PERFIL
Daniel Carnio Costa e
Paulo Furtado de Oliveira Filho
Os juízes das duas varas especializadas em
falências e recuperações de São Paulo apresentam
a sua visão sobre temas atuais e controvertidos do
direito das empresas em crise
Ano 4 - Edição Especial - Direito das Empresas em Crise
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Sumário
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
5. Editorial
6. Perfil
Entrevista com os juízes Daniel Carnio Costa
e Paulo Furtado de Oliveira Filho
Edição Especial Empresas em crise:
12. Doutrina
Artigos acadêmicos sobre o que
há de mais atual e relevante
O passo seguinte ao Enunciado 57: em defesa
da votação nas subclasses. Por Sheila C. Neder
Cerezetti
O caso OGX e a questão do ajuizamento de
recuperação judicial de sociedades estrangeiras
no Brasil. Por Paulo Fernando Campana Filho
Mercado de Capitais versus Recuperação Judicial:
Regulamentação e Segurança Jurídica. Por Daltro
de Campos Borges Filho e Thiago Peixoto Alves
As recentes mudanças no tratamento dispensado
pela Lei nº 11.101/2005 às microempresas e
empresas de pequeno porte na recuperação
judicial: progresso ou retrocesso? Por Gustavo
Lacerda Franco
Alienação fiduciária de bens essenciais à atividade
da empresa em recuperação judicial: breves
apontamentos críticos. Por Talitha Saez Cardoso
Revista Comercialista
Expediente
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
EDITOR EXECUTIVO
PEDRO ALVES LAVACCHINI RAMUNNO
CONSELHO EDITORIAL
CONSELHO DISCENTE
GUSTAVO LACERDA FRANCO
PACO MANOLO CAMARGO ALCALDE
PEDRO ALVES LAVACCHINI RAMUNNO
RODRIGO FIALHO BORGES
CONSELHO DOCENTE
FABIO ULHOA COELHO
JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO
MARIANA PARGENDLER
SÉRGIO CAMPINHO
ARTICULISTAS DESTA EDIÇÃO
DALTRO DE CAMPOS BORGES FILHO
GUSTAVO LACERDA FRANCO
PAULO FERNANDO CAMPANA FILHO
SHEILA C. NEDER CEREZETTI
TALITHA SAEZ CARDOSO
THIAGO PEIXOTO ALVES
REPÓRTER DESTA EDIÇÃO
GUSTAVO LACERDA FRANCO
DIAGRAMAÇÃO
RODRIGO AUADA
FALE CONOSCO
[email protected]
A Revista Comercialista – Direito Comercial e Econômico é uma publicação eletrônica trimestral, independente, com o escopo de fomentar a produção acadêmico-científica nas áreas do Direito Comercial e Econômico. Contato (11) 981335813 - [email protected]. Editor: Pedro A. L. Ramunno - [email protected].
Nota aos leitores: As opiniões expressas nos artigos são as de seus autores e não necessariamente as da Revista Comercialista nem das instituições em que atuam. É proibida a reprodução ou transmissão de textos desta publicação sem
autorização prévia. Créditos de capa: Montagem feita com fotos de divulgação.
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REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
Editorial
10 anos da Lei de Recuperação de Empresas e
Falência: é tempo de refletir
Em meados de 2005, entrou em vigor a Lei nº
11.101/2005 (LRF), que ensejou profunda modificação
no direito concursal brasileiro. Com o advento da Lei
de Recuperação de Empresas e Falência, o ordenamento jurídico brasileiro passou a admitir, de maneira inédita, mecanismos criados para tornar possível a efetiva
superação da crise empresarial, afastando-se da pobre
concepção de que as dificuldades econômico-financeiras da empresa devem levar, necessariamente, à liquidação dos seus ativos. Foram introduzidos os institutos
da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial,
que visam à reorganização das empresas viáveis em crise, evitando as suas prematuras liquidações.
Com a proximidade do aniversário de 10 anos da LRF,
tem-se uma excelente oportunidade para refletir sobre
a aplicação do direito das empresas em crise no Brasil
ao longo de sua vigência. E o escopo dessa reflexão deve ser, precipuamente, evidenciar aspectos da LRF que
comportem aprimoramento e fornecer elementos que
possibilitem o desenvolvimento da matéria, para além
da mera crítica. No atual cenário econômico nacional,
em que já se verifica um aumento expressivo na procura pelas soluções do direito das empresas em crise, ganha especial relevância o exercício proposto.
Buscando contribuir para esse esforço, a Comercialista apresenta esta edição especial sobre o direito das
empresas em crise, que se inicia justamente com uma
profunda e técnica entrevista com Daniel Carnio Costa
e Paulo Furtado de Oliveira Filho, Juízes das Varas Especializadas em Falências e Recuperações Judiciais da
Capital de São Paulo, cujos posicionamentos têm grande influência na formação da Jurisprudência nacional
sobre a matéria, pelo número, importância e complexidade dos processos aos seus cuidados. Os magistrados
mostram a sua visão acerca de diversos pontos controversos da disciplina, a exemplo dos limites à atuação jurisdicional no processo recuperacional.
Os artigos desta edição, além disso, apresentam reflexões de autores com experiência acadêmica e profissional no direito das empresas em crise, discutindo
temas relevantes da matéria e propondo soluções para
o seu aprimoramento.
O artigo de Sheila C. Neder Cerezetti, Professora
Doutora do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP , sugere um audacioso próximo passo após o reconhecimento da legalidade da
criação de subclasses de credores e a exigência do tra-
tamento igualitário dentro dessa subdivisão organizativa promovidos pelo Enunciado 57 da I Jornada de Direito Comercial: a votação do plano e apuração do quórum
dentro de cada uma das subclasses.
Paulo Fernando Campana Filho, Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra
e Doutor em Direito Comercial pela USP, além de advogado com atuação destacada, discorre com propriedade sobre a discussão verificada no caso OGX quanto
à possibilidade do ajuizamento de recuperação judicial
de sociedades estrangeiras no Brasil, apontando as visões existentes sobre o assunto e a necessidade de reforma da legislação brasileira.
Daltro de Campos Borges Filho e Thiago Peixoto Alves, respeitados advogados com atuação em processos
concursais relevantes, além de expressiva experiência acadêmica, por seu turno, abordam a necessidade
de desenvolvimento do mercado de distress no país, a
exemplo do que ocorreu no mercado de capitais brasileiro, indicando fatores que obstariam essa evolução
e os benefícios que ofertaria à reestruturação das empresas em crise.
Gustavo Lacerda Franco, mestrando em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da USP e membro
do Conselho Editorial Discente da Revista Comercialista, em seguida, apresenta as mudanças recentemente promovidas pela LC nº 147/2014 na LRF, apontando,
criticamente, os avanços e retrocessos no tratamento
dispensado às microempresas e empresas de pequeno
porte, enquanto devedoras e credoras, na recuperação
judicial.
O artigo de Talitha Saez Cardoso, mestranda pela
Faculdade de Direito da USP, por fim, examina a alienação fiduciária de bens essenciais à atividade da empresa em recuperação judicial e a sua compatibilidade com
as finalidades da LRF.
Espera-se que esta edição especial da Comercialista sobre o direito das empresas em crise, ensejada pelo aniversário de 10 anos da LRF, contribua ao debate
acerca de temas controversos da matéria e, especialmente, forneça elementos úteis à imprescindível reflexão dos estudiosos e profissionais com interesse na
disciplina, diante da sua inegável importância no desenvolvimento social e econômico do país, principalmente em momentos de crise.
Conselho Editorial
Revista Comercialista
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Perfil
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
Montagem com fotos de divulgação.
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Revista Comercialista
Perfil
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
Entrevista: Daniel Carnio
Costa e Paulo Furtado
de Oliveira Filho
Os magistrados apresentam à Comercialista o
seu entendimento sobre temas polêmicos no
direito das empresas em crise
Por Gustavo Lacerda Franco
Comercialista - Ao que parece,
o mercado se prepara para enfrentar um ano difícil em 2015.
Caso esse cenário realmente se
concretize, ocorrendo um aumento expressivo no número de
recuperações e falências, o Judiciário estará pronto para atender
adequadamente a essas demandas? A quantidade atual de varas especializadas em falências e
recuperações judiciais da capital
é suficiente? Quais as principais
dificuldades enfrentadas no cotidiano dessas varas?
Daniel Carnio Costa - Com relação à sua primeira pergunta,
a resposta é: infelizmente o Judiciário não tem uma estrutura suficiente para dar vazão à
demanda já existente e, menos
ainda, a uma vazão substancialmente maior em razão da perspectiva de um cenário de crise
em 2015, a estrutura é insuficiente, o número de funcionários é insuficiente e o número
de juízes também é insuficiente. Hoje nós temos duas varas
de falência e recuperação de
empresas aqui em São Paulo.
Considerando que na primeira
vara, por exemplo, nós temos
aproximadamente 1.300 processos principais, o que aparentemente não é muito, mas
cada processo principal de falência gera diversos incidentes,
sendo que cada um é um processo, tem que ter sua decisão,
nós temos em torno de 30.000
processos em andamento para
aproximadamente 10 funcionários e um juiz, então, infelizmente, é insuficiente. Eu
acho que, já emendando para
a segunda subpergunta – sobre se a quantidade de varas é
suficiente ou não – eu acho até
que a quantidade de varas seria
suficiente, se as varas tivessem
uma estrutura melhor e se nós
tivéssemos, como acontece nas
varas cíveis centrais, dois juízes
por vara. Então, com 4 juízes e
uma estrutura de cartório mais
adequada, eu acho que seria
suficiente para fazer um bom
trabalho, sim, aqui em São Paulo. E a principal atividade que
se enfrenta no cotidiano, no
dia-a-dia, é justamente a dificuldade que decorre dessa
Revista Comercialista
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8
Perfil
falta de estrutura: o processo
demora na sua tramitação cartorária, então quando eu determino a expedição de um ofício,
algo que poderia ser expedido
em um único dia, acaba demorando um mês e não é porque
ninguém trabalhou, é porque
o escrevente que é responsável pela expedição dos ofícios
tem uma pilha enorme de ofícios para fazer, então até que
ele chegue nesse, tem que obedecer essa fila de antiguidade,
então isso faz com que o andamento dos processos se torne
mais lento, mais demorado. Se
a gente tivesse uma estrutura
melhor e um número maior de
juízes, com certeza teríamos
muito maior agilidade na tomada de decisões e teríamos também mais agilidade no cumprimento dos atos, das decisões
judiciais. Eu tenho utilizado
uma técnica de gerenciamento
de processo diferenciada justamente para tentar driblar a
inefetividade, a ineficiência e
a demora no cumprimento dos
atos processuais, que eu batizei de gestão democrática de
processos. O que eu faço com
a gestão democrática de processos: nesses processos falimentares e recuperacionais,
que são processos concursais,
o juiz tem que decidir diversas
questões paralelas, que correm
ao mesmo tempo, sob pena de
o processo não andar de maneira adequada. Vou dar um
exemplo prático: o juiz tem que
resolver sobre a questão de arrendamento de alguns imóveis
da massa falida, porque esses
Revista Comercialista
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
imóveis, embora tenham sido
arrecadados, não podem ser
vendidos rapidamente, porque
existem demandas judiciais
que impedem isso. O que fazer
com esses imóveis? No modo
tradicional, o juiz diria “diga o
administrador, digam todos os
interessados, diga o comitê de
credores, diga o ministério público e após volte para decisão”.
Isso demora um ano, porque
esse “diga um, diga outro, diga
outro” com todas as dificuldades de andamento do processo
que o cartório tem, vai demorar um ano para o juiz decidir.
E aí, durante um ano nada foi
feito, e esse imóvel fica sujeito
à invasão, à depreciação, cria
problemas urbanísticos, de
segurança pública, sanitários,
veja ai o Pinheirinho, o imóvel que é de uma massa falida,
que não tinha nenhum tipo de
destinação, e foi invadido. Aqui
no centro de São Paulo a gente encontra também esse tipo
de situação, por quê? Porque
demorou um ano ou mais para
que se pudesse decidir. Então,
o que eu faço: eu importei uma
ideia que é absolutamente natural na iniciativa privada para
a iniciativa pública. Na iniciativa privada, a ideia de eficiência
é muito presente, porque eficiência significa lucro, não é? E
eles buscam sempre a realização do lucro, mas a eficiência
também é princípio constitucional aplicável à iniciativa pública – art. 37 da Constituição
Federal diz isso –, e isso vale
para o Judiciário também, gestão de processo é gestão públi-
ca, de modo que nós devemos
também ter essa preocupação
com eficiência. Então o que eu
faço, eu monto uma pauta de
uma reunião, de audiência, com
todos os pontos que devem ser
discutidos e decididos, marco
uma audiência intimando todos os interessados na discussão e decisão daqueles pontos,
eles no dia da audiência vêm
todos aqui, a audiência é aberta, é pública, a todos os demais
interessados, credores, sindicatos, quem mais queira acompanhar o andamento do processo e nessa audiência, então,
eu ouço todos os interessados
no mesmo momento, consigo
deliberar a questão e decidir
muitas vezes de maneira consensual, porque tem a oportunidade de fazer os ajustes na
decisão para que ela atenda de
maneira geral o interesse de
todos, inclusive o interesse público, o interesse dos credores.
Além disso, você dá muito mais
transparência ao processo, as
partes entendem como o processo está sendo conduzido, os
credores não se sentem apenas
parte do problema, mas também parte da solução, eles têm
a possibilidade de interferir diretamente no processo decisório, então eles têm uma postura
muito mais colaborativa e menos resistente na condução do
processo. Você impõe uma fiscalização muito maior e muito
mais eficiente em todos aqueles que trabalham no processo,
porque as tarefas são determinadas em audiência na frente
de todos, então todo mundo
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
fica sabendo qual é a obrigação
de cada um e, se alguém não
cumprir a sua obrigação, todo
mundo vai saber quem é que
não está trabalhando direito no
processo. E, naturalmente, depois de distribuídas as tarefas
nessa audiência, determinando, por exemplo, que seja feita
a avaliação, que seja feito isso,
que seja feito aquilo, decidindo o que tem que ser decidido para que o processo ande,
eu marco uma nova audiência,
para algum tempo depois, normalmente um mês, um mês
e pouco depois, para fazer o
acompanhamento do cumprimento dessas tarefas. Essa forma de gestão de processo tem
se mostrado muitíssimo benéfica, contribuindo e muito para
a efetividade do processo, para
a transparência, a fiscalização,
então os processos tem andado
muito bem assim. Eu comecei
fazendo assim com a VASP e
hoje aplico essa forma de gestão com vários outros processos também.
Paulo Furtado de Oliveira Filho Bom, a economia realmente
não tem sido favorável ao desenvolvimento da atividade
empresarial nesse ano de 2014
e se avizinha um ano difícil em
2015. O Judiciário está pronto
para atender adequadamente
a essa demandas aqui na capital? Eu acredito que sim, mas
o número de varas especializadas poderia ser aumentado.
Eu acredito que já existem três
varas criadas, mas apenas duas
instaladas. Então, eu acho que
Perfil
a instalação da terceira vara da? Pensa-se, no TJ/SP, em alguseria uma medida importante ma mudança nesse sentido?
para atender mais adequadaDaniel Carnio Costa - Bom, eu
mente aos processos de recu- não sou favorável à criação de
peração e falência. Digo isso varas empresariais com falênporque houve uma redução cia e recuperação. Eu acho que
do quadro de funcionários das a vara de falência e recuperaduas varas nos últimos anos, ção tem que ser separada da
desde que essas duas varas vara de direito empresarial. Eu
foram instaladas não houve a sou favorável à criação de vareposição de funcionários e ras empresariais, porque é um
evidente que, com uma menor assunto específico, super comquantidade de funcionários, plexo e exige juízes que tenham
não se consegue dar a vazão especialização nessa área, mas
aos processos com a mesma não acho que a falência e a
rapidez. Então nós temos di- recuperação devam estar inficuldade em algumas tarefas cluídas nessas varas, porque
relevantes, como, por exem- o processamento da falência
plo, a autuação de petições, é complemente diferente dos
de habilitações e impugnações processos convencionais. No
de crédito, e isso acaba retar- processo civil tradicional – e as
dando um pouco o julgamento varas empresariais tratam de
desses incidentes. Outra difi- processo civil tradicional – é o
culdade enfrentada no cotidia- autor contra o réu, A contra B,
no dessas varas é que falta uma processos individuais. O proequipe técnica de economistas cessamento desse tipo de caso
e de contadores que poderia é muito diferente de um proauxiliar no exame de alguns as- cesso concursal, como é a fapectos técnicos, econômicos e lência. As rotinas cartorárias da
contábeis quando se ajuíza um falência e da recuperação são
pedido de recuperação judi- muito diferentes das rotinas
cial. Então muitas vezes há ne- cartorárias de um processo cícessidade de um maior tempo vel, de um cartório cível. Então
para o juiz analisar esses do- eu acho que não seria adequado
cumentos contábeis apresen- termos varas empresariais com
tados pelo devedor e, se hou- falência e recuperação, sou favesse um assessoramento por vorável a criarmos varas emparte de uma equipe técnica, presariais e, ao lado delas, ou
esse exame seria mais rápido.
sem prejuízo, também termos
as varas de falência e recuperaComercialista - V. Exa. seria ção, que é uma especialização
favorável à conversão das varas dentro da especialização.
especializadas em falências e recuperações judiciais em varas
Paulo Furtado de Oliveira Filho empresariais, a exemplo do que Olha, particularmente, eu acho
ocorreu com a Câmara Reserva- que deve haver uma especialiRevista Comercialista
9
10 Perfil
zação em matéria empresarial,
ou seja, eu defendo que haja a
instalação de varas empresariais na comarca da capital e até
em algumas comarcas do interior de maior relevância, como
Ribeirão Preto, Campinas. Seriam várias varas especializadas em direito empresarial
regionais. Então, uma vara de
Campinas, por exemplo, cuidaria de toda a região de Campinas, como Valinhos, Vinhedo e
Indaiatuba. A vara de Ribeirão
Preto cuidaria da grande região
de Ribeirão Preto. Agora, me
parece que uma vara empresarial aglutinando toda a matéria
de direito empresarial e mais
o direito falimentar, hoje, não
seria uma medida interessante.
Acho que seria mais prejudicial
para o bom funcionamento das
varas de recuperações e falências. Eu acredito que se possa
manter separadas essas duas
varas, uma ou algumas varas
especializadas em direito empresarial e, paralelamente, varas especializadas em falência
e recuperação. Alternativa seria a vara especializada em falência e em empresarial, mas
com uma maior quantidade de
juízes, como se fossem as varas
cíveis. Mas acredito que hoje,
com apenas um juiz auxiliar,
não seria suficiente. Acho que
deveria haver um maior número de juízes auxiliando as varas
empresariais com ampla competência. Acho que o ideal seria ter varas especializadas em
recuperação e falência e varas
empresariais com a competência do restante do direito emRevista Comercialista
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
presarial, todo o Código Civil,
do direito de empresa, títulos
de crédito, S/A e propriedade industrial, mais ou menos
como a competência das Câmaras Reservadas.
Comercialista - O número de
arbitragens tem aumentado a
cada ano no Brasil, o que se costuma atribuir à ineficiência ou ausência de especialização do Poder
Judiciário para apreciar determinadas causas, especialmente no
âmbito do direito empresarial.
Como V. Exa. enxerga essa questão? Quais são os limites de apreciação de matérias referentes a
processos de recuperação e falência em arbitragens?
Daniel Carnio Costa - Veja, o
crescimento da arbitragem,
como uma forma alternativa de
resolução de conflito, se deve à
ineficiência em geral do Poder
Judiciário, que normalmente
decide com atraso, é lento e
tem um custo de tramitação,
além de as causas não serem
julgadas por pessoas especialistas, normalmente, naquelas
áreas muito especificas. Por
isso se diz que a arbitragem teria uma vantagem com relação
à jurisdição convencional. Aos
poucos, essa ideia vem mudando, especialmente naqueles
locais, naqueles estados onde
você já tem varas especializadas. Então, o Judiciário tem
dado respostas extremamente
técnicas, com juízes extremamente especializados nas áreas
empresariais, que são objeto de
julgamento, e tem se mostrado
mais barato do que arbitragem,
que hoje, de modo geral, é muito cara para ser feita. E também
o mito da celeridade da arbitragem é algo que vem sendo
relativizado, porque hoje, vou
falar por São Paulo, é possível
que você tenha uma questão
empresarial, em um caso individual, julgado em um ano, um
ano e meio, com trânsito em
julgado, inclusive já com recurso julgado pelo Tribunal de
Justiça. Então eu vejo assim,
que a arbitragem teve um boom
inicial, mas na medida em que
o Poder Judiciário vai se aparelhando para resolver essas
questões empresariais de maneira mais segura, de maneira
mais técnica e mais rápida, vai
haver um equilíbrio entre essas
duas formas de solução de litígio. E não há nenhum tipo de
limite especial para arbitragem
na recuperação judicial, porque
a empresa em recuperação judicial é uma empresa em funcionamento, gerida por seus
administradores e continua
atuando no mercado. Portanto, se ela contratou cláusula de
arbitragem em algum contrato
que ela fez, deve ser observada a arbitragem para resolução
daquela questão de direito material, resolvida naquele contrato. Resolvida a existência do
crédito e a existência do valor,
ok, se inclui no processo de recuperação.
Paulo Furtado de Oliveira Filho Eu acho que essa tendência de
conflitos empresariais serem
solucionados por meio de arbitragem acabou de certa maneira diminuindo com a espe-
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
cialização do Tribunal. Então,
no momento em que o Tribunal
criou Câmaras especializadas
em direito empresarial, com
integrantes efetivamente especializados, dando soluções técnicas adequadas e em tempo
razoável, com a mesma celeridade de uma solução arbitral,
eu acho que essa tendência de
se buscar arbitragem acabou
diminuindo. Eu ouvi até de alguns advogados que eles, diante dos julgamentos das Câmaras Empresariais do Tribunal,
estavam revendo a anterior diretriz de ter cláusulas compromissórias, cláusulas arbitrais
nos contratos. Eles estavam
preferindo, muitas vezes, deixar que a solução fosse ao Poder Judiciário, porque era tecnicamente boa a solução, em
tempo rápido e menos custosa. Então, me parece hoje que
essa especialização do Poder
Judiciário mostrou que o Judiciário tem capacidade de dar
resposta rápida e tecnicamente adequada a esses conflitos
empresariais.
Com relação aos limites,
acredito que não haja impedimento de solução arbitral para
questões relativas a devedores
em recuperação e a massas falidas. Recentemente, eu acabei apreciando uma ação para
anulação de um laudo arbitral e
a massa falida era parte nessa
ação. Acabei julgando improcedente a ação, reconhecendo
a competência para apreciar a
ação de nulidade porque havia
a massa falida no polo passivo e
acabei prestigiando a sentença
arbitral, pois entendi que não
estavam presentes os requisitos para anulação da sentença.
É o caso da Imbra, GP Investimentos perdeu a arbitragem e
pediu a anulação. Caso muito
interessante.
Comercialista - Para V. Exa., a
lei nº 11.101/2005 apresenta coerência entre seus princípios, dispostos especialmente no art. 47
do diploma, e suas regras? Quais
dispositivos do diploma, em sua
visão, deveriam ser reformados
com maior urgência pelo legislador? Estaria entre esses dispositivos o art. 83 da lei, que estabelece a classificação dos créditos na
falência e é criticada por alguns
autores?
Daniel Carnio Costa - Veja, eu
acho que de maneira geral os
princípios que orientam a aplicação da lei 11.101 são coerentes
com as suas regras. A ideia da
recuperação judicial, basicamente, é preservar os benefícios decorrentes da atividade
empresarial saudável, benefícios econômicos e sociais. Toda
a atividade que se tem no processo de recuperação judicial
deve ter como finalidade isso,
preservar os benefícios econômicos e sociais que decorrem
da manutenção da atividade
empresarial saudável, viável. Eu
acho que o problema maior não
está especificamente nas regras da lei e sim na forma como
se interpretam essas regras e
na forma como elas são aplicadas. Eu tenho uma teoria que
eu venho desenvolvendo acerca desse tema chamada teoria
Perfil 11
da superação do dualismo pendular. O Fábio Konder Comparato cunhou essa expressão
“dualismo pendular” quando
identificou aquele fenômeno de
oscilação do pêndulo de proteção legal. Algumas legislações
protegem mais os interesses
dos credores, outras dos devedores, e esse pêndulo de proteção vai variando conforme
o tempo, em um mesmo país,
ou conforme as legislações de
países diferentes. Eu acho que
a lei 11.101 representa uma superação desse dualismo pendular. Não se trata de defender
os interesses do credor, nem
se trata de defender os interesses do devedor, trata-se de
proteger os benefícios sociais
e econômicos que decorrem da
atividade empresarial saudável. Esse deve ser o objetivo, o
norte na aplicação dessa lei, e é
assim que nós devemos interpretar esses artigos legais. Vou
pegar um exemplo concreto:
Qual deve ser o papel do juiz na
análise da documentação que
instrui a petição inicial de um
pedido de recuperação? A lei
impõe que vários documentos
contábeis e comerciais constem ali, como balanço, projeção de faturamento, tudo mais.
Tradicionalmente, a Jurisprudência vem dizendo que o juiz
não deve analisar o mérito daquela documentação, ele deve
apenas fazer um “check list” da
presença daqueles documentos e cabe à assembleia geral
de credores analisar se aquela
documentação reflete ou não a
realidade da empresa, se ela é
Revista Comercialista
12 Perfil
viável ou não. Eu já penso que
não é a melhor interpretação. A
melhor interpretação é aquela
segundo a superação do dualismo pendular, que prestigia
o atingimento da finalidade
do sistema dentro do qual se
inclui essa relação de direito
material. Qual a finalidade da
recuperação, não é preservar
os benefícios sociais que decorrem da atividade empresarial saudável? Ok, é isso que eu
tenho que fazer. Então, se eu
interpretar que devo fazer apenas o “check list”, corro o risco
de deferir o processamento de
uma recuperação a uma empresa cujos documentos demonstram a evidente inviabilidade. E qual é o sentido de eu
deferir o processamento para
uma empresa evidentemente
inviável, que não tenha atividade, não gera empregos, não
circula bens ou receitas, não
gera recolhimento de tributos,
não produz bens ou serviços
de utilidade, qual é o sentido,
se é justamente tudo isso que
eu pretendo garantir com o
processo de recuperação e ela
não produz nada disso e os documentos mostram isso? Então
qual é a minha interpretação
desse artigo: o juiz deve olhar,
sim, o conteúdo dessa documentação e, se ele identificar
uma evidente inviabilidade, ele
deve indeferir o processamento da recuperação judicial, o
indeferimento do processamento da recuperação judicial.
Veja, ele não tem que discutir
viabilidade, porque viabilidade
é um conceito difícil, eu não
Revista Comercialista
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
posso afirmar se a empresa é
viável, mas eu consigo identificar se ela é absolutamente
inviável, como, por exemplo,
alguns casos que eu já tive de
empresas que pedem recuperação e elas só existem no papel, a empresa está fechada há
dois, três anos, não tem empregados, não produz nenhum
produto, nem serviço, não recolhe tributo, ela apenas tem
dívidas e quer usar o processo
de recuperação como uma forma de garantir ou de criar um
ambiente favorável à renegociação dessas dívidas em favor
do empresário, do devedor, e
não em função do atingimento
do objetivo da recuperação.
Eu penso que o problema
da lei não são os seus artigos,
as suas regras, é a forma como
a gente vem interpretando, a
gente está sempre preso nesse
dualismo pendular, “ah, eu vou
interpretar aqui mais em benefício do credor ou do devedor?”.
Nada disso, eu vou interpretar
em benefício do objetivo final
desse sistema de recuperação
judicial. Há várias outras aplicações práticas, vou dar mais
um exemplo: essa criação da
nova classe, da classe quatro,
de micro e pequenas empresas.
Surge a dúvida: foi criada essa
nova classe, mas não se alterou
o artigo de lei que fala do “cram
down”, que diz que o “cram
down” pode ser aplicado com
aprovação em duas classes, só
que em duas de três. Agora,
ele continua falando em duas
classes, mas nós temos quatro.
Como eu devo interpretar isso,
devo dizer que a aprovação só
em duas já é possível o “cram
down”, preenchidos os requisitos legais, ou devo entender
que tem que ser aplicado, aprovado em 3? Porque bateu na
trave, aquela ideia. Veja, você
pode aplicar várias técnicas de
interpretação e chegar a vários
resultados diferentes, todos
eles juridicamente sustentáveis, mas qual é a melhor interpretação? Segundo a teoria
da superação do dualismo pendular, é aquela que prestigia a
finalidade do instituto, que é
preservar os benefícios sociais
e econômicos decorrentes da
atividade empresarial. Então se
eu tenho uma empresa que é viável e eu tenho a possibilidade
de preservar esses benefícios
todos que o processo busca,
eu vou interpretar de maneira
a facilitar a concessão da recuperação. Então, duas classes
já é o suficiente para o “cram
down”. Esses são exemplos de
como a gente aplica essa teoria. Eu acho que é muito mais
como você aplica do que a lei
propriamente dita.
Quanto ao art. 83, não vejo
necessidade de reforma, eu
vejo uma necessidade de reforma na mentalidade dos aplicadores. O Brasil tem mania
de querer mudar a lei antes de
aplicar a lei. Então, vamos aplicar a lei na sua inteireza, não há
necessidade de se mudar a lei.
É claro, ajustes pontuais para
evitar discussões jurisprudenciais e prestigiar a segurança
jurídica são sempre bem-vindos, mas são ajustes de sinto-
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
nia fina, não há necessidade de
se mudar a lei, de se criar uma
coisa diferente, vamos aplicar o
que a gente tem.
Paulo Furtado de Oliveira Filho Acredito que há coerência entre os princípios que estão previstos no art. 47, sendo difícil
fazer com que esses princípios
do art. 47 fiquem realmente em
harmonia, já que ele fala em
preservação da atividade empresarial, em preservação dos
interesses dos credores, preservação dos empregos, quer
dizer, é difícil aplicar, conseguir dar harmonia a todos esses
princípios, que muitas vezes
são conflitantes, porque para
preservar a atividade empresarial, para que ela possa ser
lucrativa, eu vou ter que prejudicar um determinado número
de empregos, vai ter que haver
uma redução do número de
empregos, para que ela possa
aumentar o fluxo de caixa, conseguir atuar de forma lucrativa. Então, no próprio art. 47
eu acabo enxergando um certo conflito, há um problema na
hora da sua aplicação. No caso
a caso o Judiciário se vê diante de como fazer a aplicação
dos princípios do art. 47, como
preservar a empresa, muitas
vezes fazendo com que alguns
empregos sejam reduzidos,
mas a atividade seja mantida e
depois, com a atividade lucrativa, novos empregos possam
ser retomados. Agora, algumas
regras, de fato, acabam conflitando com o disposto no art.
47, por exemplo essa que exige
a certidão negativa de débito
tributário, o art. 57 que, combinado com o art. 68, diz que
a certidão negativa de débitos
tributários é uma exigência
para concessão da recuperação
e o devedor deveria obter um
parcelamento nos termos da
lei para conseguir a CND. Então, me parece que exigir que
haja uma quitação das dívidas
tributárias, ou mesmo que ele
tenha que fazer um parcelamento, pode levar à inviabilização do princípio maior da
preservação da empresa. Outra
regra que me parece que acaba beneficiando uma certa categoria de credores é a do art.
49, §§ 3º e 4º, porque ela acaba excluindo certos credores
do processo de negociação, os
credores financeiros, por ACC,
por leasing, eles podem satisfazer seus créditos diretamente,
então podem inviabilizar qualquer mecanismo de recuperação da empresa. Eu acho que a
inclusão do credor excluído no
art. 49, §§ 3º e 4º em uma classe
autônoma, própria, seria uma
medida importante para que
eles participassem do processo
de renegociação. E me parece que a lei, a recente lei que
instituiu o parcelamento fiscal
para empresas em recuperação, também poderia ter sido
melhor estabelecida, já que os
critérios de parcelamento que
ela instituiu – prazo de 7 anos,
84 meses – quando outras leis
de parcelamento permitiram
prazos maiores, geram uma incoerência. Permite-se que um
credor que não está em recuperação possa pagar o passivo
Perfil 13
fiscal dele em 180 meses e justamente o devedor em recuperação só pode pagar o passivo
em 84 meses? Parece-me que
o próprio parcelamento fiscal
agora introduzido não está de
acordo com o art. 47.
Com relação ao art. 83, me
parece que não tem nenhum
problema em sua aplicação,
quer dizer, na falência ele acabou estabelecendo uma nova
classificação dos credores, em
primeiro lugar, ele colocou os
credores trabalhistas até 150
salários mínimos, me parece
razoável essa limitação. Depois, colocou os credores com
garantia real na segunda classe, acho que até o credor com
garantia real de fato merece
um tratamento melhor, porque
de fato ele tinha uma garantia para receber o seu crédito,
ele deve ser colocado acima
de outros credores. E colocar
o fisco em terceiro lugar eu
também não vejo problema, já
que o crédito público também
é importante. Eu acho que essa
classificação não é um problema crítico na lei.
Comercialista - Qual a correta interpretação, em sua visão,
a ser conferida ao Principio da
Preservação da Empresa? Em
que medida interesses estranhos
aos credores e ao devedor devem
ser prestigiados nos processos
concursais?
Daniel Carnio Costa - Já acabei respondendo essa também.
A preservação da empresa deve
ser entendida como principio
da preservação dos benefícios
Revista Comercialista
14 Perfil
econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial, e não da empresa em si.
Porque se a empresa é inviável,
a resposta legal correta para
ela é a falência. A falência não
é um mal em si mesmo, como a
gente costuma imaginar, “a falência deve ser evitada a qualquer custo”. Se a empresa não
tem condições de produzir
todos aqueles benefícios que
nós pretendemos proteger, a
resposta para ela é a falência,
vamos retirá-la do mercado,
assim ela vai abrir espaço para
que outra empresa possa ocupar esse espaço e de maneira adequada, produzindo tudo
aquilo que a gente pretende
que ela produza.
Sobre se é possível prestigiar interesses estranhos aos
credores e devedores, sim, o
interesse maior que deve ser
prestigiado aqui não é nem dos
credores, nem dos devedores,
é o interesse público, o interesse social, é o interesse para
o qual existe o processo de recuperação, que não é nem para
acertar a vida do devedor, nem
para acertar a vida do credor.
Credores e devedores devem
suportar ônus na recuperação
judicial, de modo que a gente
consiga atingir o seu objetivo
final, que é a preservação daqueles benefícios sociais e econômicos que decorrem da atividade empresarial.
Daí uma outra teoria que
eu venho desenvolvendo aqui,
chama teoria da divisão equilibrada de ônus na recuperação
judicial, onde eu digo exataRevista Comercialista
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
mente isso: todos devem suportar ônus para que o resultado final seja atingido. Então
os credores devem suportar
ônus, eles devem suportar um
plano que vai implicar no recebimento de valor menor ou de
forma diferente do combinado,
e o devedor também tem que
suportar ônus, ele não pode
se colocar na situação cômoda de dizer “devo, não nego,
pago quando eu quiser e como
eu puder”, não é assim, ele tem
que apresentar um plano factível, que faça sentido econômico, e esse equilíbrio de distribuição de ônus é que vai fazer
com que a gente chegue em um
resultado de sucesso. Então, se
o problema da empresa, da atividade empresarial, é o empresário, que saia o empresário, tire-se então o empresário. Se o
problema é o credor, que é relutante e, por isso, tem um voto
negativo, injustificado, que impede a concessão da recuperação, que se supere esse voto
negativo, como eu fiz no caso
das Óticas Voluntários, onde
eu declarei abusivo o direito de
voto de uma instituição financeira, concedendo a recuperação mesmo contra a vontade
desse credor que, sozinho, tinha a possibilidade de vetar a
recuperação. Então é possível
prestigiar outros interesses? É
sim, sendo evidente, aliás, que
o interesse maior que deve superar o interesse do credor e
do devedor é o interesse social,
o interesse público.
Paulo Furtado de Oliveira Filho Parece-me que o princípio da
preservação da empresa busca
a manutenção da atividade, então a atividade gera benefícios,
evidentemente, aos credores,
ao devedor, mas também deve
gerar benefícios aos demais
interessados na atividade empresarial, não é? No caso dos
empregados, da própria comunidade do município, por
exemplo, onde tenha atuação
aquela determinada empresa
em dificuldade, me parece que
esses interesses também deveriam ser levados em conta na
hora de se decidir a respeito do
plano. Então, outros interesses
são relevantes na aplicação
do princípio da preservação
da empresa, o problema é que
muitas vezes esses interesses
não estão de certo modo colocados na lei ou os titulares desses interesses não conseguem
se manifestar no processo. Por
exemplo, como é que uma comunidade ou um município
que depende da arrecadação
tributária que decorre de uma
atividade empresarial pode
fazer valer seus interesses
no processo de recuperação?
Hoje, a lei não prevê isso, essa
possibilidade de a própria comunidade, de esses interesses
maiores do que o dos credores
e do devedor, se fazer representar. Então, parece que, por
exemplo, o Ministério Público
poderia atuar nesse sentido,
tomar uma iniciativa para preservar uma atividade empresarial para beneficiar uma comunidade, mas a lei não permite
a iniciativa do Ministério Público, para que ele impetre uma
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
medida de recuperação. Hoje,
a iniciativa é exclusivamente
do devedor. Então, talvez seja
um ponto a ser melhor estudado. Será que a nossa lei deveria
também dar legitimidade não
só ao devedor, ou ao Ministério
Público e mesmo ao credor, ou
aos empregados que não sejam
credores com uma sentença transitada em julgada, mas
que estão vendo seus interesses de empregados sendo violados? Talvez eles pudessem
também tomar uma medida
de recuperação.
Comercialista - V. Exa. entende
cabível, no momento da homologação do plano de recuperação
judicial aprovado pelos credores,
a análise dos percentuais de hair
cut, dos prazos de carência e pagamento e de previsões relativas
a juros/correção monetária pelo
magistrado?
Daniel Carnio Costa - Em
princípio, não. Todas essas
questões que são relacionadas
a direito disponível, conveniência e oportunidade devem
ser negociadas entre credores
e devedores, mas a gente tem
que entender que a decisão da
maioria vai ser imposta a todos,
então não é tão simples assim,
“ah, o credor pode inclusive abrir mão do crédito se ele
quiser, então ele pode dar 90%
de desconto”. Individualmente
falando sim, mas quando ele
aprova uma cláusula de 90%
de desconto ele aprova para a
categoria inteira, inclusive para
aqueles que rejeitaram. Então, assim, eu acho que o juiz
tem que controlar e verificar
os contornos legais do plano
de recuperação. E ilegalidades
têm vários níveis. Tem ilegalidade flagrante, que é aquela
onde a cláusula viola diretamente o texto expresso da lei,
mas existem ilegalidade mais
tênues, como, por exemplo, de
que maneira foi construída essa
maioria? Como é que ele conseguiu aprovar um plano que
tem um hair cut de 98% para
pagar em 200 vezes? Como os
credores aprovam isso? Então
isso tem que ser analisado. Será
que foram feitas cessões de
crédito fraudulentas, porque
credor nenhum em sã consciência faria um negócio desse.
Quer dizer, o ônus do devedor
é apresentar um plano que faça
sentido econômico, porque ser
empresário dando um calote
em todo mundo, pagando 2%
do que você deve em 20 anos,
qualquer um é. Então isso não
é viável. Nós temos que analisar
os contornos legais e a questão
do abuso, e isso tudo, a nossa legislação permite. Agora, o
mérito efetivamente do plano,
em regra, é algo que os credores devem decidir, não o juiz.
Perfil 15
juiz deve analisar, muitas vezes, se não há um abuso no
plano de recuperação. Então,
se por acaso o hair cut, o desconto proposto, o deságio, o
prazo de carência, for manifestamente abusivo, ele poderia,
eu acredito, fazer essa atuação,
fazer essa intervenção judicial
no plano.
Comercialista - Em que medida
a Assembleia Geral de Credores
é soberana no exame do plano de
recuperação judicial? Caso rejeitado o plano pelos credores, a decretação de falência do devedor é
a medida a ser adotada imediatamente pelo magistrado?
Daniel Carnio Costa - Então,
é uma soberania relativa. A soberania não implica em dizer
que o juiz é simplesmente um
chancelador da decisão da assembleia. O juiz vai fiscalizar os
contornos legais da decisão assemblear. Se a decisão assemblear é ilegal, o juiz não deve
homologar essa decisão. Se a
decisão é abusiva, o juiz não
deve homologar, como qualquer negócio jurídico. O juiz
deve fiscalizar a assembleia geral e a decisão da assembleia
geral, como fiscaliza qualquer
Paulo Furtado de Oliveira Filho - negócio jurídico, que tem que
Esse é um ponto muito delica- ter objeto lícito, parte capazes,
do, porque aparentemente o objeto previsto ou não defeso
conteúdo do plano é elaborado em lei, tem que analisar os vípelo devedor e submetido aos cios do negócio jurídico, erro,
credores, então isso seria uma dolo, simulação, coação, fraumatéria eminentemente nego- de, tudo isso o juiz deve anacial e que ficaria exclusivamen- lisar. É nesse sentido que ele
te para a decisão dos credores, tem que fazer. Se a assembleia
e não submetida à intervenção rejeitou o plano e a decisão não
judicial. Porém, acredito que o encontra nenhum tipo de ileRevista Comercialista
16 Perfil
galidade ou abuso, a falência é
a resposta adequada, não tenho
dúvida nenhuma, mas se essa
decisão encontra algum tipo
de vício, pode o juiz superar a
decisão da assembleia por uma
outra decisão, por exemplo,
determinando a realização de
uma nova assembleia ou simplesmente desconsiderando o
voto de alguns credores, que
seriam decisivos para a quebra
ou não da empresa, isso não
tem problema nenhum.
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
to de voto, e sendo abusivo o
direito de voto, o juiz poderia
afastar, até com base no Código Civil, esse voto. Afastando
esse voto, poderia considerar
aprovado o plano e conceder
a recuperação.
Ou seja, a soberania da assembleia existiria desde que
todos os votos fossem manifestados de forma regular, que
não houvesse nenhum voto
abusivo, que todos os votos tivessem levado em conta o melhor interesse do credor, e não
Paulo Furtado de Oliveira Filho - uma intenção de prejudicar o
Eu acredito que o legislador, ao devedor ou de ter um interesse
estabelecer que cabe à assem- alheio à satisfação do seu crébleia geral de credores o exa- dito, ou de não considerar que
me do plano de recuperação a concessão da recuperação
judicial, deu grande poder aos pode ser melhor do que a facredores, mas não subtraiu do lência pra ele.
juiz a análise do modo como é
exercido esse direito por parte
Comercialista - Em sua experidos credores. Então, eu acre- ência na condução de processos
dito, com base na doutrina, de recuperação judicial, quais são
na experiência estrangeira, na os fatores decisivos no êxito ou
legislação estrangeira, que o fracasso da iniciativa? O número
judiciário pode superar uma de empresas em recuperação judecisão da assembleia pela re- dicial que superam a crise é maior
jeição do plano. Um dos casos do que o de empresas que apenas
em que o juiz pode superar adiam a quebra?
uma decisão rejeitando o plaDaniel Carnio Costa - Comeno, me parece, é quando há um çando pelo fim: infelizmente
exercício abusivo do direito de o número de empresas que se
voto por parte do credor. En- recuperam é menor do que as
tão, o credor profere seu voto, que quebram. Isso se deve a
mas esse voto não tem nenhum vários fatores, mas o principal
interesse na satisfação do cré- fator é que, aqui no Brasil, por
dito daquele credor. A falência enquanto, quando as empresas
será mais prejudicial a ele do procuram a recuperação judique a concessão da recupera- cial, elas já perderam o timing
ção, então não há um sentido de fazer isso, elas já são inviáeconômico no voto dele, de veis, elas já estão insolventes,
modo que cairia na hipótese elas já estão para falir, então
do exercício abusivo do direi- isso acaba apenas adiando a
Revista Comercialista
quebra. Por vários fatores. Por
exemplo, aqui as empresas têm
dono. Nos Estados Unidos, as
empresas têm acionistas, e o
gestor é alguém profissional,
contratado para isso, aqui é o
dono que gere a empresa e ele
tem uma vinculação diferenciada com a empresa, então
ele entende que se os negócios
vão mal, aquilo é um atestado
de incompetência dele, então
ele quer resolver, quer resolver, quer resolver e, quando ele
procura ajuda, já é tarde demais. O sucesso do processo de
recuperação está em acertar o
timing de requerer a recuperação, em fazer um plano que seja
viável para a recuperação da
empresa e, do ponto de vista do
processo, o administrador tem
que fazer um acompanhamento muito próximo da conduta
da recuperanda, tanto do ponto de vista empresarial, quanto
do ponto de vista processual.
Paulo Furtado de Oliveira Filho Olha, eu tenho uma experiência recente aqui na vara, são só
nove meses, mas tenho percebido que em muitos pedidos
de recuperação, a descrição na
petição inicial é de uma crise
que já vem de alguns anos e o
pedido de recuperação é feito
tardiamente, então na hora de
expor os fatos que levaram à
situação de crise, já se verifica
que a situação de crise não é
de agora, que a situação de crise é de mais de ano, então me
parece que a demora no ajuizamento da recuperação é um
fator decisivo para o fracasso
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
da iniciativa. Ele entra em recuperação quando já não tem
mais condições de se recuperar, já está em uma situação de
absoluta crise, sem condições
de conseguir uma aprovação
do plano de recuperação. Outro fator que me parece que
tem sido decisivo para o fracasso da iniciativa é, muitas
vezes, a falta de diálogo com os
credores, a falta de uma melhor
aproximação, da apresentação
do plano, de uma tentativa de
convencer os credores de que
aquele plano é viável, de que
as informações fornecidas são
fidedignas, que elas merecem
credibilidade. Então me parece
que muitos devedores acham
que é simplesmente apresentar
o plano e ir para a assembleia,
sem que eles tenham que expor, sem que eles tenham que
ter a devida transparência na
apresentação e na negociação
do plano.
Muitas vezes é só uma tentativa de suspender ações em andamento, ganhar fôlego e depois tentar uma renegociação,
não se busca efetivamente a recuperação, utiliza-se indevidamente o processo para suspender as ações em andamento.
Agora, quanto à segunda
questão, nessa experiência que
eu tive, que foi uma curta experiência, eu não posso afirmar peremptoriamente que o
número daquelas que superam
a crise é maior do que o das
empresas que apenas adiam a
quebra, porque eu já me deparei com vários casos em que
eles obtiveram a recuperação e
estão efetivamente conseguindo preservar a atividade, e outras em que eu vi que realmente foi apenas um adiamento da
quebra, mas hoje eu não tenho
condições de afirmar com base
nos processos que eu já julguei
que o número de empresas que
estão adiando a quebra é maior
do que o daquelas que superam
a crise. O sucesso da recuperação eu ainda não consegui
constatar se é maior do que
o fracasso.
Comercialista - Verificando-se
que as condições previstas na recuperação judicial para a satisfação de determinado crédito são
mais vantajosas do que seriam na
falência, é abusivo o voto do seu
titular contra o plano apresentado? Quais critérios V. Exa. entende
serem aplicáveis para a apuração
de eventual abuso no exercício do
direito de voto pelos credores em
Assembleia?
Daniel Carnio Costa - Vamos
lá, você vai ter que usar aquela
teoria minha da superação do
dualismo e da divisão equilibrada de ônus. O abuso do direito de voto pode ser identificado por vários critérios. Um
deles é esse critério econômico, o critério do sentido econômico do voto, porque não
faz sentido que alguém vote
para se colocar em uma situação pior do que ficaria se tivesse votado em sentido contrário. Então, não faz sentido
eu votar para piorar minha
situação, eu sempre voto para
melhorar a minha situação. Se
a minha situação na recupe-
Perfil 17
ração seria melhor do que na
falência, porque na falência
eu sou quirografário e vou receber zero e, na recuperação,
eu vou receber mais do que
receberia na falência, então,
em princípio, esse é um voto
abusivo, esse é um indicativo
de voto abusivo. Mas, ainda
que a minha situação na falência seja melhor do que a minha situação na recuperação,
eu posso ter o voto declarado
abusivo, porque a finalidade
do processo é que tem que ser
prestigiada, não é o interesse
particular de um credor que
deve ser prestigiado, e sim o
interesse social, o interesse
público. Então, se eu, egoisticamente, voto contra o plano
porque me recuso a negociar,
justamente porque a minha situação na falência é uma situação privilegiada, não é, eu tenho um crédito privilegiado na
falência, eu não vou negociar,
não me importo, mas a sua atividade é viável, você gera empregos, você produz serviços
e produtos de boa qualidade,
quer dizer, então por causa
de um credor que não quer
negociar nós vamos quebrar
a empresa no processo de recuperação? Então, esse voto é
um voto abusivo porque é um
voto que se descola das finalidades do instituto. Então, de
novo, divisão equilibrada de
ônus: é ônus do credor apoiar
um plano factível, é ônus dele,
e superação do dualismo pendular, o objetivo é o benefício
social e econômico, e não o interesse de um ou de outro.
Revista Comercialista
18 Perfil
Paulo Furtado de Oliveira Filho Esse é um critério que eu considero objetivo e que me parece que deve nortear o exame
da abusividade. Quer dizer, se
o devedor apresenta um plano
que tem condições mais vantajosas na recuperação do que
na falência, o credor não tem
sentido, razão econômica, para
votar em sentido contrário. Eu
não vejo realmente ele ter um
direito de voto para satisfazer
os interesses dele, que são receber o crédito, continuar a
fornecer e, ao mesmo tempo,
ele votar no sentido da quebra, votar contra o plano. Eu
acho que aí o direito é para ele
conseguir obter o fim econômico para o qual foi concedido
o exercício desse direito. Qual
é? Satisfazer o crédito dele da
forma melhor do que na falência. Se ele tem essa situação
melhor na recuperação e vota
contrariamente à recuperação, me parece que é abusivo.
Esse é um critério que eu tenho adotado, acho que já adotei em dois casos. Um levou à
quebra, eu afastei a abusividade do voto, porque a situação
na quebra para aquele credor
era melhor do que na recuperação e, no outro, eu aprovei o
plano, porque ele votou contrariamente à recuperação,
mas na recuperação ele receberia de forma melhor do que
na falência.
Eu acredito que essa aferição
é difícil, mas como a lei exige
várias informações financeiras,
econômicas e patrimoniais que
o devedor deve apresentar aos
Revista Comercialista
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
credores, eu acho que, diante
dessas informações, os credores deveriam objetivamente dizer “realmente, estou votando
contrariamente ao plano porque, diante desses elementos
que eu considero que são verdadeiros, dessas informações
patrimoniais, eu verifico que
a minha situação na falência é
melhor, então meu voto está
fundamentado na análise das
informações que o devedor
me entregou”. Aí a questão: essas informações são realmente
confiáveis? Quem presta essas
informações? A empresa que é
contratada pelo devedor merece credibilidade? Ou em que
altura estão essas habilitações
de crédito? É por isso que muitas vezes eu vejo que se o devedor tem um assessor financeiro que tem credibilidade, esse
é um fator importante, decisivo ao êxito. Isso eu já percebi,
assessor financeiro com credibilidade, boa reputação no
mercado, auxilia o devedor na
hora de obter a aceitação do
seu plano, porque quando os
credores percebem que o assessor financeiro é alguém de
confiança, que tem boa reputação no mercado, passa credibilidade, eles passam a enxergar
aquele devedor de uma outra
maneira, isso eu percebi também aqui, já ouvi de credores
e de administradores judiciais
que um bom assessor financeiro também é importante,
que tenha boa reputação, os
credores costumam ver esse
devedor de uma forma mais
amigável. Então, é um ponto
importante, se essas informações são críveis, fidedignas, se
têm correspondência com a
realidade, parece-me que elas
tem que ser levadas em conta
pelo juiz, e os credores deveriam basear o seu voto nessas
informações, “olha, diante dessas informações patrimoniais,
econômicas e financeiras, eu
voto contra e está fundamentado o meu voto, a falência é
melhor ou a recuperação será
melhor”, e o juiz irá decidir.
Comercialista - Quanto à recuperação judicial de grupo de empresas, em litisconsórcio ativo, V.
Exa. entende ser possível a apresentação de um plano de recuperação único? Como se daria, nesse
caso, a computação dos votos na
Assembleia Geral de Credores?
Daniel Carnio Costa - Essa é
uma questão ainda muito casuística, vai depender de caso a
caso. Em princípio, se você tem
um grupo de empresas em um
único processo de recuperação, o plano tem que ser único
ou pode ser único, é um único
plano que pode prever obrigações a serem cumpridas pela
unidade A, B, C, D, mas é um
único plano que vai ser votado.
Essa é a minha primeira impressão acerca desse caso. Mas,
de novo, é muito casuístico, a
gente tem que analisar dentro
do contexto do caso concreto.
Mas, em princípio, um processo
de recuperação com um grupo
de empresas, um plano para todas elas, que pode estabelecer
obrigações distintas, mas um
único plano. Nós não vamos vo-
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
tar separadamente, vamos votar
um único plano, não é credor da
unidade A, credor da unidade B,
credor da unidade C, é credor
do grupo, até por isso ela pediu
a recuperação em grupo, senão,
pedisse individualmente. Se pediu em grupo, um plano só.
Paulo Furtado de Oliveira Filho Eu acho que nunca me deparei
com um caso em que eu tenha
sido obrigado a apreciar essa
questão do litisconsórcio ativo, mas eu me recordo que, no
caso da Rede Energia, houve o
litisconsórcio ativo entre várias concessionárias do mesmo
grupo e, salvo engano, era um
plano de recuperação único.
E, com isso, todos os votos foram computados como se fosse uma única devedora, não é?
No caso, em se tratando de um
plano que deve servir para a recuperação de todas as empresas, quer dizer, um plano único para a solução de uma crise
única, de todo o grupo, parece-me perfeitamente razoável
que seja admitido o litisconsórcio ativo, um plano único e
uma única assembleia com uma
votação unificada, nesse caso
específico.
Comercialista - Como V. Exa.
interpreta a expressão “local do
principal estabelecimento do devedor”, no art. 3º da LRE?
Daniel Carnio Costa - Essa é
questão que varia de legislação para legislação e de tribunal para tribunal, juiz para juiz.
Local do principal estabelecimento deve ser interpretado
segundo a superação do dualismo pendular, ou seja, qual é
a finalidade última do processo? Na falência, a finalidade é
arrecadar, alienar, vender e
pagar os credores. Então, qual
é o principal estabelecimento
para a falência? Onde estão os
principais ativos, é o principal
estabelecimento do ponto de
vista econômico da empresa,
e onde estão também os livros
da empresa, porque é onde vai
me permitir fazer a investigação dos seus ativos. Estando os
livros em um local e os ativos
em outro, a minha tendência
é prestigiar aquilo que vai viabilizar o processo de maneira
mais eficaz, não é, eu tendo a
dizer que é o economicamente mais forte, na falência, que é
onde estão os principais ativos
da empresa, e não onde estão
os livros.
Mas, de novo, se você fizer
uma pesquisa de jurisprudência, você vai ver decisões em
todos os sentidos. No caso da
Boi Gordo, por exemplo, os
ativos estão lá no Mato Grosso,
mas a sede da empresa era em
São Paulo e se decidiu que é o
centro gerencial o juízo competente para a falência. E acho
que foi acertada a decisão,
porque nesse caso era o que
faria com que o processo se
desenvolvesse de maneira mais
eficaz, porque aqui nós temos
vara especializada, temos uma
estrutura muito melhor do que
uma cidade no interior do Mato
Grosso. Então, acho que a gente tem que interpretar sempre
com vistas àquela teoria.
Perfil 19
Paulo Furtado de Oliveira Filho Eu sempre entendi que o principal estabelecimento seria do
ponto de vista patrimonial, nas
falências eu sempre me preocupo em verificar onde efetivamente a atividade é exercida,
onde estão os maiores ativos
desse devedor, não me preocupo tanto com a questão administrativa, onde é que está a
diretoria, acho que isso não é o
relevante, ou o principal volume
de negócios. Eu sempre achei
que o principal estabelecimento para fins de falência seria do
ponto de vista patrimonial. E já
tive, infelizmente, uma falência
que decretei em São Paulo, que
a sede era em São Paulo, mas se
descobriu que era uma pequena sala em uma rua do centro
e o principal estabelecimento
dela estava na região de Ribeirão Preto, porque era uma sociedade que era arrendatária
de terras. Nessas terras havia
plantação de cana e essa cana
depois iria ser moída em uma
usina para que uma outra empresa exportasse álcool para a
China. Álcool e depois acho que
açúcar. Essa quebra decretada
em São Paulo, ao meu ver equivocadamente, porque na época
eu não tinha nenhum elemento
para descobrir que a atividade
principal era lá, o credor pediu a falência aqui, informou
que a sede era aqui, foi revel o
réu, não contestou, eu decretei
a falência. Só depois o síndico
descobriu que os ativos principais, que o patrimônio realmente relevante da devedora
ficava lá na região. Então isso
Revista Comercialista
20 Perfil
dificultou muito a arrecadação
dos ativos. O síndico ter que se
deslocar daqui e fazer toda a
arrecadação no interior. Então
acho que esse é um critério importante: onde é que estão os
principais ativos do devedor?
Esse é um critério relevante
para definir o principal estabelecimento. Recentemente,
em um caso de recuperação,
não de falência, havia a recuperação da Ajax, uma indústria
que pediu recuperação aqui em
São Paulo. Examinando a inicial, dava para ver que 95% das
ações contra ela haviam sido
propostas em Bauru, 95% dos
funcionários trabalhavam em
Bauru, 95% dos protestos em
Bauru, onde se fornecia energia
elétrica para ela era em Bauru,
quer dizer, a atividade principal dela era em Bauru, então eu
entendi que competente era o
juízo de Bauru para processar
a recuperação, reconheci a incompetência de ofício e enviei
para Bauru.
Comercialista - A LRE estabelece, em seus artigos 49, § 1º e 59,
que os efeitos da novação recuperacional não se estendem aos
coobrigados do devedor. Em sua
visão, a orientação manifestada
nos dispositivos legais mencionados é correta?
Daniel Carnio Costa - É, eu
acho que é correta e, inclusive, o STJ agora em sede de recursos repetitivos afirmou isso,
pacificou essa questão. Eu acho
que é correto, de novo, uma
coisa é a atividade empresarial
e a preservação dos benefícios
Revista Comercialista
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
econômicos que dela decorrem, outra coisa é a proteção
dos interesses do devedor. Se
você pretende estender a coobrigados a proteção legal da
recuperação, você está protegendo interesses particulares
do devedor, que nada têm a ver
com a preservação da atividade
empresarial. Então, em princípio, acho que é correto, sim.
Normalmente, o que acontece
na prática é que o coobrigado é
o próprio dono, diretor da empresa, e você está pretendendo
aqui prestigiar a proteção do
patrimônio particular do devedor, do diretor da empresa, o
que isso tem a ver com o desenvolvimento da atividade da empresa, não é? Não tem nada ver,
então eu acho que está correto.
Agora, claro, vai gerar problema
em regresso? Vai, porque a lei
diz que você vai voltar em regresso pelo valor aprovado no
plano, não pelo valor que você
pagou, a regra do jogo é essa,
simples. É o ônus da atividade
empresarial.
responsabilidade dos coobrigados, não é errada. Aspectos
como a dificuldade no regresso e na gestão da empresa pelo
controlador que está respondendo como garantidor podem
até impactar realmente na preservação da empresa, não é?
Se ele realmente for obrigado
a pagar a dívida para o credor,
ele teria o direito de regresso
contra a devedora, realmente
isso poderia causar um impacto, mas ele teria na medida em
que ele propôs o pagamento no
plano, esse seria o limite do direito de regresso, não é? E realmente, não conheço outros
ordenamentos para dizer se há
um outro posicionamento, uma
possibilidade de estender a novação, mas essa é uma questão
relevante, quanto à administração da empresa pelo garantidor. Outro dia até, em uma
audiência, um sócio comentou
“não está querendo fazer acordo porque quer que eu pague a
dívida como pessoa física, estou sendo executado”, e falou “o
banco disse que se eu fizer uma
Paulo Furtado de Oliveira Filho - proposta melhor na execução
Acho que se o objetivo da lei individual, ele até pode coné viabilizar a recuperação da cordar com a proposta de paempresa, tentar manter a ati- gamento”, quer dizer, pode ser
vidade empresarial, eu acho um abuso por parte do credor,
que não há razão para que se condicionar a sua manifestação
beneficie o coobrigado do de- favorável ao plano a um benevedor. Na verdade o objetivo da fício que seria proporcionado
lei deve ser tentar preservar a pelo devedor, pelo coobrigado.
atividade empresarial, e não o Outro dia, em um caso, na reempresário que prestou uma cuperação da Rede [Energia],
garantia, que geralmente é o havia no plano a previsão de
sócio, o controlador. Então me que quem aceitasse uma deterparece que essa orientação de minada forma de pagamento já
manter as garantias, manter a abria mão do aval que o sócio
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
havia dado. Então, isso estava no plano, e acho que quem
recebia à vista, recebia 25% e,
evidentemente, abria mão da
garantia. E quem também recebesse todo o valor devido, recebia em 20 anos, mas também
abrindo mão das garantias. Isso
acabou sendo aprovado.
Comercialista - O prazo de 2
anos para o encerramento do processo recuperacional, disposto no
art. 61 da LRE, é adequado ao sistema concursal brasileiro?
Daniel Carnio Costa - Eu acho
que é. O prazo de dois anos,
pode ser de três, pode ser de
um, pode ser de um e meio, aí
é uma questão de critério legal.
Esses dois anos são para fiscalização judicial do cumprimento
do plano. O legislador poderia
dizer que é três, é dois. Eu acho
que dois é um prazo razoável
para que se fiscalize se as obrigações assumidas no plano estão sendo cumpridas. Agora, o
grande problema é que aqui no
Brasil não se encerra a recuperação. O prazo é de dois anos,
mas você tem recuperação há
cinco anos, seis anos, desde
2005 até hoje, que não se encerra nunca, porque o credor
não quer e o devedor também
não quer. O devedor quer ficar
pendurado no processo de recuperação porque ele se sente
mais protegido, quando não é
essa a ideia legal. Então, passados dois anos, cumpriu todas
as obrigações? Cumpriu, um
abraço. Eu encerro, ainda que
não tenha havido o cumprimento de todas, porque você
tem obrigação de 10, 20 anos.
Eu não vou ficar 20 anos fiscalizando, eu vou ficar dois anos,
até porque não tem sentido algum. Se ele descumprir alguma obrigação depois do prazo
de dois, qual a consequência?
Nenhuma. A consequência é
que o credor vai ter que executar individualmente isso daí,
não há mais a possibilidade de
conversão da recuperação em
falência, não tem sentido você
manter o processo depois de
dois anos. Então, depois de
dois anos, cumpriu? Cumpriu,
encerra o processo de recuperação e a empresa vai andar
com as suas próprias pernas.
Paulo Furtado de Oliveira Filho Eu tenho visto na prática que
os processos têm se alongado
além do prazo de dois anos e,
pelo conteúdo dos planos apresentados, também me parece
que não é um prazo suficiente para a recuperação. Enfim,
nós temos um prazo que não
tem muito a ver com a realidade econômica. O que têm feito
os credores, os devedores, por
força até de uma interpretação
do Tribunal, é estabelecer alguns pagamentos pelo menos
dentro do prazo de de 2 anos
de supervisão, para que o plano possa ser aprovado, só que
esses planos se alongam por
5, 10 anos, às vezes 15 anos. Eu
sou favorável ao encerramento,
apesar de estar fora da realidade econômica, acho que se ele
se mostrar ao menos capaz de
iniciar o cumprimento do plano, de dar um adequado cum-
Perfil 21
primento do plano nos dois
anos, ele que depois caminhe
com as próprias pernas realmente. Encerra-se o processo e, daí, uma vida normal, um
crédito como outro qualquer,
se ele descumprir o plano, está
sujeito à falência. Mas, se o objetivo da lei fosse tentar que ele
ficasse sob supervisão durante
todo o cumprimento do plano,
talvez não fosse nem necessária
a fixação de um prazo. Acho que
tem que ter um prazo, realmente. Talvez esse prazo tivesse
que ser um pouco maior diante
da realidade econômica atual,
mas sem prazo não faz sentido.
Acho que talvez um prazo de 4
anos, hoje, fosse mais adequado, não é? Mas eu tenho acompanhado, o Dr. Daniel tem decidido que deve ser encerrado no
prazo de 2 anos, tentar manter
essa linha, até para que alguns
devedores não abusem, porque
alguns querem se manter sob o
guarda-chuva da recuperação,
protegidos para sempre, porque então eles não sofrem as
penhoras individuais, os credores têm que toda hora se dirigir ao juiz da recuperação para
pleitear os seus créditos e eles
trabalham com essa existência
da recuperação há 4, 5, 6 anos.
Aí os credores tentam receber
na execução individual, eles
suscitam conflito no STJ e o STJ
diz que cabe ao juiz da recuperação verificar se aquele crédito
está ou não sujeito ao plano e se
o pagamento deve ser feito ou
não de acordo com o plano, eles
não sofrem nenhum efeito das
execuções individuais. Existe
Revista Comercialista
22 Perfil
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
também a questão do eventual
interesse dos advogados e administradores judiciais na manutenção do processo.
adiantava nada. Agora, a tendência é que sejam mais utilizados, pela ampliação que essa
última reforma deu.
Comercialista - Por quais razões a recuperação extrajudicial
e o plano especial de recuperação judicial para microempresas
e empresas de pequeno porte são
tão pouco utilizados no Brasil?
Daniel Carnio Costa - É, a recuperação extrajudicial por
uma questão cultural e também pelo fato de que, normalmente, o devedor não está em
condições de negociar com
o credor, ele está numa posição de inferioridade em relação ao seu credor e o credor
não aceita sentar à mesa para
negociar. Então, justamente é
por isso que ele tem que recorrer à recuperação judicial, para
que os pratos da balança sejam equilibrados e os credores
venham à mesa para negociar
o plano de recuperação. Com
relação à pequena empresa e
microempresa, o modelo anterior, antes da última reforma,
era absolutamente ineficaz, na
medida em que repetia exatamente o que era a antiga concordata. Então, se já se chegou
à conclusão, depois de décadas, de que a concordata já não
atendia mais aos interesses do
mercado e dos empresários
em geral, manter exatamente
o mesmo sistema para a micro
e pequena empresa não fazia o
menor sentido, por isso não era
utilizado. Só estavam sujeitos
credores quirografários, com
limite de valor, quer dizer, não
Paulo Furtado de Oliveira Filho A recuperação extrajudicial, me
parece, não oferece a mesma
segurança em termos de sucessão na alienação dos ativos,
então, por exemplo, a lei é clara quando se trata de recuperação judicial, que a venda de
uma unidade produtiva isolada
é feita sem a sucessão, e não
há um dispositivo específico na
recuperação extrajudicial. Então me parece que se o plano
de recuperação tiver uma previsão de unidade produtiva isolada, se esse for um dos meios
de recuperação, a utilização da
extrajudicial talvez não seja o
caminho mais adequado, porque talvez o arrematante tenha
o receio de não ter a proteção
da inexistência da sucessão.
Essa recuperação extrajudicial,
confesso que só um caso eu vi
aqui na vara, em que a proposta
também era só de parcelamento com deságio, acho que não
havia previsão de alienação de
unidades produtivas isoladas, e
até por sinal houve uma renegociação do acordo, houve adesão
novamente dos credores e, por
maioria legal, foi homologada
essa renegociação do plano, só
que mesmo assim não foi cumprido. E a questão que se põe
hoje é se esses credores, agora,
podem requerer o cumprimento do acordo aqui, das prestaComercialista - A LC nº
ções que não foram cumpridas,
se eles podem requerer agora 147/2014 promoveu alterações na
Revista Comercialista
no próprio juízo que homologou a recuperação, porque tem
uma sentença a favor deles, um
título executivo judicial, ou se
essas execuções, esses pedidos
de cumprimento de sentença
deveriam ser dirigidos às varas
cíveis. Porque, se eu entender
que sou competente para processar esses pedidos de cumprimento de sentença, essa
vara que era só para homologar
um plano de recuperação extrajudicial vai se transformar
em uma vara que vai dar cumprimento a cada um dos pedidos de cada credor individualmente. Quer dizer, não vai ser
só um juízo para supervisionar
a negociação, vai ser um juízo
para fazer valer o acordo, cada
uma das obrigações assumidas.
Eu entendi que o juízo é competente e o devedor agravou, o
Tribunal vai decidir, acho que é
uma questão até interessante.
Se aqui vai ser competente, se
esse juízo é competente para
esses pedidos de cumprimento
de sentença, ou não.
E a de microempresas e empresas de pequeno porte, acho
que pela limitação das condições, da proposta, do plano,
não é? Eu acho que é uma alternativa que não é viável, as
condições de pagamento são
muito acanhadas, então o microempresário e o empresário
de pequeno porte acabam indo
buscar solução na recuperação
comum, que dá muito mais alternativas a eles.
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
Lei de Recuperação de Empresas
e Falências, sendo notável a criação da classe de credores micro
e pequeno empresários. Em sua
visão, as mudanças ocorridas são
positivas, no sentido de destinar
melhor tratamento às micro e pequenas empresas em crise?
Daniel Carnio Costa - Eu acho
que sim, deu melhor tratamento tanto à EPP e ME, como
credora e como devedora. Porque, como devedora, ampliou
a possibilidade da recuperação
e, como credora, criou uma
classe nova, especial para elas,
com todos os problemas que
isso pode causar, de identificação, quem é, quem não é, de
homogeneidade, mas eu acho
que vai facilitar a aprovação
dos planos. Porque essa é uma
categoria muito parecida com
a categoria dos trabalhistas,
inclusive votam por cabeça.
Quem são as micro e pequenas
empresas que são credoras de
uma outra empresa? Provavelmente são fornecedores, que
dependem da existência daquela empresa para continuar
vendendo. Então, eu acho que,
se por um lado facilita a vida
do credor ME e EPP, porque
ele vai ter uma condição de
barganha muito melhor, fala
“olha, eu voto por cabeça, eu
sou uma classe separada, ou
você atende aos nossos interesses, também, para a aprovação do plano, ou o plano
não vai ser aprovado na nossa
classe” e, por outro lado, facilita a aprovação do plano, pela
própria recuperanda, porque
essa é uma classe muito mais
sensível às necessidades da
recuperanda, por exemplo, do
que os credores com garantia
real, que no caso de falência
fala “ah, eu tenho minha garantia, eu sou privilegiado” e
EPP e ME vão ser quirografários, provavelmente. Então eu
acho que foram boas, apesar
das críticas que eu ouvi aí, eu
acho que foram boas as modificações. Melhor do que estava, foi um aperfeiçoamento.
Paulo Furtado de Oliveira Filho Eu acho que é um tratamento
favorecido que a própria Constituição recomenda que seja
dado às micro e pequenas empresas, dar maior poder de negociação para elas nos planos
de recuperação. Então, me parece positivo esse tratamento
diferenciado e favorecido. Tirar
essas empresas da classe, em
geral, dos credores quirografários, em que elas geralmente
têm um poder de negociação
menor, e colocá-las em uma
classe em separado, embora
haja distinção entre elas mesmas – pode haver micro e pequenas empresas com créditos
de diferentes valores, elas vão
ser tratadas igualmente, porque o voto é por cabeça –, parece-me que o tratamento foi
melhor, é positivo.
Perfil 23
peração do veto de determinada
classe de credores ao plano proposto)?
Daniel Carnio Costa - Como
mencionado
anteriormente
com mais detalhes, a melhor
interpretação, nessa hipótese,
é aquela que prestigia a finalidade do instituto da recuperação, que é preservar os benefícios sociais e econômicos
decorrentes da atividade empresarial. Então, se eu tenho
uma empresa que é viável e eu
tenho a possibilidade de preservar esses benefícios todos
que o processo busca, eu vou
interpretar de maneira a facilitar a concessão da recuperação. Desse modo, a aprovação
por duas classes já é o suficiente para o “cram down”, além do
atendimento aos demais requisitos legais.
Paulo Furtado de Oliveira Filho Aplica-se o art. 58, § 1º como
ele foi estruturado, ou seja, se
duas das quatro classes aprovarem o plano, e naquelas classes em que houve rejeição também tiver aprovação de mais
de um terço, e no somatório
de todos os votos favoráveis se
atingir mais da metade do total
dos créditos, acho que dá para
o juiz conceder a recuperação.
Acho que não é necessário ter
a aprovação de três das quatro
Comercialista - Com a cria- classes. Se for aprovado o plação da classe de credores micro no em duas classes, mais os ree pequeno empresários pela LC quisitos de aprovação por mais
nº 147/2014, como deverão ser de um terço nas classes que
observados os critérios do cram rejeitaram, mais a aplicação do
down do art. 58, § 1º da Lei nº § 2º, acho que seria possível a
11.101/2005 (possibilidade de su- concessão da recuperação.
Revista Comercialista
24 Doutrina
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
O passo seguinte ao
Enunciado 57: em defesa da
votação nas subclasses
Por Sheila C. Neder Cerezetti*
C
omo se sabe, um dos graves defeitos da Lei 11.101/2005
(“LRE”) refere-se à rigidez da classificação dos credores em processos de recuperação judicial. Rigidez esta
que acarreta injustiças e desestímulo à participação e
cooperação no procedimento.
Nos termos do art. 41 da LRE, os credores se organizam, para
fins de recuperação, em quatro classes, quais sejam, aquelas formadas por (i) titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho, (ii) titulares de
créditos com garantia real, (iii) titulares de créditos quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral e subordinados,
e (iv) titulares de créditos enquadrados como microempresa ou
empresa de pequeno porte.
Ocorre que o agrupamento de créditos nessas quatro categorias acarreta a aglomeração de interesses bastante díspares,
na medida em que permite a reunião de créditos de naturezas
distintas. Em decorrência disso, as classes, instrumento essencial do direito da empresa em crise destinado a ordenar os interesses dos credores, aproximando os homogêneos e apartando os assimétricos1, apresentam-se, no direito brasileiro, como
técnica incapaz de satisfazer seu propósito.
1 A função de organização de interesses a ser
cumprida pelas classes é extensamente abordada
no direito italiano. Vide, exemplificativamente, A.
Revista Comercialista
Gambino, Limiti Costituzionali dell’Iniziativa Economica nella Crisi dell’Impresa, in Giur. Comm. I
(1988), pp. 493, 495, e G. Presti, Rigore è quando
Arbitro Fischia?, in Il Fallimento 1 (2009), p. 29.
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
Doutrina 25
Daí a relevância de se permitir que o devedor proponha plano de recuperação em
atenção ao alinhamento de
interesses das partes e, portanto, com mais chances de
alcançar sucesso na negociação voltada à superação da
crise empresarial. Justamente
a esse propósito se destina a
subclasse, cujo reconhecimento deve vir acompanhado
da exigência de tratamento
igualitário aos seus membros.
À luz desse cenário, pode-se afirmar que, ao final de
2012, na I Jornada de Direito Comercial do Conselho da
Justiça Federal, importante
passo foi dado no que tange
à interpretação da forma de
organização dos credores nos
planos de recuperação judicial
de empresas. O texto do Enunciado 572, originado de estudo
específico sobre a organização
de classes como instrumento
fundamental de composição
de interesses3, contribuiu para
que a jurisprudência reconhecesse a legalidade da criação
de subclasses de credores e
exigisse o tratamento igualitário dentro dessa subdivisão
organizativa4.
A afirmação da legalidade
da criação de subclasses e
a consequente exigência de
que créditos que as compõem
fossem lidados em bases
equânimes fundamentaram-se na aplicação de critério
de igualdade material no âmbito da recuperação judicial.
Preconizou-se a apuração de
igualdade ou desigualdade
de tratamento em vista das
características
específicas
do crédito e do credor e não
apenas com base na classe a
que foram legalmente alocados. Ao mesmo tempo, tornou-se claro que cláusulas
de plano que previssem tratamento desigual a créditos
apenas deveriam ser aceitas
na medida em que a desigualdade fosse reflexo da dessemelhança entre os destinatários do tratamento previsto.
Em consequência, indicou-se
que o controle de legalidade a
que procede o magistrado da
causa deve abranger também
a conferência da previsão de
medidas materialmente igualitárias aos envolvidos.
Muito embora bastante relevante, o Enunciado 57 possui limitados efeitos. Sendo resultado de construção
doutrinária oferecida à apreciação de pares em ambiente
voltado a aclamar boas inter-
pretações das regras comerciais vigentes, ele esbarrou
nos limites interpretativos
naturalmente impostos pelo
foro em que foi exposto.
A apresentação da proposta
do Enunciado, à época, buscou, de forma cautelosa, contribuir para que um primeiro
passo fosse dado no caminho
para que as classes de credores efetivamente cumprissem
o papel organizativo a que se
destinam. A ampla aceitação
do conteúdo ali apresentado,
ao mesmo tempo em que demonstra que ele cumpriu seu
papel, serve de estímulo para
que se sugira que o próximo
importante passo seja dado: a
votação do plano e apuração
do quórum dentro de cada
uma das subclasses.
Propõe-se aqui que os quóruns deliberativos previstos
no art. 45 da LRE sejam verificados em cada subclasse,
quando estas existirem, seguindo-se, para tanto, a regra geral que seria aplicável
à classe da qual ela decorre.
Nesse sentido, caso um plano
propusesse que créditos da
classe III fossem subdivididos em créditos financeiros
e créditos de fornecimento,
a aprovação deste plano pela
2 O Enunciado 57 conta com a seguinte redação:
“57. O plano de recuperação judicial deve prever
tratamento igualitário para os membros da mesma
classe de credores que possuam interesses homogêneos, sejam estes delineados em função da
natureza do crédito, da importância do crédito ou
de outro critério de similitude justificado pelo proponente do plano e homologado pelo magistrado”.
3 S. C. Neder Cerezetti, As Classes de Credores
como Técnica de Organização de Interesses: em
Defesa da Alteração da Disciplina das Classes na
Recuperação Judicial, in P. F. C. S. Toledo, F. Satiro
(coord.), Direito das Empresas em Crise: Problemas
e Soluções, São Paulo, Quartier Latin, 2012, pp.
365-385.
4 Vide, por exemplo, TJSP, Agravo de Instrumento
0119370-56.2012.8.26.0000, Rel. Des. José Reynaldo, j. 8/4/2013, e TJSP, Agravo de Instrumento no
0271407-68.2012.8.26.0000, Rel. Des. Enio Zuliani,
j. 13/6/2013.
Revista Comercialista
26 Doutrina
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
assembléia dependeria da satisfação do quorum de maioria dos presentes e maioria
dos créditos dos presentes
em ambas as subclasses. Em
outras palavras, o quórum
legalmente previsto para a
votação na classe III (art. 45,
§ 1 o) deveria ser atingido em
cada uma das suas subclasses.
É de se destacar que, não
obstante pretensiosa, na medida em que caminha para
além do expressamente previsto na LRE, esta interpretação já foi bem acolhida em
acórdão da lavra do Des. Ricardo Negrão, que contou
com votação unânime dos
membros da 2 a Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo 5. Com
efeito, após reconhecer a
legalidade da subclassificação de créditos, indicou-se
a necessidade de votação
em consideração a cada uma
das subclasses, sob pena de
se permitir que a maioria da
classe utilizasse seu poder
de voto em prejuízo de uma
subcategoria de créditos.
Cabe enfatizar que a proposta ora descrita está em
linha com estudos de direito
societário6 que destacam que
o princípio da maioria em assembléias ganha legitimidade
quando aplicado a ambientes
marcados por interesses comuns. Busca-se, assim, garantir que a aprovação de
decisões não seja imbuída
de meros propósitos egoísticos. Ao se aplicar o princípio majoritário a institutos
de recuperação empresarial,
a mesma preocupação com a
tutela da formação de vontade genuína se impõe. Há que
se buscar decisão alcançada
com base em acentuada comunhão de interesses e onde
os votantes usufruam de posições paritárias.7
A experiência demonstra
que se a subdivisão dos créditos servir apenas para fins
de definição do tratamento
a ser a eles conferidos, sem
gerar efeitos na apuração da
votação do plano, ela acaba
por permitir que credores
eventualmente favorecidos
pelo plano determinem a decisão de toda a classe. Nesta
situação, uma eventual maioria agradada pelos termos
contratuais oferecidos para a
sua subclasse tem o condão
de definir a vontade de toda
a classe, ainda que titulares
de créditos de outra subclasse estejam fundadamente insatisfeitos. No limite, ao não
se dar o passo seguinte ao
Enunciado 57, admite-se que
o devedor favoreça uma determinada subclasse, angarie a maioria necessária para
a obtenção do voto positivo da classe e adote postura
prejudicial aos componentes
das demais subclasses. Desacompanhada da votação nas
subclasses, o louvável Enunciado 57 pode ocasionar iniquidades.
Mas, muito embora necessária, a proposta ora feita
levanta questões não abordadas pela LRE. Dentre elas,
chama atenção a forma de
aplicação do cram down. Com
efeito, o mecanismo de superação de veto de classe previsto no art. 58 lida apenas
com a votação pelas classes
legalmente previstas 8. Obviamente, o seu emprego em ca-
5 Agravo de Instrumento
87.2011.8.26.0000, j. 4/12/2012.
cordati, in Il Fallimento 7 (2010), p. 783).
nem mesmo se pode dizer que o cram down lide
com as classes legais. Isso porque a criação da
classe IV (titulares de créditos enquadrados como
microempresa ou empresa de pequeno porte) não
foi acompanhada de alteração dos incisos do § 1o
do art. 58, os quais continuam a fazer referência
apenas a três classes de credores e, portanto, cuidam expressamente apenas da hipótese em que
duas delas aprovem o plano de recuperação judicial. Cabe aos intérpretes sugerir a melhor leitura
da norma à luz da nova classificação. Sobre o tema,
vide M. J. Bezerra Filho, Lei de Recuperação de Empresas e Falência, 10a ed., São Paulo, Saraiva, 2014.
n.
0235130-
6 Para paralelo com o direito societário, vide F.
D’Alessandro, La crisi delle procedure concorsuali
e le linee generali della riforma: profili generali, in
Giust. Civ. II (2006), p. 335, e M. Fabiani, Diritto e
processo a confronto sul nuovo fallimento e lo spettro dei conflitti di classe, in Il Fallimento 1 (2008), p.
5. A classificação segundo interesses homogêneos
é ainda indicada como mecanismo para evitar votos manifestados em conflito de interesses (cf. P.
Catallozzi, Il ‘Classeamento Obbligatorio’ nei ConRevista Comercialista
7 Sobre o tema, vide R. Sacchi, Concordato Preventivo, Conflitti di Interessi fra Creditori e Sindacato
dell’Autorità Giudiziaria, in Il Fallimento 1 (2009),
p. 32, G. Minutoli, Il Controllo giudiziale sul mancato o insufficiente ‘classeamento’ dei creditori: il
punto nella prassi e in dottrina, in Il Fallimento 1
(2010), p. 53, e G. B. Nardecchia, Le classi e la tutela dei creditori nel concordato preventivo, in Giur.
comm.1 (2011), p. 81.
8 Na verdade, após a Lei Complementar 147/2014,
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
Doutrina 27
sos de votação por subclasses não foi cogitado, uma vez
que elas nem mesmo foram
imaginadas pelo legislador
brasileiro. Isso não significa,
contudo, que não se possa,
por analogia e à luz dos propósitos almejados pela regra9, aplicá-la ao cenário em
que os votos são computados
dentro das subclasses.
O caminho mais condizente seria ler os requisitos
dos incisos do § 1o, do art. 58,
como se dissessem respeito
não apenas a classes, mas,
quando existentes, também a
subclasses. Note-se, inclusive, que ao exigir o tratamento igualitário dentro das subclasses, o que o Enunciado
57 fez foi exatamente aplicar
às subclasses a exigência do
art. 58, § 2 o, a qual havia sido
inicialmente pensada apenas
para as classes e somente
para as hipóteses de superação de veto.
Um exemplo pode ilustrar
e deixar mais clara a sugestão
interpretativa ora formulada.
Digamos que um plano de recuperação judicial estipule o
tratamento a ser conferido a
créditos da classe I, a créditos da classe II, a créditos de
três subclasses da classe III e
a créditos de duas subclasses
da classe IV. Em assembléia,
a aprovação da proposta do
devedor dependeria da obtenção do voto favorável da
(i) maioria dos presentes na
classe I, (ii) maioria dos presentes e maioria dos créditos presentes na classe II,
(iii) maioria dos presentes e
maioria dos créditos presentes em cada uma das subclasses na classe III, e (iv) maioria
dos presentes em cada uma
das subclasses da classe IV.
Caso, em duas das subclasses
da classe III, o quórum legal
não fosse atingido, os requisitos do art. 58, §§ 1o e 2o, da
LRE, deveriam ser satisfeitos
com relação a cada uma delas.
Esta interpretação esbarra no fato de que o inciso II,
do § 1 o, do art. 58, menciona
a exigência de que duas das
três classes aprovem o plano
(ou uma, caso existam apenas
duas classes) para que o cram
down possa ser utilizado.
A afirmação de que os credores devem votar em subclasses gera a dúvida de como
aferir este requisito, uma vez
que ele faz expressa menção
ao número de classes legalmente previstas. A melhor
interpretação parece ser a de
que este requisito teve o intuito de garantir que a maio-
ria das classes ou ao menos a
metade delas tivesse concordado com a oferta do devedor.
Ora, a mesma lógica também
pode ser transposta para a
situação em que não apenas
classes, mas também subclasses, votem 10. No cenário
hipotético descrito, apenas
em dois dos sete grupos de
créditos a maioria legal não
teria sido obtida, o que apontaria para o cumprimento do
requisito previsto no art. 58,
§ 1 o, II.
Por fim, cabe dizer que
não se ignora a audácia desse passo pelo qual se clama.
Mas ela se justifica na medida em que dele decorre tanto a garantia do princípio da
igualdade quanto a legitimidade da aplicação do princípio da maioria à recuperação
judicial. Na esperança de que
o exposto possa contribuir
para reflexões sobre o tema,
convidam-se estudiosos do
direito da empresa em crise
ao debate.
9 Sobre a interpretação do cram down brasileiro,
vide E. S. Munhoz, in F. Satiro de Souza Junior, A.
S. A. de Moraes Pitombo (coord.), Comentários à
Lei de Recuperação de Empresas e Falência, São
Paulo, RT, 2005, pp. 283-289, e C. S. J. Batista, P.
F. Campana Filho, R. Y. Miyazak, S. C. Neder Cerezetti, A Prevalência da Vontade da Assembléia-
-Geral de Credores em Questão: O ‘Cram-down’ e
a Apreciação Judicial do Plano Aprovado por Todas
as Classes, in RDM 143 (2006), pp. 202-242.
58 da LRE para refletir essa alteração, a mesma
lógica já pode ser hoje aplicada aos casos de cram
down de planos de recuperação que abordam as
quatro classes de créditos.
10 Dado que o legislador criou a classe IV de credores (art. 41, conforme modificado pela Lei Complementar 147/2014), mas não adaptou o artigo
* Sheila C. Neder Cerezetti
Professora Doutora do Departamento
de Direito Comercial da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo.
Revista Comercialista
28 Doutrina
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
O caso OGX e a questão
do ajuizamento de
recuperação judicial de
sociedades estrangeiras
no Brasil
Por Paulo Fernando Campana Filho*
A
o ajuizar seu pedido de recuperação
judicial perante o
judiciário do Rio de
Janeiro, em outubro de 2013, a petroleira OGX
incluiu, no polo ativo do processo, quatro sociedades, as
quais chamou de “Grupo OGX”.
O ajuizamento de um pedido
de recuperação de um grupo
societário de fato, em litisconsórcio ativo, não era nenhuma
novidade no direito brasileiro.
Após a entrada em vigor da Lei
Revista Comercialista
11.101 de 2005, que regula o direito falimentar no Brasil, pedidos de recuperação conjuntos
envolvendo diversas sociedades que alegam constituir um
grupo societário ou econômico
se tornaram frequentes, ainda
que tal medida carecesse de
amparo legal.
A novidade é que, no caso da
OGX, duas das quatro sociedades que constituíam o aludido
grupo eram estrangeiras. Com
efeito, dentre as sociedades
que ajuizaram o pedido de re-
cuperação judicial, duas eram
brasileiras – a Óleo e Gás Participações S.A. (ex-OGX Petróleo e Gás Participações S.A.) e
a OGX Petróleo e Gás S.A. – e
duas haviam sido constituídas
na Áustria – a OGX International GmbH e a OGX Austria
GmbH. O organograma das sociedades do grupo que ajuizaram recuperação judicial, que
mostra as relações entre elas
(sem considerar outras sociedades do mesmo grupo), é o
seguinte:
Doutrina 29
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
Óleo e Gás
Participações S.A.
99,99%
100%
OGX Petróleo e Gás S.A.
OGX International GmbH
100%
OGX Austria GmbH
Embora outros grupos societários
tenham
incluído sociedades estrangeiras
nos seus pedidos de recuperação judicial (como Aralco e OAS, por exemplo) e extrajudicial (como Lupatech),
somente no caso OGX houve (até o momento) litígio judicial a respeito da questão.1
No caso OGX, o argumento
para inclusão das sociedades
estrangeiras na recuperação judicial era o de que elas
eram veículos para obtenção
de financiamento para as sociedades brasileiras e se subordinavam às decisões da
controladora estabelecida no
Brasil, não tendo, portanto,
bens, atividade operacional
e nem autonomia decisória.
Sendo assim, as quatro sociedades do grupo teriam seu
principal estabelecimento –
critério para determinação
da competência jurisdicional
de acordo com o art. 3º da Lei
11.101 de 2005 – na cidade do
Rio de Janeiro.
Após o ajuizamento do pedido, o Ministério Público,
instado a se manifestar sobre o assunto, concluiu que,
sob o ponto de vista jurídico, a inclusão das sociedades
estrangeiras configurava um
inadmissível “extravasamen-
to da jurisdição brasileira” e
que, sob a óptica econômica,
levaria a grande insegurança
jurídica. De acordo com o Ministério Público, como as sociedades austríacas e os seus
respectivos credores tinham
domicílio no exterior, aplicar-se-ia a regra do art. 12 do
Decreto-Lei 4.657 de 1942, de
acordo com a qual a obrigação, tendo se constituído no
exterior, deveria ser lá cumprida. Assim, se o Grupo OGX
havia optado por constituir as
sociedades no exterior, deveria arcar com os ônus daí decorrentes. O Ministério Público entendeu, enfim, que o
1 As menções às manifestações da OGX e dos
órgãos que atuaram no seu processo de recupe-
ração foram extraídas das peças constantes dos
autos nº 0377620-56.2013.8.19.0001, em curso pe-
rante a 4ª Vara Empresarial da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro.
Revista Comercialista
30 Doutrina
Brasil adotava o sistema de
territorialidade dos efeitos
da falência e que, portanto,
as decisões proferidas pelo
juízo perante o qual se processava a recuperação judicial do Grupo OGX poderiam
apenas ter eficácia nos limites das fronteiras territoriais
brasileiras.
O juízo da 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, encarregado do processo em
primeira instância, acolhendo
a opinião do Ministério Público, entendeu, em novembro
de 2013, que a natureza das
relações econômicas entre
as sociedades do Grupo OGX
não era suficiente para justificar o ajuizamento da recuperação judicial das estrangeiras no mesmo foro que as
brasileiras. De acordo com a
decisão judicial proferida, na
falta de amparo legal, a proteção conferida pelo direito brasileiro não poderia ser
aplicada a sociedades constituídas em outros países, sob
pena de se desrespeitar a sua
soberania. Além disso, o juiz
não encontrou fundamento para desconsiderar a personalidade jurídica das sociedades austríacas e, com
isso, arrastá-las para o processo brasileiro. Com isso, o
juiz deferiu o processamento da recuperação judicial
das sociedades brasileiras
do Grupo OGX, mas não das
estrangeiras.
A OGX recorreu da decisão, por meio de agravo de
instrumento endereçado ao
Revista Comercialista
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
Tribunal de Justiça do Estado
do Rio de Janeiro, alegando
que o Brasil teria jurisdição
para processar as recuperações judiciais que tivessem o
seu principal estabelecimento no país, conforme interpretação conferida ao art. 3º
da Lei 11.101 de 2005. As sociedades austríacas, meros
veículos de financiamento
das atividades das demais sociedades do grupo, teriam o
Brasil como o centro dos seus
principais interesses, o que
justificaria o ajuizamento do
pedido no país. Além disso,
sustentou que a abertura do
processo de recuperação judicial das sociedades estrangeiras não violaria a soberania da Áustria, eis que aquele
país teria mecanismos jurídicos para reconhecer os efeitos da decisão proferida no
âmbito da recuperação judicial (e poderia aceitar, portanto, a jurisdição brasileira
sobre a matéria). Finalmente, a OGX defendeu a necessidade de adoção, pelos juízes brasileiros, de um sistema
da universalidade dos efeitos
dos processos de insolvência, na esteira das melhores
práticas internacionais e com
o objetivo de atribuir eficiência e viabilizar o processo
brasileiro.
A Procuradoria de Justiça, ao se manifesta sobre o
recurso em segunda instância, foi favorável ao entendimento do Ministério Público
e do juiz de primeiro grau. De
acordo com a Procuradoria,
o fato de a lei brasileira estar defasada e não acompanhar os avanços da globalização não poderia servir como
justificativa para a sua não
aplicação. Assim, conforme a
interpretação conferida pela
Procuradoria ao art. 3º da Lei
11.101 de 2005, o juiz brasileiro teria jurisdição sobre as
sociedades estrangeiras somente se elas tivessem filial
ou estabelecimento no Brasil – o que não era, contudo,
o caso das OGX austríacas.
O Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro, ao
julgar o recurso, em fevereiro
de 2014, acolheu os argumentos do Grupo OGX e, ao reformar a decisão de primeira
instância, permitiu que as sociedades austríacas fizessem
parte do processo de recuperação judicial brasileiro. De
acordo com a decisão do Tribunal, as sociedades estrangeiras haviam sido constituídas para financiar o Grupo
OGX e, portanto, compartilhavam da mesma atividade
empresarial; além disso, as
sociedades brasileiras eram
as responsáveis pelo pagamento dos titulares de bonds
emitidos no exterior. Essa sinergia entre as sociedades do
mesmo grupo foi o principal
argumento para permitir o
acesso das austríacas à mesma proteção legal brasileira
conferida às entidades nacionais. De todo modo, conforme observou o Tribunal, os
credores estrangeiros não se
opunham à recuperação judi-
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
cial conjunta de todas as sociedades, e o direito austríaco dispunha de mecanismos
jurídicos para conferir efeitos
à decisão brasileira. Com isso,
o Tribunal, entendendo haver
lacuna legislativa, decidiu dar
uma “solução dinâmica e atual à controvérsia”, autorizando que todas as sociedades
do Grupo OGX, brasileiras e
estrangeiras, se submetessem ao processo de recuperação judicial em trâmite no
Rio de Janeiro.
O caso OGX foi palco de
um debate, até então inédito
no judiciário brasileiro, a respeito dos efeitos extraterritoriais dos processos de recuperação judicial – e uma
das raras ocasiões em que
questões de direito falimentar internacional foram examinadas pela justiça no Brasil. As controvérsias do caso
OGX replicaram, de certa forma, as intensas discussões acadêmicas, travadas há
mais de um século entre autores de diversos países, entre o modelo teórico do territorialismo – que preza o
respeito à soberania e aos direitos dos credores locais, ao
restringir os efeitos dos processos falimentares às fronteiras estatais – e do universalismo – que, em nome do
tratamento igualitário entre os credores e a eficiência na administração dos ativos do devedor, prega que os
processos devam ter alcance global, produzindo efeitos
extraterritoriais.
O acalorado debate, que
ganhou impulso com os reflexos da crise do petróleo da
década de 1970, culminou na
adoção, pelas Nações Unidas,
da Lei Modelo da UNCITRAL
sobre Insolvências Transnacionais, em 1997, e, pela Comunidade Europeia, de um
regulamento comunitário a
respeito do assunto, em 2000
– ambos incorporando formas modificadas ou mitigadas do universalismo. A tensão entre universalismo e
territorialismo deixou, ainda, um extenso legado de casos, especialmente envolvendo países de tradição jurídica
anglo-saxã, em que acordos
de cooperação ad hoc foram
celebrados para permitir a
coordenação entre processos, de modo que uma pluralidade de insolvências pudesse, na medida do possível, ser
orquestrada como se fosse
uma única falência de alcance universal.
As posições territorialistas
e universalistas defendidas
no caso OGX reproduziram,
em grande parte, os argumentos utilizados pelos autores defensores das respectivas correntes teóricas. O
caso inaugurou não apenas o
início de salutares discussões
judiciais a respeito do assunto no Brasil, como também
de soluções ousadas e criativas, de cunho universalista,
que, a exemplo do que ocorreu em outros países, poderão servir de exemplo para
futuros casos. Além disso, as
Doutrina 31
repercussões do caso ajudam
a pavimentar o caminho para
a adoção, pelo Brasil, de normas legais que tratem do assunto, tal como a Lei Modelo
da UNCITRAL sobre Insolvências Transnacionais. A reforma da lei nesse sentido –
como mostra o caso OGX – é
necessária e premente.
* Paulo Fernando Campana Filho
Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo. Mestre em Ciências
Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra. Doutor em Direito
Comercial pela Universidade de São
Paulo. Advogado em São Paulo.
Revista Comercialista
32 Doutrina
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
Mercado de Capitais
versus
Recuperação Judicial:
Regulamentação e
Segurança Jurídica
Por Daltro de Campos Borges Filho
e Thiago Peixoto Alves*
Introdução
A regulamentação do mercado
de capitais enaltece o princípio
da transparência, para que os interessados disponham do maior
número possível de informações e possam avaliar os riscos
inerentes.
A dinâmica desse mercado também exige celeridade, para que os interessados tenham a
garantia de que os negócios reaRevista Comercialista
lizados ocorram no momento planejado, refletindo a conjuntura
econômico-financeira analisada.
A conjugação desses pressupostos permite incrementar a credibilidade do mercado
de capitais e garantir a segurança jurídica das múltiplas relações
interdependentes.
Transparência,
credibilidade e segurança jurídica, essenciais para incrementar novas
operações/interessados e atrair
dinheiro novo no mercado de capitais, também são pressupostos necessários para que possam
ser alcançados os principais objetivos da Lei nº 11.101 de 2005
(“Lei de Recuperação de Empresas”), inspirada nos institutos do
processo concursal do direito
norte-americano, de modo a desenvolver o incipiente mercado
de distress no Brasil, que, sem dú-
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
vida, se entrelaça com o mercado
de capitais.
Como adiante se expõe, o êxito da Lei de Recuperação de Empresas no Brasil, permitindo
reestruturar empresas em crise,
também depende de pressupostos análogos a esses aplicáveis
ao mercado de capitais, que permitem atrair investidores titulares de recursos e profissionais
dispostos a assumir riscos nos
investimentos e na gestão de
empresas em crise (esses players
são identificados neste artigo como “terceiros potenciais
interessados”).
Ocorre que empresas em crise, em geral, postergam em demasia o reconhecimento da sua
situação de desequilíbrio econômico-financeiro e relutam em
tomar medidas mais efetivas para equacionar a perda constante
e inexorável do crédito, matéria
prima vital de qualquer empresa.
Qualquer estratégia que cogite
de eventual pedido de recuperação judicial é rechaçada, por
se tratar de postura derrotista e
inaceitável.
Na tentativa de adotar medidas paliativas para a solução
de problemas econômico-financeiros, donos e gestores de
empresas em crise optam por
planejamentos equivocados, que
atrelam os principais ativos como garantia de dívidas (muitas vezes) impagáveis. De fato,
concretizam-se renegociações
de dívidas em condições desenquadradas da realidade da
Companhia.
Assim, quando se torna inevitável o ingresso do processo de
recuperação judicial, a maioria
das empresas devedoras se encontra em uma linha tênue entre
a possibilidade de reestruturação
e o encerramento de suas atividades, com a bancarrota. Nesse
cenário, é essencial que os trâmites do processo de reestruturação, sob o manto do Judiciário,
se realizem com transparência e
no menor tempo possível, tal como ocorre em operações do mercado de capitais.
Com efeito, o sucesso da reestruturação depende primordialmente da revitalização do crédito
da empresa para viabilizar a injeção de “dinheiro novo” no negócio. Para atingir esse objetivo,
essencial atrair o maior número
possível de terceiros potenciais
interessados — que têm a mesma
essência no mercado de capitais,
como no mercado de distress, diferenciando-se pela maior ou
menor disposição ao risco —, os
quais poderão, v.g., (i) adquirir o
estabelecimento, ou ativos isolados, (ii) conceder novas linhas de
crédito, ou (iii) aumentar o capital da empresa, para compartilhar, ou assumir o seu controle.
Esses recursos servem não
apenas para pagamento das dívidas do passado, mas também
para o fomento do “caixa” da empresa devedora (a recuperação,
em última análise, reflete uma
crise de “caixa”/liquidez).
A premissa fundamental para aumentar o número de terceiros potenciais interessados nas
operações do mercado de distress e, em consequência, valorizar os ativos das companhias
em crise, sem sombra de dúvida,
Doutrina 33
é consolidar a segurança jurídica no dia-a-dia dos processos de
recuperação judicial, o que prestigia o princípio da livre iniciativa protegido no inciso IV do art.
1º e no art. 170, ambos da Constituição Federal.
Em suma, terceiros potenciais interessados precisam estar
convencidos de que, a despeito das intempéries e dos riscos
usuais do mercado distress, tal
como ocorre no mercado de capitais, os seus investimentos estarão protegidos nos processos
concursais, especialmente no de
recuperação judicial, na conformidade dos parâmetros e da estrutura legal estabelecidos pela
Lei de Recuperação de Empresas.
Para o sucesso do sistema recuperacional no Brasil, é necessário que haja o menor número
de dúvidas possível sobre a licitude e o retorno do investimento
do capital nas empresas e ativos vinculados a esses processos
concursais, reduzindo-se o número de variáveis fora do controle das partes.
Essa convicção, obviamente,
maximizará o valor das empresas
em crise e dos seus ativos, premissa que, nas palavras do saudoso Senador Ramez Tabet, serviu
de base para elaboração da Lei
Recuperação de Empresas: “a lei
deve estabelecer normas e mecanismos que assegurem a obtenção
do máximo valor possível pelos
ativos do falido, evitando a deterioração provocada pela demora
excessiva do processo e priorizando a venda da empresa em bloco,
para evitar a perda dos intangíveis. Desse modo, não só se proteRevista Comercialista
34 Doutrina
gem os interesses dos credores de
sociedades e empresários insolventes, que tem por isso sua garantia aumentada, mas também
diminui-se o risco de transações
econômicas, o que gera eficiência
e aumento da riqueza geral”
Exemplos internacionais como o da reestruturação da General Motors, concluída em poucos
meses, com o aporte de significativa quantia de “dinheiro novo” e
o apoio dos órgãos governamentais norte-americanos, atestam
o quão importantes são a transparência, a celeridade e a consequente segurança jurídica.
A situação, portanto, é bastante semelhante à do mercado
de capitais: os terceiros potenciais interessados, dispostos a
investir no mercado de distress,
à semelhança do que ocorre no
mercado de capitais, necessitam de transparência, celeridade
e segurança jurídica para as operações que pretendem realizar.
Acontece que, diversamente
do que ocorre no mercado de capitais, o mercado de distress, não
obstante os 8 anos de vigência da
Lei de Recuperação de Empresas
no Brasil, continua incipiente,
não só pela resistência das empresas devedoras em reconhecer
a sua situação de crise econômico-financeira, como também por
outros fatores que afetam a segurança jurídica nos processos
de recuperação judicial, reduzindo drasticamente a participação
de terceiros potenciais interessados, que poderiam ingressar
com dinheiro/crédito novos e
viabilizar reestruturações empresariais.
Revista Comercialista
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
Na prática, podem ser destacados, entre outros, dois fatores que vêm contribuindo
para dificultar, ou mesmo inviabilizar a efetividade de soluções
que preservem empresas viáveis, frustrando os objetivos da
Lei 11.101 de 2005: (i) o posicionamento de recentes decisões
judiciais que consideraram ilegais Planos de Recuperação Judicial regularmente aprovados
pela maioria dos credores em assembleia, sob o fundamento de
que haveria prejuízo inaceitável para os credores dissidentes;
e (ii) a ausência de regulamentação própria, de natureza infra-legal, disciplinando matérias
que estão afeitas a órgãos reguladores e fiscalizadores do mercado, tais como, CVM, BACEN e
Receita Federal.
Esses dois fatores trazem
grande carga de incerteza jurídica para terceiros potenciais interessados e tornam ainda mais
morosos os processos concursais, restringindo, repita-se, o
incipiente mercado de distress
no Brasil, sobretudo para investidores estrangeiros, tão receosos
da complexidade de nossa legislação. As consequências, sem dúvida, são muito mais graves do
que aparentam.
Embora reconhecendo o erro
primário de empresas devedoras que comprometem seu caixa e seus ativos, perdendo todo
o seu crédito no mercado, para só então adotar as medidas
previstas na legislação concursal para superar crises econômico-financeiras, este artigo se
limita a apresentar uma visão
crítica sobre os dois outros fatores mencionados, que, por si só,
geram insegurança jurídica, prejudicando sobremaneira o desenvolvimento do mercado de
distress, que deveria se assemelhar ao mercado de capitais, para que venham a ser atingidos os
objetivos da Lei de Recuperação
de Empresas.
Além disso, será sugerida a
adoção de medidas para oferecer maior grau de previsibilidade nas complexas relações entre
os players dos processos concursais, tudo visando a aumentar o
número de terceiros potenciais
interessados, na certeza de que
tais medidas permitirão maximizar o valor da própria empresa devedora e dos seus ativos nos
processos recuperacionais.
Incerteza quanto ao Futuro dos Planos de Recuperação Judicial Aprovados
A partir da vigência da Lei de
Recuperação de Empresas, os
Planos de Recuperação, em processos de recuperação judicial,
devem ser aprovados pela maioria dos credores, na conformidade do quórum e procedimentos
previstos para a Assembleia Geral de Credores.
O princípio da aprovação
dos Planos de Recuperação pela maioria dos credores trouxe uma maior segurança jurídica
para terceiros potenciais interessados, pois assegurou uma
blindagem para o dinheiro/crédito novo que sempre são necessários para superar os problemas
econômico-financeiros de empresas em crise.
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
Com efeito, qualquer processo concursal envolve múltiplos
interesses e, exatamente para
aumentar a segurança jurídica
do processo decisório, a Lei de
Recuperação de Empresas enfatizou a soberania das decisões
da Assembléia Geral de Credores, tomada por maioria (Lei nº
11.101/05, art. 35, I), de modo a
não sujeitá-las ao risco da análise pelo Judiciário de eventual
irresignação de credores dissidentes, que impugnem as condições de pagamento previstas no
Plano de Recuperação.
Essa foi a posição inicial da jurisprudência, bastando transcrever a ementa de um julgado do
ano de 2010, da então Câmara
Reservada à Falência e Recuperação Judicial do TJ/SP: “Agravo.
Recuperação judicial. Plano aprovado pelas três classes de credores pelo quorum previsto no art.
45 da Lei n° 11.101/2005. Aprovado o plano pela Assembleia- Geral de Credores o juiz não pode
deixar de conceder a recuperação
judicial por entender que o plano de recuperação não tem consistência econômico-financeira.
Soberania da Assembléia de Credores para aprovar ou rejeitar
o plano de recuperação. Agravo não provido.” (AI n° 019877430.2010.8.26.0000, TJSP)
No entanto, a partir do início
de 2012, algumas reiteradas decisões do Judiciário passaram a
mitigar o princípio da soberania
da Assembleia Geral de Credores
em processos de recuperação
judicial, adentrando no mérito
econômico-financeiro dos Planos de Recuperação, sob o fun-
damento de que a decisão da
maioria acarretaria prejuízos injustificados aos credores.
Em um julgado recente, o TJ/
SP anulou um Plano de Recuperação Judicial por entender que
o desconto nele concedido aos
credores quirografários era muito grande, sem analisar qualquer
aspecto patrimonial da devedora, como a proporção entre seus
ativos e passivos. Destaquem-se
os dois principais trechos da fundamentação: “não é possível que
créditos vultosos de liquidez inquestionável sejam achatados com
um deságio astronômico e que implica em reduzir mais de 90% do
valor nominal” e “assim sendo, o
Plano não deveria ser aprovado,
mas, sim, rejeitado, competindo
que se apresente outro, com proposta para pagamento descente dos credores quirografários,
sem estabelecimento de tetos irrisórios diante da grandiosidade
de créditos significativos.” (AI n°
0008635-19.2013.8.26.0000, TJSP,
21/05/2013)
D.v., equivocada essa decisão,
pois não caberia ao Judiciário
analisar o mérito econômico-financeiro do Plano de Recuperação, mas apenas verificar
aspectos da legalidade e homologar a decisão do conclave (Lei
11.101/05, art. 58). Realmente,
uma das grandes alterações trazidas pela nova lei falimentar foi
a transferência dos poderes anteriormente detidos pelo Juiz
para os credores, reunidos em
assembleia, a quem cabe analisar e deliberar sobre os termos
do Plano de Recuperação (Lei
11.101/05, art. 35).
Doutrina 35
Nesse mesmo sentido, o Enunciado nº 46 da I Jornada de Direito Comercial, realizada no ano de
passado, no STJ: “Não compete ao
juiz deixar de conceder a recuperação judicial ou de homologar a
extrajudicial com fundamento na
análise econômico-financeira do
plano de recuperação aprovado
pelos credores.”
Mais grave ainda, nem sequer foi discutido se a falência
da companhia seria pior opção
para os credores do que manter
as condições de pagamento previstas no Plano de Recuperação,
considerando, nessa hipótese, as
preferencias legais de pagamento no concurso falimentar (Lei
11.101/05, art. 83). De fato, trata-se de princípio/raciocínio econômico comum a todo e qualquer
processo concursal e que estava
insculpido no art. 143, I do antigo Decreto-Lei nº 7.661/45, segundo o qual cabiam embargos à
concordata quando demonstrado ser ela pior do que a falência.
Trata-se da aplicação do princípio do best interest of creditors,
inspirado na direito norte-americano, que deve ser aplicado aos
processos de recuperação judicial, como muito bem explicado
na recente tese de doutorado em
direito comercial da USP da Professora Sheila Christina Neder
Cerezetti: “Constitui, em verdade,
uma regra do mínimo, no sentido
de que a grande parte dos detentores de crédito pode decidir pela
aprovação do plano de recuperação desde que um valor mínimo,
relativo àquele que seria angariado mediante a liquidação dos ativos, seja garantido àqueles que
Revista Comercialista
36 Doutrina
discordam da concessão de uma
nova chance ao devedor. A regra
busca, assim, traçar um equilíbrio entre o objetivo de aprovação
de um e a proteção aos credores
dissidentes.” (CEREZETTI, Sheila
Christina Neder, A Recuperação
Judicial de Sociedade por ações,
O Princípio da Preservação da
Empresa na Lei de Recuperação
e Falência, São Paulo, Malheiros,
2012, página 381).
No âmbito deste artigo, porém, a principal constatação é a
de que essa posição do Judiciário, de mitigar a soberania da Assembleia Geral de Credores, no
tocante à aprovação das condições econômico-financeiras dos
Planos de Recuperação, compromete ainda mais a segurança
jurídica dos processos de recuperação judicial, especialmente
quando analisada a questão sob
o ponto de vista de terceiros potenciais interessados na empresa, ou nos seus ativos.
À toda evidência, se o Plano
de Recuperação ficar sujeito à
anulação pelo Judiciário, muitos
meses após a sua aprovação pela Assembléia Geral de Credores,
terceiros potenciais interessados
jamais se arriscarão a aportar dinheiro/crédito novo, pois, nesse interregno temporal, ativos se
depreciam; os melhores empregados se recolocam; contratos
relevantes são rompidos; enfim,
o fundo de comércio da empresa
devedora desaparece como um
“iceberg no deserto”.
Ainda do ponto de vista de
terceiros potenciais interessados, é inadmissível que a aquisição em hasta pública de uma
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REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
Unidade Produtiva Isolada, conforme Plano de Recuperação
aprovado e homologado, venha
a ser anulada pelo próprio Judiciário. De fato, investimentos
terão sido feitos e contratos firmados, pelo que essa eventual
anulação gera um quadro de incerteza jurídica e um “limbo” no
tocante a atos sem possibilidade
de reversão, afetando terceiros
de boa-fé.
Essa postura do Judiciário prejudica, ou até inviabiliza a preservação de empresas devedoras
economicamente viáveis, pois,
ao aumentar sobremaneira a insegurança jurídica, em virtude
do tempo adicional para resolver
questões essenciais nos processos de recuperação judicial, gera
um receio intransponível em terceiros potenciais interessados,
que jamais aportarão dinheiro/
crédito novo em situações jurídicas indefinidas, uma vez que, se
e quando houver um desfecho no
Judiciário, as empresas, suas atividades e seus ativos já terão desaparecido dessas controvérsias
nesse “deserto”.
Regulamentação
Inexistente
Para aperfeiçoar a aplicação da
Lei de Recuperação de Empresas
e, com isso, gerar maior segurança jurídica para os terceiros
potenciais interessados, é imprescindível que, não só o Judiciário, mas todos os demais entes
ligados ao Governo, nos seus
mais diversos níveis e posições,
adotem a postura ativa de atuar
em processos concursais com o
objetivo de viabilizar a superação
da situação econômico-financeira do devedor, propiciando instrumentos hábeis para facilitar o
ingresso de dinheiro nos processos de reestruturação.
A atuação proativa do Governo é essencial para que todos os
stakeholders tenham maior confiança na aplicação da Lei de Recuperação de Empresas e, com
isso, possamos ter exemplos bem
sucedidos e semelhantes àqueles
observados nos Estados Unidos,
como o já citado caso da reestruturação da General Motors.
No entanto, no Brasil, até o
presente momento, a regulamentação por parte da administração
pública de matérias essenciais
para a reestruturação, bem como a sua participação efetiva nos
processos concursais, é bastante
parca, agravando o quadro de insegurança jurídica para terceiros
potenciais interessados.
É inquestionável, porém, que
diversos aspectos práticos, por
conta dessa omissão do setor
público e dos seus agentes, fragilizam a credibilidade na recuperação de empresas insolventes
e no desenvolvimento dos institutos da Lei de Recuperação de
Empresas. Há, porém, medidas
que podem ser desde logo adotadas, dependendo tão-somente
da atuação política e administrativa do próprio Governo.
É de todo necessário sejam
instituídas o mais rápido possível regulamentações internas no
âmbito da CVM, do BACEN e da
Receita Federal, com a criação de
vantagens para devedor e credores que aprovarem o Plano Recuperação, ou para aqueles que
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estejam dispostos a injetar dinheiro novo no negócio.
Na hipótese de um devedor
aprovar uma proposta de pagamento com substancial desconto em processo de recuperação
judicial, ou extrajudicial, a Receita Federal não deveria considerar esse ganho decorrente do
hair cut como passível de tributação. Ou, ainda, as vantagens
tributárias atribuídas aos credores que concedem esses descontos deveriam ser bem maiores,
evitando que eles tenham de
simplesmente “limpar” seu balanço, transferindo a titularidade
de seus respectivos créditos para
terceiros.
Outro aspecto interessante poderia ocorrer no âmbito do
BACEN. De acordo com a Resolução 2682/99, o rating atribuído às empresas em recuperação,
tão logo elas ingressem com o
processo concursal, é imediatamente rebaixado para o nível
“H”, pior das classificações quanto à capacidade de pagamento.
Esta classificação impede, muitas das vezes, que instituições financeiras ou mesmo investidores
qualificados emprestem mais recursos para as empresas em crise, dificultando a reestruturação
e o desenvolvimento do mercado
de distress.
Bastaria que o BACEN instituísse uma regulamentação mais
específica, não atribuindo pura e
simplesmente o rating “H” para
qualquer recuperanda, mas sim
criando regras de classificação
(índices contábeis e financeiros)
que levassem em conta a concreta situação econômico-financei-
ra da devedora, tornando efetiva
a distinção prevista no art. 67 da
Lei de Recuperação de Empresas,
entre as dívidas antigas e novas.
Na CVM, por exemplo, só a
partir da Instrução Normativa
nº 489/11, modificando a de nº
356/01, houve a fixação de critérios e procedimentos, inclusive
contábeis, para os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) adquirirem créditos
de instituições financeiras, com
a possibilidade de os renegociarem, de maneira mais simples e
direta, com os respectivos devedores originais, inclusive aqueles
em crise de insolvência.
Ainda no âmbito dessa autarquia, a Instrução Normativa nº
391/03 trouxe importante inovação para a regulamentação
dos Fundos de Investimento em
Participações (“FIPs”), ao permitir que eles apliquem seus recursos em Companhias envolvidas
em processo de reestruturação:
“admitida a integralização de cotas em bens ou direitos, inclusive
créditos, desde que tais bens e direitos estejam vinculados ao processo de recuperação da sociedade
investida e desde que o valor dos
mesmos esteja respaldado em laudo de avaliação elaborado por empresa especializada.” (art. 2º, §1º
desta IN).
De fato, na prática, para investimento nas empresas em
crise, as regras dos FIPs são menos rígidas do que as dos FIDCs,
uma vez que estes últimos, mesmo com os avanços da Instrução
Normativa nº 489/11, continuam
com uma estrutura bem mais engessada, prevendo diversos re-
Doutrina 37
quisitos formais que restringem
inúmeras situações e dificultam
a participação dos prestadores
de serviços.
Além disso, a administração
pública deveria possibilitar que o
devedor, mesmo em recuperação
judicial, pudesse comprovar a
sua capacidade econômico financeira de participar de licitações,
assinar, ou manter contratos administrativos (atualmente, esse direito vem sendo assegurado
ao devedor em recuperação pelo
Judiciário).
Também é essencial que empresas e demais entes ligados ao
setor público, diante do seu peso relevante na economia em geral, estabeleçam procedimentos
claros e objetivos para se relacionarem com empresas em recuperação judicial, enquanto
credor, contratante, ou fornecedor, de modo a permitir, por
exemplo, que os servidores responsáveis possam, se for o caso,
autorizar a aprovação de Plano
de Recuperação em que esteja
previsto perdão parcial de dívidas, ou a manutenção de crédito para fornecimento de matéria
prima, sem risco de futura responsabilização pessoal.
Na prática, o que se observa nos processos de recuperação
judicial é uma abstenção profunda dos bancos públicos. Na quase totalidade das Assembleias de
Credores, essas instituições votam contrariamente ao Plano de
Recuperação, em razão da existência de um desconto mínimo
na dívida, mesmo que isso seja melhor do que a quebra, consequência natural da rejeição do
Revista Comercialista
38 Doutrina
Plano de Recuperação. No máximo, elas se abstêm da votação,
tudo por medo da responsabilização pessoal do agente que
eventualmente decidisse aprovar
a proposta de reestruturação.
O Governo, em todos os seus
níveis, parece ignorar a existência da Lei de Recuperação de Empresas e, diante dessa omissão,
continua inviabilizando que entes ligados ao setor público efetivamente participem da tentativa
de reestruturação de empresas
viáveis, com consequência direta para os investidores interessados em colocar dinheiro novo
na operação.
Outro exemplo: a Lei 11.941/09,
ao modificar a Lei 9.469/07, poderia ter se referido às situações
específicas da Lei de Recuperação de Empresas, ao invés de
apenas criar maiores restrições
para que possam ser celebrados
acordos, ou transações, pelos
entes públicos com particulares, como se vê no seu art. 1º, §1º,
que exige, sob pena de nulidade,
a “prévia e expressa autorização
do Advogado-Geral da União e do
Ministro de Estado ou do titular
da Secretaria da Presidência da
República a cuja área de competência estiver afeto o assunto”. A
complexidade do procedimento
pode inviabilizar seja aprovado
um Plano de Recuperação, quando estiver previsto o perdão parcial de dívidas e o voto favorável
dos credores ligados ao setor público for essencial na deliberação
pela AGC.
O pior de tudo, entretanto, é
a não sujeição do crédito fiscal
ao processo de recuperação juRevista Comercialista
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
dicial e, ao mesmo tempo, a ausência de legislação específica
que propicie formas realmente
especiais de financiamento para
empresas em crise, com parcelamentos adequados para a situação econômico financeira da
Companhia, instituindo-se um
“cardápio” de possibilidades para quitação das dívidas fiscais –
levando em conta o valor desse
passivo, a capacidade de geração
de caixa da devedora e seu endividamento pré-existente.
Tal omissão gera enorme insegurança jurídica e inviabiliza
que novos investidores financeiros ou estratégicos participem
de processos de recuperação judicial de empresas insolventes,
mas viáveis e atrativas do ponto
de vista de mercado.
Com efeito, são poucos os
terceiros potenciais interessados que se aventuram a investir ou a participar na venda de
ativos nos processos de recuperação judicial, pois há diversos
exemplos em que as proteções
para o terceiro adquirente, previstas na Lei Complementar 118
e na Lei de Recuperação de Empresas acabam dependendo de
pronunciamentos judiciais para
se concretizarem, acarretando
insegurança jurídica e enormes
prejuízos para os investimentos
realizados.
São bastante conhecidas as
decisões em processos fiscais
que atribuem responsabilidade pelo pagamento da dívida para toda e qualquer pessoa que
guarda ou guardou singela ligação com o devedor, inclusive terceiros adquirentes de ativos das
companhias em crise. O art. 60
da Lei de Recuperação de Empresas, que fornece blindagem
para terceiros adquirentes de
UPIs em processos de recuperação judicial, tem de ser efetivamente respeitado.
Esse quadro de omissão governamental deve mudar. Com
urgência.
Conclusão
Os pontos nodais de todos os
processos de reestruturação são
transparência, celeridade e segurança jurídica, o que permite
o ingresso de dinheiro novo e o
aumento do número de terceiros
potenciais interessados, fatores
umbilicalmente ligados entre si,
influenciando diretamente uns
nos outros. Evidente que, quanto mais rápido o procedimento,
maior o número de terceiros potenciais interessados, em decorrência da celeridade no retorno
do investimento. Assim também,
a injeção de mais dinheiro novo
faz com que o tempo para a reestruturação se torne substancialmente reduzido.
O aporte de recursos depende
necessariamente da segurança
jurídica dos processos concursais, especialmente o de recuperação judicial, tal como ocorre
com o mercado de capitais.
No entanto, no mercado de
distress essa segurança jurídica vem sendo afetada pela possibilidade de decisões anulatórias
de Planos de Recuperação já
aprovados por regulares Assembleias Gerais de Credores, bem
como pela ausência de participação dos mais diversos entes
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
estatais nesses processos, sobretudo em decorrência da falta
de regulamentação específica da
matéria.
É fundamental a adoção de
medidas imediatas para estancar
esses dois elementos repulsores
do dinheiro novo e do sucesso da
recuperação judicial, elevando o
interesse do mercado de distress
ao mesmo grau de desenvolvimento do mercado de capitais.
Para a questão judicial, deve-se seguir a linha do enunciado
nº 46 da I Jornada de Direito Comercial, deixando com a AGC a
competência exclusiva para deliberar sobre os termos do Plano de Recuperação, cabendo ao
Judiciário apenas a análise dos
aspectos relativos à legalidade,
como, aliás, recentemente, decidiu o STJ: “Disso decorre que,
de fato, não compete ao juízo interferir na vontade soberana dos
credores, alterando o conteúdo
do plano de recuperação judicial,
salvo em hipóteses expressamente autorizadas por lei (v.g. art. 58,
§1º, da LFRJ). A obrigação de respeitar o conteúdo da manifestação de vontade, no entanto, não
implica impossibilitar ao juízo
que promova um controle quanto à licitude das providências decididas em assembleia.” (REsp
1.314.209/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/05/2012, DJe
01/06/2012).
No limite, se for necessário
ingressar no mérito econômico-financeiro do Plano de Recuperação, o Judiciário deveria levar
em conta o princípio insculpido
no art. 143, I do Decreto-Lei nº
7.661/45, o qual, adaptado ao novo instituto da recuperação judicial, significa dizer que o Plano
de Recuperação deve gerar para
os credores uma situação melhor
do que a da falência.
É de todo aconselhável que,
em sede de recursos repetitivos
(art. 543-C do CPC), o STJ fixe os
parâmetros para interferência do
Judiciário nas decisões das Assembleias Gerais de Credores.
Com essas balizas, os terceiros potenciais interessados saberão efetivamente o risco que
estão correndo na operação, com
a transparência necessária, tal
como no mercado de capitais.
Por outro lado, a mudança
de postura dos entes do Governo e dos seus agentes é essencial para desenvolver o processo
concursal no Brasil, com a instituição de regulamentações e medidas práticas nos mais diversos
níveis administrativos, abandonando a postura até então vigente, e lidando diretamente com
o problema.
Sem isso, a recuperação judicial no Brasil tende a se transformar em um infeliz processo
de “faz de conta”, onde, apesar
da existência de uma legislação concursal avançada – a Lei
de Recuperação de Empresas –,
equiparada às melhores do mundo, os devedores em crise não
conseguem efetivamente se soerguer, com a manutenção da
atividade econômica e geração
de emprego, havendo um enfraquecimento do mercado de distress, especialmente quando
comparado ao grau de desenvolvimento do mercado de capitais.
Doutrina 39
* Daltro de Campos Borges Filho
Advogado, sócio do Escritório Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide
Advogados, Membro do Comitê de
Falências e Recuperação Judicial
TMA da seção Rio de Janeiro e na de
São Paulo, Membro do Instituto Brasileiro de Recuperação de Empresas
(IBR) e Professor do IBMEC, no curso
LLM (2002/2003).
Thiago Peixoto Alves
Advogado, sócio do Escritório Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide
Advogados, Mestre em direito comercial pela USP, Membro do TMA
da seção São Paulo, Professor Convidado do Curso de Pós-Graduação
em Direito Empresarial da FGV/SP e
da Faculdade Damásio de Jesus-SP,
Professor Assistente de Direito Comercial da Universidade de São Paulo e Relator da Comissão “Crise da
empresa: Falência e Recuperação”
da I Jornada de Direito Comercial, do
Conselho da Justiça Federal.
Revista Comercialista
40 Doutrina
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
As recentes mudanças no
tratamento dispensado pela Lei
nº 11.101/2005 às microempresas
e empresas de pequeno porte na
recuperação judicial: progresso
ou retrocesso?
Por Gustavo Lacerda Franco*
1. Introdução
A importância das microempresas e empresas de pequeno porte no cenário econômico brasileiro é evidente. De acordo com a relação anual
de informações sociais do Ministério do Trabalho e Emprego (RAIS-MTE), as chamadas micro e pequenas empresas, em 2011, representavam 99% das empresas privadas brasileiras, bem como agregavam 51,6%
das pessoas ocupadas no país1. Estudo do Sebrae aponta também que,
em 2011, essas empresas contribuíram com 39,7% da renda de trabalho e cerca de 20% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil2. Destaque-se ainda que, por conta da economia informal, que chega a representar
17% do PIB brasileiro3, esses dados podem ser, na verdade, ainda mais
impressionantes.
A relevância das microempresas e empresas de pequeno porte ocasionou, inclusive, a elevação do tratamento favorecido para tal categoria
ao patamar de princípio da ordem econômica brasileira, como estabe-
1 Mauro Oddo Nogueira e João Maria de Oliveira,
Da Baleia ao Ornitorrinco: Contribuições Para a
Compreensão do Universo das Micro e Pequenas
Empresas Brasileiras in Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, Radar 25 (2013), p. 7. DisRevista Comercialista
ponível em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/radar/130507_radar25.pdf.
Acessado em 12.05.2013.
2 M. O. Nogueira e J. M. de Oliveira, Da Baleia ao
Ornitorrinco cit., p. 7.
3 M. O. Nogueira e J. M. de Oliveira, Da Baleia ao
Ornitorrinco cit., p. 14.
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
lecido no art. 170, IX da Constituição Federal4. O art. 179 da Carta
Magna, por sua vez, apresenta
disposição no mesmo sentido5.
A concretização das disposições constitucionais referidas, então, exigiu a edição de diversas
normas destinadas, de modo específico, à disciplina das microempresas e empresas de pequeno
porte, levando-se em consideração as suas particularidades em
relação às demais empresas em
atividade no mercado.
Nesse contexto surgiram, por
exemplo, o Estatuto Nacional da
Microempresa e da Empresa de
Pequeno Porte (Lei Complementar
nº 123/2006) e a Lei de Recuperação de Empresas e Falência (Lei nº
11.101/2005), que contém disposições específicas sobre a categoria
empresarial abordada6.
Cumpre apontar que, a despeito dos esforços do legislador em
estabelecer um regime apropriado às microempresas e empresas de pequeno porte, no tocante
à sua recuperação judicial, ao elaborar o projeto que originou a Lei
nº 11.101/2005, a adequação dessas
disposições legais à realidade das
empresas em questão tem sido objeto de controvérsia desde o surgi-
mento do novo diploma concursal,
como será demonstrado adiante. A recente Lei Complementar nº
147/2014, então, promoveu notáveis mudanças na Lei de Recuperação de Empresas e Falência, não
apenas quanto à recuperação judicial das microempresas e empresas
de pequeno porte, mas, também,
com relação à sua participação no
processo recuperacional de outras
empresas, como credoras.
Nesse cenário, o presente estudo busca examinar, sucintamente e sem a pretensão de esgotar a
discussão, que está apenas em seu
início, a adequação do tratamento
dispensado pelo diploma concursal
às microempresas e empresas de
pequeno porte na recuperação judicial, como devedoras e credoras,
após o advento da mencionada Lei
Complementar nº 147/2014, que
promoveu modificações em seu
regime. Propõe-se, nesse sentido,
reflexão sobre tais mudanças à luz
das críticas dirigidas pela doutrina
ao regime até então adotado.
4 O dispositivo estabelece, mais precisamente,
que deve ser observado “tratamento favorecido
para as empresas de pequeno porte constituídas
sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”.
6 Justifica-se o tratamento específico, no âmbito do direito da empresa em crise, por serem as
micro e pequenas empresas aquelas com menor
possibilidade de recuperação, em razão de não
serem devidamente assessoradas nos momentos de constituição e de crise econômica, de sua
frequente informalidade, de seu fluxo de caixa
restrito, de sua dependência estrutural de outras
empresas na venda de bens ou prestação de serviços e da rapidez com que sofrem os efeitos da
queda no consumo de pessoas físicas (Frederico
Augusto Monte Simionato, Tratado de Direito Falimentar, Rio de Janeiro, Forense, 2008, p. 205).
5 Dispondo, por sua vez, que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno
porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico
diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.”.
Doutrina 41
de recuperação judicial, ou seja,
o regime de recuperação das microempresas e empresas de pequeno porte. Antes das mudanças
recentemente operadas nesse âmbito, apontou-se que a seção específica da Lei de Recuperação e
Falência sobre a matéria tratada,
a qual abrange os artigos 70 a 72
do diploma, apresentava diversos
problemas.
Afirmou-se, por exemplo, que
a legislação atual teria mantido,
com relação ao pequeno empresário, sistema bastante semelhante à
concordata do diploma concursal
anterior7, instituto criticado por
não envolver a participação dos
credores, consistindo em um “favor legal”, e pela excessiva rigidez,
inclusive quanto ao tempo de suspensão de pagamentos. Indicou-se que a esfera de incidência da
recuperação judicial dessa categoria empresarial seria mais restrita do que a da concordata, que ao
menos alcançaria todos os créditos quirografários8, assim como o
prazo de duração do novo regime
2. A recuperação judicial de seria pouco mais flexível do que o
microempresas e empresas anterior.9 A exclusão das instituições financeiras do procedimento
de pequeno porte
Deve-se analisar, primeiramen- recuperacional, por meio do afaste, a disciplina do plano especial tamento da incidência deste nas
7 Manoel Justino Bezerra Filho, Lei de Recuperação de Empresas e Falências Comentada – Lei
11.101/2005 - Comentário Artigo por Artigo, 5ª ed.,
São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008, p. 195.
8 O dispositivo criticado, relativo à restrição do
procedimento aos créditos quirografários, sofreu recente mudança pela Lei complementar nº
147/2014, que será abordada adiante.
9 Osmar Brina Corrêa-Lima e Leonardo Netto Parentoni, Gargalos no Procedimento da Recuperação
Judicial de Empresas, in Newton De Lucca, Alessandra de Azevedo Domingues e Nilva M. Leonardi
Antonio (coords.), Direito Recuperacional II – Aspectos Teóricos e Práticos, São Paulo, Quartier Latin, 2012, pp. 284-286.
Revista Comercialista
42 Doutrina
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
hipóteses de propriedade fiduciária e leasing, igualmente, foi objeto de críticas pela doutrina10, bem
como o fato de que as disposições
específicas não teriam logrado
êxito na redução dos custos do
processo recuperacional para os
agentes com menor capacidade
econômica.11 A suspensão apenas
das ações e execuções versando
sobre créditos envolvidos no plano de recuperação dessas empresas, outrossim, foi alvo de crítica
doutrinária, que sugere ser a recuperação extrajudicial mais interessante, em alguns casos, a
esses agentes.12 A previsão de rejeição do pedido de recuperação
e da decretação de falência pelo
juiz na hipótese do art. 72, parágrafo único, da Lei nº 11.101/2005,
no mesmo sentido, foi alvo de severas críticas.13
Expostas as críticas mais recorrentes ao regime legal discutido antes das modificações
ocorridas, cabe apresentar o conteúdo destas e, em seguida, tecer
considerações críticas sobre os
dispositivos alterados.
A Lei Complementar nº
147/2014 promoveu alterações
quanto aos créditos alcançados
pelo plano especial de recuperação judicial. Antes, em disposição criticada do art. 71, I14, o plano
especial abrangia exclusivamen-
te os créditos quirografários, com
exceção daqueles decorrentes de
repasse de recursos oficiais e dos
previstos nos §§ 3º e 4º do art. 49
da Lei nº 11.101/2005. Com as alterações introduzidas no diploma, o plano especial passou a
abranger todos os créditos existentes na data do pedido, ainda
que não vencidos, salvo os decorrentes de repasse de recursos oficiais, os fiscais e os previstos nos
§§ 3º e 4º do art. 49.
Entende-se que houve, nesse
ponto, alguma melhora, porquanto já não se limita a abrangência do plano especial aos créditos
quirografários, o que deve ensejar
aumento no interesse dos credores integrantes das demais classes em negociar com as micro e
pequenas empresas em crise e
colaborar para a sua recuperação, ampliando-se as chances de
êxito no processo recuperacional. A manutenção das exceções
previstas anteriormente, com o
acréscimo dos créditos fiscais,
não é isenta de críticas, mas reflete orientação que afeta a Lei
de Recuperação de Empresas como um todo, não dizendo respeito apenas ao regime das micro e
pequenas empresas. É de se notar, porém, que o alegado favorecimento ao capital financeiro de
um modo geral, que decorreria da
exclusão dos débitos relativos a
alienação fiduciária, arrendamento e outros, além dos valores devidos a título de adiantamento de
contrato de câmbio, da esfera recuperacional15, pode atingir de
forma ainda mais grave as microempresas e empresas de pequeno
porte16.
A Lei Complementar nº
147/2014 trouxe modificações,
igualmente, ao art. 71, II, do diploma falimentar, referente ao
prazo de parcelamento do débito. A redação do dispositivo mencionado, que antes estabelecia
a previsão, no plano especial, de
parcelamento em até trinta e seis
parcelas mensais, iguais e sucessivas, com correção monetária e
juros de doze por cento ao ano,
passou a permitir parcelamento em até trinta e seis prestações
mensais, iguais e sucessivas, com
o acréscimo de juros equivalentes à taxa Sistema Especial de Liquidação e de Custódia - SELIC,
sendo admissível, também, proposta de abatimento do montante
das dívidas.
Nota-se, inicialmente, não ter
havido qualquer evolução da legislação no tocante à rigidez do
prazo máximo fixado, que permanece em trinta e seis meses, prazo que seria “desarrazoado” para
alguns autores17, sendo mais per-
10 F. A. M. Simionato, Tratado de Direito Falimentar
cit., p. 206.
14 F. A. M. Simionato, por exemplo, chegou a afirmar que, com a redação anterior do art. 71, I, do
diploma concursal, havia sido decretada a morte
das micro e pequenas empresas que buscassem
a Justiça para enfrentar crise econômica, caso tivessem passivo bancário como leasing ou reserva de domínio, pois as disposições do dispositivo
inviabilizariam a recuperação das empresas em
questão, in Tratado de Direito Falimentar cit., p.
206.
15 M. J. Bezerra Filho, Lei de Recuperação cit., p. 197
11 O. B. Corrêa-Lima e L. N. Parentoni, Gargalos no
Procedimento cit., pp. 286-287.
12 O. B. Corrêa-Lima e L. N. Parentoni, Gargalos no
Procedimento cit., pp. 288-289.
13 O. B. Corrêa-Lima e L. N. Parentoni, Gargalos no
Procedimento cit., p. 291.
Revista Comercialista
16 Cf., nesse sentido, O. B. Corrêa-Lima e L. N. Parentoni, Gargalos no Procedimento cit., pp. 286287.
17 Cf., por exemplo, F. A. M. Simionato, Tratado de
Direito Falimentar cit., p. 207.
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
Doutrina 43
tinente, porém, apontar que a
imposição de prazo máximo inviabiliza a negociação do pequeno empresário com seus credores
acerca de períodos específicos
para o adimplemento de determinadas obrigações, conforme as
peculiaridades do caso concreto18, que deveriam balizar o exame de razoabilidade do prazo
previsto no plano. Persiste, ainda, a necessidade de previsão de
pagamento em parcelas mensais,
iguais e sucessivas, o que confirma o caráter inflexível do regime
analisado. A modificação concernente aos juros que devem incidir sobre o débito parcelado, por
sua vez, afastou a adoção de percentual fixo, tornando-o equivalente à taxa SELIC. Conquanto
seja possível defender que, com
isso, o percentual aplicado passará a refletir de maneira mais verdadeira a realidade econômica do
país, causa preocupação a possibilidade de variação significativa
da SELIC, o que poderia afetar sobremaneira a situação da recuperanda. Na prática, contudo, essa
alteração ainda não tem ocasionado grandes variações.
Mudança mais expressiva e
elogiável, no dispositivo apreciado, refere-se à possibilidade de o
plano conter “proposta de abatimento do valor das dívidas”, que
antes não estava presente na Lei,
ao menos expressamente, como
afirma Carlos Klein Zanini19. Desse modo, atenua-se a rigidez do
regime de recuperação judicial
dispensado às micro e pequenas
empresas, permitindo a adoção
de medidas mais adequadas às
peculiaridades de cada uma delas, de seus credores e das crises
por elas enfrentadas, ainda que
os instrumentos fornecidos pela legislação possam não ser suficientes à ocorrência de uma
negociação favorável à devedora
e que, ao mesmo tempo, prestigie
os interesses dos credores.
A mudança operada no parágrafo único do art. 72, o qual afirmava que o magistrado julgaria
improcedente o pedido de recuperação judicial e decretaria a falência do devedor se existissem
objeções, nos termos do art. 55
do diploma, de credores titulares
de mais da metade dos créditos
apontados no inciso I do art. 71 e
passou a dispor que o juiz rejeitará o pedido de recuperação e decretará a falência do devedor se
houver objeções, conforme o art.
55, de credores titulares de mais
da metade de qualquer uma das
classes de créditos estabelecidos
no art. 83, computados nos termos do art. 45 da Lei de Recuperação, buscou harmonizá-lo com
a nova redação do art. 71, I, desta, condicionando a procedência
do pedido de recuperação judicial da micro e pequena empre-
sa em crise, porém, como visto,
à ausência de objeções de credores titulares de mais da metade de
qualquer uma das classes de créditos dispostas no art. 83, ou seja, do dispositivo que determina a
ordem de classificação dos créditos na falência.
Além de eventuais debates sobre a compatibilidade entre os
dispositivos legais adotados como
parâmetros no art. 72, parágrafo
único, cumpre ressaltar que não
se superou, com sua nova redação, a crítica sobre ser excessivo
o poder atribuído aos credores20,
especialmente se adotada a interpretação de que a discordância
dos credores deve ser apreciada separadamente, em cada uma
das numerosas classes previstas
no art. 83, e não no todo. Conforme essa interpretação, bastaria a objeção de credores titulares
de mais da metade dos créditos
alocados em determinada classe, por exemplo, para se inviabilizar o procedimento almejado pela
empresa em crise, o que tornaria provável o acúmulo de poder
considerável e até determinante na decisão de certos credores,
integrantes de classes esvaziadas,
consistindo em claro contrassenso. Essa situação evidencia, aliás, com relação à recuperação
de micro e pequenas empresas, a
necessidade de desenvolvimento da disciplina sobre o abuso
18 O. B. Corrêa-Lima e L. N. Parentoni, Gargalos no
Procedimento cit., pp. 286-287.
Falência – Lei 11.101/2005 – Artigo por Artigo, São
Paulo, Revista dos Tribunais, 2007, p. 325.
19 Comentários ao Art. 71 da Lei nº 11.101/2005, in F.
S. de Souza Junior e A. S. A. de M. Pitombo (coords.),
Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e
20 Nesse sentido, como afirma William Eustáquio
de Carvalho, “deixar a aprovação de um plano de
recuperação ao alvedrio de mais da metade des-
ses credores talvez implique condenar à falência a
empresa em dificuldades financeiras” (O Abuso no
Poder de Voto na Recuperação Judicial de Microempresas e Empresas de Pequeno Porte no Brasil,
in Revista de Direito Empresarial, 13 [2010], p. 131).
Revista Comercialista
44 Doutrina
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
de direito dos credores ao manifestarem objeção ao plano especial, ausência que também se
verifica, de modo geral, no campo
recuperacional.21
Com relação ao plano especial
de recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte,
portanto, conclui-se que houve
modificações pontuais, as quais
ensejaram algumas melhoras no
regime discutido, sendo insuficientes, no entanto, para promover verdadeira mudança em sua
orientação. As críticas estruturais
da doutrina, apresentadas acima,
em grande medida não foram superadas. A nova redação do parágrafo único do art. 72, inclusive,
pode trazer uma piora ao sistema em questão, a depender da
interpretação que lhe for conferida, assim como a vinculação dos
juros aplicáveis ao débito da recuperanda à taxa SELIC, dependendo de sua variação.
de recuperação judicial de outras empresas, como credoras.
Essas alterações também merecem ser examinadas, o que se faz
em seguida.
Com efeito, a mudança promovida no art. 41 da Lei de Recuperação de Empresas, que passou a
prever o estabelecimento de uma
quarta classe de credores, “titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de
pequeno porte”, tem reflexos bastante profundos no processo recuperacional. E, embora se trate
de reforma operada recentemente na legislação concursal brasileira, já se mostra possível indicar
que o legislador aparentemente não buscou inspiração nos
apontamentos da doutrina sobre
a inadequação do texto legal nos
pontos modificados.
A alteração promovida no art.
41, por exemplo, criou uma nova classe de credores com base
em critério relativo à natureza do
3. Participação de
credor, e não do crédito detido,
gerando dúvidas sobre a obrigamicroempresas e
toriedade de inclusão dos credoempresas de pequeno
res micro e pequenas empresas
porte como credoras em
processos recuperacionais na nova classe ou, frente ao enA Lei Complementar nº 147/2014 quadramento em mais de uma
operou algumas modificações re- classe e à orientação de favorecilevantes na Lei nº 11.101/2005, mento dessa categoria empresaalém disso, quanto à participação rial, a concessão da oportunidade
das microempresas e empresas de escolha, pelos credores em
de pequeno porte nos processos tais circunstâncias, entre as clas-
ses possíveis de acordo com a
sua condição e a natureza do seu
crédito, conforme lhes seja mais
vantajoso. Trata-se de questão
complexa, que reflete na segurança jurídica do processo recuperacional e deverá ser dirimida
na seara jurisprudencial.
A mudança promovida nesse dispositivo legal, ademais,
encontra-se distante das sugestões doutrinárias para uma melhor organização dos interesses
dos credores, com destaque para as profundas considerações
de Sheila C. Neder Cerezetti acerca do tema22. Critica-se, nesse
ponto, a separação dos credores em classes na forma operada pela legislação brasileira, em
que não teriam sido observados
critérios de verdadeira homogeneidade, sendo tal regra de vital
importância no estabelecimento do equilíbrio entre interesses e
na própria legitimação da atribuição aos credores da deliberação
sobre o plano apresentado.23 Nesse sentido, apresentando possível
solução, na atual conjuntura, ao
problema apresentado, editou-se
o enunciado nº 57 da I jornada de
direito comercial do Conselho da
Justiça Federal, o qual estabelece
que “o plano de recuperação judicial deve prever tratamento igualitário para os membros da mesma
classe de credores que possuam in-
21 Deve-se destacar, contudo, que já existem pesquisas sobre o tema. Cf., nesse sentido, Newton
De Lucca, Abuso do Direito de Voto de Credor na
Assembleia geral de credores Prevista nos Arts. 35
a 46 da Lei 11.101/05, in N. De Lucca, A. de A. Domingues e N. M. Leonardi Antonio (coords.), Direito
Recuperacional II – Aspectos Teóricos e Práticos,
São Paulo, Quartier Latin, 2012, pp. 223-249; Ga-
ganização de Interesses, in P. F. C. S. de Toledo e F.
Satiro, Direito das Empresas em Crise: Problemas e
Soluções, São Paulo, Quartier Latin, 2012.
Revista Comercialista
briel Saad Kik Buschinelli, Abuso do Direito de Voto
na Assembleia geral de credores, Tese (Mestrado)
– Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2013, e
Álvaro A. C. Mariano, Abuso de Voto na Recuperação
Judicial, Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito
da USP, São Paulo, 2012.
22 Cf. As Classes de Credores como Técnica de Or-
23 S. C. N. Cerezetti, A Recuperação Judicial de
Sociedade por Ações – O Princípio da Preservação
da Empresa na Lei de Recuperação e Falência, São
Paulo, Malheiros, 2012, pp. 287-288.
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
Doutrina 45
teresses homogêneos, sejam estes
delineados em função da natureza
do crédito, da importância do crédito ou de outro critério de similitude justificado pelo proponente
do plano e homologado pelo magistrado”24.
Crítica semelhante à divisão
fixa de classes estabelecida pelo diploma é realizada por Jairo Saddi, ao afirmar que a reunião
de pessoas com interesses divergentes pode atrapalhar substancialmente as deliberações dentro
das classes. O autor defende que
a assembleia seria mais representativa se a Lei de Recuperação
adotasse um sistema com maior
flexibilidade, no qual a composição das classes não estaria estabelecida legalmente, mas seria
determinada pelo magistrado,
após verificação da recuperanda e do perfil do seu passivo, em
classificação atenta à melhor representação de cada grupo de
credores.25
Nota-se, dessa maneira, que a
doutrina apresenta críticas ao art.
41 da Lei de Recuperação de Empresas, de modo geral, em razão
da rigidez na separação das classes de credores, que não teria
observado critérios de verdadeira homogeneidade entre os interesses destes, prejudicando-se o
equilíbrio que seria desejável nas
suas deliberações. E a Lei Complementar nº 147/2014, em vez de
flexibilizar a divisão de classes até
então estabelecida, solucionando
os problemas abordados acima,
optou por apenas criar mais uma
classe, nos mesmos moldes adotados anteriormente.
É possível apontar vantagens
surgidas com a criação da quarta
classe de credores, já que geralmente as micro e pequenas empresas integrariam a classe dos
titulares de créditos quirografários e, com uma classe própria,
ganharam maior poder de negociação, que não teriam naquela. Essa perspectiva é reforçada
por ocorrer a aprovação do plano
de recuperação judicial, na nova
classe, como já acontecia na classe de titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou
decorrentes de acidentes de trabalho, ou seja, pela maioria simples dos credores presentes,
independentemente do valor do
seu crédito, conforme disposto no
art. 45, § 2º do diploma concursal,
também modificado pela lei complementar referida. Pode-se considerar, ainda, que os integrantes
da quarta classe de credores, por
serem microempresas ou empresas de pequeno porte, provavelmente serão fornecedores da
recuperanda, os quais, em tese,
apresentarão maior preocupação
com a efetiva superação da crise
e, por isso, tornarão mais simples
a aprovação do plano proposto.
Não se pode deixar de notar,
porém, que os aspectos indicados
apenas são considerados positivos na medida em que representam avanço, ainda que pouco
expressivo, na direção da observância aos critérios de homogeneidade propostos. Ocorre que
esse pretenso avanço manteve,
como base, o mesmo modelo inflexível de separação dos credores em classes, de modo que
os benefícios apontados apenas
existirão se confirmadas as suposições no sentido da homogeneidade entre os interesses das
micro e pequenas empresas credoras, que pertenceriam à classe dos quirografários e seriam
fornecedoras do devedor. E, ainda que tal hipótese seja confirmada, a nova classe representará
progresso mínimo em um sistema
que permanece insatisfatório.
As modificações promovidas pela Lei Complementar nº
147/2014 no art. 41 da Lei de Recuperação de Empresas, ademais, suscitaram dúvidas quanto
à aplicação do cram down, mecanismo disposto no art. 58, §§
1º e 2º, do diploma que permite ao magistrado superar o veto
de classe de credores e homologar o plano de recuperação apresentado se houver sido lograda
a aprovação por mais da metade
do valor dos créditos presentes à
assembleia geral de credores, independentemente de classes; se
ao menos uma (existindo apenas duas classes) ou duas classes
24 I Jornada de Direito Comercial, Brasília, Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2013, p. 55, disponível in http://www.cjf.jus.
br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/LIVRETO%20
-%20I%20JORNADA%20DE%20DIREITO%20
COMERCIAL.pdf [14-07-2014]
Recuperação de Empresas – Lei nº 11.101, de 09 de
fevereiro de 2005, Rio de Janeiro, Forense, 2009,
p. 293.
25 J. Saddi, Comentários aos arts. 41 a 46, in Osmar
Brina Corrêa-Lima e Sérgio Mourão Corrêa Lima
(coords.), Comentários à Nova Lei de Falência e
Revista Comercialista
46 Doutrina
(havendo três classes, até então)
houver(em) concordado com o
plano; se houver ocorrido a aprovação do plano por mais de um
terço dos credores da classe destoante e, por fim, se não houver
tratamento diferenciado entre os
credores dessa classe, exigindo-se o preenchimento cumulativo
de tais requisitos.
Conquanto possa o legislador
ter se omitido em operar mudanças no mencionado art. 58, conferindo-lhe clara conformidade
em relação ao disposto no art. 41,
deve-se esclarecer que inexiste,
atualmente, efetiva contradição
entre esses dispositivos, de modo
que, havendo a aprovação do plano por duas das quatro classes de
credores, observados os demais
requisitos legais, inclusive o voto favorável de mais de um terço
dos credores nas classes que rejeitaram a proposta, o juiz poderá
conceder a recuperação judicial
pleiteada. Com efeito, é essa a interpretação que parece mais correta, por atender aos propósitos
elencados pela Lei em seu art. 47.
4. Outras modificações
As demais alterações operadas pela Lei Complementar nº
147/2014 que se inserem no âmbito do presente estudo, ou seja,
a redução do limite imposto à remuneração do administrador judicial ao patamar de 2% (art. 24, §
5º da Lei nº 11.101/2005), a inclusão de um representante indicado
pela classe de micro e pequenas
empresas no comitê de credores
(art. 26, IV do diploma), a redução
de prazo mínimo a ser observado após a concessão de recupeRevista Comercialista
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
ração com base no plano especial
para se requerer nova recuperação (art. 48, III da legislação) e a
concessão de prazo superior no
parcelamento de débitos fiscais
(art. 68, par. único do diploma),
igualmente, decorrem das principais modificações realizadas no
diploma concursal, já abordadas,
ou consistem em simples estabelecimento de regras mais favoráveis às empresas referidas, sem
qualquer transformação efetiva na orientação do tratamento a
elas dispensado, sendo prescindível análise mais profunda nesse ponto.
porte na recuperação judicial, tratando-se, porém, em perspectiva
otimista, de mero aperfeiçoamento de dispositivos insuficientes e
ineficazes, provavelmente incapaz de atribuir à disciplina examinada a relevância que deveria ter.
Essa visão é reforçada, ainda, pela existência de preocupantes imprecisões no texto legal, como
apontado. Eis, em conclusão, a funesta resposta para a pergunta inicialmente formulada: estagnação.
5. Observações finais
Realizada a análise sobre o tratamento dispensado pela Lei nº
11.101/2005 às microempresas e
empresas de pequeno porte na recuperação judicial após o advento
da Lei Complementar nº 147/2014,
resta responder ao questionamento proposto no título deste artigo, sobre se as mudanças
promovidas no diploma concursal
consistiriam em progresso ou retrocesso. Nesse tocante, entende-se que o legislador perdeu valiosa
oportunidade de modificar estruturalmente a recuperação judicial
das micro e pequenas empresas,
tornando-a mais adequada à realidade econômica destas e solucionando a notória ineficácia do
mecanismo, bem como deixou
de operar imprescindível flexibilização das classes de credores,
observando critérios de homogeneidade. Nota-se, portanto, que
houve melhoras pontuais no tratamento legal dirigido às microempresas e empresas de pequeno
* Gustavo Lacerda Franco
Bacharel em Direito e Mestrando
em Direito Comercial pela
Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo. Membro
do Conselho Editorial Discente da
Revista Comercialista.
47
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
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Revista Comercialista
48 Doutrina
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
Alienação fiduciária
de bens essenciais à
atividade da empresa em
recuperação judicial: breves
apontamentos críticos
Por Talitha Saez Cardoso*
Introdução
No âmbito do direito comercial
moderno, sobretudo em matéria de mercado financeiro e de
capitais, subsistem institutos
históricos, como a fidúcia, ainda que observadas naturais modificações ao longo do tempo.
Nesse sentido, o presente artigo
visa a analisar os efeitos da recuperação judicial sobre os bens
de capital essenciais à atividade da empresa em crise, quando
tais bens constituírem objeto de
alienação fiduciária em garantia.
Assim sendo, faz-se necessário, em um primeiro momento,
examinar separadamente a alienação fiduciária e a recuperação
judicial, nos limites do escopo do trabalho, para em seguida
apresentar julgados referentes a
tais matérias, assim como ponRevista Comercialista
tuais divergências na jurisprudência concernente ao tema
em questão.
A fidúcia, cuja origem remonta ao direito romano, baseia-se em
uma visão de propriedade individual e absoluta. A recuperação judicial da empresa em crise, por sua
vez, foi incorporada recentemente ao regime falimentar brasileiro com a finalidade de viabilizar as
relações econômicas no capitalismo contemporâneo e, em alguma
medida, foi organizada de modo a
relativizar as categorias tradicionais do direito privado.
Diante disso, mais do que um
reconhecimento da proximidade entre o direito civil e o direito comercial, dada a unificação
do direito privado pelo Código Civil de 2002, é evidente a influência recíproca entre eles. Com isso,
o presente tema demandará, inicialmente, uma breve análise das
origens do instituto da fidúcia,
da natureza do negócio fiduciário, da propriedade fiduciária no
ordenamento jurídico brasileiro,
da relação entre os contratos de
alienação fiduciária e os modernos instrumentos financeiros e,
por fim, examinar seu vínculo com
o instituto da recuperação judicial
das empresas em crise.
Cumpre ressaltar que a utilização do método histórico não almeja conduzir a um exame exaustivo
das origens da fidúcia, de modo
que se pretende apenas expor o
contexto de seu surgimento e desenvolvimento, evidenciando um
lapso temporal no qual se manteve inerte até se restabelecer sob a
forma de alienação fiduciária como um meio de garantia ampla-
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
mente empregado em contratos
financeiros, entre outros.
Uma vez analisados os conceitos fundamentais, é preciso relacioná-los entre si e à luz da Lei n.
11.101, de 09 de fevereiro de 2005
– Lei de Recuperação e Falência –
LRF, a qual trouxe modificações
profundas em matéria de gestão e
liquidação de empresas em crise,
pois, além de instituir a recuperação judicial, elegeu o princípio
da preservação da empresa como norteador de seus dispositivos. Adicionalmente à citação de
julgados relacionados ao tema,
alguns serão tratados individualmente, a fim de se investigar em
que medida a aplicação da LRF é
feita de modo coerente com o sistema de princípios e valores nela
expressos.
Doutrina 49
mercado financeiro, de capitais e
em garantia de créditos fiscais e
previdenciários.
No direito brasileiro, portanto, a alienação fiduciária em garantia é considerada figura típica.
Trata-se de propriedade resolúvel
e limitada ao cumprimento de determinada obrigação que, quando
satisfeita, implica a resolução da
propriedade fiduciária, e, quando
não satisfeita, implica a consolidação da propriedade do fiduciário
ou futuro adquirente2.
À parte das especificidades
permitidas ao contrato de alienação fiduciária, a transferência da
propriedade para o credor constitui uma atribuição comum, sendo importante notar que a eficácia
deste instrumento depende da
tradição do bem, quando móvel,
e do registro do instrumento no
1. Contrato de alienação
competente cartório de registro,
quando se tratar de bem imóvel.
fiduciária
No que se refere ao contrato de
Ademais, em caso de inadimalienação fiduciária, trata-se de plemento ou mora da obrigação
um contrato acessório, por meio garantida, pode o credor vender o
do qual um bem é vinculado ao bem objeto da propriedade fiducumprimento de uma obrigação1. ciária, sendo obrigado a aplicar o
No direito brasileiro, a alienação preço da venda no pagamento do
fiduciária foi introduzida pela Lei respectivo crédito e despesas den. 4.728, de 14 de julho de 1965, re- rivadas da realização da garantia,
guladora do mercado de capitais.
recebendo o devedor o saldo, conCom a Lei n. 10.931, de 02 de forme o caso.
agosto de 2004, alterou-se a Seção XIV da lei anteriormente ci- 1.1. Das origens do
tada, a qual dispõe atualmente instituto da fidúcia
sobre o contrato de alienação fi- O porquê de uma contextualizaduciária celebrado no âmbito do ção histórica do instituto da fidú-
cia reside na ideia de abordar sua
origem de modo não exaustivo,
apenas com o intuito de identificar no direito romano a configuração histórica responsável por
seu surgimento.
A tese de que a fiducia cum creditore corresponde à mais antiga
espécie de garantia real é predominante entre os romanistas. Por
meio da fiducia cum creditore a
propriedade sobre coisa infungível se transferia do fiduciante para
o fiduciário mediante a mancipatio
ou in iure cessio.
Conforme José Carlos Moreira Alves, as partes se obrigavam
por meio do pactum fiduciae, que
atuava como um “pacto resolutivo sob condição suspensiva do ato
translativo dessa propriedade, o
que implica dizer que tal resolução
tem caráter meramente obrigatório, e não real, como sucederia no
direito moderno”3.
Na hipótese de não pagamento do débito garantido, caberia ao credor vender a coisa em
garantia nos termos acordados
no pactum fiduciae e, caso houvesse valor excedente, assegurava-se ao devedor o direito de
receber a diferença4. Conforme
mencionado acima, a atual legislação pertinente à alienação fiduciária em garantia adota operação
semelhante.
Interessante notar que houve um longo período de inércia
do instituto desde seu surgimen-
1 Nesse sentido, conferir Luciano de Camargo
Penteado, Direito das Coisas. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2008. p. 440.
ord.). Contratos nominados. São Paulo: Saraiva,
1995. p. 23.
2 CHALHUB, Melhim Namem. Negócio fiduciário.
Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 109.
3 MOREIRA ALVES, José Carlos. Da fidúcia romana à alienação fiduciária em garantia no
direito brasileiro. In: CAHALI, Yussef Said (Co-
4 MOREIRA ALVES, op. cit., p. 23.
Revista Comercialista
50 Doutrina
to no direito romano. No direito
moderno, a fidúcia foi retomada
a fim de oferecer ao credor outra forma de garantia, mais segura, sem prejudicar a atividade do
devedor, permitindo sua posse do
bem garantido.
1.2. Negócio fiduciário e
propriedade fiduciária
Do negócio jurídico fiduciário advêm ao menos duas relações5,
quais sejam: relação obrigacional
e relação real; respectivamente, a
dívida em si e a transferência da
propriedade.
Quanto à natureza jurídica dos
direitos do devedor-fiduciante e
do credor-fiduciário, Melhim Namem Chalhub explica que devido
à celebração do contrato de alienação fiduciária, o devedor-fiduciante transmite a propriedade ao
credor-fiduciário, ou seja, o devedor se torna proprietário sob
condição suspensiva, tornando-se titular da propriedade plena
ao cumprir a obrigação objeto do
contrato principal6.
A propriedade fiduciária, por
sua vez, é um direito real, que se
distingue dos outros direitos reais de garantia (penhor, hipoteca
e anticrese), pois a propriedade do
patrimônio originalmente do devedor é inserida no patrimônio do
credor, isto é, há uma transmissão transitória ao credor. Assim, a
propriedade fiduciária não apre-
5 Nesse sentido, verificar Luiz Augusto Beck da
Silva, Alienação fiduciária em garantia. Rio de Janeiro: Forense, 1982. p. 21.
6 CHALHUB, op. cit., p. 40.
Revista Comercialista
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
senta um caráter perpétuo, mas
sim temporário.
O Código Civil de 2002 trata
da propriedade fiduciária nos artigos 1.361 e seguintes e, por meio
da Lei n. 10.931, de 02 de agosto de
2004, inseriu no diploma o artigo
1.368-A, resolvendo a controvérsia
a respeito das demais espécies de
propriedade fiduciária, submetendo-as às respectivas legislações
especiais e permitindo a aplicação das regras do atual Código Civil em matérias compatíveis com
as regras especiais7.
A característica comum às espécies de propriedade fiduciária é
a formação de patrimônios autônomos, já que apesar de transferida a propriedade ao credor, o bem
transmitido fiduciariamente não
se comunica com os demais bens
e direitos integrantes do patrimônio do credor.
2. Recuperação judicial
A princípio, o Decreto-lei n.
7.661/1945 regulava o instituto da
falência e o das concordatas preventivas e suspensivas. Após sua
revogação pela LRF, as concordatas preventivas e suspensivas foram substituídas pela recuperação
judicial e se manteve o instituto da
falência.
Vale notar que o Decreto-lei n.
7.661/1945 privilegiava a satisfação
dos credores por meio da liquidação do patrimônio da empresa. O
7 Vale observar também as alterações recentes,
no capítulo referente à propriedade fiduciária, em
decorrência da Lei n. 13.043, de 13 de novembro
de 2014, que modificou a redação do artigo 1.367 e
inseriu o artigo 1.368-B.
avanço significativo trazido pela LRF foi exatamente alterar esse
foco ao objetivar primordialmente a recuperação da empresa em
crise e a manutenção da atividade empresarial. Conforme dispõe
o art. 47 da LRF:
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a
superação da situação de crise
econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora,
do emprego dos trabalhadores
e dos interesses dos credores,
promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função
social e o estímulo à atividade
econômica.
Consoante Paulo Fernando
Campos Salles de Toledo, a recuperação de empresas visa a gerar
resultados a médio prazo e mediatamente, sendo a manutenção
da fonte produtora, dos empregos
e a satisfação dos interesses dos
credores a médio prazo, enquanto, como resultados mediatos, a
preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade
econômica8.
Nelson Eizirik, por sua vez, observa que a redação da LRF vai ao
encontro de manifesta tendência legislativa disposta a oferecer
instrumentos para viabilizar a superação de crises, “no sentido de
salvaguardar a empresa, que tem
uma função social e, por isso, de-
8 CAMPOS SALLES DE TOLEDO, Paulo Fernando.
Recuperação judicial, a principal inovação da Lei
de Recuperação de Empresas – LRE. In: Rev. Adv.,
ano XXV, n.83, 2005. p. 102.
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
Doutrina 51
ve subsistir às crises, em benenão pode jamais se transforfício dos que nela trabalham, da
mar em bunker das instituicomunidade e, muitas vezes, do
ções financeiras. Pelo contrápróprio país”9.
rio, o novo regime falimentar
Importante destacar também
deve ser capaz de permitir a
o parecer aprovado na Comissão
eficiência econômica em amde Assuntos Econômicos, referenbiente de respeito ao direito
te ao Projeto de Lei da Câmara n.
dos mais fracos. (...) A lei de71 de 200310, responsável pela LRF.
ve guardar consonância com a
Dentre os princípios enumerados
realidade social e econômica
no parecer, ressaltam-se a preserda época em que é elaborada,
vação da empresa, a proteção aos
prevendo estímulos a comtrabalhadores, a redução do cusportamentos desejáveis no futo do crédito no Brasil, a retirada
turo. Sobre a tentativa de moldo mercado de sociedades ou emdar a sociedade ao desenho
presários não recuperáveis, a seda lei deve prevalecer o mogurança jurídica, entre outros.
vimento em sentido oposto:
Conforme observado no próo conhecimento desenvolviprio parecer, deve-se atentar aos
do pelas ciências sociais deve
obstáculos gerados pelo confliser integrado à lei, servindoto entre os interesses envolvidos,
-lhe de base. A lei deve espesendo necessária a análise das imlhar o conhecimento do munplicações sociais e econômicas de
do, ao mesmo tempo que deve
forma a se alcançar um ponto de
infundir, na dinâmica social,
conciliação. Nesse tocante, destaos valores sociais prevalecenca-se o seguinte trecho:
tes. O conhecimento do munNesse sentido, nosso trado progride, amplia-se e não
balho pautou-se não apeestará nunca limitado ao círnas pelo objetivo de aumenculo do conhecimento jurídico
to da eficiência econômica
momentâneo11.
– que a lei sempre deve propiciar e incentivar – mas, prinAssim, é evidente o propósito de
cipalmente, pela missão de ampliar a alcance do regime falidar conteúdo social à legisla- mentar brasileiro, considerandoção. O novo regime falimentar -se a modernização das práticas
empresarias e a realidade social e
econômica atual. Com isso, a base do novo regime falimentar ao
se orientar pelo princípio da preservação da empresa, sua função
social e o estímulo à atividade econômica não protege estritamente o
interesse das instituições financeiras, como até então era observado.
Apresentado esse breve histórico e os princípios norteadores
da LRF, é oportuno destacar o dispositivo objeto do presente trabalho e sua relação com a alienação
fiduciária em garantia. Trata-se do
art. 4912, o qual determina que todos os créditos existentes na data
do pedido, inclusive os não vencidos, se sujeitam à recuperação
judicial. Tal regra, contudo, comporta exceções, conforme o §3º,
que enuncia taxativamente os créditos não sujeitos aos efeitos da
recuperação judicial, prevalecendo assim os direitos de propriedade e as condições contratuais
celebradas.
Dentre os titulares de tais exceções está o credor titular de
propriedade fiduciária de bens
móveis ou imóveis, porém, em caso de venda ou retirada de bens de
capital essenciais à atividade empresarial do devedor, deve-se observar o prazo improrrogável de
9 EIZIRIK, Nelson. Interpretação dos arts. 60 e 145
da lei de recuperação de empresas e falência. In:VON ADAMEK, Marcelo Vieira (Coord.). Temas de
Direito Societário e Empresarial Contemporâneos.
São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 637.
lidade, inclusive em incorporações imobiliárias,
ou de proprietário em contrato de venda com
reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e
as condições contratuais, observada a legislação
respectiva, não se permitindo, contudo, durante o
prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art.
6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais
a sua atividade empresarial.”
10 Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=63304>.
Acesso em: 15 de julho de 2014.
11 Parecer de 2004 da Comissão de Assuntos Econômicos, sobre o PLC n. 71, de 2003, p. 11 e 12. Dis-
ponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/
materia/detalhes.asp?p_cod_mate=63304>. Acesso em: 15 de julho de 2014.
12 “Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial
todos os créditos existentes na data do pedido,
ainda que não vencidos. (...) § 3o Tratando-se de
credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador
mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabi-
Revista Comercialista
52 Doutrina
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
suspensão previsto no §4º do art.
6º da LRF13.
Conforme será demonstrado
adiante, o §3º do art. 49 se trata de
dispositivo polêmico e de complexa aplicação, pois apesar da regra
expressa nesse dispositivo, há julgados divergentes sobre o tema.
A partir da análise de tais julgados,
percebe-se que há um conflito entre a regra disposta no §3º do art.
49 e os princípios norteadores expressos no art. 47 supracitado. ção criadora de norma jurídica ao
garantir a coerência da lei com o
sistema de valores que a mesma
pretende defender. Explica ainda
que, se o princípio da preservação
da empresa for aplicado de forma
coerente, a recuperação empresarial se efetiva.
Vale observar que os esforços
no sentido de atender ao princípio da preservação da empresa devem se ater à viabilidade de
manutenção desta, procedendo-se com a liquidação da empresa
2.1. Princípio da
inapta à continuação de suas atividades. Em outros termos, copreservação da empresa
A LRF, ao acolher expressamente mo o risco é inerente à atividade
o princípio da preservação da em- empresária, é necessário o sopepresa, distancia do ordenamen- samento entre a preservação da
to falimentar brasileiro o objetivo empresa e a retirada do mercaestrito de satisfazer somente aos do de sociedades ou empresários
credores, já que a superação da di- não recuperáveis.
ficuldade econômica da empresa é
relevante tanto para a relação de- 2.2. Função social da
vedor-credor, como para o poder empresa
público e a coletividade.
Cumpre neste ponto destacar,
Neste ponto, faz-se necessário ainda que brevemente, a relação
retornar às clássicas teorias con- entre a função social da empresa,
tratualista e institucionalista. Co- diretamente ligada ao princípio da
mo bem ressalta Calixto Salomão preservação da empresa e expresFilho14, a análise a partir de tais sa no supracitado artigo 47, e a
teorias permite uma interpreta- função social da propriedade. Esta
última constitui valor reconhecido
constitucionalmente, conforme
o art. 170 da Constituição Federal15, dentre os princípios gerais da
ordem econômica.
Nesse sentido, Eros R. Grau16
explica que sobre a propriedade dos bens de produção se realiza a função social da propriedade,
uma vez que no sistema capitalista os bens de produção em regime de empresa são assentados em
certo dinamismo, atendendo ao
princípio social da empresa. Deste
modo, o objeto da propriedade se
vincula à busca de interesses coletivos, não somente aos interesses dos proprietários dos bens de
produção.
O princípio da função social
da propriedade atribui ao titular de direito certo o poder-dever
de fazer uso deste direito visando
a benefícios à sociedade em geral. Quando este titular somente não causa efeitos prejudiciais
ou se abstém de promover ações
benéficas ao todo, não significa que cumpre com a função social, já que esta é atendida quando
benefícios reais à coletividade
são promovidos17.
13 “Art. 6o A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e
execuções em face do devedor, inclusive aquelas
dos credores particulares do sócio solidário. (...) §
4o Na recuperação judicial, a suspensão de que trata o caput deste artigo em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta)
dias contado do deferimento do processamento da
recuperação, restabelecendo-se, após o decurso
do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente
de pronunciamento judicial.”
da Constitucional nº 42, de 19.12.2003) VII - redução
das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do
pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as
empresas de pequeno porte constituídas sob as leis
brasileiras e que tenham sua sede e administração
no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional
nº 6, de 1995) Parágrafo único. É assegurado a todos
o livre exercício de qualquer atividade econômica,
independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”
14 SALOMÃO FILHO, C. Recuperação de empresas
e interesse social. In: PITOMBO, Antônio Sérgio A.
Revista Comercialista
de Moraes; SATIRO DE SOUZA JUNIOR, Francisco.
(Coord.). Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/2005. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2005. p. 41.
15 “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem
por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI
- defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de
elaboração e prestação; (Redação dada pela Emen-
16 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na
constituição de 1988 (interpretação e crítica). São
Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 274.
17 GRAU, op. cit., p. 275.
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
2.3. Estímulo à atividade
econômica
Especificamente no que concerne
ao estímulo à atividade econômica no âmbito do instituto da recuperação judicial, cabe tecer breves
comentários, já que a análise econômico-jurídica ultrapassaria o
escopo do presente trabalho.
Dada a evidente importância
do sistema de concessão de crédito como via de estímulo à atividade
econômica, por meio de dados empíricos fornecidos principalmente
pelo Banco Central do Brasil, pode-se demonstrar que a disponibilidade de crédito afeta o nível de
atividade econômica de um país, a
distribuição da renda e riqueza18.
É evidente que a disponibilidade
de financiamentos de longo prazo
concede às empresas a possibilidade de realizar empreendimentos de maior escala, estimulando
o processo de crescimento econômico do país.
Como de fato se observa em
países cujo mercado de oferta de
crédito e de capitais é irrelevante,
o desenvolvimento de empreendimentos resta prejudicado, afetando a capacidade produtiva, a qual
acaba limitada ao autofinanciamento, à oferta de fundos de longo
prazo pelo governo e às captações
externas submetidas aos movi-
18 FERREIRA, Francisco Marcelo Rocha; MEIRELLES, Beatriz Barbosa (org.). Ensaios sobre economia
financeira. Rio de Janeiro: BNDES, 2009. p. 48.
19 ARAUJO, P. Q. de; BORÇA JUNIOR, G. R.;
SANT’ANNA, A. A. Mercado de crédito no Brasil:
evolução recente e o papel do BNDES (2004-2008).
In: FERREIRA, Francisco Marcelo Rocha; MEIRELLES, Beatriz Barbosa (org.). Ensaios sobre economia
financeira. Rio de Janeiro: BNDES, 2009, p. 153.
mentos de expansão e contração
da liquidez internacional19.
3. Análise de julgados
A seguir serão analisadas decisões que põem em xeque as regras que privilegiam os titulares
de propriedade fiduciária no sistema da LRF, o qual propõe contemplar interesses múltiplos, com
o propósito de garantir a manutenção da empresa, do emprego
dos trabalhadores e dos interesses
dos credores.
Em julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG)20, a
empresa em recuperação judicial
(agravante) buscou reverter decisão que indeferiu seu pedido de
extinção da ação de busca e apreensão de veículos dados em garantia a contrato de empréstimo
celebrado com o banco (agravado).
A agravante alegou que o contrato
de empréstimo garantido por alienação fiduciária teria sido substituído pelo plano de recuperação
judicial, levando à novação das
obrigações.
A maioria dos membros julgadores entendeu que o bem alienado fiduciariamente não se
submete aos efeitos da recuperação judicial em consonância com o
§3º do artigo 49 da LRF. Conforme
já mencionado acima, decorrido o
20 Agravo de Instrumento nº 1.0153.08.0832436/001. Comarca de Cataguases. Agravante: Adubos
Santa Maria S/A. Agravado: Banco Itaubank S/A.
Relator: Exmo. Sr. Des. Antônio Bispo. Relator para
o acórdão: Exmo Sr. Des. Maurílio Gabriel. Belo
Horizonte, 28 de outubro de 2009. Disponível em:
<http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/>. Acesso em: 28 ago. 2014.
21 Analogamente a este, cita-se outros julgados de
Doutrina 53
prazo de 180 dias, pode o credor
retirar do estabelecimento da devedora os bens objetos do contrato de alienação fiduciária, mesmo
quando essenciais à sua atividade
empresarial.
A particularidade do presente julgado reside em voto vencido
proferido pelo Des. Antônio Bispo,
o qual entendeu que a lei instituidora da recuperação judicial concedeu um privilégio aos credores
fiduciários, conforme o §3º do art.
49 da LRF, gerando um desequilíbrio patrimonial para a empresa
em recuperação judicial.
Em seu entendimento, apesar de transcorrido o prazo legal
de 180 dias, a apreensão dos bens
garantidos fiduciariamente causaria prejuízo maior, inviabilizando a recuperação da devedora e,
assim sendo, a concretização da
continuidade da empresa deveria prevalecer sobre os efeitos do
contrato de empréstimo.
Os demais desembargadores se
manifestaram no sentido de rejeitar tal entendimento, uma vez que o
prazo estabelecido pela LRF já havia
expirado. Em resultado, foi mantida
a decisão que determinou a expedição do mandado de busca e apreensão dos bens dados em garantia21.
Em contrapartida, é interessante analisar também as decisões
diferentes órgãos, entre eles: Agravo Regimental
nº 2011/0241236-2 (STJ), Agravo de Instrumento nº
1.0035.08.124940-7/002 (TJMG), Agravo de Instrumento nº 0230231-09.2011.8.13.0000 (TJMS), Agravo
de Instrumento nº 0006687-75.2010.807.000 (TJDF),
Agravo de Instrumento nº 867440-6 (TJPR), Agravo de Instrumento nº 0115469-27.2005.8.26.0000
(TJSP), Agravo de Instrumento nº 1.0518.07.1222864/001 (TJMG) e Agravo de Instrumento nº
1.0477.12.000312-4/001 (TJMG).
Revista Comercialista
54 Doutrina
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
que vão de encontro a tal decisão,
como exemplo o julgado do Tribunal de Justiça do Estado de Mato
Grosso (TJMT)22, no qual o credor pretendeu impugnar decisão
favorável a grupo econômico em
recuperação judicial. Tal decisão
obstou a consolidação da propriedade fiduciária do credor sobre os
bens dados em garantia no contrato firmado entre as partes. O
credor, com isso, não teve seu pedido atendido com base no princípio da continuidade da atividade
empresarial23.
Cumpre destacar que os dois
imóveis dados em garantia representavam 35% do faturamento
do grupo econômico em recuperação judicial. Com base nisso, a turma julgadora entendeu
que tais imóveis rurais eram essenciais ao desempenho da atividade da recuperanda, sem os
quais a manutenção da empresa
seria inviável.
Ressalta-se que essa decisão silenciou a respeito do transcurso
do prazo previsto no §4º do artigo 6º supracitado. Não se deve olvidar que, transcorrido esse prazo,
deferir medida que permitisse a
permanência dos bens alienados
fiduciariamente, mesmo quando comprovadamente essenciais à
continuação das atividades da empresa, seria contrário à determinação legal.
Quanto à colisão entre os direitos de consolidação da propriedade e o princípio da continuidade
da empresa, esta decisão nitidamente conferiu preferência à continuação da atividade da devedora
em detrimento dos direitos do
credor fiduciário.
Vale citar outro julgado do
TJMG24, o qual considerou que
quando essenciais ao funcionamento da empresa devedora, os
bens objeto da ação de busca e
apreensão devem permanecer em
sua posse até o julgamento final
da ação. Nos termos do acórdão,
“A paralisação das atividades da
empresa dificultaria o pagamento de sua dívida perante o agravado, podendo atingir também
terceiros, gerando cada vez mais
prejuízos.”
22 Agravo de Instrumento nº 007569560.2012.8.11.0000. Comarca de Sinop. Agravante: Banco Votorantim S.A. Agravadas:
Valegrande Indústria e Comércio de Alimentos S.A. e outro(s). Relator: Des. Orlando de
Almeida Perri. Cuiabá, 22 de agosto de 2012.
Disponível em: <http://www.tjmt.jus.br/jurisprudencia>. Acesso em: 28 ago. de 2014.
no presente trabalho. Destaca-se do acórdão
o seguinte trecho: “Após analisar conjuntamente o RAI 75695/2012 e o RAI 52243/2012,
embora tirados de decisões distintas, assim
considerados pela identidade de partes e de
objeto, reconheço o acerto das decisões singulares ao reconhecer a existência de garantia compartilhada entre o Citibank e o banco
agravante, a continuidade das atividades da
agravada com resultado econômico, a regularidade do plano de recuperação e seu propósito, bem como o interesse social que deve
prevalecer sobre a saga do mercado financei-
23 No acórdão, fez-se uso do termo “princípio da continuidade da atividade empresarial”
entendido como equivalente ao termo “princípio da preservação da empresa” empregado
Revista Comercialista
mentação nos princípios ou regras
nela expressos, criou-se um sistema que, apesar de inovar em seus
princípios norteadores, manteve
os titulares de determinados créditos afastados dos efeitos da recuperação judicial.
Nesse sentido, é possível estabelecer um paralelo com o sistema
anterior, construído exclusivamente com base na relação credor-devedor, ou seja, orientado à
satisfação do credor e liquidação
da empresa em crise.
Deste modo, a LRF, em certa medida, instituiu um sistema
de difícil compatibilização dos diversos interesses envolvidos na
atividade da empresa, ao excluir
certos credores dos efeitos da recuperação, fazendo prevalecer os
direitos de propriedade e os termos contratuais.
Apesar de aparentemente o legislador ter satisfeito o conflito de
interesses por meio da vedação à
venda ou retirada de bens essenciais do estabelecimento do deConclusão
vedor pelo prazo de 180 dias, o
Tendo em vista que há divergên- conflito de interesses não foi sacias a respeito da aplicação da LRF, tisfatoriamente resolvido, como se
nos limites apresentados no pre- pode observar nas decisões antesente trabalho, conforme a funda- riormente citadas.
ro e das suas variantes”.
24 Agravo de Instrumento nº 1.0338.09.
087007-6/001. Comarca de Itaúna. Agravante: Tornearia Peixoto Ltda. Agravada: Sicoob
Centro Oeste Coop Economia Cred Com
Centro Mineiro Ltda. Relator: Exmo. Sr. Des.
Gutemberg da Mota e Silva. Belo Horizonte,
30 de junho de 2009. Disponível em: <http://
www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/>. Acesso
em: 28 ago. 2014.
REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13
Por meio da LRF se objetivou
atender às questões da economia e sociedade contemporânea,
buscando-se um afastamento da
relação binária (credor/devedor) até então vigente. De fato,
a LRF procurou acolher diversos interesses, porém na prática
o instituto da recuperação judicial não atende satisfatoriamente aos interesses dos múltiplos
agentes envolvidos na atividade
empresária.
Tendo em vista também os julgados analisados, entende-se que
a LRF, ao adotar princípios orientados à manutenção da empresa, avaliando-a em seu contexto
econômico e social, mostrou-se
desprovida de regras que efetivamente protegessem os múltiplos
interesses, ocasionando considerável insegurança jurídica.
Em vista das considerações
feitas neste estudo, evidencia-se
a necessidade de revisão das regras da LRF, no sentido de contemplar de fato os princípios
expressos no art. 47. A reestruturação do procedimento de recuperação judicial seria um meio
para se buscar atender aos diversos interesses, com o máximo de cuidado para se alcançar
um equilíbrio entre os mesmos
na prática.
Trata-se, enfim, de uma questão metonímica do direito comercial moderno, já que a relação
lógica e de proximidade entre as
consequências sociais e econômicas da quebra são nitidamente intensas e complexas, assim
como a proposição de mecanismos capazes de equilibrar de fato
Doutrina 55
os diversos interesses das classes
SILVA, Luiz Augusto Beck da.
vinculadas à empresa.
Alienação fiduciária em garantia.
Rio de Janeiro: Forense, 1982.
Referências
CAMPOS SALLES DE TOLEDO, Paulo Fernando. Recuperação judicial, a principal inovação
da Lei de Recuperação de Empresas – LRE. In: Rev. Adv., ano XXV,
n.83, 2005.
CHALHUB, Melhim Namem.
Negócio fiduciário. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição
de 1988 (interpretação e crítica). São Paulo: Malheiros Editores, 2010.
MOREIRA ALVES, José Carlos.
Da fidúcia romana à alienação fiduciária em garantia no direito brasileiro. In: CAHALI, Yussef
Said (Coord.). Contratos nominados. São Paulo: Saraiva, 1995.
PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
SALOMÃO FILHO, Calixto. Recuperação de empresas e interesse social. In: PITOMBO,
Antônio Sérgio A. de Moraes; SATIRO DE SOUZA JUNIOR, Francisco. (Coord.). Comentários à Lei
de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/2005. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2005.
* Talitha Saez Cardoso
Mestranda e graduada pela
Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo.
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