PPGCOM ESPM // ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (08, 09 e 10 de outubro 2014)
Infância, Consumo e as Bonecas Monster High 1
Leide Silva Oliveira Alves2
Universidade Federal do Piauí, UFPI
Resumo
O presente artigo traz uma revisão da literatura sobre investigação da infância bem
como aspectos relacionados à ludicidade. O artigo tem por finalidade apresentar
algumas reflexões sobre o consumo da boneca Monster High e de como elas têm
mudado o modo como as crianças se relacionam umas com as outras e com elas
próprias. O consumo é pensando dentro do contexto da sociedade contemporânea e do
fenômeno da globalização. Estas reflexões sobre o consumo das Monster High
apresentam-se como um ponto de partida na tentativa de entender as práticas das
crianças, que envolve tanto as brincadeiras, como os próprios modos de pensar e a
agir delas. A compreensão do consumo das bonecas Monster High pelas crianças
relaciona-se também ao uso dos meios de comunicação e às suas formas de ação e
interação.
Palavras-chave: Infância; Consumo; Ludicidade; Brinquedos; Monster High.
Considerações Iniciais
Os tempos contemporâneos sofrem intensas transformações, seja pela
expansão das redes de comunicação ou pelo fluxo de informações que nelas
perpassam. O fato é que essas transformações mudam a organização espacial e
temporal da vida em sociedade, além de criar novas formas de ação e interação
(THOMPSON, 2014).
1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, consumo e infâncias, do 4º Encontro de
GTs - Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014.
2
Estudante de Mestrado em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí, UFPI. Bolsista da
Fundação de Amparo à Pesquisa do estado do Piauí, FAPEPI. Desenvolve estudos na área de Processos
Comunicacionais. Participa do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Discursos (JORDIS). E-mail:
[email protected].
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Este estudo visa considerar a infância e a criança neste contexto de profundas
transformações. Sem a pretensão de afirmar o que é infância e o ser criança, mas
apenas relacioná-las no empenho de expor algumas ideias que contribuam para a
compreensão das mesmas sinalizando para a forma heterogênea e polissêmica que as
compõe (FREITAS; KUHLMANN JR, 2002).
O raciocínio deste artigo segue em direção ao complexo processo de
desenvolvimento das sociedades modernas e das técnicas que foram derramando
mercadorias culturais no interior dos indivíduos, inclusive nas crianças - brinquedos,
por exemplo. Isto nos faz pensar sobre a vivência do lúdico, o que exige uma análise
dos significados do brincar, o brinquedo e a brincadeira, além de pensar a infância a
partir da lógica do consumo. Para isto, faz-se necessário conhecer como o consumo se
constitui nesta sociedade. O desafio parte da denominação pós-moderna para evocar
sua conexão com o consumo.
Vida Pós-Moderna e Consumo
O termo pós-moderno já foi alvo de explicações por diversos autores. Na
concepção do filósofo francês Lyotard (2002), a pós-modernidade traz o fim das
grandes narrativas, da racionalidade, da emancipação e do progresso humano. Para o
autor o homem pós-moderno valoriza o que é irracional e instintivo.
Para Anderson (1999), o pós-modernismo é usualmente tomado por
“máquinas de imagens” da mídia. Hoje as imagens regulam os sentimentos e moldam
até os corações dos indivíduos. Essas “máquinas” produzem ilusões que culminam na
exacerbação do consumismo, do hedonismo, fragmentação do tempo e do espaço.
Rubim (2011) nomeia a contemporaneidade de “Idade Mídia”, isto é, a
compreensão de uma sociedade estruturada e ambientada pela comunicação. Para este
autor, a comunicação “afeta em profundidade a configuração da sociedade atual, pois
ela se vê composta e perpassada por “marcas” fabricadas pela mídia, tais como o
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espaço eletrônico, a televivência e globalização 3” (RUBIM, 2011, p. 12). Para Rubim
(2011), a associação da mídia ao capitalismo forja uma sociedade de consumo e o
endeusamento do mercado usa a publicidade e a marca para viabilizar a metamorfose
do produto em mercadoria, que a priori, não se ancoram em territórios.
Outro pensador que tem produzido uma extensa obra sobre os tempos recentes
é Zygmunt Bauman. Ele cunhou o conceito de modernidade líquida. E a liquidez
proposta por Bauman (2001) vem do fato de os líquidos se moldarem conforme os
recipientes nos quais são postos, diferentemente dos sólidos. Para o autor, há duas
características para o que ele chama de modernidade líquida, uma relata sobre um
caminho infindável de oportunidades, desejos e realizações a serem perseguidos
continuamente, como sugere no trecho a seguir:
Viver num mundo cheio de oportunidades – cada uma mais apetitosa e
atraente que a anterior, cada uma “compensando a anterior, e preparando o
terreno para a mudança para a seguinte” – é uma experiência divertida. Nesse
mundo, poucas coisas são predeterminadas, e menos ainda irrevogáveis; mas
nenhuma vitória é tampouco final (BAUMAN, 2001, p. 74).
A outra fala sobre a mudança da desregulamentação e a privatização das
tarefas, o que antes era atributo do coletivo, agora passa para o individual, segundo
Bauman (2001), “Cabe ao indivíduo descobrir o que é capaz de fazer, esticar essa
capacidade ao máximo e escolher os fins a que essa capacidade poderia melhor servir,
isto é, com a máxima satisfação concebível” (BAUMAN, 2001, p. 74).
Bauman (2001) traz também uma visão de consumo que existe nessa
modernidade líquida, para ele “no mundo dos consumidores as possibilidades são
infinitas” (BAUMAN, 2001, p. 85). E por isso este autor entende que, a maior
frustração de um consumidor não é a falta de um produto, mas a infinidade de
escolhas disponíveis, pois sempre existe uma oferta mais nova e aperfeiçoada.
3
A globalização está intimamente associada ao surgimento do Estado Neoliberal, que teve a sua
origem no início do século XX na Inglaterra. No Brasil, a implantação do Estado Neoliberal ocorreu
em 1990, no governo de Fernando Collor de Mello que viabilizou as privatizações através da
intervenção mínima do Estado.
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Podemos discorrer um pouco mais sobre consumo utilizando-nos do
pensamento do pesquisador argentino Néstor Garcia Canclini. Se para muitos o
consumo goza de má reputação, associado quase sempre a gastos inúteis e
compulsões irracionais, Canclini (2006), nos ajuda a pensar o consumo como uma
relação complexa que vai muito além de uma relação entre manipuladores e
audiências passivas.
Segundo Canclini (2006), os vínculos que existem entre emissores e
receptores não são unicamente de dominação. Canclini (2006) considera que é preciso
reconhecer mediadores como a família, o bairro e o grupo de trabalho. São esses
indicadores que nos mostram que existem outras ações além das verticais. Canclini
(2006) tenta encontrar uma conceitualização global do consumo, incluindo processos
comunicacionais e recepção de bens simbólicos. O autor propõe uma definição: “o
consumo é o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e
os usos dos produtos.” (CANCLINI, 2006 p. 60).
Penso que o consumo é o fruto dessa cultura contemporânea e do fenômeno da
globalização, e por isso mesmo é rico em significados que estão ainda por se
estabelecer. Desse modo, chamo a sua atenção para juntos tentarmos compreender, o
consumo das bonecas Monster High pelas crianças. Seguiremos uma trajetória que
parte da infância, passa pela ludicidade, até chegar às brincadeiras e aos brinquedos.
Infância, Criança, as Possibilidades Continuam
Segundo Áries (1981), o infantil, enquanto faixa etária ainda é bastante recente
na história da humanidade data praticamente do século XVII para cá. Anteriormente a
criança era vista como um adulto em miniatura.
Para Rosa (1998) a infância é o momento em que se inaugura a brincadeira, e
é junto com o brincar que a criança aprende a se relacionar com os objetos de seu
universo de interesse. É como se o brincar fosse uma abertura para que elementos da
realidade externa se encontrassem com os aspectos da subjetividade, possibilitando
uma experiência criativa com o conhecimento.
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Segundo Chateau (1987) a infância tem por objetivo treinar funções tanto
psicológicas quanto psíquicas. É através do jogo que a criança desperta. Por isso ele
diz que não se pode imaginar a infância sem seus risos e brincadeiras.
É na infância que a criança se apropria de imagens e de representações
diversas para transformar e dar novos significados a realidade (BROUGÈRE, 2001).
É na infância que a criança registra as primeiras imagens e as manipula e nessa
atividade ela se apropria dos códigos culturais. A infância é o momento em que se
inaugura o processo de socialização na vida do indivíduo, devendo este processo
permanecer ao longo de toda a sua vida.
Alguns pensadores, a exemplo de Santo Agostinho (2002), e Rousseau (1995),
se preocupavam, essencialmente, com uma definição de infância que tratasse da
“natureza da criança”, se ela seria boa ou má. Na obra Confissões, Santo Agostinho
deixa clara a concepção que tem da criança “Quem me poderá lembrar o pecado da
infância, já que ninguém está diante de Ti limpo de pecado, nem mesmo a criança
cuja vida conta um só dia sobre a terra?” (SANTO AGOSTINHO, 2002, p. 36). Já
Rousseau argumenta que “Deplora-se o estado da infância; não percebemos, porém,
que a raça humana teria perecido se o homem não tivesse começado criança”
(ROUSSEAU, 1995, p. 7).
Para Rosa (1998) ser criança é escapar às imposições do real, é ter um controle
mágico. A autora defende que as crianças podem construir significados próprios para
cada objeto, e tirar satisfação das brincadeiras, e podem até brigar com os objetos
quando eles não satisfazem aos seus desejos. Lembro aqui de uma criança de três
anos de idade, que tentando sentar-se numa cadeira de brinquedo e por não consegui
ficou furiosa, resmungou e continuou tentando.
Assim entendo que as crianças criam através da imaginação múltiplas
possibilidades para seus brinquedos e para que tudo seja possível. Elas parecem
descobrir sempre um novo objeto dentro de um objeto velho e são capazes de
transformá-lo em outro. Elas vivem a vida que emana dos brinquedos e objetos pelo
faz-de-conta. Inventam, constroem universos particulares.
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As Vivências do Lúdico
O ser humano recebe algumas designações, entre elas está a de Homo ludens,
ou seja, aquele que é capaz de se envolver em atividades lúdicas, ao jogo
(HUIZINGA, 1999). Para este autor o jogo não se limita apenas à humanidade, os
animais também brincam. Quem tem algum animal como cão ou gato certamente teve
a oportunidade de vê-los brincando, correndo atrás de uma bola, brincando de morder
um ao outro. Eles se divertem, pois o jogo tem afinidade com humor.
Dantas (2002) nos diz que “A compreensão adequada do lúdico supõe então,
como tudo aquilo que se refere à infância, etapa da vida humana marcada pelo devir
acelerado” (DANTAS, 2002 p. 114). O autor destaca o caráter lúdico como uma
marca da infância. Assim como Simmel (1983), quando afirma que as crianças são
socializadas ludicamente, por meio de brincadeiras.
Para Piaget (1969), as atividades lúdicas dos animais são simplesmente
de origem instintiva, mas, nas crianças, a atividade lúdica vai além de reflexos. Já nos
primeiros meses de vida, o bebê estica os braços, as pernas, mexe com as mãos, toca
objetos, produz sons. São exercícios que ajudam a explorar o ritmo do próprio corpo
para ver os efeitos de sua ação.
Assim a criança descobre os próprios gestos e os repete. Estes exercícios
sensório-motores4 dão lugar a um exercício lúdico e constituem a forma inicial do
jogo na criança estando freqüente durante toda a infância. Por exemplo, aos 5 ou 6
anos a criança utiliza este tipo de jogo para pular com um só pé, ou subir degraus de
escadas; aos 10 ou 12 ela novamente os utiliza quando tenta andar de bicicleta. A
função dessas atividades lúdicas, de acordo com Piaget (1969):
Consiste em satisfazer o eu por meio de uma transformação do real em
função dos desejos: a criança que brinca de boneca refaz sua própria vida,
corrigindo-a à sua maneira, e revive todos os prazeres ou conflitos,
4
São exercícios que constituem a forma inicial do jogo na criança, têm valor exploratório, pois a
criança os realiza para explorar e exercitar os movimentos do próprio corpo para ver o efeito que sua
ação vai produzir. Por exemplo, nos primeiros meses de vida o bebê estica e encolhe os braços e
pernas.
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resolvendo-os, compreendendo-os, ou seja, completando a realidade através
da ficção" (PIAGET, 1969 p. 29) .
Através do jogo simbólico a criança assimila a realidade, isto é, ela cria um
universo particular por meio do jogo que estabelece com os objetos e seus pares, pois
à medida que ela brinca de casinha representando o papel de pai ou de mãe, ela está
imitando situações reais que ela vivencia. A criança adquire a primeira representação
do mundo através dos jogos e dos brinquedos.
No jogo a criança aprende a ser solidária, responsável e obediente às regras.
Ela também se desenvolve com o suporte de outras crianças. Essa é a importância que
Vygotsky (1989) dá ao papel do "outro social". Sendo assim, a brincadeira é uma
situação propícia ao aprendizado. Em primeiro lugar porque ela representa um
momento do desenvolvimento individual, e em segundo porque permite a
comunicação entre os indivíduos e o aprimoramento da interação social.
A criança brinca para provar e afirmar sua personalidade. Através do jogo ela
cria outro universo, onde ela se realiza. Benjamin (2002) considera que a realidade
pode ser compreendida através de um olhar novo, transformador. Para ele essa visão
sensível e especial pertence à criança. Fica claro nesse fragmento:
Criança escondida. Já conhece todos os esconderijos da casa e retorna a eles
como a um lar onde se está seguro de encontrar tudo como antes. Atrás do
cortinado, a própria criança transforma-se em algo ondulante e branco
converte-se em fantasma. A mesa de jantar, debaixo da qual ela se pôs de
cócoras, a faz transformar-se em ídolo de madeira em um templo onde as
pernas talhadas são as quatro colunas. E atrás de uma porta, ela própria è a
porta, incorporou-a como pesada máscara e, feita um sacerdote-mago,
enfeitiçará todas as pessoas que entrarem desprevenidas. Por preço algum ela
deve ser encontrada (BENJAMIN, 2002, p.107, 108).
É um exercício de criatividade que não se limita só à criação, mas também se
refere é recriação dos objetos e de si próprio. No jogo as crianças recusam-se a ver o
que realmente vêem, uma vara não é mais uma vara, mas uma espada; um risco no
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chão não é um risco, mas um muro. Elas sempre dão usos diferentes para seus
brinquedos.
Brincadeiras, o Inventário das Maravilhas
A brincadeira é uma atividade dominante da infância, e é através dela que as
crianças começam a aprender e a compreender o mundo e as ações humanas. Mas,
nem sempre ela foi aceita como tal, antes a brincadeira era geralmente considerada
como fuga ou recreação. A imagem social da infância não permitia um
comportamento infantil que pudesse significar por si mesmo. Brougère (2004) no diz:
A brincadeira é uma atividade que se distingue das outras, no sentido em que
não deve ser considerado de modo literal. Nela se faz-de-conta, ou melhor, o
que se faz só tem sentido e valor num espaço e em um tempo delimitado. A
comprovação disso é essa passagem pitoresca, que ninguém sabe se é real ou
inventada, como ilustração: uma criança faz um trem com as cadeiras da sala
de jantar, imitando o barulho da locomotiva, pelo menos é o que acha a avó
que diz “que bonito seu trem” e que recebe a seguinte resposta: “são
cadeiras”. Esse universo construído só pode ser resultado de uma decisão de
quem brinca, sem imposições diante dessa atividade, que só existe se quem
brinca continuar a tomar decisões (BROUGÈRE, 2004, p.257).
Dessa forma pode-se considerar a brincadeira como uma atividade voluntária e
consciente, que envolve não simplesmente o ambiente, mas a decisão da criança de
brincar. As brincadeiras, segundo Brougère (2004) podem ser consideradas uma
forma de interpretação dos significados contidos nos brinquedos e mesmo que elas
não precisem deles para ser desencadeadas, muitas se originam num contato com os
mesmos.
A brincadeira pode também ser considerada um fato social, o espaço de
constituição do sujeito-criança, produto e produtor de história e cultura. Já que ela
supõe contextos que permitem às crianças recriar a realidade através de sistemas
simbólicos (WAJSKOP, 2005).
Para Froebel, filósofo conhecido como psicólogo da infância, a criança é
perfeita e livre e é esta liberdade que é expressa por meio das brincadeiras (apud
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KISHIMOTO, 2002). Froebel (apud KISHIMOTO, 2002) acredita que a criança
precisa viver de acordo com a sua natureza e que a brincadeira é o jeito mais livre e
espontânea de fazê-lo. Ele entende que a brincadeira é a atividade mais pura da
infância e ao mesmo tempo típica da vida humana enquanto um todo. E se é através
das brincadeiras que a criança tenta compreender seu mundo, enquanto brincam elas
reproduzem situações da vida real.
Benjamin (2002), um dos autores que considerou o aspecto cultural do lúdico,
o brinquedo e o brincar estão associados e revelam como o adulto se coloca em
relação ao mundo da criança acentua em uma de suas reflexões:
Não há dúvida que brincar significa sempre uma libertação. Rodeadas por um
mundo de gigantes, as crianças criam para si, brincando, o pequeno mundo
próprio; mas o adulto, que se vê acossado por uma realidade ameaçadora, sem
perspectivas de solução, liberta-se dos horrores do real mediante a sua
reprodução miniaturizada (BENJAMIN, 2002, p. 85).
Embora os brinquedos sejam confeccionados geralmente por adultos, são as
crianças que dão a eles seus próprios significados. A partir do momento em que o
brinquedo são dados às crianças, o seu sentido e significado não são dados
antecipadamente, surgem ao longo das brincadeiras, quando as crianças se deixam
arrebatar por um novo significado que é criado enquanto brincam.
Para Vygotsky (1989), a brincadeira possui três características: imaginação,
imitação e a regra. Segundo ele, estas características estão presentes em todos os tipos
de brincadeiras infantis, sejam elas tradicionais ou de faz-de-conta. É a brincadeira
que cria na criança uma nova forma de desejos.
Para Brougère (2001), a brincadeira é uma forma de interpretação dos
significados contidos nos brinquedos. O que a caracteriza é o fato dela poder fabricar
seus próprios objetos, desviando-os de seu uso comum.
Acreditava-se, que a brincadeira da criança era determinada pelo conteúdo
imaginário do brinquedo, mas, na verdade é a brincadeira que determina o brinquedo.
No mundo imaginário “a criança quer puxar alguma coisa e torna-se cavalo, quer
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brincar com areia e torna-se padeiro, quer esconder-se e torna-se bandido ou guarda”
(BENJAMIN, 2002, p.93). Através dessa experiência entre a subjetividade e a
objetividade, os objetos do mundo imaginário se tornam reais para as crianças. Por
isso, quando brincam, vão construindo a consciência da realidade em que vivem e ao
mesmo tempo encontram uma possibilidade para modificá-la.
Brinquedos, Infinitas Possibilidades
Os filósofos Sócrates e Aristóteles afirmavam que desde os tempos passados,
o brinquedo sempre foi utilizado como forma de relaxamento e recreação
(KISHIMOTO, 2002, p. 61). E isso se manteve por um longo tempo. Na idade média
o brinquedo estava relacionado com atividades não sérias. Entendo que muito temos a
aprender sobre este tema com as crianças, pois elas sempre dão novos significados
aos brinquedos. Uma tampinha não é somente uma tampinha, é tudo o que a
imaginação quiser. Elas não deixam escapar nenhum detalhe por menor que ele seja.
De acordo com Benjamin (2002), as crianças vêem nos brinquedos
características que os adultos não pensam, pois remetem a elementos do imaginário
das crianças. Isto é o que ocorre também com o conserto de brinquedos quebrados,
pois: “Jamais são os adultos que executam a correção mais eficaz dos brinquedos,
mas as crianças mesmas, no próprio ato de brincar” (BENJAMIN, 2002, p. 87).
Mesmo quebrado, o brinquedo não perde o seu encanto no mundo lúdico da
criança. Com isso, Benjamin (2002) nos diz que nem tudo que o adulto concebe como
brinquedo possui as verdadeiras características do que as crianças pensam em relação
ao brinquedo, mas, é o adulto que oferece à criança os seus brinquedos. Assim,
mesmo quando não imita os instrumentos dos adultos, o brinquedo é um confronto
entre os adultos e as crianças.
Para Brougère (1995), o brinquedo é produto de uma sociedade dotada de
traços culturais específicos. O brinquedo é antes de tudo, um objeto que a criança
pode manipular livremente. Logo, brinquedo é um objeto infantil, é um presente
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destinado às crianças, um suporte de ação, de manipulação e de conduta lúdica.
Brinquedos são, em muitos casos, produzidos na própria dinâmica das brincadeiras.
Quando as crianças brincam os seus desejos são socializados pelos
brinquedos. Isso explica o motivo de que elas, durante as brincadeiras conferirem
novos sentidos a esses brinquedos e objetos. Se o brinquedo perde a sua função, qual
seja a de desencadear a brincadeira, ele perde a sua utilidade. As bonecas Monster
High, por exemplo, conquistaram o gosto de muitas crianças, pelas características
ousadas que mescla vampirismo e zumbis. O slogan da franquia é: "Seja você mesmo,
seja único, seja um monstro!", defendendo a ideia da diferença e da liberdade para ser
o que quiser.
Monster High, Elas Viraram Fenômeno
O crescimento nas vendas das bonecas Monster High é uma demonstração de
que elas conquistaram o gosto da criançada e estão entre as bonecas preferidas delas.
Em três anos, as “monstrinhas” se tornaram o segundo produto para meninas mais
vendido da Mattel 5 no mundo. Ao que parece, as crianças desta geração se identificam
com o visual mais despojado das bonecas Monster High como, por exemplo,
piercings e maquiagens coloridas; já a Barbie, diferentemente, usa roupas e
maquiagens clarinhas.
As bonecas Monster High fazem parte de uma turma que estuda no mesmo
colégio, quase todas com idade de 16 anos. Os figurinos das bonecas são modernos,
apesar de serem filhas de famosos monstros, como no caso de Draculaura 6, Frankie
Stein
7
. As bonecas foram pensadas para um publico pré-adolescente, todavia
receberam as boas-vindas entre as crianças de seis e sete anos. O consumo da marca
5
É uma companhia fabricantes de brinquedos, e é a maior do mundo. Um dos brinquedos mais é
vendido é a boneca Barbie.
6
É filha do vampiro Conde Drácula, é vegetariana, não vê seu reflexo no espelho e toma suplemento
de ferro.
7
É filha é filha do Frankenstein. Seu corpo inteiro é costurado e, às vezes, ela perde um pouco das
partes de seu corpo.
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Monster High envolve outras questões além do ato de brincar de boneca, pois a marca
disponibiliza uma variedade de produtos.
Uma passada rápida pelo YouTube encontramos pequenos filmes relacionados
às bonecas Monster High feito por e/ou com crianças. Em determinado vídeo, duas
crianças ensinam como fazer a maquiagem da boneca Frankie Stein, um exemplo de
como as Monster High facilitam novas formas de interação das crianças. E neste caso,
uma interação mediada (meio técnico), para interagir com outras pessoas. As crianças
do vídeo estão não apenas consumindo um produto, mas, estão participando daquilo
que Thompson (2014) chama de ação e interação. Dito de outra maneira, as crianças
estão fazendo uso das novas formas que os meios de comunicação facilitam.
Em reportagem, a revista Exame 8 divulgou alguns números que revelam os
avanços no mercado realizados pela franquia da marca Monster High. A divisão da
qual a Monster High faz parte registrou crescimento global de 56% durante os três
primeiros meses de 2013. Mas o que é Monster High?
É preciso ressaltar que não se trata apenas de uma linha de bonecas com alto
índice de vendas. Monster High é uma franquia multiplatafórmica composta de
brinquedos, livros, DVD, série na web, vídeos de música, acessórios de
vestuário entre outros. Mas este artigo trata apenas de um desses produtos, a saber, as
bonecas. O site da loja virtual Tricae9 dá algumas recomendações sobre as bonecas,
chamando a atenção para o fato de que são recomendadas para crianças com idade
superior a seis anos, pois possuem acessórios pequenos que podem representar riscos
para crianças muito pequenas. O site da loja também diz que, cada boneca possui uma
personalidade diferente, e que ao comprar uma, deve-se levar em consideração a
personalidade da criança a quem ela será destinada. Mas, é preciso lembrar que
algumas das bonecas possuem dentes afiados, pelos no corpo. A boneca Frankie
Stein, por exemplo, tem a pele esverdeada e os membros costurados.
8
Ver revista Exame edição online de 17 de abr de 2013.
Disponível em: http://www.tricae.com.br/bonecas-monster-high-como-comprar/. Acesso em: 20 jul
de 2014.
9
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Sobre isto, surgem alguns questionamentos. Será que as bonecas Monster
High refletem as características dessa época, que segundo Bauman (2001) é cheia de
possibilidades? Podemos considerar que o fato de essas bonecas serem tão queridas
pelas crianças, pode ser um elemento revelador de que estamos presenciando novos
modos de a criança conceber o que é brinquedo, já que as Monster High apresentamse com as ricas, imaginação e fantasia, do contexto em que foram pensadas.
Considerações Finais
Nos dias atuais, a mídia transformou a natureza da produção e do consumo dos
brinquedos. A televisão, por exemplo, com suas propagandas publicitárias aumenta
ainda mais a dimensão simbólica dos brinquedos. E o que dizer de produtos que são
fabricados para diferentes plataformas, como no caso das Monster High em que a
marca não gira apenas em torno de brinquedos?
É importante destacar que, antes de ser um brinquedo, a boneca é uma
mercadoria que funciona no mesmo esquema de fabricação de automóveis, por
exemplo. As bonecas Monster High são produtos dessa época, de uma sociedade
ligada ao consumo. Que por funcionar dentro de uma lógica de mercados, com vistas
ao lucro, produz diferentes produtos a fim de atingir vários grupos, neste caso,
crianças e adolescentes. Por isso, a compreensão da sociedade contemporânea como
uma sociedade ambientada pela comunicação (RUBIM, 2011) ajuda-nos a entender a
Monster High, primeiramente, como uma marca fabricada pela mídia. Atualmente,
muito dos conteúdos das brincadeiras das crianças são fornecidos pela TV, Internet.
Entretanto a criança não se limita a receber passivamente os conteúdos, ela se
apropria deles porque oferecem uma linguagem comum e, isso contribui para o
desenvolvimento da cultura lúdica. Estariam, pois, as Monster High cooperando com
as crianças no “faz de conta” que Piaget (1969) chama de brincadeira simbólica, já
que a marca foi inspirada por filmes de monstros, terror e ficção científica? Até que
ponto as crianças de seis anos conseguem moldar o conteúdo das bonecas aos
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próprios interesses se a boneca com a qual brincam pertence a um mundo de monstros
e zumbis?
As crianças sofrem os impactos dessa comunicação mercadológica que as
convida a consumir. E se o produto do agrado delas assemelha-se aos da marca
Monster High, que oferece de brinquedos a roupas e tantos outros artigos como já foi
demonstrado acima, podem existir dificuldades para crianças no momento de
estabelecer prioridades. Pois ela, a criança, diante do excesso pode sentir-se infeliz em
ter que escolher apenas um. Pois como diz Bauman (2001), em um mundo cheio de
possibilidades torna-se custoso e irritante estabelecer prioridades. Ou ainda, a criança
pode desejar ter todos os produtos, o que pode deixá-la aflita, pois esse desejo pode
não ser saciado.
As bonecas Monster High mostram-se cheias de preferências e condutas,
seriam também assim as nossas crianças? Procurar definições seria um tanto quanto
inapropriado, haja vista que a infância de nossas crianças se formata a cada dia, com
ou sem o incentivo de brinquedos (comprados ou inventados). Por isso mesmo, ela é
merecedora de nossa atenção. Ainda mais quando se pressupõe a presença brinquedos
promotores de uma agenda que expõe tantos outros produtos.
Uma reflexão sobre o consumo das Monster High exigirá mais espaço do que
o que temos à disposição. Mas, penso que o que proponho neste artigo nos dá um
ponto de partida, numa tentativa de entender as práticas das crianças, que envolve
tanto as brincadeiras, como os próprios modos de pensar e a agir delas e também
sobre o lugar ocupado pelo consumo no cotidiano delas.
Referências
ANDERSON Perry. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
ARIÉS, P. História Social da Criança e da Família. 2. ed. Rio de Janeiro: 1986.
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