IMPERFEIÇÃO DA SENTENÇA CITRA PETITA E POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO EX NOVO PELO TRIBUNAL Denise Nunes Winimko Pós-Graduada em Direito Processual Civil pela ABDPCAcademia Brasileira de Direito Processual Civil. Bacharel em Direito. RESUMO A sentença citra petita não observa o princípio da congruência. A possibilidade de o tribunal apreciar o pedido não examinado pelo juízo de primeiro grau, ultrapassando a questão da invalidade, mostra-se coerente com as reformas processuais que expandiram o efeito devolutivo do recurso de apelação. A imperfeição da sentença citra petita deve ser aquilatada diante do princípio da instrumentalidade das formas, informador de todo o sistema de invalidades processuais, verificando-se o prejuízo para a finalidade do processo. Não se antevê violação ao duplo grau de jurisdição, em vista da preservação da recorribilidade da sentença. INTRODUÇÃO Ao proferir a sentença de mérito, o juiz deve acolher ou rejeitar, no todo ou em parte, o pedido formulado pelo autor. A sentença que deixa de julgar parte do pedido ou um dos pedidos é citra ou infra petita. A reflexão proposta neste trabalho é se a omissão da sentença, alvo de insurgência do autor em apelação, merece decretação de invalidade ou pode ser suprida por julgamento ex novo pelo tribunal. Tal indagação resulta do www.abdpc.org.br questionamento provocado pelas reformas processuais, que trouxeram modificações substanciais ao efeito devolutivo do recurso de apelação, ensejando a renúncia a certos dogmas doutrinários. Para solucionar o problema, o exame do sistema de invalidades do direito processual civil brasileiro e dos princípios fundamentais dos recursos há de ser permeado pela garantia constitucional à tutela jurisdicional adequada e efetiva, sem deixar de lado a consistência das bases da ciência jurídica. 1. IMPERFEIÇÕES DA SENTENÇA CITRA PETITA A observância da perfeita correlação entre pedido e sentença constitui o princípio da congruência, inspirador de vários dispositivos do Código de Processo Civil: artigos 128, 459 e 460. 1 Relaciona-se diretamente com o princípio dispositivo, porquanto o exercício da função jurisdicional depende da iniciativa da parte. Assim, cabe ao autor invocar os fatos jurídicos e as consequências jurídicas extraídas de tais fatos, das quais decorre o pedido, para que a tutela prestada pelo juiz possa realizar o interesse protegido pelo direito material. Segundo WAMBIER2, o nexo entre princípio da congruência e princípio dispositivo também se vincula com as garantias da ampla defesa e do contraditório, pois o réu somente pode defender-se contra o que integra a demanda. A causa de pedir e o pedido exercem a função de delimitadores da atividade jurisdicional, atuando no sentido de impedir que o juiz profira sentença de mérito fora (extra), além (ultra) ou menos (citra ou infra) do que foi postulado pelo autor. Caso a sentença não se conforme com os limites do pedido, haverá vício concernente à sua dimensão quantitativa, isto é, relativo à extensão da sentença. 1 Art. 128. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte. Art. 459. O juiz proferirá a sentença, acolhendo ou rejeitando, no todo ou em parte, o pedido formulado pelo autor. (...) Art. 460. É defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado. 2 Teresa Arruda Alvim Wambier. Nulidades do processo e da sentença. 2007, p. 298. www.abdpc.org.br O objeto da análise a ser empreendida é a sentença citra petita, em que o juiz, ao decidir o mérito, desconsidera parte do pedido ou um dos pedidos integrantes da pretensão. A primeira hipótese ocorre na cumulação causal de ações, pois o pedido, conforme a lição de Calmon de Passos, reproduzida por CINTRA 3, conquanto seja formalmente uno, desdobra-se em tantos pedidos quantas as causas de pedir (fundamentos); se a sentença silencia sobre algum dos fundamentos da demanda, será citra petita. A segunda hipótese ocorre comumente na cumulação simples de pedidos, em que cada pedido deve ser acolhido ou rejeitado independentemente do outro; nesse caso, o juiz deve analisar todos os pedidos, sob pena de proferir sentença citra petita. Pode acontecer, igualmente, na cumulação sucessiva, em que o juiz somente examinará o segundo pedido se acolher o primeiro; se julgar procedente o primeiro e omitir-se quanto ao segundo, igualmente a sentença será citra petita. Na cumulação eventual de pedidos, haverá essa imperfeição se o juiz não acolher ou não apreciar o mérito do pedido principal e deixar de examinar o pedido subsidiário ou, então, somente apreciar o pedido subsidiário, omitindo-se quanto ao pedido principal. Além da decisão que não examinou um pedido ou um fundamento, há outro tipo de decisão omissa, consoante a lição de DIDIER, BRAGA e OLIVEIRA: “(...) a que não examinou algum fundamento/argumento/questão que tem aptidão de influenciar no julgamento do pedido (questão incidente), que efetivamente ocorreu.” 4 O não julgamento das preliminares e de outras questões atinentes à relação processual configura omissão parcial, pois, embora apreciado o pedido, não houve manifestação do juízo sobre questão prévia ou prejudicial do mérito. 2. O SISTEMA DE INVALIDADES PROCESSUAIS Partindo da premissa de que a função jurisdicional constitui 3 Antonio Carlos de Araújo Cintra. Comentários ao Código de Processo Civil: arts. 332 a 475. 2008, p. 286-287. Fredie Didier Jr.; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. Curso de direito processual civil: direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. 2007, p. 254. 4 www.abdpc.org.br instrumento de pacificação de conflitos, interessa ao juiz conferir efetividade, eficiência e celeridade ao processo. Para cumprir esse mister, deve nortear-se pelos princípios informadores do sistema de invalidades processuais, construídos pelos conceitos jurídicos positivados no Código de Processo Civil. As nulidades pertencem unicamente ao plano da validade dos atos jurídicos, à medida que tratam do preenchimento deficiente dos elementos do suporte fático do ato definidos pelas normas jurídicas. O desfazimento do ato jurídico inválido resulta somente de decisão judicial; assim, enquanto não for decretada a invalidade, o ato, conquanto defeituoso, produz efeitos. Depreende-se, segundo DIDIER, que “(...) a invalidação é a sanção cominada para as hipóteses em que se reconheça que o ato foi praticado sem o preenchimento de algum requisito havido como relevante”. 5 A imperfeição do ato processual é denominada por CALMON DE PASSOS como atipicidade relevante, entendida como “(...) aquela falta ou vício de um ou de alguns dos elementos do tipo (substanciais ou formais) que importem em inatingibilidade do fim posto ao ato pelo sistema jurídico”. 6 O defeito do ato processual acarreta a existência de prejuízo à consecução de sua finalidade. A qualidade distintiva do ato processual inválido, portanto, é não atingir o fim que as normas e os princípios jurídicos definiram como essencial à substância do ato e à sua forma. A classificação tradicional entre nulidade absoluta, decretável de ofício e arguível a qualquer tempo, e nulidade relativa, arguível somente pela parte interessada, sob pena de preclusão, não possui qualquer relevância para a teoria das invalidades processuais. Se o vício, seja absoluto, seja relativo, não causar prejuízo à finalidade do ato, não há razão para sancioná-lo com a invalidade. O princípio da instrumentalidade das formas ou da ausência de prejuízo constitui a pedra angular do sistema de invalidades, a guiar a interpretação 5 Fredie Didier Jr. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 2007, p. 228. 6 José Joaquim Calmon de Passos. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. 2002, p. 146. www.abdpc.org.br das normas postas nos artigos 243 a 250 do CPC. Nem mesmo a presunção de prejuízo feita pela lei, em relação às nulidades cominadas, exime o juiz de questionar se realmente o objetivo do ato não foi alcançado, visto que apenas a efetiva existência de prejuízo implicará a sanção judicial de invalidade. Sob esse viés deve ser interpretado o artigo 244 do CPC7, segundo a pertinente crítica de BEDAQUE: Não há razão para limitar o alcance do disposto no art. 244 do Código de Processo Civil, entendendo possível a convalidação do ato processual viciado, porque atingida a finalidade, apenas nas hipóteses de nulidade não cominada. Se cominada, haveria presunção absoluta de que o objetivo somente seria alcançado se cumprida a formalidade legal. Não obstante a redação do dispositivo, interpretação sistemática da regra autoriza conclusão diversa. Ainda que haja previsão expressa de nulidade pelo descumprimento da forma, não se justifica invalidar o ato processual se a falha não impedir o resultado desejado. Insiste-se: mesmo a inexistência de determinado ato do procedimento não contamina necessariamente os subseqüentes se não houver prejuízo. E ausência de prejuízo corresponde a finalidade alcançada. Esses dois conceitos são, pois, interligados. Ambos correspondem à idéia de espírito da lei processual. São aspectos fundamentais do princípio da instrumentalidade das formas: é preciso atentar sempre para a finalidade atribuída pelo legislador ao ato e à respectiva forma, bem como ao prejuízo que a violação desta uma porventura tenha acarretado. 8 CALMON DE PASSOS 9 oferece a perspectiva sob a qual há de ser enfrentado o vício resultante de nulidade expressamente cominada, ao analisar a previsão dos artigos 84 e 246 e parágrafo único, do CPC10. O autor considera injustificáveis as decisões dos tribunais que, diante de uma sentença favorável aos interesses indisponíveis tutelados por essas normas, anulam os atos do processo, com fundamento na ausência de intimação do Ministério Público no primeiro grau, suprida pelo pronunciamento do órgão ministerial no segundo grau, uma vez que nenhum prejuízo legitimador da decretação de nulidade pode ser identificado. Conquanto o CPC considere nulo o processo em que o Ministério Público não participou por falta de intimação, em caso de intervenção obrigatória, a decretação de invalidade exige a ponderação a respeito da teleologia da norma processual. A 7 Art. 244. Quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade. 8 José Roberto dos Santos Bedaque. Nulidades processuais e apelação. In: Adroaldo Furtado Fabrício et al. (Coord.). Meios de impugnação ao julgado civil: estudos em homenagem a José Carlos Barbosa Moreira. 2007, p. 404-405. www.abdpc.org.br função do Ministério Público é proteger e zelar os interesses do incapaz; se o resultado da demanda foi favorável ao incapaz, resta evidente que a ausência de intimação não prejudicou o destinatário da tutela jurídica. Nessa ordem de idéias, cumpre ao juiz extrair o máximo aproveitamento dos atos processuais, devendo analisar o vício à luz do objetivo da regra não observada, tanto em sua dimensão normativa quanto em sua dimensão axiológica. O juízo positivo a respeito da relevância da imperfeição do ato depende, necessariamente, da constatação de que houve prejuízo para os fins de justiça do processo. Restando negativo o juízo de relevância, o vício processual deve ser simplesmente ignorado. 3. JULGAMENTO DO RECURSO DE APELAÇÃO CONTRA SENTENÇA INFRA PETITA Apontados os defeitos da sentença infra petita, impende saber qual o procedimento que cabe ao tribunal, quando a omissão do juiz não foi suprida por meio de embargos de declaração e o autor interpõe recurso de apelação, requerendo a anulação da sentença ou o julgamento do pedido não apreciado. De início, cabe frisar que a extensão do efeito devolutivo da apelação é determinada pela extensão da impugnação, ou seja, limita-se ao conhecimento da matéria impugnada. Isso porque, consoante NERY, “O efeito devolutivo do recurso tem sua gênese no princípio dispositivo, não podendo o órgão ad quem julgar além do que foi pedido na esfera recursal”. 11 Não se opera, no caso, o efeito translativo, em se tratando de questões de ordem pública, “(...) em que o sistema processual autoriza o órgão ad quem a julgar fora do que consta das razões 9 José Joaquim Calmon de Passos. op. cit. p. 157-158. Art. 84. Quando a lei considerar obrigatória a intervenção do Ministério Público, a parte promover-lhe-á a intimação sob pena de nulidade do processo. Art. 246. É nulo o processo, quando o Ministério Público não for intimado a acompanhar o feito em que deva intervir. Parágrafo único. Se o processo tiver corrido, sem conhecimento do Ministério Público, o juiz anulará a partir do momento em que o órgão devia ter sido intimado. 11 Nelson Nery Junior. Teoria geral dos recursos. 2004, p. 482. 10 www.abdpc.org.br ou contra-razões do recurso”. 12 O efeito translativo decorre do princípio inquisitório, contrapondo-se ao princípio dispositivo. Portanto, se o autor somente pede a anulação da sentença infra petita, o tribunal fica adstrito a se pronunciar sobre a invalidade da decisão do órgão a quo. Apresenta-se o vício da sentença citra petita como uma questão prévia a ser decidida pelo tribunal antes do mérito do pedido, ainda que o recorrente não o tenha arguido. Não obstante autores do quilate de DIDIER, BRAGA e OLIVEIRA asseverem que a decisão omissa não apresenta vício, porque “(...) Não há vício naquilo que não existe. (...)”, 13 há infração ao princípio da congruência, assim como ao direito fundamental de acesso à justiça. A omissão judicial compromete a efetividade e a celeridade da tutela jurisdicional, frustrando os fins do processo. Para a formulação de juízo acerca da validade ou invalidade da sentença citra petita, há de se perquirir as normas positivadas no CPC e os valores que as inspiram, aquilatando o vício em face do princípio da instrumentalidade das formas. De acordo com a lição de CALMON DE PASSOS, para ultrapassar a questão da nulidade da sentença, é imprescindível verificar a existência ou inexistência de prejuízo: Faltando a apreciação de um dos pedidos ou de um dos fundamentos, entendo que, em face do que dispõem os artigos 515 e 516 de nosso CPC, não se deve anular a sentença, impondo-se ao tribunal o dever de apreciar os pedidos não considerados no primeiro grau, bem como os fundamentos a respeito dos quais silenciou o a quo. Não devemos esquecer, entretanto, que tudo isso se alicerça no princípio basilar de nosso sistema de nulidades – a existência ou inexistência de prejuízo. Donde sempre ter sustentado que o julgamento pelo ad quem de tudo quanto omitido pelo a quo somente é possível se o direito de alegar e provar das partes não vai ser molestado com essa decisão. Em outros termos: se a questão omitida ou o pedido não apreciado já foram, no primeiro grau, objeto de apreciação pelas partes, que a respeito deles tiveram todas as 12 Id. Ibid. p. 482. Fredie Didier Jr; Paula Sarno Braga; Rafael Oliveira. op. cit. p. 255. “(...) Não há vício naquilo que não existe. Só tem defeito aquilo que foi feito. Se um pedido não foi examinado, não houve decisão em relação a esse pedido e, portanto, não se pode falar em vício. Do mesmo modo, a solução dos demais pedidos, efetivamente resolvidos, não fica comprometida ou viciada pelo fato de um dos pedidos não ter sido examinado. Nesses casos, a decisão precisa ser integrada e não invalidada; não se pode invalidar o que não existe. A integração da decisão é uma das possíveis pretensões que podem ser deduzidas em um recurso. Integrar a decisão é torná-la inteira, completa, perfeita; integrar a decisão não é invalidá-la.” 13 www.abdpc.org.br oportunidades de alegar e provar quanto de seu interesse, o julgamento no segundo grau se impõe, visto como impossível se vislumbrar, na espécie, algum prejuízo. 14 Dessarte, desde que o iter processual que redundou na sentença omissa tenha respeitado o devido processo legal, inexistindo ofensa às garantias constitucionais por excelência dos litigantes - o contraditório e a ampla defesa -, não se justifica a sua anulação. A sentença deve ser vista não apenas como resultado da atividade do juiz, mas também como resultado da atividade das partes, movidos pelo escopo de atingir a finalidade do processo. Por isso, o mandamento contido no parágrafo 1º do artigo 249 do CPC15 é plenamente aplicável aos vícios da sentença. O alcance desse dispositivo obriga o tribunal, na análise da apelação, a não pronunciar a nulidade da sentença, quando a imperfeição vislumbrada não prejudicar as partes. Nessa senda, há de se reconhecer que o maior prejuízo a ser impingido às partes seria o retardamento da solução do litígio, ocasionado pela anulação da sentença e pelo retorno do processo ao juízo a quo para suprir a omissão quanto à parte do pedido ou a um pedido. Os óbices erigidos a essa solução inspirada no princípio da ausência de prejuízo amparam-se, basicamente, na ofensa ao princípio do duplo grau de jurisdição, uma vez que o julgamento pelo tribunal prescindiria da manifestação do juízo de primeiro grau sobre o pedido ou a questão não apreciada. No entanto, é preciso considerar que o duplo grau de jurisdição padece de instabilidade conceitual, variando no espaço e no tempo, conforme os fatores políticos e históricos que o influenciam. GUEDES 16 aponta duas correntes conceituais, uma salientando o reexame por uma segunda instância hierarquicamente superior ao órgão prolator da decisão, e outra entendendo ser desnecessária a existência de hierarquia entre os órgãos jurisdicionais ou entre os membros desses órgãos. Observa o autor que “De tudo resta a perspectiva central de prevalência da decisão subseqüente sobre a antecedente, mais do que a averiguação sobre a superposição entre órgãos jurisdicionais ou mesmo sobre a 14 José Joaquim Calmon de Passos. op. cit. p. 153. Art. 249. O juiz, ao pronunciar a nulidade, declarará que atos são atingidos, ordenando as providências necessárias, a fim de que sejam repetidos, ou retificados. § 1º O ato não se repetirá nem se lhe suprirá a falta quando não prejudicar a parte. 16 Jefferson Carús Guedes. Duplo grau ou duplo exame e a atenuação do reexame necessário nas leis brasileiras. In: Nelson Nery Junior; Teresa Arruda Alvim Wambier (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos e de outros meios de impugnação às decisões judiciais. 2002, p. 287. 15 www.abdpc.org.br hierarquia (...)”. 17 Diante da instabilidade conceitual, cabe focar a análise no fundamento do duplo grau de jurisdição, que é permitir o controle de validade ou de legalidade da decisão objeto de apelação. Não há negar que esse escopo é plenamente atendido quando o tribunal conhece a matéria impugnada, mesmo que a sentença se mostre omissa quanto a um pedido ou um fundamento. Sob essa perspectiva, desde que haja observância ao contraditório e à ampla defesa, o tribunal está apenas cumprindo a sua função de exercer o amplo reexame da sentença. O princípio do duplo grau de jurisdição, embora fixado em diversos dispositivos da Constituição de 1988, não consiste em garantia constitucional. O que a Constituição assegura é o devido processo legal, o qual se conecta com outros princípios constitucionais, como o contraditório e a ampla defesa, o dever de fundamentar as decisões, a publicidade e a inafastabilidade do controle judicial. Conquanto o duplo grau consista em consectário do devido processo legal e nessa medida derive do constitucionalismo, a inexistência de cláusula expressa na Constituição indica que o princípio pode sofrer atenuações, conforme as exigências sociais e políticas que se apresentarem ao legislador. Tal aspecto foi evidenciado por DINAMARCO: A relatividade histórica do princípio, com o qual não são incompatíveis as ressalvas razoavelmente postas pela lei (Chiovenda), levou Liebman a dizer que “o duplo grau, sendo um instituto inspirado em motivos de oportunidade, não exclui atenuações e compromissos quando for o caso de pôr-se em confronto com outras exigências eventualmente conflitantes” (...). O importante, diz ainda o Mestre, é que o princípio do duplo grau deve ser visto como uma regra geral inerente ao sistema democrático do processo. Não-obstante as variações a que é institucionalmente sujeito, esse princípio integra o conjunto democrático dos modelos processuais inerentes ao Estado-dedireito e, mais precisamente, a cláusula due process of law. Ele representa, agora na lição de Chiovenda, “uma garantia dos cidadãos”. 18 A exigência conflitante que justifica a atenuação do duplo grau 17 18 Id. Ibid. p. 290. Cândido Rangel Dinamarco. Nova era do processo civil. 2007, p. 168. www.abdpc.org.br está posta na própria Constituição. Para resolver (ou remediar) a crise do processo, a celeridade da prestação jurisdicional tornou-se garantia constitucional. Concretizar essa garantia não é missão somente do legislador, mas também do Poder Judiciário, que deve valer-se dos instrumentos jurídicos disponíveis para solucionar os impasses processuais. A expansão do efeito devolutivo da apelação, levada a efeito no parágrafo 3º ao artigo 515 do CPC, 19 representa notória exceção ao duplo grau, permitindo que o tribunal conheça diretamente do mérito da causa, quando a sentença recorrida não resolveu o mérito. A mesma necessidade de oferecer tutela jurisdicional célere existe na hipótese em que o tribunal examina o pedido ou o fundamento não apreciado pelo juízo de primeiro grau. Esse entendimento é partilhado por DINAMARCO: Também em apelação contra sentença de mérito omissa quanto a um dos pedidos postos no processo (pedido cumulado, reconvenção etc.) cumprirá ao tribunal decidir a respeito, sempre que a causa esteja madura para o julgamento do pedido negligenciado. Não será o caso de devolver os autos para que o faça o juiz inferior e, muito menos, de anular o que foi julgado por conta do que não o foi. O julgamento pelo tribunal, em hipóteses assim, constitui desdobramento rigorosamente legítimo do disposto no § 3º do art. 515 do Código de Processo Civil e de seu espírito agilizador, sendo fortíssima a analogia entre a sentença terminativa, cuja reforma pode induzir ao julgamento do mérito, e a sentença de mérito que deveria conter um capítulo a mais, mas que por indevida omissão não o contém. Em ambos os casos teremos um julgamento de mérito pelo tribunal, sem que o mérito houvesse sido julgado pelo juiz inferior (mérito da causa como um todo na primeira hipótese e mérito de um dos pedidos, na segunda delas). 20 A segurança jurídica proporcionada pelas normas processuais e pelos princípios e garantias inerentes ao direito processual não se sobrepõe ao valor máximo do efetivo acesso à justiça, que deve ser traduzido por um processo rápido, ágil e eficiente. CONCLUSÃO 19 Art. 515. A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada. § 3º. Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento. 20 Cândido Rangel Dinamarco. op. cit. p. 183-184. www.abdpc.org.br O princípio dispositivo e o princípio da congruência do pedido com a sentença são conexos, visto que atuam como delimitadores da atividade jurisdicional. A sentença citra petita apresenta vício concernente à sua extensão, visto que desatende o princípio da congruência, ao deixar de julgar parte do pedido ou um dos pedidos, no caso de cumulação de demandas. As nulidades pertencem unicamente ao plano da validade dos atos jurídicos, à medida que tratam do preenchimento deficiente dos elementos do suporte fático do ato definidos pelas normas jurídicas. Ato processual inválido é o ato que não alcança a sua finalidade. A não consecução da finalidade do ato imbrica-se com a existência de prejuízo, traduzindo as características essenciais do ato processual inválido. O princípio da instrumentalidade das formas ou da ausência de prejuízo informa todo o sistema de invalidades processuais. A clássica distinção entre nulidade absoluta e nulidade relativa é irrelevante para nortear o regime jurídico das invalidades processuais. O juiz deve sempre indagar sobre as consequências jurídicas da imperfeição do ato processual, cotejando as normas processuais com os valores que as inspiram em consonância com o princípio da instrumentalidade das formas. Somente se constatar a existência de prejuízo é cabível a invalidação do ato processual. O efeito devolutivo do recurso de apelação deriva do princípio dispositivo. A extensão do efeito devolutivo, por conseguinte, cinge-se ao que foi impugnado no apelo. A possibilidade de o tribunal apreciar o pedido não julgado pela sentença citra petita requer postulação expressa do autor. Antes de julgar o pedido não apreciado, o tribunal deve decidir sobre a validade ou a invalidade da sentença infra petita. Trata-se de questão prévia, a ser examinada de ofício, com o intuito de apurar a existência ou inexistência de www.abdpc.org.br prejuízo no iter processual que redundou na sentença omissa. Caso não haja violação ao contraditório e à ampla defesa, ou seja, tenha sido oportunizada às partes a possibilidade de formular alegações e apresentar provas, não cabe decretar a nulidade da sentença e sim realizar o julgamento do pedido ou do fundamento não apreciado pelo juízo a quo. O fundamento do princípio do duplo grau de jurisdição é possibilitar o controle de validade ou de legalidade da decisão objeto de apelação. Assim, não há falar em violação ao duplo grau quando o tribunal reexamina a sentença, ainda que haja omissão quanto a um pedido ou um fundamento. Embora o duplo grau consista em corolário do devido processo legal, a inexistência de cláusula expressa na Constituição indica que o princípio pode sofrer atenuações. A construção teórica desenvolvida neste estudo ecoa a modificação introduzida no sistema recursal pela Lei nº 10.352, de 26 de dezembro de 2001, porquanto há evidente analogia com o julgamento originário da causa, pelo segundo grau de jurisdição, em processo extinto sem resolução do mérito, e o conhecimento de um pedido ou um fundamento a respeito do qual a sentença restou omissa. Em suma, quando se deparar com o vício de sentença citra petita, o tribunal deve buscar a preservação dos atos processuais, compatibilizando o regime jurídico das invalidades processuais com a natureza instrumental do processo, como método estatal de solução de litígios. 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