A ESQUIZOFRENIA DO ESCRITOR
uma poética da obra de Godofredo de Oliveira Neto
Carina Ferreira Lessa
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção
de título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira)
Orientador: Professor Doutor Alcmeno Bastos.
Universidade Federal do Rio de Janeiro
fevereiro de 2011
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A ESQUIZOFRENIA DO ESCRITOR
Uma poética da obra de Godofredo de Oliveira Neto
Carina Ferreira Lessa
Orientador: Alcmeno Bastos
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas
da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).
Examinada por:
_____________________________________________________________________________
Presidente, Professor Doutor Alcmeno Bastos
_____________________________________________________________________________
Professor Doutor Antonio Carlos Secchin
_____________________________________________________________________________
Professora Doutora Maria Lúcia Guimarães de Faria
_____________________________________________________________________________
Professor Doutor Ronaldes de Melo e Souza (Suplente)
______________________________________________________________________________
Professor Doutor Roberto Acizelo de Sousa (Suplente)
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2011
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Lessa, Carina Ferreira.
A esquizofrenia do escritor: uma poética da obra de Godofredo de Oliveira Neto./
Carina Ferreira Lessa. - Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2011.
xi,113 f; 15mm.
Orientador: Alcmeno Bastos
Dissertação (Mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas, Área: Literatura Brasileira, 2011.
Referências Bibliográficas: f. 106-112
1- Introdução 2- Por que Menino Oculto? 3- A experimentação literária que culminou
em Menino Oculto 4- Um escritor esquizofrênico ou a esquizofrenia do escritor 5- O
espaço vazio do quadro e a busca pela originalidade. I. Bastos, Alcmeno. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, Área: Literatura Brasileira. III. Título.
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RESUMO
A ESQUIZOFRENIA DO ESCRITOR
Uma poética da obra de Godofredo de Oliveira Neto
Carina Ferreira Lessa
Orientador: Alcmeno Bastos
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas, Literatura Brasileira, da Faculdade de Letras, Universidade Federal
do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Literatura Brasileira.
Godofredo de Oliveira Neto estabelece em suas narrativas uma tensão entre ficção
e realidade. Quatro de seus romances possuem autores ficcionais que, ao darem corpo às
narrativas, discutem o modo de fazer literário. Há uma preocupação em comunicar uma
verdade que desde o início reconhecem estar fadada ao fracasso. Nesse duelo, o leitor
acaba sendo, por vezes, o centro das atenções. Há um eterno desejo do irrealizável entre
autor e leitor, um comunica uma coisa e o outro lê outra, respectivamente.
É interessante lembrar que metade dos romances de Godofredo tem, como plano
espaço-temporal, momentos históricos brasileiros. Como construir uma escrita da
memória, no caso política, sem trazer a tona o que fora escrito por outros anteriormente?
Para isso é imprescindível rememorar, no entanto, neste ato, os escritores tornam-se
sonâmbulos, entre a vigília e o sono. Pegamos fragmentos, cenas, enfim, histórias que
chegaram a nós e fundiram-se, de tal forma, que já não conseguimos dar nome a autoria,
menos ainda dar conta de uma verdade. Assim surge o que convencionei chamar de
esquizofrenia do escritor.
Tempos e espaços fundem-se e dão corpo a uma linguagem estruturalmente
esquizofrênica, que ganhará mais força em Menino Oculto, no qual o autor ficcional é
um grande falsário e, supostamente, com problemas psíquicos. A partir disso, o presente
trabalho pretende mostrar como, nesse romance, o falsário e o esquizofrênico tornam-se
metáforas do escritor, do pintor. Enfim, do artista.
Palavras-chave: Godofredo de Oliveira Neto; Menino Oculto; esquizofrenia
do escritor; autoria; originalidade.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2011
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RESUMEN
LA ESQUIZOFRENIA DE ESCRITOR
Una poética del trabajo de Godofredo de Oliveira Neto
Carina Ferreira Lessa
Orientador: Alcmeno Bastos
Godofredo de Oliveira Neto tiene en su narrativa una tensión entre la ficción y la
realidad. Cuatro de sus novelas han autores ficticio que, al dar cuerpo a las narrativas, se
discute el modo de la escritura literaria. Existe la preocupación de comunicar una
verdad a ser reconocida desde el principio condenada al fracaso. En este duelo, el lector
termina siendo, a veces, el centro de atención. Hay un eterno deseo de inalcanzable
entre autor y lector, se comunica una cosa y otro dice otra, respectivamente.
Es interesante recordar que la mitad de las novelas de Godofredo ha, como plano
de espacio-temporal, los brasileños momentos históricos. ¿Cómo construir una escritura
de la memoria, donde la política, sin sacar a la luz lo que estaba escrito previamente por
otros? Es esencial recordar, sin embargo, este acto, los escritores se convertido en
sonámbulos, están entre la vigilia y el sueño. Recoger los fragmentos, escenas cortas,
las historias que nos llegan y se combina, de manera que ya no podemos dar el nombre
del autor, y mucho menos dar una explicación de la verdad. Entonces, surge lo que
parece ser la esquizofrenia llamada del escritor.
Tiempo y espacio se funden y dan forma a un lenguaje estructuralmente
esquizofrénica, que se hará más potente en Menino Oculto, en la que el autor de ficticio
es un farsante grande y probablemente con problemas de salud mental. De esto, el
presente estudio pretende mostrar cómo, en esta novela, el falsificador y el
esquizofrénico se convierte en una metáfora para el escritor, el pintor. Én última
instancia, el artista.
Palabras clave: Godofredo de Oliveira Neto; Menino Oculto; esquizofrenia de
escritor; autoria; originalidad.
Rio de Janeiro
Febrero 2011
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DEDICATÓRIAS
Para:
As pessoas que tornaram o trabalho e o contato com a
literatura possível, me construindo como profissional e
ser humano,
Clara,
mãezinha querida, que sempre lutou pela
concretização profissional dos meus sonhos, desde os
sete anos de idade. Agradeço também os valores morais
que me fizeram crescer imensamente.
Deraldo, pai, amigo, dedicado, de quem sempre recebi
todo o apoio para estudar – mesmo sendo o meu
interesse voltado para a arte. Sempre esteve comigo,
pois te carrego com carinho e respeito pela pessoa
vencedora que és.
Rodrigo,
maridinho
dedicado,
paciente
e
companheiro. Agradeço por escolher fazer parte da
minha vida num momento tão difícil e decisivo e que me
possibilitou continuar caminhando.
Yasmim,
filhinha linda, nascida com a faculdade.
Companheira desde a barriga nesse trajeto e que, hoje,
com o sorriso mais sincero, me dá apoio e carinho quando
estou cansada.
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AGRADECIMENTOS:
Ao orientador Alcmeno Bastos pelo acréscimo intelectual, pela constante
pertinência das ponderações e pela solicitude em orientar este trabalho.
Ao professor Dau Bastos por me trazer para a literatura brasileira e apresentar o
escritor Godofredo de Oliveira Neto.
Ao professor Ronaldes de Mello e Souza por apresentar o caminho fascinante da
análise do romance por meio do narrador.
Ao professor Antonio Carlos Secchin, pelas aulas da “Oficina da Escrita” - que
muito me acrescentaram e contribuíram para o meu espírito perfeccionista. Mais ainda,
pela amizade e carinho que trouxeram incentivos no percurso acadêmico.
À Flávia Trocoli por apresentar-me aspectos imprescindíveis em relação aos
autores ficcionais e pela amizade construída no decorrer das agradáveis aulas.
Aos professores Alberto Pucheu, Eduardo Coutinho e Teresa Cristina Meirelles
por serem os primeiros a acreditarem no meu trabalho durante a graduação.
Ao Godofredo de Oliveira Neto pelo professor que tem como imperativo fazer o
aluno crescer intelectualmente, sempre obtendo êxito nessa jornada; pelo romancista que
construiu uma das melhores obras do século XX e XXI, que deixará um imprescindível
legado para a história da literatura brasileira; e pelo amigo presente, conselheiro e que,
provavelmente, brigou com o romancista para abrir as gavetas do escritório e me trazer
informações preciosíssimas.
Ao meu marido, Rodrigo Carvalho da Silveira, pelo amor, dedicação e, mais
ainda, paciência para me dar apoio nos momentos de insegurança. Por ler este trabalho,
não me deixando sozinha com a angústia (quase febre) da escritura.
Agradeço a Deus e ao Mestre Jesus por todos os ensinamentos morais e
intelectuais que me trouxeram a sensibilidade necessária para se amar a arte. Mais ainda,
por colocar ao meu lado seres humanos maravilhosos, sem os quais não poderia dar
sequência à dissertação.
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SINOPSE
Leitura da obra de Godofredo de Oliveira
Neto, tendo em vista Menino Oculto como
resultado de uma experimentação literária
que vem desde a escritura do primeiro
romance. Estudo da poética godofrediana
como uma ruptura dos limites entre ficção
e realidade e a partir do conceito de
esquizofrenia do escritor.
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O autor não está morto, mas pôr-se como autor
significa ocupar o lugar de um morto. Existe um
sujeito-autor, e, no entanto, ele se atesta unicamente
por meio dos sinais da sua ausência. Mas de que
maneira uma ausência pode ser singular? E o que
significa, para um indivíduo, ocupar o lugar de um
morto, deixar as próprias marcas em um lugar vazio?
– Giorgio Agamben.
O autor humano destes livros não conhece em si
próprio personalidade nenhuma. Quando acaso sente
uma personalidade emergir dentro de si, cedo vê que
é um ente diferente do que ele é, embora parecido;
filho mental, talvez, e com qualidades herdadas, mas
as diferenças de ser outrem.
Que esta qualidade no escritor seja uma forma da
histeria, ou da chamada dissociação da personalidade,
o autor destes livros nem o contesta, nem o apóia. De
nada lhe serviriam, escravo como é da multiplicidade
de si próprio, que concordasse com esta, ou aquela,
teoria, sobre os resultados escritos dessa
multiplicidade. – Fernando Pessoa.
No momento em que deixo (publicar) “meu” livro
(ninguém me obriga), torno-me, aparecendodesaparecendo, como o espectro ineducável que
jamais terá aprendido a viver. O rastro que deixo
significa para mim, ao mesmo tempo, a minha morte,
vindoura ou já advinda, e a esperança de que ela me
sobreviva. Não se trata de uma ambição de
imortalidade, é estrutural. Deixo um pedaço de papel,
parto, morro: impossível sair dessa estrutura, ela é a
forma constante de minha vida. Cada vez que deixo
partir alguma coisa, vivo a minha morte na escritura.
Provação extrema: expropriamo-nos sem saber a
quem propriamente a coisa que se deixa é confiada.
Quem herdará, e como? Haverá mesmo herdeiros?
Eis uma questão que se pode colocar hoje mais do
que nunca. Ela me ocupa incessantemente. – Jacques
Derrida.
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Sumário
1. Introdução .......................................................................................................... 11
2. Por que Menino Oculto? .................................................................................... 13
3. A experimentação literária que culminou em Menino Oculto............................ 20
3.1. Faina de Jurema: símbolo de resistência e questões pós-modernas .......... 21
3.2. O Bruxo do Contestado: a guerra como metáfora da escritura ................... 26
3.2.1. As referências históricas ...................................................................30
3.2.2. A psicologia de Gerd ........................................................................34
3.2.3. Tecla e a escrita ................................................................................36
3.3. Aspectos gerais dos outros romances ......................................................... 41
4. Um escritor esquizofrênico ou a esquizofrenia do escritor................................ 51
4.1. A autoria como gesto e a ficção na realidade ............................................. 53
4.2. Sob o olhar de Doutor Orestes, Doutor Dárdano e Professor Albano: Entre a
autópsia psicológica e o temperamento artístico ......................................... 58
4.3. Uma narrativa de eventos simultâneos ....................................................... 66
5. O espaço vazio do quadro e a busca pela originalidade .................................... 73
5.1. A esquizofrenia: entre o falso e o verdadeiro em Ana Perena, em cego
Baltazar e nos gêmeos Alceste e Querêncio .................................................76
5.1.1. Ana Perena: musa inspiradora do século XXI ..................................78
5.1.2. Cego Baltazar e os gêmeos Querêncio e Alceste: personagens míticos
ou reais da Baía da Babitonga ..........................................................83
5.2. A autoria e o espaço em branco .................................................................. 88
5.3. Os dois últimos capítulos e uma nota perdida ............................................ 97
6. Conclusão ........................................................................................................ 103
7. Referências bibliográficas ............................................................................... 105
8. Apêndice .......................................................................................................... 113
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1. Introdução
O presente trabalho tem como objetivo principal estudar a obra Menino Oculto, de
Godofredo de Oliveira Neto, como resultado de um investimento estético desde a escrita
do primeiro romance denominado Faina de Jurema. Para tanto, o título escolhido, no
qual aparece a expressão “esquizofrenia do escritor”, revela a mais representativa das
faces narrativas do autor, como veremos mais adiante.
O conceito que deu título à dissertação, de forma ampla, pode ser emblemático da
obra produzida pelo autor - até a defesa deste trabalho - porque carrega três inquietações
do romancista imprescindíveis que também estão em Menino Oculto: a ficção na
realidade, o diálogo escritor-leitor e a autoria. A partir disso, inicialmente, serão
apontados aspectos relevantes dentro de cada livro de Godofredo.
Estamos entendendo aqui o autor sob a ótica objetivada, segundo a qual Bakhtin
afirma que se constrói uma contemplação artística capaz de dar conta de uma imagem
individual sobre o autor no mundo ficcional por ele criado. Neste sentido, quando
estamos falando de um fio condutor de toda a ficção godofrediana, almejamos revigorar
a presença do escritor na obra – que será um dos principais pontos de articulação em
Menino oculto, com o tema central sobre a autoria.
Assim:
O autor deve ser entendido, antes de tudo, a partir do acontecimento
da obra como participante dela, como orientador autorizado do leitor.
(...) No interior da obra, o autor é para o leitor o conjunto dos
princípios criativos que devem ser realizados, a unidade dos elementos
transgredientes da visão, que podem ser ativamente vinculados à
personagem e ao seu mundo. (Bakhtin, 2006, p. 191-192).
Diante disso, se nos romances anteriores havia uma inquietação com o lugar
conferido ao leitor, agora, em Menino Oculto, o autor se coloca em cena de forma
vigorosa, entendendo o espaço que lhe cabe como responsável por uma visão sobre a
narrativa. Ele já não se encontra sob a ameaça da morte proclamada por Barthes,
Foucault ou Derrida. Está claro que, desde fins do século XIX, as obras perdem o
caráter de simples mensagens, e que o leitor ganha força no sentido de produzir
interpretações outras – fora da intencionalidade do autor. Mas, inevitavelmente, a voz
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do autor permanece viva por meio da estética e da inquietação teórica recorrente em
toda a sua obra.
O autor permanece capaz, mesmo que por muitas vozes, de levar o leitor aos fins
que ele deseja. A estética da esquizofrenia do escritor na obra de Godofredo é entendida
sob o aspecto da apropriação de fragmentos – como poderemos ver também em O bruxo
do Contestado – da tensão entre ficção e realidade (para Oliveira Neto, tudo é
construção) e do dialogismo entre escritor e leitor, como podemos observar em Pedaço
de Santo: “O criador divide a criação com ele mesmo mas a criatura, para existir,
precisa do resto do grupo. Daí a esquizofrenia do artista, ser social.” (Oliveira Neto,
1997, p. 177).
Em Menino Oculto essa tipologia, que caracteriza todos os romances, ganha
mais força. A autoria se torna o tema central. A barreira entre o falso e o verdadeiro
também será rompida e a autoria aparece sob novos sentidos. Godofredo constrói uma
história da contemporaneidade por meio de um texto que se configura por uma
linguagem esquizofrênica.
A realidade contemporânea desnuda-se por uma estética do excesso de presente
(aqui e agora). Não no sentido em que Beatriz Resende emprega em seu
Contemporâneos, no qual ressalta uma ansiedade de apreensão da realidade trágica, mas
no sentido que o próprio escritor ficcional Aimoré chama de narrativa de “eventos
simultâneos”. Muitos chegaram a considerar essa narrativa – criada por Godofredo –
como própria do fluxo de consciência: pela não linearidade e pela confusão espaçotemporal. Mas, como veremos, tal conceito não pode ser aplicado.
No que diz respeito à relação escritor-leitor, analisaremos a função de três
personagens-entrevistadores que atuam como leitores do discurso de Aimoré – formado
em Belas Artes, falsário, professor de literatura e escritor ficcional, também, do
romance que temos em mãos.
Assim sendo, cabe dizer que o estudo ora apresentado tem como objetivo
mostrar a originalidade estética de Godofredo de Oliveira Neto, na escritura de Menino
oculto, ao montar o cenário artístico brasileiro contemporâneo, diante dos impasses e
polêmicas em torno da autoria. Mais ainda, a originalidade ao trazer a figura do leitor
para dentro da narrativa como personagem em diálogo com o escritor, desvendando
algumas de suas funções e tornando evidente o poder de manipulação do autor dentro da
obra.
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2. Por que Menino Oculto?
As revistas literárias deveriam ser o dique contra a crescente
enxurrada de livros ruins e inúteis e contra o inescrupuloso
desperdício de tinta de nosso tempo. Com juízo incorruptível, justo e
rigoroso, elas deveriam fustigar sem pudor toda a obra malfeita de um
intruso, toda a subliteratura por meio da qual uma cabeça vazia quer
socorrer o bolso vazio, ou seja, aproximadamente nove décimos de
todos os livros. (Schopenhauer, 2005, p. 70).
A epígrafe acima foi retirada do ensaio “Sobre a escrita e o estilo” publicado
pela primeira vez em 1851, no Parerga e Paralipomena1. Apesar de escrito na metade
do século XIX, inevitavelmente, ao tratar do rigor das letras de forma tão palpável,
revelando falhas do pensamento crítico, a exposição de Schopenhauer encaixa-se com
perfeição na atual condição da literatura (em fins do século XX e início do XXI).
Bem, se para sua época, como de costume, o autor possuía caráter pessimista,
podemos já aqui ter o alívio otimista ao verificar que – seja lá quais forem essas
“cabeças vazias” – grandes gênios ficaram para a eternidade. O que me parece de
grande valia ao enxergar a profusão de escritores contemporâneos (“nove décimos de
todos os livros”) que conservam a arte da subliteratura.
Recentemente, Umberto Eco e Jean-Claude Carrière, lançaram um livro
intitulado –Não contem com o fim do livro (2010). O que parece ser, a princípio, uma
discussão em torno do fatídico tema sobre o futuro do livro impresso, com a chegada do
suporte eletrônico “e-book”, revela-se um saboroso diálogo sobre a história do livro
desde o papiro. Dentre as questões desenvolvidas, os autores questionam os limites
entre passado e futuro. O presente já não existe. “Estamos sempre buscando nos
preparar para o futuro”, nos diz Eco. O pensador reclama do fato de a maioria das teses
tratarem de questões contemporâneas: “recebo assim uma profusão de teses dedicadas à
minha obra! É uma loucura! Mas como fazer uma tese sobre um sujeito que ainda está
vivo?” (Eco, 2010, p. 56).
A sabedoria e a elegância das palavras dos bibliófilos sugerem ainda, mais do
que um simples problema de suporte para a escrita, uma inquietação diante da atual
1
Livro que trouxe reconhecimento ao filósofo, depois de muitos anos de quase anonimato. Carrega uma
série de tratados sobre diversos assuntos. Assim como o tema do ensaio citado, Schopenhauer arquiteta
textos dos mais irônicos e agressivos à sua profissão: a escrita, a leitura, o mundo intelectual em geral e
aqui, especificamente, sobre o ato de analisar ou avaliar a obra de outros escritores.
13
condição do presente que não se sustenta com a ansiedade pós-moderna de dar conta do
futuro. O que na literatura parece-me, inevitavelmente, mais grave do que elaborar
estudos sobre autores vivos é a publicação constante de trabalhos que tendem a
imortalizar escritores que mal lançaram o primeiro romance ou livro de contos. Se não
há “nada mais efêmero do que os suportes duráveis” (Carrière, 2010, p. 23), grande
parte dos romances contemporâneos é de autores tão efêmeros quanto a tecnologia que
deve atender às necessidades de consumo. Surgem e desaparecem para dar luz a uma
nova celebridade2.
Ao escolher o trabalho com a literatura contemporânea brasileira, a intenção foi
cumprir o papel crítico de trazer à cena um autor que tivesse uma obra já consistente e
de grande importância para a história da literatura brasileira. Assim escreveria a favor
da boa literatura, na Faculdade de Letras que ainda é - e deve ser - o lugar de resistência.
Diante disso, a dissertação versará sobre o romance Menino Oculto, de Godofredo de
Oliveira Neto. O diálogo com toda a sua obra (produzida até então) será constante, e
inevitável, para evidenciar a poética que irá culminar na construção do livro em análise.
Para começar, podemos partir da seguinte descrição:
Um português chamado Aimoré Seixas dos Campos Salles de Mesquita Ávila.
Uma falsificação de um quadro. Uma ausência do menino morto no quadro de Portinari.
Uma tensão sexual entre arte e mulheres. Assassinatos. Uma dose de estilhaçamento de
identidade, espaço e tempo. Todos os ingredientes perfeitos para se descrever a temática
de Menino Oculto, se o escritor Aimoré não tivesse falsificado o próprio estado psíquico
de esquizofrênico!
Um pouco além do início do romance, o narrador-personagem afirma:
“O conhecimento, contrariamente ao que muita gente acha, acontece
ao mesmo tempo, como uma rede, as luzes se acendem na mesma
hora, os fios se conectam juntos, como numa festa simultânea. E a
vida também é pura autocronia (...). É por isso que passo de um tempo
2
Resultado da transformação provocada pela economia do livro, no qual o editor perde a máscara de
patrocinador (na salinha de trabalho) e o escritor a sua aura de pessoa inspirada e reclusa. Agora os
autores falam sobre sua própria obra e são vendidos pela mídia como objetos, assim como seus livros.
Silviano Santiago já atentara para esse aspecto no artigo “Prosa literária no Brasil”, escrito em 1984 e
publicado em Nas malhas da Letra: “Transformado em mercadoria dentro da sociedade de consumo, o
livro passa a ter um temível (porque imprevisível) e subornável (porque manipulável) árbitro: o público.
(SANTIAGO, 2002, p.28). Ou ainda: “há a ameaça de que a mercadoria que o romancista produz, não
guardando mais o perfeccionismo e a gratuidade comercial da produção diletante e artesanal, seja
apressada e descosida, insossa, atendendo que está exclusivamente às leis do mercado insaciável”.
(p.30).
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a outro, expondo visões, cenas e histórias aparentemente
desconectadas uma da outra” (Oliveira Neto, 2005, p. 67).
Curiosamente, depois de alguns cadernos rabiscados, ao dar início às páginas
deste trabalho, a autora (que pretende trazer algumas reflexões de Barthes e Agamben
para a argumentação da tese) descobriu na internet um projeto com Literatura
Contemporânea no qual vinte e três títulos (dentre eles Menino Oculto) são citados
como livros a serem estudados futuramente a partir de conceitos de, pasmem, Barthes e
Agamben. Houve um alívio ao lembrar que já havia sido publicado no início de 2009
um texto onde a ideia já fora autenticada. E se não houvesse esse texto? O que garante a
sua autenticidade? Se o conhecimento são luzes que se acendem na mesma hora “como
numa festa simultânea”, como garantir a originalidade e a autenticidade de uma obra?
Mais ainda, em tempos de internet?
Por que fazer essas observações?
Porque a falsificação transborda por todas as células do corpo deste romance.
Em contato com a metamorfose do mundo, Godofredo de Oliveira Neto como artista
revela o movimento constante do século XXI. Atenta para músicas da moda, artefatos
da Internet como blogs, orkut, MSN. Além disso, constrói um narrador-personagem
que escreve a história de sua vida para ser publicada na internet. O retorno ao cânone é
recriado no presente por meio da APROPRIAÇÃO, não somente de fragmentos de
textos de Machado de Assis, José de Alencar, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, mas
também pelo ato de refazer Portinari ou Villa Lobos.
Aimoré é capaz de reproduzir fielmente telas de grandes pintores e se envolve
com negociantes de quadros falsos. Estes lhe encomendam uma cópia do Menino
Morto, de Portinari. Ao descobrirem que Aimoré está negociando com mais de uma
quadrilha, ele sofre uma tentativa de assassinato e, posteriormente, é levado a um lugar
que não se sabe bem o que é: uma faculdade ou um manicômio. Nessa duplicidade,
como se pretende defender, coexistirão duas narrativas diferentes: a da esquizofrenia do
escritor e a do escritor esquizofrênico.
O romance é delineado por três entrevistadores: professor Albano, doutor
Orestes e doutor Dárdano. Mediadores do discurso e/ou fluxo de consciência de
Aimoré, funcionam como uma espécie de leitores-narradores que vão tecer a identidade
do narrador-personagem. Doutor Orestes e Doutor Dárdano consideram-no um louco,
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por sua fala desconexa que funde espaço e tempo, com seu histórico de assassinatos e
obsessões pela arte. Enquanto que Professor Albano acredita ser tudo fabulação, o
romance de vida de Aimoré.
A perspectiva da narrativa torna-se dual porque é instável a fronteira entre o
escritor esquizofrênico e a esquizofrenia do escritor. O grande falsificador afirma: “eu
tenho o direito de pintar o que quero e quando quero”; “passo de um tempo a outro,
exponho visões, cenas e histórias aparentemente desconectadas uma da outra” (p. 67).
Os fatos são diversamente interpretados, mas há, em vários momentos, uma lógica
interna produzida pelo próprio narrador que se desloca como crítico-leitor do romance.
Todo esse universo dissimulado possui ainda a interferência de Ana Perena,
personificação da inspiração poética de Aimoré. Ana é como uma musa inspiradora do
século XXI: “Agora me guia, escreve, dirige a minha voz, a minha tecla, a minha
caneta” (p. 209). Tudo que Aimoré quer é ver “Ana materializada” (p. 130). Dessa
forma, ao criar vários personagens para o seu romance, em diálogo com os
entrevistadores, diz procurar e querer essa mulher (com a qual tem uma relação erótica e
afetiva) de volta.
Motivado pelos conselhos de Ana, o narrador-personagem irá atuar cada vez
mais em busca da autenticidade: “a arte, só pelo simples fato de agitar a estética vigente,
já mexe nos pés que seguram o que chamamos por aí de realidade” (p. 188), dizia ela. A
falsificação ganha um novo sentido. No ato da reescritura ou releitura da obra de arte, o
leitor, intérprete ou escritor realiza uma outra criação artística. Assim, Aimoré, como
pintor de quadros e da literatura do século XXI, pinta novos traços e atribui novos
sentidos ao cânone. Diz não ser um falsário porque em todos os quadros que reproduz
coloca emoções novas, deixando sempre a sua marca como autor do quadro: de um leve
sorriso nos lábios do menino morto à eliminação do menino por completo.
Acumulamos conhecimentos e frases que, por vezes, ficam gravadas e já não
sabemos sua origem. Os escritos dos autores citados ao serem incorporados ao delírio
de Aimoré, pelo autor Godofredo de Oliveira Neto, em um contexto diferente, revelamse novos textos. Ganham novos contornos e, arriscaria dizer, perdem de fato as origens.
A esquizofrenia está ligada à falta de sintonia das funções psíquicas, ao
dilaceramento da personalidade, ao distanciamento da realidade. O falso é o contrário à
realidade, dissimulação, fingimento. “Imagino que seja assim que os sonâmbulos e os
escritores agem nessas horas” (p. 212), Aimoré poderia dizer. No ato de escrever ou
narrar “crio fatos inverossímeis e eles caem na lorota, e eles me chamando louco,
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esquizofrênico” (p. 186), afirma. Será neste sentido que, curiosamente, o falsário e o
esquizofrênico tornam-se metáforas do escritor, do pintor. Enfim, do artista.
Godofredo de Oliveira Neto, como será possível verificar mais adiante,
estabelece em suas narrativas uma constante tensão entre ficção e realidade. Quatro de
seus romances possuem autores ficcionais que, ao darem corpo às narrativas, discutem o
modo de fazer literário. Há uma preocupação em comunicar uma verdade que desde o
início reconhecem estar fadada ao fracasso. Nesse duelo, o leitor acaba sendo, por
vezes, o centro das atenções. Há um eterno desejo do irrealizável entre autor e leitor, um
comunica uma coisa e o outro lê outra, respectivamente.
Agora é interessante lembrar que quatro dos oito romances de Godofredo
possuem, como plano espaço-temporal, momentos históricos brasileiros. Como
construir uma escrita da memória, no caso política, sem trazer à tona o que fora escrito
por outros anteriormente? Para isso é imprescindível rememorar. No entanto, neste ato,
os escritores tornam-se sonâmbulos, entre a vigília e o sono. Pegamos fragmentos,
cenas, enfim, histórias que chegaram a nós e fundiram-se, de tal forma, que já não
conseguimos dar nome à autoria. Assim surge a esquizofrenia do escritor.
A expressão “esquizofrenia do escritor”, que ganha toda força em Menino
Oculto, chamou a atenção por aparecer também em O Bruxo do Contestado e Pedaço de
Santo. Antes de tudo, os autores devem lutar, num “incessante corpo-a-corpo com os
dispositivos que eles mesmos produziram – antes de qualquer outro, a linguagem”
(2007:63), afirma Agamben no ensaio “O autor como gesto”. “Nada do que digo ou
escrevo é verdade. Se se quiser, pois, a mim chegar é unicamente através dos meus
pensamentos” (1981:88), diz o autor ficcional de Faina de Jurema. “Tudo o que eu tiver
escrito será lido segundo a cabeça do leitor! Nossos amores são amores tântalos”, diz a
autora ficcional de O Bruxo do Contestado. “Nunca é demais contar de novo, será
sempre uma nova versão, um novo autor e, você um ouvinte novo” (1999:63), diz
Fábio, personagem principal de Pedaço de Santo.
Mas como, diante desse embate com a linguagem, marcar a autoria? Agora é
interessante reproduzir algumas palavras que se ouve constantemente de um certo
professor de Literatura Brasileira3: “o conhecimento é cumulativo, tudo que
conhecemos partiu de outros. O importante é que acrescentemos um grãozinho de
conhecimento à tudo que foi dito até então”. Aimoré, o autor ficcional de Menino
3
O próprio Godofredo.
17
Oculto, deixa um espaço em branco no quadro de Portinari no momento em que resolve
deixar de ser falsário. Perante o espaço em branco é preciso saber o que fazer com ele.
Aimoré imagina certo número de possibilidades inclusive pintar um menino vivo, mas o
menino estava morto, observa. Pintar o menino vivo não é muito diferente de deixar o
espaço em branco. Este vazio reflete uma mudança de autoria, diz, inevitavelmente, que
aquele quadro não é o de Portinari.
Se os escritores são como os sonâmbulos, estão entre a vigília e o sono,
constroem sim um texto impregnado pelo discurso de outros autores, mas deixam a sua
marca, acrescentam “um grãozinho de conhecimento a tudo que foi dito até então”.
Mais ainda, ao modificarem a linguagem, atribuem um novo sentido. “E assim como o
autor deve continuar inexpresso na obra e, no entanto, precisamente desse modo
testemunha a própria presença irredutível, também a subjetividade se mostra e resiste
com mais força no ponto em que os dispositivos a capturam e põem em jogo”
(Agamben, 2007, 63). Dessa forma a autoria, segundo Agamben, é marcada por um
gesto inexpressivo que, quer-me parecer, trata-se do estilo fundador da poética de cada
autor.
A inquietação que move para a escritura, para a autenticidade da fabulação,
torna-se constante em Aimoré a partir daquela mesma fala, já citada, de Ana –
personagem que surge em vários momentos do romance como motivadora da arte. Este
aspecto da estética narrativa de Menino Oculto faz lembrar, inevitavelmente, do pio da
coruja em São Bernardo, de Graciliano Ramos. O pio que, segundo o próprio Oliveira
Neto – em tese de doutorado pela UFRJ -, perturba e move Paulo Honório à escrita4.
No capítulo XIX de São Bernardo – considerado por Antonio Candido “um dos
mais belos trechos da nossa prosa contemporânea” (Candido, 2006, p. 46), na década de
80 – há uma mistura da realidade presente com evocações do passado. O pio da coruja,
como sempre, retorna. O delírio auditivo, para Godofredo, em A ficção na realidade em
São Bernardo, provoca uma confusão espaço-temporal própria da esquizofrenia:
“Estamos na fronteira: o outrora é o agora” (Oliveira Neto, 1990, p. 80). Paulo Honório
se pergunta: “Terá realmente piado a coruja? Será a mesma que piava há dois anos?”
(RAMOS, 2008, 119).
Ainda no mesmo capítulo, Paulo Honório, ansioso por rememorar, apaga as
luzes para aguçar os sentidos e acessar melhor as lembranças, buscar a verdadeira
4
Pode ser lido em A ficção na realidade em São Bernardo, de Godofredo de Oliveira Neto. Trata-se de
um capítulo da tese do autor, publicado em 1990.
18
Madalena. No entanto, percebe que a sua tentativa fracassa, é inevitável. O efeito da
escrita esquizofrênica revela-se pelas construções verbais que misturam passado e
presente. A ficção mistura-se com a realidade.
Como já foi dito, as narrativas de Oliveira Neto possuem uma tensão constante
entre ficção e realidade. Em Menino Oculto, romance em que Aimoré afirma passar de
um tempo a outro expondo visões aparentemente desconectadas uma da outra, o conflito
ganha mais força. Não sabemos se estamos diante de um escritor esquizofrênico ou da
esquizofrenia do escritor. Logo nas primeiras páginas, nas quais Aimoré discorre sobre
a tentativa de assassinato, há um recurso estético muito parecido com o de Graciliano, o
mesmo que tem como fio condutor a principal tese de Godofredo a respeito de São
Bernardo.
O discurso de Aimoré, ao ser entrevistado, funde-se com a narrativa escrita em
folhas de papel pelo autor-personagem quando acaba de sofrer a tentativa de homicídio.
Machucado pelas facadas, Aimoré constrói uma narrativa que corresponde a um conflito
entre razão e delírio. Já no presente, no ato de rememorar, passado e presente também se
tornam confusos e ficcionalizados. “Aqui estamos face ao problema da confusão dos
planos temporais, típicos da esquizofrenia” (op. cit. 1990, p.80).
A partir dos aspectos narrativos apresentados, pretende-se fazer um breve estudo
de cada livro do escritor Godofredo de Oliveira Neto, demonstrando características
estéticas que culminaram em Menino Oculto, e fundamentalmente, defender a tese de
que o romance em análise gira em torno do que convencionei chamar de esquizofrenia
do escritor. Como pontos principais de argumentação: os discursos e formas ficcionais
sobre a autoria e a falsificação, e o que Oliveira Neto convencionou chamar de A ficção
na realidade, em São Bernardo de Graciliano Ramos.
19
3. A experimentação literária que culminou em Menino Oculto
Para ler a obra de Godofredo de Oliveira Neto, como a de qualquer grande
escritor, podemos imaginar certo número de possibilidades. Aqui, mais precisamente,
para dar luz à jornada de trabalho escolhida, imaginei tornar visíveis diversas
características dos romances do autor, mostrando o quanto a encenação narrativa como
um todo pode estar a favor do principal argumento deste trabalho. Pretende-se, e se fez
necessário, trazer à frente de combate (sem vencedores) diversas linhas de pesquisa para
desvelar alguns aspectos da obra que confluem para a questão mestra de Menino oculto:
a esquizofrenia do escritor.
Na obra em análise a escrita mostra-se sempre por uma realidade ambígua: por
um lado, estamos diante de um encontro com fundamentos históricos e sociais, não
como um engajamento, mas no intuito de trazer a relação do homem com determinadas
marcas psicológicas do mundo. Por outro lado, há um encontro do autor ficcional com o
ato de narrar, que lhe traz o conflito da linguagem. Ele não pode transcrever os próprios
pensamentos, menos ainda refazer a realidade tal qual ela foi. Sua escrita reflete sobre a
Literatura. Nesse jogo, a multiplicidade de vozes parece ser a medida ideal para
caracterizar o autor em conflito com o texto. O duelo entre escritor e leitor será
constante, estamos diante da crise do narrador.
A partir disso, este capítulo pretende fazer um exame dos romances publicados
antes de Menino Oculto. Os tópicos versarão sobre alguns aspectos da obra, priorizando
a análise de Faina de Jurema (1981) e O Bruxo do Contestado (1996), por apresentarem
maiores evidências narrativas em relação à esquizofrenia do escritor. Num segundo
momento, Pedaço de Santo (1997), Oleg e os clones (1999), Marcelino Nanmbrá, o
manumisso (2000) e Ana e a margem do rio (2002), serão considerados pelas nuances
principais com o intuito de se chegar ao fio condutor, ou estilo narrativo, que está
presente na obra completa do autor – produzida até a defesa deste trabalho.
20
3.1. Faina de Jurema5: símbolo de resistência e questões pós-modernas
A jurema é uma planta símbolo de resistência na cultura indígena do Brasil. No
período de colonização do Nordeste, os povos não permitiam que a jurema, árvore
sagrada, fosse conhecida pelos significados e usos que lhe atribuíam. A árvore só passa
a ser documentada a partir de uma fase histórica na qual representa um ritual ligado à
resistência dos índios em relação aos colonizadores. Diante da opressão política,
econômica e cultural, a jurema avança novos territórios e assume um lugar na
religiosidade popular, mais especificamente, na cultura negra. Ganha também um
caráter de divindade, espírito.
José de Alencar em Iracema reconstrói o mito. Neste romance, o eixo temporal
gira em torno da colonização do Ceará, em 1606. Iracema guarda o segredo da jurema e
deve permanecer virgem para a divindade. O teor poético está atrelado ao fato de a bela
e pura índia se apaixonar por Martim, o homem branco. Ao receber de Iracema o vinho
da jurema, os guerreiros sentem extrema felicidade e recebem informações sobre
combates futuros. No entanto, ao se entregar a Martim, a índia perde a pureza necessária
para o ritual, sendo também, em consequência, obrigada a afastar-se da tribo.
Curiosamente, ao dar a luz a um filho criado a partir da mistura das raças, Iracema
definha aos poucos até a morte. A perda da pureza racial e cultural culmina num fim
quase trágico, se não fosse o fato de a morte para os românticos ser uma forma de
purificação da alma.
Bem, não é preciso fugir da obra do escritor Godofredo de Oliveira Neto para
verificar o seu interesse pelo índio e pelo negro (apesar de uma investigação biográfica
tornar evidente o engajamento político por ambas as raças). Faina de Jurema, primeiro
romance do autor e um dos primeiros romances no Brasil a propor estilisticamente o
que viria a ser chamado de pós-modernismo, parece indicar um caminho análogo ao
mito.
Uma das marcas frequentes das narrativas godofredianas (e imprescindível para
entender a poética do autor) é a alternância de capítulos ou ideias que levam o leitor por
uma via de mão dupla. Em Faina de Jurema, publicado em 1981, não será diferente.
Trata-se de um ousado jogo com os gêneros literários, no qual dezoito telegramas
5
Em função da quase impossibilidade de se ter acesso ao livro, ele foi colocado em anexo à dissertação
caso haja interesse – por parte dos leitores e/ou estudiosos – de consultarem o romance.
21
alternam-se
com
pequenas
narrativas
(Contos,
Poemas,
Panfletos,
Fábulas)
denominadas, inquietantemente, como “situações”.
O telegrama, que inicia o romance, nos fornece as seguintes informações:
“Jurema anos domicílio mansão; pertence classe social alta. Clareza. Riqueza. Porão da
mansão desconhecido para ela. Decide explorar porão. Crise emocional; arrepios. Porão
repleto de ratos aranhas baratas morcegos. Vê disputa por migalhas. Escuridão;
Miséria” (1981, 07). Num primeiro momento, o porão, com todos os asquerosos
bichinhos, pode ser visto como matéria, em sentido denotativo. No entanto, se
atentarmos bem, com o decorrer da narrativa o foco metafórico vai se impondo. O
embate de Jurema, com as dicotomias do ser humano, se instaura como o tema e a
marca central da forma literária desse romance. A faina de Jurema parece ser uma
tentativa de resistência à separação, às forças que inevitavelmente estão sempre se
opondo. Resolve panfletar pelas ruas para mudar as diferenças, mas o seu projeto está
fadado ao fracasso. Entre nuances de estados emocionais, Jurema definha até o suicídio.
Em diálogo com os telegramas, as “Situações” representam a tentativa
malograda de resistência. Já na “SITUAÇÃO I – Janelas”, as diferenças são lançadas
nos primeiros parágrafos:
A temperatura tornara-se insuportável. Os 40 graus, na sombra, da
véspera tinham sido ultrapassados. As folhas permaneciam imóveis.
Nada se movia. O ar estagnado. O calor parecia comprimir os corpos e
os objetos contra a terra como se nela os quisesse enfiar. A cada
inspiração, uma golfada de vapor substituía o ar puro que os pulmões
imploravam.
Sufocante.
As janelas tinham sido limpas na véspera. O aparelho de ar refrigerado
ronronava, deixando escapar aquele ar fresco que fazia reinar na sala
temperatura tão agradável. Do 15º andar deparava-se a cidade inteira,
que parecia dormir.
Relaxante. (Oliveira Neto, 1981, p. 9).
Do ponto de vista dos trabalhadores, apoiados em cordas nos andaimes, e do
ponto de vista dos trabalhadores, no escritório de um prédio, respectivamente, o leitor
assiste à relação dicotômica que dá início à faina da personagem principal. São 21
22
situações. Em meio a escuridão e a miséria andina do Peru e da Bolívia, a quem dar um
sobretudo de lã europeia? Mesmo na sociedade dos animais observa-se a relação de
opostos, a minoria mais abastada concentra comida, enquanto uma população passa
fome: “Não os percamos de vista. Jacaré e jiboia sempre tramam isso. Ajuntemos o
máximo possível nosso cardume para parecermos menos do que somos. Répteis
egoístas! Haveria para todos, mas a ganância é tal que se tornam loucos” (p. 31).
As oposições tornam-se cada vez mais densas e graves. Curiosamente, o poema
parece ser, por vezes, o espaço ideal para o narrador pôr em forma as inquietações. São
oito poemas que congregam com delicadeza e poesia as relações mais importantes da
trama. São essas umas das poucas e felizes insinuações do poeta Godofredo de Oliveira
Neto. Em “Adversativas e aditivas dum prisioneiro”, a forma nos indica uma
circularidade, o discurso já havia começado antes de iniciar o poema. “Mas” e “e”
parecem reger esse universo, bem como se revelam metáforas pertinentes para mais
uma dicotomia: “Mas, e, revoam ao longe, lá fora, inexequíveis, os brancos símbolos
emplumados da Paz” (p. 44). E a pergunta que Jurema poderia/parece fazer: Será que
trariam a paz se se unissem? A partir de que momento dois opostos tornam-se símbolos
da Paz? Seria a Paz uma eterna prisioneira dessas duas formas? De fato, parece um
pacto amoroso impossível.
Assim, como Iracema, Jurema definha ao reconhecer as diferenças sociais,
culturais e identitárias. O segredo ou paz da Jurema se perde junto com a pureza, a
ingenuidade. Na décima situação, “A colônia”, Jurema implora: “Que raciocínios
suicidas não me distanciem da minha meada! Que me ajudem nesta tarefa, por favor,
vocês que me lêem!” (p. 52). Aqui, os índios tornam-se símbolos de integridade, “a
ganância e o individualismo sorrateiro e mesquinho lhes eram desconhecidos” (p. 47).
Bem, esse não é o único momento que evidencia o leitor como peça
imprescindível do romance. Os telegramas são escritos nos impressos tradicionais do
correio na década de 80. Há o espaço para o endereço, tanto do destinatário, quanto do
expedidor. Todos eles assinados por Darci. No entanto, a linha que deveria ser
preenchida com o nome do destinatário está vazia. O espaço em branco só pode ser
preenchido pelo leitor, fadado, inevitavelmente, a assumir a responsabilidade pelas
desventuras da personagem principal. Alfredo Margarido, em “Choque Telegráfico”,
publicado em 1981 no Jornal do Brasil, não deixa escapar o caráter de urgência que o
telegrama carrega:
23
O telegrama rompe com a monotonia real ou aparente do quotidiano;
o choque é entendido sempre como possivelmente desagradável.
Quer dizer que o telegrama é potencialmente portador de más
notícias, o que nos leva a encarar com alguma desconfiança este
papel cuja urgência é tal que deve ser trazido ao domicílio de cada
um por portador especial. Se o romance de Godofredo de Oliveira
Neto se organiza em torno dos telegramas, é porque existe uma
situação profundamente crítica (Margarido, 1981, p. 10).
Através do diálogo com o leitor, intermediado pelo narrador Darci, Jurema
parece quase gritar por ajuda para manter-se resistente, firme. O mito que envolve a
árvore revigora-se. Mesmo em um espaço em branco, o leitor já preenche, em Faina de
Jurema, a categoria de personagem. Tal perspectiva será uma das principais chaves para
articular a questão da autoria e da esquizofrenia do escritor, pontos que seguem e
envolvem todos os romances de Godofredo, constituindo, de acordo com este trabalho,
a poética do escritor.
O embate entre autor e leitor é uma constante. Pelas marcas sempre deixadas nas
narrativas, observa-se uma inquietação provocada pelo eterno desejo do irrealizável. Se
um briga por narrar, o outro briga para apreender cada sentido dos gestos do autor.
Claro que, como diz Barthes:
Sabemos que um texto não é feito de uma linha de palavras a
produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a
“mensagem” do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões
múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas (...) Na
escritura múltipla, com efeito, tudo está para ser deslindado, mas
nada para ser decifrado; a estrutura pode ser seguida, “desfiada”
(como se diz de uma malha de meia que escapa) em todas as suas
retomadas e em todos os seus estágios, mas não há fundo; a escritura
propõe sentido sem parar, mas é para evaporá-lo: ela procede por
uma isenção sistemática de sentido (Barthes, 1988, p. 68-69).
O ato de desfiar a escritura e criar múltiplos sentidos faz com que exista a
esquizofrenia do escritor. São várias luzes que se acendem ao mesmo tempo, mas com
uma função: a de ludibriar o leitor. Este é, indiscutivelmente, um mote na literatura
godofrediana, e o romance em discussão não escapa disso. Dizer, de alguma forma, em
todos os romances, ainda que na voz de um escritor-personagem, que se tem a
consciência do espaço vazio entre autor e leitor é mostrar que o autor não está morto.
24
Significa marcar o gesto do discurso e intenção da pessoa que está por trás de toda a
diegese.
Em uma das últimas situações, “Apelo”, o narrador afirma:
Nada do que digo ou escrevo é verdade. Se se quiser, pois, a mim
chegar é unicamente através dos meus pensamentos que se poderá
fazer. Se retrucarem que minhas palavras levam a mim, responderei
simplesmente que não. As novas ciências são para mim aqui fadas,
ou bruxas, que desaparecem quando melhor me convier. Faço das
técnicas e ciências abstração, pois neste momento minha pluma é
bastão mágico que me outorga poderes incomensuráveis. Assim,
mensagens transmitidas oral e graficamente são abolidas e minha
pluma, aliás bastão mágico numa pirueta, riscando o ar e o papel,
desperta ciências que levarão a caminhos desconhecidos para até a
mim chegar (Oliveira Neto, 1981, p. 87-88).
Agamben, em “O autor como gesto”, no penúltimo parágrafo do ensaio, diz que
o ter lugar não está de modo algum no texto, no autor ou no leitor:
[mas] está no gesto no qual o autor e leitor se põem em jogo no texto
e, ao mesmo tempo, infinitamente fogem disso. O autor não é mais
que testemunha, o fiador da própria falta na obra em que foi jogado; e
o leitor não pode deixar de soletrar o testemunho, não pode, por sua
vez, deixar de transformar-se em fiador do próprio inexausto ato de
jogar de não ser suficiente (AGAMBEN, 2007, p. 62-63).
O ser humano - ou mais diretamente, neste caso, o autor – passa por um
incessante corpo-a-corpo com a linguagem. Ao assumir que não há verdade no que
escreve e que só se chega a ele através dos pensamentos, o narrador-autor põe-se no
jogo da linguagem, assumindo o seu lugar (por meio de um gesto) de “irredutibilidade
diante dela”. Pouco antes do fragmento citado de “Apelo”, o narrador (voz
indeterminada no texto) inquieta-se: “(...) me sinto mudo e analfabeto. Os dois códigos
linguísticos me servem apenas de biombo” (p. 87). Quanto ao leitor, resta percorrer os
caminhos desconhecidos.
25
3.2. O Bruxo do Contestado: a guerra como metáfora da escritura
A Guerra do Contestado ocorreu na região Sul do Brasil, entre 1912 e 1916.
Envolveu cerca de 20 mil camponeses que enfrentaram forças militares dos poderes
federais e estaduais. Ganhou esse nome porque aconteceu numa área de disputa
territorial entre os estados do Paraná e de Santa Catarina. A construção de uma estrada
de ferro, que ligava São Paulo ao Rio Grande do Sul, foi um fator de relevância para o
conflito porque deixou milhares de camponeses desabrigados e sem emprego.
Nesse momento, o monge José Maria surge com o discurso messiânico, no qual
tencionava construir um mundo novo, regido pelas leis de Deus. Todos viveriam em
paz, com justiça e prosperidade. No entanto, poderíamos dizer que a obsessão por esse
ideal de sociedade, contraditoriamente, acabou, por vezes, se transformando em um
regime nazi-fascista. Os infiéis e os fracos deveriam desaparecer das terras do Irani ou
serem assassinados. Pessoas com deficiências físicas ou mentais não estariam aptas a
serem membros de tal supremacia religiosa.
Há relatos, contestáveis, de que o beato José Maria atacava o autoritarismo da
nova ordem republicana em prol do retorno ao regime monárquico. Mas não podemos
deixar de pensar que esse seria o argumento perfeito para desfazer as comunidades
formadas pelos sertanejos e executá-los. O desejo de tornarem-se independentes
incomodava, perturbava o governo e os donos das terras apropriadas. Ao final, depois
de vários confrontos, milhares de camponeses foram mortos pelas forças militares.
O Bruxo do Contestado, assim como o primeiro romance, também é dividido em
duas narrativas diferentes. A primeira se passa num hotel, em janeiro de 1981, no
percurso de uma semana: são textos curtos introduzidos no romance e sem uma ordem
precisa. Podemos dizer que o conteúdo revela uma espécie de diário, no qual a autora
ficcional do livro verbaliza suas inquietações teóricas e estilísticas diante da escrita.
Mais ainda, a relação que o ato da escritura tece com a morte iminente por leucemia.
Já a segunda narrativa se passa em 1942 em meio a 2ª Guerra mundial e retoma
os conflitos da Guerra do Contestado, com as influências da 1ª Guerra. Estamos diante
do livro escrito por Tecla, a autora ficcional. O período de 1912 a 1916 sempre retorna a
partir das mazelas psicológicas de Gerd, personagem principal que, por meio do
discurso indireto livre, temos a impressão de ser o narrador do romance.
26
Como foi dito, temos dois discursos organizados que nos oferecem duas
narrativas paralelas. Mais duas outras vozes – que bem poderiam ser de um editor –
também aparecem ecoando no início e no fim do livro, aspectos relevantes da
organização textual em relação à dicotomia ficção e realidade. Acrescentemos ainda o
fato de representarem uma voz terceira, que poderia ser exterior ao texto, que se
intromete como parte do romance produzido. Aqui, a voz de um possível editor, mais à
frente – em Menino Oculto – será a voz preponderante do entrevistador-leitor
responsável pelo curso da narrativa. Para uma breve discussão, abaixo está transcrita na
íntegra a página posterior às epígrafes e antes do romance, efetivamente, ter começado.
Ela vem indicada como “Nota aos leitores”:
Esta história estava escrita em um caderno encontrado num
palacete em demolição no centro da cidade de São Paulo, no início dos
anos 80. Havia algumas folhas de papel, com o logotipo de um hotel da
capital paulista, redigidas a lápis, inseridas no caderno. O texto, escrito
com caneta-tinteiro azul, foi pouco modificado, apenas algumas
palavras atualizadas e outras inventadas onde a letra era ilegível. Certos
trechos haviam sido acrescentados a lápis no corpo do manuscrito –
alguns estavam entre parênteses – e foram incorporados ao texto nesta
edição. O título também estava escrito a lápis. A localização das folhas
avulsas no caderno foi rigorosamente respeitada. O manuscrito foi
achado por parentes dos antigos donos da propriedade.
O casarão pertencera à família Jonhasky, que foi proprietária de
uma rede de lojas comerciais em várias cidades na fronteira entre o
Rio Grande do Sul e Santa Catarina, com filiais em Porto Alegre,
Curitiba e Florianópolis. Os Jonhasky, segundo se tem notícia, eram
muito ricos e perderam tudo com o fim da Segunda Guerra Mundial e
com a deposição de Getúlio Vargas em 29 de outubro de 1945.
Tiveram dois filhos: Walter Kurt, que foi morar na Alemanha e
de quem nunca mais se teve notícia, e Tecla, que residiu vários anos
em Nova York, onde morreu de leucemia com cinquenta e um anos.
(Oliveira Neto, 1996, p. 9).
As notas são recorrentes na obra de Godofredo. A presença de uma voz – que
supostamente não seria a do autor do livro – pode ser identificada em quase toda a
literatura produzida por ele, mesmo nos contos. Menino Oculto, como teremos a
oportunidade de averiguar mais adiante, quase teve na construção o projeto estético de
notas cunhado por Oliveira Neto. Essa marca narrativa não passou e não deve passar
despercebida porque se impõe de maneira vigorosa e imprescindível para a questão da
27
autoria – tema central de Menino Oculto e que tem relação direta com a esquizofrenia
do escritor.
O pensamento sobre a ficção e a realidade não se restringe à comparação, por
exemplo, entre os fatos históricos e a fantasia do escritor. A verdadeira autoria é posta
em xeque no momento em que nos damos conta de que o romance em nossas mãos não
é o de Tecla e, menos ainda, o de Oliveira Neto, se pensarmos a interferência das notas
e os esclarecimentos como informações extranarrativas. Há um paradoxo que pela
construção narrativa não se resolve.
Ao ler o diário de Tecla, produzido em 1981, tomamos conhecimento de que o
texto com referência à segunda guerra e aos monólogos interiores de Gerd sobre a
guerra do Contestado é, na verdade, o romance produzido por ela. No entanto, diante da
nota citada, Tecla perde a sua autoridade do texto no momento em que um terceiro
interfere no resultado da narrativa e, por consequência, a escrita quase perde a origem.
O editor-leitor daquelas páginas ofereceu aos leitores explícitos outro texto. Agora,
entremeado ao O Bruxo do Contestado, de Tecla, está o diário da autora ficcional com
as inquietações artísticas e as ansiedades com a doença. Mais do que isso, trechos foram
incorporados ao texto e palavras ilegíveis foram recriadas.
A partir do instante no qual há uma interação entre o texto e o leitor (seja ele o
receptor de telegramas, o editor ou entrevistador) a escrita perde a origem. Se em
Menino Oculto Aimoré se apropria de fragmentos de autores como Machado de Assis,
José de Alencar, Guimarães Rosa, atribuindo um novo sentido aos textos, aqui não será
diferente. Temos um novo romance e, assim como Machado de Assis e todos os outros,
Tecla perde a autoria.
O real e o imaginário são indissociáveis pela própria movimentação de saberes.
São várias realidades e várias ficções no universo romanesco em comparação com a
verdade extratextual. Ao final da narrativa há outra nota um tanto curiosa, denominada
“Esclarecimento”:
Foi em relatos ouvidos, depoimentos recolhidos e nas pesquisas
do autor em arquivos do país que O Bruxo do Contestado encontrou a
sua inspiração. Acrescentem-se àqueles os livros, documentos e
artigos publicados, de vários autores, que analisam a Guerra do
Contestado, a história da Segunda Guerra Mundial no Brasil e a
colonização no Sul do país como, por exemplo, os trabalhos de
Teixeira Monteiro, Pereira de Queirós, Vinhas de Queiroz, Auras,
Ribeiro, Peixoto, Rodrigues Cabral, Piazza, Jamundá, Amaral, Sachet,
Coelho dos Santos, Ferreira da Silva, Peluso, Locatelli, Pellizzetti,
28
Huber, Roche, Finardi, Werneck de Castro, da Costa Pereira,
Cavalcanti, Corrêa, Seyferth, entre tantos outros que poderiam ser
exaustivamente aqui citados. Elementos retirados desses ensaios,
estudos, relatos e depoimentos estão, pois, presente na obra.
O Bruxo do Contestado é, no entanto, um livro de pura ficção.
(Oliveira Neto, 1996, 205).
Se a verdade da ficção e a verdade do real desmancham no ar, nada se solidifica,
como saber se essa nota é do escritor Godofredo de Oliveira Neto ou da escritora Tecla?
Talvez uma pesquisa mais apurada dos nomes mencionados nos diga algo, podem estar
entre eles estudiosos que se debruçaram sobre os temas das guerras, posterior à morte de
Tecla (1981). No entanto, a questão não se resolveria: se o romance ganha o estatuto de
verdade, por descrever fatos históricos e/ou matéria de extração histórica (utilizando um
termo cunhado por Alcmeno Bastos), paradoxalmente nos é afirmado: “O Bruxo do
Contestado é um livro de pura ficção”.
A construção dual na obra de Oliveira Neto não se restringe à fusão de duas
narrativas diferentes. A permanência de ideias opostas – como a esquizofrenia do
escritor e o escritor esquizofrênico – são motes manipulados, sem optar por um dos
lados, desde o primeiro romance. Podemos dizer que esses dualismos são como os
rizomas de Deleuze, um agenciamento de opiniões que rompem com qualquer
ideologia, não temos um ponto fixo. Há uma multiplicidade de oposições postas em
batalha, sem perdedores ou vencedores. Como se verá mais adiante esse é um aspecto
de relevância, positivamente, no que diz respeito à imparcialidade política de O Bruxo
do Contestado.
Dessa forma, estamos entendendo o dualismo a partir de um desdobramento:
Até mesmo o livro como realidade é pivotante, com seu eixo e as
folhas ao redor. Mas o livro como realidade espiritual, a Árvore ou a
Raiz como imagem, não para de desenvolver a lei do Uno que se torna
dois, depois dois que se tornam quatro... (Deleuze, 1995, p. 13).
As folhas ao redor do eixo principal podem ser reconhecidas sob as três
principais articulações dessa narrativa: as referências históricas, a psicologia de Gerd e a
relação de Tecla com a escrita. Todos centrados na guerra como grande metáfora do
romance em análise. A guerra passa dos limites do Contestado. Por várias vezes a
estética da escritura irá nos conduzir para o embate que vai desde a linguagem às
entranhas mais profundas da psicologia paradoxal do ser humano.
29
As epígrafes já revelam a dimensão dos caracteres mencionados:
(...) a distinção entre “extrovertido” e “introvertido” vem de C. G.
Jung.
(...) Nós não damos nenhuma grande importância a essa distinção e
estamos bem cientes de que as pessoas podem ser ambas as coisas ao
mesmo tempo, e geralmente são. (...) Os processos mentais podem
mudar de direção ou combinar forças entre si (...)
Carta de Freud a Romain Rolland
Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e
folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandiocabrava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandiocadoce pode de repente virar azangada – motivos não sei; às vezes se diz
que é por replantada no terreno sempre, como mudas seguidas, de
manaíbas – vai em amargando,de tanto em tanto, de si mesma toma
peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também é que às
vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal.
Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas
Era um sonho dantesco... O tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar do açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Castro Alves, “O navio negreiro”
Nos itens abaixo será observado de que forma os desdobramentos acontecem no
texto e como dialogam com as epígrafes escolhidas.
3.2.1. As referências históricas
As alusões aos momentos históricos são muito exploradas, desde a recriação de
cenas decisivas, descrições ricas dos costumes, dos armamentos e produção da ervamate, a nomes como Oswaldo Aranha, Gustavo Capanema, Salgado Filho, Getúlio
Vargas, José Maria, entre outros. No entanto, e aqui vai uma maior atenção de acordo
30
com o argumento desse trabalho, personagens fictícios ganham o mesmo estatuto de
verdade que os nomes citados.
O leitor deve ceder à desconfiança em todo o percurso da narrativa. Dentro do
texto que o autor, seja ele Tecla ou Godofredo, atenta para o fato de ser “pura ficção”,
estão misturadas escritas retiradas de artigos com escritas puramente ficcionais. Não
podemos dizer que a linha é tênue entre real e fabulação, porque a linha foi rompida por
completo. Em Menino Oculto verifica-se o mesmo processo estruturante do discurso
narrativo. Mas lá a questão é problematizada pelo narrador-escritor Aimoré, no final do
romance ele reconhece a mistura do seu discurso com o dos outros: Machado de Assis,
José de Alencar e todos já mencionados anteriormente.
Está claro que não é gratuito o “Esclarecimento” no fim do livro. Assim como
foi afirmado, elementos extraídos de ensaios, entrevistas e artigos estão presentes na
obra. Entretanto, artigos, discursos e cartas também foram forjados com o mesmo
caráter de verdade. Qual é o mais real? Qual é o mais fictício?
Em O Bruxo do Contestado, há um personagem chamado Dieter que tem um
percurso importante na trama. Ele faz parte do GDD (Grupo de Defesa da Democracia)
e promove várias palestras responsáveis por grande parte dos discursos políticos
dicotômicos que movem a estrutura narrativa. Em função de certo número de
possibilidades e personagens reais tem-se a impressão de que Dieter existiu. O GDD foi
um grupo de destaque na época. Mas ao pesquisar descobre-se que o personagem
pertencente ao grupo não passa de mais uma psicologia imprescindível para marcar
ficcionalmente a força da guerra.
Há um fragmento, reproduzido abaixo, entre aspas atribuido ao Dieter como
autor:
“O estrago da artilharia sobre o povoado de Taquaruçu era tremendo:
grande número de cadáveres, calculado por uns em quarenta e tantos e
por outros em noventa e tantos, pernas, braços, cabeças, animais
mortos, bois, cavalos, juncavam o chão; casas queimadas ruíam por
toda parte. Fazia pavor e pena o espetáculo que então se desdobrava
aos olhos do espectador: pavor dos destroços humanos; pena das
mulheres e crianças que jaziam inertes por todos os cantos do reduto.
De nada lhes serviram as trincheiras feitas de pinheiro, nem as cento e
cinco cavidades quadradas que fizeram no chão, onde se metiam para
se abrigarem da metralha.” (1996, p. 44).
31
Leitor desconfiado, preparado para as constantes falsificações, não consegui me
deter e fiz a fatídica pergunta ao autor Godofredo: Por que esse fragmento está entre
aspas? Foi efetivamente tirado de um artigo?
Ao que ele respondeu: Foi, mas o Dieter não existe. Tirei de algum outro texto
que não me recordo. Mas o verso popular logo acima, iniciado na página quarenta e três,
fui eu que inventei.
A resposta me pareceu séria e verdadeira. De qualquer forma, o fato é que, ao
colocar as aspas, o escritor anuncia que o texto foi transcrito. Dentro de um texto
ficcional, no qual se pretende dar conta de uma história factual negligenciada, chama a
atenção para o jogo entre ficção e realidade. Instaura-se a dúvida: será que foi transcrito
de um daqueles autores aludidos no final do romance? Ou é “pura ficção”?
No que diz respeito aos desdobramentos narrativos, sempre a partir dos
dualismos, partiremos de uma citação de Hutcheon em suas reflexões sobre o conceito
de “metaficção historiográfica”:
[O romance] faz parte da postura pós-modernista de confrontar os
paradoxos da representação fictícia/histórica, do particular/geral e do
presente/passado. E, por si só, essa confrontação é contraditória, pois
se recusa a recuperar ou desintegrar qualquer um dos lados da
dicotomia, e mesmo assim está mais do que disposta a explorar os
dois. (Hutcheon, 1991, p. 142).
A escolha do fragmento deve-se ao fato de estar de acordo com algumas feições
importantíssimas do romance ora estudado, já que lidamos o tempo todo com as
dicotomias. Assim como a autora afirma, sobre os romances que tem como pano de
fundo a história, em O bruxo do Contestado há uma revelação constante dos paradoxos
que não se resolvem. O intuito parece ser apresentar os inevitáveis duelos, sem tomar
partido de nenhum dos lados. Nesse sentido, os rizomas se desenvolvem de dois em
dois em uma infinidade de ideias opostas.
O livro como um todo está permeado pela poética da guerra, assim diferentes
formatos narrativos foram construídos de modo a ressaltar os impasses. De maneira
geral, pode-se partir da imagem central da Guerra do Contestado bipartida em fatores
relevantes que muito tem a ver com as epígrafes do romance. Por exemplo, Gerd em
suas inquietações sobre o retorno dos campos do Irani traz à frente de cena uma carta,
32
enviada pelo primo Rodolfo – membro dos doze pares de França que defendiam com
unhas e dentes o ideal de José Maria.
A carta diz muito a Gerd sobre o sonho de um mundo ideal, igualitário e de
justiça, mas também o inquieta porque exclui daquelas terras os “que têm o pensamento
estropiado, que não olham reto, que não pensam reto, que não assuntam” (1996, 57). Se
para ele a carta funciona quase como uma cerimônia, por carregar os preceitos dos
milagres de José Maria, também traz desespero porque sua filha Rosa, como é descrita
no decorrer do enredo, tem problemas mentais e dificuldades de convivência.
Mais ainda, os leitores têm a nítida impressão de que o reino, supostamente
igualitário, carrega fortes marcas nazi-fascistas: “os fracos vão desaparecer para sempre
do Contestado. (...) os diferentes devem ser afastados. (...) Eu fui escolhido por José
Maria, o santo monge, para cortar a cabeça dos ímpios com o meu facão.” (1996, 57). O
requinte de crueldade também desvela o lado monstruoso daquele “mundo de Deus”:
Os soldados inimigos não são enterrados. Têm que ficar insepultos,
para sempre. Cada um desses enviados do Diabo recebe, depois de
morto, um corte na cabeça com o desenho de uma cruz. Se alguém
tiver enterrado algum, nós desenterramos e deixamos ele virado para o
céu para ser comido pelos urubus. (1996, 57).
Agora, se nos fixarmos mais detidamente na própria estrutura ou modo de
narrar, veremos os desdobramentos de par em par – bem e mal – acontecerem de
maneira infinita, sem que se feche uma definição política unilateral. O intuito parece ser
mostrar o caráter dialógico de ambas as visões, seja ela de esquerda ou de direita. Os
processos podem ser ao mesmo tempo as duas coisas, se revelarem múltiplos e
inconstantes, tal qual nos diz a epígrafe freudiana, ou as mandiocas plantadas nas terras
rosianas.
O capítulo quatro é um diálogo entre Dieter e Ênio (empregado de Bertha, mãe
de Dieter). Partindo de visões políticas diferentes os dois constroem um discurso no
qual os pontos negativos e positivos da guerra são levantados sem que haja briga6.
Ambos respeitam o posicionamento um do outro e não há uma voz preponderante, o que
vale, para nós leitores, é esse eco de lembranças sem vencedores. O recurso estético
6
Rizomas e desdobramentos: Dieter/José Maria x Ênio/militares; José Maria/bem e mal x militares/bem
e mal; as opiniões se cruzam e ambos, por vezes, concordam um com o outro.
33
utilizado por Godofredo parece ter a medida ideal. Assim como nos outros romances,
não há um olhar privilegiado, seja ele o do vencedor ou o do vencido.
3.2.2. A psicologia de Gerd
Gerd é descendente de alemães, um camponês pobre que vive dos trabalhos de
serralheria. Em 1942, durante o Estado Novo e a Segunda Guerra Mundial, tem
perturbações mentais e sofre com as visões do passado tenebroso da infância e delírios
com a Guerra do Contestado. Subitamente, movido pelos anseios e inseguranças sempre interligados pelas dificuldades de lidar com a filha doente (Rosa) e pela infância
malograda (sofria maus tratos do pai) – tem surtos psicóticos e fica extremamente
violento, chegando, algumas vezes, a machucar a própria filha. Junto com os fantasmas
interiores vem o fanatismo religioso. A guerra, neste caso, revela-se pelas mazelas do
dualismo interior de Gerd. Talvez a maior guerra, tema do romance, que fez com que o
título viesse a ser O Bruxo do Contestado.
Tecla, a escritora ficcional, logo no início diz ao leitor:
Falava-se muito em sangue e morte. As virtudes humanas se
faziam raras. Foi nesse contexto que os Rünnel – Rosa, Juta e Gerd –
me invadiram.
O segredo e o enigma de Rosa, as visões do reino da justiça de
Gerd e a apreensão da realidade de Juta me fascinaram para sempre.
Rosa me impressionava. Aquele olhar que falava seu próprio mundo.
Poucas vezes ela teve que ceder e sair do seu universo. Quando o fez,
tinha que chorar. E chorou.
Risquei o título Os Rünnel, no lugar escrevi O Bruxo do
Contestado, porque ele, de alguma maneira, me acumplicia
irreversivelmente com a imagem dos Rünnel, imagem que mobilia até
hoje os meus sonhos. (1996, 14).
De fato, os três são personagens fortes e belos pela construção psicológica e
enigmática que lhes foi conferida. Gerd ficou conhecido como O Bruxo em função de
suas visões messiânicas. O romance de Tecla ganha, por vezes, essa voz perturbada,
todos os personagens são pintados de acordo com a óptica de Gerd. Tudo parece
depender do estado psicológico do camponês. “A tranquilidade de Gerd às vezes se
transformava numa irreconhecível ira que só cessava após horas e horas, mesmo dias,
embrenhado na mata” (p. 30), os olhos do leitor parecem ser movidos de acordo com a
34
dualidade interior desse personagem. Assim podemos receber uma Rosa ingênua, boa,
de olhar delicado - e que o motiva a comprar passarinhos para lhe oferecer de presente –
mas também uma Rosa atrevida e de olhar acusador.
Mas por que esse olhar interrogativo e ameaçador para, de súbito, cair-se em
ternuras e carinhos pela filha? É uma pergunta inquietante no que diz respeito à
personalidade de Gerd. Mais para o final do livro temos o ponto de vista de Tecla sobre
Rosa, na época em que brincavam e se divertiam em sua infância. No entanto, em
grande parte do romance se recebem as impressões doentias do camponês. Ele divide os
seus segredos com uma vaca chamada Stille, mas os leitores não recebem essas
informações.
Há uma lacuna que não podemos preencher. O autor nos fornece estruturalmente
uma narrativa com poucos vestígios sobre os segredos. Tem-se o impacto emocional de
Rosa, alguns acontecimentos como a morte de Victor (o vizinho por quem Gerd
alimentava um ciúme doentio, em relação à Juta) e a morte dos passarinhos de Rosa.
Mas não recebemos as descrições dos casos, eles acontecem e pronto. Essa forma de
narrar é muito interessante porque rompe com as barreiras entre a verdade e a fabulação.
Se Gerd omite as agressões ou se foi criado um imaginário de suspeita em relação a ele,
o leitor não fica sabendo.
O romance é narrado pela escritora Tecla que, distanciada dos fatos, transcreve
as emoções atribuídas por falas que ouvia ou cenas a que assistia. Do ponto de vista
extratextual, sendo Godofredo o escritor, pode-se considerar a hipótese de que Gerd é o
responsável por todos os acontecimentos. Há um momento, logo no início do romance,
no qual Gerd toma a voz por meio do discurso indireto livre ao retornar de uma de suas
fugas para o mato:
Evitava falar, e o pacto de silêncio culpado era respeitado pela esposa
e pela filha. Esquivava-se ostensivamente de Rosa e por alguns dias
fazia as refeições sozinho no rancho. Seus olhos tornavam-se foscos,
os gestos lentos. Um estuprador arrependido, já sem paixão e sem
vontade, o prazer ejaculado, cuspido fora no buraco do lixo. Matar,
agora, só se para varrer tudo da frente dos olhos para sempre! A
cachaça que potencializava o seu ódio e fazia aflorar intensamente os
seus anseios, frustrações e angústias era agora apenas gosto de fel na
boca. Ressaibo amargo. E o quotidiano ia diluir, lenta e
inexoravelmente, os momentos passados. (1996, p. 31).
35
Em que consiste a relação enigmática entre Gerd e Rosa? Arriscaria dizer que
esse trecho revela uma das principais feições do pacto entre ambos, mas tudo se
desmancha no ar e na construção arquitetada por Oliveira Neto. A constante obsessão
com o olhar de Rosa, mais do que as agressões físicas - por vezes descritas para os
leitores - me parece ser também sexual. Mas, repito, dissolve-se e ficamos sob uma
inquietação tipicamente machadiana. O que vale é a dualidade entre bem e mal, tal qual
a psicologia freudiana. Mais ainda, do ponto de vista de dois narradores. Temos duas
leituras que não se fecham, não se pode optar por nenhuma.
3.2.3. Tecla e a escrita
A escrita reflete o modo como o autor se coloca em cena para dar luz à literatura,
daí podemos entender o estilo de cada um, a marca de autoria. Tecla, mais do que todos
os outros autores ficcionais – antes de Aimoré, em Menino Oculto – vive com a tensão
de mostrar a forma mais precisa daquilo que guarda e quer reproduzir aos leitores. A
partir daí há um embate constante entre o que ela comunica e o que deseja comunicar.
Esse aspecto de O Bruxo do Contestado percorre todas as cartas ou diário deixados pela
escritora. Veremos agora de que modo acontecem os dualismos dessa inquietação,
muito particular ao escritor, recorrente na obra de Godofredo.
Barthes afirma: “a escrita é precisamente esse compromisso entre uma liberdade
e uma lembrança, é essa liberdade recordante que não é liberdade senão no gesto da
escolha, mas não mais na duração” (2004, p. 15). De fato, o escritor torna-se prisioneiro
das facetas da linguagem, por vezes também se torna prisioneiro de um passado escrito
por outros autores. Eis uma questão que parece percorrer a obra de Oliveira Neto. Para
dar conta do passado, uma das saídas indicadas é a recriação dos conceitos ou fazer com
que percam a sua origem. Os leitores vivenciam tal feição em Menino Oculto, como já
foi dito: através dos fragmentos de grandes autores e no ato de refazer Portinari ou
Villa-Lobos. Aqui, já observamos a readaptação de fragmentos sobre o Contestado.
É interessante também o modo que Tecla tem de se relacionar com a escrita
desde as primeiras páginas do diário: “Tentei deixar tudo para trás e ser livre como o
Paquequer e Peri em O Guarani, de José de Alencar, começar vida nova. Mas o impulso
para a escrita não me permitiu esquecer.” (1996, 18). A angústia e perseguição parecem
ser também um mote para a escrita da autora ficcional. Há uma espécie de batalha entre
36
ambos durante o romance. Arrependimentos, recusas. A doença colabora efetivamente
para o embate, quando está melhor deixa o Bruxo de lado, mas ao se sentir um pouco
pior recebe novo impulso. Outra marca importante que mais uma vez funciona como o
pio da coruja ou, como já foi dito, Ana Perena em Menino Oculto. São fantasmas que os
perseguem, uma memória impulsionadora.
A terceira parte do diário, escrito no terceiro dia de Hotel em São Paulo
(22/01/1981), congrega em pouco espaço todos esses questionamentos que estão
presentes nas outras páginas deixadas por Tecla. Portanto, será transcrita, aos poucos, e
esmiuçada com o intuito de descrever os processos mencionados:
Para a preparação de um dos meus cursos na Dinamarca, recorri ao
Fedro, de Platão, onde, no diálogo sobre a retórica, a escrita é
assimilada a um perigoso veneno que mata a integridade da palavra.
Servi-me ainda dos já clássicos Tristes Trópicos, de Lévi-Strauss,
quando o autor afirma que a função primária da comunicação escrita é
de facilitar a servidão, e dos Cursos, de Saussure, onde se lê que a
língua escrita travestit e déguise a palavra original. Foi pensando neles
que decidi jogar fora O Bruxo do Contestado. (1996, 63).
Mas o que significa jogar fora o romance? A escritora parece sentir a mesma
inquietação que em Faina de Jurema fez com que o narrador assumisse a
impossibilidade de se chegar aos pensamentos do autor. Lá, ele se sente mudo e
analfabeto, impossibilitado de comunicar a verdade dos pensamentos. As palavras do
autor não fazem com que se chegue a ele. Tais reflexões em torno do lugar conferido ao
leitor estão muito próximas da morte decretada por Barthes:
Se a teoria do texto tende a abolir a separação dos gêneros e das artes,
é porque ela não considera mais as obras como simples mensagens ou
mesmo enunciados (isto é, produtos acabados, cujo destino estaria
encerrado logo que tivessem sido emitidos), mas como produções
perpétuas, enunciações através das quais o sujeito continua a debaterse; esse sujeito é aquele do autor, sem dúvida, mas também aquele do
leitor. (Barthes, 1971, p. 1686).
O texto literário ganhou novos ares a partir do modernismo. O abandono da
simples mensagem a favor de uma problemática da linguagem revelou-se uma
constante, mas a problematização consistia em dar novos caracteres e possibilidades de
leitura, uma pluralidade de significados marcada principalmente pela polifonia. No pós37
moderno fica evidente que esse aspecto se acentua, no sentido de mostrar que a
linguagem não dá conta da verdade. Godofredo mesmo assinala o movimento, tendo
como precursora Clarice Lispector. Muito além de propor romances com notas, crônicas
e relatos autobiográficos, a autora trazia consigo, como poética central, a angústia diante
daquilo que não se consegue comunicar.
Nos romances de Oliveira Neto a inquietação estende o questionamento
metanarrativo para a perda de autoria. Está claro o dialogismo entre escritor e leitor, e
reconhecer o estatuto conferido ao receptor é saber-se incapacitado, mudo e analfabeto.
Podemos observar esse dualismo desde o início de sua produção literária, mas em
Menino Oculto, ao trazer o leitor implícito no discurso ficcional, a barreira foi rompida
e vemos o quanto há força, por parte do escritor, para manipular os seus leitores. Existe
uma força interna que conflui para o caminho intencionado. A escrita - com sua imagem
caricatural e disfarçada - pode não ser domada por completo, mas afrouxa o limite de
apreensão do sentido imposto e permite ao escritor mostrar sua força e manipulação
narrativa. Ainda aqui, em O Bruxo do Contestado, Tecla continua:
Tudo o que eu tiver escrito será lido segundo a cabeça do leitor!
Nossos amores são amores tântalos. Eu escrevo um texto e ele, o
espertalhão, lê outro que não escrevi! Rosa, Gerd, Juta, o Contestado e
as minhas memórias serão de autoria dele.
Claro que o leitor não quer ser escravo de um texto e vai à luta.
Desse desejo de liberdade sairá o seu próprio O Bruxo do Contestado.
Sabe ele muito bem que a escrita vem travestida, é enganadora, e que
ela pode matar o sentido da palavra. O leitor se arma e contra-ataca.
Para mim, muito mais aterrorizante que a folha branca é essa reação
do leitor. De fato, a escrita é, para nós dois, o crivo da imaginação.
(idem, p. 63).
No momento citado Tecla parece ceder e entregar a autoria. A metáfora do
“crivo” é extremamente rica, porque nos diz que, apesar de a escrita ser travestida,
alguma coisa ela carrega de nossa imaginação. Há um entrelaçamento entre o que de
fato pensamos e aquilo que a palavra não consegue exprimir. Entretanto, devemos
perguntar até onde vai a constante releitura/re-escritura do texto narrado, de modo a lhe
ressaltar a intencionalidade. Será que a vontade de manutenção resulta do eterno desejo
do irrealizável? Ou, na verdade, devemos assumir que o texto literário nasce justamente
de um intenso dialogismo entre escritor e leitor? Tais inquietações são muito curiosas
por perpassarem todos os autores ficcionais criados por Oliveira Neto e, mais ainda,
38
para a grande surpresa que foi - no decorrer das pesquisas deste trabalho – a publicação
de Marcelino, em 2008. Mas é uma questão que poderá ser discutida mais à frente.
À espécie de prisão da escrita, Tecla tece algumas relações muito interessantes
com partidos políticos e o academicismo impostos pelas faculdades:
Clarice sabia das dificuldades: Não, não é fácil escrever. É duro como
quebrar rochas. E a arte? Serve para alguma coisa? Breton, Trotsky e
Rivera reunidos no México, expulsos do Partido Comunista. A
Federação Internacional dos Artistas Revolucionários Independentes,
que fim levou? O recurso ao meu referencial (ensaios, autores,
artistas, conceitos, noções), comum no meu universo acadêmico, é um
peso que trago comigo e de quero me livrar e não consigo. Matar a
referência erudita – pesada, fascista, patrulhadora – me libertará? (p.
63).
Mais uma vez as dualidades são postas em jogo, sem um vencedor. A escrita
vem travestida em seu lado mais ardiloso e ditador, assim como pode ser libertadora,
com isso vem o diálogo com o lado positivo e negativo do Partido Comunista. Uma
infinidade de desdobramentos que não se resolvem. Por fim, ela investe na coação e
quase desiste, mas a voz interior (que aqui vem pela doença) impulsiona a escrita quase
como uma febre que não a deixa descansar:
Ia o manuscrito ao cesto. Foi ontem à noite. Justamente, sentiame bem de saúde. Avaliei que Paulo Honório, em São Bernardo,
também devia ter jogado tudo fora. Mas, algumas horas depois,
voltou-me aquela dorzinha enjoada pelo corpo todo. Lembro-me que
mamãe, no Rio, comprava os remédios na Drogaria V. Silva, na rua da
Assembléia, onde havia uma seção para senhoras servida só por
moças. Se você começar a sentir uma dorzinha na barriga me avisa, a
mãe leva na Drogaria V. Silva. Mas agora, aqui no hotel, infelizmente
não são aquelas dores da adolescência. São outras. As que mamãe
também ia sentir mais tarde. É a doença que não me larga. Vou manter
vivo o Bruxo. (p. 64).
É interessante pensar na lembrança de São Bernardo. Paulo Honório devia e
queria pôr tudo no lixo, mas o pio da coruja inquietava. Cada vez que ouvia o pio
lembrava-se da morte de Madalena, o fantasma que o perseguia. Precisava escrever para
avaliar um pouco, com a distância temporal, os motivos da morte daquela mulher. Da
mesma forma, a doença de Tecla reivindica a vida de O Bruxo do Contestado, são os
39
resquícios da guerra e a forte presença da família Rünnel – assim como a autora
ficcional confessa no início do romance.
40
3.3. Aspectos gerais dos outros romances
A rigor, este módulo pretende, de forma ampla, fazer um breve resumo dos
romances Pedaço de Santo, Marcelino Nanmbrá, o manumisso, Ana e a margem do rio
e da novela Oleg e os clones. Para fins argumentativos, apontar as nuances estruturais e
temáticas que encorpam o fio condutor da obra produzida por Oliveira Neto. Dito isso,
optei por efetuar uma pequena mudança na ordem cronológica de publicação (como se
verá mais adiante), priorizando a temática e a congruência de interesses estéticos.
Pedaço de Santo (1997), dando sequência a O bruxo do Contestado, é um
romance de matéria de extração histórica7, considerado por alguns teóricos como o
segundo de uma trilogia dessa categoria. Apesar de não concordar com a expressão
“trilogia” e o modo de enquadramento da obra, escolhi dar continuidade à análise
partindo do princípio cunhado por Alcmeno Bastos. Na medida em que o termo
estabelece uma lógica que pode ser trabalhada a partir da ruptura, a qual o autor Oliveira
Neto estabelece no modo de narrar em cada um dos romances de material histórico.
Assim, basicamente, a narrativa tem como pano de fundo a história de um exilado
brasileiro na França, em 1973, na época da ditadura militar. Fábio pertence a um grupo
político denominado ASL (Aliança Socialista Libertadora) e participa ativamente dos
golpes e ações em prol da organização e dos efeitos sociais pretendidos. A questão
política move-se pela referência a alguns fatos da época e questionamentos sobre os
métodos, principalmente, no que consistem as ações da ASL – assalto a bancos,
violências, mortes, torturas, etc.
No que diz respeito à psicologia do personagem principal, podemos compará-lo a
Gerd. Fábio passa o romance inteiro transtornado por um ciúme doentio e de caráter
questionável. A mulher, objeto do seu desespero, chama-se Muriel. Apesar de a
narração fluir a partir da terceira pessoa, por vezes, o autor utiliza o discurso indireto
livre. Fator que, inevitavelmente, permite a confluência do monólogo interior de Fábio,
revelando as inquietações do personagem em relação à mulher. O interessante é que o
recurso é utilizado somente para dar luz aos reflexos psicológicos de Fábio, os leitores
só recebem o seu ponto de vista – assim como nos outros romances de Oliveira Neto. Se
devemos pensar em uma tríade, ela deveria ser entre, Gerd, Fábio e Aimoré.
7
Conceito criado por Alcmeno Bastos, ver em Introdução ao romance histórico.
41
Personagens movidos pelo impulso afetivo, manipuladores do discurso narrativo, com
perdas de memória e detentores de uma verdade muito particular e da qual se deve
desconfiar.
Observemos a descrição de Fábio, dada por ele mesmo à Muriel:
Nasci em Florianópolis em 1946, mais precisamente numa casa na
antiga Freguesia de Nossa Senhora da Lapa do Ribeirão da Ilha, vida
normal, pobre, de origem açoriana – esquece os olhos azuis, dizem
que pode ser um traço holandês na família, os holandeses andaram por
Santa Catarina -, pai marceneiro (só ele, todos os meus tios são
pescadores), mãe rendeira, faculdade de Ciências Sociais, trancamento
de matrícula pra me engajar na Aliança Socialista Libertadora,
transferência para o Rio de Janeiro, Copacabana, expropriação
bancária em nome da revolução social, prisão, fuga, exílio em Paris.
(1997, p. 33).
Olhos azuis, filho de marceneiro, tios pescadores, motivado pelas andanças de
cunho social: descrição do próprio Jesus Cristo. O personagem parece ter sido criado
com o ideário da pureza, das boas intenções, ao passo que vive uma “interioridade
torturada”, como afirma Paulo Venâncio.8 Ele ainda vivência os resquícios da tortura
físico-psicológica sofrida no Brasil, transporta todo o sofrimento para os
relacionamentos da militância política e da vida amorosa com Muriel. Há uma tensão
entre a mulher e o seu amigo Lázaro, sobre a qual os leitores não têm acesso sem a
interdição do olhar conturbado de Fábio. Estamos diante do mesmo processo concebido
em Menino oculto, uma mulher enigmática para o receptor da obra, assim como para o
personagem principal.
O pedaço de santo representa os conflitos subterrâneos de Fábio. É o símbolo
maior da frustração que o envolve. Um braço de santo, que fora enviado como um
presente, se torna arma nas mãos da sua agressividade: será utilizado para ferir Muriel.
Ele sempre a observava tomando banho de forma muito peculiar, abaixo o trecho no
qual temos acesso aos pensamentos de Fábio por meio do discurso indireto livre:
A essa hora Muriel deve estar dentro da banheira de espuma. Lázaro
também sabia que ela tinha o hábito de ficar por largo tempo de
bruços na água, apoiada nos cotovelos, tirando a cutícula das unhas e
meneando os quadris e uma cauda imaginária. Lázaro chamava-a de
Muriel Melusina, achava eufônico. Fábio Antônio Nunes dos Santos
8
Em orelha da primeira publicação do romance.
42
pensava em Muriel, banho de espuma, revolta popular, guerrilha,
exílio, identidade brasileira e utopias enquanto subia os últimos
degraus que faltavam para alcançar a calçada de asfalto e os
paralelepípedos da Place d‟Italie. (1997, p. 11).
Com o olhar modificado pelas obsessões, mais uma vez, os leitores não
conseguem ter acesso a outra verdade que não seja a de Fábio. Apesar de o narrador não
ser o tradicional, utilizando um recurso próprio da literatura moderna, só temos os
monólogos interiores de Fábio. Em relação aos personagens secundários somente
informações precisas da terceira pessoa ou influenciadas pelo discurso de Fábio, o que
Ronaldes de Melo e Souza convencionou chamar de monólogo narrado9.
Em relação ao diálogo autor-leitor podemos citar o seguinte fragmento, retirado
de uma conversa entre Fábio e Lázaro:
- Mas Fábio, eu sei de cor e salteado o que aconteceu com você
naquele assalto no Rio.
- Mas nunca é demais contar de novo, será sempre uma nova versão,
um novo autor, e, você, um ouvinte novo. (p. 63).
Conversa que, não se pode deixar de pensar, vai ao encontro da reflexão em
Faina de Jurema, na qual o narrador diz não ser possível chegar ao seu pensamento. De
fato, a cada instante em que tentar comunicar uma verdade, uma nova realidade se
instaurará por meio da fala ou da escrita. Vai ao encontro também do amor tântalo
mencionado por Tecla, em O Bruxo do Contestado, e por que não, irá ao encontro da
fala e pensamento desaparelhados, como veremos mais à frente, em Menino Oculto. O
eterno desejo do irrealizável entre autor e leitor, na verdade, o que estabelece o prazer
do texto:
Faça ouvir na sua materialidade, na sua sensualidade, a respiração, o
embrechamento, a polpa dos lábios, toda uma presença do focinho
humano (que a voz, que a escritura sejam frescas, flexíveis,
lubrificadas, finalmente granulosas e vibrantes como o focinho de um
animal), para que consiga deportar o significado para muito longe e
jogar, por assim dizer, o corpo anônimo do ator em minha orelha: isso
granula, isso acaricia, isso raspa, isso corta: isso frui. (Barthes, 2008,
p. 78).
9
Informação transmitida em sala de aula, a propósito da obra de Graciliano Ramos.
43
Como fora dito na introdução, em Pedaço de Santo, também encontramos a
expressão esquizofrenia atrelada ao ato da escrita. Abaixo vai mais um diálogo entre
Fábio e Lázaro; este, além de manifestar uma espécie de definição para o conceito,
falará sobre o desejo de narrar a vida de ambos:
- Às vezes acho que a gente devia desistir, Fábio, desistir. A gente
pode morrer. Se escaparmos vou escrever a história de tudo isso, desse
desejo todo de mudar o país. É um desejo de escrita, vai ser a escrita
do desejo. Falar da minha revolta, da tua revolta. (...)
- Vai ser escritor, ô baiano?
- Vou. O problema é que a arte só nasce de alguém desgarrado da
manada; por isso ela é meio sinônim[a] de sofrimento e [de]
ansiedade. O criador divide a criação com ele mesmo mas a criatura,
para existir, precisa do resto do grupo. Daí a esquizofrenia do artista,
ser social. (1997, p. 177).
A inversão feita na primeira fala, chamada de quiasmo quando realizada da
escrita de poemas, reflete uma questão essencial em Menino oculto e que será
responsável pelo desejo de deixar o espaço em branco no quadro falso de Portinari. A
esquizofrenia, em Pedaço de Santo, também vem atrelada à incomunicabilidade entre
escritor e leitor, ao pensamento que sai violado na medida em que se transforma em
escrita. Para existir a criatura depende do resto do grupo, essa não é uma contingência
fácil. O escritor desenvolve um discurso e o leitor lê outro, como diz a escritora
ficcional de O bruxo do Contestado.
A última página do romance descreve uma possível tentativa de suicídio de
Fábio, diante da imagem apenas sugerida instaura-se a dúvida: ele morreu ou não:
Fábio voltou lentamente à sua escada. Sentou. Olhou a caixa. A cor
dos olhos de Muriel. Abriu-a. Um cotovelo cromado apareceu. A
ponta avançando ameaçadoramente. Segurou a coronha do revólver.
Introduziu, trêmulo, o cano na boca; no oco do mundo. Por aquele vão
quente e úmido penetravam e se fixavam raízes que davam vida a
frases viçosas e fertilizavam idéias copadas. Lá pra dentro razões
viscejavam e eivavam-se emoções. Só um garçon corcunda do
restaurante ouviu o estampido surdo. (1997, p. 222).
44
No decorrer do romance tem-se a impressão de que a perturbação psicológica do
homem transformara-se em loucura. Mas claro, construção narrativa movida pela
ambiguidade. Ao chegar ao final, uma terceira pessoa nos indica um possível suicídio,
porém, a citação constitui as últimas palavras do romance. Os leitores não sabem se ele
realmente morreu: ninguém viu, não há descrição da morte e, segundo o narrador,
somente um garçom ouviu o estampido. Abaixo dessa última descrição vai uma nota em
formato rodapé.
Já se sabe que uma das marcas preponderantes da obra de Oliveira Neto é a
escrita de notas explicativas. Elas constituem, por vezes, peças-chave para a leitura e
entendimento da proposta narrativa. Mais uma vez, o romance em análise não escapou
desse procedimento do autor. Vejamos:
O militante baiano-parisiense da ASL foi liberado em 23 de dezembro
de 1977 e hoje administra uma pousada em Mauá, no interior do
estado do Rio de Janeiro. É casado com Maria José Buonnagura
Costa, com quem teve dois filhos, um menino e uma menina
(Maurício e Stênia). Conforme suas próprias palavras, está escrevendo
um livro sobre toda a história da Aliança Socialista Libertadora, cuja
publicação está prevista para março de 1999. (p. 222).
De acordo com informações anteriores, Lázaro havia sido preso. Agora, em nota,
recebemos a sequência de acontecimentos pós-cadeia. O personagem já havia
manifestado o intuito de escrever um romance com as histórias da ASL, o que a
princípio poderia levar a crer que o livro em nossas mãos seria dele - enquanto escritor
ficcional. Porém, ao atentarmos para o ano de publicação (1999), veremos que diverge
da efetiva data de Pedaço de Santo (1997). O disfarce ficcional utilizado anteriormente
por Oliveira Neto e, mais à frente, em Menino Oculto, não concentra o mesmo intuito
no romance ora estudado. A dúvida sobre a morte de Fábio e a vontade de escrita por
parte de Lázaro partilham a dúvida da verdadeira autoria da narrativa. Está claro que,
num romance tradicional não se questionaria tal aspecto, naturalmente ninguém seria
mais dono do que o próprio Godofredo de Oliveira Neto. Mas estamos lidando com
novas categorias e novos recursos estilísticos, no caso, recursos que caracterizam a obra
inteira do escritor em análise e mexe sempre nos pés da realidade – seja ela a realidade
da ficção ou a ficção da realidade.
45
Marcelino Nanmbrá, o manumisso (2000), para dar continuidade à lógica da
ruptura no romance de material de extração histórica, tem como cenário o governo de
Getúlio Vargas, em 1942. A movimentação acontece entre Santa Catarina e Rio de
Janeiro, aliás, paisagem recorrente na obra do autor e que, provavelmente, não fora
aludida neste trabalho por ser uma referência já gasta nos estudos sobre Oliveira Neto.
De fato, o escritor carrega para a produção literária um forte indicador cultural do
Estado que respirou durante toda a sua vida. E, aqui, não estou partindo dos clichês
relacionados aos costumes, mas de um modo de pensar e estar no mundo do catarinense.
Reflexo disso, talvez um tanto idealizado e abertamente ficcionalizado,
Marcelino – personagem que deu título ao romance – se torna um herói romântico
daquelas terras inspiradoras do romancista. Um adolescente puro, cafuzo, pobre,
pescador e que desperta para o sexo. O despertar será o responsável pela ruptura com a
pureza do herói e, em decorrência, das terras da Praia do Nego Forro. Com a chegada da
família do Senador Nazareno, Marcelino fica divido entre o cheiro de fêmea de Eve –
uma espécie de dama de companhia dos filhos do senador; o sorriso ardente e
aristocrático de Sibila – filha de Nazareno; e a simplicidade da beleza de Martinha –
uma amiga de infância, sempre com vestido de chita e pronta a acolhê-lo.
O personagem também vive o conflito psicológico, mas partindo da sua
incapacidade de transformar em cognição os efeitos do diálogo com o mundo. O maior
ponto de impacto ocorre quando não consegue salvar um menino de nove anos, numa
tempestade durante a pesca. No momento da mesma chuva, ele fura a mão em um ferro
enferrujado que não tarda em ocasionar uma grave infecção. Para se punir, Marcelino
não deseja a cura: sofre, tem febre, até que, por fim, perde a mão. Diria que a marca de
autopunição é uma das imagens mais fortes da literatura brasileira, pela fragilidade
física e, principalmente, psicológica do herói.
Do ponto de vista da estrutura narrativa, não há experimentações que estejam de
acordo com as feições já mencionadas sobre a obra de Oliveira Neto. Mas as falas em
discurso direto unidas à narração em terceira pessoa – num texto corrido – revelam ao
leitor uma imagem unificada, num ritmo equilibrado e rápido que mantém a tensão
ficcional e não permite a quebra da leitura. Não podemos parar de ler.
Ainda que não mantenha as características que direcionem para a estética da
esquizofrenia do escritor, o modo de narrar, a poeticidade, os conflitos subterrâneos da
alma humana, permanecem como um traço explorado com a mesma sensibilidade e
apuro de sempre. Godofredo de Oliveira Neto, em 2008, publica uma releitura e re46
escritura desse romance que, como veremos, pode ser vista como resultado do viés
literário proposto por este trabalho – dentro da lógica estética que estou identificando na
obra do autor.
Oleg e os clones (1999), de certa maneira, pode estar ao lado de Ana e a margem
do rio sob a perspectiva da crise de identidade. No caso de Oleg, a multiplicidade
identitária vem pelos diferentes papéis a serem desempenhados dentro da sociedade. A
reprodução de Olergárcio – lagarto e personagem principal – acontece de fato, com o
artifício da metáfora própria das fábulas. Aliás, uma distinção estilística presente em
Faina de Jurema e Ana e a margem do rio e que, dificilmente, encontraremos na
produção literária contemporânea brasileira.
O texto já inicia com os “clones” se desenvolvendo:
Olegárcio viu, estupefato, seu corpo se multiplicar. Era um dia de
forte neblina, misturavam-se céu e terra. A cerração envolvia
pastagens e quaresmeiras.
- Estou louco ou sonhando, um dos dois. Só pode ser – murmurou,
esfregando os olhos. Estava cercado por oito lagartos idênticos a ele
que o olhavam curiosos. Todos traziam a mesma marca: um pontinho
claro na pata dianteira direita. Eram, então, nove lagartos com o
pontinho claro. – São Caimão do céu, o que que está acontecendo? –
ainda se perguntou, cada vez mais surpreso. (1999, p. 13).
Transformar-se em vários, para Olegárcio, significa assumir as diferentes marcas
sociais. Se antes ele ocupava um cargo importante, dentro da pequena sociedade de
lagartos, e com isso era oprimido pelos deveres com os quais não concordava, o
fenômeno da multiplicação refletirá “uma vaga apreensão interna, uma angústia difusa,
uma sensação de desconforto tornou-se uma realidade concreta e inelutável” (p. 57),
como afirma Melo e Souza, em posfácio ao livro. Cada clone era responsável por uma
parte psicológica do lagarto, oito partes que constituíam a sua acomodação diante da
vida. O primeiro momento, no qual ele se dá conta do ostracismo, acontece quando um
de seus clones toma a iniciativa de discursar na festa de coroação do rei:
Como pôde declamar aquelas tolices todas, aqueles elogios, tantas
loas? Mas quem tinha discursado? Foi um de seus clones, sim, mas
para toda a sociedade só existia um diretor do Virgílio Marão. Apenas
um. O clone, no fundo, tinha ajudado? É claro que, dando aquela
direção ao discurso, Olegárcio – ou uma cópia perfeita ou uma sombra
dele, que seja! – garantia a continuidade do seu cargo. Cargo, diga-se,
dos mais cobiçados da sociedade. Porém exatamente quando, farto de
47
tudo, pretendia expor algumas verdades àquele público e àquelas
autoridades? Quando se decidira a deixar tudo pra lá e até se exilar da
região? Quantas vezes já se imaginara com a Ana Perena numa
Pasárgada diferente. (1999, p. 21).
Movido pelas máscaras adquiridas diante das instâncias da vida, até aquele dia
Oleg não havia percebido que cedia tanto à convenção social que perdeu a sua
autenticidade. Ter a audácia de renegar os espelhos, de tantos anos, fez com que eles se
revoltassem e tentassem sobreviver. Era difícil sobreviver a anos de empáfia e de
valores pessoais renegados. Com o desejo de mudança, curiosamente, vejamos que
imagem vem à cabeça: “Ana Perena numa Pasárgada diferente”. A mesma Ana que, em
Menino oculto, se revela símbolo de resistência e inspiração para Aimoré. A mulher
símbolo de perfeição e do mundo idealizado. Em Oleg e os clones a Ana também foi
embora, deixando-o em maior conflito e mudo diante dos acontecimentos.
Em relação à estrutura narrativa já evidenciei que possui o esquema da novela:
enredo com um único foco, desenvolvido num espaço mais longo que o do conto, a
partir das peripécias de um único personagem. Faz parte do gênero fábula e/ou apólogo
por ser uma narrativa de cunho figurado, com animais que possuem características e
vivências humanas e com uma moral/ensinamento em torno da autenticidade e das
múltiplas faces existenciais. Outro fator é o uso do discurso indireto livre para acessar
os pensamentos do personagem.
É interessante pensar sobre o fato de que originalmente, na primeira versão de
Oleg e os clones, a novela se chamava Os reflexos de Olegárcio10. A palavra “reflexo”
ficava condicionada à lógica do espelho, assim, Olegárcio estaria dentro da concepção
de ser visto sob vários ângulos. Manteria a ideia de ser ele mesmo as oito imagens que o
rodeavam. Ao ser modificado para a semântica do clone, tem-se a impressão de que
todos são reproduções idênticas do que ele é, está fora da ideia de divisão na qual são
reconhecidas as várias faces do personagem principal.
Por fim, ele consegue vencer as máscaras e triunfa “sobre os seus contrários, e o
seu estado ao fim da contenda é a exata medida da dificuldade da luta pela posse do
próprio ser. Olegárcio transcendeu-se. Pôr a cabeça para fora da toca é a perfeita
imagem do seu renascimento”. (Melo e Souza, 1999, p. 60).
10
De acordo com o manuscrito de Godofredo de Oliveira Neto que está reproduzido em anexo.
48
Ana e a margem do rio (2002) pode ter como ponto central a identidade
cultural, do ponto de vista da fragmentação do indivíduo moderno. Partindo do conceito
de sujeito pós-moderno, criado por Stuart Hall, podemos dizer que Ana está em conflito
com a sua identidade indígena em função das várias representações dos sistemas
culturais que a rodeiam. A jovem nauã, habitante da Amazônia, recebe o pedido de uma
professora para escrever, em capítulos, histórias antigas contadas pelo seu povo através
dos tempos:
Resolvi, então, escrever uma lenda que sempre ouvi de minha mãe,
lenda que ela dizia ter ouvido da minha vó, e assim para trás, até as
origens da nossa nação. Eu escutava aquela história maravilhada e
tomava cuidado para que mamãe repetisse exatamente os mesmos
detalhes. (...) Até os meus treze anos (quando ela morreu), minha mãe
contava essa longa história da jiboia e do jacaré num português
limitado, repleto de interferências da sua língua e com erros. Eu sentia
uma ponta de vergonha quando outras pessoas a ouviam falar. (2002,
p. 13-14).
A história da jiboia e do jacaré será o desenvolvimento mais acentuado da
“Situação VII – Bagres”, de Faina de Jurema. Podemos dizer que o ato de re-escrever o
mesmo apólogo, ganhando em descrições, cenas, narradores e números de páginas, está
dentro da lógica de perda de origem dos fragmentos, revelando novos sentidos e uma
nova autoria – como já fora mencionado rapidamente e será explorado mais adiante.
A escritura da lenda de sua nação indígena faz com que Ana assuma a identidade
e se aproxime mais da origem familiar. Os conflitos manifestados no começo –
principalmente em relação ao ato de narrar (poderia estar em demasia contaminada pela
estrutura lingüística das outras sociedades) - vão cedendo espaço à força de suas raízes
culturais. A narradora-personagem não escapa da ansiedade manifestada em grande
parte da literatura produzida por Oliveira Neto:
A história do jacaré e da jiboia da minha infância vai adquirindo um
contorno bastante diferente. Ao ser passada para a modalidade escrita,
arrojam-se, subitamente, detalhes que não existiam. É como se o novo
estilo e a nova formatação provocassem também novos dados,
movimentos, cores e perfumes. Cenas fronteiriças às contadas por
minha mãe vão tendo vida nova e ganham autonomia. Seu rosto,
revezado sem parar pelo meu, desfila sorrindo na folha em branco
transformada em espelho, a caneta desenha com letra irregular a nossa
imagem à sombra das goiabeiras, os seres da floresta aparecem no
espelho, tomam-lhe o lugar, mamãe reaparece sempre com um largo
49
sorriso, de novo os animais, o meu rosto assoma no reflexo sobre
estampas da margem do rio e da floresta verde-escura. Histórias
mágicas e maravilhosas que li surgem com frequência, autoritárias, e
guiam a minha escrita. (2002, p. 30).
Entre a finura e a delicadeza das palavras femininas, recebemos a beleza
metafórica criada pelo autor para dar voz a mais uma escritora ficcional que em ato
começa a perceber a dificuldade de reproduzir a história, reconhecendo o império de
uma linguagem autêntica e traidora. Questão que observamos em toda a obra de
Oliveira Neto, uma feição forte do discurso, uma questão incômoda presente como
teoria e formato narrativo:
O homem é oferecido, entregue por sua linguagem, traído por uma
verdade formal que escapa a suas mentiras interessadas ou generosas.
A diversidade das linguagens funciona portanto como uma
necessidade, e é por isso que ela funda uma tragicidade. Assim a
reprodução da linguagem falada, imaginada inicialmente no
mimetismo divertido do pitoresco, acabou por exprimir todo o
conteúdo da contradição social. (2004, p. 70).
Ana, enquanto escritora ficcional, assim como os outros assume a variabilidade
da linguagem, o seu estilo e a sua originalidade vão se impondo de forma vigorosa. Do
ponto de vista estrutural, esse romance também possui a alternância de capítulos: entre a
narrativa de Ana - “O jacaré e a jiboia” -, o livro que será entregue como trabalho; e a
narrativa sobre as inquietações no ato da escritura. Assim como se pode verificar em O
bruxo do Contestado, os leitores recebem o romance de Ana, narrado em terceira
pessoa, ao passo que se tem acesso a uma espécie de diário em primeira pessoa, também
narrado pela personagem principal.
50
4. Um escritor esquizofrênico ou a esquizofrenia do escritor
Desde o início, como podemos verificar na análise dos outros romances, há uma
relação dialética constante entre autores ficcionais e leitores na obra de Godofredo de
Oliveira Neto. Tecla, em O bruxo do Contestado, assegura o jogo entre autor e leitor
como sendo de amores tântalos. Esta possibilidade vem de uma escritura na qual o
embate amoroso parece ser a medida ideal para o lançamento de verdades, ainda que
ficcionais, a serem comunicadas. Para concretizar a jornada, há uma eloquência da
linguagem que suporta todas as insinuações de falta de originalidade, de lógica. Mesmo
diante da ironia socrática: “levar o outro ao supremo opróbrio: contradizer-se”11. Mas
“quem suporta sem nenhuma vergonha a contradição? Ora este contra-herói existe: é o
leitor de texto; no momento em que se entrega a seu prazer.” (Barthes, 2004, p. 8).
Em Menino Oculto estamos diante do autor Aimoré envolvido pela dicotomia: ser
um escritor esquizofrênico ou estabelecer um discurso da esquizofrenia do escritor. Ele
nos oferece os dois caminhos por meio do distanciamento do romance para dar pistas
cruzadas e/ou falsas para os leitores-entrevistadores. Estes, por sua vez, fornecem aos
leitores explícitos (fora do texto ficcional) duas leituras: a do doutor, com a respectiva
autópsia psicológica, descrença e irritação; e a do professor, com o temperamento
artístico da aceitação, tudo é o romance da vida de Aimoré.
A expressão “esquizofrenia do escritor”, como dito anteriormente, foi retirada do
próprio romance. Aimoré descreve uma conversa que teve com a sindica do prédio no
qual morou. A mulher faz uma tentativa de definição sobre a psicologia de seu filho
Zezinho: “pensa uma coisa, na hora de falar sai outra diferente, tem fala e pensamento
desaparelhados” (p. 57). Definição esta que, não podemos deixar de pensar, vão ao
encontro do fragmento retirado de “Apelo”, em Faina de Jurema, em que o narrador
afirma: “Se se quiser, pois, a mim chegar é unicamente através dos meus pensamentos
que se poderá fazer. Se retrucarem que minhas palavras levam a mim, responderei
simplesmente que não” (1981, 87). Após reproduzir o diálogo para o professor Albano,
Aimoré finaliza: “Mas acho que, no fundo, a síndica parecia querer dizer que o
problema do Zezinho deve ser a esquizofrenia do escritor” (p. 58).
A partir dos aspectos narrativos mencionados, este capítulo se subdivide em três
tópicos. O primeiro tem como pretensão apresentar as linhas de análise, de acordo com
11
Definição dada por Roland Barthes em O prazer do texto, 2004, p. 8.
51
os pontos fundamentais que carregam a complexidade do romance: a autoria e a fusão
entre realidade e ficção. No segundo tópico, iniciaremos o exame das diversas faces que
constituem o romance e que corroboram a teoria sobre a esquizofrenia, tema central de
Menino Oculto. Com isso, a interferência dos entrevistadores-leitores será colocada em
questão como responsável por um dos principais argumentos: a relação escritor-leitor,
agora implícita na fabulação (de Godofredo ou de Aimoré?). Por fim, depois de mostrar
a dicotomia por meio dos entrevistadores, teremos o tópico que colocará em evidência
as intenções do narrador de reivindicar a autoria por meio de um discurso consciente e
arquitetônico e, ainda, ao inaugurar uma narrativa de eventos simultâneos.
52
4.1. A autoria como gesto e a ficção na realidade
(...) crio fatos inverossímeis e eles caem na lorota, e eles me achando
louco, esquizofrênico. (...) A lógica e o tempo são inventados, por isso
eu construo a minha lógica e o meu tempo (p. 183).
O lugar – ou melhor, o ter lugar – não está, pois, nem no texto nem no
autor (ou no leitor): está no gesto no qual autor e leitor se põem em
jogo no texto e, ao mesmo tempo, infinitamente fogem disso. O autor
não é mais que a testemunha, o fiador da própria falta na obra em que
foi jogado; e o leitor não pode deixar de soletrar o testemunho, não
pode, por sua vez, deixar de transformar-se em fiador do próprio
inexausto ato de não ser suficiente (Agamben, 2007, p.63).
Durante os estudos em torno de Menino Oculto duas questões se impunham de
forma vigorosa como linhas motoras deste romance: o pensar sobre a autoria e a ficção
na realidade. A autoria vem tratada, por óbvio, a partir da falsificação – embutida no
próprio caráter do personagem-narrador Aimoré. Temos aspectos extraídos sob a ótica
contemporânea: a permeabilidade do discurso através de vários artefatos da internet
(blogs, MSN); os vários intérpretes de música identificados como autores; textos ou
fragmentos publicados na internet podem ser apropriados sem qualquer proteção; sem
falar no velho plágio das artes plásticas que motivaram a tentativa de assassinato de
Aimoré.
No entanto, em uma leitura mais aprofundada, veremos na fala do narrador e
autor ficcional uma constante reivindicação de espaço autoral e originalidade. Como se
sabe, já em fins do século XIX, num momento pré-modernista, o escritor deixou de ser
testemunha irredutível dentro da narrativa. O discurso romanesco passa a mover-se pela
forma e pela estrutura da linguagem. A voz monológica do narrador onisciente perde a
força e a multiplicidade de vozes e pontos de vista ganham vigor.
A perturbação do autor, diante da escrita, e o lugar de importância conferido ao
leitor surgem com a literatura moderna e torna-se um mote recorrente com a literatura
pós-moderna. O narrador onisciente desaparece e as diferentes vozes narrativas dão
corpo ao texto de forma a lhe conferir mais de um sentido e, por conseqüência, tiram a
mensagem que assegurava o lugar do autor. Há uma mistura de gêneros, textos bem
53
mais curtos, por vezes menos poéticos, que efetivaram o pós-moderno como estética
literária. Como já foi dito, no limiar desse cenário Godofredo de Oliveira Neto publica
Faina de Jurema.
Depois da publicação do primeiro livro vieram três romances com “matéria de
extração histórica”, utilizando o conceito de Alcmeno Bastos. Além dessa utilização de
aspectos e personagens de uma época, podemos dizer que todos carregam as
características pós-modernas que direcionaram a teoria da metaficção historiográfica,
de Linda Hutcheon. Aqui a historiografia tradicional também é subvertida pelas
diferentes formas de narrar. Apesar de ainda se apropriarem de personagens e
momentos históricos, são habilmente auto-reflexivos e estendem um novo olhar para os
fatos.
Em O Bruxo do Contestado, como foi apresentado, a narradora Tecla nos traz
uma nova visão do movimento messiânico da Guerra do Contestado, sempre por meio
da fusão dos escombros interiores de Gerd (um camponês fanático religioso) e seus
delírios e visões do passado tenebroso da guerra. Ainda segundo Hutcheon, esses
romances recorrem à História evidenciando o estatuto ficcional do texto e têm
narradores em 1ª pessoa. As narrativas são polifônicas, há uma multiplicidade de pontos
de vista e narradores que, por vezes, se contradizem. Junto com o drama histórico vem o
drama pessoal e a interferência dos fatos na vida dos personagens.
Especificamente em O Bruxo do Contestado, junto com todas essas marcas pósmodernas do romance histórico temos, intercalados com a própria narrativa, capítulos
no qual a narradora-escritora Tecla reflete sobre o seu ato de narrar, o diálogo com o
leitor e sua importância análoga à do autor é trazida para reflexão. O percurso narrativo
apresentado estende-se aos outros romances de Godofredo. No entanto, quando
chegamos em Menino Oculto, além de estarmos diante de uma narrativa que trata das
questões tipicamente contemporâneas12, também estamos diante de um escritor ficcional
que se mostra como manipulador do discurso. Assim como o próprio Aimoré afirma, na
4
É interessante lembrar que - mesmo não sendo um romance de matéria de extração histórica –
Godofredo construiu o romance pautado por referências aos costumes da época: MSN, Orkut, blog,
bandas musicais, novelas, bares frequentados e etc... O que garantirá a permanência semântica desses
nomes? Não por acaso, o autor chegou a ser questionado em entrevista sobre a validade das
referências, ao que ele respondeu ironicamente: “Enquanto estiver vivo, continuarei atualizando”. Se os
românticos tinham o anseio da distância histórica para validar as alusões do romance, para o escritor
pós-moderno, ou pelo menos para Godofredo, esses elementos não condicionam de forma alguma a
realidade.
54
epígrafe deste capítulo, ele inventa uma lógica e um tempo, cria mentiras e os
entrevistadores caem na lorota.
Se antes, desde a publicação de Faina de Jurema, os narradores-personagens
tinham a crise da linguagem e a inquietação com o lugar adquirido pelo leitor na
construção da narrativa, agora, no romance em análise, o narrador coloca-se num lugar
de autoridade tecendo dois fios condutores para três entrevistadores. Não são
entrevistadores quaisquer, eles funcionam como leitores implícitos que recebem
informações cruzadas e dicotômicas. Estas determinam as direções que deram título à
dissertação: o romance trata de um escritor esquizofrênico ou da esquizofrenia do
escritor? O que opõe e aproxima as duas estruturas é uma ruptura eficaz entre um
discurso e outro, no momento em que Aimoré põe-se a fiar alternâncias entre uma
mentalidade e outra.
Quando Foucault e Barthes declararam a morte do autor, estavam considerando
ou forjando uma identidade formal do escritor, inerente ao próprio ato de narrar. A
linguagem era o centro da narrativa. A pluralidade de vozes escondia aquela voz do
autor-mensageiro ou deus. Consideravam os atos interiores do próprio discurso do
romance, independentemente de esse discurso ser do narrador ou do autor. Claro que
Aimoré é um escritor ficcional, mas ao dar voz a um escritor-personagem que se revela
um transmissor direto das leituras dos entrevistadores – Professor Albano, Doutor
Orestes e Doutor Dárdano – Godofredo desnuda as relações internas entre autor e leitor.
Se o leitor adquiriu certa independência, ele também continua a seguir o fio que o autor
joga para, assim como Ariadne, conduzi-lo ao labirinto.
O autor empírico e/ou biográfico joga o fio que conduz à própria falta e o leitor
coloca-se no jogo sabendo-se participante e, ao mesmo tempo, ludibriado pelo discurso.
Secchin, no poema “Autoria”13 dedicado a Godofredo, curiosamente traz a questão da
autoria como forma de apagar o nome a memória do escritor. Um embate amoroso
revelado por estrofes compostas de dísticos: por mais que haja dedicação, suores e lixos,
o eu lírico parece reconhecer a sua fragilidade interpretativa – no que diz respeito àquilo
que se deseja transmitir. Parece, de fato, viver a sua morte na escritura tal qual a
afirmação de Derrida. Poema importante porque, mais do que dedicado à Oliveira Neto,
revela uma das mais representativas faces narrativas do autor.
Observemos os fragmentos abaixo:
13
Poema publicado em 2002 no livro do autor denominado Todos os ventos.
55
Desliguei os faróis, economiza bateria, o reflexo do capim continua a
embaralhar os meus olhos, enredar as minhas idéias, confundir tempo
e espaço, ficção e realidade (p. 15).
Paulo Honório está em pleno delírio auditivo e visual. Tudo isso
suscitado pela conjugação entre os ruídos exteriores e a quebra da
luminosidade. Estes elementos são introduzidos por uma oscilação dos
tempos verbais (Oliveira Neto, 1990, p. 81).
Como foi dito anteriormente uma das linhas motoras de Menino Oculto é a
“ficção na realidade”14. De início é interessante pensar as informações contidas na
expressão: estamos falando de uma ficcionalização da realidade ou de uma ficção pura,
sem a interferência da realidade? Na obra de Godofredo de Oliveira Neto ficção e
realidade são constantemente colocadas em jogo como faces da mesma moeda, ao
chegarmos no romance em análise, ambas passam a ser elementos centrais nas
construções narrativas. A ponte parece ter sido rompida. Alguns romancistas desde o
fim da década de 70 e início da década de 80, como Heloísa Maranhão, articulavam essa
tendência levada às últimas consequências por Godofredo, já agora no século XXI. Se
uma das grandes interrogações da literatura foi a de como separar ficção e realidade, na
obra de Oliveira Neto tudo é ficção e tudo é realidade.
Ainda que a busca pela estética esteja em toda criação literária, há uma
preocupação inerente ao discurso em se transmitir ao interlocutor algo fundamental ao
propósito do romance. Para que o amor entre estética e tema chegue ao sucesso, o autor
transpõe para a linguagem uma forma que, inevitavelmente, revele o conteúdo a ser
esmiuçado. Nesse embate estamos diante de várias escrituras, num tecer contínuo de
intenções que jamais refletem a verdade inicial do autor, muito menos a do leitor. Mas
não devemos perder de vista o fato de o escritor por trás do texto arquitetar fissuras e
emendas que articulam a motivação de leitura ao receptor. Em Menino Oculto a
reivindicação à autoria, como dito anteriormente, é refletida em todas as células do
romance, junto com ela a busca pela originalidade.
A partir disso, o modelo esquizofrênico parece ser o ideal para compor o conflito
entre interior e exterior, a ficção e a realidade. Aqui, parece-me que a pretensão é
evidenciar os trâmites psíquicos que levam o autor, seja ele empírico ou real, no ato da
escrita, a um estágio entre verdade e ficção. Para dar conta disso, numa visão mais
14
Termo utilizado por Godofredo em Tese de Doutorado sobre São Bernardo, de Graciliano Ramos.
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ampla, Godofredo opta por um escritor ficcional que atenta para todos esses aspectos no
decorrer da narrativa, ao mesmo tempo em que o próprio discurso revela-se
fragmentado, aparentemente desconexo. Funde-se de tal forma que não é possível mais
separar “tempo e espaço, ficção e realidade”.
Mais ainda, para dar conta dos flashes de memória de Aimoré, em pleno delírio
auditivo e visual, Oliveira Neto põe nas frases do narrador-personagem oscilações
verbais entre passado e presente num dos momentos mais interessantes do romance.
Aimoré sofre a tentativa de assassinato, está no carro e em pleno delírio quando começa
- no papel que havia embrulhado o quadro falso de Portinari - a escrever sobre o que
estava vivenciando. Intercalada a essa escrita imediata, recebemos o relato de Aimoré
aos entrevistadores no presente:
O quadro ainda está ali no banco traseiro? Alguém me ajude, acho que
desmaiei, a luz interna do carro está quase se apagando, julgo que
delirei e sonhei com atoleiros, rios cheios e uma figura de lobisomem.
Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Já escrevi essa
frase mais em cima? Ou li ela em algum romance? (p. 12).
A dúvida entre o real e o imaginado será uma constante no processo de leitura
em função desse recurso estilístico utilizado, pelo escritor Godofredo, em diversos
momentos do romance. A dúvida sobre o real e a ficção, claramente, é uma das grandes
questões da narrativa e sempre atrelada ao ato de escritura: estamos diante da
esquizofrenia do escritor.
A temporalização não tem clareza, não há ordem cronológica ou espacial,
poderíamos dizer que é quase impossível refazer a ordem dos acontecimentos. Aimoré
tece um discurso no qual há uma pretensão de reconstituir os fatos, definir o ontem e o
agora, a verdade sobre a tentativa de assassinato. Mas, paralelamente, ele diz passar de
um tempo a outro expondo visões aparentemente desconectadas uma da outra. Ele pinta
o que quer e quando quiser. Na frente do leitor, o paradoxo da ficção e da realidade.
Tudo é construção.
57
4.2. Sob o olhar de Doutor Orestes, Doutor Dárdano e Professor Albano: entre a
autópsia psicológica e o temperamento artístico
O entrevistador tem como função primordial o diálogo para elucidar atos ou
ideias, obter esclarecimentos sobre determinado assunto ou vida de alguém. Na intenção
de alcançar sucesso na conversa é preciso fazer uma boa leitura da mesma - do discurso
produzido pelo outro - para se chegar a uma verdade. A verdade construída por aquele
discurso. A introdução desses personagens em Menino Oculto teve como resultado duas
leituras diferentes e fundamentais para se entender o romance.
A mudança de pontos de vista, de acordo com a veridicidade a ser representada,
faz com que o leitor explícito e real receba, por consequência, duas imagens do
personagem principal: a de um escritor esquizofrênico e a da esquizofrenia do escritor.
Ambos faces da mesma moeda. Estamos diante da forma mais original de a literatura
produzir o diálogo entre autor e leitor. É certo que na história da Literatura Brasileira,
principalmente desde Machado de Assis, o leitor é considerado como uma figura
importante para a construção ficcional. Há um percurso de propostas narrativas no qual
se discute o lugar ocupado por ele, como receptor da trama literária.
No entanto, aqui, Oliveira Neto dá um passo à frente ao transpor o leitor para a
narrativa como personagem (leitor ficcional), parte integrante e com funções quase
imperativas dentro do discurso ficcional. Ele participa, interroga e traz à tona as
relações mais vivas entre escritor e leitor. Podemos dizer que, efetivamente, opera de
forma a contribuir como narrador do romance. Há um embate amoroso entre ambos, o
diálogo está posto como falação intratextual. O mesmo embate necessário para que a
obra sobreviva e que pôs o autor em condição de morte, tal qual muitos teóricos da
literatura trouxeram como grande mote em meados do século XX.
No ensaio AUTORidade E ESCRITURA, Lauro Junkes tece considerações muito
importantes sobre o assunto, fazendo um apanhado de vários teóricos que se
debruçaram sobre as relações entre autor e leitor. Se este por vezes é visto como
protagonista e detentor da obra, também ao autor é fornecido o lugar de fundador. O
livro perde o caráter de objeto autônomo para ser apreciado em relação ao seu autor, que
lhe deu origem em determinado contexto histórico-social.
Ninguém vai negar que, depois da estética da recepção - que tem com um de
seus principais teóricos Wolfgang Iser e propõe a literatura como uma relação dinâmica
58
entre autor, obra e leitor - a obra é concebida por uma via de mão dupla: a
intencionalidade do autor e a bagagem social e cultural do leitor: “a propalada ânsia de
imortalidade – a tentativa de o escritor/artista evitar seu desaparecimento – só pode
realizar-se pela comunicação constante da obra artístico-literária, permanecendo viva,
lembrada e recriada na memória dos leitores/receptores” (Junkes, 1997, p. 17). Mas
também temos que ter em vista o fato de o escritor continuar dono do seu discurso e
capaz de manipular os leitores em prol daquilo que se pretende comunicar. Portanto,
veremos de que forma tais aspectos ganham contorno no romance de Oliveira Neto, no
qual temos como tema central a autoria nos mais variados feitios e questões que possa
suscitar.
O romance inicia com a seguinte epígrafe, de Cruz e Sousa:
D‟alto a baixo, rasgam-se os organismos, os instrumentos da autópsia
psicológica penetram por tudo, sondam, perscrutam todas as células,
analisam as funções mentais de todas as civilizações e raças: mas só
escapa à penetração, à investigação desses positivos exames, a
tendência, a índole, o temperamento artístico, fugidios sempre e
sempre imprevistos, porque são casos particulares de seleção na massa
imensa dos casos gerais que regem e equilibram secularmente o
mundo.
De maneira geral, podemos dizer que o trecho selecionado por Oliveira Neto
reflete a dualidade mais importante de Menino Oculto: a dicotomia dos trâmites
psíquicos de Aimoré. Mas, como foi dito anteriormente, as duas leituras que recebemos
sobre o narrador-escritor Aimoré nascem do diálogo construído com os entrevistadores.
Ao ser interrogado por doutor Orestes, doutor Dárdano ou professor Albano, ele
constrói uma narrativa diferente ao passo que também é lido de acordo com o modo
receptivo ou visão prévia que cada um carrega consigo no momento de análise.
Para compreender e, de certa forma, definir essas três figuras complexas,
resolvo-me fazer a seguinte bipartição da epígrafe:
Doutor Orestes e Doutor Dárdano: “D‟alto a baixo, rasgam-se os organismos, os
instrumentos da autópsia psicológica penetram por tudo, sondam perscrutam todas as
células, analisam as funções mentais de todas as civilizações e raças (...)”.
Professor Albano: “Só escapa à penetração, à investigação desses positivos exames, a
tendência, a índole, o temperamento artístico, fugidios sempre e sempre imprevistos,
59
porque são casos particulares de seleção na massa imensa dos casos gerais que regem e
equilibram secularmente o mundo”.
No decorrer da narrativa os entrevistadores parecem querer enredar a estória de
Aimoré. Ao mesmo tempo, o narrador – personagem de si mesmo – ludibria-os por
meio de várias tessituras que vão dar no quadro de sua vida. Mas nós, leitores intra ou
extratextuais, não ficamos sabendo se a estória é factual ou ficcional. O mais certo é que
são ambas as coisas. A duplicidade, que deu título a este trabalho, é marcada por alguns
resquícios narrativos. Diante da divisão indicada para definir os entrevistadores, deve-se
lembrar de um dos mais importantes: não sabemos se Aimoré está num manicômio ou
numa faculdade.
Godofredo, em 2005 – bem próximo à publicação de Menino Oculto – construiu,
curiosamente, um discurso muito bem articulado e que vai ao encontro com questões
imprescindíveis para a argumentação ora proposta. Aos poucos ele será trazido à tona de
modo a evidenciar a pertinência de cada módulo de análise. Já agora, devemos dizer que
se trata de uma entrevista cedida a Bruno Dorigatti, que começa com a seguinte
pergunta: “Qual era a ideia inicial do livro?”. Um questionamento simples e costumeiro
que traz de cara uma resposta interessantíssima no que diz respeito à dualidade
mencionada logo acima:
Os episódios acontecem a partir de uma coisa muito engraçada. Eu era
coordenador do Fórum de Ciência e Cultura [da UFRJ, no campus da
Praia Vermelha]. E ali perto ainda tem o Pinel e o Instituto de
Psiquiatria da UFRJ, o que dá ao campus um clima de loucura. E tem
um bar na UFRJ, chamado Sujinho, aonde, no final da tarde, sempre
aparecem uns caras que saem do Pinel ou do Instituto de Psiquiatria
para pedir cigarros. Tinha um com quem eu conversava mais vezes,
que foi me contando muitas histórias. Era um cara assim bonitão,
nitidamente de família rica, instruído. Dava para ver que havia umas
coisas de fantasia, mas seu discurso tinha uma lógica interna. Aí
comecei a tomar nota, isso foi a matéria bruta. O que era Campos, por
exemplo, eu joguei para Santa Catarina.
Provavelmente, o mesmo relato ao qual o professor e entrevistador Oliveira Neto
teve acesso, tenha sido o construído no consultório psiquiátrico (contado de outro ponto
de vista). Está claro também que muito tinha de real e de ficção o discurso do doente
60
mental. Mais ainda, o espaço de entrevista estava num ponto intermediário entre
faculdade e manicômio.
Os entrevistadores se dividem entre o médico, que procura recuperar na
fabulação de Aimoré uma verdade coerente do discurso, e o professor que ouve
pacientemente toda a estória sem se importar com a autenticidade das informações. Por
vezes, temos também a impressão de que os personagens estão sendo lidos, pelo
escritor-personagem, como possíveis traficantes de obras de arte. Mas tudo nos leva a
crer que se trata das perturbações esquizofrênicas de Aimoré. Há uma tessitura da
narrativa que, brilhantemente, não se resolve. A leitura que nós – leitores extratextuais –
fazemos dos entrevistadores está condicionada à visão que o escritor intratextual tem em
cada momento desses personagens.
Como será apresentada no próximo capítulo, a autoria, em Menino Oculto,
ganha novos sentidos e a falsificação ganha certo estatuto de originalidade. Quando está
em diálogo com professor Albano, Aimoré traz as questões mais importantes no que diz
respeito ao embate entre o verdadeiro e o falso em relação à obra de arte – seja ela
literária ou plástica. Numa dessas conversas, o escritor declara: “A arte mudou mais
nessas décadas [a partir de 60] que em séculos. E eu fiquei preferindo falsificar o
passado.” (p. 69). Professor Albano segue com o diálogo interessante que revela seu
caráter acadêmico:
Essa compulsão é a mesma de quando você repete as frases de
escritores conhecidos?
Machado eu devo ter lido mais de duzentas vezes na vida, sei
capítulos dele de cor.
Como é possível ler duzentas vezes um livro? E dá tempo na
vida para isso?
Claro que dá, é só ficar lendo sempre. E por que tanta pergunta?
Me sinto ameaçado por todos os lados.
Por nada, Aimoré, você tem uma história que interessa a muita
gente. Pouco importa como você conseguiu chegar até aqui, me
interessa o teu relato, em troca a instituição te protege, o serviço
jurídico te dá cobertura, tua vida está salva, tua saúde preservada, tua
integridade física a gente segura, ninguém vai te achar por algum
tempo, mas você é livre de partir na hora que quiser. E como você
veio bater aqui no Centro de Comunicação e Expressão não sei.
Enquanto durarem as nossas entrevistas vai ficando, dorme ali na
salinha nos fundos do meu escritório, a gente vai te arranjar roupas.
As autoridades da universidade concordam, ou melhor, por ora
fecham os olhos, é como se, oficialmente, não soubessem de nada. (p.
69).
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O fragmento citado revela uma das dualidades: Aimoré está na universidade. O
professor condiciona a fabulação do escritor no sentido de construir a narrativa de sua
vida. No entanto, da mesma forma e com igual vigor recebemos de doutor Orestes e de
doutor Dárdano um Aimoré perturbado psiquicamente. Mais ainda, com uma fala que
conduz para o caráter de possíveis traficantes tentando lhe arrancar informações sobre o
lugar no qual se encontra o quadro:
Nós estamos é interessados no quadro, doutor Aimoré Seixas,
no quadro, refaz o trajeto na tua cabeça, tenta lembrar, porra, isso não
é literatura, cacete, a gente quer coisas concretas e não fábulas. (...)
Por que essas descrições todas, doutor Aimoré Seixas, por que
esse romance? Por que esses peixes e naus curiosas, por que essa
música? Para nós só o quadro interessa.
É que tenho que mergulhar no ambiente para reavivar a
memória, doutor Orestes, começar lá do começo. Aqui na serra é
diferente, estou na serra agora, não estou? (p. 97-98).
No decorrer do romance se percebe maior disponibilidade para responder ao
professor Albano, que está sempre com o discurso da paciência para ouvir a fabulação
do escritor ficcional. Enquanto o direcionamento de Orestes e Dárdano se mostra
repressivo e, algumas vezes, grosseiro e impaciente. Albano deixa-se enredar, ao passo
que também argumenta diante da cena narrada por Aimoré. A preocupação está sempre
em torno da arte, juntos parecem inaugurar uma teoria sobre autoria, falsificação e
originalidade.
No duelo entre escritor e leitor podem-se ver algumas marcas textuais que
revelam o intuito dos entrevistadores. Eles funcionam como mediadores da narrativa de
Aimoré, mas como personagens não possuem profundidade psicológica e descritiva. Há
uma parte importante na qual professor Albano identifica-se quase como um leitor, ou
pelo menos exercendo uma das funções que cabe a ele: “tudo o que você disse ou fez eu
sei, sou como uma espécie de tua consciência e um guardião da tua memória” (p. 73).
Quem mais pode receber e guardar a memória se não o leitor? O que seria da
obra e do autor sem alguém para ser o receptor da linguagem produzida? Aimoré põe-se
a fiar uma história de que nem ele mesmo já recorda os detalhes e do que já foi dito,
mas os entrevistadores estão em jogo como participantes – no momento em que
induzem o discurso do escritor ficcional e o ajudam a recuperar a memória – e passivos,
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no que diz respeito ao ato de receber e guardar todas as informações fornecidas pelo
narrador.
As marcas textuais de indução daquilo que se vai narrar aparecem em vários
momentos, como exemplos: “Mas então como é que pode ter acontecido tudo isso,
Aimoré? Parece uma loucura” (p. 20), ou “E de que mais você se lembra além desse
Francisco, doutor Aimoré Seixas? (p. 185). Os entrevistadores estão sempre
recuperando ou apontando algo que lhes parece relevante na fala de Aimoré e indicam
uma nova direção. Dessa forma, ele vai por um novo caminho narrativo e traz outras
questões não mencionadas anteriormente, numa continua sucessão de fragmentos que
vão montar o quadro do romance de sua vida.
Tendo em vista os aspectos mencionados, não se pode afirmar a exata condição
psíquica de Aimoré. O fato é que o novelo se desenrola significando-o pela dicotomia:
escritor esquizofrênico e esquizofrenia do escritor. Dentro da bipartição também se pode
receber o discurso de Aimoré como sendo produzido para despistar os traficantes que
querem o quadro de Portinari de volta. De qualquer forma, a fabulação de Aimoré não
deixa de ser um produto ficcional que também tem muito de verdadeiro.
A esquizofrenia torna-se metáfora da arte, seja ela da escritura ou da pintura.
Como o próprio Aimoré diz, o pintor faz um borrão de tinta aleatoriamente e, aos
poucos, vai acentuando determinados lugares até que o cenário possa ser visualizado
por completo. Tudo isso tem uma lógica, a lógica do artista. O discurso de Aimoré
também é fragmentado e pode ser reconstituído, mesmo que pela ambiguidade. Aliás, o
personagem principal de Menino Oculto, pode ser as duas coisas: se apreendendo uma
realidade o escritor põe muito de ficção e muito de verdade, o esquizofrênico também
põe – as linhas separatórias são perdidas; se a fala do escritor apreende vários discursos
e origens, transformando-se em uma multiplicidade de vozes e numa narrativa
fragmentada, a fala do esquizofrênico também e no mesmo grau.
Sob o olhar dos entrevistadores ou leitores ficcionais, o personagem principal
constrói-se sob as duas ópticas. Diante disso, a ficção na realidade, tal qual apresentada
anteriormente, revela-se o foco de atenção para os dualismos que não se resolvem.
Retornando à entrevista de Godofredo, dada a Bruno Dorigatti, no Portal Literal, se
podem apontar reflexões que trazem luz a tal argumentação:
A partir do momento em que assumo por dentro essas divisões todas,
da identidade etc., assumo a ideia da loucura. O personagem também
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tem isso dentro de si, é um cara que num dia se acha um maestro. Se
acha isso, se acha aquilo. Ele começa a ver que o real é uma
construção. Assumi internamente o discurso meio esquizofrênico da
identidade.
Ou ainda:
Lima Barreto sempre me acompanhou, por conta dessa ideia de
estilhaçamento, de rompimento com o real, a ideia clássica de
literatura. Nunca é uma repetição do que a gente vê, o que a gente está
vendo não é uma realidade, é uma construção a partir de um credo, de
um evangelho, de uma escala de valores, de um pensamento
dominante. Você vê o mundo não com independência, o real é uma
construção. Então a literatura alerta o ser humano dizendo: “Aqui vou
criar um outro real, mas cuidado que o real que você acha que é o real
também não é, é você que construiu”. Vamos desconstruir todos eles.
Quanto mais você lê um autor, mas nota que sua obra é uma
construção, sempre um novo real. Enfim, o real não existe, isso é uma
discussão do final do século XIX, a base da literatura. Não é à toa que
sempre tem loucura na arte.
Mais uma vez essa inquietação teórica reaparece, mas agora na voz do autor
Godofredo de Oliveira Neto, fora do romance. O discurso meio esquizofrênico da
identidade se traduz na linguagem pela autópsia psicológica e pelo temperamento
artístico – para reutilizar as expressões de Cruz e Sousa. Mas ambas as expressões não
estão muito longe uma da outra quando condicionadas à escrita.
Romper com o real sugere um ponto muito importante porque a
verossimilhança, como foi marcada por Aristóteles, perde sua chave que separa o
historiador e o poeta pelo fato e aquilo que poderia ser. Está claro que poeta e
historiador podem ser definidos por essas preocupações diferentes, mas os dois estão
submetidos à construção infinita do real. Quem garantirá que o real do Contestado é
mais verdadeiro que o real do romance escrito por Godofredo? A intenção separa as
duas faces, mas podemos dizer que, por vezes, ganha mais força aos olhos do leitor
aquele que assume o discurso como incerto e sem o caráter de verdade – o romancista.
Tanto a narrativa do doente mental quanto a narrativa do escritor estão
permeadas pela ficção e pela realidade. Os entrevistadores-leitores, como responsáveis
pela visão que se terá sobre Aimoré, deixam-nos confusos e perturbados.
Inevitavelmente, o leitor extratextual passa pela inquietação de não definir uma verdade
sobre o escritor ficcional. Outro fator que caracteriza o estado psíquico de
esquizofrênico (seja ele do doente mental ou do escritor) é a noção perdida de espaço e
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de tempo. O que também não passa despercebido na fala de Godofredo, ainda na mesma
entrevista:
No sonho, tempo e espaço se confundem. E isso vai ser importante
porque nessa era desaparece também aquela noção linear e espacial
que a gente tinha. O louco, o esquizofrênico, faz o que a gente faz
dormindo. Só que daí a gente acorda e freia. Claro, a sociedade não
aguenta isso, mas discute sempre, porque ela sabe que todos são
assim. E eu via isso naquele meu informante do Pinel. Eram nítidas
sensações que eu já conhecia em sonho, impressionante. Desejos
eróticos, físicos, mas desejo também de ser alguém, ser um maestro de
orquestra, artista, presidente da República, desejos reprimidos. O cara
não tem esse freio.
O esquizofrênico não tem esse freio e o escritor menos ainda, porque concretiza
os atos na escritura do romance. O escritor constrói a linguagem fragmentada e o leitor
põe-se em jogo da maneira que bem quiser. Um manipula o discurso e outro recebe o
embate amoroso deixando de lado o passado da mensagem a ser apreendida, para
participar da caracterização do discurso. O autor biográfico continua marcado no texto
através das inquietações que perpassam o romance, mas agora se reconhecendo sob o
olhar do receptor.
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4.3. Uma narrativa de eventos simultâneos
A evidência principal quando se lê Menino Oculto é a perturbação quanto ao
espaço e o tempo que se misturam, de forma a contribuir para o caráter esquizofrênico
de Aimoré. Portanto, esse formato narrativo não passou despercebido por quase nenhum
crítico na época da publicação do livro. Rapidamente, atribuíram à constante
interceptação entre passado e presente, mistura de emoções e quebra dos limites
espaçotemporais ao estilo chamado de fluxo de consciência, inaugurado por James
Joice, Virginia Woolf e, aqui no Brasil, por Clarice Lispector. Um dos críticos que
podemos mencionar como exemplo foi Reinaldo Marques, em artigo denominado “Um
saber do presente”:
Um aspecto que mais evidencia o diálogo do novo romance de
Godofredo de Oliveira Neto com a tradição da literatura moderna, no
nível da própria fatura narrativa, é o recurso ao fluxo de consciência
(...) Os acontecimentos, as cenas se desdobram, para o leitor, a partir
de uma câmara instalada na mente de Aimoré, um narrador louco,
esquizofrênico. Fator que intensifica os cortes abruptos, as associações
entre elementos dissonantes, a confusão entre sonho e realidade, entre
tempos e espaços distintos fusionados no presente da personagem.
(Marques, 2005, p. 101).
No entanto, não é uma conceituação ideal para se definir a narrativa produzida em
Menino Oculto, senão, talvez, acrescentando-lhe novos contornos a partir da
intencionalidade do autor Oliveira Neto. O fluxo de consciência pressupõe um
monólogo interior e o narrador-personagem está em diálogo com os entrevistadores. A
não linearidade do romance tem como fundamento principal, segundo o próprio
narrador-escritor Aimoré, o desejo de ludibriar os entrevistadores e estes, por
consequência, ao interrogá-lo desmancham um discurso para dar voz à outra história,
como se pôde averiguar no módulo anterior. Abaixo um dos momentos nos quais está
clara a intenção do narrador:
É que a Sílvia falava, professor Albano, e eu ouvia a Ana Perena,
mas como explicar isso para esse doutor Dárdano que estava me
interrogando? Eu minto para esses homens que me perguntam coisas,
confundo eles, deixo eles desorientados, invento locais, cenas,
situações, como eu ia explicar a imagem da Ana para eles? (p. 149)
66
De fato, somos levados por um curso narrativo inquietante e labiríntico, mas a
fragmentação está relacionada à esquizofrenia – seja ela a doença ou a forma de o
escritor se comportar diante da escrita. Numa movimentação entre o espaço do Pinel e o
espaço da faculdade, o escritor ao contar o romance de sua vida transita entre passado e
presente. Na verdade, nós leitores extratextuais somos também ludibriados porque
recebemos vários presentes (e aqui falo efetivamente do presente verbal) de acordo com
a entrevista transformada em livro. Não se pode perder de vista que temos em mãos três
entrevistas, misturadas aleatoriamente, que foram transcritas tal qual estavam nas fitas
gravadas e que dão conta de presentes diferentes.
No primeiro capítulo recebemos a narrativa no presente da tentativa de
assassinato: Aimoré escreve, no papel que embrulhava o quadro de Portinari, as
impressões atordoadas pelo delírio. A partir do segundo temos o presente do Doutor
Orestes e do Doutor Dárdano e que se tornam passado no presente de Professor Albano.
Mas, além ainda do presente do Professor Albano – quando Aimoré já fugiu e é
entrevistado dentro do espaço da universidade – recebemos informações posteriores: o
capítulo final, por exemplo, resolve algumas incógnitas narrativas direcionadas ao
Professor Albano e acontece algum tempo depois das outras entrevistas.
Os desdobramentos multiplicam-se da mesma forma rizomática que se verificou
em O Bruxo do Contestado. Podemos observar essa feição na seguinte análise de
Carmem Gadelha e Edwaldo Cafezeiro:
A ação se inicia sem conexão ou sequência da segunda, que também
não tem seguidor. A sintaxe só é possível analogicamente. Não há
efeito com causa explícita. Tudo é imaginado em todos os sentidos do
vocábulo. Tudo sai do interior do discurso. Os desejos pretéritos e
futuros encenam-se simultaneamente. Ao ser lido, o texto é como se
estivesse sendo assistido num palco, numa tela ou mesmo visto num
quadro. Há um valor definido naquela desordem, ou pelo menos, uma
ordem desconhecida. O falso vale tanto quanto o verdadeiro. Quando
a leitura é esquizofrênica, o espaço é o caos, sem articulações nem
encadeamento, mas introduz um conceito que se fixa no pensamento
do leitor e do expectador. (Cafezeiro & Gadelha, 2008, p. 99-100).
Como já foi dito, e agora reiterado pela fala dos teóricos, a partir do conceito de
esquizofrenia leremos o escritor ficcional pela estruturação caótica do discurso – “sem
articulações e sem encadeamento” e, também, pelos mecanismos de produção de
subjetividades, pensando ainda em Deleuze e Guatarri, na medida em que Aimoré
67
mostra-se por diferentes faces: o pintor, o escritor, o maestro, o assassino, o artista de
televisão, entre outras. Mas também podemos lançar outro olhar que desfaz a desordem
e restabelece uma lógica interna. Esta lógica desfaz do conhecimento prévio e
cumulativo que ordenava a fala e a narrativa do escritor. Agora, em pleno século XXI,
estamos dentro da lógica dos eventos simultâneos, como afirma Aimoré, em diálogo
com o professor:
Como assim falsário, professor?
Falsificador, você não se considera um? Um sujeito que imita a arte
dos outros e vende como se fosse desse outro. (...)
Tudo é presente, professor, estamos na época da Internet, dos eventos
simultâneos, não tem mais a história do saber cumulativo, gradual,
entende? Só louco não entende, professor, só louco. (p. 65-66).
Mais à frente:
Eu não sou isso daí, não, um falsário, como o senhor disse há pouco,
professor, não sou, não. Um tipo de saber técnico pode até ser coletivo
e cumulativo, um vai botando um grãozinho no monte que já existia,
tudo bem. Mas o conhecimento – como eu já disse para o senhor há
pouco -, contrariamente ao que muita gente acha, acontece ao mesmo
tempo, como uma rede, as luzes se acendem na mesma hora, os fios se
conectam juntos, como numa festa simultânea. E a vida também é
pura autocronia, para usar uma palavra empregada por um exprofessor de Lisboa, que me mandou um e-mail há dias. É por isso
que passo de um tempo a outro, exponho visões cenas e histórias
aparentemente desconectadas uma da outra. Ou o senhor achava que
eu era louco? Por isso tenho o direito de pintar o que quero e quando
quero. Eu pinto o que gosto, reproduzo o que gosto, reproduzo tudo,
inclusive a assinatura, se estiver no quadro. (p. 67).
A narrativa de Menino Oculto, além de compor um cenário dúbio em relação à
esquizofrenia, também
caracteriza o modo
de apreensão de conhecimento
contemporâneo. No embate da linguagem esquizofrênica, que pode ser tanto da doença
quanto da forma de estruturação do escritor em ato, vivenciamos o advento da
modernidade no sentido tecnológico. Diante disso, misturam-se várias imagens e flashes
da vida cotidiana, das leituras da internet, da televisão e junto com tudo vêm os reflexos
da pintura. Aimoré pinta o quer e quando quer. Assim como num quadro, temos uma
infinidade de pinceladas aleatórias que vão culminar na imagem desejada.
68
Nesse romance há um quadro a ser pintado pelo leitor extratextual se houver o
desejo de se chegar a uma lógica interna. Mas, por óbvio, não estamos condicionados a
isso. Para assumir a ideia central do livro é preciso vivenciar o excesso de presente
perturbador e esquizofrênico. É interessante observar que o presente criado por Aimoré
carrega o passado acadêmico, junto com o cânone da literatura e das artes plásticas e,
ainda, carrega uma memória de mitos – elementos que contribuem ao mesmo tempo
para o imaginário do escritor Aimoré, mas também para as alucinações de um possível
doente mental. Também passamos pela mediação do futuro no qual os livros serão
totalmente virtuais: você compra e ele sai impresso na hora. No texto já citado, Reinaldo
Marques não deixa passar esse possível paradoxo:
O que há de mais avançado tecnologicamente no universo das grandes
metrópoles, como o mundo da informática, da telefonia, do áudiovisual – computadores, Internet, celulares, disc-man, webcam, câmera
digital, MSN, CDs e DVDs – convive com resíduos arcaicos: míticos,
mágicos, religiosos. Esses resíduos formam um universo cultural
heterogêneo, decorrente da fusão de signos da cultura Greco-latina
com elementos de cultura africana e indígena. Estão relacionados
especialmente ao passado de Aimoré, em Santa Catarina, em que se
destacam as figuras do cego Baltazar, dos gêmeos Alceste e
Querêncio. (Marques, 2005, p. 100).
Como veremos mais adiante, a parte mítica do romance tem um valor imperativo
sobre a busca da originalidade de Aimoré. O interessante agora é mostrar como o
excesso de presente, nessa mediação entre passado e futuro vai evidenciar uma
revalorização da arte produzida anteriormente porque, para Aimoré, o ato de refazer a
pintura não está atrelado à falsificação, mas sim, ao anseio de dar vida ao morto.
Quando dizia, lá na introdução, que estamos diante de um excesso de
presentificação que não é o de Beatriz Resende, mas o que Aimoré chama de narrativa
de eventos simultâneos, me referia ao fato de Aimoré tornar vivo o passado literário e
artístico em geral tanto quanto o futuro. Com a peculiaridade de ambos se encontrarem
tão presentes quanto o próprio presente que se firma, ou melhor, eles compõem e são o
presente. Se parte da literatura pós-moderna deixou de lado o passado canônico da arte,
porque os anseios são outros15, Aimoré quer ver a arte clássica viva.
15
É preciso dar conta do momento, o choque e a linguagem crua parecem ser a medida ideal para esses
escritores. Ao que Antonio Candido já atentara no limiar da nova geração: “Talvez, por isso, caiba
refletir, para argumentar, sobre os limites da inovação que vai se tornando rotineira e resiste menos ao
69
Representando o anseio de apreender ao máximo o presente, Oliveira Neto coloca
em sua narrativa um excesso de referências que só podem ser conhecidas imediatamente
à produção do discurso: agora, 2005, início do século XXI. São nomes de novelas,
bandas, músicas, bares, uma infinidade de alusões. Quem dirá que vão ficar? Será que
leitores do século XXII serão capazes de recuperá-las? Mas, como foi dito
anteriormente, esse fator parece não importar para o autor de Menino Oculto. Oliveira
Neto ironiza o valor que possam atribuir às referências. Com isso, o romancista
demonstra que tais elementos são apenas acessórios, bem como todas as referências
produzidas na literatura brasileira desde o século XIX.
Aimoré quer o menino do quadro de Portinari vivo, quer dar o seu traço de
originalidade, mas o quadro perderia a sua origem. De que forma o falsário torna-se
metáfora da literatura? No momento em que Aimoré recupera - por meio do plágio - os
fragmentos dos escritores, dos pintores e dos maestros na história da arte clássica atribuindo-lhe novos significados, ao passo que traz nova vida aos autores
aparentemente mortos.
Há uma cena na qual professor Albano questiona Aimoré sobre a fúria que causou
nos ladrões:
Você deixou de pintar o menino morto, por quê? E só acabou pintando
depois de muita luta. Mas o quadro saiu defeituoso, o menino está
discretamente sorrindo nos braços da mãe, os ladrões, quando
perceberam, devem ter ficado furiosos. O que vai fazer agora Aimoré?
(p. 208).
Ao que ele responde:
A pintura morreu, todo mundo diz isso. Fazer o quê! Uns ainda
pintam. Mas quem é o Iberê hoje? É ainda possível ser como ele? E
eu, que falsifico o que dizem que morreu, sou o quê? Dou vida ao
morto? Faço um morto vivo?(p. 208).
tempo. Aliás, a duração parece não importar à nova literatura, cuja natureza é freqüentemente a de uma
montagem provisória em era de leitura apressada, requerendo publicações ajustadas ao espaço curto de
cada dia. Dentro desta luta contra a pressa e o esquecimento rápido, exageram-se os recursos, e eles
acabam virando clichês aguados nas mãos da maioria, que apenas segue e transmite a moda”.
(CANDIDO, 1987, p. 214). Reparemos bem o fato de se perder em qualidade técnica e, talvez, por isso, a
produção literária desse grupo midiático (que atendem ao mercado editorial) resista menos ao tempo.
70
A partir do fragmento citado, apesar de ser um tanto leiga em relação às artes
plásticas, podemos trazer algumas reflexões um tanto interessantes e que corroboram a
narrativa de eventos simultâneos e a intencionalidade de se dar vida ao morto.
Umberto Eco, em “A reavaliação contemporânea da matéria”16, afirma:
Enquanto as estéticas reavaliam a fundo a importância do trabalho
“sobre”, “com”, “na” matéria, os artistas do século XX muitas vezes
dirigem a ela uma atenção exclusiva, ainda maior na medida em que o
abandono dos modelos figurativos os leva a novas explorações no
reino das formas possíveis. Assim, para a maior parte da arte
contemporânea a matéria não é mais e apenas o corpo da obra, mas
também o seu fim, o objeto do discurso estético. Com a pintura dita
“informal” assiste-se ao triunfo das manchas, das fissuras, dos
grumos, dos veios, das gotas...
Muitas vezes o artista deixa falar os próprios materiais, as tintas que
respingam sobre a tela, o tecido ou o metal que falar com a
instantaneidade de uma laceração casual. Assim, a obra de arte
pareceu muitas vezes renunciar a qualquer forma para permitir que o
quadro ou a escultura se tornassem quase um fato natural, um dom do
acaso, como aquelas figuras que a água do mar desenha na areia ou as
gotas de chuva que incidem sobre o barro. (Eco, 2004, 402-405).
Fazer com que a matéria utilizada deixe de ser simples corpo da obra para se
tornar o centro artístico e sujeito da obra, fez do autor um objeto rendido ao acaso das
formas. Diante dessa concepção contemporânea das artes plásticas, podemos pensar na
polêmica do mictório de Duchamp no qual o objeto possui o seu caráter de beleza, na
medida em que guarda um inesperado formato ou condição estética de polimento,
guardando dentro de si certo atrativo. É claro que há uma finalidade provocativa no ato
de Marcel Duchamp, mas também guarda, no momento em que é colocado à exposição,
um significado formal, inevitavelmente, manejado pelo autor da provocação.
Perde-se também a autoria da obra. Na verdade, nós, leitores e apreciadores, nos
tornamos parte integrante do desejo e concretização daquela obra – seja ela um urinol,
uma escultura de aparelhos eletrônicos, uma roda de bicicleta ou um quadro com tinta
vermelha escorrida. Perde-se o autor e junto com ele os traços clássicos da pintura,
aquele traço que lhe conferia a originalidade. Duchamp, tal qual a afirmação de Aimoré
quanto à morte da pintura, chega algumas vezes a dizer que a pintura morreu17. Aliás,
16
Em História da Beleza. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Recentemente, o MAM (em julho de 2010), apresentou 33 obras sob o seguinte título: “Se a pintura
morreu, o MAM é um céu”. Dentre as técnicas utilizadas estão o óleo sobre tela e o carvão.
17
71
essa é uma das grandes questões em torno da ruptura duchampiana: a morte das formas
e das pinceladas tradicionais da arte18.
A perda dos formatos clássicos também pode ser associada a grande parte da
produção literária contemporânea, principalmente no que diz respeito à literatura
midiática e que atende aos desejos de consumo do mercado editorial, o livro passa a ser
um objeto. Perdemos em qualidade, o excesso de experimentalismos e a pulsão da tinta
que vem num jato rápido fazem com que – como afirmou Antonio Candido – a
literatura se torne um clichê aguado nas mãos da maioria.
Aimoré é um admirador das formas clássicas, sejam elas pertencentes à literatura
ou à pintura. Ele quer ver a arte viva. A partir disso, imagina-se como um artista capaz
de dar vida à arte que dizem por aí estar morta. No fragmento citado, é interessante
observar o fato de o escritor ficcional ter mencionado Iberê Camargo, a propósito do
assunto. Como já dissemos, a principal característica da narrativa de eventos
simultâneos – e que colabora com a linguagem esquizofrênica – tem a ver com a junção
de passado e de futuro num presente que se mostra constante em Menino Oculto. O
contraste que revela, justamente, a possibilidade de se tornarem homogêneos os
elementos opostos – qualidade essencial para se compreender a obra de Iberê Camargo.
A homogeneidade faz com que tudo se torne presente para Aimoré. Os leitores
extratextuais recebem essa imagem por meio da estrutura narrativa, mas também pela
própria fala do escritor ficcional: “as minhas referências somem, passado e presente se
fundem, espaços aparecem borrados na cabeça” (p. 101). “O tempo parece que dá
voltas, o que estava na frente passa para trás, e vice-versa, mal consigo encontrar o dia
de hoje, que é o único que existe, como já disse, os outros dois, passado e futuro,
turvam a racionalidade da gente” (p. 158). Ou ainda quando diz: “O tempo não existe,
pelo menos para mim, disso tenho certeza, não existe futuro, nem passado, só o
presente, professor, acabei de dizer isso há pouco” (p. 159).
A partir dos aspectos mencionados, pode-se averiguar como o formato da
narrativa de eventos simultâneos, por meio de diferentes modos de se representar o
presente, confere à falsificação o caráter de originalidade. O plágio ganha novos
contornos ao sincronizar fragmentos apropriados de outros autores, porque, para
Aimoré, refazer os autores significa homenageá-los e trazê-los de volta. Como símbolo
disso, um dos quadros que ele diz ser o mais copiado é a série Tudo te é falso e inútil,
18
Ver CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. São Paulo, Perspectiva, 1987.
72
do já mencionado Iberê Camargo, inspirado em um poema de Álvaro de Campos
(Fernando Pessoa). Curiosamente, o poeta que não se adapta à realidade e vive no
mundo dos sonhos. Entre o real e a fabulação, o verdadeiro e o falso.
73
5. O espaço vazio do quadro e a busca pela originalidade
Florencia Garramuño publicou em 2004 um artigo denominado “Elogio de un
falsario, o el retorno del sujeto”, a propósito do lançamento de O falso mentiroso, de
Silviano Santiago. De forma mais ampla, a autora atenta para o que acredito ser uma
tendência da literatura produzida a partir da primeira década do século XXI: o sujeito
passa a assumir a multiplicidade de eus dentro de si, fora do contexto da crise da
identidade. Se anteriormente os personagens se inquietavam diante das máscaras sociais
e culturais, agora a capacidade camaleônica parece não mais importar. Observemos o
seguinte fragmento:
Quando quem escreve se escreve, também, como mentiroso, a
escritura de si não é simplesmente a escritura do outro, mas também
uma escritura distorcida, no sentido da distorção das hipóteses.
Através desta falsificação, as memórias são ao mesmo tempo vida de
um sujeito e história do século vinte, e a experiência do sujeito já não
aparece como extensão de uma durée [duração], senão como os
farrapos que a implosão tempestuosa da história tem depositado sobre
o sujeito.
Que a memória seja mentirosa não é novidade, que a escritura
de si seja a escritura do outro, muito menos. O novo nesta novela
mentirosa de Silviano Santiago é que a escritura do outro se converta
em escritura sobre o viés da história da segunda metade do século
vinte. Não no sentido de uma história coletiva que propõe a
experiência de um sujeito, como exemplo o caso da experiência
coletiva de uma época – o que ocorre com o realismo, digamos de um
Fréderic Moreau ou um Brás Cubas – mas no sentido de que um já
não é um, mas muitos. Não é que eu seja outro, porém muitos eus.
(Garramuño, 2004, p. 104).19
Aimoré, em Menino Oculto, assume essa pluralidade e, por consequência, traz
um leque de hipóteses sobre sua verdadeira face. Esta ânsia de apreender uma única
identidade ainda faz parte do universo do leitor, mas o escritor aceita os múltiplos eus
sem manifestar crise. Se a história da segunda metade do século XX fez-se pelas
múltiplas identidades, versões e destinos da arte, bem como afirma Garramuño no
mesmo texto, Aimoré traz para frente de cena essas características por meio da
falsificação. Mas o falso vem com um novo valor, porque perdeu a origem ao adquirir
19
Tradução minha.
74
um novo autor e uma nova máscara, além de vir revestido pelo desejo de originalidade
do autor ficcional. Agora, perante as múltiplas faces do autor – que traz a espécie de
esquizofrenia – há o desejo de abandonar a cópia para dar luz à nova invenção.
O narrador-personagem – que além de falsário é professor de literatura – ouve os
conselhos de Ana Perena e de Cego Baltazar e busca a originalidade. Aos poucos, ele
vai deixando vestígios seus nos quadros falsificados, desde um leve sorriso no rosto do
menino à eliminação por completo do personagem que dá título ao quadro de Portinari.
Diante do espaço vazio, como foi dito anteriormente, Aimoré inquieta-se: é preciso
preencher o espaço em branco. Como veremos nesse capítulo, ele imagina certo número
de possibilidades, ao mesmo tempo em que discute novas conceituações para a
autenticidade e para a falsificação.
No jogo entre o falso e o verdadeiro, a narrativa vai se impondo sob o solo
contemporâneo em torna das questões de autoria. A falsificação perpassa todas as
células do romance, como uma espécie de vírus que contamina toda a narrativa. Aimoré
parece também, como escritor, se autorizar a ser o personagem que bem quiser: o
maestro que dá vida à música de Villa-Lobos, o ator que interpreta na televisão, todos
os escritores, por exemplo, de quem ele se apropria dos fragmentos no início do
romance. Mas o que garante a legitimidade da obra, do discurso? Se as barreiras entre a
ficção e realidade foram rompidas, podemos dizer que as barreiras entre falso e
verdadeiro também não estão muito longe disso. São opostos que convivem e precisam
um do outro para sobreviver. O falso e o verdadeiro também são uma construção.
O primeiro capítulo do romance reproduz as escritas de Aimoré no papel que
embrulhava o quadro roubado, imediatamente após sofrer a tentativa de assassinato,
ainda entre o delírio e a apreensão do que está acontecendo. Junto com essa narrativa
vem a mudança de tempo verbal – passado/presente – que se mistura com a fala do
narrador-personagem já, num momento bem posterior, em entrevista, apesar de não
termos a figura do entrevistador.
No segundo capítulo, Aimoré inicia a história do encontro com um travesti que
matou, por se sentir enganado – mais ainda pelo beijo que lhe foi negado
posteriormente. Há um diálogo interessante, com o professor Albano, no qual ele põe
em evidência o duelo entre o falso e o verdadeiro:
75
Eu não matei o rapaz, e, depois, não era um rapaz. Eu suprimi,
risquei, apaguei uma imagem de mulher loira, provocante, puta. Ele
devia é ficar aliviado.
Ele e ela são uma só, entende isso, Aimoré Seixas dos Campos
Salles de Mesquita Ávila, entende isso, matou um, matou os dois.
Isso é você que acha, você que passa o tempo aí sentado nessa
cadeira. Me disseram que o senhor é professor!
É, sou sim.
Pois é, professor. Tem duas verdades aí nessa história, tem que
ver as duas versões. Eu matei a mulher loira. Se morreu o rapaz junto
é problema dele, não meu. (p. 19).
No transcorrer da narrativa o escritor ficcional usa sempre expressões próprias à
escrita e à pintura para metaforizar os seus atos. No fragmento citado não foi diferente:
“Eu suprimi, risquei, apaguei uma imagem de mulher loira”. A imagem criada não é
muito díspar dos métodos que o escritor extratextual utiliza ao dar vida ao personagem.
O que significa apagar a imagem de mulher? Aparentemente, dar fim ao falso. No
entanto, junto com ele vai o verdadeiro: o homem por trás daquela imagem.
Dentro da lógica da imagem – que quase sempre é traiçoeira – rompe-se a
barreira. O falso e o verdadeiro não existem, senão como complementares um ao outro
para continuarem sobrevivendo enquanto conceito. Esse é um dos principais aspectos
do tema da autoria no romance de Oliveira Neto. Assim como na cena citada, o autor
biográfico leva para a arte, seja ela literária ou plástica, o conceito da perda de
originalidade. A partir disso, veremos neste último capítulo as motivações que levaram
Aimoré à busca pela originalidade e de que maneira o espaço vazio do quadro reflete no
retorno da marca de autoria.
76
5.1. A esquizofrenia: entre o falso e o verdadeiro em Ana Perena, cego Baltazar e
nos gêmeos Alceste e Querêncio
Diante das feições narrativas apresentadas até agora observamos que Aimoré faz
convênio com a esquizofrenia, seja ela pela forma de estruturação da linguagem do
escritor ou do doente mental. Outro recurso interessante utilizado por Oliveira Neto,
para dar conta da ambiguidade, foi a criação de personagens que estão no limite entre a
ficção e a realidade. Logo de início podemos apontar a seguinte epígrafe do romance,
curiosamente, retirada do escritor Lima Barreto que, como já sabemos, também está
associado à questão da loucura:
Eu sou dado ao maravilhoso, ao fantástico, ao hipersensível; nunca,
por mais que quisesse, pude ter uma concepção mecânica, rígida do
Universo e de nós mesmos. No último, no fim do homem e do mundo,
há mistério e eu creio nele.
Dentro do projeto estético da esquizofrenia as barreiras entre real e ficção, como
já foi dito antes, foram rompidas definitivamente. Isso significa dizer que não temos
como palpável nenhuma história narrada por Aimoré – seja ela verossímil ou
inverossímil. Portanto, histórias de assassinatos, de relações sexuais com várias
mulheres, de encontros com amigos, de pássaros com garras afiadas, de gêmeos
representantes do céu e do inferno ou um cego guru capaz de voar, estão dentro da
mesma lógica. Tal impressão chega ao leitor extratextual porque, em todos os casos,
eles recebem categorias de real e de imaginário.
O escritor está autorizado, no universo ficcional, a construir narrativas
fantásticas e misteriosas, a inventar qualquer história – factual ou imaginária. O
esquizofrênico, em seu modo de estar no mundo, também revela esse traço psicológico
e discursivo. No romance em análise a estrutura do discurso não nos permite estabelecer
as diferenças entre um e outro, temos à nossa frente a forma mais exemplar da
esquizofrenia do escritor.
Agora veremos alguns aspectos dos personagens: Ana Perena, cego Baltazar e
gêmeos Alceste e Querêncio, para desvelar de que maneira contribuem para as relações
entre falso e verdadeiro; escritor esquizofrênico e esquizofrenia do escritor. Mais ainda,
como os conselhos de Ana Perena e cego Baltazar se refletem nas atitudes de Aimoré e,
principalmente, na busca pela originalidade.
77
5.1.1. Ana Perena: musa inspiradora do século XXI
As informações recebidas sobre os personagens passam pela peneira do olhar de
Aimoré. Um fator muito importante, porque fará com que o leitor só obtenha
informações que passem pela fantasia, já que a fala do escritor ficcional está sempre
movida pelo estado psíquico de ficcionista ou de doente. Ainda assim, ele mesmo
afirma ter o objetivo de ludibriar os entrevistadores. Mas é imprescindível a
compreensão de que Aimoré, no discurso produzido, acredita na autenticidade dos
personagens criados por ele ou, quem sabe, criado somente por Oliveira Neto - se
considerarmos que dentro da trama narrativa eles existam factualmente.
Ana Perena, mais do que todos os outros personagens, está na lógica ambígua do
narrador-personagem. Cego Baltazar e os gêmeos Alceste e Querêncio, como poderá se
verificar mais adiante, possuem caracteres míticos – mesmo que sejam pessoas que
existiram dentro da realidade ficcional e que tenham sido lidos por Aimoré sob esses
aspectos. No entanto, Ana – apesar de ser revestida por um lirismo fora do comum, um
exemplo de mulher idealizada – possui caracteres de seres humanos reais. Ela tem
cabelos aloirados, olhos de esmeraldas (como define Aimoré), se veste como hippie,
gosta de velas e incensos.
Reinaldo Marques, em artigo sobre Menino oculto, faz uma sucinta e importante
análise de Ana, no que diz respeito à reflexão ora proposta: “nítida evocação de certas
utopias pacifistas, ecológicas e naturalistas dos anos 60 e 70” (2005, 101).
Acrescentando, mais ainda, ela é uma espécie de musa inspiradora do século XXI. Está
sempre marcada pela tranqüilidade e discernimento em lidar com os imprevistos. Nos
momentos mais difíceis Aimoré revê a sua imagem, mesmo que pela figura de outra
mulher.
Uma informação relevante sobre a personalidade do narrador-personagem é o
ciúme doentio que sente por Ana. Não só por acrescentar à impressão que os leitores
recebem de obsessão por essa mulher, mas também porque a marca do ciúme – em
homens psicologicamente doentios – está presente em O Bruxo do Contestado e Pedaço
de Santo. Uma espécie de insegurança sempre marcada por atos agressivos e
aterrorizantes, numa tríade de homens atraentes e que, ao mesmo tempo, causam horror
e revolta.
Aimoré, assim como Gerd ou Fábio – personagens principais dos romances
citados, respectivamente -, traz para os leitores uma dimensão desse sofrimento interno,
78
quase abortado, quando imagina certos traços da personalidade de Ana. Mas, deixemos
claro, temos a percepção do ciúme também partindo da dúvida em relação à mulher –
um traço um tanto machadiano e bastante presente na obra de Oliveira Neto. É
interessante frisar que Juta e Muriel padeceram sim da falta de voz que lhes conferissem
a defesa, assim como Ana, mas a diferença é que esta também é enaltecida por infinitos
traços que lhe dão um status de grandeza. Está acima do bem e do mal. Aimoré, por
vezes, recrimina-se pelas suas atitudes:
Vi a Ana. Andei um pouco na areia, de sapato e tudo. Ela tinha
mergulhado, os cabelos aloirados escureceram com a água do mar, a
cabeça dela surgia e desaparecia, surgia e desaparecia, eu gritei Ana,
volta, porra, aí é perigoso. E ela continuava nadando mar adentro,
gritei várias vezes, as pessoas em volta me olhavam como se eu fosse
um maluco, o sol refletia nas águas, eu perdia Ana para o cintilar das
ondas, via de novo, depois perdia mais uma vez. Não sei até onde ela
foi, até as Ilhas das Cagarras é que não podia ser, é muito longe.
Sentei na areia e chorei como uma criança perdida, será que eu sou
louco, professor Albano? Pedi desculpas a ela, por tudo, se ela tivesse
voltado das águas teria acreditado em mim. Ali, naquela areia, me dei
conta da incompreensão da minha parte, eu não podia ser uma pessoa
normal, não podia, eu tinha que ser internado, caralho, perdi a Ana,
volta, Ana, volta. (p. 74).
No fragmento acima, além da marca de arrependimento, reparemos no caráter
insólito do sumiço de Ana. Teria ela se matado? A dualidade psicológica de Aimoré faz
com que tudo seja uma grande incógnita, não temos um enredo fechado e unívoco,
estamos sempre diante de um sentido duplo.
Ana se materializa nas outras duas mulheres do escritor ficcional: Estela, uma
mulher que Aimoré conhece na rua e que teve o filho de oito anos morto; e Sílvia, uma
mulher que serve de modelo para as pinturas, colaborando também na organização dos
materiais utilizados por ele, faz também faculdade de Belas Artes. Podemos observar
essa feição nas seguintes citações:
Ela não queria estragar os momentos de prazer no motel mitológico de
Botafogo. Foi por ela, Estela, a Ana materializada, que pintei os
cinquenta meninos do Portinari, e que rasguei depois. (p. 130).
Ou ainda:
79
Chamo sempre a Sílvia de Ana, professor Albano, me confundo, ela
não liga. (...) Da Rua das Pedras de Búzios ao motel mitológico de
Botafogo, ao sol lúbrico dos Dois Irmãos, do sexo ao som da música
de Santa Teresa, Ana é tudo isso. (p. 135).
Como ele afirma, ao final do último fragmento, Ana parece estar em todas as
coisas, em todos os momentos. As imagens são muito vivas, mas sempre entre o real e o
fantasioso. Não é um mistério somente para nós, leitores, que não sabemos a verdadeira
face da mulher, mas também para Aimoré que tenta ansiosamente descobrir a sua
origem, se de fato ela existe e quando voltará. É importante pontuar que os personagens
só são vistos pelo narrador. Ao tentar investigar o desaparecimento de Ana, por
exemplo, não consegue nenhuma informação – ninguém a viu, ninguém a conhece, nem
mesmo quando some no mirante do Leblon20.
Se Ana é tudo isso, porque não seria de fato todas as mulheres com quem ele
convive ou conviveu? Representante idealizada das formas mais perfeitas que Aimoré
identifica na arte ou nas mulheres. Aliás, a tensão entre sexo e arte é uma constante no
decorrer do romance. Estão sempre associados e entrelaçados, pela forma perfeita da
mulher que ele deseja pintar ou mesmo em situações nas quais a apreciação da arte –
principalmente a pintura – revela o desejo pelo sexo à sua frente. Um exemplo, dessa
feição da psicologia de Aimoré, foi o encontro com a síndica do prédio – no
apartamento do Leblon – no qual ele faz sexo oral com ela após os excessivos elogios
que a síndica faz ao quadro dos gêmeos. Ao fundo a música da Banda de Ipanema, o
ritmo da percussão, o batuque ritmado do samba:
Dobras untuosas e felpas umectadas tocaram de leve os meus
lábios, discretas, em súplica úmida. Senti na boca o tangenciar de um
perfume denso e vivo, acerbo e doce. Nossas bocas e línguas corriam
a compasso, lábios em ninfas já então colados com força.
De súbito batidas espessas e viscosas de tambores sugados
invadiram com luxúria beiços ansiosos. A síndica lambia, engolia,
pedia mais, as percussões foram se espaçando, devagar, devagar, até
que dona Amélia, saciada, deixou cair o corpo amolecido sobre mim,
a cabeça recostada nas minhas coxas ainda trêmulas. (p. 191).
A junção entre sexo e arte, como pode se verificar, também ocorre no jogo ou
fusão de palavras. O movimento sexual acontece ao sabor da música ao fundo,
20
Pouco antes de desaparecer, Ana dá os conselhos que veremos mais à frente.
80
observemos as metáforas: “batidas espessas e viscosas de tambores sugados”; “as
percussões foram se espaçando, devagar, devagar”.
Ana, pelo que ele mesmo diz, pode ser tudo isso, mas ele insiste em pintá-la, em
materializá-la. Nem Aimoré sabe até que ponto pode efetuar a separação entre os fatos e
a imaginação. Qualquer tentativa de dar conta da mulher amada lhe escapa:
Foi um vazio tão grande e um fim tão doido que me pergunto se
não se trata de uma invenção minha, uma história de louco. Me
lembro que, na hora em que recuei e dei alguns passos em direção ao
Morro do Vidigal, Ana tinha aberto os braços e olhava para as Ilhas
Cagarras. Repetiu várias vezes que seu pai caminhava sobre as ondas,
ela foi se juntar a ele?
Mas ela pode um dia reaparecer. É essa ausência construída e
mantida por mim que entendo como amor, estou errado, professor?
Repintei a imagem dela, vivo com ela, consigo retocar os seus
defeitos, acertar um traço torto, alegrar a paisagem com uma pincelada
viva, apagar o ruim com um traço opaco, azular o céu como melhor
convier aos desejos de Ana Perena. (p. 205).
Apesar do aparente sumiço, Ana está sempre com Aimoré. No segundo
parágrafo do trecho citado podemos observar a obsessão em dar vida a ela por meio da
arte. Ele retorna a pintar a imagem, a partir de uma escrita com termos próprios das
artes plásticas, reconhece que se trata de uma ausência construída e mantida por ele.
Enxergamos a movimentação do pincel. Uma mulher capaz de ser modificada pela
imaginação, com as feições que ele bem quiser pode ser fruto da imaginação de poeta
ou, ainda, de um doente mental. Se cogitarmos a possibilidade de Ana ter existido,
devemos ter em mente que ele, inevitavelmente, sob qualquer ângulo, dá novos
contornos a personagem por meio da esquizofrenia.
O escritor ficcional mantém com Ana a mesma relação que Paulo Honório
estabelece com Madalena. Uma inquietação diante daquilo que não se pode decifrar. A
memória de uma mulher que não pode ser entendida. A semelhança está no ponto em
que Aimoré consegue reconstituir a imagem física, a recapitulação dos fatos também se
coloca longe da verdade sobre o desaparecimento ou suicídio em ambos os casos. Outra
semelhança entre elas é o fato de retornarem sempre como impulsionadoras da escrita.
Se em São Bernardo a motivação vem pela tentativa de entender Madalena, em Menino
Oculto, a motivação vem pela beleza e enaltecimento de uma mulher que beira a
81
perfeição artística. Por isso Aimoré pinta e escreve constantemente a imagem de arte
que ela lhe proporciona.
Antes de desaparecer a musa inspiradora lhe dá os seguintes conselhos:
Sabe, Aimoré – Ana falava olhando para a escuridão -, pensei na
tristeza estampada nos personagens dos pôsteres da nossa sala de
Santa Teresa. Não quero mais isso, nem para mim, nem para você,
nem para o Brasil. Chega de privação, puta merda! Os quadros deram
o seu recado. A arte, só pelo simples fato de agitar a estética vigente,
já mexe nos pés que seguram o que chamam por aí de realidade. Os
nossos pôsteres deram o seu recado. Porra, a gente tem que se indignar
e não aceitar tudo como se fosse verdade, o real é uma construção. É
uma frase lugar-comum, sei, que todo mundo diz, mas parece que para
essa gente a ficha ainda não caiu. (...) Pinta o bem, Aimoré. Acho que
os teus quadros devem ser arte mesmo, não um show espetaculoso,
como um exibicionista que abre a capa de chuva e mostra orgulhoso o
pau duro, exibição que amolece se o encontro amoroso for pra valer.
Pinta o bem. (p. 188).
Os pôsteres são cópias de vários pintores, dentre eles o próprio “Menino Morto”,
de Portinari. Ana parece fazer referência a uma mistura de imagens sociais e ao ato
artístico em si. Ambos têm que ceder a uma reconstrução do real. Na boca de Ana
recebemos a fala de Godofredo – já mencionada a propósito de uma entrevista póspublicação de Menino Oculto -, parece uma frase lugar-comum, mas “o real é uma
construção”.
Diante de um real a ser refeito deve-se abandonar o excesso de
experimentalismos, sem cabimento, sem projeto artístico, para dar luz à arte movida
também pelo encontro amoroso. Poderíamos dizer que ela propõe uma fuga da realidade
triste, tal quais os retirantes do quadro de Portinari, a favor da volta de uma estética do
passado. O mesmo passado canônico que Aimoré reverencia, desde Machado de Assis a
Clarice Lispector, e também, faz de Portinari, Iberê, entre outros, os últimos pintores
com sensibilidade artística.
Ana motiva o bem, faz com que Aimoré escreva o presente e o futuro. Ao final,
recebemos a invocação, feita pelo escritor ficcional, no intuito de sentir-se inspirado por
tudo que há de mais vivo na realidade construída, a musa está em todas as coisas e ele
abandona a falsificação:
Ana, agora me guia, escreve, dirige a minha voz, a minha tecla, a
minha caneta. Guia para a arte, dá voz a quem não tem, olhos a quem
82
não vê. Grita para o mundo o teu gozo, a tua música, o teu sexo, os
teus lábios, as tuas esperanças, o teu destemor. Mostra o teu respeito, a
tua lógica, a tua justiça, a tua tolerância, o teu desprendimento, te
mostra por inteiro, Ana. Eu te ajudo daqui com os meus garranchos,
com as minhas histórias, com as flores do garapuvu, com o canto dos
meus pássaros. Os gêmeos nos protegem, vamos voar Ana, vem, ouve
a música, voa comigo Ana voa. Sei que é você, Ana, vem, me toca,
não me deixa afundar no precipício com vermes. Errei de tanto te
querer, me agarra me levanta, cacete, para sempre. Querem me matar,
me esfaquear, usar a minha pintura para o mal, só quero, com ela,
inverter o real, dizer aos quatro ventos que a vida é a gente que faz,
como faço os meus quadros e o meu texto. (p. 209).
Aimoré segue os conselhos de Ana e deseja inverter o real. Nesse desejo, a
narrativa torna-se exemplar para investir no novo método. Ele deixa a sua marca em
todos os quadros que falsifica até deixar o espaço em branco – como veremos no
próximo módulo. A narrativa rompe com os valores entre falso e verdadeiro em todos
os centímetros frasais. O falso ganha o valor de verdadeiro e Aimoré se considera o
autor das cópias. A esquizofrenia, mas do que uma doença, se torna metáfora do pintor,
do escritor, em seu fim último, do artista.
No fragmento acima, vivenciamos o desejo de escrever uma nova trajetória
artística e a importância de Ana enquanto inspiradora. Uma das mais significantes
marcas descritivas que fazem dessa mulher pura imaginação do autor, musa motivadora,
personagem criada. Mas a ambiguidade, como todas as outras, permanece no ar e
corrobora a grande questão da esquizofrenia como metáfora no escritor. Seja do ponto
de vista do doente mental ou do escritor, ela efetivamente é um personagem. Se ela
existiu, foi subjetivada pelo olhar de Aimoré em ambos os casos.
5.1.2. Cego Baltazar e os gêmeos Querêncio e Alceste: personagens míticos ou reais
da Baía da Babitonga
Inicialmente, pode se dizer que o cego Baltazar e os gêmeos Querêncio e Alceste
estão dentro da mesma realidade ficcional. Isso significa que fazem parte do mesmo
quadro interpretativo, seja porque estão interligados pelo cenário: os gêmeos levam, em
seus barcos, passageiros para o outro lado da Baía onde se encontra a figura misteriosa
83
de Baltazar, ou ainda, porque representam figuras míticas e com atitudes sempre
suspeitas em relação à verossimilhança.
Aimoré, de fato, inverte o real. Do ponto de vista desse narrador-personagem,
recebemos somente a imagem mítica. Eles não são pintados como Ana, que também
recebe caracteres que lhe conferem veracidade. De qualquer forma, tudo pode ser fruto
da cabeça fantasiosa de Aimoré e, talvez, ao serem desnudados, pudessem ganhar
feições de pessoas normais. No entanto, os leitores só recebem o mistério, o fantástico segundo o fragmento de Lima Barreto: “no fim do homem e do mundo, há mistério e eu
creio nele”. Ao romper com a barreira entre real e ficção, o romance revela novos
contornos. A vida narrada, ou o romance da vida de Aimoré, é construída atribuindo-se
categoria de verdade mesmo aos momentos misteriosos e míticos do texto.
A primeira aparição dos gêmeos na narrativa acontece a partir de um jogo de
palavras muito interessante. O escritor ficcional descreve ao professor Albano o dia em
que os conheceu, intermediado por um amigo denominado Aristides. Os gêmeos são
responsáveis pela travessia da Baía da Babitonga para se chegar à Vila da Glória.
Segundo Aristides:
Se comentava na cidade que, à noite, um conduzia as pessoas para o
inferno, o outro para o céu. Tinham a mesma cara, mas um era
moreno, o outro o loiro, descendentes de marinheiro francês desertor
de uma nau de guerra com índia carijó. De noite os mortos iam ver os
dois irmãos, todos, claro, queriam o céu, o loiro devia ser o anjo. Não
era, o moreno é que era. Muito trouxa se enganou assim e hoje queima
no fogo do inferno. Os dois irmãos são um só, como a gente (p. 39).
A explicação sobre os gêmeos vem, como sempre, por meio da voz de Aimoré –
os leitores não têm acesso direto ao relato de Aristides. Partindo da citação, podemos
avaliá-la sob dois pontos: a perda da barreira entre o bem e o mal, assim como entre o
falso e o verdadeiro. Ainda dentro da perspectiva de inversão do real, os gêmeos são
comparados com os personagens de Barca do inferno, de Gil Vicente. Personagens
míticos e próprios da ficção que ganham espaço dentro do que nós, leitores e seres
humanos, chamamos por aí de realidade. O real passa a ser uma construção, e todo e
qualquer personagem do real, que está fora do romance, pode ganhar caracteres de
personagem ficcionalizado. Basta que essas feições façam parte do nosso imaginário.
84
Está claro que a compreensão de que o ser humano compõe-se da dualidade
entre o bem e o mal ocorre desde o século XIX. Um romance exemplar, do jogo entre
esses opostos, é o Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, no qual o
capítulo CV – “Equivalência das janelas” revela de forma irônica o embate: ao fazer
algo maléfico é preciso abrir a outra janela para o bem e, assim, compensar o mal que se
fez. Mas aqui, o que se deve observar é o fato de os personagens bipartidos, pelas
infindáveis histórias do mito21, serem unidos pela necessidade de os opostos bem e mal
completarem-se.
A marca da fusão entre os barqueiros, “os dois irmãos são um só”, é o fato de
também se descaracterizarem da ideia original do mito: se o imaginário,
costumeiramente, faz com que o bom seja o loiro e o ruim seja o moreno, em Menino
oculto invertem-se os papéis. Com isso, perde-se a noção entre o verdadeiro e o falso. E,
mais uma vez, Aimoré desequilibra as feições da verdade, seja ela da ficção ou da
realidade.
No que diz respeito às descrições insólitas dos personagens podemos fazer
algumas ponderações. Antes de tudo, devemos ter em mente que o romance gira em
torno da esquizofrenia. Fator de extrema relevância porque fará com que os
entrevistadores não se choquem com os relatos de Aimoré, tudo faz parte da fabulação
do escritor ou das visões perturbadas do doente. Alcmeno Bastos, diante do que ele
convencionou chamar de “os realismos irrealistas na literatura contemporânea”, afirma
o seguinte:
Como processo de representação da realidade, o ficcional literário
alimenta-se dessa possibilidade de situar-se entre a relação do SIGNO
com o REFERENTE e a relação do signo com o referente. Quando
muito próximos, supostamente indistintos, a representação é
“realista”; quando muito distantes, supostamente irreconciliáveis, a
representação é “irrealista”. Sob a segunda rubrica podem ser
aninhadas as correntes ditas do realismo maravilhoso, do realismo
mágico, do realismo absurdo, do realismo fantástico etc. Como se
pode notar das próprias rubricas, curiosamente o termo determinante
vem precedido da palavra “realismo”, como que a indicar, a despeito
do caráter antitético do sintagma, a permanência de uma idéia de
essencialidade realista nas formas de representação ficcional da
realidade. (2009, p.8).
21
Reinaldo Marques, a propósito de Menino oculto, chega a relembrar o mito de Caronte: “barqueiro
mitológico que transportava as almas dos mortos ao Hades” (2005, p. 101). Aqui, mais especificamente,
o mito nasceu do imaginário indígena e africano, nas pequenas cidades de Santa Catarina.
85
A partir das reflexões de Bastos, podemos entender que, antes de tudo, a
linguagem construída está revestida pelos códigos linguísticos com os quais os leitores
estão acostumados. Uma questão exemplar, colocada pelo autor no mesmo ensaio, está
relacionada à Metamorfose, de Kafka. Para perder totalmente a noção de realidade,
implícita no ser humano, o conto deveria ser narrado por uma barata e, por
conseqüência, tornar-se inacessível aos homens. Entendida a relação de permanência
realista como forma de representação ficcional, em Menino oculto deve-se estar atento
ao caráter insólito, não da linguagem, mas das imagens criadas dentro do romance.
Segundo Bastos, nos romances de estilo irrealista, os personagens não se chocam
com os eventos que fogem ao real, tudo é natural dentro da verdade ficcional e, para
eles, a questão do maravilhoso simplesmente não se coloca. Uma ponderação que me
parece muito importante em relação ao Menino Oculto, porque para os únicos
personagens que recebem o discurso de Aimoré – doutor Orestes, doutor Dárdano e
professor Albano – ou ele é louco ou está fabulando tal qual um escritor. No entanto,
apesar dessa naturalidade, que de certa forma recusa o insólito como parte de um
imaginário, Aimoré impõe uma verdade sobre Ana, Baltazar e os gêmeos, que faz com
que o leitor se pergunte sobre a real feição desses personagens. E o mais relevante, para
a compreensão da narrativa de Oliveira Neto, é saber que o real foi invertido
intencionalmente por Aimoré e, a partir disso, é imprescindível atender à proposta por
ele desejada. Assim, a grande originalidade alcançada pelo escritor ficcional, como
veremos no próximo módulo, está no fato de o espaço em branco no quadro de Portinari
representar a inversão do real como marca de sua autoria.
Como pintor, após deixar alguns traços nos quadros falsificados, ele realiza ao
máximo sua autenticidade ao dar vida aos gêmeos. Aimoré atribui traços aos
personagens míticos, mistura fantasia e realidade no quadro que despertará interesse
após a tentativa de assassinato e sequestro. Segundo os traficantes, o quadro valerá
milhões se for descoberto. Ele segue os conselhos de Ana e de cego Baltazar: inverter o
real e salvar a arte.
A primeira aparição de Baltazar no texto começa, justamente, pelo final
cronológico do personagem com o seu desaparecimento no tempo psicológico de
Aimoré:
O cego Baltazar se debatia na areia. Fiquei olhando de longe,
gelado, apavorado. Ele parecia tentar abater no ar morcegos
86
pestiferados, pássaros assustadores, emitia gritos aterradores, como se
sentisse dores, professor. Uma hora caiu, o ente que só ele via
conseguia derrubar os rochedos de Santo Antão.
Baltazar levantou, dava urros de ódio, tentava retirar alguma
coisa agarrada ao seu peito, abaixava-se, com o punho fechado socava
a areia fina, virava-se de repente, outro animal furava-lhe as costas
com o bico pontudo. Baltazar segurou as duas partes do bico, tentou
arrebentar as articulações da mandíbula, voltou a bater na areia com a
mão, com os pés, esticava às vezes os braços e exibia as palmas das
mãos, o ser, o que quer que fosse, recuava. (...)
Nesse dia o cego Baltazar, que tanto tinha me orientado, alouse, voou, é o mínimo que posso dizer. Batia asas, ainda teve tempo de
olhar para mim, as pálpebras pareciam abertas, ele tinha recuperado a
visão? Me senti só, pequeno, rejeitado, é bonito aí de cima, Baltazar?
A pergunta não saiu da minha garganta. Fui a última pessoa a ver o
cego Baltazar, me lembro até das roupas que ele usava. (...) Com ele
se foram o equilíbrio e as lições dos meus mitos da Babitonga. (p. 2830).
Como já foi dito, a história é narrada com naturalidade e não sofre interferência
no sentido de refutar o que fora identificado por Aimoré como uma verdade. Cada
personagem narrado para os entrevistadores faz parte, digamos assim, de um plano
cenográfico diferente. O que quer dizer, inevitavelmente, que não entram em contato
um com o outro. Mais ainda, os leitores não recebem nenhum ponto de vista.
Todos os personagens que passam pelo plano insólito são revestidos de grande
poeticidade – como podemos averiguar no fragmento citado –, ganham uma vivacidade
de descrições, tal qual um quadro sendo observado. Os pássaros, como se pode ler logo
acima, são analisados com riqueza de detalhes. O quadro pintado é tão vivo que os
leitores são capazes de dar vida aos personagens, bem como as grandes figuras míticas
da história da literatura.
Apesar de todo o universo ludibriador, diante da inversão do real proposta pelo
escritor ficcional, é interessante refletir sobre a confissão final: “com ele se foram o
equilíbrio e as lições dos meus mitos da Babitonga”. Aqui, nesse início de romance e
final do encontro com Baltazar, será o único momento em que o autor Aimoré
reconhecerá o caráter mítico da sua narração. As lições míticas e o equilíbrio são
colocados lado a lado como complementares, a perda de um significa a morte do outro.
Pode-se dizer que, para ele, a vida da fabulação é responsável por sustentar o real. A
ficção deve estar presente na realidade.
87
É interessante lembrar que a figura do cego, como detentor de sabedoria, está
presente em grande parte da história do mito em todos os tempos. E Baltazar, não
menos imprescindível que Ana, será responsável ou o representante do conselho que
motiva Aimoré à busca pela originalidade:
Subitamente Baltazar, assim, do nada, disse tu vais te libertar, menino,
fica em paz, dá vida ao menino, salva a arte. Deixei o cego dos
rochedos de Santo Antão na canoa do gêmeo mais amorenado, e
desenhei na minha cabeça harpias gigantes trazendo nas garras germes
de epidemias aterradoras, São Chico deserta, pessoas estendidas pelas
ruas. Desenhei, ao fundo, o cego Baltazar diante das feras, o braço
esquerdo estendido, a mão espalmada, o direito estreitando contra o
peito um menino, os mortos se levantando por onde o cego dos
rochedos de Santo Antão da Baía da Babitonga passava.
Tu vais te libertar, menino, salva a arte!
Essas palavras não me largavam. (p. 44).
Independente da dicotomia em torno da esquizofrenia, como se sabe, lendas e
mitos são frequentes no imaginário interiorano – o que seria uma possibilidade de
interpretação dos gêmeos e de Baltazar. Diante disso, Aimoré poderia imaginar as
histórias ou estórias narradas pelo próprio cego ou pelo amigo Aristides. Ele chega a
confessar que nunca ia esquecer as histórias do cego Baltazar que, no fundo, tinham a
ver com ele (p. 81). Mas em que consistiria a identificação do escritor ficcional? A
liberdade imaginativa; a fusão entre falso e verdadeiro, ficção e realidade; a inversão do
real; a capacidade de estar em dois planos e mundos diferentes. Poderíamos dizer tudo
isso.
Tudo é construção. E, diante da inversão do real, proposta por Ana Perena,
Aimoré deixa o espaço em branco no quadro de Portinari. Dar vida ao menino, tal qual
o pedido de Baltazar, passa a ser uma obsessão. Salvar a arte, pintar o bem, são desejos
que movem Aimoré à escrita e à pintura. As palavras dos dois personagens parecem
ecoar de forma vigorosa na cabeça do narrador: se o real é triste e se há morte, ele põe
vida e alegria nele. Assim, o menino sorri e renasce. O espaço em branco reflete o
desejo de uma nova escrita e/ou pintura, marca a autoria e o desejo de se inverter o real.
O escritor esquizofrênico ou a esquizofrenia do escritor dizem a incapacidade de
discernir entre a ficção e a realidade, o falso e o verdadeiro. A narrativa revela-se pela
forma estética desejada: injetar o vírus que embaralha todas as células do romance,
caracterizando uma ruptura com os padrões artísticos da sociedade.
88
5.2. A autoria e o espaço em branco
Como foi dito, Aimoré deixa um espaço em branco no quadro de Portinari e sofre
uma tentativa de assassinato por parte de uma quadrilha que movimenta o comércio de
quadros falsificados. A princípio, pode-se associar o título do romance a esse aspecto do
enredo, mas, fundamentalmente, ao se observar o discurso do escritor ficcional obter-seão informações de cunho teórico sobre o buraco prenhe de significados e reinvenções da
verdade ficcional e pictórica.
O título Menino oculto não retira a carga semântica da criança que, anteriormente,
aparecia explicitada na pintura. A possibilidade que se coloca, diante do leitor ou
observador do quadro, é a de múltiplas perspectivas e atribuições de novos sentidos para
a presença do menino. Estar oculto faz com que seja reconhecido pelos seus efeitos,
expressa o fato de estar escondido, retirado da capacidade visual. Mas o menino está ali,
presente de uma forma outra, de acordo com o que se deseja comunicar.
Para uma melhor compreensão devemos fixar os conselhos de Ana e de Baltazar:
reconstruir o real e dar vida ao menino, respectivamente. Ambos desejam com ardor que
Aimoré salve a arte. A partir de vários pontos da narrativa, seja ele temático ou
estrutural, pode-se averiguar a reconstrução e inversão do real proposto por Ana – um
mote constante do desejo do escritor ficcional de marcar a autoria. Não menos
sintomático, Aimoré quer dar vida ao menino, imagina-se pintando o filho morto de
Estela – uma mulher com quem tem relação sexual – com o intuito de lhe dar vida
novamente. Se a realidade é triste, ele atribui novos contornos, constrói fabulações e
inverte os papéis entre o real e o ficcional. O que é mais verdadeiro? E o que é mais
falso?
Observemos o seguinte diálogo entre Aimoré e professor Albano quando
questionado se não seria imoral e antitético falsificar obras de arte:
Só se for na tua cabecinha de professor de universidade. O
pintor que imito deve ficar orgulhoso, isso sim, se já tiver morrido
espero que os seus descendentes venham me parabenizar. (...)
Mas a lei proíbe o comércio de quadros, dá cadeia, Aimoré.
Isso não é problema do artista, é da sociedade.
Você prefere pintar que tipos de quadro?
Qualquer um. Tem um do Iberê Camargo que já pintei trinta e
oito vezes.
Trinta e oito? Qual foi?
O Tudo te é falso e inútil. Já tinha pintado o Mesa com cinco
carretéis umas dez vezes. Se eu tivesse freqüentado o MAM do Rio
89
nos anos 60, e tivesse tido idade suficiente para isso, seria diferente.
Eu tinha que estar lá. Ser aluno do Ivan Serpa, como todo mundo. Aí a
história seria outra. Talvez tivesse tomado outros caminhos. (...) Você
tem que estar a par de toda uma discussão que eu perdi. Perdi, não; vi
de longe. A arte mudou mais nessas décadas que em séculos. E eu
fiquei preferindo falsificar o passado. (p. 68-69).
Para ser imoral ou antitético Aimoré enquanto artista deveria atender às
ansiedades sociais de acusação sobre o ato de falsificar. Dessa forma, seria aquele que
não tem limites, sendo desonesto e desrespeitando a arte que diz amar. Entretanto, os
conceitos oferecidos pelo professor Albano são próprios da sociedade que ele deseja
reconstruir. Estamos diante de uma nova concepção na qual os valores pragmáticos
tornam-se mais eficazes, sem interdição de um real anteriormente construído. Ana
Perena já afirmara que o real é uma construção que, apesar de ser um clichê e de todos
saberem disso, ninguém se dá conta a ponto de transformá-lo.
O interessante é que, mesmo se desfazendo de valores pré-estabelecidos, Aimoré
coloca-se no campo interpretativo da sociedade. Por exemplo, quando diz: “eu fiquei
preferindo falsificar o passado”. Apesar de ele não se desprender da palavra,
observamos que a palavra falsificação ganha novos valores no decorrer do romance. Se
não existe mais falso e verdadeiro, ambos se unem para ser metáfora da obra de arte. O
conceito é um problema da sociedade. Ao refazer um quadro, reinterpretar Villa-Lobos,
copiar fragmentos de grandes escritores, Aimoré pensa em fazer uma homenagem,
curvar o pescoço para os mestres e trazer de volta a força de suas artes. Se tudo mudou
“mais nessas décadas que em séculos”, ele prefere dar vida ao que concebe como o
verdadeiro poder artístico.
A força da arte, para o escritor ficcional, significa também vencer tudo. Inclusive
a violência, por vezes, retraída pela beleza e imponência daquela que move o grande
tema de Menino oculto. Vejamos algumas declarações de Aimoré:
Admito, professor, que se tivesse olhado para a escultura antes o
sujeito talvez tivesse escapado, eu escolheria outra vítima, a arte mexe
muito comigo, muito. (p.107).
Enquanto eu enganava os homens ia pensando na Ana, professor.
Vem, Ana, vem, segura em mim. Vê como a fabulação, a imaginação,
a arte vencem a brutalidade, a dor e a lógica dos outros. Baltazar tem
razão. Vem, assobia comigo Stravinsky, Mozart, Brahms, Chopin,
toca piano com eles, comigo, toca, meu amor, toca, isso, assim, me dá
a tua boca, a tua língua, o teu ar, toca Beethoven. (p. 185)
90
Partindo dos fragmentos, verifica-se a força intrínseca admitida por ele, sempre
relacionada aos inspiradores Ana Perena e cego Baltazar. Aimoré imagina certo número
de possibilidades para marcar sua autoria, para tornar viva a força da arte que o
impulsiona. Admite só ter falsificado na íntegra um único quadro, todos os outros
possuem um desvio que marca a sua presença na obra dos grandes pintores. Por fim,
deixa o espaço em branco.
Após revalorizar a arte clássica, com seus modelos, por vezes, negados pela arte
ou pela literatura contemporânea (como fora dito em “narrativa de eventos
simultâneos”), Aimoré busca a originalidade e a marca inicial desse projeto está no
menino oculto. Relação muito importante e que diz respeito ao ato criador do autor –
seja ele implícito ou explícito –, porque este sempre estará entre o outrora e o agora. A
força criadora sempre estará acompanhada de uma responsabilidade necessária de se
estar em contato com o acontecimento histórico, cultural e social e a mediação do vazio
ou abismo entre o pensamento e a instância do estilo.
Diante da questão estética e moral proposta dentro de Menino oculto, podemos
trazer as seguintes reflexões de Bakhtin, em “A tradição e o estilo”:
É preciso dizer algumas palavras sobre a diferença entre
distância estética e ética (moral, social, política, prático-vital). A
distância estética e o elemento de isolamento, a distância em relação
ao existir, daí que o existir se torna fenomenalidade pura; libertação
em relação ao futuro.
A infinitude interior rompe-se e não encontra tranqüilidade; a
condição de princípio da vida. O estetismo, que cobre o vazio – o
segundo aspecto das crises. A perda da personagem; o jogo de
elementos puramente estéticos. Estilização da orientação estética
possível, essencial. Estilização da orientação estética essencial
possível. A individualidade do criador fora do estilo perde a sua
convicção, é interpretada como irresponsável. A responsabilidade da
criação individual só é possível no estilo, fundamentado e apoiado
pela tradição. (2003, p. 190).
Criar uma marca individual que resulte no estilo é resultado de uma ligação vital
com a tradição. A narrativa de Oliveira Neto parece corroborar esse fundamento sob as
mais diversas feições estéticas do romance. Se na tela Aimoré pinta o quadro de
Portinari, deixando um leve sorriso no rosto do menino, também nos traz um novo
romance movido, inicialmente, por trechos retirados da escrita de outros romancistas.
Assim, o cânone recebe novas interpretações, perde a origem e faz de Aimoré um novo
91
pintor e romancista prenhe de originalidade. Perante tudo que já foi produzido,
acrescentamos um pequeno grãozinho de conhecimento para dar vida à nossa autoria.
A partir disso, o escritor ficcional desvela-se e desfaz a teoria da morte do autor.
Passamos agora a uma nova fase da literatura e das artes plásticas, na qual se reconhece
a importância do diálogo, as infinitas possibilidades de interpretações, mas sempre
movida pela intencionalidade do autor - inerente a todo discurso produzido. Logo no
início deste trabalho, falei da autoria como gesto como uma espécie de reivindicação do
espaço autoral e da originalidade. Dessa forma, Oliveira Neto criou uma narrativa na
qual um autor ficcional tece dois fios condutores sobre sua personalidade, um labirinto
sem fim - ou mais acertadamente, com dois pontos de chegada – que ludibria os
entrevistadores-leitores. Todos condicionados à vontade do autor, submetidos ao
maestro. Está claro que os musicistas participam e são peças fundamentais para a
orquestra, mas sem o maestro estariam desarticulados e sem projeto artístico.
A expressão “autoria como gesto” foi apropriada de um ensaio de Giorgio
Agamben, já mencionado e citado anteriormente, denominado “O autor como gesto”22.
No trecho abaixo, as reflexões do filósofo resumem de forma bem expressiva alguns
dos pensamentos aqui expostos sobre a obra de Oliveira Neto:
O gesto do autor é atestado na obra a que também dá vida, como uma
presença incongruente e estranha, exatamente como, segundo os
teóricos da comédia de arte, a trapaça de Arlequim incessantemente
interrompe a história que se desenrola na cena, desfazendo
obstinadamente a sua trama. No entanto, precisamente como, segundo
os mesmos teóricos, a trapaça deve seu nome ao fato de que, como um
laço, ele volta cada vez a reatar o fio que soltou e desapertou, assim
também o gesto do autor garante a vida da obra unicamente através da
presença irredutível de uma borda inexpressiva. Assim como o
mímico no seu mutismo, como o Arlequim na sua trapaça, ele volta
infatigavelmente a se fechar no aberto que ele mesmo criou. (...)
precisamente o gesto ilegível, o lugar que ficou vazio é o que torna
possível a leitura. (2007, p. 61-62).
A partir da leitura do fragmento, percebemos que o vazio mencionado trata de
uma metáfora para o abismo entre leitor e autor. Este deixa um lugar aberto – o mesmo
lugar que Oliveira Neto, em Faina de Jurema, atribui à incapacidade de se chegar aos
seus pensamentos. Um mote constante da teoria literária: o modo de estruturação da
22
Faz parte do livro Profanações, publicado em 2007, pela Editora Boitempo.
92
linguagem a partir daquilo que se deseja comunicar. A tensão do eterno desejo do
irrealizável entre escritor e leitor e que faz com que a relação amorosa permaneça, o
prazer do texto, tal qual a teoria de Barthes.
Diante do vazio o leitor vai à luta, como afirma Tecla (a narradora de O bruxo
do Contestado). O vazio, como já foi dito, na verdade, está prenhe de possibilidades:
marca a borda inexpressiva, a presença irredutível do autor. Flávia Trocoli, a propósito
de Agamben, em ensaio denominado “O retrato do artista como perda”23, faz algumas
ponderações em torno da autoria e do espaço em branco deixado pelos escritores, mais
especificamente em Proust e Virginia Woolf. Para a autora, passar pela escrita é perder
“o rosto como lugar da identidade e da representação” (Cf. Trocoli).
Mas o que significa perder o rosto? Significa pôr-se como morto, ocupar o lugar
do morto, tal qual a afirmativa de Agamben. O autor, por óbvio, perde suas
características biográficas. No entanto, o modo como se coloca, em ato criativo, no
vazio produzido pela escrita revela o seu estilo. Aqui gostaria de aproveitar, em parte, a
reflexão de Trocoli sobre um espaço em branco que é deixado no quadro de Lily
Briscoe, personagem de To the lighthouse, de Virginia Woolf.
Segundo a autora, “a pintura da tela de Lily é „em abismo‟ à escrita do texto de
To the lighthouse. „Em abismo‟ poderia ser um dos nomes da teoria literária para o „em
ato‟”, como uma forma de demonstrar o que não pode ser dito. A mesma relação que
podemos estabelecer em Menino oculto. Aimoré quer a criança viva24, mas ela está
morta. Diante dessa ansiedade ele deixa o espaço em branco no quadro de Portinari.
Deixar o menino oculto significa dizer que ambos habitam e devem habitar aquele
espaço. É interessante lembrar que a angústia de dar vida ao menino, fazer dele uma
espécie de morto-vivo, é a mesma que ocorre em relação à tradição literária e plástica.
Como se verificou no módulo “Uma narrativa de eventos simultâneos”, a pintura foi
considerada morta, a partir da concepção dos traços tradicionais, bem como podemos
dizer sobre a literatura canônica. O estilo do passado fora esquecido.
Aimoré, portanto, reverencia o passado e dá vida ao seu estilo. Certa vez, Sílvia
conversa com ele sobre seu modo de pintar, ao verem uma exposição no Leblon:
Você está vendo aquele traço ali no canto? Lembra um pouco o teu
estilo. O pincel corre ao sabor das emoções entrecortado por flashes
23
Ensaio inédito.
E a criança viva pode ser a do quadro de Portinari, o filho da mulher do Leblon ou mesmo a menina
morta, do romance de Cornélio Pena.
24
93
de razão, aquele outro da esquerda também, só pode sair briga de
cores e formas. (p. 151).
Ao que ele responde:
Meus traços não são assim, cacete. Esse aí que você está me
mostrando, Sílvia, quer imitar Matthias Grünewald, lembra Os
amantes mortos, e o outro, da esquerda, copia a técnica do Matisse,
nada mais, eu não tenho nada disso, não, a minha pintura é só minha.
Nas minhas cópias, que uns chamam de falsificações, tem o meu
estilo, está lá dentro, é só reparar bem. (p. 152).
O pintor reafirma os seus pequenos traços. Perante a tradição, deixar uma
pequena mudança significa trazer à frente de cena a reverência ao passado e à pequena
modificação no presente: um grãozinho de areia que pressupõe o ato criativo do artista.
Se repararmos bem, e tivermos o olhar perspicaz do crítico, veremos a marca de
originalidade. Logo depois das observações acima, Aimoré, pela primeira e única vez,
defini a sua poética – seja ela a do pintor ou a do escritor:
Eu tive que reiterar várias vezes para a Sílvia que a minha pintura é
minha e só minha, professor Albano, várias vezes. Se fosse um
romance não teria narrador, mas, como é pintura, tem esses traços
assim se contorcendo, falando consigo mesmo, tirando a forma a partir
dos diálogos, dos conflitos de cores, de emoções contra a razão. (p.
157).
Curiosamente, a fala do escritor ficcional não está muito longe das reflexões de
Sílvia. A definição lúcida, de sua invenção artística, dialoga com a estrutura narrativa de
Menino Oculto. Assim como a pintura, os traços são delineados de forma aleatória e
sem condicionamento à ordem tradicional: começo, meio e fim. Ao inverter o real,
Aimoré investe na mistura entre emoção e razão de tal maneira que, entre leitores
ficcionais e leitores extraficcionais, ninguém é capaz de discernir entre fantasia e real, o
que aconteceu e o que é fabulação. Ele é esquizofrênico ou não?
Ao tirar a forma por meio dos diálogos, com o conflito de cores, de espaço, de
tempo, de verdade (ficcional ou não), de personalidade, de autoria, enfim, de
falsificação, Aimoré dá luz à invenção artística e, por que não, destitui a figura do
94
narrador. Claro que, novamente, poderíamos estar falando daquele narrador tradicional,
monológico, direcionador da mensagem a ser veiculada. Mais ainda, seria um equívoco
falar da morte do narrador quando se recebe uma narração de histórias ou estórias da
boca de um personagem: teríamos, portanto, um narrador-personagem, que se coloca à
frente dos acontecimentos, direcionando a ação – seja ela passada ou presente.
No entanto, algumas questões se fazem necessárias e intrínsecas à proposta do
romance em análise e aqui, mais especificamente, no romance da vida de Aimoré. Com
a quebra do discurso do narrador tradicional, algumas propostas de articulação narrativa
foram se impondo de modo a multiplicarem os pontos de vista e, por consequência,
desequilibrarem a verdade única da estória contada. Enfim, aquele artifício narrativo
que Bakhtin denominou como polifonia.
Mais do que a polifonia, já evidenciada com a literatura produzida desde o
século XIX, a literatura moderna trouxe o advento do fluxo de consciência, no qual as
vozes soavam sob vários aspectos: o monólogo interior ou diálogo interior, o discurso
indireto livre, entre outros. Estava destituído o mestre, tais quais as ponderações dos já
mencionados, exaustivamente, Barthes e Focault. Mas a narrativa de Oliveira Neto nos
impõe ao menos uma cogitação, ainda que levemos em apreço o fato de, na realidade
intratextual, Aimoré estar narrando acontecimentos de sua vida.
Ao lermos o romance de Oliveira Neto, é possível verificar que, como já fora
dito em capítulo anterior, não se pode apontar a narrativa de Menino oculto como
característica do fluxo de consciência. Afinal, Aimoré administra a sua fala e induz os
entrevistadores ao erro, inserindo-os dentro da sua lógica, do seu tempo, da sua
fabulação. A história se impõe por meio de um diálogo incessante entre Aimoré (a
figura do escritor) e os entrevistadores (a figura dos leitores). Em relação à
multiplicidade de vozes, e perspectivas de pontos de vista, temos Aimoré como único
detentor da verdade e manipulador do discurso – digamos assim - tal qual o narrador
onisciente da literatura tradicional. Mas, apesar dessa autoridade própria do escritor,
faz-se com que a narrativa se duplique e revele a incapacidade de se fechar um único
ponto de articulação; os leitores podem fazer duas leituras: a do escritor esquizofrênico
e a da esquizofrenia do escritor. O que é verdade e o que é fabulação? Fabulação de um
doente ou de um escritor? Será que tudo realmente aconteceu de acordo com as
informações que Aimoré nos oferece?
Mantém-se a certeza, instaurada por Barthes, sobre a escrita e a fala:
95
A escrita é uma linguagem endurecida que vive sobre si mesma e não
tem absolutamente o encargo de confiar à sua própria duração uma
sequência móvel de aproximações, mas de impor, ao contrário, pela
unidade e pela sombra dos seus signos, a imagem de uma palavra
construída muito antes de ser inventada. O que opõe a escrita à fala é
que a primeira parece sempre simbólica, introvertida, voltada
ostensivamente para o lado de uma vertente secreta da linguagem, ao
passo que a segunda não é mais que uma duração de signos vazios de
que apenas o movimento é significativo. (2004, p. 18).
Mas o que temos no romance de Oliveira Neto é a junção entre os dois modos de
linguagem: aqui a escrita são traços se contorcendo, tirando forma a partir dos diálogos.
Somente os diálogos. Se os leitores ficcionais recebem, por vezes, a narração de
Aimoré, os leitores extratextuais – ao lerem Menino oculto – recebem um diálogo do
início ao fim do romance. Escritor e leitores encenam o diálogo. Seria uma espécie de
morte do narrador? Assim como a forma artística produzida por Aimoré na pintura,
estaríamos diante de um romance sem narrador? Uma questão um tanto envolvente, que
merece a devida atenção e questionamento. No entanto, para que não nos desviemos do
nosso foco, não será aqui aprofundada. Fiquemos apenas atentos à estrutura narrativa,
porque o método escolhido por Oliveira Neto, de fato deu origem aos questionamentos
em torno do romance ora estudado e deu nome ao que estabeleci como esquizofrenia do
escritor.
O autor ficcional de Menino oculto quer dar vida ao morto, seja ele o menino ou
a arte: os dois devem sobreviver. Não esqueçamos que esse foi um dos conselhos dados
por Ana e Baltazar e, por consequência, grande inquietação do romance. Recuperar o
passado e uni-lo ao futuro, de modo a serem instaurados no presente, faz com que a
narrativa se torne esquizofrênica e marca a originalidade de Aimoré. Silviano Santiago,
em comentário crítico25 à entrevista de Godofredo, no Portal Literal, chega a dizer:
Desde Mallarmé, a obsessão pelo fazer literário (e/ou artístico, e/ou
humano) se manifesta pelo desejo de preencher o espaço em branco da
folha de papel. Manchar a folha com o falo da caneta, com o sêmen da
tinta negra, maculá-la pelo estupro. Assassinar sua pureza equivale a
fazê-la significar duas vezes. A torná-la significante de outra e
inarredável forma, tão enigmática quanto a forma original. (2005).
25
Denominado “A beleza do falso”.
96
Não esqueçamos ainda que o espaço em branco, inevitavelmente, diz que o
quadro não é o de Portinari – tampouco de Aimoré. Há uma busca incansável pelo
espaço em branco que possa ser preenchido com autenticidade.
Ao identificarmos a representação do espaço, veremos que ele se instaura,
estilisticamente, por meio das importantes dicotomias apresentadas neste trabalho:
passado e futuro, tradição e reinvenção, ficção e realidade, falso e verdadeiro. Ao se
curvar ao passado, reconhecendo sua influência, no último capítulo Aimoré afirma
sobre os fragmentos apropriados, através da fala, no início do romance: “Imagino que
seja assim que os sonâmbulos e os escritores agem nessas horas. Mas os flashes de
épocas reluziam. Esse passado, próximo ou distante, voltava através de textos já lidos,
eles eram agora o meu presente” (p. 212).
97
5.3. Os dois últimos capítulos e uma nota perdida
Segundo a concepção de Paulo Honório, em São Bernardo, os dois primeiros
capítulos do romance teriam sido perdidos. Ao que Lafetá, em seu “O mundo à
revelia”26, questiona:
O caso é que não o foram. Sua figura dominadora e ativa está criada.
Fomos já introduzidos em seu mundo – um mundo que, em última
análise, se reduz à sua voz áspera, ao seu comando, à sua maneira de
enfrentar os obstáculos e vencê-los. Um mundo que se curva à sua
vontade. (1981, p. 195).
Se dentro da lógica intratextual Paulo Honório imagina jogar os dois primeiros
capítulos no lixo, o fato é que os leitores – fora da realidade ficcional – recebem os
escritos que proporcionam informações importantes para a imagem daquele homem,
como um preâmbulo vivo, responsável por estabelecer alguns traços do narradorpersonagem.
Em Menino oculto, como já fora mencionado, há também uma intenção de
restituir os fatos, trazê-los de volta à frente de cena. Percorremos a narrativa envolvidos
por várias dicotomias até que, por fim, os dois últimos capítulos revelam-nos traços
mais fortes e menos confusos. Aimoré parece ter se recuperado, em parte, e começa a
dar conta de certa verdade sobre a qual, anteriormente, não tinha domínio. Um ponto
interessante é o reconhecimento dos trechos de outros romances pronunciados no
primeiro capítulo – após tentativa de assassinato e em pleno delírio auditivo e visual.
Os fragmentos, que haviam perdido a origem, retornam à lógica anterior
(empreendidas pelos escritores do cânone literário). Aimoré começa, de certa forma, a
organizar uma memória que havia sido perdida: “É estranho como a memória guarda
coisas que a gente nem se lembra que sabe” (p. 213). A partir daí o narradorpersonagem cita as passagens de seu delírio nas quais reproduziu Graciliano Ramos,
José de Alencar, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Machado de Assis e João Cabral,
respectivamente:
26
Posfácio ao São Bernardo, publicado pelo Record em 1981, tendo como subtítulo: “Dois capítulos
perdidos”.
98
Quando olhei bem a luzinha interna piscando mais uma vez, como se
fosse se apagar, vi claramente o Paulo Honório, do romance São
Bernardo, de Graciliano Ramos, diante da vela que se extinguia,
falando com ele mesmo sobre atoleiros, meio louco, daí esse trecho
que vocês me mostraram, “julgo que delirei e sonhei com atoleiros,
rios cheios e uma figura de lobisomem. Lá fora há uma treva dos
diabos, um grande silêncio” (p. 212).
Lembremos que a estrutura da linguagem, do romance de Graciliano, permanece
em todo o primeiro capítulo, contribuindo para a atmosfera de perturbação mental e que
o fragmento, recuperado por Aimoré, está no capítulo XIX de São Bernardo. Aquele
mesmo já mencionado e que, em tese de doutoramento, Oliveira Neto constrói uma
argumentação em torno das mudanças de tempos verbais e atribui o seguinte título para
o tópico: “Temporalização e Esquizofrenia”27 (1990, p. 79).
Aimoré segue:
Vi, de fato, que aquelas frases eram exatamente as mesmas do
capítulo verme e flor, do Guarani, uma pessoa que veio aqui antes de
você me mostrou o trecho do livro “Olhei no relógio. Eram onze horas
da noite. O silêncio reinava na casa e seus arredores, tudo estava
tranqüilo e sereno. Algumas estrelas brilhavam no céu; os sopros
escassos da viração sussurravam na folhagem”. (p. 213).
O período do Guimarães Rosa de que você fala “Melhor, se arrepare:
pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a
mandioca mansa que se come comum, e a mandioca-brava, que
mata?” foi um pouco diferente. Tive como um estalo, numa hora, senti
que aquelas frases tinham vindo automaticamente, mas fiz com que
elas fossem pronunciadas pelo capataz, embora não me lembrasse que
elas eram do Grande sertão: veredas. (p. 213-214).
Agora, a frase dos bichos e da natureza, da Clarice Lispector, “Penso
em bichos invadindo o carro. Animais que me aproximam de Deus.
Parece-me que sinto os bichos uma das coisas ainda mais próximas de
Deus, material que não inventou a si mesmo, coisa ainda quente do
próprio nascimento”. (p. 214).
Em compensação, a passagem do Machado de Assis “O destino, como
todos os dramaturgos, não anuncia as peripécias nem o desfecho” vem
com certeza das muitas leituras compulsivas dos livros dele. (p. 215).
O único trecho que escrevi no pedaço de papel pardo com consciência
foi o do João Cabral de Melo Neto: “Nessa viagem que eu fazia, sem
saber, desde o Sertão, meu próprio enterro eu seguia”. (p. 215).
27
Em A ficção na realidade em São Bernardo.
99
A princípio, é possível pensar que Aimoré, ao citar os trechos, fora do contexto
do delírio, estaria restituindo a origem das palavras. No entanto, no ato de efetuar a
transcrição de sua fala, dita no momento em que sofrera a tentativa de assassinato, mais
uma vez ele atenta para o fato de o escritor estar submetido a uma memória inconsciente
e capaz de ganhar novos contornos ao serem recolocadas em uma nova situação. Afinal,
diz ele: “notei que eu estava escrevendo, eu me sentia duas pessoas. (...) Imagino que
seja assim que os sonâmbulos e os escritores agem nessas horas”. (p. 212).
Os dois últimos capítulos mantêm a ambiguidade escritor esquizofrênico e
esquizofrenia do escritor, mas esclarecem – sob o ponto de vista da intencionalidade –
alguns dos trâmites argumentativos que fizeram com que o romance recebesse a
estrutura desaparelhada e sem os moldes técnicos que asseguram a linearidade. De certa
forma, Aimoré se dá conta de que fora enganado por alguns de seus amigos: o Aristides,
a síndica Dona Amélia, entre outros. Mas ainda ficamos no plano do não concreto, não
sabemos se é fruto da imaginação do autor.
Já no último capítulo (15), o escritor ficcional fala sobre a intencionalidade de
publicar o romance de sua vida, ao passo que também vai revelando reminiscências
deixadas de lado nas entrevistas anteriores. Tem-se a impressão de que essa última parte
está fora da lógica anterior dos outros diálogos, há um distanciamento psicológico.
Aimoré declara logo no início: “Se publicar o meu romance de vida na livraria virtual,
quero que o texto que escrevi com a caneta esferográfica dentro do jipe, no papel que
embrulhava o quadro do Portinari, seja o primeiro capítulo” (p. 211). Tal assertiva faz
com que surja a seguinte inquietação: seria o livro que temos em mãos o romance de
Aimoré Seixas dos Campos Salles de Mesquita Ávila?
Os leitores, já agora, estão aptos para reconhecer que o romance que se tem em
mãos começa com a transcrição da narrativa do papel pardo e que toda a narrativa
revela traços da vida de Aimoré. Não esqueçamos que, como já foi visto, a invenção de
escritores ficcionais faz parte da obra produzida por Oliveira Neto. Anteriormente,
chegamos a mencionar que essa característica romanesca faz com que os narradores
ganhem certa autonomia sobre o romance do autor, evidenciando que o livro que está
em nosso poder tenha descrições próprias ao mencionado pelos escritores ficcionais.
Um dos motivos pelo qual se cogitou a possibilidade da morte no autor na literatura
contemporânea.
A partir da concepção estética de atribuir a autoria ao próprio narrador, Oliveira
Neto arquiteta - no percurso literário de toda a sua obra – notas explicativas que
100
autenticam ainda mais a independência estética do romance em relação ao seu autor
biográfico. Marca interessante porque, paradoxalmente, vem sempre articulada a um
poder de condução indiscutível, no qual o autor (ficcional ou não) é mestre de todas as
ações. Menino oculto desvencilhou-se dessa marca narrativa. Bem, estou falando do
Menino oculto publicado, o que chegou ao olhar dos leitores porque – perdido nos
manuscritos de Oliveira Neto – encontrei uma nota inédita que deveria ter ido em anexo
ao romance e, no entanto, ficou à deriva.
É interessante trazer à frente de cena essa nota porque, se os dois últimos
capítulos são - em alguma medida - esclarecedores, a nota trará informações novas
como veremos mais adiante. Abaixo vai a transcrição do manuscrito do autor28:
Recebi das suas próprias mãos, numa das nossas entrevistas, os dois
últimos capítulos (14 e 15), que acabei incorporando aos treze que
foram encontrados nas suas coisas. Ele disse que tinham sido as
"autoridades" que lhe haviam devolvido o papel de embrulho escrito
por ele e achado no jipe. Após a sua transferência para o Rio de
Janeiro, por ordem judicial, encontraram dentro de um armário, na
cozinha da Casa de Saúde, um envelope com o meu nome, com a
observação, como um título, "Três interrogatórios". No lugar do
remetente, no verso, aparecia Menino Morto, Floripa, Hospital de
Quase Doentes.
A.S.Z.
As iniciais – assinatura da nota – depois de algumas pesquisas pude associar à
única aparição do nome completo de professor Albano: “Albano dos Santos Zanella”.
(p. 68). De fato, ao se ler a nota perdida, verifica-se que os dois últimos capítulos foram
produzidos pós-entrevistas e que os seus números são os mesmos do livro de Oliveira
Neto: 14 e 15. Os trezes capítulos encontrados nas coisas de Aimoré são o que ele
denominou de “Três interrogatórios”, indiscutivelmente, as três entrevistas feitas por
doutor Orestes, doutor Dárdano e professor Albano. Também sabemos agora que o
escritor ficcional teve acesso ao papel de embrulho do quadro falso de Portinari.
De acordo com o desejo de Aimoré, portanto, o romance fora publicado, tendo
como primeiro capítulo a transcrição dos delírios pós-tentativa de assassinato e, para
finalizar os capítulos 14 e 15 como esclarecimentos. É interessante reparar que o
remetente tem como origem um “Hospital de Quase Doentes”. Em letras maiúsculas
28
O manuscrito da nota se encontra na parte de anexos deste trabalho.
101
ficamos sabendo que Aimoré estava num local que mantém a dualidade sobre sua
personalidade: doente mental ou escritor? Ou, o mais provável, as duas coisas?
No decorrer do livro, em dois momentos, aparece a marca de um narrador
onisciente. Por serem tão sucintos podem passar despercebidos, no entanto, desde a
primeira leitura chamou-me a atenção e fez com que eu levantasse alguns
questionamentos: Seria uma marca afirmativa do autor Godofredo de Oliveira Neto?
Seria o próprio Aimoré num momento pós-entrevista? Fundamentalmente, uma verdade
se impunha: com certeza os fragmentos foram inseridos depois dos diálogos. Não
poderiam, de forma alguma, estar dentro da lógica do fluxo da entrevista. Vejamos:
Aimoré calou, recitou, em voz baixa, outros episódios com os
personagens da sua vida. Ele tinha explicações para a passagem súbita
de uma cena a outra, de um capítulo de sua vida a outro, de visões
entrecortadas por imagens passadas, interrompidas por lampejos
projetados. (p. 65).
A fita do gravador, num ruído seco, ruído de ponto final, interrompeu
a conversa. (p. 66).
Este é o único instante no qual os leitores recebem informações sobre Aimoré,
sem ser o ponto de vista dele próprio. Se levarmos em consideração a nota perdida,
saberemos com clareza que corresponde à interferência de professor Albano. O
responsável pela organização do romance da vida de Aimoré. É interessante pensar,
assim como já fora apontado em O bruxo do Contestado, que a intervenção faz com
que, originalmente, o livro deixe de ser o de Aimoré: são informações novas inseridas
por alguém que não é o próprio autor.
O escritor ficcional também deixa as suas marcas críticas e de distanciamento,
mesmo antes dos dois últimos capítulos. Elementos que evidenciam a leitura da
entrevista, a partir das fitas, e a reflexão sobre os eventos narrados. Após a distância
temporal, Aimoré reconhece alguns aspectos de sua psicologia na época das
declarações:
Um vale com formas abstratas, como a minha história, era assim que a
minha memória via o passado feito presente, como a me relembrar que
o passado não existe, abstração que aumentava com a troca incessante
de entrevistadores e de lugares, eu carregado para cá e para lá como
um saco de batata. (p. 115).
102
A ausência da nota, apesar de ser um indicador inerente à obra completa de
Oliveira Neto, de modo algum fez com que o leitor perdesse a essência do romance.
Parafraseando Lafetá, fomos introduzidos no seu mundo, um mundo que se curva à
vontade de Aimoré ou de Oliveira Neto. No entanto, fez-se imperiosa a vontade de
trazer à tona como um acréscimo para fins analíticos e, principalmente, para mostrar –
mais uma vez – uma ansiedade estética do autor de Menino oculto: notas explicativas
que ludibriam a cabeça do leitor e que mexem com os parâmetros entre falso e
verdadeiro, ficção e realidade.
103
6. Conclusão
A dualidade escritor esquizofrênico e esquizofrenia do escritor foi apontada em
diferentes feições, complementares e estruturantes do romance Menino oculto, de
Godofredo de Oliveira Neto. Como se pode observar, a expressão foi retirada da própria
narrativa, sendo conceituada a partir das próprias definições e características atribuídas
pelo escritor ficcional diante do advento da escrita. Essa ambiguidade sobre a psicologia
do personagem Aimoré permanece no decorrer de todo o romance, infiltrando-se pelas
células narrativas de modo a lhes acentuar o caráter de fabulação ou doença mental.
No primeiro capítulo, denominado “A experimentação literária que culminou em
Menino oculto”, tive como objetivo principal estabelecer parâmetros estilísticos e
desvelar nuances teóricas sobre a literatura que fizeram de Oliveira Neto o escritor da
obra em análise. Assim, desde a publicação do primeiro romance pode se verificar o
duelo entre autor e leitor, em função de uma linguagem sempre malograda no ato da
escritura. No entanto, apesar dessa angústia, o escritor deixa a sua marca e transgride a
suposta evidência de que o autor, na literatura contemporânea, estaria morto.
Em Faina de Jurema, se observou um empreendimento estético ainda tímido na
década de oitenta: a mistura de gêneros. Talvez uma das misturas mais ricas e ousadas
pela quantidade – fábulas, poemas, contos, panfletos, entre outros – e por constituir uma
história homogênea, sem a gratuidade puramente formalista. Ali já está presente a
alternância de narrativas diferentes, que faz o leitor percorrer uma via de mão dupla.
Se de um lado temos os telegramas, que desvelam uma lógica interpretativa, do
outro temos os textos que caracterizam a interpretação cedida naqueles curtos textos. O
mesmo recurso utilizado em O Bruxo do Contestado e Ana e a margem do rio. Não
muito distante da funcionalidade das notas: romper com a barreira semântica que separa
ficção e realidade, falso e verdadeiro, emoção e razão. As três principais dicotomias de
Menino oculto, responsáveis pelos questionamentos em torno da autoria e da
falsificação, tendo a esquizofrenia como metáfora maior da criação artística.
No segundo capítulo, “Um escritor esquizofrênico ou a esquizofrenia do escritor”,
lancei um olhar sobre a autoria, a ficção e a realidade, indicando a partir de que
perspectiva estava entendendo os conceitos. A autoria vem vazada pela concepção
contemporânea de permeabilidade do discurso, apropriação de textos por meio da
internet e, fundamentalmente, pelo pequeno gesto que consistirá na originalidade –
104
depois de tantas experimentações e desgastes técnicos. Já a ficção e a realidade são
ligadas e contorcidas pela inversão do real, como a proposta de inovação das artes, de
acordo com Aimoré.
Com isso, foi possível traçar os caracteres narrativos resultantes do embate
escritor-leitor, a inovação de Oliveira Neto ao colocar o leitor como personagem do
romance. Dessa forma, o autor encenou o embate amoroso que tece a linha
interpretativa da obra, mostrando o poder de manipulação conferido ao grande mestre.
Contribuindo para a composição da esquizofrenia, a narrativa de eventos simultâneos
veio como um artifício exemplar para a representação do presente: o lugar no qual se dá
vida ao passado e ao futuro, reverenciando a arte clássica e acrescentando a
originalidade do autor.
Por fim, o último capítulo - “o espaço vazio do quadro e a busca pela
originalidade” – discute a marca maior do jogo entre o falso e o verdadeiro: o menino
oculto que deu título ao romance. Assim, desenvolvemos a conexão sobre as duas linhas
mestras do arcabouço esquizofrênico: a inversão do real e o ato de dar vida à arte.
Conselhos de Ana Perena e cego Baltazar e que motivaram Aimoré à escrita e à pintura.
Vários contornos cederam espaço para o argumento primordial em torno da
esquizofrenia, sempre pautados pela composição de Menino oculto e o tema central
sobre a busca pela autenticidade. Diante da obra de Oliveira Neto, como um todo, pôde
ser exposta a constante luta entre pensamento e escrita, escritor e leitor. Dito isso, a
esquizofrenia torna-se metáfora da fabulação – seja ela a do escritor ou a do doente
mental – porque, indiscutivelmente, ambos rompem com a verdade social entre falso e
verdadeiro, ficção e realidade.
Podemos pintar o que queremos de forma aleatória, refazer o real e atribuir novos
valores à arte. O real é uma construção, e Ana reconhece o clichê da frase utilizada, mas
ninguém se dá conta de que – mesmo ao reproduzir literalmente algumas frases de
outros autores – acrescentamos um grão de areia de conhecimento ou estética que revela
a nossa autenticidade. A apreensão será diferente, teremos um novo olhar, enfim, um
novo autor. Experiência que se concretiza com a publicação do último romance,
Marcelino (2008) em que, num movimento autofágico, o autor relê o seu Marcelino
Nanmbrá, o manumisso e faz uma re-escritura. O livro ganha o dobro de páginas, cenas
novas e outra estrutura narrativa. Os personagens são movidos por diferentes ações e
descrições. De fato, um novo romance.
105
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8. Apêndice
Aqui vão alguns anexos que considerei complementares ao estudo deste trabalho:
- O poema de Antonio Carlos Secchin, denominado “autoria” e dedicado a Oliveira
Neto.
- O romance Faina de Jurema, por ser obra rara, permitindo o acesso a novos leitores.
- Manuscrito de Oleg e os clones, com seu título original: Os reflexos de Olegárcio.
- Manuscrito da nota perdida de Menino oculto.
- Contos publicados após Menino oculto e que revelam uma permanência estilística do
autor.
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A ESQUIZOFRENIA DO ESCRITOR uma poética da obra de