento, principalmente em virtude do baixo nível de escolaridade da comunidade (minorias pobres). Ainda, noticia-se que já se iniciou o processo de desapropriação sem qualquer comunicação às comunidades, bem como que foi oferecido aos moradores opção de nova moradia a ser construída em bairro bastante distante daquele em que residem, influenciando substancialmente na vida cotidiana das pessoas26(COMITÊS..., 2011). Ora, se os atos expropriatórios foram realizados sem qualquer participação popular, o que dizer dos projetos orçamentários que visavam a obra em questão. A população diretamente envolvida foi consultada e incentivada a opinar sobre a obra do VLT? É óbvio que não. Apesar disto, talvez em virtude das graves violações que estão sofrendo as comunidades envolvidas com as obras do VLT, em especial decorrentes de suas remoções compulsórios, começa a haver uma forte resistência de tais comunidades, exigindo-se sua participação no processo. Tal resistência demonstra a necessidade urgente de mudanças que propiciem a participação popular. Em grandes obras, que acabarão por refletir por vários anos sobre as comunidades, é essencial que haja a participação da população nos projetos. E esta participação acaba por trazer uma maior justiça social, visto que, ao contrário de privilegiar apenas as parcelas mais favorecidas da sociedade, tais obras, com a participação do povo, também ajudará as camadas menos favorecidas. Voltemos então para o exemplo da obra do VLT. Sem qualquer participação popular no projeto, houve a definição de como a obra iria ser desenvolvida. Tal obra pretendia inicialmente remover uma quantidade significante de pessoas de suas moradias, sob o argumento de que era necessária tal remoção para a construção dos terminais do VLT. Contudo, devido à grande resistência das comunidades, a quantidade de famílias a serem removidas diminuiu significativamente (OBRAS..., 2012). Isto demonstra os transtornos causados à população envolvida com as grandes obras em virtude da falta de participação popular na definição dos orçamentos e de como as obras irão ser realizadas. Os tempos são outros. A sociedade resiste com mais ênfase. Apesar de muitas vezes não se preocupar muito com a questão da participação popular, quando há resultados que os contrariem, a sociedade civil organizada reivindica seus direitos. E os gestores públicos, para 26 Nesta notícia, também podem ser encontrados relatos de violações aos direitos dos cidadãos afetados pelas obras. 256 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II evitar tais reivindicações podem muito bem utilizar a participação popular como meio de legitimação de suas decisões. Mas uma participação efetiva e não apenas formal. 6 CONCLUSÃO O presente trabalho pretendeu fazer um estudo e demonstrar que, apesar de previsão legal, a participação popular na definição das diretrizes orçamentárias que visam a gestão pública não acontece efetivamente na prática. No caso das obras que visam os megaeventos, a situação não é diferente. Isto porque, em virtude de outros interesses presentes, que muitas vezes influenciam a conduta dos gestores, a participação popular é vista como um obstáculo à manutenção de tais interesses. Entretanto, tem se verificado que, sem tal participação popular, os gastos públicos com tais obras acabam por chegar a cifras bem acima dos valores que deveriam ser gastos, apesar de críticas pontuais realizadas por alguns setores, em especial da imprensa jornalística esportiva. Ademais, os projetos das obras, em quase todas suas especificações, não têm uma preocupação social, mas apenas mascaram interesses de grupos econômicos dominantes na Sociedade. E uma forma de dar continuidade a tais interesses é deixa de fora do processo a população diretamente interessada, que seria um obstáculo à concretização dos interesses privados presentes. O que fazer então? Os órgãos de controle têm papel essencial em tal efetivação. Ministério Público, Defensoria Pública e Tribunal de Contas devem realizar seu papel cobrando a participação da população em tais obras, desde a aprovação do orçamento até a concretização das mesmas. Ainda, o Judiciário deve estar atento para tomar medidas eficazes, quando provocado, para combater os desmandos do Poder, fazendo com que os gestores públicos sejam obrigados a respeitar o dispositivo legal da Lei de Responsabilidade Fiscal. Outro meio talvez seja a conscientização da população através da educação e da informação, a serem repassadas não somente por órgãos institucionais, mas também por entidades privadas de defesa da população de baixa renda, como as ONGS, que estão cada vez mais assumindo papel importante nesta luta. Também há uma evolução neste sentido. As comunidades estão mais ativas em não aceitar passivamente os atos públicos. Entretanto, entendemos que o gestor público ainda está vencendo tais batalhas. Apesar de tais evoluções, os desmandos ainda estão sendo realizados. 257 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Cremos que, com uma maior mobilização popular, contando com o apoio das entidades aqui citadas, o dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal tende a ser mais efetivamente cumprido. 258 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II REFERÊNCIAS AMARAL, Roberto. A democracia representativa está morta; viva a democracia participativa. In: Direito Constitucional Estudos em Homenagem a Paulo Bonavides. Malheiros: São Paulo, 2001. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2004. COMITÊS populares se articulam para denunciar irregularidades em obras da Copa e das olimpíadas. Portal Jogos Limpos dentro e fora dos estádios. Disponível em: http://www.jogoslimpos.org.br/destaques/comites-populares-se-articulam-para-denunciarirregularidades-em-obras-da-copa-das-olimpiadas/. 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O artigo 196 da Constituição Federal conceitua que a saúde é direito de todos e dever do Estado, propondo a universalidade da cobertura do Sistema Único de Saúde (SUS), constituindo uma grande mudança da situação vigente na época. A universalidade, por sua vez, é condição fundamental para a equidade, entendida como igualdade de oportunidade na utilização de serviços de saúde para necessidades iguais. Discutir a equidade significa considerar a diferença, a diversidade, a pluralidade da condição humana. No bojo dessa discussão, o presente artigo visa discutir a equidade no contexto da gestão do SUS, buscando verificar se esse conceito aparece nos serviços de alta complexidade. Utilizando-se a pesquisa bibliográfica conclui-se que a prioridade nas transferências de recursos para os procedimentos de alta complexidade no SUS, indica uma proximidade com o conceito de equidade na saúde, na medida em que esses recursos estarão atendendo, não somente a classe média, mas toda a população que necessite. Palavras-chave: Direito à Saúde; SUS; Equidade; Financiamento. ABSTRACT The Law to health in Brazil began its achievements with the Health Reform Movement in 1988 and with the definition in the Constitution relating to the health sector. Article 196 of the Constitution defines that health is everyone's law and duty of the state, proposing the universality of coverage of the Unified Health System (SUS), constituting a major change in the situation prevailing at the time. Universality, in turn, is a prerequisite for equity, understood as equality of opportunity in the use of health services for equal needs. Discuss equity means considering the difference, diversity, plurality of the human condition. In the midst of this discussion, this article aims to discuss fairness in the context of NHS management, seeking to verify if this concept appears in the services of high complexity. Using the literature concludes that the priority in transfers of resources to high-complexity procedures in SUS, indicates a closeness with the concept of health equity to the extent that these resources will be attending, not only the middle class but all people in need. Keywords: Law to Health; SUS; Equity; Financing. 261 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II INTRODUÇÃO O tema da equidade em vem sendo abordado por vários autores no âmbito das políticas públicas de saúde, visando, por meio da descentralização do Sistema Único de Saúde (SUS), encontrar saídas para melhorar as condições de saúde da população brasileira. Um debate complexo primeiro, pela dificuldade na escolha do conceito de eqüidade mais apropriado para o campo da saúde e, segundo, pelo próprio contexto histórico da situação socioeconômica e cultural brasileira. O presente artigo não visa discutir a operacionalização das diretrizes constitucionais de descentralização e de participação social para a organização e gestão do SUS, mas discutir a eqüidade no contexto da gestão do Sistema Único de Saúde, buscando verificar se esse conceito aparece nos serviços de alta complexidade. Assim, entender o significado de eqüidade na saúde é fundamental para a presente discussão. Como afirma Lucchese (2003, p. 441), “encontrar a interpretação do conceito de eqüidade mais adequada ao campo de atuação em saúde para então operacionalizá-la em tarefas de gestão do sistema orientadas à redução de desigualdades é um grande desafio”. Autores como Lucchese (2003), Viana, Fausto e Lima (2003) e Escorel (2001), fazem referência à discussão presente na literatura internacional, que vem adotando como ponto de partida para novas definições do termo eqüidade, o conceito desenvolvido por Whitehead (1990) em seu trabalho intitulado “The concepts and principles of equity in health”. Para Whitehead (1990, p.7) “eqüidade implica que idealmente todos deveriam ter a justa oportunidade de obter seu pleno potencial de saúde e ninguém deveria ficar em desvantagem de alcançar o seu potencial, se isso puder ser evitado1”. Ou ainda, que iniqüidades em saúde "referem-se às diferenças desnecessárias e inevitáveis e que são ao mesmo tempo consideradas injustas e indesejáveis2” (WHITEHEAD, 1990, p. 5). Na opinião de Chetre (2000, s/p), “eqüidade sugere que pessoas diferentes deveriam ter acesso a recursos de saúde suficientes para suas necessidades de saúde e que o nível de saúde observado entre pessoas diferentes não deve ser influenciado por fatores além do seu controle3”. Nesse sentido, a iniqüidade ocorre quando diferentes grupos têm acesso diferenciado a serviços de saúde ou diferenças nas condições de saúde. 1 "Equity in health implies that ideally everyone should have a fair opportunity to attain their full health potential and no one should be disadvantaged from achieving this potential if it can be avoided". 2 " It refers to differences which are unnecessary and avoidable but, in addition, are also considered unfair and unjust". 3 "Equity suggests that different people should have access to sufficient health resources for their health needs and that the level of health that is observed among different people is not influenced by factors beyond their control". 262 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Assim, a eqüidade é “a introdução da diferença no espaço da igualdade e é parte do processo histórico de lutas sociais que conformam em diversos contextos (tempo e espaço) padrões de cidadania diferenciados”. Uma cidadania ampliada “na medida em que, ao contrário dos direitos individuais civis e políticos, exigem a intervenção do Estado e incorporam novos princípios ao desenvolvimento de padrões de cidadania” (ESCOREL, 2001, p.2-3). Os princípios da igualdade e da universalidade na saúde tendem à homogeneização e acabam por diluir as diferenças, prejudicando os cidadãos menos favorecidos. No entanto, quando se introduz na discussão a eqüidade, no sentido de considerar a diferença, possibilitamos a incorporação da diversidade, da pluralidade da condição humana, no contexto das políticas sociais. É possível, entretanto, aproximar os conceitos de igualdade e eqüidade, pois ambos “partem do princípio que a humanidade é diversa, plural, que os seres humanos diferem entre si em suas personalidades, identidades e necessidades” (ESCOREL, 2001, p.5). Incorporar a eqüidade no contexto da igualdade é para Escorel (2001), um avanço no contexto das lutas sociais e das discussões sobre cidadania, no entanto, é preciso ficar atento para a exacerbação do termo “cidadanias diferenciadas”, pois corre-se o risco de ressaltar a inferiorização, a desqualificação dos mais pobres. Sendo assim, a primeira parte do presente trabalho apresenta discussão sobre os dilemas presentes entre os conceitos de justiça, eficiência e eqüidade. Para tanto, busca-se referencial teórico em Bustelo (1994), Figueiredo (1997), Travassos (1997), Coelho (1998), Vita (1999) e, principalmente, na discussão sobre “justiça como eqüidade” desenvolvida por John Rawls (2002). Na segunda parte, discute-se a universalidade e a integralidade no SUS, evidenciando-se os desafios da universalidade e do financiamento público em saúde. Na seqüência, busca-se verificar a presença do conceito de eqüidade no serviço de alta complexidade do SUS por meio de dados divulgados pelo Ministério da Saúde (MS), pelos estudos do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (CONASS), pelo Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS), pelo DATASUS, pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), pelos resultados do PNAD (2003) apresentados por Travassos (2005) e pela pesquisa coordenada por Vianna (2005). Por fim, conclui-se, por meio dos dados apresentados, que nos procedimentos de alta complexidade o SUS aproxima-se mais dos princípios de universalidade no atendimento e integralidade no acesso, pois está atingindo praticamente a totalidade da população. A prioridade nas transferências de recursos para os procedimentos de alta complexidade no SUS indica uma 263 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II proximidade com o conceito de eqüidade na saúde, na medida em que esses recursos estarão atendendo, não somente a classe média, mas toda a população que necessite. 1 DESIGUALDADE VERSUS EQÜIDADE Bustelo (1994), em seu texto “Hood Robin: Ajuste e eqüidade na América Latina” apresenta algumas reflexões sobre os ajustes e as reformas econômicas, o aumento da pobreza e da desigualdade social, no período da década de 1980. Utilizando-se de dados de diferentes pesquisas (Banco Mundial, Cepal e outros), conclui que, nesse período, se acentuaram as disparidades de renda, a pobreza aumentou, sobretudo nas áreas urbanas; a população mais pobre sofreu perda maior de sua renda, em contrapartida os mais ricos melhoraram a renda em números absolutos. Quanto aos gastos sociais, constatou-se que houve uma diminuição em percentuais significativos, reduzindo a despesa real per capita em saúde, educação e seguridade social4. A eqüidade é segundo Bustelo (1994), o ponto político, social e econômico mais delicado na agenda latino-americana. Equacionar a eqüidade com a eficiência implica evitar o aumento das distâncias sociais, pois os equilíbrios macrossociais são tão importantes quanto os equilíbrios macroeconômicos. Para o autor é importante abrir e ampliar os espaços de integração social nos quais se reconciliem as complementaridades entre a eqüidade e a eficácia. Então, para melhorar a eqüidade, além de requerer o crescimento, requer políticas sociais que atuem sobre a distribuição da renda e da riqueza e não apenas políticas de combate, as que configuram as metas “brandas” – metas relacionadas à tecnologia simples e de baixo custo, porém de alto impacto, como é o caso da morbi-mortalidade infantil. Portanto, falar em eqüidade implica falar de uma política social e econômica mais eficiente, proporcionando uma maior cobertura, integração e qualidade dos serviços e políticas públicas. No entanto, uma das grandes dificuldades em se definir uma distribuição social adequada de recursos na área de saúde é conciliar justiça e eficiência (COELHO, 1998). Dilemas entre justiça e eficiência repetem-se quando se procura estabelecer prioridades nas políticas de saúde. Por um lado, “afirmar o princípio da eficiência significa negar socorro ao mais necessitado ou discriminar certas categorias de indivíduos, o que é injusto e bárbaro”, por outro lado, “afirmar princípios de justiça pode (...) significar que recursos que 4 Rocha (2005) aponta que o gasto social no Brasil – que inclui a totalidade dos gastos da previdência, da saúde, da educação – equivale à cerca de 20% do PIB. 264 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II provavelmente salvariam determinados pacientes serão consumidos por outros sem que resultem para estes últimos em benefícios significativos ou duradouros” (COELHO, 1998, p. 115). No entendimento de Figueiredo (1997), a distribuição com base no critério da necessidade gera um resultado mais igualitário. No entanto, distribuir de acordo com necessidade requer uma alocação diferenciada de recursos, pois as necessidades são diferentes. Os sistemas de seguridade social são, em geral, mistos com ênfase maior no mérito ou na necessidade. Ao mesmo tempo em que garantem acesso a todos, distribuem de forma a contemplar as necessidades, por meio de regras de seletividade e, o mérito, por meio da manutenção do vínculo entre benefício e contribuição. Eis, novamente, o dilema. Para Rawls (2002, p. 7), não é possível avaliar uma concepção da justiça unicamente por seu papel distributivo, é preciso levar em conta suas conexões mais amplas, “pois embora a justiça tenha uma certa prioridade (...), ainda é verdade que, em condições iguais, uma concepção de justiça é preferível a outra quando suas conseqüências mais amplas são mais desejáveis”. Os princípios da justiça social, na teoria de Rawls, fornecem um modo de atribuir direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição apropriada dos benefícios e encargos da cooperação social. Rawls (2002, p. 64) trabalha com dois princípios de justiça: Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos (grifos meus). Para o autor, todos os valores sociais devem ser distribuídos igualitariamente a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores traga vantagens para todos. Nessa visão, a injustiça se constitui de desigualdades que não beneficiam a todos. Rawls apresenta três princípios distintos de acordo com os quais a distribuição de benefícios sociais e econômicos poderia ocorrer: a liberdade natural, a igualdade liberal de oportunidades e a igualdade democrática. O sistema de liberdade natural defende que um complexo institucional justo será aquele que combinar uma economia competitiva de mercado com uma igualdade formal (ou legal) de oportunidades. O princípio de igualdade liberal de oportunidades visa assegurar um ponto de partida igual para aqueles que têm talentos e capacidades semelhantes e estão similarmente motivados a empregá-los. O que se exige são instituições e políticas que tenham por objetivo 265 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II neutralizar, tanto quanto possível, as contingências sociais e culturais que condicionam as perspectivas que cada pessoa tem de cultivar seus próprios talentos. Na opinião de Vita (1999), para os que têm sentimentos igualitários a desigualdade social fundada em diferenças de talento e qualificação é ainda mais odiosa do que as desigualdades de renda e de riqueza consideradas em si mesmas. A igualdade democrática requer que os ricos abram mão de tirar proveito das circunstâncias sociais e naturais que os beneficiam, a não ser que o benefício se estenda também aos pobres. Na discussão de uma justiça eqüitativa, Rawls adota a interpretação da igualdade democrática como a mais indicada e utiliza o princípio da diferença como solução para enfrentar as arbitrariedades das políticas sociais. O princípio da diferença afirma que “não importa o quanto a situação de cada pessoa seja melhorada; do ponto de vista do princípio da diferença, não há ganho algum a não ser que o outro também ganhe5” (RAWLS, 2002, p. 80). Na interpretação de Vita (1999), só são moralmente legítimas as desigualdades sociais e econômicas estabelecidas para melhorar a sorte daqueles que se encontram na posição inferior da escala de quinhões distributivos. Percebe-se que o autor aposta na eqüidade para aparar os feitos negativos da desigualdade. No entanto, a forma como se dá a distribuição de recursos sociais ainda é um dilema. Um dilema que se repete quando se procura estabelecer prioridades nas políticas de saúde (COELHO, 1998). Há um consenso de que a eficiência dos sistemas públicos de saúde depende de uma alocação equilibrada dos recursos entre seus diversos setores. No entendimento do CONASS (2006, p. 85), “problemas complexos como os da Saúde exigem soluções complexas e sistêmicas”. Portanto, é preciso equilibrar as ações e os investimentos do sistema de saúde nos níveis de baixa, média e alta complexidade. Veremos mais adiante que isso não ocorre. A 5 Na perspectiva de Rawls, o princípio da diferença considera a desigualdade justificável apenas se a diferença de expectativas for vantajosa para os mais pobres. Ao aplicar esse princípio deve-se distinguir entre dois casos. O primeiro caso é aquele em que as expectativas dos mais pobres estão de fato maximizadas. Nenhuma mudança nas expectativas dos mais ricos pode neste caso, melhorar a situação dos mais pobres. O segundo caso é aquele em que as expectativas de todos os mais ricos de qualquer forma contribuem para o bem-estar dos mais pobres. Ou seja, se as suas expectativas fossem diminuídas as expectativas dos pobres cairiam da mesma forma. No entanto, um esquema desses é injusto quando uma ou mais das maiores expectativas são excessivas. Se essas expectativas fossem diminuídas, a situação dos mais pobres seria melhorada. A medida da injustiça de um ordenamento depende de quão excessivas são as expectativas mais altas e da extensão em que sua realização depende da violação dos outros princípios de justiça, por exemplo, a igualdade eqüitativa de oportunidades (RAWS, 2002). 266 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II tendência dos investimentos do Ministério da Saúde (MS) não é de equilíbrio entre os três níveis, e sim de prioridade dos investimentos em alta complexidade. 2 SUS: UNIVERSALIZAÇÃO E INTEGRALIDADE EM ANÁLISE A seção de saúde da Constituição Federal de 1988 e as Leis n. 8.080 e 8.142 de 1990 constituem as bases jurídicas do SUS. A criação do Sistema Único incorpora grandes demandas do movimento sanitário, tais como: a saúde entendida amplamente como resultado de políticas econômicas e sociais; a saúde como direito de todos e dever do Estado; a relevância pública das ações e serviços de saúde; e a criação de um sistema único de saúde, organizado pelos princípios da descentralização, do atendimento integral e da participação da comunidade (CONASS, 2006, p. 25). O SUS, segundo dados do CONASS (2006), organiza-se por meio de uma rede diversificada de serviços, que envolve cerca de 6 mil hospitais, com mais de 440 mil leitos contratados e 63 mil unidades ambulatoriais. São 26 mil equipes de saúde da família, 215 mil agentes comunitários e 13 mil equipes de saúde bucal prestando serviços de atenção primária em mais de 5 mil municípios brasileiros. Anualmente o SUS contabiliza 12 milhões de internações hospitalares, mais de 1 bilhão de procedimentos em atenção primária à saúde, 150 milhões de consultas médicas, 2 milhões de partos, 300 milhões de exames laboratoriais, 1 milhão de tomografias computadorizadas, 9 milhões de exames de ultra-sonografia, 140 milhões de doses de vacina, mais de 15 mil transplantes de órgãos, entre outros. Apesar desses números, o SUS ainda tem grandes desafios a superar, dentre eles, o desafio da universalidade e o desafio do financiamento. 2.1 OS DESAFIOS DA UNIVERSALIDADE A universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência é um dos princípios do SUS, previsto na Lei 8.080 de 1990 (BRASIL, 2007), assim como a integralidade na assistência; a igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência à saúde da população, entre outros. 267 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A universalidade no acesso aos serviços de saúde é, portanto, condição fundamental para a eqüidade (TRAVASSOS, 1997). Na Constituição Brasileira (BRASIL, 1988), eqüidade foi tomada como igualdade no acesso aos serviços de saúde, igualdade de oportunidade na utilização de serviços de saúde para necessidades iguais6. Definição que, de forma humilde, admite a complexidade no campo da saúde. Para Mendes (1995) a universalização da saúde consagrada na Constituição de 1988 tinha como pretensão a inclusão de todos nos benefícios do sistema público de saúde, no entanto, a expansão da universalização do sistema de saúde veio acompanhada de mecanismos de racionamento, especialmente a queda na qualidade dos serviços públicos que acaba por expulsar do subsistema público segmentos sociais de camadas médias, absorvidos pelo subsistema privado. Nesse sentido, o mandamento constitucional é reinterpretado na prática social não como um universalismo inclusivo, mas como um universalismo excludente que garante a incorporação ao sistema público de segmentos mais pobres. Cria-se para clientelas distintas, diversas modalidades assistenciais, tornando o sistema público mais uma modalidade assistencial para pobres. Entretanto, os segmentos sociais expulsos não são totalmente excluídos do sistema público porque continuam a depender dos serviços de alta complexidade, com alto custos, que normalmente não são cobertos pelo sistema médico privado. Falar em igualdade no acesso aos serviços de saúde, ou ainda, na igualdade de oportunidade para necessidades iguais, sem avaliar as desigualdades nas condições socioeconômicas dos indivíduos é permanecer na obscuridade. Nesse sentido, Travassos (1997) alerta para a importância em considerar que os custos incorridos no consumo de serviços de saúde incluem, também, custos de transporte, de espera para o atendimento, de aquisição de medicamentos etc. Esses tendem a ser, proporcionalmente à renda, maiores para os grupos de menor renda, que geralmente vivem em áreas onde a disponibilidade de serviços é menor dificultando o acesso. Não há igualdade no acesso à saúde, há sim desigualdade, diferença; uma realidade que reflete as desigualdades sociais. Nas palavras de Travassos (1997, s/p.): As desigualdades em saúde refletem, dominantemente, as desigualdades sociais, e, em função da relativa efetividade das ações de saúde, a igualdade no uso de serviços de saúde é condição importante, porém não suficiente, para diminuir as desigualdades existentes entre os grupos sociais no adoecer e morrer. 6 O termo equidade não consta no texto da Constituição Brasileira de 1988, aparece na 8ª Conferência – Princípio da Reforma Sanitária. 268 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Na prática, a maioria dos países apresenta sistemas mistos de eqüidade. No Brasil, o SUS vem se consolidando como parte de um sistema segmentado que incorpora dois outros subsistemas relevantes, o Sistema de Saúde Suplementar (sistema privado de assistência à saúde) e o Sistema de Desembolso Direto (serviços de saúde adquiridos em prestadoras privadas mediante gastos diretos dos bolsos das pessoas). Isso se dá, por várias razões, “especialmente pelas dificuldades de se criarem as bases materiais para a garantia do direito constitucional da universalização” e pelo fato do SUS se estruturar para responder demandas dos setores mais pobres da população e demandas setorizadas, especialmente dos serviços de maiores custos, da população integrada economicamente (CONASS, 2006, p. 50). Na definição do CONASS (2006), sistemas públicos universais caracterizam-se por ofertar a todos os cidadãos uma carteira bastante ampla, independentemente de gênero, idade, renda ou risco, com financiamento público. Os sistemas segmentados, por sua vez, caracterizam-se por segregar diferentes clientelas em nichos institucionais singulares. Nesse caso, os sistemas público e privado são complementares, visto que atendem, mais ou menos amplamente, a clientelas distintas. A Tabela 1 apresenta a composição relativa dos usuários do SUS, reforçando a característica de um sistema de saúde segmentado. Esses dados foram obtidos pelo CONASS (2003) em pesquisa realizada para saber a opinião dos brasileiros sobre o SUS. Foram entrevistadas 3200 pessoas distribuídas proporcionalmente em cinco grandes regiões. Observa-se que 28,6% dos brasileiros pesquisados são usuários exclusivos do SUS, 61,5% são usuários não exclusivos e 8,7% são não-usuários. Pode-se afirmar, então, que 61,5% dos brasileiros utilizam-se também do sistema privado e que 8,7% são usuários exclusivos dos sistemas privados. 269 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II TABELA 1 – PERCENTUAIS DE USUÁRIOS EXCLUSIVOS, NÃO EXCLUSIVOS E NÃOUSUÁRIOS DO SUS CATEGORIAS USUÁRIO SUS USUÁRIO SUS NÃO NÃO-USUÁRIO SUS EXCLUSIVO EXCLUSIVO 28,6 61,5 8,7 GERAL REGIÃO GEOGRÁFICA CENTRO-OESTE 20,6 69,2 8,5 NORDESTE 25,6 67,1 5,0 NORTE 31,9 64,2 3,4 SUDESTE 29,6 57,7 11,8 SUL 33,0 57,6 8,7 PARTE DO MUNICÍPIO CAPITAL 30,1 55,7 13,0 INTERIOR 27,6 65,2 5,9 ZONA RESIDENCIAL URBANA 28,3 61,0 9,8 RURAL 29,9 63,6 3,9 FONTE: CONASS (2003). Adaptação dos autores. A mesma pesquisa identificou os diferentes graus de complexidade dos serviços utilizados. Os resultados são apresentados na Tabela 2. Dos 86,8% do total de usuários considerados exclusivos e compartilhados SUS, somente 5,8% dos pesquisados utilizaram serviços de alta complexidade do SUS, enquanto 98% utilizaram os serviços de atenção básica. TABELA 2 – TIPOS DE SERVIÇO DO SUS UTILIZADOS NOS ANOS DE 2001 A 2003 – Em % TIPOS DE USUÁRIOS GERAL 86,8 Usuário de atenção básica 98,0 Usuário de atenção média 81,9 complexidade Usuário de pronto atendimento 43,7 Usuário de atenção hospitalar 40,6 Usuário de atenção de alta 5,8 complexidade FONTE: Adaptado de CONASS, 2003. CENTROOESTE 86,0 97,7 82,8 NORDESTE NORTE SUDESTE SUL 89,1 97,9 79,1 92,7 97,8 77.3 85,0 98,1 84,8 85,5 98,1 80,9 48,5 42,7 6,4 41,6 44,6 4,0 35,1 40,5 3,0 47,1 38,7 6,9 39,9 38,0 7,2 Percebe-se que há uma concentração maior na demanda por serviços de atenção básica e de média complexidade. Enquanto que, um percentual pequeno, 5,8% no geral, busca serviços de alta complexidade. 2.2 OS DESAFIOS DO FINANCIAMENTO O desafio do financiamento da Saúde no Brasil, segundo o CONASS (2006), pode ser analisado sob vários aspectos. O mais comum é o da insuficiência dos recursos financeiros 270 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II para se construir um sistema público universal. Nesse aspecto, o desafio está em, não só, aumentar os investimentos, mas, também, melhorar a qualidade desse investimento. De acordo com Carvalho (2007, s/p.), no Brasil, mais de 30% da população vive em estado de pobreza (renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo), e os gastos das famílias com habitação, alimentação e transportes têm, em média, uma participação superior a 82% no total das suas despesas, não incluídos aí os gastos com saúde, equivalentes a 5,35% do total. No entendimento de Travassos (1997), uma situação mais igualitária no sistema de saúde brasileiro depende de maior disponibilidade de recursos financeiros para o setor, além de um melhor uso dos já existentes com a implementação de uma política redistributiva na alocação de recursos entre as esferas de governo e organização da rede local de serviços de saúde para garantir uma melhor distribuição espacial desses serviços, adequando a oferta às necessidades dos diversos grupos populacionais. Na Constituição de 1988 ficou estabelecido que a responsabilidade do financiamento seria compartilhada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. O SUS contava também com o Orçamento da Seguridade Social – OSS, destinado ao financiamento das áreas de Previdência Social, Saúde e Assistência Social e que estava apoiado na arrecadação das Contribuições Sociais. A Constituição previa, no entanto, somente a participação da União, que deveria destinar 30%, no mínimo, do orçamento da seguridade social, excluído o desemprego, para o setor de saúde (BRASIL, 2005). Apesar da previsão legal, até o ano de 1993, esse volume de recursos não chegou a ser efetivado. Nesse ano instaurou-se uma crise no financiamento com a interrupção dos repasses de recursos arrecadados pelo OSS. O MS assumiu o financiamento contraindo empréstimos junto ao Fundo de Amparo do Trabalhador – FAT, pagos nos anos de 1997 e 1998. Na busca por soluções, criou-se a Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira7 (CPMF), uma contribuição vinculada à saúde e baseadas na movimentação financeira. Dois anos depois, ela perdeu a sua exclusividade para a saúde, embora tenha sido prorrogada “após intensos debates legislativos” (CARVALHO, 2007). Somente em 2000, e após um processo de negociação no Congresso, a Emenda Constitucional 29 – EC 29 estabeleceu a vinculação de recursos para ações e serviços públicos de saúde para União, Estados e Municípios. Para a União, o limite mínimo de gasto foi estabelecido como o valor empenhado em 1999, acrescido de 5% e nos 7 A Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF) foi extinta em 31 de dezembro de 2007. 271 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II anos subseqüentes, acrescido da variação nominal do Produto Interno Bruto – PIB. Para Estados, o montante mínimo de recursos a ser aplicado em saúde é de 12% da receita de impostos e transferências constitucionais e legais e, para os Municípios, esse percentual chega em 15% (BRASIL, 2005; CONASS, 2006). Observando a Tabela 3, em termos de percentual do Produto Interno Bruto, os recursos destinados às ações e serviços de saúde dos três níveis de governo cresceram entre 2000 e 2002, passou de 3,09% em 2000 para 3,48% em 2002, com ligeira queda em 2003, atingindo 3,45% do PIB. A redução em 2003 deveu-se ao investimento federal, que apresentou uma redução em termos de percentual do PIB destinado à saúde (BRASIL, 2005). TABELA 3 – RECURSOS DESTINADOS ÀS AÇÕES E SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE POR NÍVEL DE GOVERNO EM PERCENTUAL DO PIB, 2000 A 2003 2000 2001 2002 2003 2000 2001 2002 2003 Em % do PIB Índice 2000 = 100 União 1,85 1,87 1,84 1,75 100,0 101,1 99,5 94,6 Estados 0,57 0,69 0,77 0,79 100,0 121,1 134,4 138,6 Municípios 0,67 0,77 0,87 0,91 100,0 114,9 129,9 135,8 Total 3,09 3,34 3,48 3,45 100,0 108,1 112,5 111,7 FONTE: SIOPS/SCTIE/MES. Notas técnicas 10/2004 e 09/2005 e IBGE. In: BRASIL, 2005, p. 4 De acordo com os dados do SIOPS, pode-se afirmar que essa redução, de 2002 para 2003, é uma tendência observada ao longo dos anos (Tabela 4) e a a queda de participação federal após a implantação da EC 29 decorre, principalmente, do crescimento dos recursos transferidos pelos demais níveis de governo. TABELA 4 – PARTICIPAÇÃO NOS RECURSOS DESTINADOS À SAÚDE SEGUNDO O NÍVEL DE GOVERNO 1980-2003 ANO UNIÃO ESTADOS MUNICÍPIOS 75,0 17,8 7,2 1980 71,7 18,9 9,5 1985 72,7 15,4 11,8 1990 63,8 18,8 17,4 1995 59,7 18,5 21,7 2000 56,2 20,7 23,2 2001 52,9 22,0 25,1 2002 50,7 22,8 26,5 2003 FONTE: Equipe SIOPS/DES/SCTIE/MS. In: BRASIL, 2005, p.5 Obs.: Dados 1980 – 1990 – Despesa total com saúde; 1995- Gasto público com saúde 2000 a 2003 – ações e serviços públicos de saúde, segundo a EC-29. A Tabela 5 mostra a evolução dos investimentos do MS, nos últimos dez anos, com algumas categorias, merecendo destaque o incremento de 479% para medicamentos de dispensação em caráter excepcional (drogas de alto custo e de uso permanente e, por vezes, com indicação terapêutica para doenças raras), em valores corrigidos pelo IPCA de dezembro 272 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II de 2004, tendo aumentado sua participação no gasto total com medicamentos (excepcionais, estratégicos e farmácia básica) de 14% em 1995 para 34% em 2004. TABELA 5 - EVOLUÇÃO DOS INVESTIMENTOS DO MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1995 A 2004 – R$ MILHÕES DE DEZEMBRO DE 2004 - IPCA TIPO DE GASTO 1) Média e Alta Complexidade Serviços Produzidos (AIH/SIA) Fundo a Fundo Gestão Plena (ou Semiplena) Medicamentos Excepcionais (1) 2) Atenção Básica PAB Fixo PAB Variável Epidemiologia e Controle de Doenças Farmácia Básica Ações Básicas Vigilância Sanitária PACS / PSF Bolsa Família, Alimentação e Combate, Carências Nutricionais 3) Medic. Estratégicos (2) 4) Saneamento Básico 5) Emendas Parlamentares 6) Demais Ações OCK 7) Pessoal Ativo AÇÕES E SERVIÇOS DE SAÚDE - TOTAL 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 11.819 11.797 13.685 12.501 13.568 14.447 15.017 14.358 14.817 15.807 10.583 9.159 9.509 6.901 8.271 6.304 5.631 6.104 5.870 1.290 1.236 2.638 4.178 5.598 5.296 8.142 9.386 8.254 8.947 14.517 1.093 2.515 3.892 5.329 5.011 7.632 8.792 7.714 8.392 13.691 143 123 286 271 285 512 596 539 555 826 2.557 2.277 3.035 3.662 3.943 4.382 4.894 4.972 5.122 5.997 2.152 2.017 2.358 2.833 2.683 2.460 2.369 2.192 2.036 2.094 405 260 677 829 1.259 1.922 2.525 2.780 3.086 3.903 202 204 281 482 708 649 662 641 74 187 234 222 195 190 186 6 9 35 82 91 56 87 88 93 83 152 195 269 372 489 935 1.282 1.550 1.747 2.163 249 875 125 0 3.530 4.726 56 407 60 123 3.011 4.160 171 953 152 341 3.602 4.092 97 864 235 408 3.710 3.702 211 1.262 304 535 4.327 3.777 217 1.178 227 546 4.473 3.749 225 1.136 1.587 823 2.808 3.478 299 1.349 670 516 3.728 3.498 394 1.275 109 548 3.790 3.590 830 1.418 471 753 4.447 3.810 23.632 21.835 25.861 25.082 27.715 29.001 29.743 29.091 29.249 32.703 FONTE: Departamento de Economia da Saúde / SCTIE / MS, cálculo de deflação pelo - IPCA realizado pelo IPEA. In: CARVALHO, 2007, s/p. (1) Inclui os relacionados a procedimentos de alta complexidade / custo, como transplantes e câncer, p.ex.; (2) inclui os relacionados à hanseníase, TB e AIDS, entre outros. A atenção básica foi o segmento assistencial que teve maior aumento (134,5%), tendo sido de 33,7% o da atenção de média e alta complexidade, responsável pelo financiamento da maior parte da assistência hospitalar. Apesar dos esforços ao longo dos anos, os recursos financeiros para o SUS têm sido insuficientes para dar suporte a um sistema público universal de qualidade. Isso se deve, também, pela característica dos investimentos em saúde. Os investimentos crescem constantemente em razão da existência de forças expansivas e problemas estruturais, afastando o SUS de um ideal de universalização. Devido à transição demográfica as populações envelhecem e aumentam sua longevidade, aumentando os investimentos com os mais velhos. A transição epidemiológica reforça o investimento com doenças crônicas e doenças infecciosas emergentes e reemergentes. A incorporação tecnológica constante aumenta as expectativas da população e dos profissionais de saúde em relação às novas soluções sanitárias, assim como, são demandadas pelos prestadores de serviços, pela indústria 273 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II biomédica e pela indústria farmacêutica. Sem falar da existência de incentivos intrínsecos aos sistemas de saúde que expandem as estruturas e as práticas médicas, estimulando a construção de novas unidades de saúde, a formação de recursos humanos e a incorporação de formas de pagamentos indutoras de uma sobreutilização (CONASS, 2006). Em comparação com outros países (Tabela 6), o Brasil investe pouco em saúde. Em 2003, o Brasil situava-se abaixo da Argentina e dos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), que, em média, direcionam 8,5% do PIB com saúde. Mas o que chama atenção é o investimento per capita do Brasil em 2003, 212 dólares anuais, valor inferior aos da Argentina (426 dólares), Chile (282 dólares), Costa Rica (305 dólares) e México (372 dólares). O investimento público per capita do Brasil é de 96 dólares anuais, o mais baixo de todos os países analisados. TABELA 6 – INVESTIMENTO EM SAÚDE EM PAÍSES SELECIONADOS, 2003 PAÍS % DO PIB PER CAPITA (US$) ARGENTINA 8,9 BRASIL 7,6 CANADÁ 9,9 CHILE 6,2 COSTA RICA 7,3 ESTADOS UNIDOS 15,2 ITÁLIA 8,4 MÉXICO 6,2 PORTUGAL 9,6 REINO UNIDO 8,0 FONTE: World Health Organization (2006). In: Conass (2006). 426 212 2669 282 305 5711 2139 372 1348 2428 PER CAPITA PÚBLICO (US$) 300 96 1866 137 240 2548 1607 172 940 2081 Os investimentos estimados em saúde apresentados, na Tabela 7, revelam que em 2005 o gasto público em saúde foi de 68,8 bilhões. Os investimentos privados somaram 83 bilhões, dos quais 36,2 bilhões no Sistema de Saúde Suplementar e 46,8 bilhões no Sistema de Desembolso Direto. De acordo com o CONASS (2006, p. 72) o aumento no investimento público em saúde encontra limites na carga fiscal e nas dificuldades que o país tem tido em crescer de forma sustentada. Portanto, esse aumento remete a uma disputa distributiva nos orçamentos públicos com outras categorias de investimentos e essas decisões se realizam na esfera política. “O que define, ao fim e ao cabo, os direcionamentos dos recursos escassos são as opções preferenciais da população que se transformam em demandas sociais e chegam aos agentes de decisão política”. 274 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II TABELA 7 – INVESTIMENTOS ESTIMADOS EM SAÚDE, POR SEGMENTOS. BRASIL, 2005 SEGMENTO DO SISTEMA DE SAÚDE SUS SISTEMA DE SAÚDE SUPLEMENTAR SISTEMA DE DESEMBOLSO DIRETO TOTAL INVESTIMENTO ANUAL R$ BILHÕES 68,8 36,2 46,8 % 45,3 23,8 30,9 151,8 100,0 FONTES: Ministério da Fazenda, STN. In: Afonso (2006). Agência Nacional de Saúde Suplementar (2006). World Health Organization (2006). In: CONASS (2006) Outro argumento apresentado é que os segmentos da classe média retiram-se do 8 SUS e abrigam-se no Sistema de Saúde Suplementar e por isso não tem interesse em defender mais recursos para o sistema público de saúde. Por outro lado, “a experiência internacional demonstra que a adesão dos estratos médios da sociedade foi um determinante importante na implantação dos sistemas públicos universais” (CONASS, 2006, p. 73). Entretanto, essa retirada é parcial, pois usam o SUS em dois pólos de serviços: o mais simples, nas imunizações e o mais denso tecnologicamente, representado por serviços de alta complexidade que não são ofertados pelo sistema privado nem custeados diretamente pelas famílias, pelo alto custo (VIANNA, 2005). É o caso de alguns programas de excelência do SUS, como o Programa Nacional de Imunizações, o Sistema Nacional de Transplantes e o Programa e Controle de HIV/AIDS. Nesse ponto o SUS parece aproximar-se efetivamente dos princípios da universalização do acesso e da integralidade na atenção, um dos principais desafios da política nacional de saúde. Na medida em que, em sua grande maioria, esses serviços de alto custo são ofertados exclusivamente pelo SUS, como é o caso dos medicamentos de dispensação em caráter excepcional, e dos transplantes, com poucas exceções (córnea, por exemplo). O detalhamento será feito na próxima seção. Outros aspectos interessantes para serem analisados em relação ao desafio do financiamento da saúde é o da redução das despesas no sistema público de saúde e o da eficiência na utilização dos recursos. Entretanto, esses dois aspectos serão apresentados neste trabalho somente como indicadores de uma mobilização já existente, por parte das entidades representativas do setor de saúde, em encontrar alternativas para alcançar a integralidade na saúde (discutida na próxima seção). A Tabela de Procedimentos, utilizada como referência para a remuneração de serviços hospitalares prestados ao SUS, foi implantada no início da década de 1980, como 8 A chamada “universalização excludente” discutida no item anterior – Dilema da Universalização. 275 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II parte integrante do então denominado Sistema de Assistência Médico-Hospitalar da Previdência Social – SAMHPS, que se caracterizava como um sistema de remuneração fixa por procedimento, baseado no conceito de valores médios globais. Com a implantação do Sistema Único de Saúde, o SAMHPS foi renomeado SIH – Sistema de Informações Hospitalares (em 1991) e continua até os dias de hoje sendo utilizado como base para o pagamento de hospitais, embora os valores atualmente constantes da tabela guardem pouca ou nenhuma relação com os custos (CARVALHO, 2007). O SIH passou a ser utilizado como um dos mecanismos de transferência de recursos financeiros, sendo fortemente afetado pelas políticas implantadas. Carvalho (2007, s/p) cita como exemplo destas políticas: as limitações estipuladas em relação ao número de internações passíveis de apresentação pelos estados e municípios, para pagamento com recursos federais, pelo SIH (equivalente a 9% da população residente ao ano) e em relação ao valor a ser com elas despendido, definido pelo teto financeiro atribuído por portarias do Ministério da Saúde. Outro exemplo é a indução à redução da proporção de partos cesáreos ocorridos no país, operada por meio da Portaria GM /MS nº 2.816 de 1998, que limitou o número de partos cesáreos a serem remunerados, a partir de sua proporção no total de cada hospital, registrado pelo sistema. Também, no sentido da redução de custos, outras iniciativas podem ser citadas. No decorrer de 2004 e 2005, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) promoveu encontros regionais com representantes do MS, das três esferas do governo, do Ministério Público e demais entidades representativas do setor para construção de uma agenda comum de modo a aperfeiçoar o sistema de saúde nacional. Entre outros acordos, houve consenso sobre a necessidade urgente da construção de uma política de incorporação tecnológica e da regulação da oferta e da demanda por serviços de saúde. Essas medidas passam por uma política nacional de gestão de tecnologias (já em elaboração coordenada pelo MS) e pelo planejamento e implantação de centrais de internação, consultas e exames, com utilização de protocolos pré-determinados, de forma a evitar procedimentos desnecessários ou duplicados (diretrizes de regulação de acesso já pactuadas pelas três esferas de governo9) (CARVALHO, 2007). Em 2004, em resposta à crise crônica dos hospitais de ensino, pertencentes às três categorias (pública, filantrópica e privada lucrativa), os Ministérios da Saúde e da Educação criaram o Programa de Reestruturação dos Hospitais de Ensino (Portarias Interministeriais nº 1000, 1005, 1006 e 1007 de 2004) que alterou a forma de certificação e de financiamento desses estabelecimentos, prevendo a celebração de contratos em que são incluídas cláusulas 9 Diretrizes incluídas no “Pacto pela Saúde”, Portaria GM/MS nº 399 de 2006 (CARVALHO, 2007, s/p.). 276 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II relacionadas a metas e indicadores de qualidade e de produção de serviços, configurando a modalidade de orçamentação global (CARVALHO, 2007). Esse Programa define como base de cálculo para o repasse fixo mensal a série histórica de serviços produzidos, acrescida dos valores do Fator de Incentivo ao Desenvolvimento de Ensino e Pesquisa em Saúde (FIDEPS), de novos incentivos e do impacto dos reajustes futuros dos valores da remuneração de procedimentos ambulatoriais e hospitalares, entre outros, constantes da Portaria Interministerial 1006 de maio de 2004, art. 4º. Além disso, o MS vem buscando formas alternativas de provocar as mudanças no setor, em vez de Normas Operacionais foi concebido um novo acordo entre as instâncias, o “Pacto pela Saúde”, publicado em 22 de fevereiro de 2006 pela Portaria GM/MS nº 399, constitui-se como a somatória de três outros, quais sejam, o “Pacto pela Vida”, o “Pacto pelo SUS” e o “Pacto de Gestão" 10. Todas essas mudanças são resultado de um consenso entre os gestores das três esferas de governo, que acreditam que a responsabilização pelo planejamento, regulação, controle e avaliação de ações e serviços é requisito necessário para melhorar a eficiência na utilização dos recursos na saúde e para tornar as ações de saúde quantitativa e qualitativamente mais adequadas a cada realidade. Falar de eficiência na utilização dos recursos é falar da integralidade regulada, por ações de superação de ineficiências econômicas e alocativas e pela diminuição das iniqüidades na alocação dos recursos financeiros do SUS. 3 A INTEGRALIDADE E A ALTA COMPLEXIDADE NO SISTEMA DE SAÚDE A integralidade é um dos princípios do SUS, assim como a universalização. Todavia difere em sua aplicação. A integralidade na saúde possibilita instituir, mediante consensos fundamentados na evidência científica e em princípios éticos, validados socialmente, regras claras e transparentes que imprimam racionalidade à oferta dos serviços de saúde (CONASS, 2006, p 75). Entendida dessa forma, a integralidade na saúde possibilita a racionalização na oferta de serviços, transformando-se em um instrumento fundamental de melhoria e eficiência dos gastos em saúde (VIANNA, 2005; CONASS, 2006). Mas nem sempre a integralidade foi entendida dessa forma. Na Constituição Federal (BRASIL, 1988), integralidade é definida como “atendimento integral, com prioridade para as 10 Mais informações sobre o Pacto pela Saúde ver CARVALHO, 2007. 277 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”. Historicamente, foi assim que se desenvolveu a assistência à saúde no Brasil. As ações de saúde foram divididas em ações médico-assistenciais e preventivas. Atualmente busca-se oferecer assistência integral por meio de uma maior articulação das práticas e tecnologias relativas ao conhecimento clínico e epidemiológico (CAMPOS, 2003). Segundo Vianna (2005, p. 146), o princípio constitucional da integralidade na saúde é o que mais se aproxima da questão da atenção de alta complexidade, pois é na alta complexidade que o SUS alcança total consistência aos princípios que lhes dão sustentação, como a universalidade do acesso e a integralidade da atenção. Isso se deve a três fatores: a) ausência de inúmeros procedimentos de alto custo do menu dos planos de saúde, inclusive dos contratados depois da regulamentação dessa modalidade; b) o custo de alguns serviços (transplantes, hemodiálise, medicamentos de dispensação em caráter excepcional) são inacessíveis, fora do SUS, a quase totalidade da população; c) a percepção do usuário quanto a melhor qualidade dos serviços SUS de mais densidade tecnológica em comparação aos demais, conforme pesquisa do CONASS. Resta saber identificar quais são os serviços considerados de alta complexidade. Para o IBGE (2006, p. 20), os serviços de alta complexidade são “os serviços selecionados que exigem ambiente de internação com uso de tecnologia avançada e pessoal especializado para sua realização, como transplantes, cirurgias cardíacas, em queimados” etc. Uma conceituação vaga e imprecisa, pois muitos procedimentos considerados de alta complexidade pelo MS, não exigem internação. Segundo Vianna (2005), o tratamento dado pelo próprio MS ao conceito de alta complexidade, também dá margem a dúvidas. São considerados procedimentos hospitalares de alta complexidade aqueles que demandam tecnologias mais sofisticadas e profissionais especializados, definidos pela Portaria SAS/MS n.º 968, de 11 de dezembro de 2002. Entretanto, alto custo e alta complexidade nem sempre são sinônimos, assim como não significa que um procedimento considerado de alta complexidade tenha, necessariamente, que ter alta densidade tecnológica. Um procedimento de alta complexidade teria três atributos que o distingue dos demais: a) alta densidade tecnológica e/ou exigência de especialistas e habilidades especiais acima dos padrões médios; b) baixa freqüência relativa; de um modo geral procedimentos de alta complexidade tem uma freqüência menor aos demais; c) alto custo unitário e/ou do tratamento; nesse caso estão os transplantes múltiplos e o implante coclerar, entre outros (VIANNA, 2005). O autor alerta ainda para o caráter dinâmico do conceito no tempo, como é 278 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II o caso dos equipamentos de raios X que já representaram uma tecnologia de ponta no passado e, hoje, esse status é da ressonância magnética e da tomografia computadorizada. Procedimentos estratégicos, no caso específico desta Portaria, significam prioritários; procedimentos que recebem financiamento do MS por meio do Fundo de Ações Estratégicas e Compensação (FAEC). Fundo criado pelo MS em abril de 1999 pela Portaria GM/MS n.º 531, com o objetivo de garantir financiamento pelo gestor federal de procedimentos de alta complexidade. Após várias mudanças, a destinação dos recursos do FAEC pelo MS ficou dividida em quatro blocos: a) ações assistenciais estratégicas: campanhas de cirurgia eletivas; transplantes, medicamentos excepcionais etc. b) incentivos para estimular a parceria com o sistema público ou a realização de ações assistenciais; Integrasus: adicional pago aos hospitais filantrópicos; c) novas ações programáticas: humanização do parto; triagem neonatal etc. d) Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC): financiamento de procedimentos de alta complexidade para usuários do SUS provenientes de outros estados que não dispõem desses recursos (VIANNA, 2005; OPAS, 2002). No Quadro 1, observa-se a forma de financiamento dos procedimentos ambulatoriais e hospitalares de alta complexidade pelo SUS em 2004. Todos os transplantes, assim como os procedimentos associados, entre os quais está a captação de órgãos, são pagos pelo MS por meio do FAEC, não afetando, portanto, o teto financeiro de estados e municípios. Segundo Vianna (2005), a tendência ao aumento da demanda por serviços de alta densidade tecnológica, leva a custos crescentes atribuíveis a fatores como: a) aumento da população e da longevidade: entre as pessoas mais velhas, o gasto com assistência médica tende a crescer, devido a taxas de internação mais elevadas, maior complexidade e a freqüência dos procedimentos médicos utilizados; b) crescente complexidade tecnológica: a incorporação de novas tecnologias é, em geral, cumulativa e não substitutiva. A inclusão de um novo recurso terapêutico ou de diagnóstico não substitui outros mais antigos; c) modificações nos padrões de morbidade pela população: o surgimento de novas doenças cresce ao mesmo tempo em que cresce a incidência de moléstias crônicas e degenerativas e do trauma, problemas que, geralmente, demandam terapias complexas. d) papel reduzido do mercado: alguns serviços e/ou procedimentos altamente especializados já estão sendo providos quase que exclusivamente pelo setor público. Seja pelo poder aquisitivo reduzido da população, seja pelo alto custo do tratamento. É o caso dos transplantes, como os de fígado e de coração, e dos chamados medicamentos excepcionais; 279 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II QUADRO 1 - SUS: PROCEDIMENTOS AMBULATORIAIS E HOSPITALARES DE ALTA COMPLEXIDADE CONFORME A FORMA DE FINANCIAMENTO - 2004 PROCEDIMENTOS AMBULATORIAIS Hemodinâmica Ressonância Magnética Tomografia Computadorizada Medicina Nuclear Imunologia Terapia Renal Substitutiva Radioterapia Quimioterapia Hemoterapia Radiologia intervencionista Medicamentos “excepcionais” HOSPITALARES UTI Transplantes Polissonografia Cirurgia Oncológica Tratamento da Aids Cardiologia Hemoterapia Ortopedia Neurocirurgia Tratamento Cirúrgico de Epilepsia Gastroenterologia (Gastroplastia) Deformidades Crânio-Faciais/Lábio-palatais Implante Coclear Órteses e próteses na AIH FAEC* FONTE: VIANNA, 2005, p. 20 * Fundo de Ações Estratégicas e de Alta Complexidade TETO ESTADUAL** ** Limite Financeiro Estadual e) aumento do grau de consciência de cidadania: a população está cada vez mais exigente em relação ao atendimento de seus direitos entre os quais os de acesso a atenção integral à saúde. Esses fatores estariam exercendo pressão sobre o redirecionamento dos investimentos em saúde, como mostra a Tabela 8. Em relação ao investimento total do MS com ações e serviços públicos de saúde, o valor destinado à alta complexidade passou de 13,1%, em 1995, para 19,2% em 2003, um crescimento de 46,6% nesse período. TABELA 8 – SUS: INVESTIMENTO DO MS COM AÇÕES E SERVIÇOS DE SAÚDE E COM ATENÇÃO DE ALTA COMPLEXIDADE 1995/2003 ANO AÇOES E SERVIÇOS 1995 2003 INCREMENTO % FONTE: VIANNA, 2005, p. 25 12.211,6 27.179,5 122 ALTA COMPLEXIDADE 1.600,9 5.214,3 226 % (H/)*100 13,1 19,2 46,6 280 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Esse incremento na participação da alta complexidade nos gastos do MS indica o grau de prioridade da atenção de alta tecnologia na política nacional de saúde (CONASS, 2006). Em relação à média complexidade, os investimentos federais do MS caíram de 78,49% em 1999 para 59,12% em 2005, uma queda muito acentuada num período muito curto. A Tabela 9 mostra que, em termos absolutos, os valores nominais no período cresceram 2,6 vezes na média complexidade e 6,7 vezes na alta complexidade. TABELA 9 – INVESTIMENTO DO SUS EM BILHÕES DE PERCENTUAIS, NAS ALTA E MÉDIA COMPLEXIDADE, 1999-2005 ANO REAIS MÉDIA COMPLEXIDADE ALTA COMPLEXIDADE VALOR % VALOR % 1999 3,28 78,49 0,89 21,51 2000 5,35 66,41 2,70 33,59 2001 5,59 63,83 3,16 36,17 2002 6,52 63,93 3,68 36,07 2003 7,71 63,45 4,44 36,55 2004 8,26 61,19 5,24 38,81 2005 8,68 59,12 6,00 40,88 FONTE: MS: SAI/SIH/SUS. In: CONASS, 2006, p.88 E EM TERMOS TOTAL VALOR `% 4,17 100,0 8,05 100,0 8,75 100,0 10,20 100,0 12,15 100,0 13,50 100,0 14,68 100,0 Nesse ponto, talvez seja possível identificar um indício da presença da eqüidade na saúde, na medida em que esses recursos estarão atendendo, não somente à classe média, mas toda a população. Recursos destinados a custear demandas geradas tanto pelas características de uma população em crescimento, que vive mais tempo e que tem vivenciado a redução de seu poder aquisitivo, como pela complexidade tecnológica à disposição no atendimento a novas doenças ou como nova alternativa para velhas e conhecidas doenças. A distribuição interna do investimento em alta complexidade subdivide-se quanto ao tipo de procedimento (diagnóstico, terapêutico e outros) e em relação à partição ambulatorial ou hospitalar (Tabela 10). TABELA 10 – SUS: DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DO INVESTIMENTO DO MS COM PROCEDIMENTOS DE ALTA COMPLEXIDADE – 1995-2003 PROCEDIMENTOS 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 I –AMBULATORIAIS 60,86 60,94 63,32 60,36 57,24 61,03 59,75 57,43 56,84 (a) Serviços/Procedimentos Diagnósticos 5,16 5,26 4,69 4,86 6,22 5,92 4,85 4,75 4,60 (b) Serviços/Procedimentos Terapêuticos 51,06 51,70 50,09 47,82 44,43 44,55 43,21 41,96 40,91 (c) Outros ambulatoriais 4,63 3,97 8,54 7,68 6,59 10,56 11,70 10,72 11,33 II – HOSPITALARES 39,14 39,06 36,68 39,64 42,76 38,97 40,25 42,57 43,16 (a) Serviços/Procedimentos 31,84 31,06 29,00 31,61 36,38 31,95 32,67 34,10 33,32 (b) Outros Hospitalares 7,31 8,00 7,68 8,03 6,38 7,02 7,58 8,48 9,84 TOTAL GERAL 100 100 100 100 100 100 100 100 100 FONTE: Assistência à Saúde no SUS: Média e Alta Complexidade (2003) e DATASUS (2003); In: VIANNA, 2005, p. 29 281 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Observa-se uma redução relativa na participação do investimento ambulatorial de 60,86%, em 1995 para 56,84%, em 2003. Enquanto que a participação do investimento hospitalar apresenta um crescimento relativo, passando de 39,14% em 1995 para 43,16% em 2003. Um comportamento inverso que se deve, “não só a adoção de tecnologias que exigem menos internações, mas também ao crescimento de programas como os de atenção básica (...) e os de assistência farmacêutica neste caso em função da pressão dos medicamentos de alto custo” (VIANNA, 2005, p. 28). Para 2001, o MS indicava uma oferta de serviços hospitalares de alta complexidade, no SUS, composta por 2.256 centros credenciados, unidades com internação que atendiam os requisitos técnicos específicos fixados pelo MS. Observa-se na Tabela 11, que os serviços de alta complexidade mais numerosos são os de terapia intensiva (25,9%), seguidos pelos serviços de transplante (12,9%). Serviços menos numerosos como o item “Outros” (na tabela) correspondem a 4,4% do total. Desses serviços, 32% são de queimados e 26% são de tecnologias de incorporação recente (1999) como a gastroplastia. TABELA 11 – SUS: FREQÜÊNCIA E PERCENTUAL DE SERVIÇOS HOSPITALARES DE ALTA COMPLEXIDADE POR ESPECIALIDADE - 2001 ESPECIALIDADES FREQÜÊNCIA % Terapia Intensiva (UTI) 585 25,9 Transplantes 292 12,9 Neurocirurgia 272 12,1 Oncologia 257 11,4 Gestação de Alto Risco 246 10,9 Cardiologia 207 9,2 Ortopedia 176 7,8 Urgência/ Emergência 121 5,4 Outros 100 4,4 TOTAL 2256 100 FONTE: Assistência à Saúde no SUS – Média e Alta Complexidade. In: VIANNA, 2005, p. 23. De acordo com a pesquisa do CONASS (2006), a posição privilegiada dos procedimentos de alta complexidade, nos repasses de recursos financeiros pelo SUS, pode ter relação, dentre outros fatores, com: a) a eficácia da articulação de interesses profissionais de saúde de mais prestígio social, da indústria biomédica, da indústria farmacêutica, dos prestadores de serviços de maior densidade e de grupos de usuários mais organizados; e, b) com a oferta limitada de serviços de alta complexidade nos Sistemas de Saúde Complementar, por apresentarem custos muito altos, impossíveis de serem cobertos por desembolso direto. 282 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II O primeiro fator pode ser elucidado por uma frase de Biancarelli (2003, s/p.): “viver ou morrer depende não só da doença que se pega, mas também do ‘lobby’ que se organiza em torno dela”. E mais, “o nível de gravidade e de letalidade das patologias costuma depender igualmente do grau de organização dos seus pacientes e familiares”. O autor relata diversos casos de grupos de familiares articulados em torno de doenças graves, que conseguem medicamentos específicos para garantir a sobrevida de seus filhos, mediante pressão sobre o MS e ações na justiça. Essas diversas organizações populares, tais como, associações de pacientes com fibrose cística, anemia falciforme, doença de Parkinson, diabetes, Aids etc., muitas vezes “chegam a ter mais força do que o Estado”. Da mesma forma, dados do CONASS (2006) mostram que o incremento com medicamentos de dispensação em caráter excepcional, vem repercutindo nos orçamentos federal e estadual da Saúde. Medicamentos de alto custo, geralmente exclusivos de determinados laboratórios ou indústrias farmacêuticas. Entretanto, em sentido contrário, Coelho (1998, p. 126) alerta para possíveis fatores institucionais na determinação destes resultados. A autora indica que “há um limite nas teorias que interpretam o conteúdo e o resultado de certas políticas públicas como reflexo direto da força e dos interesses dos atores em disputa”, nesse sentido, aponta a importância de se levar em consideração políticas prévias e o próprio desenho institucional do SUS na determinação desses resultados. Com relação ao segundo fator, é fato que o custo de alguns serviços os tornam inacessíveis mediante pagamento direto a quase totalidade da população, os transplantes são um exemplo. Da mesma forma, esses procedimentos não estão previstos na cobertura de diversos planos de saúde, favorecendo a demanda no SUS. Essa exclusividade na oferta de serviços de alta complexidade aproxima o SUS da eqüidade na saúde (RAWLS, 2002, p.80), pois essa situação pode ser benéfica a partir do momento em que gerar ganhos para todos os demais usuários SUS. Repetindo, “não importa o quanto a situação de cada pessoa seja melhorada; do ponto de vista do princípio da diferença, não há ganho algum a não ser que o outro também ganhe”. Apesar dos esforços ao longo dos anos, os recursos financeiros para o SUS têm sido insuficientes para dar suporte a um sistema público universal de qualidade. Isso se deve, também, pela característica dos investimentos em saúde. Os investimentos crescem constantemente em razão da existência de forças expansivas e problemas estruturais, afastando o SUS de um ideal de universalização. Pois, além dos interesses, também as políticas prévias e as instituições – que com suas regras, procedimentos normativos e 283 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II capacidades administrativas acabam fortalecendo certos atores, enquanto fragilizam outros – contribuíram para esse resultado (COELHO, 1998). CONSIDERAÇÕES FINAIS Pelos dados apresentados, o que tudo indica é que nos procedimentos de alta complexidade o SUS aproxima-se mais dos princípios de universalidade no atendimento e integralidade no acesso, pois está atingindo praticamente a totalidade da população. No entanto, princípios como igualdade e universalidade na saúde tendem à homogeneização e acabam por diluir as diferenças. Diferenças que aparecem no efetivo consumo de serviços de saúde. Custos de transporte, de espera para o atendimento, de alimentação, de aquisição de medicamentos etc., tendem a ser maiores para os grupos de menor renda, que, geralmente, vivem em áreas onde a disponibilidade de serviços é menor dificultando o acesso. Há oferta de serviços a toda população, mas nem todos podem usufruir por dificuldades nem sempre previstas no processo. Sendo assim, a prioridade nas transferências de recursos para os procedimentos de alta complexidade no SUS, indica uma proximidade com o conceito de eqüidade na saúde, na medida em que esses recursos estarão atendendo, não somente a classe média, mas toda a população que necessite. Pode-se questionar, então, se essa política é justa. Na visão de Rawls (2002, p. 26), “justas são aquelas instituições e ações que das alternativas possíveis retiram o bem maior, ou pelo menos tanto bem quanto quaisquer outras instituições e ações acessíveis como possibilidades reais”, nesse sentido, nem sempre o justo maximiza o bem. A justiça como eqüidade é uma teoria deontológica no sentido de que não interpreta o justo como maximizador do bem. Presume-se que as pessoas na posição original escolheriam um princípio de liberdade igual e restringiriam as desigualdades econômicas e sociais àquelas do interesse de todos, portanto, não há razão para pensar que instituições justas maximizarão o bem. Na justiça como eqüidade o conceito de justo precede o de bem, então, a prioridade no financiamento dos procedimentos de alta complexidade juntamente com sua proximidade aos princípios de universalização no atendimento e integralidade no acesso, pode ser considerada uma política justa, no sentido de Rawls, embora não maximize o bem para todos. 284 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II REFERÊNCIAS BIANCARELLI, A. Pacientes organizados têm mais benefícios. Folha de São Paulo, 13 abr. 2003. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília 1988. 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Nesta perspectiva, questionará sobre a parcela de responsabilidade que o cidadão (em suas demandas individuais) tem em face do direito à saúde, buscando defender, a partir da análise de caso concreto, que é um dever de todos garanti-lo, não excluindo desse exame o próprio indivíduo, a família e as instituições privadas. PALAVRAS-CHAVES: Direito fundamental à saúde; Responsabilidades; Poder público RESUMEN Este ensayo aborda el tema de los derechos sociales fundamentales a la salud, antes su dimensión protectora que pasa los intereses meramente individuales, y el consenso de la obligación del gobierno de organizarse para proporcionar servicios de salud a todos, a fin de respetar la dignidad humana y el fortalecimiento del respeto a los derechos humanos y garantías fundamentales. Desde esta perspectiva, se pregunta sobre la responsabilidad que un ciudadano (en sus demandas individuales) tienen frente al derecho a la salud, tratando de defender que es un deber de todos garantizar este derecho a la salud, sin excluir el propio individuo, la familia y las instituciones privadas. 1 Este trabalho é resultado dos estudos realizados no âmbito do Grupo de Pesquisa Direitos Fundamentais Sociais do Programa de Mestrado em Direito da UNOESC. * Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Doutor em Direito. Professor Titular da Universidade de Santa Cruz do Sul e da UNOESC. Professor Visitante da Università Túlio Ascarelli – Roma Trè, Universidad de La Coruña – Espanha, e Universidad de Buenos Aires. Professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura – ENFAM. Membro da Rede de Direitos Fundamentais-REDIR, do Conselho Nacional de Justiça-CNJ, Brasília. Coordenador Científico do Núcleo de Pesquisa Judiciária, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura – ENFAM, Brasília. Membro do Conselho Científico do Observatório da Justiça Brasileira. ∗∗ Doutora em Direito-Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) com período de pesquisa (doutorado sanduíche) na Université Paris 1 - Panthéon-Sorbonne. Mestre em Direito-Relações Internacionais, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora e pesquisadora do Programa de Pesquisa, Extensão e Pós-graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC). 287 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II PALABRAS CLAVE: Derecho fundamental a la salud; Responsabilidades; Poder Público 1) OS POSSÍVEIS CONSENSOS SOBRE OS DEVERES FUNDAMENTAIS À SAÚDE NO BRASIL A saúde é direito fundamental social assegurado no art. 6º, caput, da Constituição Federal, e é tratada de forma específica no capitulo II do titulo VIII intitulada “Da ordem social”. E, no momento em que a Constituição Federal de 1988 dispõe, em seu art.196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, não há como negar que tal dever é relacional e condicionado a garantia de acesso universal e igualitário (a todos) das ações consectárias nesta direção. No mesmo sentido estabelece o artigo 2º da Lei 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências, ao afirmar que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”. Por tais razões, pode-se afirmar que o tema da saúde pública envolve uma das dimensões do mínimo existencial à dignidade da vida humana: a saúde. Enquanto princípio fundante de todo o sistema jurídico – a iniciar pelo constitucional -, tem-se que a vida humana digna espelha e se vincula ao ideário político, social e jurídico predominante no país, ao mesmo tempo em que, na condição de princípio fundamental, em face de sua característica de aderência, ele opera sobre os comportamentos estatais ou particulares de forma cogente e necessária. Assim: (a) todas as normas do sistema jurídico devem ser interpretadas no sentido mais concordante com este princípio; (b) as normas de direito ordinárias desconformes à constituição e seus princípios fundacionais (dentre os quais destaco o sob comento), não são válidas2. Justifica-se tal postura em face de que a saúde como condição de possibilidade da dignidade da pessoa humana, em verdade, passa a constituir o indicador constitucional 2 LEAL, 2006, p.1525. Ver também o texto de Rogério Gesta Leal sobre Condições e possibilidades eficaciais dos Direitos Fundamentais Sociais, 2011 e a obra de Konrad Hesse. A força normativa da constituição, 1991. 288 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II parametrizante do mínimo existencial3, porque se afigura como uma das condições indispensáveis à construção de uma sociedade livre, justa e solidária; à garantia do desenvolvimento nacional; à erradicação da pobreza e da marginalização, bem como à redução das desigualdades sociais e regionais; à promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Na verdade, estes postulados estão dispersos ao longo de todo o Texto Político, consubstanciando-se nos direitos e garantias fundamentais, individuais e coletivos, nos direitos sociais, nos direitos à educação, à saúde, à previdência etc. Por sua vez, os Poderes Estatais e a própria Sociedade Civil (através da cidadania ou mesmo de representações institucionais dela) estão vinculados a estes indicadores norteadores da República, eis que eles vinculam todos os atos praticados pelos agentes públicos e pela comunidade, no sentido de vê-los comprometidos efetivamente com a implementação daquelas garantias. De outro lado, as ações públicas voltadas à densificação material deste direito de todos – à saúde – integram, de acordo com o disposto no artigo 198, CF/88, um sistema único em todo o país, financiado com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como de outras fontes. No âmbito do dever público para alcançar os meios necessários à preservação da saúde, o que se deve ter em conta são os critérios utilizados para determinar quem efetivamente necessita e quem não precisa do auxílio do Estado para prover suas demandas a este título, o que de plano se sabe não existir ao menos em numerus clausulus, porque impossível sua matematização em face da natureza complexa e mutável. Assim, os casos envolvendo prestação de saúde pública submetido ao Estado são merecedores de uma apreciação e ponderação em face de, no mínimo, duas variáveis necessárias: (a) a variável normativa-constitucional e infraconstitucional, enquanto direito fundamental assegurado à sociedade brasileira; (b) a variável da responsabilidade institucional e familiar dispostas na estrutura normativa constitucional e infraconstitucional brasileira. Daí porque aferir, primeiro, a natureza axiológico-constitucional do mandamento normativo sob comento, tendo ciência que ele se dirige a toda a comunidade, e não uma parcela dela (os mais doentes, ou somente aqueles que possuem enfermidades letais, ou 3 Esse argumento é desenvolvido no livro Estado, Sociedade e Administração Pública: novos paradigmas, 2005, de autoria de Rogério Gesta Leal. 289 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II somente os que necessitam de farmacológicos curativos, etc.). E, em segundo, de que forma o sistema jurídico atribui responsabilidades envolvendo esta matéria. Significa dizer que, quando se fala em saúde pública e em mecanismos e instrumentos de atendê-la, é importante que se visualize a demanda social e universal existente, e não somente a contingencial submetida à aferição administrativa ou jurisdicional, isto porque, atendendo-se somente aqueles que acorrem de pronto ao Poder Público (Executivo ou Judicial), corre-se o risco de esvaziar a possibilidade de atendimento de todos aqueles que ainda não tomaram a iniciativa de procurar o socorro público, muitas vezes pela falta de recursos para fazê-lo.4 Para tal raciocínio, utiliza-se o que Konrad Hesse chama de princípio da concordância prática ou da harmonização, o qual impõe ao intérprete do sistema jurídico que os bens constitucionalmente protegidos, em caso de conflito ou concorrência, devem ser tratados de maneira que a afirmação de um não implique o sacrifício do outro, o que só se alcança na aplicação ou na prática do texto.5 Tal princípio parte da noção de que não há diferença hierárquica ou de valor entre os bens constitucionais; destarte, o resultado do ato interpretativo não pode ser o sacrifício total de uns em detrimento dos outros. Deve-se, na interpretação, procurar uma harmonização ou concordância prática entre os bens constitucionalmente tutelados. A partir de tais elementos, mister é que se perquira se efetivamente é o Estado o único garantidor/concretizante do direito à saúde para todos os cidadãos, independente de precisarem ou não da prestação estatal para tanto. Nas palavras de Canotilho, sobre tais direitos é preciso se dar conta de que: Acresce que o facto de se reconhecer um direito à vida como direito positivo a prestações existenciais mínimas, tendo como destinatário os poderes públicos, não significa impor como o Estado deve, prima facie, densificar este direito. Diferente do que acontece no direito à vida na sua dimensão negativa – não matar -, e na sua dimensão positiva – impedir de matar -, aqui, na segunda dimensão, positiva, existe um relativo espaço de discricionariedade do legislador (dos poderes públicos) quanto à escolha do 4 Além disto, é preciso lembrar que “the Courts are not well positioned to oversee the tricky process of efficient resource allocation conducted, with more or less skill, by executive agencies, nor are they readily able to rectify past misallocations. Judges do not have the proper training to perform such functions and they necessarily operate with inadequate and biased sources of information.” In: ALEINIKOFF, 1987, p. 982. 5 HESSE, 2001, p.119. O autor defende que na interpretação constitucional, deve-se dar primazia às soluções ou pontos de vista que, levando em conta os limites e pressupostos do texto constitucional, possibilitem a atualização de suas normas, garantindo-lhes eficácia e permanência constante. 290 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II meio (ou meios) para tornar efectivo o direito à vida na sua dimensão existencial mínima.6 O autor português adverte com acerto que aquele espaço de discricionariedade não é, todavia, total, haja vista que existem determinantes constitucionais heterônomas que vinculam os poderes instituídos, como a dignidade da vida humana, por exemplo. De qualquer sorte, o direito à saúde, enquanto direito fundamental constitucionalizado, dever do Estado, em primeiro plano, que é a todos garantido, configurase como verdadeiro direito subjetivo, outorgando fundamento para justificar o direito a prestações, mas que não tem obrigatoriedade como resultado de uma decisão individual. Dizse direito subjetivo prima facie pelo fato de que, conforme Canotilho, não é possível resolvêlo em termos de tudo ou nada7, e também pelo fato de constituírem, numa certa medida e na lição de Dworkin, direitos abstratos, isto porque representam: Finalidade políticas gerais, cujo enunciado não de que maneira se tem comparado o peso dessa finalidade geral, com a de outras finalidades políticas, em determinadas circunstancias, ou que compromisos há de se establecer entre elas. Os grandes direitos da retórica polítca são abstratos neste sentido. Os políticos falam de direito da liberdade de expressão, à dignidade e à igualdade, sem que isso implique qua tais direitos sejam absolutos, e sem fazer referência a sua incidencia sobre determinadas situações sociais complexas.8 (Tradução libre) E por que não se pode resolver tal matéria em termos de tudo ou nada? Pelo fato de que ela envolve outro universo de variáveis múltiplas e complexas, a saber: disponibilidade 6 CANOTILHO, 2004, p. 58. Aduz Canotilho que: “A questão da reserva do possível (Vorbehalt des Möglichen), da ponderação necessária a efectuar pelos poderes públicos (Abwägung) relativamente ao modo como garantir, com efectividade, esse direito (optimização das capacidades existentes, alargamento da capacidade, subvenções a estabelecimentos alternativos) conduz-nos a um tipo de direito prima facie a que corresponde, por parte dos poderes públicos, um dever prima facie” In: CANOTILHO, 2004, p. 66. Ver neste sentido a reflexão de SARLET, Ingo. Eficácia dos Direitos Fundamentais, 2007, notadamente na p. 304, em que o autor sustenta estar esta reserva do possível parametrizada por três variáveis, a saber: (a) dizendo com a efetiva disponibilidade fática dos recursos à efetivação dos direitos fundamentais; (b) dizendo com a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão à distribuição das receitas e competências federativas (tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas); (c) dizendo com a proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e razoabilidade. 8 “Finalidades políticas generales cuyo enunciado no indica de qué manera se ha de comparar el peso de esa finalidad general con el de otras finalidades políticas, en determinadas circunstancias, o qué compromisos se han de establecer entre ellas. Los grandes derechos de la retórica política son abstractos en este sentido. Los políticos hablan de derecho a la libertad de expresión, a la dignidad o a la igualdad, sin dar a entender que tales derechos sean absolutos, y sin aludir tampoco a su incidencia sobre determinadas situaciones sociales complejas.” DWORKIN, 1989, p.162. Denomina o autor de direitos concretos son finalidades políticas definidas con mayor precisión de manera que expresan más claramente el peso que tienen contra otras finalidades en determinadas ocasiones. Num texto mais recente, Justice in Robes, de 2006, Ronald Dworkin ratifica esta sua tese. 7 291 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II de recursos financeiros alocados preventivamente, políticas públicas integradas em planos plurianuais e em diretrizes orçamentárias, medidas legislativas ordenadoras das receitas e despesas públicas, etc. Todos estes condicionantes, por sua vez, encontram-se dispersos em diferentes atores institucionais, com competências e autonomias reguladas também pela Constituição. Por tais razões é que o Superior Tribunal de Justiça no Brasil já teve oportunidade de dizer que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, “comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política”9. Vale aqui a advertência de Mario Jori, no sentido de que: [...] o problema aqui não é só a falta de uma suficiente especificação legislativa ou a falta de norma que institua o tribunal competente, analisado corretamente a partir da teoria de Ferrajoli como a presença de uma lacuna jurídica, mas a falta de estruturas materiais e organizacionais e materiais que possam implementar o direito.10 (tradução livre) Concorda-se com Canotilho na sua tese de que há em países de significa desigualdade social e profundas demandas pela implementação de direitos sociais certa introversão estatal da socialidade, ou seja: 1. os direitos sociais implicam o dever de o Estado fornecer as prestações correlativas ao objeto destes direitos; 2. os direitos sociais postulam 9 É bem verdade que, nesta mesma decisão, manifestou-se o STJ no sentido de reconhecer que não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da 'reserva do possível' - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. REsp 811608/RS; Recurso Especial nº2006/0012352-8. 1ª Turma, Relator Min. Luis Fux, julgado em 15/05/2007, publicado no DJ 04.06.2007 p. 314. 10 “[...] qui il problema non è solamente la mancanza di uma sufficiente specificazione legislativa o la mancanza della norma che istituisca il tribunale competente, visto correttamente dalla teoria di Ferrajoli come la presenza di una lacuna giuridica, ma la mancanza di strutture materiali e organizzative che possano implementare il diritto.” In: JORI, 2008, p.80. Adverte o autor em seguida que a perspectiva ferrajoliana trabalha com uma noção de “garanzie sostanziali: ciò che manca in questi casi nell’ordinamento giuridico sono norme atte a risolvere efficacemente questo tipo di problemi materiali.” 292 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II esquemas de unilateralidade, sendo que o Estado garante e paga determinadas prestações a alguns cidadãos; 3. os direitos sociais eliminam a reciprocidade, ou seja, o esquema de troca entre os cidadãos que pagam e os cidadãos que recebem, pois a mediação estatal dissolve na burocracia prestacional a visibilidade dos actores e a eventual reciprocidade da troca.11 Todavia, este modelo não se sustenta mais, sendo tempo de se descobrir os contornos da reciprocidade concreta e do balanceamento dos direitos sociais, até porque tais direitos envolvem patrimônio de todos quando de sua operacionalidade e concreção, e já que a todos são dirigidas tais prerrogativas, deve-se perquirir sobre a quota parte de cada um neste mister, sob pena de constituir-se o que o jurista lusitano denomina de uma aproximação absolutista ao significado jurídico dos direitos sociais, ou seja, confiar na simples interpretação de normas consagradoras de direitos sociais para, através de procedimentos hermenêuticos, deduzir a afetividade dos mesmos direitos, produzindo resultados pouco razoáveis e racionais. Com base neste raciocínio que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral da questão constitucional suscitada em Recurso Extraordinário12, relativo ao fornecimento de medicamento de alto custo a paciente do Estado do Rio Grande do Norte, às expensas daquele Estado, questionando se a situação individual pode, sob o ângulo do custo, colocar em risco a assistência global a tantos quantos dependem de determinado medicamento, de uso costumeiro, para prover a saúde ou minimizar sofrimento decorrente de certa doença, razão pela qual destacava a necessidade do pronunciamento do Supremo em relação aos artigos 2º, 5 º, 6º, 196 e 198 da Constituição Federal, revelando o alcance do texto constitucional. Evidente que o simples argumento da escassez de recursos dos cofres públicos não pode autorizar o esvaziamento de direitos fundamentais, muito menos os relacionados à saúde, eis que diretamente impactantes em face da vida humana e sua dignidade mínima, e por isto sujeitos ao controle jurisdicional para fins de se aferir a razoabilidade dos comportamentos institucionais neste sentido, devendo inclusive ser aprimorados os parâmetros, variáveis, fundamentos e a própria dosimetria de sua concretização.13 11 CANOTILHO, 2004, p.102. Recurso Extraordinário n. 566.471-6, originário do Estado do Rio Grande do Norte. 13 Na mesma linha de raciocínio John Rawls define a proteção do mínimo social com o objetivo de garantir uma igualdade de oportunidades, dependendo do governo para “assegurar oportunidades iguais de educação e cultura para pessoas semelhantemente dotadas emotivadas, seja subsidindo escolas particulares seja estabelecendo um sistema de ensino público”. In: RAWLS, 1997, p. 213. 12 293 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Não se afigura simples, pois, trazer-se à colação argumentos do tipo princípio da não reversibilidade das prestações sociais, ou o princípio da proibição da evolução reacionária, como fórmulas retóricas e mágicas para poder garantir, a qualquer preço – que nem se sabe o qual -, tudo o que for postulado por segmentos da comunidade (indivíduos) em termos de saúde, pelo simples fato de que o Estado está obrigado a tanto, isto porque o desafio da bancarrota da previdência social, o desemprego duradouro, parecem apontar para a insustentabilidade do princípio da não reversibilidade social.14 Cristina Queiroz sustenta que a garantia de uma proteção efetiva do direito jusfundamental não resulta criada a partir da legislação ou política pública aprovada, mas vem posta através da atuação da legislação, daqui advindo a noção de dever de proteção jurídicoconstitucional – pressuposto quer do Legislador, quer do Administrador Público, quer do Judiciário -, caracterizando-se como verdadeiro dever positivo do Estado em face do titular do direito como um direito de defesa em sentido material. “Por sua vez, o dever de protecção do Estado, uma vez dimanada a lei de protecção, converte-se, face ao titular do direito, num direito de defesa em sentido formal.”15 Daí que se propõe uma leitura mais integrada deste dever estatal para com o universo que ele alcança, ou seja, direito social da população como um todo que envolve, inclusive, co-responsabilidades societais importantes (constitucionais e infraconstitucionais). Neste sentido, pode-se citar, por exemplo: (a) do dever da família (da sociedade e do Estado) em assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, a dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão16; (b) os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade17; (c) a família (a sociedade e o Estado) 14 CANOTILHO, 2004, p. 112. Ver no Brasil, uma boa abordagem do tema em DERBLI, Felipe. Proibição de Retrocesso Social: uma proposta de sistematização à luz da Constituição de 1988, 2007, p.433 e seguintes. 15 QUEIROZ, 2006, p.70. Todavia, a própria autora reconhece no mesmo texto, quando trata do princípio do não retrocesso social em termos de Direitos Fundamentais Sociais, que: “Mas haverá aí fundamentalmente de distinguir entre uma reversibilidade fáctica, relativa a recessões e crises económicas, da proibição do retrocesso social propriamente dito, isto é, a reversibilidade dos direitos adquiridos como ocorre, v.g., quanto se reduzem os créditos da segurança social, o subsídio de desemprego ou as prestações de saúde.” p. 74. Na mesma direção, SERNA; TOLLER, 2000. 16 Art. 227, da Constituição Federal de 1988. 17 Art. 229, da Constituição Federal de 1988. 294 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II tem o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida18. Com tal perspectiva já se pôde asseverar que a prestação alimentar não deva subsistir até os 21 anos, mas estender-se, com base no princípio da solidariedade familiar, além da maioridade19. Como o Novo Código Civil Brasileiro reduziu para dezoito anos o começo da maioridade, com maior razão este entendimento se justifica.20 Mesmo no plano da infraconstitucionalidade, temos como deveres familiares – notadamente entre os cônjuges –, dentre outros, a mútua assistência e o sustento dos filhos, sendo que eles são obrigados a concorrer, na proporção de seus bens e dos rendimentos do trabalho, para o sustento da família, qualquer que seja o regime patrimonial21. Ao lado disto, ainda é de se ressaltar que podem os parentes, os cônjuges ou companheiros, pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, nos termos do art.1.694, do novo Código Civil Brasileiro. Veja-se que, quando faltam neste dever, os familiares podem ser enquadrados inclusive nas disposições do art.244, do Código Penal, que disciplina: Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo.22 Mesmo nas situações em que as famílias se desconstituem, fenômeno acelerado em nossa época, a legislação infra-constitucional confirma o disposto no Texto Político de 1988, ao assegurar que o cônjuge responsável pela separação judicial prestará ao outro, se 18 Art. 230, da Constituição Federal de 1988. In RT, 698/156; 727/262. 20 Neste sentido, ver o texto de SANTOS, 2003, p. 12. Neste texto, o autor lembra que a extensão e a característica da reciprocidade da obrigação alimentar encontram-se previstas nos arts. 1.696 e 1.697, que repetem, ipsis litteris, o que já dispunham os arts. 397 e 398, do Código de 1916. Assim, a obrigação alimentar, pela ordem, fica limitada, em primeiro lugar, aos ascendentes, depois aos descendentes e, por fim, aos irmãos, assim germanos como unilaterais (art. 1.697). Observe-se que na linha reta, seja ascendente ou descendente, não há limitação de grau, ao passo que na colateral resta limitada ao grau mais próximo (irmão). Em cada linha, sempre os mais próximos em grau devem ser chamados em primeiro lugar, sendo a obrigação alimentar dos parentes mais remotos subsidiária e complementar. Isto é, vem depois da dos mais próximos e limita-se a completar o valor que por estes possa ser prestado. 21 Consoante as disposições dos arts.1566 e 1568, ambos do novo Código Civil Brasileiro. Ver o texto de José Lamartine Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz. Direito de família (direito matrimonial), 1990. 22 Redação dada pela Lei nº 10.741, de 01.10.2003, DOU de 03.10.2003, com efeitos a partir de 90 dias da publicação. A pena prevista aqui é detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País, consoante a redação dada pela Lei nº 5.478, de 25.07.1968. 19 295 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II dela necessitar, a pensão que o juiz fixar, sendo que para manutenção dos filhos, os cônjuges, separados judicialmente, contribuirão na proporção de seus recursos. Para assegurar o pagamento da pensão alimentícia, o juiz poderá ainda determinar a constituição de garantia real ou fidejussória, ou mesmo que a pensão consista no usufruto de determinados bens do cônjuge devedor. Ainda, a obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor.23 De certa forma a doutrina e jurisprudência brasileiras têm operado muito bem na direção de demarcar um conceito de alimentos conforme à Constituição, ou seja, atenta para o fato de que “o direito a alimentos deve corresponder não somente ao indispensável para a subsistência, mas também ao que for necessário para o alimentando viver de modo compatível com sua condição social”24. Veja-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul há muito tempo já teve oportunidade de dizer que: o deve a obrigação alimentar ser fixada de modo a incluir, também, valores gastos pela alimentada com saúde, não se mostrando possível a escolha do plano de saúde que será pago pelo alimentante, bem como devendo ser retirada a condenação do alimentante ao pagamento de multa pela sua não inclusão em referido plano.25 A Constituição Estadual do Rio Grande do Sul de 1989, no seu artigo 241, que dispõe sobre a saúde em seu território, a partir, por certo, da dicção da Constituição Federal de 1988, determina que: Art. 241 - A saúde é direito de todos e dever do Estado e do Município, através de sua promoção, proteção e recuperação. Parágrafo único - O dever do Estado, garantido por adequada política social e econômica, não exclui o do indivíduo, da família e de instituições e empresas que produzam riscos ou danos à saúde do indivíduo ou da coletividade. (grifou-se) Ou seja, o Estado do Rio Grande do Sul introduziu em sua Constituição a participação do indivíduo e de sua família no custeio da saúde pública, sendo que, com base 23 Consoante disposições dos arts.19, 20, 21 e 23, da Lei nº 6.515/77. TJPE – AgRg 93939-5/01 – Rel. Des. Leopoldo de Arruda Raposo – DJPE 29.10.2003. Na mesma direção os trabalhos clássicos de Luiz da Cunha Gonçalves na obra Princípios de direito civil luso-brasileiro, 1951, p. 1.287; Guilhermo Borda A. em Manual de derecho de família, 2002, p. 403. De igual forma as decisões jurisprudenciais antigas e recentes no país: RE 102877, STF, 2ª T., Rel. Min. DJACI FALCÃO, J. 14.09.1984; REsp 184807/SP, STJ, 4ª T., Rel. Min. BARROS MONTEIRO, J. 24.09.2001. 25 Apelação Cível Nº 70007665268, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Carlos Stangler Pereira, Julgado em 20/05/2004. 24 296 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II nestes pressupostos, foi editada a Lei-RS nº 9.908/93, determinando que o Poder Público estadual deve fornecer medicamentos especiais ou excepcionais aos seus cidadãos, desde que comprovem o seu estado de carência e também de sua família: Art. 2º - O beneficiário deverá comprovar a necessidade do uso de medicamentos excepcionais mediante atestado médico. Parágrafo único - Além do disposto no "caput" deste artigo, o beneficiário deverá comprovar por escrito e de forma documentada, os seus rendimentos, bem como os encargos próprios e de sua família, de forma que atestem sua condição de pobre. Mas como se fará a aferição de quem efetivamente necessita e quem pode contribuir para o atendimento da demanda de saúde no caso concreto? Por via simétrica – respeitada sempre a urgência e especificidades da matéria – à forma e prova judiciária que instrumentalizam os feitos que envolvem a efetivação de obrigações alimentares, oportunizando e reivindicando a demonstração da necessidade do enfermo e a possibilidade de contribuição para o atendimento da demanda dos seus familiares, tomando aqui como referência os vínculos parentais estatuídos pelo próprio sistema jurídico, a saber: A extensão e a característica da reciprocidade da obrigação alimentar encontram-se previstas nos arts. 1.696 e 1.697, que repetem, ipsis litteris, o que já dispunham os arts. 397 e 398, do Código de 1916. Assim, a obrigação alimentar, pela ordem, fica limitada, em primeiro lugar, aos ascendentes, depois aos descendentes e, por fim, aos irmãos, assim germanos como unilaterais (art. 1.697). Observe-se que na linha reta, seja ascendente ou descendente, não há limitação de grau, ao passo que na colateral resta limitada ao grau mais próximo (irmão). Em cada linha, sempre os mais próximos em grau devem ser chamados em primeiro lugar, sendo a obrigação alimentar dos parentes mais remotos subsidiária e complementar. Isto é, vem depois da dos mais próximos e limita-se a completar o valor que por estes possa ser prestado.26 Postos estes contornos, passa-se a analisar a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por seu Segundo Grupo Cível, dos Embargos Infringentes de nº70049198310, versando sobre o tema proposto. 26 SANTOS, 2003, p. 12. 297 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II 2) O DIREITO À SAÚDE NA DIMENSÃO INTERNACIONAL DO DESENVOLVIMENTO HUMANO Atualmente é quase que universalmente aceito que o sucesso de um país ou o bem-estar de um indivíduo não podem ser avaliados somente pelo poder econômico. O rendimento é, obviamente, elemento crucial para se alcançar o progresso, contudo, é preciso também avaliar se as pessoas conseguem ter vidas longas e saudáveis, se têm oportunidades para receber educação e se são livres de utilizarem os seus conhecimentos e talentos para moldarem os seus próprios destinos. Sobre esta abordagem, cumpre destacar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), lançado pela Organização das Nações Unidas (ONU) no início da década de 1990 que propõe verificar o grau de desenvolvimento de um país utilizando alguns indicadores de desempenho. Visando enfatizar a necessidade de constantes aplicações de medidas socioeconômicas mais abrangentes, que incluam também outras dimensões fundamentais da vida e da condição humana, o IDH combina três componentes básicos do desenvolvimento humano: a) a longevidade, que também reflete, entre outras coisas, as condições de saúde da população; medida pela esperança de vida ao nascer; b) a educação, medida por uma combinação da taxa de alfabetização de adultos e a taxa combinada de matrícula nos níveis de ensino fundamental, médio e superior; c) a renda, medida pelo poder de compra da população, baseado no PIB per capita ajustado ao custo de vida local para torná-lo comparável entre países e regiões, através da metodologia conhecida como paridade do poder de compra (PPC) 27. Segundo o IDH, a nuclearidade deste terceiro elemento (rendimento) é reconhecida pela sua inclusão como uma das três dimensões básicas do IDH, juntamente com a saúde e a educação. A abordagem do desenvolvimento humano reconhece o contributo do rendimento para um maior domínio dos recursos e o efeito que isso tem no 27 Em economia a paridade do poder de compra (PPC) ou paridade do poder aquisitivo (PPA) é o método alternativo à taxa de câmbio para se calcular o poder de compra de países. A PPC mede quanto uma determinada moeda pode comprar em termos internacionais (dólar), já que bens e serviços têm diferentes preços de um país para outro, ou seja, relaciona o poder aquisitivo de tal pessoa com o custo de vida do local, utilizando como parâmetro seu salário. 298 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II alargamento das capacidades das pessoas através da nutrição, do abrigo e de oportunidades mais amplas. Ou seja, é necessário que os economistas e os cientistas sociais compreendam melhor as interligações entre essas três dimensões, criando uma sensibilização mais ampla daquilo que conduz ao desenvolvimento humano, dando destaque para a elementos que ultrapassam a esfera do crescimento econômico e atingem a saúde e a educação das populações nacionais. De acordo com o Relatório do IDH, Muitos países obtiveram grandes ganhos na saúde e na educação apesar de um modesto crescimento no rendimento, enquanto que outros países com um forte crescimento económico ao longo de décadas não conseguiram progressos igualmente impressionantes na esperança de vida, na educação e nos padrões de vida em geral.28 A título de exemplo, Em Timor-Leste, mais de 70% dos alunos no final do primeiro ano não conseguiam ler uma única palavra quando confrontados com um excerto de texto simples. Estas dificuldades na melhoria da qualidade da educação ilustram a oscilação da eficácia do envolvimento do Estado.29 O que conduz a reflexão de que os países conseguem melhores desempenhos no IDH quando realizam mais progressos na saúde e na educação: Embora na saúde a influência principal fosse a transmissão de inovações tecnológicas, como as vacinações e as práticas de saúde pública, na educação foram os ideais acerca do que as sociedades – e os governos – devem fazer e quais as metas a que os pais aspiram para os seus filhos.30 O RDH de 1990 recorria a uma definição clara do desenvolvimento humano como um processo de “alargamento das opções das pessoas”, realçando a liberdade para ser saudável, receber instrução e desfrutar de um padrão de vida digno31, mas também sublinhava que o desenvolvimento e o bem-estar humanos vão muito para além dessas dimensões, abrangendo um leque muito mais vasto de capacidades, incluindo as liberdades políticas e os direitos humanos. 28 PNUD, 2010, p. v. PNUD, 2010, p. 43. 30 PNUD, 2010, p. 57. 31 “La verdadera riqueza de una nación está en su gente. El objetivo básico del desarrollo es crear un ambiente propicio para que los seres humanos disfruten de una vida prolongada, saludable y creativa. Esta puede parecer una verdad obvia, aunque con frecuencia se olvida debido a la preocupación inmediata de acumular bienes de consumo y riqueza financiera.” In: PNUD, 1990, p. 29. (tradução livre) 29 299 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II O desenvolvimento humano tem a ver com a sustentação regular de resultados positivos ao longo do tempo e o combate contra os processos que empobrecem as pessoas ou estão subjacentes à opressão e à injustiça estrutural. Princípios plurais como a equidade, a sustentabilidade e o respeito pelos direitos humanos são, por conseguinte, fulcrais. [...] O desenvolvimento humano tem também a ver com a abordagem das disparidades estruturais – deve ser equitativo. E tem a ver com a habilitação das pessoas para que exerçam escolhas individuais e participem, definam e beneficiem dos processos aos níveis familiar, comunitário e nacional – para que fiquem capacitadas.32 De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o desenvolvimento humano é aquele que integra aspectos de desenvolvimento social, desenvolvimento econômico (incluindo desenvolvimento local e rural) e desenvolvimento sustentável. O conceito situa as pessoas no centro do desenvolvimento, tratando da promoção do potencial das pessoas, do aumento de suas possibilidades e o desfrute da liberdade de viver a vida que eles valorizam. A realidade brasileira no Relatório do IDH que, vale lembrar, considera as condições de saúde, educação e renda de cada local, é ainda preocupante. Mesmo que o relatório tenha apontado que a maioria das pessoas no mundo tem vidas mais longas, mais educação e maior acesso a bens e serviços do que nunca, e que o IDH médio mundial aumentou 18% entre 1990 e 2010 e 41% desde 1970, o Brasil ainda ocupa a 84ª posição entre os 187 países avaliados no estudo. Esta realidade, se comparada com a posição do país no ranking do PIB mundial, no qual possui a sexta posição33, conduz a conclusão de que os níveis de educação e saúde do Brasil ainda são muito baixos, e, portanto, merecedores de atenção e esforços por parte do Estado. 3) A GARANTIA DO DIREITO FUNDAMENTAL A SAÚDE: ANÁLISE A PARTIR DE UM CASO CONCRETO O recurso de apelação sob o nº 70041057480, da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, oriundo da comarca de Caxias do Sul-RS 32 PNUD, RDH, 2010, p. 2-3. Dados extraídos do Fundo Monetário Internacional, World Economic Outlook Database, abril de 2012: Nominal GDP list of countries. Dados para o ano de 2011. 33 300 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II (julgado em dezembro de 2011), em face da sentença de primeiro grau que julgou improcedente o pedido de fornecimento de medicamentos formulado na ação originária. A situação envolve a pretensão em receber do Estado medicamentos de advogado com 70 anos de idade34 e que está aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social, percebendo proventos no valor de R$1.708,21 mensais. Refere que sua esposa é professora estadual aposentada, auferindo mensalmente R$ 791,82, sendo estas as duas únicas fontes de rendimentos da família, tendo juntado os comprovantes de rendimentos. Dentre outras razões adotadas pelo juízo de improcedência, restou registrado na decisão e provado nos autos que o postulante detinha patrimônio que montava em R$ 212.639,97, entendendo ele que não se afiguraria razoável exigir-se que se desfizesse de seus bens para arcar com despesas de saúde. No entanto, está consignado que, em 2004, a movimentação financeira do demandante foi de quase R$ 60.000,00, o que seria incompatível com uma renda anual de cerca de R$ 10.000,00.35 Consta dos autos que os familiares do postulante, bem empregados e situados socialmente, prestam-lhe assistência financeira na medida do possível, todavia. De forma acurada, a magistrada de primeiro grau que julgou o pedido, a par da realidade dos membros da comarca em que vive, referiu expressamente que: A família do autor possui condições de arcar com o seu tratamento, sendo constituída de filha que detém o cargo de procuradora do Município de Porto Alegre e genro que detém o cargo de Juiz do Trabalho. Ainda, na impugnação ao pedido de AJG, houve a quebra de sigilo bancário que demonstrou movimentação financeira anual de R$ 59.764,73, bem como um patrimônio que atinge o montante de R$ 212.639,97. Em acórdão proferido à apelação interposta à procedência da referida impugnação, bem narrado que é incompatível uma renda anual de R$ 10.000,00, afirmada pelo autor e a declaração de imposto de renda apresentada; incompatibilidade esta demonstrada com a comprovação da existência de movimentação financeira superior a cinquenta e nove mil reais.36 (grifou-se) 34 O postulante é portador de diabetes mellitus tipo 1 e necessita fazer uso dos medicamentos insulina glargina (lantus®), rosiglitisona (avandia®), insulina lispro (humolog®) e cloridrato de tamsulosina (ominic®), cujo custo mensal alcançava aproximadamente R$ 400,00 em julho de 2005, quando ajuizada a demanda. Posteriormente o demandante informou a interrupção do tratamento com o fármaco cloridrato de tamsulosina e, em apelação, referiu que o valor atualizado da medicação, considerando-se a substituição do medicamento avandia por actos, em novembro de 2010, seria de R$ 759,61. 35 Esta discussão toda se deu em sede de incidente de impugnação do valor da causa, quando negado o pedido de gratuidade judiciária, constatando-se que a movimentação anual do postulante referente ao ano de 2004, diversamente da constante da declaração de imposto de renda, em R$ 11.529,64 (fls.152-4), na realidade importou no numerário de R$ 59.764,73, conforme apurado em procedimento de quebra de sigilo bancário, utilizando-se dados fornecidos pela Receita Federal – fls.194/196. 36 P. 267 do Apelo. 301 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II De outro lado, para esmorecer a prova colhida no tocante à sua suficiência econômica, o apelante se limitou a sustentar que: [...] cumpre destacar que a aferição da capacidade financeira [...], procedida no ato da prolação da sentença no ano de 2010, não pode se sustentar exclusivamente na movimentação bancária verificada nos idos de 2004. Tal não pode ocorrer quer porque o referido documento está absolutamente desatualizado, quer porque, fundamentalmente, a renda a ser considerada para fins de análise de capacidade financeira é àquela que o indivíduo acrescenta ao seu patrimônio por força do seu trabalho e/ou da aplicação do seu capital. Na conta-corrente de um indivíduo podem passar valores significativos sem que com isso tenha havido qualquer apropriação ou acréscimo patrimonial.37 (grifou-se) No caso em análise, o cotejamento daquele patrimônio do postulante, aliado ao fato de não ter vindo aos autos cópias das suas declarações atuais de imposto de renda para que se pudesse confrontá-las com a renda mensal recebida de aposentadoria, bem como a existência de filha e genro com posições de destaque na carreira jurídica, ratificaram a ideia de que “o fornecimento gratuito de medicamentos deve se limitar àquelas pessoas que, efetivamente, não possuem condições financeiras de adquirir os medicamentos”38 A possibilidade de restrição do acesso aos tratamentos, em face da existência de condições financeiras, corresponde a outras decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 70025999046, SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: VASCO DELLA GIUSTINA, JULGADO EM 24/09/2008 AGRAVO DE INSTRUMENTO. ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. PROCESSUAL CIVIL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. INDEFERIMENTO DA ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. HIPOSSUFICIÊNCIA NÃO COMPROVADA PELA PARTE AGRAVANTE. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (SEGREDO DE JUSTIÇA) APELAÇÃO CÍVEL Nº 70025959289, OITAVA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: JOSÉ ATAÍDES SIQUEIRA TRINDADE, JULGADO EM 22/10/2008 APELAÇÃO CÍVEL. ECA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. DEVER DA FAMÍLIA DE CUSTEIO DO TRATAMENTO MÉDICO. SUFICIÊNCIA FINANCEIRA DOS GENITORES DA MENOR. Comprovado, fartamente, que a família da menor possui condições econômicas para suportar, sem prejuízo de seu sustento, o custeio do tratamento de que necessita, pois portadora de retardo mental leve (CID 37 P. 277 dos autos do Apelo. Apelação Cível e Reexame Necessário nº70028464881, Sétima Câmara Civel, TJRS, relator des. Ricardo Raupp Ruschel, julgado em 10/06/2009. 38 302 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II F70) e transtorno invasivo do desenvolvimento (CID F84.9), é sua prioridade o fornecimento da terapêutica. Inteligência do art. 4º do ECA. A garantia do direito à saúde compete ao Estado, apenas quando demonstrada a insuficiência financeira dos responsáveis pela menor. Recurso desprovido. AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 70023322217, SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: DENISE OLIVEIRA CEZAR, JULGADO EM 13/08/2008 AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS. ACESSO À SAÚDE. IMPOSSIBILIDADE FINANCEIRA DE ARCAR COM O CUSTO DO MEDICAMENTO. NÃO-DEMONSTRAÇÃO. As normas de organização, funcionamento e gestão do Sistema Único de Saúde são internas, de natureza administrativa, não alterando a legitimidade para responder ao direito exercido, sendo solidariamente responsáveis no dever de fornecer medicamentos os entes federativos acionados. Necessidade de demonstração de carência para que possa ser caracterizada a obrigação estatal de fornecimento gratuito de medicamentos. Carência não comprovada nos autos. Ausência de verossimilhança quanto à hipossuficiência financeira que não autoriza a concessão da antecipação de tutela. AGRAVO DESPROVIDO. DECISÃO MANTIDA. Por tais razões é que entende-se que inexistam elementos que autorizassem a condenação do Município ao fornecimento dos fármacos, sob pena de subversão a toda a disciplina que deve nortear o acesso à saúde, restando vencido na Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça, o que ensejou a interposição dos Embargos Infringes de nº70049198310 (julgado em 13/07/2012), ao Segundo Grupo Cível da mesma Corte. O Relator dos Embargos Infringentes, em seu voto condutor, dentre outros argumentos para julgá-los improcedentes, manteve a decisão da maioria na Câmara de origem, sustentou que: (1) Do ponto de vista abstrato, é possível afirmar que a jurisprudência vem entendendo imperiosa a comprovação de carência financeira para que o pretendente faça jus ao custeio de medicamentos e tratamentos por parte do Estado; (2) Tal entendimento é corroborado pelo artigo 1º da Lei nº 9.908, de 16 de junho de 1993, segundo o qual “o Estado deve fornecer, de forma gratuita, medicamentos excepcionais para pessoas que não puderem prover as despesas com os referidos medicamentos, sem privarem-se dos recursos indispensáveis ao próprio sustento e de sua família” [...]. Após isto, o Relator emitiu juízo de valor sobre as provas carreadas aos autos envolvendo a condição financeira do postulante, nos seguintes termos: O patrimônio do autor, por sua vez, não serve necessariamente para comprovar que disponha de condições financeiras para arcar com o custo dos 303 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II medicamentos necessários porque não significa liquidez que possa custear o tratamento. Aliás, esse patrimônio não representa ou constitui verdadeira fortuna, estimado em R$212.639,97, abarcando um apartamento, 20 hectares de terra em Nova Petrópolis, 101 hectares de terra no município de Mampituba, um automóvel Corsa, ano 1996, um telefone residencial e uma conta poupança com depósito de R$839,97. Ademais, o fato de ter o autor uma movimentação financeira de aproximadamente R$60.000,00 no ano de 2004, não lhe desnatura a renda mensal, inclusive porque não há comprovação de que se tenham repetido movimentações desse jaez nos anos seguintes. Portanto, a existência de movimentações financeiras em sua conta há cerca de oito anos, assim como a existência de patrimônio abrangendo apartamento de valor razoável e carro popular com mais de dez anos, não é suficiente para afastar o dever do Estado em fornecer os medicamentos. De igual sorte, no que tange à responsabilidade parental em face das demandas do postulante, ponderou o Relator que: “Por outro lado, entendo inaceitável a tese de que a filha e o genro do autor, por exercerem cargos jurídicos relevantes, deveriam prestar assistência familiar relativa a sua saúde”. 4) REFLEXÕES ACERCA DO CASO ANALISADO A Constituição Estadual do Rio Grande do Sul de 1989, no seu art.241, que dispõe sobre a saúde em seu território, a partir, por certo, da dicção da Constituição Federal de 1988. Diante da implementação, pela Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, da necessidade da participação do indivíduo e de sua família no custeio da saúde pública, sendo que, com base nestes pressupostos, foi editada a Lei-RS nº 9.908/93, determina que o Poder Público estadual deve fornecer medicamentos especiais ou excepcionais aos seus cidadãos, desde que comprovem o seu estado de carência e também de sua família, questiona-se: a) se a prestação de medicamentos excepcionais, pode servir para regulamentar o fornecimento de medicamentos normais, e b) o que distingue um fármaco normal em face de um excepcional. A Constituição Estadual do Rio Grande do Sul deve ser interpretada conforme a Constituição Federal, no sentido de ratificar este sentido solidarístico que chama à responsabilidade a família para contribuir na mantença do sistema republicano e federativo de 304 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II saúde, dando sua quota-parte, seja ela qual for, na medida de sua possibilidade e diante da necessidade do parente enfermo. No entanto, como se fará isto em nível de demandas judiciais que envolvem a prestação de medicamentos, internações hospitalares, etc.? Por via simétrica – respeitada sempre a urgência e especificidades da matéria – à forma e prova judiciária que instrumentalizam os feitos que envolvem a efetivação de obrigações alimentares, oportunizando e reivindicando a demonstração da necessidade do enfermo e a possibilidade de contribuição para o atendimento da demanda dos seus familiares, tomando aqui como referência os vínculos parentais estatuídos pelo próprio sistema jurídico brasileiro. O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de tratar deste assunto no âmbito da Adin nº 2.435/200239, quando asseverou, a latere, que cabe à família, à sociedade e ao Estado o dever de amparar as pessoas idosas, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. O argumento central da proponente da ADIN contra a Lei estadual do Rio de Janeiro que determinava que farmácias e drogarias praticassem descontos de medicamentos para idosos era no sentido de que: Entende que essa norma, ao obrigar as farmácias e drogarias a conceder descontos no preço dos remédios, viola os princípios da livre concorrência e da livre iniciativa (art. 170, caput e inciso IV da CF), consistindo em indevida intervenção do Estado na ordem econômica. Aduz que a intervenção do Estado só se pode dar de 02 (duas) formas: direta e indireta. Diretamente, quando o Estado explora, ele mesmo, determinada atividade econômica, nas hipóteses expressas na Constituição, ou seja, quanto tal intervenção é necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (art. 173, caput). Indiretamente, atuando como agente normativo e regulador, exercendo, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado (art. 174, caput). O autor da ação, de forma equivocada, argumentava que a legislação feria o princípio da isonomia garantido constitucionalmente, eis que dava tratamento diferenciado ao idoso, em detrimento de outras camadas da população. A dimensão e o eixo contemporâneo de referência do princípio da igualdade substituiu a ideia de não-discriminação formal pelo ideal da não-discriminação material, em que o postulado da isonomia não mais se refere tão somente à proibição de tratamento 39 Neste feito, pretendia-se obter liminar para suspender os efeitos desta Lei do Estado do Rio de Janeir. Entendeu por bem a Corte não deferir a liminar exatamente em face dos danos que isto poderia causar – como retrocesso social – aqueles que já vinham contando com tal subsídio, bem como aos demais idosos que poderia disto se beneficiar. Relatora Ministra Ellen Gracie. Pendente de julgamento o mérito. 305 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II discriminatório, mas inclui considerações metas-jurídicas atinentes ao tratamento desigual historicamente prevalecente entre determinados grupos sociais. Em tal circunstância é que políticas públicas de inclusão social despontam como mecanismos de justiça distributiva, destinadas a compensar inferioridades sociais, econômicas e culturais.40 Nesta direção vai Flávia Piovesan, ao sustentar que se afigura insuficiente, desde uma perspectiva dos Direitos Fundamentais, tratar hoje o indivíduo – sujeito de direito – de forma genérica, geral e abstrata, impondo-se considerá-lo em face de suas particularidades e peculiaridades, o que vai gerar, por conseqüência, tratamento específico e diferenciado diante das violações de direitos atinentes a estes sujeitos. Em tal cenário, mulheres, crianças, população afro-descendente, imigrantes e migrantes, pessoas portadoras de deficiências, dentre outras categorias potencial e efetivamente vulneráveis, devem ser vistas nas especificidades e particularidades de suas condições sociais.41 O Tribunal Regional Federal da 4º Região já teve oportunidade de deliberar sobre matéria similar, sustentando, em sede de Agravo de Instrumento, que o Princípio Constitucional da Igualdade tem, em verdade, uma dupla faceta: [...] supõe, ao lado de uma “proibição de diferenciação”, em que “tratamento como igual significa direito a um tratamento igual”, também uma “obrigação de diferenciação”, em que tratamento como igual “significa direito a um tratamento especial”, possibilitando “disciplinas jurídicas distintas” ajustadas às desigualdades fáticas existentes.42 Um Estado que se queira Democrático e de Direito tem de lançar mão de iniciativas pró-ativas da igualização material de categorias sociais que se encontram em estado de discriminação, aqui entendido como condição de separado, distinguido, segregado contextualmente de seu tempo e espaço.43 Tal comportamento estatal evidencia aquilo que Antonio E. Pérez Luño chama de dupla dimensão constitutiva do princípio da dignidade da pessoa humana: (a) a negativa, que busca impedir a submissão da pessoa humana a 40 CASTRO, 2005, p. 364. PIOVESAN, 2003, p.252. Decorre destes argumentos a afirmação acertada de Piovesan no sentido de que ao lado do direito à igualdade, surge, também, como direito fundamental, o direito à diferença e à diversidade, eis que, considerando o processo que a autora chama de feminilização e etnização da pobreza, percebe-se que as maiores vítimas de violação dos direitos econômicos, sociais e culturais, são as mulheres e os afro-descendentes, decorrendo daí a necessidade de adoção, além de políticas universalistas, algumas específicas, capazes de dar visibilidade a sujeitos de direito com maior grau de vulnerabilidade, visando ao pleno exercício dos seus direitos. 42 Agravo de Instrumento nº 2008.04.00.005863-3/RS, em que figurou como Agravante a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, discutindo o tema da reserva de cotas. Relatora Desembargadora Federal Maria Lúcia Luz Leiria, despacho dado em 25/02/2008. 43 DA MATTA, 1997. No mesmo sentido o trabalho de Lynn Huntley e Antonio Sergio Alfredo Guimarães, Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil, 2000. 41 306 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II degradações; e (b) a positiva, que impõe a garantia de condições para o pleno desenvolvimento da personalidade deste homem (enquanto gênero).44 É a chamada justiça redistributiva que ganha espaço de pertinência, no sentido da promoção de oportunidades por meio de políticas públicas para aqueles que não conseguem se fazer representar de maneira igualitária, operando o Estado – no âmbito legislativo, ações executivas e mesmo jurisdicionais – como redistribuidor de benefícios aos cidadãos, de maneira a tentar compensar as desigualdades que o preconceito e a discriminação efetuaram no passado e continuam a efetivar no presente.45 É bem verdade que, nesta mesma ADIN, o Ministro Marco Aurélio, destacou fato interessante que releva os impactos econômicos potencialmente unilaterais na espécie, a saber: Há um outro aspecto – por isso aludi à proporcionalidade: é que, na hipótese concreto, não se distingue quanto á possibilidade de aquisição dos remédios, considerado o preço, por aqueles que, estando aquém das faixas etárias referidas, não têm condição de comprar, só o fazendo com o sacrifício da própria alimentação. Na lei não se cogita, sequer – aí, eu diria que o legislador acabou cumprimentando com chapéu alheio –, de uma compensação, tendo em vista a postura do próprio Estado, na condição de credor do Imposto sobre circulação de Mercadorias e Serviços. Simplesmente, na lei impõem-se os descontos, sem se atentar para a situação financeira do adquirente do remédio, bastando o fator objetivo “idade”, e, ainda, prevê-se, em caso de desobediência, multa pesada no importe de 5.000 UFIR’s. Poderia efetivamente a legislação ter levado em conta os impactos econômicos que iria provocar no mercado de medicamentos no Rio de Janeiro, como ônus social imposto às atividades sob comento, para estabelecer melhores critérios seletivos fundados na necessidade material do idoso em obter tais benefícios, uma vez que o pressuposto fático fundador da medida é a de que todos os idosos do Estado do Rio de Janeiro necessitam de fomentos desta natureza para exercerem um direito fundamental que é a vida digna, no âmbito da saúde, o que pode não ser verdade, uma vez que tais custos são suportados pelos demais consumidores. Daí a razão da aplicação, quando possível, da ponderações materiais exaustivas na tomada de decisões que envolvem tantos e tão diversificados interesses sociais e institucionais, sob pena de se violar demasiadamente direitos de uns em benefício de poucos. 44 45 LUÑO, 2000, p.321. FISCUS, 2002, p.11. 307 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Assim com Canotilho, é possível concluir que efetivamente é chegada a hora dos constitucionalistas se darem conta dos limites da jurisdição e reconhecer, com humildade, que a Constituição já não é o lugar do superdiscurso social, levando em conta que a eventual colisão de discursos reais de aplicação da Constituição terão de ser supervisionados a partir de colisões de valores ideais (a vida, a segurança, a integridade física, a liberdade, a saúde de todos e não de alguns) que integram o justo de uma comunidade bem- ou mal – ordenada. 46 Partindo do pressuposto de Boaventura de Souza Santos47, que tanto a sociedade democrática como o Estado democrático só se justificam a partir do reconhecimento de suas naturezas multiformes e abertas, constituindo-se ambos num campo de experimentação política emancipadora, permitindo que diferentes soluções institucionais e não-institucionais coexistam e compitam durante algum tempo, com caráter de experiências-piloto, sujeitas à monitorização permanente de organizações sociais, com vista a proceder a avaliação comparada dos seus desempenhos48, tenho que, levando em conta aquelas políticas constitucionais, o envolvimento de toda a comunidade se faz necessário à concreção dos direitos em geral, e do direito prestacional à saúde em especial. Esta nova forma de um possível Estado e Sociedade democráticos deve se assentar em dois princípios de experimentação laboratorial: O primeiro é de que o Estado só é genuinamente experimental na medida em que às diferentes soluções institucionais são dadas iguais condições para se desenvolverem segundo a sua lógica própria. Ou seja, o Estado experimental é democrático na medida em que confere igualdade de oportunidades às diferentes propostas de institucionalidade democrática. Só assim a luta democrática se converte verdadeiramente em luta por alternativas democráticas. Só assim é possível lutar democraticamente contra o dogmatismo democrático. Esta experimentação institucional que ocorre no interior do campo democrático não pode deixar de causar alguma instabilidade e incoerência na ação estatal e pela fragmentação estatal que dela eventualmente resulte podem sub-repticiamente gerar-se novas exclusões.49 O segundo princípio adotado pelo pensador português, com o qual concordo e aqui quero aplicar, deixa muito clara a importância que o Estado tem ainda na constituição de 46 FISCUS, 2002, p.129. Ver igualmente o texto de Robert Burt, A. The constitution in conflict, 2002, p.81 e seguintes. 47 SANTOS, 1999, p.126. 48 Criando, por exemplo, mecanismos de acompanhamento e avaliação permanente das instituições (Executivo, Judiciário, Legislativo), tanto no âmbito do controle interno (a ser maximizado com estratégias e instrumentos de visibilidade plena de suas ações), como do externo (com conselhos corporativos e populares, mais os tradicionais já existentes). 49 SANTOS, 1999, p.127. 308 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II uma gestão pública compartida do direito à saúde (e dos direitos fundamentais em geral), pois que deve servir de garante não só da igualdade de oportunidades aos diferentes projetos de institucionalidade democrática, mas também garantir padrões mínimos de inclusão, que tornem possível a cidadania ativa participar, monitorar, acompanhar e avaliar o desempenho dos projetos alternativos. Esses padrões mínimos de inclusão são indispensáveis para transformar a instabilidade institucional em campo de deliberação democrática. Neste ponto está certo Tribe50, ao afirmar que: [...] a Constituição não é um espelho em que cada um vê o que quer, nem um documento confiado as mudanças políticas de seus intérpretes. Seu trabalho é criar uma nação através das palavras e, portanto, deve desfrutar o mais amplo apoio entre os cidadãos. (tradução livre)51 Em face de tudo isto, é preciso encontrar uma forma de contemporizar tão diferentes desafios no âmbito do direito à saúde, partindo do pressuposto de que tal tarefa cabe a todos e não somente a alguns. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os direitos fundamentais não são estáticos, mas acompanham o processo histórico, que conhece avanços e retrocessos, e são radicados em uma série de direitos naturais do homem, reconhecidos pela sua própria condição humana. E, o direito fundamental à saúde está inserido nesse processo, que, ao longo dos últimos 40 anos têm sido assimétrico, em especial em termos de qualidade diante da escassez de recursos público. Sabe-se que a insuficiência de recursos dos cofres públicos não deve ser argumento para se permitir o esvaziamento de tal direitos fundamentais, já que reconhecidos como elementos responsáveis pelo desenvolvimento humano e pelo aumento da capacidade das pessoas para provocarem a mudança nas famílias, comunidades e países. No entanto, a proteção da saúde deve atualmente interpretada não somente como um direito em sua dimensão coletiva e até mesmo difusa, e decorrente de grandes esforços das 50 TRIBE; DORF, 2005. “la Costituzione non è uno specchio in cui ognuno vede quello che vuole, né un documento affidato alle sempre mutevoli suelte politiche dei suoi interpreti. È suo compito creare una nazione attraverso le parole e, pertanto, debe godere del più ampio consenso fra i cittadini consociati.” 51 309 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II políticas públicas, mas também exercido e protegido individualmente, seja no âmbito da responsabilidade institucional ou familiar, levando em conta a própria estrutura normativa constitucional e infraconstitucional brasileira. Nesta perspectiva, Assim, o direito à saúde não pode se concretizar, ou pelo menos não se concretiza somente através de uma política constitucional, eis que esta é, prima facie, uma projeção imperativa sobre órgãos constitucionais do Estado das contingências de várias esferas da sociedade, e sob pena de se violar demasiadamente direitos de uns em benefício de poucos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEINIKOFF, T. Alexander. Constitutional Law in the Age of Balancing. In Yale Law Journal, nº 96, 1987. BORDA, Guilhermo A. Manual de derecho de família. 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Ricardo Raupp Ruschel, julgado em 10/06/2009. Apelação Cível Nº 70007665268, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Carlos Stangler Pereira, Julgado em 20/05/2004. 311 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II RE 102877, STF, 2ª T., Rel. Min. DJACI FALCÃO, J. 14.09.1984; Recurso Extraordinário n. 566.471-6, originário do Estado do Rio Grande do Norte. REsp 184807/SP, STJ, 4ª T., Rel. Min. BARROS MONTEIRO, J. 24.09.2001. REsp 811608/RS; Recurso Especial nº2006/0012352-8. 1ª Turma, Relator Min. Luis Fux, julgado em 15/05/2007, publicado no DJ 04.06.2007 p. 314. TJPE – AgRg 93939-5/01 – Rel. Des. Leopoldo de Arruda Raposo – DJPE 29.10.2003. 312 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II O DIREITO SOCIAL À MORADIA E AS POLÍTICAS PÚBLICAS HABITACIONAIS NO BRASIL Rogério Luiz Nery da Silva1 Thuany Klososki Piccolo2 RESUMO Tema dos mais visitados no meio jurídico-político-administrativo, as políticas públicas ganharam a cena nos anos setenta do século passado e vem aos poucos se fazendo reverberar por diversos ramos do conhecimento acadêmico e da prática política governamental e administrativa. Pode-se estudar o tema das políticas de forma teórica generalizada ou pelo viés prático. Pode-se ainda fazê-lo com foco em determinado serviço público ou necessidade prestacional específica dos cidadãos. O presente estudo visa a abordar o direito à moradia vem sendo cada vez mais mencionado nas discussões jurídicas e sociais, em função dos altos índices de déficit habitacional nas cidades e da dificuldade de acesso a uma moradia digna para as parcelas mais pobres da sociedade. O direito à moradia foi incorporado pelo direito brasileiro em função, principalmente, dos tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário. Expressamente, o direito à moradia passou a fazer parte da Constituição Federal de 1988 por meio da Emenda Constitucional nº 26, de 2000, a qual o incluiu no artigo 6º, que trata dos direitos fundamentais sociais. Por se tratar de um direito fundamental, o direito à moradia deve ter aplicação imediata e eficácia plena. No entanto, tendo em vista a questão orçamentária do Estado, a realização desse direito de forma plena para todos os cidadãos é, praticamente, impossível. O histórico das políticas públicas habitacionais no Brasil mostra como os principais programas não conseguiram obter êxito entre as camadas sociais mais baixas, facilitando, de certa forma, os financiamentos para as classes média e alta, contribuindo diretamente para o alto deficit habitacional brasileiro. 1 Rogério Luiz Nery da Silva é professor pós-doutor em Direito Constitucional pela New York Fordham University (EUA); Doutor em Direito Público e Mestre em Direito e Economia. Professordoutor do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu – Mestrado em Direito e pesquisador líder de grupo em Direitos Fundamentais Sociais, na Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), orientador da segunda autora. 2 Thuany Klososki Piccolo é universitária da graduação em Direito, bolsista de Iniciação à Pesquisa na Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), orientanda do primeiro autor. 313 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II PALAVRAS CHAVE: direito à moradia, dignidade da pessoa humana, direito fundamental social, políticas públicas habitacionais. ABSTRACT Public policies is now a matter considered one of the most discussed themes in the administrative, judicial and political circles. The increasing of its attention has started in the nineteen seventies of the last century and it has been gradually reverberating over many branches of the academic knowledge, governmental practices and administrative policy. It is possible to study the policies’ issue under a view of general theory or under a sight of its practical doing. Another alternative option is to focus the politics under an individual public service sight or under a collective citizen’s provisional need. This essay aims to establish a connection to the theme of the right to housing, from its conception grounded in human dignity, passing by the evolution of its historical recognition and remarkable obstacles materialized by the lack of housing, noted for lower-income population, e.g., the difficulty for condign housing access for the poorest part of the society. The right to housing was incorporated into Brazilian law largely due to international human rights treaties signed “by the country”, but it was on account of the Constitutional Amendment No. 26 from 2000 that the right to housing was inserted expressly in the body of the Constitution, in the social rights’ specific chapter. Considered as a fundamental human right, the social right to housing should have immediate applicability and full effectiveness, supposedly, on account of the constitutional structure. However, such assumptions are so far away from becoming real, though appearing implicitly as formal objectives of the Federative Republic of Brazil, established by Article 3 of the Brazilian Constitution – “to eradicate poverty and social marginalization”, whose provision collides with several personal financial difficulties and state budgetary barriers; the analyses of the Brazilian housing public policies indicates very moderate results, mainly among the poorer people, aggravating the severe national housing deficit. KEY WORDS: social rights; right to housing; human dignity; housing public policies. 314 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II I – INTRODUÇÃO A moradia é uma necessidade básica de qualquer pessoa, enquanto elemento basal de sua existência, seja tomada como locus da sobrevivência, seja como ponto de repouso físico, área de proteção contra a ação agentes externos ou centro das atividades familiares ou, ainda, mero santuário de meditação, criação intelectual ou mesmo procriação. Daí compreender-se como fundamental zelar pelo reconhecimento, garantia e efetivação desse especial direito fundamental. O conceito de moradia transpassa a singular e, por vezes utópica figura do “sonho da casa própria”, para alastra-se por extensa área léxica compreendendo para além da idéia de propriedade, também a noção de posse, ou de mera detenção ou até ocupação. Ultrapassado resta também o conceito material de casa enquanto imóvel pura e simplesmente – tal como delimitado por um dado endereço e qualificado por sua extensão métrica ou número de cômodos –, para alcançar outros critérios, vinculados ao acesso a serviços públicos essenciais conexos com a ideia de “habitar”, tais como a prestação de serviços básicos de abastecimento de água e energia, além de boa rede sanitária e outros serviços que possam ensejar noção complementar, assim compreendidas os desdobramentos em redes de transporte, segurança e suporte de facilidades públicas, sempre abertas à admissão de novos conceitos jurídicos (GUERRA, 2008, p. 8). Singular a contribuição de Gomes (2005, p. 75-78), segundo a qual, habitação, casa, domicílio, residência, assentamento, moradia, lar e abrigo são termos que têm em comum o fato de representarem o local em que alguém vive. Todos abrangem um plexo de interesses e necessidades básicas vocacionadas à proteção, segurança e bem-estar do morador. Moradia, portanto, compreende o espaço onde há a possibilidade de exercer o direito de viver com segurança, paz e dignidade, sendo um elemento essencial ao ser humano. 315 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A habitação, tomada como moradia constitui-se em direito fundamental do ser humano, a garantir-lhe a concretização de sua dignidade como pessoa, razão pela qual se classifica como direito social – de índole coletiva prestacional, mas pode ser exercido tanto na esfera individual ou como na familiar. Os problemas envolvendo a efetivação do direito à moradia são os mais diversos e, sob alguns aspectos dotados de notada complexidade. Sob a ótica das políticas públicas, pode-se relacionar – como ponto central da agenda – o elevado déficit de oferta de unidades habitacionais, em especial para pessoas de média e baixa renda. Embora haja considerável volume de recursos em fundos especiais destinados ao financiamento de imóveis residenciais, muitos são os requisitos exigidos e nem sempre os potenciais candidatos reúnem qualidades aptas a lograr preenchê-los, especialmente, aqueles provenientes das camadas mais pobres. Ademais, a desordenada urbanização contribui para uma ocupação pouco racional do espaço físico, com insuficiente aproveitamento, somando-se ao mesmo quadro. O número de pessoas que vivem em condições inadequadas de moradia é alarmante; segundo Marra (2010, p. 6353) estima-se que, somente nos centros urbanos, existam mais de um bilhão de pessoas sem moradia. II – EVOLUÇÃO HISTÓRICA E LEGISLATIVA Sarlet (2011, p. 687-688) destaca que, sob a ótica da evolução histórica, o direito à moradia – como instituto autônomo – não logrou ser reconhecido até a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1958) declará-lo expressamente na cláusula XXV (1): Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. Desde cedo estabeleceu-se frequente discussão em torno da efetividade dos direitos assentados na Declaração Universal, que enfrentaram resistências diversas, 316 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II no sentido de negar-lhes a executoriedade, fosse ao atribuir-lhes natureza meramente “declaratória” – em razão do título “Declaração” adotado –, fosse em função da ideia de força meramente principiológica, como simples valor inspirativo, mas sem condão de coagir os Estados-Membros (Altas-partes Contratantes) a sua observância, atendimento ou cumprimento. Por essa razão, a ONU identificou a necessidade e conveniência de editar um novo diploma que pudesse lhes ratificar a força originalmente desejada com a “Declaração”, mas sob outro enfoque; desta feita o esforço se daria como compromisso voluntário adotado pelos Estados por meio de um “Pacto”, que, depois de assinado, se tornaria dever obrigacional: o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, no artigo 11, § 1º (1966), de elaboração determinada ao Conselho de Direitos Econômicos o qual foi ratificado pelo Brasil apenas em 1992,: Os Estados-partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento. Outros textos internacionais dos quais o Brasil é signatário dão garantias ao direito à moradia direta ou indiretamente (MILAGRES, 2011, p. 92-95), fazendo-se digno de nota, no magistério de Sarlet (2011, p. 690) que, hoje, sessenta e cinco anos após a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, cerca de cinquenta constituições reconhecem o direito à moradia em seu texto legal. Milagres (2011, p. 105-106) assevera que, no contexto da América Latina, grande parte dos países prevêem o direito à moradia em seus textos constitucionais, tal como se verifica nas Cartas do Uruguai, México, Paraguai, Colômbia, Honduras e Nicarágua, em cujos textos figura a previsão de que – de uma forma ou de outra – “todos têm direito a uma moradia digna”. A constituição do Equador se refere ao “direito a uma moradia adequada e digna”; a da Bolívia, refere-se ao “direito a uma moradia adequada”; as da Guatemala e da Costa Rica tratam da proteção e do incentivo à construção de moradias populares, respectivamente. Tem-se, portanto, a assunção em sede constitucional de compromisso expresso e explícito com a promoção de políticas públicas e ações de governo e 317 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II sociais, públicas e privadas voltadas a garantir o direito social à moradia; é de se destacar que no caso específico de Argentina, Costa Rica, Paraguai e México a tutela se projeta mais além, ao ponto de atribuir à moradia a natureza jurídica de bem de família (MILAGRES, 2011, p. 106). No Brasil, a Constituição permite correlacionar o direito social à moradia direta ou indiretamente com muitos dos princípios fundamentais da República, com lócus topológico nos quatro primeiros artigos de seu texto. O princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), assim como com os objetivos fundamentais da República (art. 3º) de “construção de uma sociedade livre, justa e solidária” (Inc. I), “erradicação da pobreza e marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais” (Inc. III) e, de certa forma, na opção pela prevalência dos direitos humanos fundamentais (art. 4º, inciso II), que, muito embora direcionada às relações internacionais, traduz uma opção incondicional pela dignidade dos seres humanos. O direito à moradia foi incorporado ao artigo 6º da Constituição Federal, que faz parte do capítulo II do título I, intitulado “Dos princípios fundamentais”, por meio da Emenda Constitucional nº 26, de 2000. É importante ressaltar que tal direito já era mencionado em outros dispositivos constitucionais, tais como no artigo 7º, IV, o qual define que o salário mínimo é aquele capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família, dentre outros elementos, como moradia; e no artigo 24, IX, quando dispõe sobre a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para promover programas de construção de moradia e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (SARLET, 2011, p. 690. Na visão de Campos (2010, p. p.49), ar ser considerado um direito fundamental, o conteúdo material da norma que o disciplina seria de aplicação imediata e eficácia plena, À inteligência do parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição Federal. Rangel et Silva (2009, p. 67-68) apóiam-se sobre o princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais, para sustentarem dispensável regulamentação legislativa ulterior para lograr eficácia social. Ao nosso sentir, em que pese a superior relevância do direito à moradia e sua indeclinável natureza de direito fundamental social, faz-se necessário distinguir que os conteúdos dos princípios de aplicabilidade imediata e de eficácia plena compõem 318 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II conceitos jurídicos eminentemente distintos, que não se igualam, nem se sobrepõem, tampouco se confundem: a aplicabilidade imediata, decorre de previsão constitucional, que ratifica e recepciona a opção pelo efeito imediato – de retroatividade mínima adotado desde a histórica Lei de Introdução ao Código Civil, hoje, Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, a conceber a vigência imediata, “no que couber” a qualquer dispositivo veiculador de direitos fundamentais. Como é de todos sabido, a limitação do que é “cabível” em termos de aplicação imediata, se dará a partir da própria arquitetura adotada em cada dispositivo do texto constitucional, consagrada por diversos modelos de classificação de normas constitucionais, em torno das ideias de eficácia plena, eficácia contida e eficácia limitada, com suas nuances, caso a caso, conforme os doutrinadores. O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) refere-se explicitamente ao direito à moradia a partir da adoção de princípios e diretrizes, fundados no que denomina princípio instrumental do planejamento (RANGEL et SILVA, 2009, p. 72), voltado a conferir contornos de sustentabilidade ao direito à moradia no espaço urbano, com o intuito de regulamentar a política urbana nacional. III – POLÍTICAS PÚBLICAS HABITACIONAIS NO BRASIL O processo de habitação no Brasil se mostrou deficitário desde o início da colonização, quando o sistema de Capitanias Hereditárias dividiu o território nacional de forma desigual, contribuindo para o surgimento de latifúndios e a centralização de terras nas mãos de poucos (NOGUEIRA, 2010, p. 7). De acordo com Motta (2011), no primeiro quartel do século XX, fruto da abolição da escravatura e do grande número de imigrantes, o problema da habitação foi agravado em muitas cidades brasileiras, pois o poder público não se via preparado estrategicamente para a nova realidade do país. Botega (2008, p. 4) apresenta dados dos censos demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstradores da influência do período de industrialização no Brasil para o aumento significativo da população urbana. Depreende-se que em 1920 a carga urbana representava cerca de 11,3% e, já em 1950, superava a população rural em 55,9%. Assim, a falta de alternativas 319 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II habitacionais, o intenso processo de industrialização e a baixa renda das famílias contribuíram para que uma grande parcela da população brasileira buscasse alternativas precárias e informais para morar, caracterizadas pela falta de acesso a serviços, assistência de infra=estrutura, informalidade na posse da terra, entre outros (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2009, p. 36)3. Segundo Nogueira (2010, p. 7), por muito tempo, as moradias foram resultado de ações da iniciativa privada e do autofinanciamento, até a criação da Fundação da Casa Popular (FCP) em 1946, órgão federal responsável pelo financiamento da construção de habitações e que, ao mesmo tempo, apoiava a indústria de materiais de construção e a implementação de projetos de saneamento4. A FCP tinha o compromisso de prover residências para a população de baixa renda, mas, seus resultados foram modestos, tendo criado apenas 17 mil moradias, no espaço temporal de vinte anos de atuação (MOTTA, 2011). Em 1964, a Fundação da Casa Popular foi extinta e substituída pelo Sistema Financeiro de Habitação (SFH) – marco significativo da intervenção do Estado (governo) no setor habitacional (NOGUEIRA, 2010, p. 7)5. Segundo Motta (2011), o Plano Nacional de Habitação ou Sistema Financeiro de Habitação foi o primeiro plano do governo militar e suas ações visavam outros objetivos além da questão da habitação, como a dinamização da economia, o desenvolvimento do país e o controle das massas. De acordo com Nogueira (2010, p. 8) e Medeiros (2010, p. 4), suas fontes de recurso se baseavam na arrecadação do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos (SBPE), por meio da captação das letras imobiliárias e cadernetas de poupança, e a partir de 1967 passou a contar também com o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), resultado das contribuições compulsórias com base em 8% (oito pontos percentuais) dos salários dos trabalhadores empregados formalmente no mercado de trabalho6. 3 Dados do período de 1940 a 2000. A Fundação da Casa Popular foi a primeira ação do governo destinada à questão da habitação, promulgada pelo Presidente Eurico Gaspar Dutra, por meio do Decreto-Lei nº 9.777, de 6 de setembro de 1946. 5 O Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e o Banco Nacional de Habitação (BNH) foram criados pela Lei nº 4.380/64 e modificada dois anos depois pela Lei nº 5.049/66, ambas promulgadas pelo presidente Humberto de Alencar Castello Branco. 6 A arrecadação do FGTS, no início, era destinada apenas para a construção de casas de interesse social, como conjuntos populares, porém, posteriormente foi canalizada também para os setores de saneamento e desenvolvimento urbano. 4 320 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Segundo Arrectche (1990); Andrade e Azevedo (1982) citados por Medeiros (2010, p. 4), o montante arrecadado pelo FGTS deveria ser destinado para financiar obras para a população de baixa renda, enquanto que a arrecadação do SBPE financiaria obras direcionadas às classe média e alta. Entre 1964 e 1965 foram criadas as Companhias de Habitação Popular (COHABs), que eram empresas públicas ou de capital misto, cujo principal objetivo era atuar na criação e execução de políticas para reduzir o déficit habitacional por meio do financiamento de moradias para o mercado popular (MOTTA, 2011). Segundo Nogueira (2010, p. 9), o BNH não possibilitava o acesso da população de baixa renda aos empréstimos, facilitando o crescimento do número de habitações informais, o que teria motivado a criação dos programas habitacionais: PROFILRUB, PRO-MORAR e João de Barro, destinados à população de renda inferior a três salários mínimos. O Programa de Financiamento de Lotes Urbanizados (PROFILURB), criado em 1975, teve por objetivo atender aos extratos de renda mais baixa, numa especial tentativa de erradicar favelas e de incentivar o financiamento de lotes urbanizados, ou seja, com infra-estrutura básica dotada de ponto de água, luz e ligação de coleta de esgoto, com ou sem a unidade sanitária (BUENO, 2000, p. 30 - 31). Segundo a mesma autora, o programa financiava lotes entre 80 e 370 m2, num prazo máximo de 25 anos, com juros entre 2% e 5% (dois e cinco pontos percentuais) ao ano e, assim, visava facilitar o acesso à terra e atribuir aos mutuários a construção da moradia. Ainda de acordo com Bueno (2000, p. 31), o Promorar (Programa de erradicação da sub-habitação), implementado em 1979, tinha a finalidade de conter o crescimento de favelas nas grandes cidades, por meio do financiamento de unidades habitacionais de até 24 m2, num prazo máximo de 30 (trinta) anos e com juros de 2% (dois pontos percentuais) ao ano. Medeiros (2010, p. 5) ressalta que foi a primeira ação em que não se buscou remover os moradores, mas fixá-los no núcleo originalmente invadido de terra. Realizado por construtoras, esse programa financiou cerca de 206 (duzentos e seis) mil moradias em todo o país até 1984, contabilizando o triplo de unidades a mais que o Profilurb (BUENO, 2000, p. 31). O Programa João de Barro, criado em 1982, no contexto do “processo de abertura política” e diante de severa crise econômica, propugnou pelo acesso à 321 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II moradia, financiando o terreno e o material de construção, contando com a participação da coletividade, focando com prioridade as cidades do interior e destinando-se às famílias com renda de até 3 salários mínimos. De acordo Bueno (2000, p. 31), o programa disponibilizou financiamentos em prazo máximo de 30 (trinta) anos, com juros de 2% (dois pontos percentuais) ao ano, mas obteve pouca eficiência, com apenas 7 (sete) mil unidades produzidas até 1984, principalmente em cidades do interior do Nordeste. No contexto do Sistema Financeiro de Habitação, o Banco Nacional da Habitação foi o principal órgão da política habitacional, cabendo-lhe orientar, disciplinar e controlar a atuação do SFH na construção e aquisição da casa própria para população de baixa renda (MOTTA, 2011). Medeiros (2010, p. 3) afirma que, além de ter um objetivo social, o BNH também buscou incentivar a economia por meio da aumento da mão de obra na construção civil. Já Nogueira (2010, p. 8) atribui aos índices de inflação extremamente elevados na década de 1980 a derrocada do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo e principalmente do Banco Nacional de Habitação (BNH) pela intensa e insustentável inadimplência. O fenômeno se caracterizou por um reajuste superior nas prestações dos financiamentos imobiliários das classes média e alta em comparação com seus índices de reajuste salarial. Nesse contexto, em 1986, deu-se a extinção do BNH, pelo Decr. nº 2.291. Suas atribuições e funções foram transferidas para a Caixa Econômica Federal (BOTEGA, 2008, p. 10). A Política Nacional de Habitação, a crise do SFH e a extinção do BNH criaram um hiato na política habitacional no país, com significativa redução dos recursos destinados a investimentos na área de construção civil e consequente fragmentação institucional por perda da capacidade decisória. Secretaria Especial de Ação Comunitária (SEAC) criou o Programa Nacional de Mutirões Habitacionais (1987), destinado a financiar habitações para famílias com renda inferior a 3 (três) salários mínimos e coordenar programas de obras de infraestrutura, regularização fundiária em favelas, construção de habitações em regime de mutirão e instalação de equipamentos comunitários em favelas (BUENO, 2000, p. 32). 322 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Nogueira (2010, p. 10) menciona que nos anos de 1990 e 1991, a gestão de políticas públicas habitacionais foi reestruturada, ampliando-se significativamente o controle social e a transparência da gestão de programas por exigir a participação comunitária. O que se deu por meio de conselhos e dos governos municipais (de poder local), além de uma contrapartida financeira. Botega (2008, p. 12) demonstra que, pelos dados do IBGE, de 1991, o número de moradores de rua chegava há 60 (sessenta) milhões de pessoas e que cerca de 55,2% (cinquenta e cinco pontos percentuais e dois décimos) das famílias se encontravam em déficit habitacional. Bueno (2000, p. 33) explica que a década de 1990 se caracterizou como período de grande conturbação política e de muitas mudanças na estrutura institucional da gestão da problemática de estrutura urbana, habitacional e social. O período de 1990 a 1992 representou a implementação de diveros programas habitacionais, mas o que teve alguma expressão foi o Plano de Ação Imediata para a Habitação (PAIH), que previu o financiamento de 245 (duzentos e quarenta e cinco) mil casas em 180 (cento e oitenta) dias, por meio da contratação de construtoras (BUENO, 2000, p. 33). Botega (2008, p. 12), entretanto, adverte que o prazo inicial se estendeu por mais de dezoito meses, aumentando o custo médio inicialmente previsto e diminuindo o número de moradias construídas para 210 (duzentos e dez) mil. No período de 1992 a 1994, foram criados dois programas voltados à questão da habitação, o “Habitar Brasil” e o “Morar Município”, que buscavam financiar obras e ações nos municípios e capitais de estados ou integrantes de regiões metropolitanas e aglomerados urbanos voltados para a população de baixa renda com renda familiar de até 3 (três) salários mínimos (MOTTA, 2011); nesse contexto, entretanto, o excesso de exigências legais restringiu em muito a captação de recursos postos à disposição dos municípios. Bueno (2000, p. 33) registra que, apesar dos resultados pouco expressivos (aproximadamente 18 mil unidades construídas até 1994), os referidos programas tiveram sua importância no sentido de reformular o pensamento nacional quanto à política habitacional. Entre 1994 e 2002, várias reformas do setor habitacional se mostraram efetivas, promovendo uma reorganização do aparato institucional referente à Caixa Econômica Federal,com sua atuação limitada a agente operador dos recursos do 323 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II FGTS e agente financeiro do SFH. À Secretaria de Política Urbana (SEPURB) restou o papel de formular e coordenar ações relativas ao saneamento e infra-estrutura (SOUZA, 2005, p. 75 - 76). Criaram-se novas linhas de financiamento, baseadas em projetos dos governos estaduais e municipais. Criou-se o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), que atuou na construção de novas unidades para arrendamento, utilizando recursos principalmente formados pelo FGTS e de origem fiscal (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2009, p. 42). Deu-se, ainda, o surgimento do programa Construcard (Caixa Econômica Federal), voltado à compra de materiais de construção, por meio de financiamento direto, a juros menores que os praticado no mercado bancário (BUENO, 2000, p. 34). Souza (2005, p. 81) relata a criação do Ministério das Cidades, em 2003, voltado à política urbana e às políticas setoriais de habitação, saneamento e transporte. O óbice anterior caracterizou-se pela descontinuidade e ausência de estratégias para buscar garantir o direito a moradia. O Ministério das Cidades passou a ser o órgão coordenador, gestor e formulador da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e, dentro dela, da Política Nacional de Habitação. Segundo Azevedo (2012, p. 3), a lei federal nº 11.124/2005, que trata do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), criou o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), a fim de garantir o acesso à habitação digna para população de menor renda, pela implementação de políticas e programas de investimento e subsídios. A lei nº 11.888/2008, que assegurou às famílias de menor poder aquisitivo assistência pública para a construção de moradias de interesse social (AZEVEDO, 2012, p. 10). De acordo com Motta (2011), o programa “Minha Casa, Minha Vida” em 7 2009 , cuja meta era de construir um milhão de casas, num total de R$ 34 bilhões de subsídios para atender famílias com renda entre 0 a 10 salários mínimos, pretendeu estimular também a criação de empregos e de investimentos no setor da construção civil. Nogueira (2010, p. 2) o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi, juntamente com o anterior, considerado um dos motivos para a queda do déficit 7 Programa decorrente da Medida Provisória (MP) nº 459/2009, convertida na Lei nº 11.977/2009, a qual foi alterada pela MP nº 514/2010, convertida na Lei nº 12.424/2011(IPEA, 2012, p. 3). 324 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II habitacional urbano. O PAC teve como prioridade atender as regiões metropolitanas, aglomerados urbanos e cidades com mais de 150 mil habitantes. Como se pode verificar, muitas foram as iniciativas governamentais, sob a forma de políticas públicas, voltadas a suprir o déficit de oferta de moradia de baixo custo e mesmo à classe média. Entretanto, verifica-se, também, que via de regra, os objetivos foram supra-estimados e deixaram de ser alcançados. Identifica-se, pois, um misto de otimismo, com irresponsabilidade e, possivelmente, certa pirotecnia eleitoral, voltada a objetivos menos eficazes que o da redução do déficit de moradias. Também não se viu falar eficazmente de programas de desestímulo à migração interregional no país – certamente um dos fatores responsáveis pela grande concentração populacional nos grandes centros e fator de pressão social habitacional, a expandir as moradias subhumanas. A incapacidade de pagamento dos financiamentos, em razão dos altos custos e da baixa renda da população também se fez fator de pressão negativa. A história brasileira demonstra que o Estado não tem sido capaz de garantir a igualdade habitacional, como o direito social à moradia, seja por meio de suas intervenções operativas, seja por meio de reformas pontuais. Como se constatou, os interesses da população, em especial, a de baixa renda, tem sido atendidos sistematicamente de forma parcial, incompleta e, por vezes, injusta, disponibilizando benefícios que se concentraram nas mãos da classe média e, por vezes, até beneficiaram a classe mais alta, sem, contudo, resolver o problema das classes subalternas. IV - VISÃO CRÍTICA DO PROBLEMA Sarlet (2011, p. 703) critica a desatenção com a referida política, fenômeno responsável pela carência de ações e resultados no espaço público e privado das metrópoles brasileiras, onde o problema se mostra mais caótico, com o desenvolvimento de soluções informais desumanas, como o direcionamento quase que natural das populações carentes à opção por instalar-se em modelos de 325 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II concepção perversa, como as favelas, os cortiços e moradias precárias, em áreas de risco, como também destaca Azevedo (2012, p. 2). Almeida (2009, p. 83) informa que a Constituição atribuiu ao Estado a responsabilidade de defender o direito à moradia em termos de garantia, tutela e efetivação, vinculando-o à noção de conteúdo mínimo existencial, vale dizer, complexo de tutelas materiais voltadas a conferir condições mínimas essenciais de vida digna, que, por sua vez, não se confunde com a noção subexistencial do “mínimo vital” ou “mínimo de sobrevivência”, por sobrepor-se à mesma tanto em alcance quanto em intensidade, por ir alem da mera sobrevivência para abarcar a noção de vida digna. O certo é que a noção de mínimo existencial tem comportado as mais diversas, severas e acaloradas discussões em torno de seu conteúdo material e processual, não se podendo sustentar que qualquer direito possa ser incluído nesse especial rol, dado o risco de vulgarização de classe criada e destinada a justificar tratamento diferenciado, materializador da igualdade substancial, o que não se coaduna com generalizações irresponsáveis, dada a sua dimensão essencial inalienável (TORRES, 2009, p. 13). O mínimo existencial se vincula sobremaneira ao princípio da dignidade da pessoa humana, constituindo-se pressupostos existenciais mútuos (RANGEL et SILVA, 2009, p. 65). Nesse jaez, ninguém pode se ver privado do que se considera o mínimo necessário à conservação de sua vida, em termos de prestações sociais asseguradas pelo Estado (ALMEIDA, 2009, p. 85) e mesmo pela sociedade – pelo princípio da solidariedade universal. Sarlet (2011, p. 696) menciona o pensamento de Hegel (1981) no sentido de que a propriedade constitui o espaço de liberdade da pessoa (SphäreihrerFreiheit), ou seja, a pessoa não terá a sua dignidade garantida se residir em um local que não lhe garanta a mínima segurança para si e sua própria família ou que não assegure um espaço para se viver com condições mínimas, com qualidade de vida, segundo os parâmetros de exigência da Organização Mundial da Saúde (OMS). A dignidade da pessoa humana é um valor próprio da essência do ser humano, serve de fundamento para qualquer reflexão que o envolve e sua conceituação é difícil em função de sua evolução e transformação histórica (TORRES, 2009, p. 13). 326 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Sarlet (2010, p. 70) elabora um conceito de dignidade da pessoa humana tomando por base a evolução histórica desse princípio: a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. Sarlet (2010, p. 68-89), com muita propriedade, adverte que a dignidade da pessoa humana determina que os direitos e as garantias fundamentais devam ser prestados na medida do possível, sem olvidar dos limites das possibilidades fáticas e jurídicas, por isso tem-se a relação desse princípio com os direitos fundamentais como vínculo indissociável, já que todos esses são fundamentados direto e imediatamente ao princípio da dignidade da pessoa humana. A ausência de respeito à vida e o desconhecimento dos direitos fundamentais reconhecidos e assegurados, expõe as pessoas a arbitrariedades, injustiças e excessos pelo Estado e por particulares. Do exposto, conclui o autor (2010, p. 109 e 119), que diante de uma violação a um direito fundamental, viola-se também o princípio da dignidade da pessoa humana, pois o processo de humilhação ao qual alguém passa por se encontrar em um estado de exclusão social ou de falta de condições ao mínimo existencial é totalmente degradante. Também conexo com a presente discussão, pode-se remeter ao problema de carência habitacional dos denominados desplazados8. A Lei colombiana nº 387 de 1997, em seu artigo 1º, denomina como desplazado toda pessoa forçada – por meio de violência - a abandonar sua residência ou atividade econômica habitual e migrar dentro do território nacional por ocasião de conflito armado interno, disputa por territórios geoestratégicos, áreas para prática de pecuária extensiva e agricultura comercial, entre outros motivos. 8 OLIVEIRA (2006) recomenda o emprego do termo desplazados em espanhol – sem tradução, por não encontrar terminologia adequada em português a definir essa categoria jurídico-social. VIANA (2009) e também JUBILUT et APOLINÁRIO (2010) preferem empregar o termo deslocados internos para referir-se aos “refugiados” que se vêem expulsos de suas terras por narcotraficantes ou por força da guerra civil colombiana entre forças legais e guerrilheiros. 327 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II De acordo com dados recentes do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Agência da ONU para Refugiados – ACNUR), estima-se que há mais de 43 milhões de pessoas em todos os continentes, que se encontram na condição de refugiados, apátridas, repatriados e desplazados. Dos 13,5 milhões de desplazados que o ACNUR estima existir no mundo, cerca de 3 milhões encontramse na Colômbia. Viana (2009, p. 145) explica que mesmo sendo um problema extremamente delicado, já que essas pessoas deixam suas residências e precisam procurar outras localidades para viver, perdendo muitas vezes entes queridos em função da violência e deixando para trás valores culturais, e que data da década de 1980, o Estado colombiano só iniciou medidas para combater essa questão no final dos anos 1990 com a Lei 387/1997, citada anteriormente, a qual transfere para o Estado a responsabilidade na formulação de políticas e adoção de medidas para amparar a população de desplazados. Tal situação mostra o desafio que os países afetados por esse fenômeno precisam enfrentar para tentar possibilitar à essas pessoas a recuperação do sentimento da dignidade da pessoa humana. Segundo Sarlet (2011, p. 698), o fato da nossa Constituição se referir ao direito a moradia no artigo 6º de forma genérica, ou seja, sem nenhum adjetivo, não justifica que tal direito tenha seu conteúdo esvaziado e fique aquém dos critérios estabelecidos pelo princípio da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial. Nesse sentido, cabe mencionar a iniciativa das prefeituras em implantar o auxílio do “aluguel social”, que consiste na concessão de benefício financeiro destinado ao pagamento de aluguel de imóvel de terceiros para famílias que não possuam outro imóvel próprio, visando ampará-las nas situações em que perdem suas casas por ocasião de catástrofes naturais ou por viverem em áreas de risco9. Em seu texto, Sarlet (2011, p. 702) cita que a Comissão da ONU criou um padrão internacional para Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, enunciando uma série de elementos básicos a serem atendidos em termos de direito a moradia, tais como a segurança jurídica para a posse; disponibilidade de infra-estrutura básica para a garantia da saúde e saneamento básico; acesso em condições razoáveis à moradia, especialmente para pessoas com deficiência e acesso ao emprego. 9 (Lei nº 1.101/2010, Art. 1º, REGISTRO – SP). 328 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Todo cidadão tem a prerrogativa de recorrer ao Poder Judiciário para ter uma resposta à violação de seus direitos, como preconiza o princípio da inafastabilidade da jurisdição previsto em nossa Constituição no inciso XXXV do artigo 5º. Porém os direitos fundamentais não são absolutos, por isso é necessário que sempre seja feito o sopesamento dos bens constitucionais, princípios e direitos em questão para chegar a uma decisão justa (ALMEIDA, 2009, p. 88). Nesse sentido, Campos (2010, p. 50) afirma que é preciso interpretar os direitos sociais com clareza e coerência, pois se o Estado provesse todos os direitos de forma plena, toda a sua condição orçamentária seria afetada, levando-se em consideração a realidade e os limites do mesmo. Tratar sobre a justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais é um tema complexo e que ainda carece de respostas, inspirando debates e estudos sobre o assunto, mas que não será objeto de discussão nesse presente trabalho. Piovesan (2010, p. 55) afirma que, com relação ao aspecto constitucional pátrio, a Constituição Federal de 1988 foi a primeira a incluir os direitos sociais como direitos fundamentais. No mesmo sentido, Gallo (2007, p. 1551-1552) explica que essa categoria de direitos tem caráter coletivo, dependem de decisões tomadas pelo Poder Público e sua eficácia depende da ação conjunta dos três poderes e da criação e implementação de políticas públicas. Além disso, os objetos dos direitos sociais são bens públicos e coletivos, seus conflitos são distributivos e plurilaterais, sendo que as perdas e ganhos dos conflitos são divididos entre todos os cidadãos (MARINHO, 2009, p. 5). Para Dias (2012, p. 4), a maior dificuldade para a eficácia dos direitos fundamentais sociais é a prestação dos serviços sociais básicos pelo Estado, os quais estão diretamente relacionados com a criação, execução e o gerenciamento das políticas públicas. A mesma autora questiona a viabilidade orçamentária e a responsabilidade de planejar o desenvolvimento nacional, buscando condições para o exercício dos direitos sociais pelos cidadãos. Piovesan (2010, p. 67- 68) empresta o pensamento de Asbjorn Eide e Allan Rosas (1995, p. 17-18) : Levar os direitos econômicos, sociais e culturais a sério implica, ao mesmo tempo, um compromisso com a integração social, a solidariedade e a igualdade, incluindo a questão da 329 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II distribuição de renda. Os direitos sociais, econômicos e culturais incluem como preocupação central a proteção aos grupos vulneráveis. (...) As necessidades fundamentais não devem ficar condicionadas à caridade de programas e políticas estatais, mas devem ser definidas como direitos. Embora se possa sustentar que a partir da inclusão do direito a moradia no rol de direitos fundamentais sociais, todos os cidadãos teriam esse direito subjetivo, em termos práticos e objetivos, Campos (2010, p. 50) ressalta que não é possível se desprender da realidade, das limitações e condições orçamentárias e da escassez de recursos do Estado, tornando a efetivação do direito à moradia, algo ainda carente de grandes elaborações e construções jurídicas e econômicas. V – CONSIDERAÇÕES FINAIS O direito a moradia vem sendo cada vez mais mencionado nas discussões jurídicas e sociais, em função dos altos índices de déficit habitacional nas cidades e da dificuldade de acesso a uma moradia digna para as parcelas mais pobres da sociedade. O direito a moradia foi incorporado pelo direito brasileiro em função, principalmente, dos tratados internacionais de direitos humanos, tais como a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), dos quais o Brasil é signatário. Expressamente, o direito a moradia passou a fazer parte da Constituição Federal de 1988 por meio da Emenda Constitucional nº 26, de 2000, a qual o incluiu no artigo 6º, que trata dos direitos fundamentais sociais. Por se tratar de um direito fundamental, de acordo com o parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição, o direito a moradia deve ter aplicação imediata e eficácia plena. No entanto, tendo em vista a questão orçamentária do Estado, a realização desse direito de forma plena para todos os cidadãos é, praticamente, impossível. Ter uma moradia que possibilite viver em segurança e em condições mínimas de qualidade de vida é pressuposto básico fundamentado no princípio da dignidade da pessoa humana e no mínimo existencial, sendo, por isso, de extrema relevância a participação do Estado na proteção desse direito. 330 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II O histórico das políticas públicas habitacionais no Brasil mostra como os principais programas não conseguiram obter êxito entre as camadas sociais mais baixas, facilitando, de certa forma, os financiamentos para as classes média e alta, contribuindo diretamente no alto déficit habitacional brasileiro. 331 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II REFERÊNCIAS ALMEIDA, Ângela. O mínimo existencial e a eficácia dos direitos fundamentais sociais nas relações entre particulares. 2009. 149 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul. 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THE WELFARE STATE IS COMPATIBLE WITH GLOBALIZATION?! JOSÉ VAGNER DE FARIAS1 SUMÁRIO: I. Introdução; II. Liberalismo, socialismo e as origens do “Estado do bem estar social”; III. Neoliberalismo e globalização; IV. A crise capitalista do “Estado do bem estar social”, globalização e reformas; V. Conclusões; X. Referências Bibliográficas. Resumo O presente trabalho tem por objetivo uma análise da possível compatibilidade de “modelo de estruturação de Estado” conhecido como “Estado de bem estar social” em relação à proposta de organização de Estado oriunda do fenômeno mundial da globalização. Para tanto, como pressuposto para se compreender as raízes históricas e políticas da origem daquele, inicialmente faz-se uma análise das contradições e da dialética das propostas de organização estatal feitas pelo liberalismo e pelo socialismo. Depois, tenta-se demonstrar a ligação existente entre globalização e neoliberalismo. Numa crítica reflexão sobre uma suposta crise deste modelo especificadamente, sem levar as contradições maiores do capitalismo, constatase como o ideário neoliberal globalizante procura justificar uma série de reformas nos Estados, estabelecendo-se um paralelo dessas possíveis modificações com o modelo estudado. Por fim, na conclusão, procura-se responder a indagação feita no título do artigo. Palavras-chave: Estado de bem estar social. Globalização. Compatibilidade. Abstract This works aims to analyse the possible compatibility of the “model of State organization”, better known as “Welfare State” regarding to the one proposed after the phenomenon of globalization. For that, as a fundamental to the comprehension of the origin´s historical and political roots of the that one, initially its made an analysis of the contradictions and of the dialectic that exists in both liberal and socialist proposes. Than, it will be attempted to demonstrate the connexion between globalization and neoliberalism. In a critical observation about a supposed crisis of that last model, forgetting the largest constradictions of the Capitalism, it turns evident how the neoliberal ideas of globalisation try to justify a serie of reforms in the States´ organization, establishing a paralel between this possible changes and the studied model. Finally, at the conclusion of this paper, will seek to answer the question proposed in the title of this article. Keywords: Welfare State. Globalization. Compatibility. 1 Defensor Público do Estado do Ceará, Aluno da Pós-Graduação em Direito da UNIFOR, no mestrado em Direito Constitucional. 336 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II I. Introdução. Para se tentar responder a relevante indagação, tema desse trabalho, a qual, atualmente, tem gerado inúmeros debates e análises na academia, em forúns econômicos, na imprensa mundial e que está relacionada com atuais e cada vez mais polêmicas reformas que têm sido realizadas nas estruturas administrativas dos Estados pelo planeta, principalmente em setores tradicionamente considerados como políticas de “Estado de bem estar social”, alterações estas motivadas pela ideologia neoliberal muitas vezes não perceptível no fenômeno da “globalização”, torna-se indispensável, antes mesmo de uma análise do quem vem a ser tal fenômeno econômico-político na atualidade e se compreender o próprio conceito de “Estado de bem estar social”, um breve esboço sobre os antecedentes sócio-econômicos de três importantes perspectivas ideológicas que influenciaram direta ou indiretamente a organização do Estado Moderno Ocidental, sob pena de não se compreender as razões de tais reformas: o liberalismo, o socialismo e o “Estado do bem estar social”. Isso ocorre porque a concepção ideológica neoliberal que é utilizada para tentar justificar as reformas propostas aos Estados “para não serem empecílho à Globalização”, e, por conseguinte, das recentes modificações dos ordenamentos jurídicos nacionais, em matérias previdenciárias, trabalhistas, por exemplo, devem ser investigadas, inicialmente, a partir do estudo das chamadas “fontes materiais”, que são o complexo de fatores sociais, econômicos, históricos que contribuem para o surgimento, extinção e alteração das normas jurídicas, e por conseguinte, de alterações legislativas e alterações das constituições dos Estados a fim de se chegar a determinado objetivo. Para isso, a análise dessas concepções é fundamental, se não indispensável, tendo em vista que não é plausível e, muito menos, compreensível, analisar o surgimento de qualquer mudança jurídica tendo como ponto de partida apenas as “fontes formais” do Direito, através de uma concepção artificial e afastada da influência direta dos aspectos sociais, econômicos, políticos e ideológicos que os ensejaram. No que pese a concepção de muitos juristas positivistas que entendem ser relevante apenas o estudo das fontes formais, relegando o estudo daquelas à Sociologia Jurídica, tal não pode prevalecer neste trabalho, sob pena de se estar tornando incompreensível o tema. “[...] A questão jurídica é, como se vê, apenas uma parte de realidade social, política e econômica do país. Não há como se entender todos os retrocessos nos últimos anos na seara do Direito, sem se atentar para as condições políticas e econômicas mundiais.” (PEREIRA SILVA, 2001, p. 86) 337 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Tentar compreender as raízes dos processos de reformas oriundas da Globalização que ocorreram ou estão ou estão em trânmite nos ordenamentos jurídicos pátrios, relegando a relação fundamental do Direito com os embates histórico-econômico-políticos mundiais é tarefa impraticável, ainda mais quando possuem repercussão mundial, isto porque os esquemas formalistas não resistem frente a uma crítica que tenha por base esses pressupostos. Por isso, deve-se entender a relação do chamado “Estado do Bem Estar Social”, de uma forma geral, com essas três importantes bases ideológicas que serviram ou servem, direta ou indiretamente, para as estruturações no campo sócio-jurídico dos Estados modernos ocidentais. A interdisciplinaridade, como se vê, é fundamental. “[...] Não houve uma importante alteração do quadro jurídico de uma dada sociedade que não tivesse tido, em suas raízes, um capital de interesse de ordem econômica.” (MACHADO NETO, 1987, p. 244) II. Liberalismo, socialismo e as origens do “Estado de Bem Estar Social”. Cabe destacar, inicialmente, que a expressão “liberalismo” está longe de ser um termo unívoco, tendo como paradigma os campos filosófico, econômico e político, tendo diversidade de significados, inclusive, por exemplo, politicamente, dependendo da localidade em que a expressão é utilizada. Nos EUA, por exemplo, a expressão “liberal” tem uma conotação progressista, enquanto que no Brasil, carrega um sentido conservador. Pode-se estabelecer, entretanto, que todas as suas ramificações estão historicamente relacionadas entre si pelo avanço do “liberalismo econômico”, que consiste, basicamente, em uma doutrina segundo a qual o ente estatal não deve, de maneira geral, intervir nas relações econômicas entre os indivíduos, cabendo ao mesmo apenas exercer suas funções “típicas” de Estado, como o exercício da justiça e do poder de polícia. Não chega a ser reducionismo afirmar que o liberalismo econômico consiste, em sua essência, na base ideológica do sistema capitalista. Para que se compreenda essa premissa, é necessário analisar o contexto histórico em que se desenvolveu. Trata-se de uma perspectiva com repercussões nos campos filosófico, econômico e político que possui suas origens ainda no século XII. Suas premissas vão radicalmente de encontro às concepções predominantes do sistema de produção feudal, destinando-se primordialmente a desenvolver uma “economia de mercado”: “[...] Na concepção liberal, mercado é o conjunto de relações sociais onde se efetuam as trocas de mercadoria. É um sistema econômico onde as quantidades produzidas e os preços praticados dependem da confrontação da oferta e procura, não de um planejamento.” (HOLLANDA, 1995, p. 30) 338 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Uma característica marcante do liberalismo é dar grande destaque ao individualismo, uma vez que recorre à psicologia individual como maneira de explicar o interesse geral, de maneira que defende essencialmente a tese de que a potencialidade do indivíduo não deve ser “molestada pelo Estado”. Prova disso é que: “[...] O liberalismo era avesso às intervenções da autoridade política na atividade econômica, de forma a mitigar a liberdade individual. O Estado deveria ficar restrito àquelas atividades indispensáveis, prevista no quadro constitucional. As funções dos poderes públicos deveriam, por isso, estar minuciosamente previstas, a fim de que não houvesse ofensa aos direito essenciais: propriedade, liberdade, segurança. Qualquer desvio significaria uma usurpação de poder.” (PEREIRA SILVA, 2011, p. 124) Não é sem razão, entretanto, o fato de ser o liberalismo critico severo da atuação estatal na esfera econômica. O seu surgimento está ligado aos questionamentos feitos por seus defensores à maneira e as razões da intervenção do Estado na economia principalmente durante o período do absolutismo monárquico, uma vez que, na maioria das vezes, esta foi de encontro aos interesses da classe burguesa, em ascensão. Os altos impostos e os monopólios impostos pela nobreza eram medidas que, geralmente, iam de encontro aos seus interesses, limitando o direito de propriedade e o exercício da atividade econômica. Dessa maneira, a concepção liberal vai trabalhar o ideário de que o Estado deve se restringir às suas atividades básicas, defendendo a tese de que “a proteção social”, anteriormente pregada pela doutrina cristã durante o feudalismo, seria o mercado, dentro de sua lógica de atuação. No modelo de Estado que partisse dessa premissa, a burguesia poderia fazer prevalecer seus interesses sem grandes riscos ou ameaças de forma mais tranquila. É nesse momento que entra a importância do liberalismo clássico como ideologia, já que a conquista do poder econômico pela burguesia foi fundamental para sua prevalência no campo político, que, de acordo com Raimundo Falcão, (1986, p. 109), “[...] teve o cuidado de se armar de um conveniente embasamento filosófico, político e religioso.” para atender seus interesses. Ela queria, na realidade, um “Estado seu”, de acordo com Paulo Singer (1996, p.19). Trata-se esse ideário do liberalismo econômico, a premissa que deveria prevalecer na organização de um “Estado Liberal” em contraponto ao Estado Absolutista, tendo em vista que sua diretriz fundamental seria a delimitação das funções estatais em relação aos planos econômico e político, prevalecendo a figura individual em face do Estado. Consequência disso é o caráter excepcional da intervenção da economia. Essa só poderia ocorrer para garantir a permanência do mercado e a concorrência entre seus agentes. Caso contrário, 339 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II haveria o receio de que o Estado restringisse, de qualquer modo, a acumulação do capital e o direito de propriedade. O mercado, em seu livre funcionamento, seria o remédio para qualquer conflito humano, pois a concorrência individual criaria os pressupostos para o bem geral. Dentro desse contexto, em 1776, Adam Smith (1723-1790) publica a obra prima do liberalismo clássico na seara econômica: Investigação sobre a natureza e as riquezas das nações. Livro este que vai trabalhar de maneira sistemática as bases teóricas liberais, como concepções de que a busca do interesse individual, por cada um, permite, em situação de concorrência, atingir o bem geral e de que a “mão invisível do mercado” permite a conciliação do interesse individual com o interesse geral. Outros pensadores que ocuparam lugar central no pensamento clássico foram Jean Say (1767-1832), que dedicou seus estudos a importância do papel do empresário e o lucro, tornando famosa a tese de que a oferta cria a procura equivalente (Lei de Say); Thomas Malthus (1766-1834), que, embora liberal, se opôs ao otimismo exagerado dos dois pensadores anteriores, tendo em vista que procurou colocar suas concepções românticas dentro de uma visualização sólida empírica, destacando-se, dentro dessa concepção, a famosa teoria da população, que se preocupou com a fome; David Ricardo (1772-1823), considerado relativamente pessimista, já que defendeu a tese de que, a prazo mais longo, qualquer população é ameaçada por um Estado estacionário, além de ter trabalhado três conceitos vitais na organização capitalista: a análise de valor, a renda diferencial e a lei das vantagens comparativas; e Stuart Mill (1806-1873), que mesmo prolongando as análises de Smith e Ricardo, deu atenção especial aos problemas sociais que acompanham o capitalismo liberal, fazendo parte de uma corrente reformista, que será melhor compreendida posteriormente. Para o o modelo clássico de Estado capitalista liberal, o Direito é uma estrutura para a conservação da ordem e da segurança indispensáveis à reprodução das relações sociais e econômicas. O papel do Estado deveria ser, fundamentalmente, garantir a liberdade econômica, a propriedade e as relações mercantis. Dentro desse paradigma, é que se compreende o caráter sintético das primeiras constituições do Estado moderno, pois é nesse momento que se fortalece o movimento liberal, mostrando-se um instrumento de defesa que favorecia a nova classe ascendente. O principal fato histórico ocorrido como consequência da implantação de organização estatal liberal foi a Revolução Industrial, que ocorreu devido, principalmente, ao grande acúmulo de riquezas pela burguesia, favorecida pelo modelo estatal de pouca intervenção na 340 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II economia e a exploração sobre as classes proletárias. Com isso, grandes transformações sociais ocorreram na Europa ocidental e América do norte, possibilitando a formação de uma sociedade urbana, em que os trabalhadores eram submetidos a uma disciplina desumana de produção. Dentro desse contexto, outro fato histórico da prevalência do modelo de Estado Liberal foi empobrecimento cada vez maior das massas, o que propiciou o surgimento de ideologias que começaram a questionar seus fundamentos como modelo que contemplasse os interesses maiores de qualquer sociedade . O modelo liberal resultou em altíssimas jornadas de trabalho para os trabalhadores, habitações insalubres, explorações sobre mulheres e crianças nas fábricas, salários insignificantes, altos índices de mortalidade, o que motivou o insurgimento da classe trabalhadora. A principal reação ideológica desta foi o surgimento do socialismo, ideologia que pregou uma opção de modelo de sociedade em relação não só ao liberalismo especificamente, mas ao próprio sistema capitalista. Os franceses Saint-Simon (1760-1825) e Charles Fourier (1772-1837) e o inglês Robert Owen (1771-1858), foram chamados de “socialistas utópicos”, pois ao almejarem uma sociedade mais solidária daquela em que viviam, caracterizaram-se por não saberem como ela se originaria e nem sua estruturação. Ao tentaram colocar suas idéias em prática, não obtiveram êxito devido ao caráter “sonhador” de seus projetos. Eram autênticos idealistas, por isso a designação que receberam. Posteriormente, surgiram os “socialistas cientificistas” que se destacaram por terem trabalhado no sentido de organizar suas idéias em dimensões sociológicas, econômicas e filosóficas como fundamento para ruptura do sistema capitalista. O pensador mais importante dessa corrente foi o alemão Karl Marx (1818-1883), criador do chamado “socialismo científico”, posteriormente chamado de “marxismo”. Em seus trabalhos, foi indispensável a ajuda dada pelo seu companheiro Friedrich Engels (1820-1895), que também foi autor de diversos livros relacionados ao tema. A principal análise de Marx em relação à compreensão da História e o funcionamento da sociedade (incluindo-se, aí, também o modelo de organização política de um Estado) é o funcionamento de sua produção econômica, já que o modo como os homens se relacionam socialmente no processo produtivo determina o tipo de sociedade que existirá. 341 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Merece destaque sua famosa “teoria da mais-valia”, trabalhada de forma minuciosa no livro O capital, em que tenta demonstrar, de maneira cientifica, que o capitalismo sempre promoverá injustiça social, tendo em vista que a única maneira de alguém ficar rica é explorando economicamente outras pessoas (trabalhadores), pois um capitalista não paga pelo “trabalho de um trabalhador”, mas pela sua força de trabalho (capacidade de trabalhar), auferindo daí o lucro. Após a análise dessa premissa, é razoável a concepção marxista de que não existe “Estado neutro”, pois, para esta, a organização estatal é o espaço por excelência dos representantes das classes que dominam a economia. Apesar de não se poder cair em um determinismo de que a economia traça toda a história do homem, sendo esse o maior problema do pensamento marxista: o reducionismo, é lógico que a preponderância econômica prevalece na organização econômico e política de qualquer Estado. O fator econômico é, entre as forças modeladoras do direito, o que exerce a influência mais decisiva e mais palpável. Apesar dessa premissa, não se pode radicalizá-la a um ponto de se cair em uma visão simplista de que a toda história é movida pelo aspecto econômico, já que são vários os acontecimentos históricos que o economicismo reducionista marxista não explica. Mesmo assim, a análise marxista tem seu valor porque é inovadora ao levar em consideração as ligações estruturais sócio-econômicas, tendo em vista o caráter indissociável do aspecto econômico e análise da sociedade. “[...] Sob o Socialismo temos o planejamento, a execução e o controle da economia centralizados pelo poder político, sendo o Estado detentor, em sua forma mais ideologicamente estruturada, de todos os meios de produção.” (MAGALHÃES FILHO, 2001, p.127) Tal radical concepção socialista contribuiu para a emergência de idéias por parte de alguns capitalistas no sentido de revisar as bases do Estado liberal. Eram necessárias mudanças, tendo em vista que o “avanço vermelho”, com greves, revoltas e manifestações, colocava em risco seus maiores interesses, já que pregavam o fim de acúmulo de riqueza pela burguesia atráves do fim da exploração do proletariado, por ser aquela detentora dos meios de produção, e do Estado Capitalista, que atuava para manter tal situação. Diversas manifestações isoladas contra o quadro de injustiça do Estado liberal ocorreram, porém só com o fortalecimento do movimento operário, em virtude da organização e do crescimento de seu número, ficou insustentável a necessidade de ampliação 342 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II de direitos sociais. Os trabalhadores, portanto, conseguiram melhores condições sociais porque lutaram por tais, dentro de uma lógica dialética de luta de classes, o que ratifica que um direito social é uma conquista, e isso não ocorre sem luta. Essa questão é indispensável para compreensão das mudanças ocorridas nos ordenamentos jurídicos dos Estados modernos que não aderiram ao socialismo. As idéias revolucionárias espantavam a burguesia, diante da possibilidade de que tais concepções se expandissem cada vez mais, sob pena de perder todos os seus privilégios no Estado Liberal. Para essa, também não foi tarefa extremamente onerosa a concessão de alguns direitos de impacto social, devido ao grande excedente de riquezas propiciadas pelo mesmo. O ápice desse movimento dentro do Estado capitalista ocorreu com o surgimento da chamada corrente reformista, que se caracteriza por ser uma doutrina que critica alguns aspectos do funcionamento do sistema capitalista, sem, contudo, ter como finalidade a sua extinção, utilizando diversos meios para reduzir seus inconvenientes. Como foi mencionado, no capitalismo praticado sob a tutela do Estado liberal, não existe reconhecimento natural de direitos sociais, primeiro porque o liberalismo é pensando dentro de uma visão individual, e principalmente pelo fato de que suas concessões repercutem diretamente nos interesses econômicos da burguesia, seja através do pagamento de impostos, seja pela intervenção direta ou indireta na propriedade. Direitos sociais, assim começaram a ganhar destaque a partir do quadro revolucionário socialista que colocava em risco a sua própria existência. Para a classe detentora do poder econômico e político, restou a alternativa de promovê-los, sob pena de perder seus privilégios de maneira total dentro do sistema capitalista. "Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas" (BOBBIO, 2004, p.05). A repercussão prática das correntes reformistas capitalistas na esfera jurídica foi a ampliação dos direitos sociais nos ordenamentos jurídicos estatais. Relações previdenciárias, trabalhistas e assistencialistas começaram a ser criadas e regulamentadas com objetivo de apaziguar os conflitos decorrentes das lutas de classes. A emergência de movimentos sociais foi o fator fundamental para tais mudanças. É no momento desses avanços que Bismarck (1815-1898), na segunda metade do século XIX, ao chegar ao poder na Alemanha, amplia os direitos sociais da carta magna desse recém criado Estado após sua unificação de tal maneira 343 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II que passa a ser um marco inicial de um constitucionalismo bastante diferente do modelo pregado no liberalismo, com diversas normatizações de direitos sociais e econômicos, até então, praticamente ausentes: o chamado “constitucionalismo social”, com regulamentações de temas sociais que antes não eram sequer objeto de debates por juristas e políticos, passando a se voltar para a sociedade geral e não apenas para o indivíduo. Porém, mesmo com tímidos avanços sociais, o estopim de todas as contradições do sistema econômico capitalista liberal veio com a grave crise mundial de 1929. Uma superprodução provocou estagnação econômica, tendo em vista que se produzia bens, mas não havia quem consumi-los. Dentro do contexto da “grande depressão”, surge, dentro dos próprios defensores do capitalismo, a proposta keynesiana. Mesmo não se afastando inteiramente das teorias do liberalismo, Keynes (1883-1946) faz sua crítica ao mesmo quando radicalmente exercido baseando-se na teoria geral do emprego (Theory of employment, interest and Money) e da função estatal na economia, afirmando que o mercado não produz, por si só, uma demanda efetiva dos fatores de produção, sendo necessária a ação estatal e de agentes econômicos. Seu estudo inova porque, antes dele, a análise da economia de cunho liberal baseava-se quase inteiramente à micro-economia, do ponto de vista de uma empresa. Keynes criou um novo ramo da teoria econômica, chamada de macro-economia. Keynes foi um fiel defensor que seria o próprio Estado o agente capaz de controlar os excessos do liberalismo econômico, cabendo ao mesmo a intervenção econômica no sentido de promover o desenvolvimento em setores estratégicos da economia. Estaria ali os fundamentos que inspirariam o chamado “Estado de bem estar social”. “[...] O Estado social representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado Liberal. Seus matizes são riquíssimos e diversos. Mas algo, no ocidente, o distingue, desde as bases, do Estado proletário, que o socialismo marxista intenta implantar: é que ele conserva sua adesão à ordem capitalista, princípio cardeal a que ele não renuncia.” (BONAVIDES, 1980, p. 205). A intervenção econômica estatal a fim de implantar políticas sociais a favor das classes menos favorecidas não surgiu como fruto de uma mera evolução natural dentro do capitalismo liberal ou simples liberalidade daqueles que detinham o poder no Estado liberal. Ao contrário, foi uma necessidade, inclusive para sua sobrevivência. 344 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II No campo jurídico, ocorreu a consagração definitiva de direitos econômicos e sociais nas constituições e em legislações infraconstitucionais nas áreas relativas à saúde, segurança, higiene, moradia, previdência e outras. Consolidava-se o chamado “Estado de bem estar social.” III. Neoliberalismo e globalização. A principal consequência da implantação do modelo de Estado de bem estar social foi o refortalecimento do capitalismo, que chegou a um patamar de grande desenvolvimento, com taxas de crescimentos industrial e comercial superiores a qualquer outro momento capitalista visto na história. Durante as décadas de 1950 e início da década de 1970, viveu-se o chamado “período de ouro” do capitalismo contemporâneo. Entre 1945 e 1975, ocorreram os "30 gloriosos" da França, ou "wirtschaftswunder" (milagre econômico) alemão. O crescimento econômico com desenvolvimento social é o traço marcante nesse período. Contudo, a partir do fim da década de 1970, esse modelo econômico-social começou a se questionado por começar a enfrentar suas primeiras crises. Crises, ressalta-se, que são inerentes ao próprio sistema capitalista, concentrador de riquezas por excelência. A diminuição do rendimento de capital por parte da burguesia, a redução dos avanços tecnólogos de produtividade, a luta contra a inflação, o crescimento das despesas sociais, a “crise do petróleo”, a profunda instabilidade monetária são alguns fatores que contribuíram para o fortalecimento do ataque contra o Estado de bem estar social. Contudo, o motivo principal, mais razoável e causa principal de todos os outros problemas, foi, mais uma vez, a superprodução. O consumo, essência do sistema capitalista, já não crescia como antes, pois as pessoas, nos países em que tal doutrina de Estado de bem estar social, prevaleceu, seja em maior ou menor grau, estavam, de maneira geral, satisfeitas por terem chegado a um limite natural de consumo de bens, já que, devido aos salários dignos, os bens de consumo mais importantes estavam em suas residências. Como a produção continuou crescendo mais rápido do que o consumo, estourou, consequentemente, mais uma crise de superprodução. Os programas sociais keynesianos, então, começaram a ser apontados como os causadores do abrandamento do crescimento dos rendimentos nacionais, por parte dos detentores do poder econômico e político dos Estados capitalistas. 345 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A compreensão da dialética histórica e econômica mencionada até aqui nesse trabalho, é fundamental para que se compreenda a tese de que a burguesia nos Estado de bem estar social não aceitou tal modelo por simples vontade ou caridade, mas por necessidade, tendo em vista que, a partir do momento que os planos sócio-conômico keynesianos começaram a corroer, por contradições do próprio capitalismo ressalta-se, a tendência seria de um retrocesso liberal, pois a função primordial da intervenção estatal social foi mitigar os conflitos existentes no Estado liberal. Isso foi fortalecido, posteriormente, com o fracasso da primeira tentativa prática do modelo socialista, principal símbolo de alternativa ao modelo capitalista em geral, apesar de suas imensas contradições entre o defendido por Marx e o exercido na prática pelas Ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), onde o dirigismo estatal acabou provocando ineficiência econômica e despotismo político, chegando a um extremo patamar de violência em muitos países e que, para muitos, descaracterizaram o modelo teórico marxista. “[...] De tal sorte que, verificada a queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética, instalou-se a crise do socialismo e uma suposta neutralidade do campo ideológico, a qual vem sendo exibida, com ares triunfais, pelo capitalismo e sua recente ideologia “sem ideologia”, cifrada no neoliberalismo da globalização.” (BONAVIDES, 1999, p.19) Sem o “perigo vermelho” e com as crises do capitalismo baseado na linha de política econômica do modelo keynesiano, o resultado foi que os pensadores de um “novo liberalismo” passaram a ganhar força e coesão, sendo considerados os salvadores para a crise econômica predominante, contando com o apoio do poder ideológico da classe dominante. Tais crises deram voz ao pensamento de economistas como Friedrich Hayek (1899-1992) e Milton Friedman (1912 - 2006). A maior parte dos países do mundo ocidental passaram a seguir suas teorias e tentar implantá-las, de maneira mais moderada ou radical, acatando ao chamado “Consenso de Washington”, realizado em 1989 nos Estados Unidos da América (EUA), reunião esta que fortaleceu o debate de “reenquadramento” dos Estados ao modelo neoliberal. Isto, sem dúvidas, está relacionado às reformas ocorridas e que estão sendo propostas baseados no ideário da Globalização. Apesar da aparente contradição, as origens do movimento neoliberal, ideologia sustentáculo da globalização, estão relacionadas com a decadência do “antigo liberalismo clássico” (pode-se afirmar que o mesmo representou a figura mitológica grega Fênix, a qual “ressurgiu das próprias cinzas”). Após o fortalecimento inicial, dentro do sistema capitalista, 346 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II do modelo de organização estatal do “Welfare State”, diversos pensadores, principalmente aqueles oriundos do chamado grupo da Universidade de Chicago, tentaram restabelecer uma tese de defesa da ordem econômica anterior, que era, comparativamente ao keynesianismo, mais favorável aos interesses das classes proprietárias. Para isso, tais intelectuais, autênticos liberais, procuraram promover alterações, mais profundas, na concepção clássica com o intuito de reverter o liberalismo econômico, tendo em vista a dificuldade de sua sustentação devido a já comentada decadência de tal modelo em se tratando de reverter o quadro de crise de 1929. “[...] A crise do Liberalismo e o triunfo das políticas de intervenções estatais de orientação Keynesiana e Socialista, não foram motivo suficiente para inibir sua produção teórica e nem o desenvolvimento de uma militância política—embora restrita aos meios acadêmicos e aos institutos de pesquisa privados—a seu favor.”(HOLANDA FRANCISCO URIBA, XAVIER DE; ABU-EU-HAJ, JAWDAT. 1995. P3) A diferença básica histórica do liberalismo clássico para o neoliberalismo é que aquele representa a defesa da sociedade burguesa contra as sociedades pré-capitalistas, enquanto que este procura legitimar os interesses burgueses contra às tendências keynesianas e socialistas existentes. Outra distinção é que o liberalismo clássico é trabalhando dentro da lógica de Estados nacionais, a fim de que a não intervenção econômica favoreça uma “burguesia nacional”, já o neoliberalismo, também objetiva contemplar os interesses da burguesia, porém sem aspecto de nacionalidade, por isso a importância da noção de globalização, afastando-se qualquer noção de capital nacional. A globalização, nesse sentido, representa a superação do Estado nacional nesse aspecto. A concepção do intervencionismo estatal é o outro importante divisor de águas entre o “antigo” e o “novo liberalismo”. Se para os clássicos, existe uma rejeição teórica à ação do Estado agindo na economia de maneira quase absoluta, excetuando-se a sua legitimidade na questão de manutenção do mercado, no neoliberalismo isso não ocorre. De acordo com esse, o Estado não deve sair por completo da economia, já que o que é necessário ocorrer é uma mudança de orientação da interferência estatal: deve-se deixa de impor limites e restrições ao capital, estimulando e subsidiando, contudo, as grandes empresas. Os neoliberais são autênticos defensores de um Estado forte para aniquilar os sindicatos, controlar o orçamento público e realizar reformas fiscais para incentivar os chamados “agentes econômicos”, tudo isso sobre o pretexto de se garantir crescimentos econômicos a partir de uma interação econômica global. 347 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II “É por esse motivo que fica superado o debate acerca do chamado “Estado Mínimo” que é pregado pelos teóricos neoliberais, tendo em vista que o Estado neoliberal, como qualquer outro, sempre desenvolveu atuações no campo econômico, porém a partir de diferentes motivações. A questão que o caracteriza está na resposta da indagação: deixar de intervir em quais áreas e para favorecer quem? Neoliberalismo é orientação estatal intervencionista para favorecer aos grandes grupos econômicos e não-intervencionista naquilo que não é de seus interesses, pois o capitalismo não prescinde a intervenção, já que qualquer política de desregulamentação sempre está calçada sobre a construção de um novo modelo genérico de regulação. “[...] Para a teoria neoliberal a dicotomia entre intervenção ou não intervenção do Estado é totalmente desprovida de sentido. Está claro que todo o Estado tem que agir; ao agir implica intervir nisto ou naquilo.”(HOLANDA, 1995, p.32) Esse tipo de intervenção atende aos interesses burgueses, já que estimula a sobrevivência do capital, sobretudo dos grandes monopólios e do capital financeiro. Por isso é que se defende que o neoliberalismo e a globalização nunca objetivaram, e nunca objetivarão, “Estado mínimo”. É pura retórica para aqueles que querem reduzir políticas e direitos sociais. Como se pode concluir, o neoliberalismo só é benéfico a uma parcela reduzida da sociedade (as grandes empresas e os especuladores financeiros), sendo nocivo à produção de riquezas e sua distribuição, já que fortalece, ainda mais, dentro do sistema capitalista, a concentração de renda na mão de poucos, seja dentro de uma esfera nacional seja em esfera internacional. Esse aspecto que retifica o intervencionismo neoliberal ocorre quando se tem movimentos que representam ameaça ao status quo, já que o Estado neoliberal deixa de lado a doutrina do laissez-fair e age de forma direta em nome dos interesses burgueses. “[...] Até poucos anos as grandes empresas e os grandes grupos capitalistas viam a participação do Estado nas atividades econômicas e sociais como um fator de restrição à liberdade. Entretanto, essa participação acabou por ser altamente benéfica para os detentores de capital e dirigentes de empresas, pois o Estado passou a ser grande financiador e um dos principais consumidores, associando-se com muita freqüência aos maiores e mais custosos empreendimentos.”(DALLARI, 2002, p. 236) Com a chegada ao poder de Margaret Thatcher (1925) , “a Dama de ferro”, na Inglaterra entre 1979 e 1990, e Ronald Reagan (1911-2004) entre 1981-1989, nos Estados Unidos da América, o neoliberalismo se consolidou como uma reação política prática veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar. O Consenso de Washington realizado em 1989 é também outro marco histórico no que tange à propagação e compromissos oficiais dos dirigentes estatais em executar a “nova cartilha liberal” ou neo-liberal, pois a nova pauta defendida eram as de idéias desreguladoras a fim de se facilitar a globalização. Sob a alegativa de crescimento da interdependência de todos os povos e países da superfície terrestre, o discurso que objetiva legitimar a globalização é o de reduzir as barreiras 348 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II alfandegárias e facilitar as trocas comerciais e financeiras das entidades em qualquer país, tornando cada vez mais livres a circulação de bens e serviços entre os países envolvidos, isto é, evitar ingerências sobre a propriedade privada agora em um processo supranacional, com privatizações, alterações de regime de aposentadorias, liberalização das transações financeiras, e pelo desprezo ao estado de bem-estar social. A expressão "globalização", portanto, é utilizada em um sentido ideológico, no qual observa-se no mundo inteiro um processo de integração econômica sob a égide do neoliberalismo. A globalização tem forçado o Estado a abdicar de sua soberania e autonomia em nome de uma internacionalização neoliberal, onde, cada país para legislar precisa estar ao encontro desta para saber o que realmente podem regular ou intervir. […] Do prisma econômico, a globalização representa pelo menos um brutal esvaziamento da territorialidade. Do ponto de vista político, a formação de grandes blocos e os organismos supranacionais relativizam a soberania. Finalmente, do prisma jurídico, o direito do mercado globalizado flexibiliza o direito positivo em todos os planos (direitos individuais, políticos e sociais).”(CAMPILONGO, 2002, p.29) IV. A crise capitalista do “Estado do bem estar social”, globalização e reformas. .A originalidade do “Estado do bem estar social” é, em sua essência, a de uma doutrina de moderação, isto é, uma linha reformista em relação ao socialismo e, portanto, a rejeição da revolução proletária como o único meio de ação. Contudo, tal modelo econômico não nega a doutrina liberal, já que aceita a existência do mercado, porém com uma preocupação que visa garantir uma melhor distribuição da riqueza. Afora os interesses dos grandes grupos econômicos em promover a globalização impondo o modelo neoliberal aos países, deve-se ressaltar que diversas contradições nos Estados de bem estar social facilitam cada vez mais a sua propagação e implantação. Inicialmente, porque a perspectiva de redistribuição econômico-social não impediu o aumento das desigualdades e o surgimento de novas formas de exclusão, isso, logicamente, consequência do capitalismo e, também, devido ao aumento da carga fiscal sobre as famílias, havendo questionamentos sobre qual o nível máximo que o setor produtivo e parcela da sociedade aceitam financiar os gastos sociais. Outro grande dilema é que, a população dos países centrais do capitalismo, principalmente os europeus, tiveram o envelhecimento de sua população, aumentando os gastos sociais com 349 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II aposentadoria e saúde, estimulando ainda mais demandas sociais e, consequentemente, diminuindo a mão de obra, cada vez mais cara. Até os anos de 1940, a economia sempre foi enfocada, em grande parte, dentro de uma realidade nacional, uma vez que seu desenvolvimento predominava dentro das fronteiras do Estado. Isso mesmo no auge do liberalismo, nos Estados que se denominavam socialistas, e, obviamente, com a expansão do modelo de Estado de bem estar social. A partir deste período, entretanto, vem ocorrendo uma inversão gradual desta perspectiva econômica, uma vez que os Estados estão, cada vez mais, incorporado-se aos mercados, deixando de haver, pelo menos para os neoliberais, as barreiras estatais para o desenvolvimento do mercado, com um enfoque, desta vez, mundial. Essa inversão é a própria concretização da "globalização"e seu fortalecimento tem, portanto, um impacto cada vez mais significativo sobre a sobrevivência do Estado do bem bestar. Os países centrais capitalistas então, principalmente os da Europa e os Estados Unidos da América, diante dessa crise interna, começaram a usar veementemente seu controle sobre as instituições financeiras internacionais com o fito de impor reformas neoliberais para enquadrar os demais países periféricos a essa lógica de “mercado sem barreiras”, para com o peso de suas economias conquistarem novos mercados, ao mesmo tempo que, internamente, faz fortes cortes de políticas sociais, fortalecendo o mito do “livre mercado”. Supõe-se que, com o avanço da globalização, seguindo o seu curso programado, vai-se enfraquecer cada vez mais a noção de “Estados nacionais” oriundos há cinco séculos atrás, ou dar-lhes novas formas e funções, fazendo com que novas instituições supranacionais gradativamente os substituam. Entretanto, longe de resolver a questão do financiamento das políticas sociais, tal solução só adia o problema, pois a lógica de concentração de riqueza e as demandas sociais não desaparecerão. Deve-se ressaltar que os defensores da globalização e do neoliberalismo revitalizam, de certa maneira, a tese do liberalismo clássico ao defenderem que as moléstias sociais, em um contexto mundial, só serão sanadas com o livre mercado. Consequência disso é que as políticas de promoção do emprego, de melhoria de vida, de condições de trabalho, proteção e do diálogo social e de luta contra a exclusão só vem ser permitidas dentro de uma concepção restritiva, isto é, na medida em que não vão de encontro ao mercado livre, um vez que não pode haver distorções na livre concorrência. 350 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A história demonstrou que essa lógica de não atuação no mercado/economia a fim de aparar arestas sociais não foi suficiente em promover desenvolvimento social à humanidade, pelo contrário, levou a maior crise econômico-social da história no ano de 1929 . E, mesmo, onde essa lógica neoliberal básica da globalização começou a ser implantada com rigor, as respostas às demandas sociais pelo mercado não foram tão animadoras assim. O principal exemplo desse modelo são os Estados Unidos da América: “What thinking about such a policy? In the U.S., it encouraged the return of full employment; but at the cost of the emergence of a "working poor class", a class of sub-wage labor or workers living below the poverty level. In doing so, it increased inequalities between the richests and poorests. After having first resisted to this evolution, the European countries finally took the same path.” (BOTTINI, 2012, p.07) Ressalta-se que não há questionamentos que na atualidade vive-se uma crise que atinge o capitalismo e consequentemente os Estados, sejam eles mais liberais, como os EUA, sejam eles mais sociais, como na Europa. Outro questionamento é se o neoliberalismo e a proposta da globalização de reorganização dos sistemas econômico e de proteção social será capaz de fazer retornar o crescimento econômico com desenvolvimento social, compartilhando os ganhos do crescimento econômico. A proposta neoliberal globalizante tende a fazer o caminho contrário do keynesianismo, pois o ciclo vicioso econômico tenderá a diminuir seu crescimento, já que, com corte de gastos e menos distribuição de riquezas, a tendência é haver menos consumo e menos crescimento, e isso resultará em novos déficits. Política e economicamente enfraquecido, o Estado do bem estar social, dando-se destaque aos provedores europeus, passam por testes de resistência que colocam seu futuro em perspectivas obscuras, uma vez que toda a sua concepção de política está sob ataque. A expressão "globalização" tem sido, na realidade, utilizada num sentido predominantemente ideológico, em que se constata no mundo inteiro a um processo de interação econômica sob a égide do neoliberalismo, caracterizado, primordialmente, pelo predomínio dos interesses financeiros da burguesia, pela desregulamentação dos mercados, pelas privatizações das empresas estatais, e, por assim dizer, pelo abandono do estado de bemestar social. 351 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A globalização, entretanto, ao contrário de seus defensores, tem sido a responsável pela intensificação da exclusão social, com o aumento do número de miseráveis e de desempregados, e de provocar crises econômicas sucessivas, arruinando milhares de poupadores e de pequenos empreendimentos. Tal acontecimento é um claro retrocesso, porque a experiência do Estado do bem estar social, pela primeira vez, no capitalismo, em vez de simplesmente propagar a ideia liberal de igualdade de direitos para todos os cidadãos, tornou cada vez mais possível. Entretanto, o desenvolvimento da atual crise por que passa o capitalismo, e a ascensão do neoliberalismo, está na contramão desse progresso. Inegável que o intervencionismo do Estado reflete uma demanda social. Se o Estado do bem-estar social deve ser reformado por conter alguns equívocos, devido às novas concepções econômicas resultantes da globalização, a sua existência não pode ser ameaçada, uma vez que o intervencionismo do Estado é necessário uma vez que a auto-regulação do mercado sempre foi um mito. "[...] A proposta do chamado Estado mínimo é apenas, quando feita de boa fé, uma das tantas ilusões do neoliberalismo. O Estado não tem de ser mínimo, nem máximo; tem de ser suficiente para assegurar o exercício de suas responsabilidades: a soberania do país, o desenvolvimento de sua economia e a justiça social. O Estado mínimo que nos tem sido proposto não atende a essas responsabilidades; ao contrário, aprofundará e perpetuará o quadro de desigualdades sociais em que vivemos. Esse Estado mínimo, portanto, é uma forma de neocolonialismo." (CABRERA, 2012.) Nesses primeiros anos de expansão da globalização alicerçada no neoliberalismo, é possível destacar alguns fatos. Apesar de se destacar a diminuição da inflação, o avanço tecnológico, o crescimento da taxas de desemprego e o aumento significativo das desigualdades, tais medidas não promoveram, até o momento, a “reanimação” do capitalismo pregada por seus defensores, tendo-se obtido taxas de crescimento muito inferiores aos anos anteriores aos anos 70. “[...] Para fazer-lhe o balanço, reúnem-se, desde 1970, em Davos, na Suíça, chefes de Estado, banqueiros, financistas, dirigentes de grandes empresas transnacionais, buscando auferir os avanços da economia de mercado, do câmbio-livre, da desregulamentação.”(AZEVEDO, 2000. p, 120). V. Conclusões. 352 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Através do presente estudo pode-se concluir que a globalização é incompatível com o Estado de bem estar social. O neoliberalismo, base ideológica da globalização, vem avançando em nível global e vem sendo o fator mais importante no que diz respeito à “reorganização” dos Estados. É, sem dúvidas, o modelo econômico que os governos vem mais se pautanto, seja de suposta dogmática ideológica de esquerda ou de direita. Aqueles países que, anteriormente, implementaram, seja qual for o nível, políticas relacionadas ao Bem estar social estão revertendo suas bases para atender ao modelo imposto pela globalização, seja pela imposição política dos grandes grupos econômicos, seja pelos grandes países capitalistas. O impacto disso no Direito é inevitável, por se tratar de um dos meios, se não o principal, que o Estado utiliza para alcançar seus fins. “[...] A desestruturação e mesmo o mero enfraquecimento do Estado conduzem destarte, inevitavelmente, à ausência de quem possa prover adequadamente o interesse público e, no quanto isso possa se verificar, o próprio interesse social.” (GRAU, 1991, p.52) Está claro, portanto, de que o objetivo principal do neoliberalismo é reverter o quadro jurídico-estrutural keynesiano, que ainda não está totalmente desmantelado. Esta realidade é um dos fatores que mais influenciam a atual crise por que passa a questão jurídica, através da quebras de suas unidades, não obstante muitos juristas e setores da sociedade não estarem atentas à relação existente entre esses fatos. Em lugar de regulamentação econômica, ocorre a desregulamentação e flexibilização, no lugar de aumento de previsão constitucional de direitos sociais, ocorre um processo no sentido contrário, com a “desconstitucionalização” dos mesmos. “[...] Não se pode aceitar o discurso, tão em voga nesses tempos neoliberais, de que o papel do Estado é apenas garantir as liberdades básicas, cabendo à iniciativa privada a prestação dos direitos sociais e econômicos. Na verdade, se não houver uma intervenção estatal no sentido de promover a distribuição da riqueza, buscando a redução das desigualdades sociais (art. 3º, inc. III, da CF/88), através da concretização dos direitos sociais e econômicos, sobretudo para as pessoas mais carentes, a prometida “neo-liberdade” não passará de instrumento de escravização branca.”(MARMELSTEIN LIMA, 2004, p. 13.) VI. Referências Bibliográficas. AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, justiça social e neoliberalismo. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. 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Trata-se de um direito de caráter eminentemente coletivo, e, por isso mesmo, merece uma proteção especial, em consideração a esta característica. Além disso, o direito à cultura exige a elaboração de políticas culturais, voltadas à proteção, promoção e universalização do acesso aos bens e serviços culturais, de modo que existem mecanismos e programas próprios voltados a este objetivo, tais como o Programa Nacional de Apoio à Cultura (lei n. 8.313/1991), o Programa Nacional de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Nacional – PRODECINE (lei n. 8.685/1993), o Programa de Cultura do Trabalhador (lei n. 12.761/2012), além de incentivos via renúncia fiscal para apoio à cultura. Cabe observar também que a estrutura administrativa brasileira dispõe de diversos órgãos voltadas à questão cultural, como o Ministério da Cultura e entidades a ele vinculadas. Passamos por um momento chave para a discussão do tema, haja vista que recentemente foi acrescentado o artigo 216-A, à Constituição Federal, introduzindo em nível constitucional o Sistema Nacional de Cultura. Palavras-chave: Cultura; Direitos Culturais; Tutela judicial coletiva; Políticas Culturais; Emenda Constitucional n. 71. 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas/AM; bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM. 356 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II ABSTRACT The right to culture is protected in the Brazilian legal order, by, juridical, judicial and legislative instruments. It is a right eminently collective, and, therefore, deserves special protection, in consideration of this feature. Moreover, the right to culture requires the development of cultural policies aimed at protecting, and promoting universal access to cultural goods and services, so that there are mechanisms and programs geared themselves to this purpose, such as the National Program Support to Culture (Law n. 8.313/1991), the National Development Support of National Cinema - PRODECINE (Law n. 8.685/1993), the Program of Culture for Workers (Law n. 12.761/2012), plus incentives via tax breaks to support culture. It should be noted also that the Brazilian administrative structure have several organs, focused on cultural issues, such as the Ministry of Culture and entities linked to it. We pass through a key time for discussion of the topic, considering that recently was added the article 216-A, to the Federal Constitution, introducing, in constitutional level, a Culture National System. Keywords: Culture; Cultural Rights; Collective law suit protection; Cultural Policies; Constitutional Amendment 71. 357 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II 1 INTRODUÇÃO O direito à cultura desponta neste ano como um importante tema a ser debatido, não somente nos meios políticos, no âmbito da administração pública, mas também no âmbito jurídico. Isso em consideração à profunda alteração que se pretende implementar no cenário jurídico cultural, diante da Emenda Constitucional n. 71 de 29 de novembro de 2012. Difícil afirmar, a esta altura, qual o alcance desta, modificação legislativa, especialmente em relação aos âmbitos judicial, político e administrativo, no sistema brasileiro. Entretanto, vislumbra-se uma maior preocupação quanto ao assunto nestes meios. O direito à cultura, pois, possui conteúdo demasiado impreciso, da forma que é delineado nos artigos 215, 216 e o recém-criado artigo 216-A, todos da Constituição Federal, dado seu caráter coletivo, que de um lado se revela um direito social (direito fundamental de segunda geração), e de outro, coletivo ou difuso (direito fundamental de terceira geração). Assim, como direito social, é possível observar as normas que o instituem possuem caráter geral, amplo, cuja eficácia depende de diversos atores e fatores, tal como uma política pública adequada, bem como instrumentos judiciais eficazes a lidar com a natureza destes direitos. Portanto, nem sempre é claro identificar a natureza de determinados direitos, especialmente quando se trata de diversas facetas (coletiva e individual) de um mesmo fenômeno (cultura). Por isso, é preciso realizar uma análise cuidadosa, de modo a permitir uma proteção mais eficaz, e a consequente maior efetivação do direito à cultura. Nesse contexto, a defesa judicial do direito à cultura envolve a aplicação de mecanismos normativos e processuais. Ao mesmo tempo em que o direito à cultura constitui um direito pertencente à coletividade – demonstrando, nesse caso, sua natureza difusa; – também é possível vislumbrar direitos afetos à cultura pertencentes a determinados grupos sociais, unidos por uma relação jurídica em comum – direito coletivo em sentido estrito – e, ainda, outros em que se revela em seu aspecto individual, mas derivados de uma origem comum, e, por isso, homogêneos. Por isso, a defesa judicial do direito coletivo à cultura pode tomar sentidos diversos, submetendo-se a normas e mecanismos processuais próprios a cada caso. Além disso, é preciso lembrar que o direito à cultura depende em grande parte da atuação da Administração Pública, ou seja, da formulação de programas e políticas públicas 358 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II voltadas ao tema, sempre tendo em vista o contexto social, político e cultural de sua aplicação. É nesse âmbito, em especial, que a Emenda Constitucional n. 71 provoca grandes mudanças, o que instiga especial atenção ao tema. Diante destas considerações, o objetivo deste trabalho será delinear as nuances deste sistema cultural, tendo em vista a estrutura administrativa e o ordenamento jurídico brasileiro, aludindo a algumas de suas principais normas protetivas, em especial a Constituição Federal; em um segundo momento, este esforço se dará em abordar os principais mecanismos judiciais de proteção destes direitos, com ênfase nos mecanismos de processo coletivo; e, por fim, quais as diretrizes gerais a respeito da formulação de uma política cultural, tendo a legislação como parâmetro. Diante destas considerações, o objetivo deste trabalho será abordar os principais mecanismos judiciais de proteção destes direitos, com ênfase nos mecanismos de processo coletivo; em um segundo momento, buscaremos delinear diretrizes a respeito da formulação de uma política cultural, tendo a legislação como parâmetro; e, por fim, analisaremos as nuances deste sistema cultural, tendo em vista a estrutura administrativa e o ordenamento jurídico brasileiro, aludindo a algumas de suas principais normas protetivas, bem como a Constituição Federal. Para isso, os métodos utilizados nesta pesquisa foram, quanto aos fins, exploratóriodescritivo e, quanto aos meios, o bibliográfico, utilizando do corpo normativo do ordenamento brasileiro, envolvendo legislação, jurisprudência, com apoio da doutrina jurídica e estudos sociais. Assim, buscamos estabelecer as linhas gerais do sistema cultural brasileiro, identificando seus princípios e dificuldades. 2 O CARÁTER COLETIVO DO DIREITO À CULTURA E A TUTELA COLETIVA JUDICIAL O Direito à Cultura pode ser encarado sob a perspectiva subjetiva, ou seja, como um direito exigível individualmente; também de caráter social (segunda dimensão dos direitos fundamentais), inserido, pois, no Título destinado à Ordem Social na Constituição Federal. A par disso, o direito à cultura é encarado como um direito coletivo ou difuso (terceira dimensão dos direitos fundamentais). Isso significa que sua efetivação depende da consideração deste 359 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II caráter coletivo, sem o que restará impossível a efetivação do direito subjetivo que daquele decorre. É interessante que, a partir disso, é possível perceber a relação que se desenvolve, de modo cada vez mais próximo, entre Meio Ambiente (artigo 225, CF) e Cultura (arts. 215, 216 e 216-A, CF). É a ideia de Meio Ambiente Cultural, ou seja, a perspectiva de que não é possível a concepção de meio ambiente afastada do aspecto sociocultural. A formação do Patrimônio Cultural depende, pois, também da proteção dos aspectos ambientais, que envolve a própria cultura, e vice-versa. Exemplo dessa percepção é a chancela da Paisagem Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, lançada pela Portaria n. 127/2009 deste órgão. Segundo o artigo 1º deste regulamento, Paisagem Cultural Brasileira é “uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores” (IPHAN, 2009). Percebe-se nesta definição o esforço conceitual que por tantos anos os doutrinadores do denominado “Direito Ambiental Cultural”. Estes parênteses são importantes para a compreensão da ampliação dos instrumentos de formação do patrimônio cultural, e consequentemente, maior efetividades dos direitos relacionados à cultura. Por isso é possível afirmar que também o artigo 225, da Constituição Federal, se estende de forma a alcançar a proteção à Cultura, se ligando de forma visceral ao que dispõem os artigos 215, 216 e 216-A. Como consequência, servirá de apoio à interpretação das normas relacionadas a cultura, em consideração à noção de sistema que paira sob as normas do ordenamento jurídico, em especial a própria Constituição. In verbis, o artigo 225, da Constituição Federal: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondose ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Como já se ventilou acima, o direito à cultura não pode ser encarado sob uma única perspectiva, em relação à sua titularidade: o que se quer dizer é que, levando em consideração sua natureza coletiva – tal como em outras questões, como o Meio Ambiente – o direito à Cultura é, por um viés, um direito pertencente à coletividade (art. 215, CF: o Estado garantirá a todos (...)), e, por outro, também é um direito que pode ser exercido por 360 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II determinados grupos ou pelos indivíduos separadamente, mas derivados de uma situação em comum. No primeiro caso, trata-se de um típico direito difuso, segundo a classificação comumente adotada doutrinariamente em relação aos direitos coletivos, e inserida no ordenamento jurídico de maneira inovadora pelo Código de Defesa do Consumidor; no segundo caso, o direito à cultura pertencente a um determinado grupo, unidos por uma relação jurídica em comum – direito coletivo em sentido estrito; por fim, é um direito individual homogêneo, quando deriva de uma origem comum, mas pertence ao patrimônio jurídico de cada indivíduo, separadamente. Cabe observar, porém, que em qualquer desses casos, o direito à cultura revela um interesse social coletivo. Estas noções levam à adoção de mecanismos de proteção próprios, especialmente em consideração aos aspectos processuais atinentes a sua defesa judicial. O artigo 81, parágrafo único, do Código de Defesa do consumidor, in verbis, traz as referidas definições: Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.(grifos nossos) Zavascki (2005, p. 03 e 04) lembra que o Código de Processo Civil passou por um ciclo de mudanças, transformando-se da ideia de uma tutela jurídica voltada aos direitos subjetivos individuais, e, a partir 1985, a uma nova fase com a introdução de novos instrumentos de tutela de demanda coletiva, tutela de direitos transindividuais, e, finalmente, a própria ordem jurídica abstratamente considerada. A isso se seguiu o aperfeiçoamento destes instrumentos, com o surgimento de leis específicas à tutela coletiva dos direitos e a ampliação do papel do Ministério Público, nesse contexto, como legitimado extraordinário na defesa dos interesses difusos e coletivos se revela decisivo, especialmente com a Ação Civil Pública. 361 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A par da discussão a respeito da distinção entre interesses e direitos coletivos2, o código consumerista traz ao ordenamento jurídico brasileiro, pela primeira vez, um ponto de vista de proteção ampla dos direito coletivos. Ao lado deste diploma, é possível encontrar outros mecanismos de importante alcance na proteção de direitos coletivos, formando um microssistema processual coletivo (cf. DIDIER, 2009, p. 49 e ss.), tais como: a Ação Civil Pública (art. 129, III, da CF e lei n. 7.347/85), a Ação Popular (art. 5º, LXXIII da CF e lei n. 4.717/65), o Mandado de Segurança Coletivo (art. 5º, LXX, CF e Lei n. 12.016/09), as Ações Diretas de Constitucionalidade e Inconstitucionalidade (art. 103, CF e lei n. 9.868/99). Vale lembrar que estas ações próprias à tutela coletiva não excluem outras formas de defesa judicial destes direitos, especialmente as que estão vinculadas ao direito material objeto de proteção, tais como: a ação de Improbidade Administrativa, as ações civis tradicionais, especialmente as fundadas em legislação própria à proteção de interesses difusos, como o Código de Defesa do Consumidor (parágrafo único do art. 81, 91 e ss., da lei n. 8.078), o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei n. 8.069, arts. 208 e ss.), o Estatuto do Idoso (lei n. 10.741, arts. 78 e ss.), a lei n. 7.853/1989, destinada à proteção e apoio às pessoas com deficiência (art. 3º), entre outros. Não se deve esquecer que o tema que tem tomado repercussão nos meios acadêmicos, no que diz respeito à elaboração de um “Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos” – coordenado pela professora Ada Pellegrini Grinover – cuja pretensão é consolidar os avanços do pensamento processual mais progressista, em relação aos direitos coletivos (LEONEL, 2006, p. 185). É importante se ter em mente que, independente de um código de processos coletivos, é inquestionável que há no ordenamento jurídico brasileiro um sistema processual coletivo, formado pelo conjunto de normas acima mencionadas, entre outras. 2.1 A AÇÃO CIVIL PÚBLICA 2 Em geral, a doutrina alude à distinção entre interesses públicos primário e secundário. O primeiro diz respeito ao interesse da coletividade, segundo o qual deverão atuar os órgãos da Administração, bem como dos Poderes Legislativo e Judiciário; o segundo se identifica com os interesses imediatos da administração pública, que devem se delinear aos limites daquele: “o interesse coletivo primário ou simplesmente interesse público é o complexo de interesses coletivos prevalente na sociedade, ao passo que o interesse secundário é composto pelos interesses que a Administração poderia ter como qualquer sujeito de direito, interesses subjetivos, patrimoniais, em sentido lato, na medida em que integram o patrimônio do sujeito (...)” (BANDEIRA DE MELLO, 2009, p. 650). 362 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A ação civil pública tem previsão constitucional no artigo 129, inciso III, da Carta Maior, onde se consagra a legitimidade do Ministério Público a sua propositura em defesa dos “interesses difusos e coletivos”: Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (...) III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; Além disso, é regulamentada pela lei n. 7.347/85, que a criou, e teve seu objeto ampliado pela Constituição Federal de 1988, para a defesa de interesses difusos e coletivos, do meio ambiente e do patrimônio público e social. Também foi modificada por diversas leis posteriores, adicionando-se novas hipóteses: a proteção das pessoas portadoras de deficiência (Lei n. 7.853/89), dos investidores no mercado de valores mobiliários (Lei n. 7.913/89), das crianças e adolescentes (ECA — Lei n. 8.069/90), dos consumidores (CDC — Lei n. 8.078/90), das pessoas atingidas por danos à ordem econômica (Lei n. 8.884/94) (MAZZILI, 2001, p 109). Zavascki (2005, p. 48) explicita que a Ação civil pública é composta por diversos mecanismos voltados à tutela preventiva, reparatória e cautelar de quaisquer direitos e interesses difusos e coletivos. De fato, o artigo 1º da lei n. 7.347 provê grande alcance às ações de responsabilidade por danos morais e materiais causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, por infração à ordem econômica, à ordem urbanística e a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. Indica o autor, por isso, que as leis que posteriormente vieram a regulamentar de forma específica direitos de natureza coletiva seguiram, na essência, a linha procedimental desta lei, adotandose sua aplicação de forma subsidiária. Um aspecto de maior importância da Lei de Ação Civil Pública é a institucionalização legislativa do acesso à justiça, atribuindo a legitimidade de propor esta ação ao mesmo tempo a organismos públicos e privados, em conjunto ou separadamente (cf. MIRRA, 2004, p. 137). Ainda, cabe mencionar que é atribuída a legitimidade às associações civis promoverem esta ação, desde que constituídas há pelo menos 1 (um) ano e “inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”. O juiz poderá dispensar a pré-constituição “quando haja manifesto interesse social evidenciado pela 363 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido” (art. 5º, §4º, da lei n. 7347/85) e, também, é garantida a gratuidade do acesso à justiça, exceto no caso de comprovada litigância de má-fé (art. 17 da lei n. 7.347/85). Além das associações, também estão legitimados o Ministério Público, a Defensoria Pública, a União, os Estados, o Distrito Federal, e os Municípios, a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista, nos termos do artigo 5º da lei da ação civil pública. Percebe-se, portanto, haver uma ampla legitimação ativa, de forma a conferir uma maior proteção aos direitos difusos e coletivos. Nesse contexto, a participação da sociedade civil se revela decisiva como instrumento de racionalização do poder: Trata-se de uma tentativa de gestão racional de determinados setores da vida coletiva, que tem a seu favor não apenas a fé iluminista no valor educativo da participação, mas ainda a convicção da necessidade de busca de novas formas de democracia, adequadas aos progressos e aos riscos da revolução técnico-científica (GRINOVER apud MIRRA, 2004, p. 143) Cabe acrescentar que o Ministério Público se destaca como um órgão da sociedade, embora formalmente um órgão do Estado (id., p. 147). Além de figurar como legitimado ativo destas ações, o parquet deverá atuar como fiscal da lei (custus legis). Também deverá assumir a titularidade ativa no caso de desistência infundada de associações (art. 5º, §1º, da lei n. 7.347). Importante mencionar, em relação aos legitimados ativos, que estes poderão habilitarse como litisconsortes (art. 5º, §2º), bem como os Ministérios Públicos da União, Estados e Municípios (art. 5º, §5º). Por fim, instrumento importante de solução de controvérsias e proteção efetiva a direitos difusos é o compromisso de ajustamento, tomado dos interessados pelos órgãos públicos legitimados, tendo força de título executivo extrajudicial (art. 5º, §6º). A decisão promulgada na ação civil pública fará coisa julgada erga omnes, em caso de procedência ou improcedência por pedido infundado. No caso de improcedência, vale lembrar que não fará coisa julgada material no caso de deficiência de provas, possibilitando a qualquer dos legitimados renovar a demanda, trazendo novos elementos (art.16). Mirra lembra que estas disposições têm por objetivo evitar submeter o réu a reiteradas ações infundadas, diminuindo, também, os inconvenientes aos co-titulares do interesse em causa e, ainda, impedir “o conluio entre o autor legitimado e o réu para a propositura de ações simuladas, as quais, devido à atuação insatisfatória do demandante na produção de provas, poderiam ser 364 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II julgadas improcedentes, com a garantia da coisa julgada fraudulentamente obtida” (id., p. 139). O art. 13 da lei n. 7.347 prevê a destinação das indenizações em dinheiro decorrentes das ações em defesa dos direitos difusos a um fundo, gerido por Conselhos federal ou estaduais, devendo estes recursos ser destinados à reconstituição dos bens lesados. Discussão importante neste respeito é a vinculação dos recursos às respectivas áreas (espacial e material) cujos direitos foram violados. Por exemplo, se a violação de direitos culturais ensejaria a destinação dos valores à manutenção ou promoção do sistema nacional de cultura, ou formação de patrimônio cultural, etc.. Em relação à vinculação por localidade, o Decreto Federal n. 1.306/1994, que regulamenta o Fundo de Direito Difusos (FDD) no âmbito federal, impõe a obrigatoriedade de aplicação dos recursos no mesmo local onde ocorreu o dano (art. 7º e parágrafo único do Decreto n. 1.306/1994). Merece atenção as considerações de Silva (2006), argumentando que tal vinculação ensejaria a destinação de grande parte dos recursos de forma bastante restritiva, já que há concentração em poucas áreas, em especial referente às multas aplicadas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE. Dessa forma, “se os valores revertidos ao Fundo fossem afetados de acordo com a origem (matéria e localidade), a maior parte dos recursos disponíveis seriam aplicados em prol da defesa da concorrência” (SILVA, 2006, p. 91). Ainda que pairem dúvidas sobre a efetividade do FDD, com maior sucesso se dá a reparação via Fundo dos direitos individuais homogêneos, pelo mecanismo denominado fluid recovery. A “recuperação fluida” é um instrumento de liquidação e execução verdadeiramente coletiva. Os valores arrecadados deverão ser objeto de liquidação pelos interessados (titulares dos direitos individuais homogêneos lesados) que deverão se habilitar na demanda. Este dispositivo evita com que os agentes causadores do dano saiam impunes, possibilitando que demandas que seriam excessivamente custosas consideradas individualmente, sejam reparadas no processo coletivo, de maneira mais econômica e célere. Ainda, caso os interessados não se habilitem, o artigo 100 do Código de Defesa do Consumidor admite que um dos entes legitimados extraordinariamente promova a liquidação do direito reconhecido em sentença coletiva, em nome dos titulares de direitos individuais homogêneos. Ou seja, no caso em que, decorrido o prazo de um ano sem que estes 365 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II interessados promovessem, individualmente e em número compatível com a gravidade do dano, a liquidação e execução do valor que lhe é devido, qualquer um daqueles legitimados (art. 82, CDC) poderia fazê-lo de forma coletiva. E, assim, o produto da execução seria revertido ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD), previsto no artigo 13 da lei de Ação Civil Pública (lei n. 7.437/85). Nesse caso, há uma legitimação extraordinária residual, pois surge somente após o lapso temporal de um ano do trânsito em julgado, e devidamente chamados à habilitação os interessados (cf. ABELHA apud DIDIER, 2009, p. 378). 2.2 A AÇÃO POPULAR A Ação Popular está prevista no art. 5º, LXXIII, da Constituição Federal de 1988, e é regulamentada pela lei n. 4.717/65. Sua característica de maior relevo é a ampla legitimação atribuída, ou seja, o fato de que é possível a qualquer cidadão manejá-la, de maneira gratuita. Trata-se de ação que tem por objetivo a anulação de ato lesivo ao patrimônio público ou entidade de que o Estado participe. Além disso, é instrumento hábil à proteção da moralidade administrativa, do meio ambiente, e do patrimônio histórico e cultural. É o que se depreende do texto constitucional, in verbis: Art. 5º. (...) LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência; Segundo Zavascki (2005, p. 69), a ação popular surge no ordenamento jurídico constitucional a partir da Constituição de 1934, perdurando até a atual – com exceção da Carta de 1937, outorgada pelo Estado Novo. É um remédio de tradição consolidada, mas que ao longo da evolução legislativa e constitucional ganha maior detalhamento, adquirindo sentido mais amplo, até culminar na atual conformação acima citada. O autor destaca entre seus principais avanços a alteração do conceito de patrimônio, dada pela lei n. 6.513/77, incluindo os “bens e direitos de valor econômico, artístico. estético, histórico ou turístico" (id., p. 70), e, com a Constituição Federal de 1988, acrescentando aos bens tuteláveis por esta via o meio ambiente e a moralidade administrativa. Importante ressaltar que a característica de maior realce da ação popular é seu exercício por qualquer 366 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II cidadão, para a defesa de direitos coletivos (id., p. 71), e por isso mesmo, alinhando-se ao rol de direitos políticos fundamentais. Além de instrumento típico de cidadania – entendido o cidadão como aquele que não apresente pendências cívicas, militares e eleitorais exigíveis por lei – é também, pois, voltado principalmente à defesa do interesse público, ainda que possa gerar reflexo em posições subjetivas (cf. MENDES, 2009, p. 590). Nesse sentido, a defesa do interesse público pelo cidadão revela o aspecto transindividual do objeto da ação popular, como argumenta Zavascki: A transindividualidade dos interesses tutelados por ação popular fica evidenciada, não apenas quando seu objeto é a proteção do meio ambiente ou do património histórico e cultural (direitos tipicamente difusos. sem titular determinado), mas também quando busca anular atos lesivos ao patrimônio das pessoas de direito público ou de entidades de que o Estado tenha participação (2005, p. 72). Lenza (2009, p. 746), elenca os seguintes requisitos referentes à propositura da ação popular: a lesividade ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente ou ao patrimônio histórico e cultural e a legitimidade, ou seja, a qualidade de cidadão. O que é imprescindível, portanto, ao jurista e ao juiz, é a delimitação do que se entende por lesividade. A lesividade não estará presente sempre que houver a diminuição do patrimônio público, pois esta constatação em si não pressupõe uma lesão. Na verdade, esta ocorrerá ou em razão de violação à moralidade administrativa – que é, em si, uma ilegalidade –ou por uma redução do patrimônio decorrente de ato ilegítimo. Para Zavascki (op. cit., p. 75), não há que se falar em lesividade quando se trata de ato legítimo. Isso porque a lesividade pressupõe a ilegalidade ou ilegitimidade do ato, porquanto a simples redução do patrimônio público não enseja a lesão. Ainda, este ato não pode ser suscetível de convalidação, lembrando que a nulidade se trata de uma sanção jurídica. Por isso que “opera em plano exclusivamente jurídico, pois decorre (= tem como causa necessária) da injuridicidade (= ilegitimidade, ilegalidade) do ato, e não dos efeitos materiais que ele acarreta” (id., p. 76). Em relação à violação à moralidade ou princípio da moralidade administrativa (art. 37, CF), sua problemática exige a consideração de que se trata de uma cláusula normativa aberta, 367 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II o que exige uma delimitação de seu conteúdo. Deve-se ter em conta que a sua força sancionadora supõe os princípios da tipicidade e da irretroatividade das normas. O conteúdo do princípio da moralidade deve necessariamente ser extraído de um sistema normativo previamente existente, conhecido e acessível a todos os seus destinatários e determinado democraticamente, isto é, por quem tem o poder de produzir regras de conduta (= normas jurídicas) (id., p. 78). Os vícios dos atos administrativos por quebra da moralidade se revelam, portanto, de causas subjetivas. Há um descompasso entre sua expressão formal e sua expressão formal, pois a intenção do agente não se compatibiliza com os fins próprios à função que ele exerce (id. P. 79). 2.3 O MANDADO DE SEGURANÇA E O MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO O mandado de segurança tem previsão constitucional no art. 5º, LXIX, e sua modalidade coletiva, no art. 5º, LXX. Trata-se também de remédio constitucional que visa à proteção de direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, contra ato ou omissão ilegal de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. O mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por partidos políticos e a organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída há, no mínimo, um ano, em defesa dos interesses de seus membros. Interessante observar que o artigo 21 da lei n. 12.016/2010 consagrou a posição dominante na jurisprudência, em relação ao mandado de segurança movido por partidos políticos, associações e organizações sindicais, na defesa de direito líquido e certo de seus membros, no sentido da desnecessidade de autorização especial. Segundo Mendes (2009, p. 580), não se trata de uma nova modalidade da ação constitucional, mas de uma forma diversa de legitimação ad causam, por substituição processual – enquanto a hipótese do art. 5º, LXX, é caso de representação processual. Além disso, o parágrafo único do referido artigo afirma que esta ação coletiva se destina à proteção de direitos coletivos ou transindividuais e de direitos individuais homogêneos. Não é destinado, pois, à defesa de direitos difusos strictu sensu, pois nesse caso não há uma legitimidade daquelas entidades à utilização desta via para direitos desta natureza, como o meio ambiente, e, no caso da cultura, se considerada abstratamente como bem de toda a coletividade. 368 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Isso significa que o objeto de tutela do mandado de segurança são aqueles direitos transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular “grupo ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base”, ou ainda, “os decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou de parte dos associados, ou membros do impetrante” (art. 21, parágrafo único, I e II). Vale observar que estes conceitos claramente derivam da definição dada no parágrafo único, I e II, do artigo 81 do Código de Defesa do consumidor, supramencionado, que serve de parâmetro em relação às outras leis que tratam da tutela coletiva de direitos. Percebe-se, por fim, que a lei n. 12.016/2010 veio a esclarecer dúvidas e fortalecer a segurança jurídica, especialmente no que se refere ao mandado de segurança coletivo, já que a legislação anterior não tratava especificamente desta modalidade. Coube à doutrina e à jurisprudência delinear os contornos deste mecanismo, até a atual configuração legislativa, que o consagrou em nível infraconstitucional. 2.4 AS AÇÕES DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE E DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE A par de todo o regramento e de profunda discussão doutrinária acerca do instituto do Controle de Constitucionalidade de atos normativos, aqui o que se busca é destacar o caráter de proteção a direitos coletivos dado por estas ações constitucionais de controle, notadamente, neste caso, o direito à cultura, em seu aspecto coletivo. Trata-se, indubitavelmente, de instrumentos do mais amplo alcance, especialmente em razão da extensão de seus efeitos. Além disso, possibilita a discussão de lei em tese, o que não é possível por outras vias de tutela coletiva, como a própria ação civil pública. Dessa forma, cumpre asseverar que a ação declaratória de constitucionalidade e a ação direta de inconstitucionalidade são instrumentos do chamado controle concentrado de constitucionalidade, em contraposição ao controle difuso – este realizado nas ações comuns, sejam individuais ou coletivas, a partir do caso concreto. O que diferencia as primeiras neste ponto é justamente o seu caráter abstrato, a discussão de constitucionalidade de ato normativo em tese. Segundo José Afonso da Silva (2005, p. 49), o controle difuso ou jurisdição constitucional difusa é o exercício do controle constitucional reconhecido a todos os 369 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II componentes do poder judiciário. O controle concentrado, por sua vez, é deferido ao tribunal de cúpula ou a uma corte especial – no caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal. O artigo 103 da Constituição Federal traz o rol de legitimados à propositura destas ações – o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Governador de Estado ou do Distrito Federal, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. partido político com representação no Congresso Nacional, a confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. Prevê a ação direta de inconstitucionalidade por omissão – modalidade que se relaciona com o mandado de injunção (art. 5º, LXXI, CF), outra forma de controle de constitucionalidade por omissão, nesse caso, pela via concreta. Cabe afirmar, então, que o controle de constitucionalidade deriva do chamado princípio da supremacia das normas constitucionais. É um princípio basilar do ordenamento jurídico, de forma que todas as normas do ordenamento devem estar em conformidade à normas da Constituição, ou devem ser extirpadas deste ordenamento, formando a ideia de sistema jurídico. Zavascki (op. cit., p. 249) acentua que o traço distintivo do controle abstrato de constitucionalidade é justamente o seu caráter objetivo. Isso significa que neste processo “fazse atuar a jurisdição com o objetivo de tutelar, não direitos subjetivos, mas sim a própria ordem constitucional, o que se dá mediante solução de controvérsias a respeito da legitimidade da norma abstratamente considerada”. Complementa o autor que, neste caso, não existem partes no processo, mas entes legitimados. Além disso, as ações de controle de constitucionalidade concentrado possuem natureza dúplice: a aptidão de formular juízos de constitucionalidade ou inconstitucionalidade das normas, em seu julgamento de mérito. Isso quer dizer que a procedência da ação direta de inconstitucionalidade enseja a declaração de nulidade da norma atacada, obtendo efeitos retroativos e erga omnes e vinculantes. De outra forma, sua improcedência acarreta a declaração de constitucionalidade da norma atacada, com os mesmos efeitos. Mutatis mutandis, à ação declaratória de constitucionalidade se observa as mesmas assertivas (cf. ZAVASCKI, p. 252). Quanto aos efeitos da sentença, como se mencionou, muito se assemelham aos efeitos próprios da ação civil pública (art. 16 da lei n. 7.347/85), atuando: de forma retroativa (ex tunc), ou seja, desde a data em que a norma inconstitucional começou a produzir efeitos ou desde o momento em que deveria ter produzido efeitos a norma constitucional; erga omnes, 370 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II ou seja, seus efeitos valem contra todos, mesmo os que não fizeram parte da relação processual; e vinculante, ou seja, em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal (art. 28, da lei n. 9.868/99). 3 POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITOS CULTURAIS A efetivação aos direitos culturais, tendo em vista a análise acima exposta, depende essencialmente da elaboração e planejamento de políticas públicas e programas voltados à efetivação destes direitos, constituindo-se em prestações positivas incumbidas aos órgãos e agentes do Estado. Segundo Canotilho,os direitos sociais possuem, de um lado, uma dimensão inerente à existência do cidadão, à sua dignidade (dimensão subjetiva); e, de outro, um aspecto impositivo, voltado ao legislador, ou “deveres de prestações aos cidadãos” (CANOTILHO, 2003, p. 476). Neste sentido, Freire Júnior, dando enfoque à necessidade de efetivação dos direitos fundamentais, se propõe a conceituar a expressão “políticas públicas”: “(...) de um modo geral, a expressão pretende significar um conjunto de ou uma medida isolada praticada pelo Estado com o desiderato de dar efetividade aos direitos fundamentais ou ao Estado Democrático de Direito” (2005, p. 47). Acrescenta, ainda, que é possível se falar na existência de um direito constitucional à efetivação da Constituição, aduzindo que “a abstinência do governo em tornar concretos, reais, os fins e objetivos inseridos em tais princípios e diretrizes, constituirá, inelutavelmente, uma forma clara de ofensa à Constituição e, consequentemente, de violação de direitos subjetivos dos cidadãos” (id., p. 49) Para Bucci, a expressão “Políticas Públicas” deve ser entendida como “programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados (...) são ‘metas coletivas conscientes’(...)” (BUCCI, 2002, p. 241). A autora ressalta, ainda, que há uma interpenetração entre as esferas jurídica e política, argumentando que a comunicação entre Direito e Política é necessária, no sentido de permitir a interação entre os atores sociais, de modo que seja possível inferir deste relacionamento uma ação política coordenada e socialmente útil (ibidem). Na formulação de uma política pública eficiente deve-se buscar, portanto, o diálogo constante entre os diversos atores sociais, de forma que seja possível propiciar o alcance dos 371 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II fins instituídos pela Constituição – ou seja, a busca de um Estado igualitário, pautado nos princípios da justiça social. É interessante notar também que esta troca de informações torna possível auferir as técnicas mais adequadas, de acordo com a atividade social que se quer efetivar,“que determinadas atividades sociais são mais propícias a uma ou outra técnica” (id., p. 246). Em relação ao caráter programático de grande parte das normas definidoras de direitos sociais, cabe afirmar que muitas vezes acarreta na necessidade ulterior legiferante, ou seja, a elaboração de instrumentos normativos que regulamentem as formas de efetivação de tais direitos. Por outro lado, estas mesmas normas diversas vezes conferem a incumbência de efetivar os direitos sociais a outros agentes, que não o legislador. De fato, há uma correspondência entre a formulação da constituição dirigente, especialmente a partir da obra de José Joaquim Gomes Canotilho, e a ideias de um direito administrativo voltado para a concretização, pela Administração Pública, dos ditames constitucionais e, em decorrência, de políticas públicas. A ideia da Constituição programático-dirigente, cuja atualização deve ser feita pelo legislador, com base no conceito de reenvio dinâmico, é bastante pertinente à abordagem adotada neste trabalho. Assim como Canotilho trata da cooperação do legislador infraconstitucional na ‘determinação’ e ‘conformação material’ da Constituição, o enfoque das políticas públicas destaca o papel da administração na ‘determinação e conformação’ material das leis e das decisões políticas a serem executadas no nível administrativo. (BUCCI, 2002, p. 246) A eficácia das políticas públicas depende do grau de articulação entre os poderes e agentes públicos envolvidos na promoção destas ações. Mas também a própria sociedade civil deve trabalhar em conjunto aos atores estatais quando da elaboração de planos de governo, especialmente em relação às áreas mais sensíveis de cada população. Deve-se, então, atentar à forma de aplicação destes programas, bem como a correta aplicação dos recursos a eles destinados. Sob estas considerações, é necessário a estabelecimento de uma política cultural. Marilena Chauí defende que a política cultural deve se basear sob o aspecto de uma democracia cultural. Assim, esta seria fundada em uma definição alargada de cultura, identificando-a com símbolos, valores, ideias, objetos, práticas e comportamentos pelos quais uma sociedade define para si as relações com o espaço, a natureza, o tempo e o homem. A cultura deve ser vista como um trabalho de criação, buscando a inovação, a criatividade, como resultado de reflexão e crítica. Os sujeitos da cultura são os sujeitos históricos da sociedade, que articulam o trabalho cultural e a memória social. (CHAUÍ, 2006, p. 72) 372 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Para Silva, “A questão da política cultural está exatamente no equilíbrio que há de se perseguir entre um Estado que imponha uma cultura oficial e a democracia cultural” , sendo garantido pela própria Constituição a liberdade de criação, expressão e de acesso às fontes de cultura nacional. O autor caracteriza a ideia de democracia cultural sob os seguintes aspectos: a) não tolher a liberdade de criação, b) expressão e de acesso à cultura; criar condições para a efetivação dessa liberdade num clima de igualdade; c) favorecer o acesso à cultura e o gozo dos bens culturais à massa da população excluída (SILVA, 2001, p. 209). Ademais, conseguimos identificar, no âmbito das políticas públicas relacionadas à cultura, alguns aspectos especificamente ligados a esta, destacando-se no contexto constitucional e de efetivação dos direitos aí inscritos. Entre eles, se destacam a valorização das culturas populares em face das indústrias culturais de massa; a questão da distribuição de equipamentos culturais, de modo a proporcionar o acesso aos bens culturais; a formação do gosto, com apoio da Educação, de forma a ampliar o interesse da população em geral pelos variados bens culturais, desvinculando-a à imposição das indústrias; e, por fim, a questão do financiamento cultural, especialmente em relação às leis de incentivo à cultura. A par disso, a política cultural está indissociavelmente ligada a uma política educacional. A formação do gosto possibilita não só a criação de indivíduos capazes de fruição estética, mas também com capacidade de compreensão e crítica, de percepção de diferenças, e de relativização das próprias crenças e gostos (SILVA, 2007, p. 29). Bastos ressalta o papel da educação na proteção do patrimônio cultural,afirmando que é através dela que são transmitidos os conhecimentos básicos do indivíduo, possibilitando seu desenvolvimento intelectual, sua inserção na sociedade a qual pertence e sua formação como cidadão. “As escolas devem incentivar as manifestações culturais e artísticas dos educandos, e, sobretudo lhes ensinar o valor da preservação do patrimônio nacional cultural” (BASTOS, 1998, p. 702). No entanto, vale também lembrar a opinião de Teixeira Coelho, que afirma que há um grupo que “de boa fé, por ignorância ou descuido, confunde cultura com educação e quer transformar o teatro, o cinema, a biblioteca ou o centro de cultura em substitutivos para um sistema educacional” (COELHO, 1989, p. 10).. E, por isso, cabe a afirmação de que “a Educação ensina e faz conhecer as obras, a função da cultura é a de as fazer amar”(CAUNE, apud SILVA, 2001, p. 208) 373 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Garcia Canclini, em consideração à formulação de políticas públicas para o fortalecimento da América Latina no âmbito global, defende que para atingir este objetivo deve-se proceder à consolidação do patrimônio histórico material (monumentos, sítios arqueológicos, bosques, artesanatos) e imaterial ((línguas, tradições e conhecimentos socialmente benéficos). Aduz, ainda, que muitos países europeus sem grande expressividade no âmbito global conseguem proteger sua produção de conteúdo cultural por meio de leis de proteção, valorizando seu cinema e televisão. É impensável fortalecer o que ainda existe em termos de cultura e sociedades nacionais [...] sem empreender projetos como região que a permita crescer e relocalizar-se no mundo. Essa perspectiva significa colocar no centro as pessoas e as sociedades, não os investimentos nem indicadores financeiros ou macroeconômicos, que articulam, de forma difusa, a América Latina. A pergunta-chave não é com o que ajustes econômicos internos vamos pagar melhor as dívidas, mas que produtos materiais e simbólicos próprios (e importados) podem melhorar as condições de vida das populações latinoamericanas, e potencializar nossa comunicação com os demais (GARCIA CANCLINI, 2003,p. 33-34). Nesse sentido, o autor defende que deve se proceder à consolidação do patrimônio histórico material (monumentos, sítios arqueológicos, bosques, artesanatos) e imaterial ((línguas, tradições e conhecimentos socialmente benéficos). Afirma, ainda, que muitos países europeus sem grande expressividade no âmbito global conseguem proteger sua produção de conteúdo cultural por meio de leis de proteção, valorizando seu cinema e televisão. 4 A ESTRUTURA ADMINISTRATIVA, LEGISLAÇÃO DE PROTEÇÃO, PROMOÇÃO E INCENTIVO À CULTURA, E A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 71/2012 A estrutura administrativa da cultura é o conjunto de órgãos que, em maior ou menor grau, aplica as políticas voltadas à preservação, promoção e acesso à cultura. Dessa forma, estes órgãos são responsáveis pela criação de programas, prêmios, bolsas, editais, e outros instrumentos para a concretização do direito à cultura, tal como ele é delineado na Constituição Federal, bem como nas legislações federais, estaduais e municipais. Fazem parte deste conjunto, no âmbito federal, o Ministério da Cultura, as Secretárias estaduais e municipais da cultura, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, as fundações, agências voltadas à cultura, e outras organizações de terceiro setor, podendo incluir entre estas entidades como o SESC, SENAI, SESI, e outras, que possuem, em alguns estados, importante papel na produção cultural. 374 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A estrutura organizacional do Ministério da Cultura é regulamentada, atualmente, pelo Decreto n. 7.743/2012. Segundo o Anexo I deste diploma, ao Ministério da Cultura compete a Política Nacional da Cultura e a proteção do patrimônio histórico e cultural. Sua estrutura organizacional é descrita pelo art. 2º do Anexo I do Decreto n. 7.743/2012, dividindo-se em órgãos de assistência direta e imediata ao Ministro de Estado; órgãos específicos singulares; órgãos descentralizados: (Representações Regionais); órgãos colegiados; entidades vinculadas. Dentre estas últimas, vale mencionar que estão incluídas as autarquias, como o IPHAN, a ANCINE e o Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM e as fundações, como a Fundação Casa de Rui Barbosa – FCRB, a Fundação Cultural Palmares – FCP, a Fundação Nacional de Artes - FUNARTE e a Fundação Biblioteca Nacional - FBN. Portanto, a estrutura do Ministério da Cultura é modelada de acordo com os seus objetivos, quais sejam, a formulação de uma política nacional da cultura e a proteção do patrimônio histórico e cultural. É importante mencionar que estas atribuições são decorrentes do disposto nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal. Além disso, a legislação infraconstitucional forma um sistema legal da cultura, criando mecanismos para implementação e efetivação destes direitos. A lei n. 8.313 de 1991, conhecida como lei Rouanet, configura um dos mais importantes diplomas legislativos neste âmbito. Ela estabelece os princípios de políticas culturais no âmbito federal, bem como institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), com o objetivo de captar e canalizar recursos para o setor. Além disso, prevê a implementação do PRONAC, através do Fundo Nacional da Cultura (FNC), dos Fundos de Investimento Cultural e Artístico (FICART) e dos incentivos a projetos culturais. É nesse sentido que Silva (2007, p. 173), destaca que o sistema de financiamento cultural se dá por três mecanismos: os recursos orçamentários, compostos por recursos destinados ao FNC, somados aos recursos orçamentários das Instituições Federais de Cultura (MINC, entidades vinculadas e Fundações); os incentivos fiscais, direcionados às pessoas físicas e jurídicas, mediante dedução de parcelas de impostos para doação e apoio direto a 375 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II atividades culturais; e os fundos de investimentos, FICART e FUNCINE3, ainda de pouca efetividade. A modalidade do incentivo fiscal implica na renúncia de parte da receita fiscal pelo Estado, possibilitando a alocação de recursos para a cultura por meio do patrocínio ou do mecenato. Os incentivos fiscais são parte do sistema de financiamento que se constituem em instrumento do poder público par direcionar recursos privados a seguimentos estratégicos (id., p. 199). Vale observar que o artigo 4º da lei n. 8.313 fixa critérios aos quais deverão obedecer os projetos culturais submetidos à análise do Ministério da Cultura, para que possam receber recursos do Fundo Nacional da Cultura. Além disso, as Instrução Normativa n. 1 de 2012 do Ministério da Cultura, em conformidade com a lei n. 9.874, estabelecem procedimentos para apresentação, execução, acompanhamento e prestação de contas das propostas culturais, relativos aos mecanismos de incentivos fiscais do PRONAC. A lei n. 8.685/1993, (lei do Audiovisual), com as alterações dadas pela Medida Provisória n. 2.228 de 2001, cria o Programa Nacional de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Nacional (Prodecine), a Agencia Nacional do Cinema (ANCINE) e o Fundo de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional (FUNCINE). O objetivo principal desta lei é a criação de mecanismos de fomento à produção audiovisual no Brasil, especialmente na forma de renúncia fiscal do Estado, via dedução fiscal do imposto sobre a renda de particulares. A aprovação de propostas de projetos de produção audiovisual será submetida à ANCINE, e a agência cuidará da destinação dos recursos via fomento direto ou indireto. O Plano Nacional da Cultura (PNC), previsto no 3º do artigo 215, da Constituição Federal, foi instituído recentemente pela lei n. 12.343/2010, que cria, também o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais - SNIIC. Em conformidade ao referido dispositivo constitucional, que exige a duração plurianual do PNC, o artigo 1º da lei n. 12.343 prevê sua duração pelo período de 10 (dez) anos, revisado periodicamente, tendo sua primeira 3 Lei n. 8.685 de 1993 (lei do Audiovisual), com as alterações dadas pela Medida Provisória n. 2.228 de 2001, cria o Programa Nacional de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Nacional (Prodecine), a Agencia Nacional do Cinema (ANCINE) e o Fundo de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional (FUNCINE) (SILVA, 2007, p. 173). 376 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II revisão a ser realizada após 4 (quatro) anos da publicação da lei (art. 11). Este Plano estabelece os princípios, objetivos e atribuições do poder público na elaboração de políticas culturais, em âmbito nacional, e tem por finalidade o planejamento e implementação de políticas públicas de longo prazo, voltadas à proteção e promoção da diversidade cultural. O SNIIC é um instrumento de controle, monitoramento e gestão de políticas culturais, obrigando a União, os Estados, Municípios e Distrito Federal à sua atualização permanente (arts. 9 e 10). Outro recente diploma legislativo para a cultura é a lei n. 12.761/2012, que institui o Programa de Cultura do Trabalhador, criando também o “vale-cultura”. Trata-se de uma tentativa de ampliação do acesso à cultura, para permitir, estimular e incentivar o uso dos bens culturais pela população. Nesta lei, o sentido que se dá à cultura é o vinculado às atividades de cunho artístico e cultural, em especial às artes visuais, artes cênicas, audiovisual, literatura, humanidades e informação, música e patrimônio cultural. O vale-cultura é destinado aos trabalhadores que perceba até 5 (cinco) saláriosmínimos mensais, e para os que percebam além deste limite, desde que garantido à totalidade daqueles outros. Além disso, o valor despendido para aquisição do vale-cultura poderá ser deduzido do imposto de renda pela pessoa jurídica beneficiária tributada com base no lucro real, no limite de 1% do imposto sobre a renda devido; poderá deduzir também como despesa operacional neste mesmo caso, desde que inscrita no Programa de Cultura do Trabalhador. Estas deduções serão aplicadas em relação ao valor distribuído ao usuário (art. 10, §§1º a 4º, da lei n. 12.761). Finalmente, a Emenda Constitucional n. 71 de 29 de novembro de 2012 acrescentou o art. 216-A à Constituição Federal, cria a previsão do Sistema Nacional de Cultura, instituindo um “processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais” (Art. 216-A, caput, CF). Trata-se de um sistema descentralizado e organizado em regime de colaboração, fundamentado nas diretrizes do Plano Nacional de Cultura. O §1º do referido artigo elenca os princípios estruturantes do Sistema Nacional de Cultura, destacando de forma central a diversidade das expressões cultura e a universalização do acesso aos bens e serviços culturais. A principal característica destes princípios, sobressaindo-se especialmente por sua consagração em nível constitucional, são a 377 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II democratização dos processos decisórios, com participação e controle social (inciso X), a descentralização (inciso XI), e a ampliação progressiva dos recursos dos orçamentos públicos para a cultura (inciso XII). O §2º estrutura o Sistema Nacional da Cultura em cada nível federal, devendo, por isso, cada ente observar esta estrutura na elaboração dos respectivos Sistemas. Os §§3º e 4º, finalmente, preveem a edição de leis em cada nível da Federação, portanto, em âmbito federal, estaduais, municipais e no Distrito Federal, por leis próprias. Nesse sentido é que o Ministério da Cultura publicou o Guia de Orientações para os Estados (2011) e o Guia de Orientações para os Municípios (2011), para implementação dos respectivos Sistemas Estaduais e Municipais de Cultura, disponibilizando, inclusive, modelos para projetos de lei. 5 CONCLUSÃO O Direito à Cultura possui um caráter eminentemente coletivo, o que não exclui o direito subjetivo individual a que faz jus cada cidadão. Desta característica sobressalente, deriva um regramento especial para a sua proteção: de um lado, um sistema judicial de proteção a direitos coletivos, que possui instrumentos próprios a defesa destes direitos, assegurando maior efetividade na sua tutela. De outro, a estrutura administrativa e legal voltada à cultura sustenta um sistema jurídico de proteção à cultura. No referido sistema, incluímos o Ministério da Cultura, bem como as entidades a ele vinculadas, como o IPHAN, a ANCINE, as Fundações, já referidas acima; os instrumentos previstos na legislação cultural, como: o Plano Nacional da Cultura previsto no 3º do artigo 215, da Constituição Federal, foi instituído recentemente pela lei n. 12.343/2010; o Programa Nacional de Apoio à Cultura, implementado pelo Fundo Nacional da Cultura, bem como pelos Fundos de Investimento Cultural e Artístico (FICART) (lei n. 8.313/91); o Programa de Cultura do Trabalhador, criado pela lei n. 12.761/2012; o Programa Nacional de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Nacional (Prodecine), a Agencia Nacional do Cinema (ANCINE) e o Fundo de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional (FUNCINE), todos criados pela lei n. 8.685/1993, (lei do Audiovisual), com as alterações dadas pela Medida Provisória n. 2.228 de 2001. Finalmente, o Sistema Nacional da Cultura, que ganha relevo especial em razão da Emenda Constitucional n. 71/2012, que incluiu à Carta o art. 216-A. Vale observar que o que se pretende é a implementação de um sistema descentralizado e organizado em regime de 378 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II colaboração, que visa a promoção e gestão conjunta da cultura por todos os entes federados. Além disso, pode-se notar um intuito maior de universalização do acesso aos bens e serviços culturais. Observe-se que, até o presente momento, alguns estados e municípios já elaboraram a legislação específica prevista neste dispositivo constitucional, tais como: o Sistema Estadual de Cultura do Acre, criado pela lei estadual n. 2.312, de 25 de outubro de 2010; o Sistema Estadual de Cultura de Rondônia, instituído pela lei n. 2.746, de 18 de maio de 2012; a Política Estadual de Cultura, da Bahia, prevista na lei n. 12.365 de 30 de novembro de 2011; o Sistema Estadual de Cultura do Ceará, instituído pela lei n. 13.811, de 16 de agosto de 2006; o Sistema Municipal de Cultura de Ananindeua (PA) – SMC, de instituído pela lei municipal n. 2.518, de 1º de julho de 2011; o Sistema Municipal de Cultura de Santa Bárbara D’oeste (SP), criado pela lei municipal n. 3.373 de 13 de março de 2012; o Sistema Municipal de Cultura de Rio Branco (AC), instituído pela lei n. 1.676 de 20 de dezembro de 2007; o Sistema Municipal de Cultura de Boca do Acre – SMC, pela lei n. 003 de 28 de junho de 2012; o Sistema Municipal de Cultura de Belém, pela lei n. 8.943, de 31 de julho de 2012. Portanto, o cenário brasileiro atual promete uma nova perspectiva em relação aos direitos culturais, da mesma forma que outros direitos coletivos e sociais têm ganhado espaço – o que se pode notar, por exemplo, em relação ao meio ambiente (art. 225, CF), objeto de atenção especial em 2012, quando da realização da Conferência Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (CNUDS) no Rio de Janeiro (Rio +20). Vislumbra-se, assim, oportunidade à discussão e questionamentos a respeito das políticas e programas com aquele objetivo, ou seja, uma democracia cultural, e a consagração dos objetivos previstos nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal. 379 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II BIBLIOGRAFIA BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil (promulgada em 5 de outubro de 1988), Vol. 8. São Paulo, 1998, 9 v. BRASIL. Constituição da Republica Federativa. Congresso Nacional. Brasilia, 1988. BRASIL. 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Restabelece princípios da Lei n° 7.505, de 2 de julho de 1986, institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) e dá outras providências. Congresso Nacional, 1991. 380 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II BRASIL. Lei n. 8.685 de 1993. Lei do Audiovisual. Cria mecanismos de fomento à atividade audiovisual e dá outras providências. Congresso Nacional, 1993. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003. CHAUÍ, Marilena. Cidadania Cultural: o direito à cultura. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006, 147 p. COELHO, Teixeira. O que é Ação Cultural?. São Paulo: Brasiliense, 1989, 96 p. DIDIER JR, Fredie; ZANETI JR, Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. v.4. 3.ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2009. FREIRE JÚNIOR, Américo Bedé. 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Tese de doutorado em Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 382 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II O TRABALHO PENOSO DOS BANCÁRIOS: ADOECIMENTO, GRAVOSIDADE E DESIQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES LABORAIS José Ricardo Ceatano Costa1 Liane Francisca Hüning Birnfeld2 RESUMO Este artigo busca contribuir na construção da configuração do trabalho penoso, inscrito no rol dos direitos do art. 7º, inciso XXIII, da Constituição Federal de 1988, ainda não regulamentado. Busca-se inserir, entre as muitas atividades que podemos, na atualidade, considerarmos como penosas, o trabalho dos bancários e similares. Esta atividade, diante das condições de trabalho que se apresentam na nova configuração do mercado de trabalho e na fase atual do capitalismo, passa a apresentar contornos ainda não vislumbrados, os quais pretende-se investigar. Exemplo disso são as lesões por esforços repetitivos (LER/DORT), as doenças psicossomáticas e, especialmente, as diversas síndromes trazidas pela organização do trabalho nesse novo momento do capitalismo, tais como a síndrome de esgotamento profissional, conhecida como Síndrome de Burnout, do pânico, do humor etc). Além disso, vislumbram-se crescentemente os casos de assédio (moral e sexual) no ambiente do trabalho, pouco ainda investigado. PALAVRAS-CHAVE: Mundo do Trabalho; Trabalho Nocivo; Direitos Sociais. THE DIFFICULT OF BANK EMPLOYEES JOBS: SICKNESS, SEVERITY AND INSTABILITY IN LABOR RELATIONS ABSTRACT This article pretends to contribute on building the painful work scenario, that is mentioned on Federal Constitution of 1988, at article 7º, XXIII, that is still unregulated. It intends to consider bank employees jobs and similar as one of the difficult activities we can find nowadays. In front of the new work conditions at the labor market and against the actual capitalism scenario, those activities start to present not glimpsed shapes, that we pretend do study. To exemplify there are Repetitive Strain Injuries, 1 Professor da FADIR/FURG, Mestre em Direito (UNISINOS), Mestre em Serviço Social (PUCRS), Pósdoutor em Educação Ambiental no PPGEA/FURG. Endereço Eletrônico: [email protected]. 2 Professora da FADIR/FURG e da Faculdade de Direito da UCPel. Mestre em Direito pela UFSC e Doutoranda em Direito na PUCRS, com Bolsa da CAPES, Endereço Eletrônio: [email protected]. 383 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II psychosomatic illness and especially the work syndromes originated by work organization on the actual capitalism period, like Burnout Syndrome. Furthermore , it is increasing the cases of sexual harassment or bullying in the workplace, that is still poorly investigated. KEYWORDS: Workplace; Injurious Jobs; Social Rights. SUMÁRIO INTRODUÇÃO I - O Ambiente do Trabalho como Parte do Meio Ambiente Como um Todo II – Gênese da Aposentadoria Especial III – Labor e Nocividade: aproximações com o conceito de trabalho penoso IV - A Penosidade Vista pela Ótima do Trabalhador Bancário CONCLUSÃO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS INTRODUÇÃO Este artigo pretende investigar as condições (e limites) de possibilidade da aposentadoria especial aos trabalhadores em estabelecimentos bancários lato sensu, daquilo que podemos denominar de “trabalho penoso”. A possibilidade da proteção ao trabalho penoso, por sua vez, constou do catálogo dos direitos do art. 7º, em seu inc. XXIII, da Constituição Federal de 1988. Ocorre que esse direito ainda não foi regulamentado pelo legislador ordinário (após duas décadas da vigência do Texto Maior). Registre-se, por oportuno, que a aposentadoria especial, como um todo, foi a mais afetada nas últimas reformas previdenciárias. As profundas alterações no/do mundo do trabalho conduzem a uma sociedade cada vez mais complexa e automatizada, fato que pode ser constatado se 384 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II analisarmos a distribuição do trabalho nas agências bancárias antes e após a denominada “terceira revolução industrial”. O medo, o sofrimento e as pressões do mundo do trabalho passaram a desencadear patologias até então não conhecidas, conduzindo os trabalhadores à crise psíquica e a doenças mentais (DEJOURS, 2007, p. 141). Neste passo é que se entende a dicção primeva do artigo 202, inc. II, da Carta Magna de 1988, em que o legislador constituinte quis proteger a aposentadoria por tempo de serviço reduzido daqueles misteres sujeito a condições especiais, sejam elas periculosas, insalubres ou penosas. Pretende-se demonstrar que mesmo após as alterações introduzidas pelas Emendas Constitucionais nº. 20/98 e 41/03, de cuja constitucionalidade torna-se no mínimo questionável, mantém-se a possibilidade da aposentadoria especial para todas as atividades que são nocivas à saúde dos trabalhadores. No caso específico dos bancários, defende-se a tese da presença do agente nocivo - penosidade - em seus labores habituais. Para tanto, buscou-se pesquisas científicas já publicadas que demonstram a existência desse elemento nocivo à saúde dos trabalhadores bancários. I - O AMBIENTE DO TRABALHO COMO PARTE DO AMBIENTE COMO UM TODO A Constituição Federal de 1988, na dicção dos artigos 225, caput, e 200, incisos II e VIII, ofereceu um norte até então inusitado: a compreensão do ambiente do trabalho como parte integrante do meio ambiente ou simplesmente do "ambiente" como parece ser o mais correto. No primeiro artigo citado o legislador garantiu a todos os cidadãos um ambiente ecologicamente equilibrado, sendo dever do Poder Público e da sociedade como um todo os esforços para alcançar esse objetivo. Já no artigo 200 da CF/88, destinado ao Sistema Único de Saúde (SUS), este passa a ter a incumbência de executar as ações de vigilância sanitária epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador, enquanto no sétimo expressamente encontramos que é seu mister "colaborar na proteção 385 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho". Estes dispositivos, conjugados com outros de natureza trabalhista e de proteção ao trabalhador, determinam o sistema jurídico de tutela do meio ambiente do trabalho. (GARCIA, 2011, p. 19). Não deve pairar nenhuma dúvida, a partir do Texto Constitucional, do pertencimento do ambiente do trabalho ao ambiente como um todo. Socorrendo-se à clássica classificação do ambiente ou meio ambiente, podemos dividi-lo em: a) NATURAL ou FÍSICO; b) CULTURAL; c) ARTIFICIAL e, d) MEIO AMBIENTE DO TRABALHO, sendo este o próprio local em que é realizada as atividades do trabalhador (ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2006, p. 29). Como aponta Raimundo Simão de Melo, "a definição geral do meio ambiente abarca todo cidadão e, a de meio ambiente do trabalho, todo cidadão que desempenha alguma atividade, remunerada ou não ... porque realmente todos recebem a proteção constitucional de um ambiente de trabalho adequado e seguro, necessário à sadia qualidade de vida." (MELO, 2008, p. 27). Logo, segundo este mesmo autor, o é fundamental que tenhamos um meio ambiente do trabalho sadio, edificante, respeitoso, salubre, cuja não observância destas condições levam ao desrespeito à toda a sociedade (MELO, 2008, p. 28). A Organização Internacional do Trabalho - OIT, também apontou a importância da saúde e segurança dos trabalhadores quando, na Convenção 155 de 1981, focaliza em seu artigo terceiro como meio ambiente do trabalho "todos os locais onde os trabalhadores devem permanecer ou para onde têm que se dirigir em razão do seu trabalho, e que se acham sob o controle direto ou indireto do empregador." (FERREIRA, 2004, p. 50). Com efeito, se não há dúvidas no enquadramento do ambiente do trabalho como parte do meio ambiente no sentido amplo, não paira dúvidas de que este ambiente se apresenta de forma nociva, com efeitos deletérios, aos trabalhadores em geral. Trazemos, nesse trabalho, o caso específico dos trabalhadores bancários, mas certamente vários dos aspectos aqui abordados podem servir de análise também para tantas outras categorias profissionais: trabalhadores da saúde, motoristas, entre tantos outros. 386 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II É com esse intuito, portanto, que passamos à análise das condições que julgamos penosas, no dia a dia dos trabalhadores bancários. II – GÊNESE DA APOSENTADORIA ESPECIAL A previsão da aposentadoria ordinária por tempo de serviço, cujo desdobramento originou a aposentadoria especial sob análise, resultou de longa luta dos trabalhadores na busca deste benefício. Despontam, nesta perspectiva histórica, justamente os bancários que, na greve histórica de 1933. Na pauta de reivindicações encontramos a aposentadoria ordinária com 30 anos de serviço ou 50 anos de idade, além de outros pontos reivindicatórios (COHN, 1980, p. 23). Em setembro de 1934, o governo assina decreto criando o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Bancários (IAPB), contemplando não somente esta modalidade de benefício como a aposentadoria por idade. Registre-se, por oportuno, que o IAPB despontava como um dos principais Institutos Previdenciários neste período, pois além de reivindicar e garantir estes benefícios fornecia a todos os seus associados serviços médicos. Fato este que não é de pequena grandeza, tendo-se em conta que o maior Instituto, o dos Industriários (IAPI), somente garantia a assistência médica a 30% dos seus sócios. Pela sistemática da LOPS de 1960, o benefício da Aposentadoria por Tempo de Serviço foi garantido a todos os trabalhadores que tivessem 30 e 35 anos de labor (mulheres e homens, respectivamente), embora restasse um limitador de idade de 55 anos (para homens e mulheres). A Aposentadoria Especial, por sua vez, igualmente restou assegurada aos 15, 20 ou 25 anos de labor em atividade considerada nociva à saúde dos trabalhadores, dependendo do mister que se ocupassem, contendo, igualmente, o requisito etário de 50 anos de idade (para ambos os sexos, conforme previsto no art. 31, da LOPS de 1960). 387 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A subcomissão de seguro social que elaborou a Lei Orgânica da Assistência Social – LOPS, neste particular, assim justificou a redução do tempo de labor para esta modalidade de benefício: “Dúvida não paira que as profissões por sua natureza penosas (como a de ferroviários, propriamente dito) ou insalubres demandam uma idade limite inferior à que normalmente é adotada nos planos de seguro-velhice. Tais misteres sujeitam o segurado a um desgaste bem mais acentuado que no comum das profissões, tornando as mais das vezes praticamente inatingível o limite normal de sessenta e cinco anos. É justo, indubitavelmente, que para tais misteres se institua um seguro velhice de caráter excepcional, com a idade limite reduzida, como terminada o artigo 2º da Lei nº. 593.” (ROSA, s/d, p. 60/61). No Decreto nº. 48.949-A, de 19 de setembro de 1960, que aprovou o Regulamento da LOPS de 1960, restou igualmente assegurado o direito à Aposentadoria Especial (art. 65 e 66), referendo no Quadro nº. II, deste Decreto, as atividades que seriam insalubres, periculosas ou penosas. A discussão acerca das atividades que devem ser consideradas nocivas à saúde dos trabalhadores sempre foi objeto de controvérsia, na qual o Judiciário foi chamado, historicamente, a pronunciar-se. Frise-se, por oportuno, que os agentes periculosos, insalubres ou penosos não são ilididos pelo uso dos IPI e IPC, muito embora sirvam os mesmos para evitar acidentes do trabalho, eis que não ocorre a sua neutralização, o que virá ocorrer somente com a eliminação do risco3 O entendimento de que o rol das atividades nocivas deva ser exaustivo, e não meramente exemplificativo, extrapola a exegese que deve ser feita da legislação, sempre quando esta visa abordar a totalidade de uma determinada realidade. Isso porque, como é sabido, a realidade nunca se dá ou aparece em sua totalidade, sendo necessário uma busca constante e profunda para que se possa, paulatinamente, a 3 No mesmo sentido a Súmula n. 9. da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais, que assim dispôs: “O uso de Equipamento de Proteção Individual (EPI), ainda que elimine a insalubridade, no caso de exposição a ruído, não descaracteriza o tempo de serviço especial prestado”. 388 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II (des)cobrindo. Como poderia, neste entendimento, o legislador ter abrangido, quando da montagem do rol das atividades especiais, a sua totalidade diante da complexidade que se apresenta? Como poderia ter contemplado no ínsito do rol das atividades especiais as novas atividades e funções que surgem diuturnamente? Isso, na verdade, é totalmente impossível. Neste passo a importância das decisões judiciais, que buscam, na análise de cada caso em sua concreticidade e faticidade, preencher as lacunas constantes na legislação. É assim que a jurisprudência, especialmente a construída em primeiro e segundo graus, vem construindo a história dos direitos sociais no Brasil, como é o caso da aplicação das atividades especiais para os trabalhadores que laboram em telefonia. Com a possibilidade da transformação do tempo especial em comum, significativa parcela dos trabalhadores em telefonia passou a ter direito à aposentadoria por tempo de serviço (se preencherem os critérios pré-Emenda Constitucional n. 20/98) ou por tempo de contribuição (após a referida EC), amenizando as agruras pelas quais passou a enfrentar, mormente quando, pela idade considerada avançada, sob o prisma do mercado, como se viu, não mais conseguiu emprego formal, ou, como também se verificou, passou a fazer parte da gama imensa dos trabalhadores informais ou precarizados. Frise-se que o STF, em se tratando de casos concretos que buscam a aposentadoria especial, está julgando conforme a Constituição, neste diapasão da fundamentalidade da aposentadoria especial. Isso porque a Constituição Federal de 1988, na redação original do seu artigo 202, inciso II, assegurava aposentadoria “após trinta e cinco anos de trabalho ao homem e após trinta à mulher e em tempo inferior se sujeitos ao trabalho sob condições especiais, que prejudicassem a saúde ou a integridade física definidas em lei.” Recentemente, tanto a EC n° 20/98 como a EC n° 47/05 alteraram significativamente a existência material deste benefício, não com o intuito de aperfeiçoá-lo, pelo contrário, de tornar inviável a sua concessão. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, em 30 de agosto de 2007, ao julgar o Mandado de Injunção n° 721, em que uma servidora pública da área da saúde, 389 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II que trabalha sob condições especiais (insalubres), requer a aposentadoria especial, com fulcro no art. 202, inc. II da CF/88, assim entendeu: “Não há dúvida quanto à existência do direito constitucional para a adoção de requisitos e critérios diferenciados para alcançar a aposentadoria daqueles que trabalham sob condições especiais, e em funções que prejudiquem a saúde e integridade física”. 4 Na decisão supra que foi julgada por unanimidade, o Ministro-relator ressaltou ainda que “há de se conjugar o inciso 71 do artigo 5º da Constituição Federal, com o parágrafo 1º do citado artigo, a dispor que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais constantes da Constituição têm aplicação imediata”, reconhecendo o caráter de fundamentalidade do direito ao benefício da aposentadoria especial quando atendidos os critérios de nocividade. Neste contexto, tornam-se questionável, sob o ponto de vista constitucional, as alterações neste benefício advindas com a EC 20/98 e 47/05, em virtude dos limites impostos ao legislador constituinte reformador. Desse modo, se o benefício da aposentadoria especial é um direito fundamental social5, de cunho prestacional, implica reconhecer que nenhuma Emenda Constitucional ou lei infraconstitucional poderá dispor no intuito de desconfigurá-lo enquanto tal. Aliás, o critério de penosidade, inscrito no Catálogo dos direitos do art. 7, em seu inc. XXIII, ainda não foi regulamentado pelo legislador ordinário (passada duas décadas da vigência do Texto Maior)6. 4 Conforme asseverou o Min. Marco Aurélio Mello. Conf. página do STF na Internet: <http://www.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas/ler.asp?CODIGO=241160&tip=UN>acessado em 27/08/08. 5 Embasados na premissa de que todas as normas definidoras dos direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata e carga eficacial suficientes para o seu cumprimento, sem limitar estes direitos ao rol constante do Catálogo do artigo sétimo, da CF/88 (SARLET, 2004, passim), embora careçam, em se tratando de direitos sociais fundamentais, de reconhecimento infraconstitucional (FREITAS, 2004, p. 209), entendemos que o direito à aposentadoria por tempo de serviço especial não pode ser revista, retirada do rol dos direitos sociais via Emenda Constitucional ou por lei infraconstitucional. 6 Embasados na premissa de que todas as normas definidoras dos direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata e carga eficacial suficientes para o seu cumprimento, sem limitar estes direitos ao rol constante do Catálogo do artigo sétimo, da CF/88 (SARLET, 2004, passim), embora careçam, em se tratando de direitos sociais fundamentais, de reconhecimento infraconstitucional (FREITAS, 2004, p. 209), entendemos que o direito à aposentadoria por tempo de serviço especial não pode ser revista, retirada do rol dos direitos sociais via Emenda Constitucional ou por lei infraconstitucional. 390 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Além deste aspecto, é notável a intenção sempre presente, em cada processo de reforma constitucional ou infraconstitucional, de descaracterizar a aposentadoria especial em sua existência material e concreta. É neste passo que se compreende a alteração de paradigma introduzida pela Lei nº. 9.032/95 quando deu nova redação ao artigo 55 da Lei nº. 8.213/91, terminando com o critério de categoria profissional, até então vigente, instituindo um novo critério em que caberá aos trabalhadores a prova do exercício de seus misteres enquanto nocivos. O que vale dizer que, a partir desta lei, caberá ao “segurado comprovar o tempo de trabalho permanente, não ocasional nem intermitente, exposto aos agentes nocivos químicos, físicos, biológicos ou associação de agentes prejudiciais à saúde ou à integridade física” dos trabalhadores. SALIBA; CORRÊA, 2000, p. 181). Pontuam-se, no próximo item, as razões e fundamentos nos quais se ancora a compreensão da penosidade do labor das atividades exercidas pelos bancários. III – LABOR E NOCIVIDADE: APROXIMAÇÕES COM O CONCEITO DE TRABALHO PENOSO Se a configuração dos agentes insalubres7 e periculosos8 foram de fácil compreensão, eis que tomados da Consolidação das Leis do Trabalho de 1943, a idéiabase do que sejam estas atividades, o labor penoso não restou assim configurado. Por óbvio, que a natureza dos agentes supra possuem uma conotação no Direito Laboral diferentemente do Direito Previdenciário, não havendo uma relação necessária, ou pelo menos direta, entre ambos: o que significa dizer que o fato de um trabalhador receber de seu empregador um dado adicional não implica, tacitamente, no reconhecimento de mister ensejador à aposentadoria especial. Ou vice-versa. 7 Conforme o art. 189 da CLT, “serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos”. 8 No artigo 193, também da CLT, encontramos a seguinte disposição: “São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem o contato permanente com inflamáveis ou explosivos em condições de risco acentuado”. 391 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II De outro lado, ninguém duvida de que o fato de o segurado/empregado perceber um adicional de insalubridade (independente do grau) ou de periculosidade (em grau único, de 30% sobre o seu salário) já seja um indício da existência de algum elemento nocivo à saúde do trabalhador. Com isso, afirma-se que tanto a insalubridade como a periculosidade sempre foram mais fácil de ser avaliadas, o que não ocorre com a penosidade, seja no aspecto trabalhista ou previdenciário, do que seja e consista esse tipo de labor. Com efeito, no próprio Quadro II, em seu segundo item, da LOPS de 1960, encontra-se uma amostra incipiente do trabalho penoso como sendo aqueles serviços que demandam excessivo esforço físico em relação a condições normais de trabalho ou que exigem posição viciosa do organismo. De outro lado, a doutrina e a jurisprudência estão preenchendo esta lacuna, no sentido de definir o que é trabalho penoso. Neste passo, vale citar a definição de Wladimir Novaes Martinez, para quem: “Penosidade é área avara em doutrina, não sendo fácil es miuçar seu significado, embora comuns as funções onde presente. Pode ser considerada penosa a atividade produto produtora de desgaste no organismo, de ordem física ou psicológica, em razão da repetição dos movimentos, con dições agravantes, pressões e tensões próximas do indivi duo. Dirigir veículo coletivo ou de transporte pesado, habi tual e permanentemente, em logradouros com tráfego in intenso é exemplo de desconforto causador de penosida de.” (MARTINEZ, 2001, p. 30). Nesse sentido, podemos afirmar que a penosidade geralmente é uma "doença invisivel", não necessariamente deixando seqüelas aparentes, o que dificulta deveras a sua configuração aparente, sendo velada e sorrateira. As suas conseqüências, tal como se mostra nos casos de LER/DORT, somente o tempo deixará à mostra. Mas seus efeitos são implacáveis. Destaca-se que a melhor definição do que seja a penosidade dada pela doutrina, ancora nos estudos de Wladimir Novaes Filho, quando afirma: “Estar-se-á diante da penosidade quando atividade laborativa exigir por parte do exercente um empenho 392 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II físico ou psicológico que gere desgaste acima do normal de todo trabalhador. Aliás, esse raciocínio deriva da própria finalidade da aposentadoria especial, qual seja entender que o ser humano submetido ao trabalho penoso tem um desgaste maior; deverá em contraposição aposentar-se mais cedo. Percebe-se, assim, que o trabalho penoso é aquele que subtrai, exclusivamente, as energias do trabalhador, repetindo-se, tanto física como psicologicamente. Não existe, como no caso da periculosidade, definição legal a respeito. Cabe à jurisprudência e à doutrina esmiuçar esse conceito.” (NOVAES FILHO, 2005, p. 148). Quiçá nenhuma atividade reúna, hodiernamente, tantos atributos que caracterizam o labor penoso como a atividade dos bancários. A saber, alguns destes atributos: a) processos de LER/DORT9 devido à utilização intensa do computador e similares; b) precariedade das condições de trabalho, com ruídos elevados, temperatura desagradável, parca iluminação, somente para citar alguns dos problemas mais frequentes; c) exposição do organismo a jornadas de trabalho saturantes, com acúmulo de funções e de responsabilidades etc.; d) forte pressão psíquica, seja pelas metas que se exige seja por assédio moral, pelas pressões oriundas da concorrência ou pela introdução de novas tecnologias, tudo isso aliado ao medo constante dos assaltos cada vez mais constantes; e) ambiente de trabalho inapropriado, sem obediência do disposto na NR 17, que ordena alguns procedimentos necessários a um ambiente saudável, ergonomicamente correto, com mesas, escrivaninhas e guichês com bordas arredondadas, com altura regulável, com apoio completo do antebraço ou sobre o braço da cadeira, além do monitor regulável, preferencialmente em nível dos olhos; f) Doenças pisicossomáticas, fruto de uma organização social e cultural deletéria ao organismo dos trabalhadores, conduzindo ao adoecimento mental; g) o esgotamento Entende-se por Lesões por Esforços Repetitivos ou Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (LER/DORT) uma série de doenças interconectadas, mormente as afecções ocasionada nos músculos, fáscias musculares, tegumentos, tendões, ligamentos, articulações, vasos e nervos sanguineos. Este quadro pode variar do Grau I, em que o trabalhador sente uma sensação de peso e desconforto no membro afetado, até o Grau IV, em que sente uma forte dor, sempre contínua, perdendo a força e os movimentos, com comprometimento das atividades da vida diária. (Conf. Saúde do Trabalhador Bancário: conhecer para Transformar. Federação dos Bancários do RGS. Porto Alegre, 2007. 9 393 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II profissional, denominado atualmente como Síndrome de Burnout, doença esta que ultrapassa o estresse devido a cronicidade com que se apresenta, entre outros. Como constata Mayte Amazarray, no caso dos bancários, seus trabalhos implicam em um desgaste mental provocado por suas atividades, cuja execução das tarefas exigem alto esforço cognitivo, de atenção, memorização e de responsabilidade, além de físico, devido aos esforços repetitivos, posturas estáticas, acuidade visual, razão pela qual, historicamente, esta categoria teve sua jornada laboral reduzida para seis horas diárias (AMAZARRAY, 2011, p. 102). Diante do exposto, pelo que se observa do trabalho dos bancários, como se verá alhures, suas atividades não podem ser consideradas essencialmente insalubres ou periculosas, como já vem decidindo a jurisprudência pátria, mas sim penosas.10 IV - A PENOSIDADE VISTA PELA ÓTICA DO TRABALHADOR BANCÁRIO Registram-se, destarte, alguns destes indicativos cuja cientificidade é de todo comprovada, em virtude dos métodos de pesquisa e seriedade com que foram organizadas. 10 10 Conf. neste sentido, a ementa do julgado que segue: Previdenciário. Processo Civil. Atividade Especial. Bancário. Não Comprovação de Exposição a Agentes Agressivos. Manutenção Integral da Sentença Recorrida. (...) 4. Infere-se da conclusão do laudo pericial realizado que a atividade exercida pela autora no período aludido “não é considerada como insalubre tampouco periculosa”, considerando a inexistência no local de trabalho de quaisquer agentes químicos, biológicos, poeiras, aerodispersóides e demais agentes insalubres catalogados pela NR 15, a existência de ruído de 66/74 decibéis e, ainda, mobiliários próprios dotados de assentos e encostos ajustáveis (fls. 280/288), sendo, portanto, irreparável a sentença. 5. Apelação da parte Autora improvida. BRASIL. Tribunal Regional Federal (3ª Região). AC nº. 1111705-SP (2003.61.83.001074-0). 7ª Turma. Relator Rosana Pagano. Decisão Unânime. São Paulo, 28 de abril de 2008. Diário Eletrônico da Justiça Federal da 3ª Região de 13 de agosto de 2008. 394 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Primeiramente, analisam-se alguns dos resultados obtidos pela Federação dos Bancários do Rio Grande do Sul, publicados em março de 2007, cujos dados qualitativos foram organizados por Mayte Raya Amazarray. Segundo esta publicação, denominada “Condições de Trabalho e Saúde da Categoria Bancária”, a começar pela excessiva jornada laboral, cerca de 85% dos entrevistados trabalham mais de seis horas, sem nenhum respeito aos intervalos para descanso, em virtude do longo período destinado à digitação (FEDERAÇÃO DOS BANCÁRIOS DO RGS, 2007, p. 03). Nesta mesma linha, 56% dos entrevistados consideram que seu volume de trabalho é excessivo. Em relação ao estabelecimento de metas para serem cumpridas pelos trabalhadores bancários, a exigência de seus superiores é, no mínimo, reveladora: 92% dos entrevistados responderam que existem exigências em virtude das denominadas “metas”, assim distribuídas em decorrência dos bancos pesquisados: Banco do Brasil 39%; Caixa Econômica Federal 72%; BANRISUL 83%; Bancos Privados (diversos) 65%.(FEDERAÇÃO DOS BANCÁRIOS DO RGS, 2007, p. 07) Outro índice que se apresenta revelador se refere ao elevado número de acidentes do trabalho ocorridos nos bancos pesquisados, chegando a um percentual de 30%, embora somente 21% destes tiveram suas CAT’s emitidas. ((FEDERAÇÃO DOS BANCÁRIOS DO RGS, 2007, p. 09). Este dado comprova, na prática, a tese de que os Bancos estão resistindo na emissão da Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT). Quando perguntado sobre a sintomatologia em virtude das doenças que apresentam, 61% dos entrevistados consideram que o trabalho afeta a sua saúde, nomeando as principais conforme segue: Estresse 76%; Irritação 62%; Ansiedade 62%; LER/DOR 52%; Cansaço visual 52%; Cansaço Freqüente 42%; Problemas Digestivos 36%; Insônia 36%; Dores de Cabeça 33%; Dificuldade de Memorizar 31% e Depressão com 29%. ((FEDERAÇÃO DOS BANCÁRIOS DO RGS, 2007, p. 09). Em outra pesquisa enfocando um banco privado, o BANCO REAL ABN AMRO, publicada pelo Instituto Observatório Social, em julho de 2008, organizada pelo Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região, restam apontados os mesmos problemas, em termos de saúde e caracterização de trabalho 395 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II penoso, constatados na pesquisa realizada no Rio Grande do Sul. Abaixo, observam-se alguns dados expostos nesta Pesquisa. Tendo um universo de 73 entrevistados (sendo 59 mulheres e 14 homens), foi constatada a presença de LER/DORT em 54 dos entrevistados, além de doenças mentais em mais 13 deles. (PESQUISA SOBER SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO, 2008, p. 18). Além de LER/DORT, sem dúvida a principal doença que afeta os trabalhadores, segundo a pesquisa ora analisada, há o assédio moral (em decorrência das metas exigidas), bem como o estresse pós-traumático, devido aos freqüentes assaltos ocorridos nas agências. (PESQUISA SOBER SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO, 2008, p. 23) Mostra-se interessante a análise feita na PESQUISA na atividade, predominantemente, exercida por mulheres, denominada “Call Center – Programa Total View”, do ABN. Isso porque esse programa é tido como exemplar devido ao serviço de boa qualidade em termos de atendimento prestado ao público pelos funcionários. O que o programa esconde é o alto nível de controle e pressão sobre o trabalho dos funcionários, resultando no fato da metade deles (50% dos entrevistados) apresentar depressão e doenças mentais devido ao ambiente de trabalho. Conforme registra nesta pesquisa realizada em Osasco, SP, “os atendentes do Call Center seguem um script para conscientizar os clientes a usar internet para pagar contas, caixa eletrônico e o auto-atendimento. Essa é uma tarefa contraditória para os funcionários, pois quanto maior for a adesão ao auto-atendimento e à internet, menos pessoas serão necessárias para atendimento, o que provocaria mais demissões.” Aliás, o processo de fusão, ocorrido pela incorporação do BANCO SANTANDER, segundo avaliado, reduziu o número de trabalhadores, intensificando ainda mais o trabalho dos bancários, com um aumento considerável do nível de exigência e produtividade. Logo, aumentam o número de doenças relacionadas ao ambiente do trabalho. (PESQUISA SOBER SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO, 2008, p. 30) Em outra pesquisa realizada, entre os anos de 2001 a 2004, pelo Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, restou confirmada a nova realidade trazida pelas inovações tecnológicas e pela mudança do “mundo do trabalho”. Constatando que: 396 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II “Os bancários estão praticando jornadas acima de 8 horas, e as formas de organização do trabalho (exigência de esforço mental, volume de trabalho excessivo, inadequação numérica, prolongamento de jornada) e as condições psicossociais (trabalho estressante, desvalorização do trabalho, insegurança no emprego) são destacadas pelos trabalhadores como fatores de adoecimento.” (NETZ; MENDES, 2006, p. 27/28) Registre-se, por oportuno, que os trabalhadores bancários estão vivenciando um outro modelo de gestão em que: “Merece destaque o papel dos programas de qualidade, na medida em que tais estratégias modulam, de forma sutil, a subjetividade dos trabalhadores, cooptando-os a serem produtivos, flexíveis, motivados etc. Além disso, a introdução da remuneração variável, atrelada à produtividade e ao alcance de metas, também se constitui em um elemento responsável pela intensificação do trabalho e extensão da jornada laboral. (...) Destaca-se, também, que as metas comumente são estabelecidas por escalões hierárquicos superiores, de forma autoritária e unilateral, e não raramente são consideradas inatingíveis pelos trabalhadores.” (JACQUES; AMAZARRAY, 2006, p. 97) De outro lado, a própria legislação previdenciária já avançou no sentido de resguardar os direitos dos segurados que forem acometidos de LER/DORT. A Instrução Normativa INSS/DC nº. 98, de 05 de dezembro de 2003 (DOU em 10/12/03), é prova desse movimento. Esta importante Portaria Administrativa reviu a OS INSS/DSS nº. 606/98, bem como uniformizou e buscou simplificar o trabalho médico-pericial no âmbito da Previdência Social. Segundo esta IN, a LER/DORT deve ser entendida como um problema de saúde pública, sendo fruto da intensificação da tensão imposta pela organização do trabalho, deixando explícito que a extensa lista das doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo relacionadas ao trabalho não é exaustiva, mas somente exemplificativa. 397 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Por outro lado, as denominadas LER/DORT estão, paulatinamente, sendo superadas por outras síndromes ligadas ao ambiente do trabalho, tais como as síndromes do pânico, do esgotamento (Burnout), as doenças psicossomáticas, as tensões traumáticas e outras tantas pressões relacionadas com o ambiente nocivo e deletério das relações laborais vigentes. Essas constatações passaram a ser mais visíveis quando pesquisas realizadas pelos Sindicatos dos Trabalhadores Bancários apontaram sua ocorrência. No Rio Grande do Sul, por exemplo, em uma campanha denominada "Tudo tem Limite! Tolerância Zero com a Violência dos Bancos", realizada de 29/10/09 a 24/10/11, foram registradas 94 ocorrências denunciando irregularidades no ambiente de trabalho (excesso de trabalho, almoço reduzido, entre outros), e um número significativo de assédio moral, no total de 68 ocorrências11. Em relação às tensões pré e pós-traumáticas, devido aos crescentes números de assaltos às agências bancárias, foram registrados, de 2006 a 2009, em Porto Alegre e Região, um número alarmente de 228 assaltos e 3 sequestros de bancário. Estes conjuntos de elementos, acreditamos, que confluem para o esgotamento e adoecimento destes trabalhadores, tudo em conformidade com os novos rumos trazidos pela reestruturação produtiva. CONCLUSÃO Pelo visto e exposto podemos concluir, preliminarmente, que a caracterização do trabalho bancário como penoso é tarefa árdua, a ser construída paulatinamente. A favor de sua não caracterização, milita o intento nada velado na desconstituição da aposentadoria especial. (COSTA, 2009). De outro lado, a realidade concreta teima em superar a ficção: cada vez mais o mundo do trabalho se complexifica, o próprio capitalismo transmuta-se e o trabalho ganha outras e novas dimensões. O mundo do trabalho já não é mais o mesmo, Esta pesquisa, realizada no período apontado alhures, consistia em um estímulo aos trabalhadores bancários em denunciar as práticas abusivas ocorridas em seus ambientes de trabalho, por meio de ligações telefônicas ou de comunicados virtuais. O Sindicato checava as informações e, a partir dessa constatação, passava a organizar as ações sindicais. 11 398 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II como não são as infindáveis exigências feitas aos trabalhadores, mormente em se tratando dos bancários, justamente estes que permanecem/padecem no ínsito das instituições financeiras que sustentam o capital. As pesquisas que ora colacionamos, mesmo que incipientes, apontam para a existência de novas patologias associadas às diversas síndromes até então desconhecidas ou pouco estudadas, tais como a de burnout, do pânico, entre outras. O assédio moral no trabalho, por sua vez, ganha proporções até então desconhecidas. A exigência das metas, bem como o assalto crescente às agências bancárias, agravam esse quadro. Registre-se que as metas deixaram de ser cobradas somente às agências para, além delas, serem cobradas de forma individual, gerando uma competição interna que viola os mínimos princípios da solidariedade e da vivência em grupo. O resultado dessa política, ora institucionalizada, é o adoecimento dos bancários devido às doença que se desencadeiam devido à esse processo. Não há dúvidas que o ambiente de trabalho dos bancários está em dissonância com o disposto no art. 225 da Carta Política de 1988, ou seja, um ambiente equilibrado, saudável e construtor dos direitos mínimos de cidadania. O adoecimento, cada vez mais frequente, os auxílios-doenças e as aposentadorias por invalidez precoces, que oneram o sistema previdenciário como um todo, são indícios desta realidade. Todas estas questões, a nosso ver, confluem no conceito de penosidade, conforme vem sendo construído pela doutrina. Não há dúvidas que o labor dos bancários implica em um desgaste, psíquica e fisicamente, que conduzem a doenças mentais e físicas. Esse desgaste, ao que indicam as pesquisas, é paulatino, cumulativo, esparso. Seja a LER/DORT, que já perdeu espaço para outras doenças psíquicosomáticas, sejam as outras síndromes nominadas neste estudo, são "doenças invisíveis", o que dificulta a sua constatação. 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Julho de 2008. 400 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II PONZETTO, Gilberto. Mapa de Riscos Ambientais: manual prático. São Paulo : LTr., 2002. ROSA, Albino Pereira da Rosa. A Lei Orgânica da Previdência Social: sua interpretação e seu regulamento. Rio de Janeiro: Editora Melso Soc. Anônima, s/d. SALIBA, Tuffi Messias; CORRÊA, Márcia Angelim Chaves. Insalubridade e Periculosidade: aspectos técnicos e práticos. 5. ed. São Paulo: LTR., 2000. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. SARLET, Ingo Wolfgang. “Direitos Fundamentais Sociais e a Proibição do Retrocesso: algumas notas sobre o deságio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise”. In: (Neo)Constitucionalismo. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, v. 1, n. 2, p. 121-168, 2004. SAÚDE DO TRABALHADOR BANCÁRIO: CONHECER PARA TRANSFORMAR. Federação dos Bancários do RGS. Porto Alegre, 2007. SENNETT, Richard. A Cultura do Novo Capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006. 401 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II OS DIREITOS SOCIAIS TRABALHISTAS E PREVIDENCIÁRIOS E O PROCESSO DE INCLUSÃO ECONÔMICO-SOCIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO: A IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE VALORIZAÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO E DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA. THE LABOR AND SOCIAL SECURITY SOCIAL RIGHTS AND THE ECONOMIC AND SOCIAL INCLUSION PROCESS IN BRAZILIAN DEMOCRATIC STATE: THE IMPORTANCE OF PUBLIC POLICIES FOR THE DEVELOPMENT OF MINIMUM WAGE AND INCOME TRANSFER. Érica Fernandes Teixeira1 Palavras-chave: direitos sociais; trabalho digno; inclusão econômico-social; dignidade humana; políticas públicas. Keywords: social rights; decent work; economic and social inclusion; human dignity; public policies. Resumo: A exclusão social consiste num dos principais problemas a ser enfrentado pelas nações de todo o mundo, em especial o Brasil. Para combater esse problema tão caro aos sistemas ultraliberais, necessário efetivar os instrumentos para dignificação do cidadão. Os ramos jurídicos sociais possuem papel essencial na promoção dos direitos humanos, atenuando as forças do capital perante o indivíduo. A relação de emprego formal, regida pelo Direito do Trabalho, e o Direito Previdenciário são analisados como instrumentos de dignificação do cidadão. Os reais instrumentos de que dispõe o cidadão para promover, como verdadeiro protagonista, uma sociedade mais justa, menos desigual e mais humana devem ser efetivados e amplamente incentivados. O ramo justrabalhista é, em grande medida, responsável pela desmercantilização do labor humano, beneficiando o trabalho com regras distintas dos meros ditames do mercado, objetivando sempre atenuar o conflito entre capital e trabalho. E, juntamente com o Direito Previdenciário compõem o rol de fundamentais direitos sociais do cidadão, estabelecidos, solidificados e potencializados no Estado Democrático de Direito. Neste trabalho são analisados alguns relevantes programas sociais de distribuição de renda, assim como, as políticas de valorização do salário mínimo, como instrumentos de 1 Doutora e Mestre em Direito do Trabalho pela PUC Minas, Professora de Direito e Processo do Trabalho (IEC/ PUC/MG). Advogada. 402 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II justiça social, distribuição de renda e efetivação da dignidade humana. No sistema capitalista contemporâneo, os direitos sociais assumem um papel crucial, definindo os novos atores sociais, permitindo a inclusão econômico-social dos cidadãos e, enfim, instrumentalizando a Democracia. Summary: social exclusion is one of the major problems to be faced by Nations around the world, especially Brazil. To combat this problem so expensive to ultra-liberal systems, necessary to make the instruments for citizen's dignity. The social legal branches have key role in promoting human rights, weakening the forces of capital before the individual. The formal employment relationship, governed by the labour law and social security law are examined as tools of citizen's dignity. The real instruments available to the citizen to promote, as real protagonist, a fairer society, less unequal and more human should be enforced and widely encouraged. The justrabalhista branch is largely responsible for the human labor, decommodification enjoying working with distinct rules of mere market dictates, always aiming to mitigate the conflict between capital and labor. And, along with the pension law make up the catalogue of fundamental social rights of the citizen, established, solidified and enhanced in the democratic State of law. In this work are reviewed some relevant social programs of income distribution, as well as the enhancement of minimum wage policies, as instruments of social justice, income distribution and completion of human dignity. In the contemporary capitalist system, social rights assume a crucial role by setting the new social actors, allowing for economic and social inclusion of citizens and, anyway, actually Instrumenting the Democracy. Índice: 1 Os direitos sociais trabalhistas e previdenciários e a inclusão econômico-social. 2 O papel das políticas de transferência de renda. 3 As políticas públicas de valorização do salário mínimo. CONCLUSÃO. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS. DESENVOLVIMENTO: 1 Os direitos sociais trabalhistas e previdenciários e a inclusão econômico-social O surgimento dos direitos sociais na ordem jurídica marcam o início do processo de inclusão dos indivíduos.Verifica-se que tal concepção se perfaz através da proteção do cidadão que despende força laborativa para prover uma melhor qualidade de vida, atrelado, 403 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II pois, ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana e à própria definição subjetiva do Direito do Trabalho. (DELGADO, 2012). Silva afirma: Os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade. (SILVA, 2006, p. 229). O estado social é aquele que efetiva os direitos trabalhistas e previdenciários do cidadão, além de promover educação e saúde com qualidade, distribuir de riquezas, efetivar políticas públicas sociais, dentre outras ações. Consoante Bonavides, a partir do momento em que o Estado: [...] coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional e fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode com justiça receber a denominação de Estado social (BONAVIDES, 1993, p. 182). Conforme entendimento de Araújo e Nunes Júnior: [...] os direitos sociais, como os direitos fundamentais de segunda geração, são aqueles que reclamam do Estado um papel prestacional, de minorizaçao das desigualdades sociais. Nesse sentido, o art. 6 do texto constitucional, embora ainda de forma genérica, faz alusão expressa aos direitos sociais: a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. (ARAUJO; NUNES JUNIOR, 2010, p. 218). Os direitos sociais buscam a igualdade material entre os seres integrantes do Estado Democrático de Direito, repelindo privilégios e discriminações, integrando-os ao sistema produtivo e distribuidor de riquezas, a fim de efetivar a justiça social. Nesse sentido, os direitos sociais devem ser compreendidos em uma dimensão retificadora, no sentido de reduzir as desigualdades existentes entre os cidadãos, e também em uma função provedora, para atender às demandas das populações referentes à dignidade da pessoa humana. 404 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II A relação entre direitos sociais e igualdade é bem expressada por Fortes, in verbis: A igualdade na dignidade, resumida enquanto cidadania é exatamente a condição atribuída aos que são membros integrais da comunidade, isto é, os que partilham de seus valores e são, a um só turno, por ela responsáveis e beneficiados. Nesse sentido, os direitos sociais encontram-se situados no Estado Democrático de Direito como garantias iguais para todos os membros da comunidade política, sem estabelecimento de privilégios e distinções, portanto construídos sobre a idéia de Justiça Social. (FORTES, 2005, p. 173). A denominação “diretos sociais” passou, a partir da segunda metade do século XIX, a ter relação com os ramos jurídicos engajados com o processo inovador de democratização real das sociedades. O Direito do Trabalho foi um ramo pioneiro com matriz jurídica social, de natureza interventiva, gerindo interesses de caráter social. Mas, nas últimas décadas do século XIX, e ao longo de todo século XX, houve o surgimento e estruturação do Direito Previdenciário. Ainda nesse processo democratizante, ao longo do século XX, consolidou-se também o Direito Consumeirista e o Direito Ambiental. Em todos esses ramos, há larga prevalência de normas imperativas objetivando a inclusão social. É inegável que, tão mais democrática é uma sociedade quanto mais includente ela se caracterizar, por meio de normas imperativas que impliquem garantias para os indivíduos, a fim de atribuir papéis ativos a todos os cidadãos. Segundo entendimento de Maior, o conceito de “direitos sociais” extrapola a hipossuficiência socioeconômica do obreiro, predominante no Direito do Trabalho e do Previdenciário. Assim, seus princípios e postulados atingem ramos jurídicos tradicionalmente vinculados tanto ao direito privado (como em algumas relações de consumo ou em pequenos contratos vinculados ao sistema financeiro de habitação), quanto ao direito público (Direito Previdenciário, concessão de remédios ou tratamentos pelo Direito Sanitário ou mesmo no Direito Tributário). (MAIOR; CORREIA, 2007, p. 29). O autor também destaca a amplitude das hipóteses de direitos sociais previstas no art. 6º da Constituição brasileira de 1988. Essa norma elenca ser direito social desde o direito à moradia, quanto o direito ao lazer, incluindo o Direito ao Trabalho e à Previdência Social. Certamente, outros direitos essenciais para a dignidade humana também estão aqui abrangidos, devendo as hipossuficiências a eles relacionadas serem tuteladas pelo legislador ou, até mesmo, pelo intérprete2. Os direitos e as garantias fundamentais, juntamente com os 2 Necessário destacar o entendimento de Jorge Luiz Souto Maior, do qual comungamos, de que as normas de Direitos sociais não possuem caráter programático. Tal caráter as faria dependente de norma infraconstitucional reguladora, além de reduzir sua efetividade, já que, em primeiro lugar, estariam vinculadas ao respeito às possibilidades econômicas e as políticas públicas eleitas pelo legislador constituinte. (SOUTO MAIOR; CORREIA, 2007, p. 29). 405 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II direitos individuais (artigo 5º) e a previsão do artigo 170 da referida Carta, compreendem os direitos sociais. Por tudo isso, as regras inerentes aos direitos sociais possuem: [...] caráter transcendental, que impõe valores à sociedade e, consequentemente, a todo ordenamento jurídico. [...] Os valores são: a solidariedade (como responsabilidade social de caráter obrigacional), a justiça social (como consequência da necessária política de distribuição dos recursos econômicos e culturais produzidos pelo sistema), e a proteção da dignidade da pessoa humana (como forma de impedir que os interesses econômicos suplantem a necessária respeitabilidade à condição humana). (MAIOR; CORREIA, 2007, p. 26). Conforme ensinamentos de Lobo, que reforçam a necessidade de ampliação e valorização dos direitos sociais: A fixação de políticas sociais produz o efeito, nem sempre desejado, de reduzir a dependência do trabalhador em relação ao empregador e termina por se transformar em fonte potencial de poder (Heimann apud Esping-Andersen, 1990:89), desencadeando um círculo virtuoso que tende a alimentar o processo de construção da cidadania baseada em direitos sociais e na desmercantilização da força de trabalho. Em outros termos, a desmercantilização fortalece o trabalhador e enfraquece a autoridade absoluta do empregador. Os direitos sociais, a igualdade e a erradicação da pobreza que um Estado de Bem-Estar universalista busca constituem pré-requisitos importantes para a força e a unidade necessárias à mobilização coletiva de poder. Na presença de mecanismos de proteção referentes ao conjunto da sociedade, tais como seguro-desemprego, seguro-velhice, seguro-doença, seguroacidente etc., trabalhadores emancipados em relação ao mercado se habilitam com mais facilidade à ação coletiva, fortalecendo a solidariedade de classe e ampliando as chances para o estabelecimento de uma sociedade menos desigual. Ao contrário, quando os trabalhadores se encontram em situação de inteira dependência em relação ao mercado, o custo da adesão à ação coletiva se eleva, inibindo o potencial mobilizador das organizações do trabalho. (LOBO, 2010, p. 12). Os direitos sociais nasceram “abraçados ao princípio da Igualdade" (BONAVIDES, 2001, p. 562) e umbilicalmente ligados ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana e da Cidadania, já que têm, como um dos seus principais objetivos, a intenção de atenuar a desigualdade entre cidadãos e proporcionar-lhes melhores condições de vida. Bobbio (1992), ao analisar a instituição do direito social, afirma que tanto a preocupação com o meio ambiente quanto a busca por uma melhoria na qualidade de vida dos cidadãos foram tendências que ganharam grande importância na sociedade mundial após a Segunda grande Guerra. Segundo o autor, assim foi vivenciada a “Era dos direitos”. Ele assevera: Com o nascimento do Estado de direito, ocorre a passagem final do ponto de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No Estado despótico, os indivíduos singulares só têm deveres e não direitos. No Estado absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos. (BOBBIO, 1992, p. 69). A garantia de um mínimo para sobrevivência dos indivíduos assegurada pelo Direito Previdenciário, associada à “melhoria das condições de pactuação da força de trabalho na 406 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II ordem socioeconômica”, inerente ao Direito do Trabalho, acaba por restringir “o livre império das forças do mercado na regência da oferta e da administração do labor humano”. A ligação entre ambos os ramos jurídicos, como exposto, tem origem no processo de intervenção do Estado no mercado de trabalho, a partir da segunda metade do século XIX na Europa Ocidental. Tal vinculação preserva-se estreita, inclusive em razão de considerável parcela da arrecadação da Previdência Oficial no sistema brasileiro originar-se da folha de salários das empresas, conforme as verbas de natureza salarial auferidas pelos empregados. (DELGADO, 2012, p. 58; 80). Direito do Trabalho e Direito Previdenciário caminham juntos na busca pela plena dignidade do cidadão numa sociedade mais igualitária. É inegável afirmar que uma sociedade capitalista pautada pelo pleno respeito dos direitos sociais é uma sociedade cujo princípio da Dignidade Humana deve estar em vigor desde a essência, buscando ampliação do mercado de consumo, aumento da produção, redução do desemprego e do informalismo, concedendo igualmente aos cidadãos uma ordem crescente e efetiva de direitos trabalhistas e previdenciários. Nesse sentido, as políticas públicas de valorização do salário mínimo e, também, de transferência de renda assumem um papel fundamental na promoção da inclusão social e econômica de cidadãos. Os reflexos da desigualdade provocada pelo sistema capitalista são claramente verificados na seara da previdência social. A tendência de diminuição dos salários sentida no bolso do trabalhador reduz sua capacidade contributiva. E, como se trata de um sistema cujo objetivo é manter níveis de dignidade na velhice ou em casos de infortunística, com menores contribuições, certamente, será mantido o tímido padrão de dignidade experimentado por grande número de trabalhadores de baixa renda, o que indica a perpetuação da desigualdade social. Por sua vez, a assistência social possui caráter mais abrangente, caracterizando-se como um sistema universal, que independe de contribuição (art. 203 e 204 da CF/88). Os indivíduos desempregados que integram um exército constante de mão de obra disponível no sistema capitalista3 geram indubitável ampliação dos gastos públicos, sejam através de benefícios assistenciais ou mesmo programas sociais para população de baixa renda, sem os quais nem mesmo a dignidade mínima do cidadão poderia ser mantida. Nesse aspecto, o objetivo deste trabalho não é de discutir a extensão da fundamental responsabilidade do Estado, mas, sim, de alertar que o sistema capitalista, ao lançar diversos indivíduos à margem da sociedade em razão do desemprego, é absolutamente dependente da assistência social para 3 Expressão usada por Karl Marx. (MARX, 1988). 407 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II prover a subsistência desses cidadãos. Assim é possível afirmar que tão mais desenvolvida é uma nação quanto melhor e mais inclusivo for seu sistema de previdência social, apto a garantir melhor qualidade de vida a todos os indivíduos contribuintes. Esses contribuintes e segurados são também consumidores, o que, sem dúvida, é um grande catalisador para o aquecimento do mercado e para o desenvolvimento do capitalismo. No que se refere à precarização dos direitos trabalhistas em evidência no século XX, trata-se do resultado da difusão dos ideais neoliberais, que pregaram a mínima atuação estatal na regulação das relações econômico-sociais, associados à tentativa de flexibilização de direitos, reduzindo a necessária tutela imperativa estatal, conduzindo para um quadro crítico de desigualdade e concentração de renda. Os ataques às proteções e às garantias impostas pela relação de emprego formal, regida pelo Direito do Trabalho, e também a tentativa de desconstrução do primado do trabalho e emprego afetam “o mais importante veículo de afirmação socioeconômica da grande maioria dos indivíduos componentes da sociedade capitalista”. (DELGADO, 2005, p. 29). Os indivíduos que vendem sua força de trabalho para prover sua subsistência precisam contar com a rede de proteção e garantias imperativas instituídas pelo ramo justrabalhista. Trata-se de uma condição essencial até mesmo à própria dinâmica do sistema capitalista, que tem no Direito do Trabalho valioso instrumento de perpetuação (DELGADO, 2005, p. 29). Ainda diante das desigualdades e exclusões promovidas pela essência desse sistema, através da relação de emprego formal e dos direitos previdenciários, todos os cidadãos têm acesso a uma das formas de inserção na sociedade em níveis cada vez mais dignos, contribuindo de forma consistente para a distribuição de renda e para a promoção da justiça social. Nas palavras de Delgado, cabe ao Direito do Trabalho: [...] estruturar, impelir e organizar o mercado interno de absorção dos próprios bens e serviços gerados pela economia, mantendo-o renovado e dinâmico, por suas próprias forças de sustentação. Ora, ao elevar as condições de pactuação da força de trabalho, esse ramo jurídico não só realiza justiça social, como cria e preserva mercado para o próprio capitalismo interno, devolvendo a este os ganhos materiais socialmente distribuídos em decorrência da aplicação de suas regras jurídicas. (DELGADO, 2005, p. 123). Em sua obra, Cardoso alerta para seguinte questão: “se o discurso neoliberal se efetivasse em sua plenitude, não estaríamos diante do risco de dissolução dos laços sociais mais estáveis do capitalismo, aqueles garantidos, justamente, pelo Direito do Trabalho?” (CARDOSO, 2003, p. 119). E continua: Em nenhum lugar se fala a sério sobre essa diluição do direito do trabalho, exceto, no terceiro mundo e certamente no Brasil da década de 1990. Talvez porque no 408 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II mundo desenvolvido se tenha alguma noção dos riscos de profunda crise social decorrente da diluição dos laços de solidariedade associados ao direito do trabalho. [...] O direito do trabalho cumpriu exatamente esse papel para o trabalhador diante do capitalista, fazendo-o ainda mais, como resultado universal, e por isso mesmo, social. [...] Apenas aqui não se reconheceu que o mercado, deixado a si mesmo, o mercado sem o Estado, é a guerra, a selva ou a máfia, ou tudo isso junto. (CARDOSO, 2003, p. 120-121). O trabalho humano tutelado pelo Direito do Trabalho provém sustento para as camadas significativas da população, dignificando o cidadão, além de distribuir riqueza, implementar a democracia e realizar a justiça social. Assim, destaca-se aqui a relevância do trabalho digno como um dos pilares do estado democrático. (DELGADO, 2011, p. 1167). Quanto ao Direito Previdenciário, cabe ao Estado provedor ampliar sua rede tuitiva, a fim de garantir um mínimo existencial a todos os cidadãos. Assim, além de garantir condições mínimas de subsistência frente aos riscos sociais, é necessário que o Estado garanta níveis cada vez maiores de cidadania, incluindo novos segurados ou mesmo garantindo qualidade de vida àqueles que guarnecem em sua tutela. A intervenção do Estado na regulação das relações de trabalho, dos processos de dispensa, bem como na proteção àqueles que se encontram fora do mercado de trabalho, através da legislação trabalhista e securitária, é fundamental para aumentar a segurança do trabalhador e até mesmo o poder sindical. Quanto maior for a abrangência das políticas sociais, menos mercantilizada será a força de trabalho. Dessa forma, no processo de desmercantilização, são importantes não só a crescente efetivação das leis trabalhistas e previdenciárias, mas também a criação de consistentes políticas sociais inclusivas objetivando a justiça social. 2 O papel das políticas de transferência de renda O processo de inclusão de cidadãos coincide, como exposto, com o fortalecimento da democracia. A Constituição Federal de 1988 forneceu os fundamentos necessários para inauguração de um período de desenvolvimento da proteção social em nosso país. O Benefício de Prestação Continuada (BPC) ao Idoso e ao Deficiente estão previstos no artigo 203 da Constituição Federal de 1988. Apesar de ser um benefício de assistência social, de caráter não contributivo, necessário destacar aqui seu exponencial papel com instrumento de redução de desigualdades. Consiste na garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de não tê-la provida por sua família, conforme 409 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II dispuser a lei. A regulamentação de tal regra está na lei nº 8.742 de 07/12/1993 (Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS) (BRASIL, 1993a) e no Decreto nº 6.214 de 26/09/2007 (BRASIL, 2007a). Tais regras foram alteradas pelas leis 12.435/2011 (BRASIL, 2011d) e 12.470/2011 (BRASIL, 2011e) e pelo Decreto 7. 617/2011. (BRASIL, 2011b). A LOAS estabelece que é dever do Estado e direito do cidadão prover os mínimos sociais, por meio de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, a fim de garantir o atendimento às necessidades básicas do cidadão.(CASTRO; LAZZARI, 2012, p.714). Os artigo 21 e 22 da LOAS contêm os requisitos para a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Para fins do referido diploma, idoso é o cidadão com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais e que deve comprovar não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. A família, nesse caso, é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto. A LOAS caracteriza o deficiente como o cidadão que tem impedimentos de longo prazo (com efeitos pelo prazo mínimo de 2 anos) de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. A concessão do benefício ficará sujeita à avaliação da deficiência e do grau de impedimento, composta por avaliação médica e avaliação social realizadas por médicos peritos e por assistentes sociais do Instituto Nacional de Seguro Social - INSS. Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo. Porém, a remuneração da pessoa com deficiência na condição de aprendiz não será considerada para fins desse cálculo. Um dos grandes méritos do BPC é o amparo às pessoas idosas ou deficientes que não poderiam, no âmbito do mercado de trabalho, buscar uma renda para prover sua sobrevivência. O gráfico abaixo expressa a evolução dos recursos da assistência social na União, indicando um incremento significativo, partindo de R$ 10,7 bilhões em 2002 para R$ 31,5 bilhões em 2008 (valores corrigidos pelo IPCA-IBGE até 31/08/2009). Nos anos de 2004 e 2006, houve considerável elevação do montante de recursos destinados à assistência social. Em 2004, o aumento deve-se principalmente ao aporte de recursos para o programa bolsa 410 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II família (PBF) e para o benefício de prestação continuada (BPC). Em outubro de 2003, o Governo Federal editou a Medida Provisória nº 132, convertida na Lei nº 10.836/2004, que criou o PBF para atender as famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, aportando R$ 5 bilhões ao programa, o que possibilitou o aumento de 1,2 milhão de famílias beneficiárias em 2003 para 6,5 milhões de famílias em 2004. O aumento dos recursos destinados ao BPC explica-se a partir da promulgação do Estatuto do Idoso, Lei nº 10.741/2003, que ampliou o critério inclusivo quando diminuiu a idade para concessão de 67 para 65 anos e, também, estabeleceu a não contabilização, na renda per capita familiar, do benefício já concedido a outro idoso da família. (BRASIL, 2009a). Gráfico 2 Evolução financeira dos recursos da União na assistência social Fonte: BRASIL, 2009a. A referida lei 10836/2004 (BRASIL, 2004), que criou o programa de bolsa família, de responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, unificou ações de transferência de renda do Governo Federal, em especial, o programa nacional de renda mínima vinculado à educação - bolsa escola, instituído pela Lei nº 10.219/2001 (BRASIL, 2001a), o programa nacional de acesso à alimentação - PNAA, criado pela Lei nº 10.689/2003 (BRASIL, 2003a), o programa nacional de renda mínima vinculada à saúde - bolsa alimentação, instituído pela Medida Provisória nº 2.206-1/2001, o programa auxílio-gás, instituído pelo Decreto nº 4.102/2002 (BRASIL, 2002a), e o cadastramento único do Governo Federal, instituído pelo Decreto nº 3.877/2001 (BRASIL, 2001b). 411 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II Pelo programa de bolsa família, as famílias pobres (definidas como aquelas que possuem renda per capita de 70 até 140 reais) e extremamente pobres (com renda per capita menor que 70 reais) recebem ajuda financeira, devendo, para tanto, manter seus filhos ou dependentes na escola e vacinados. Os valores dos benefícios pagos por família variam entre 32 e 306 reais, conforme dados oficiais do governo. Em 2006, mais de 11,1 milhões de famílias de todo o Brasil, o que corresponde a cerca de 45 milhões de pessoas, receberam 8,2 bilhões de reais, referente a 0,4% do PIB brasileiro. O aumento dos recursos destinados ao BPC explica-se a partir da promulgação do Estatuto do Idoso, Lei nº 10.741/2003 (BRASIL, 2003b), que ampliou o critério inclusivo quando diminuiu a idade para concessão de 67 para 65 anos e, também, estabeleceu a não contabilização, na renda per capita familiar, do benefício já concedido a outro idoso da família. (BRASIL, 2012b). O benefício de superação da extrema pobreza na primeira infância é um novo benefício que integrou o programa bolsa família, incluído pela Medida Provisória nº 570, de 2012 (já incorporado na lei nº 10836/2004), e tem como objetivo erradicar a extrema pobreza entre as famílias que possuem crianças entre 0 e 6 anos. Por esse programa, que foi batizado por Brasil carinhoso, as famílias já beneficiárias do PBF com crianças de até 6 anos que permaneçam em situação de extrema pobreza, mesmo após o recebimento dos benefícios do PBF, farão jus ao novo benefício, que elevará sua renda mensal per capita para acima de R$ 70,00. Seu valor será correspondente ao montante necessário para que a renda mensal por pessoa da família supere os R$70,00, conforme disposto no § 15 do artigo 2º da lei nº 10836/2004. Os recursos destinados ao bolsa família são verdadeiros investimentos. Ao garantir acesso à renda aos segmentos mais vulneráveis da população, o programa gera retornos para toda a sociedade. Com a complementação das suas rendas, as famílias tornam-se novos consumidores, o que fomenta a economia. Ademais, os gastos do govern