PERFIL Daniel Carnio Costa e Paulo Furtado de Oliveira Filho Os juízes das duas varas especializadas em falências e recuperações de São Paulo apresentam a sua visão sobre temas atuais e controvertidos do direito das empresas em crise Ano 4 - Edição Especial - Direito das Empresas em Crise 2 Sumário REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 5. Editorial 6. Perfil Entrevista com os juízes Daniel Carnio Costa e Paulo Furtado de Oliveira Filho Edição Especial Empresas em crise: 12. Doutrina Artigos acadêmicos sobre o que há de mais atual e relevante O passo seguinte ao Enunciado 57: em defesa da votação nas subclasses. Por Sheila C. Neder Cerezetti O caso OGX e a questão do ajuizamento de recuperação judicial de sociedades estrangeiras no Brasil. Por Paulo Fernando Campana Filho Mercado de Capitais versus Recuperação Judicial: Regulamentação e Segurança Jurídica. Por Daltro de Campos Borges Filho e Thiago Peixoto Alves As recentes mudanças no tratamento dispensado pela Lei nº 11.101/2005 às microempresas e empresas de pequeno porte na recuperação judicial: progresso ou retrocesso? Por Gustavo Lacerda Franco Alienação fiduciária de bens essenciais à atividade da empresa em recuperação judicial: breves apontamentos críticos. Por Talitha Saez Cardoso Revista Comercialista Expediente REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 EDITOR EXECUTIVO PEDRO ALVES LAVACCHINI RAMUNNO CONSELHO EDITORIAL CONSELHO DISCENTE GUSTAVO LACERDA FRANCO PACO MANOLO CAMARGO ALCALDE PEDRO ALVES LAVACCHINI RAMUNNO RODRIGO FIALHO BORGES CONSELHO DOCENTE FABIO ULHOA COELHO JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO MARIANA PARGENDLER SÉRGIO CAMPINHO ARTICULISTAS DESTA EDIÇÃO DALTRO DE CAMPOS BORGES FILHO GUSTAVO LACERDA FRANCO PAULO FERNANDO CAMPANA FILHO SHEILA C. NEDER CEREZETTI TALITHA SAEZ CARDOSO THIAGO PEIXOTO ALVES REPÓRTER DESTA EDIÇÃO GUSTAVO LACERDA FRANCO DIAGRAMAÇÃO RODRIGO AUADA FALE CONOSCO [email protected] A Revista Comercialista – Direito Comercial e Econômico é uma publicação eletrônica trimestral, independente, com o escopo de fomentar a produção acadêmico-científica nas áreas do Direito Comercial e Econômico. Contato (11) 981335813 - [email protected]. Editor: Pedro A. L. Ramunno - [email protected]. Nota aos leitores: As opiniões expressas nos artigos são as de seus autores e não necessariamente as da Revista Comercialista nem das instituições em que atuam. É proibida a reprodução ou transmissão de textos desta publicação sem autorização prévia. Créditos de capa: Montagem feita com fotos de divulgação. Revista Comercialista 3 4 Apoio institucional REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Seja também um apoiador [email protected] Revista Comercialista REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Editorial 10 anos da Lei de Recuperação de Empresas e Falência: é tempo de refletir Em meados de 2005, entrou em vigor a Lei nº 11.101/2005 (LRF), que ensejou profunda modificação no direito concursal brasileiro. Com o advento da Lei de Recuperação de Empresas e Falência, o ordenamento jurídico brasileiro passou a admitir, de maneira inédita, mecanismos criados para tornar possível a efetiva superação da crise empresarial, afastando-se da pobre concepção de que as dificuldades econômico-financeiras da empresa devem levar, necessariamente, à liquidação dos seus ativos. Foram introduzidos os institutos da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial, que visam à reorganização das empresas viáveis em crise, evitando as suas prematuras liquidações. Com a proximidade do aniversário de 10 anos da LRF, tem-se uma excelente oportunidade para refletir sobre a aplicação do direito das empresas em crise no Brasil ao longo de sua vigência. E o escopo dessa reflexão deve ser, precipuamente, evidenciar aspectos da LRF que comportem aprimoramento e fornecer elementos que possibilitem o desenvolvimento da matéria, para além da mera crítica. No atual cenário econômico nacional, em que já se verifica um aumento expressivo na procura pelas soluções do direito das empresas em crise, ganha especial relevância o exercício proposto. Buscando contribuir para esse esforço, a Comercialista apresenta esta edição especial sobre o direito das empresas em crise, que se inicia justamente com uma profunda e técnica entrevista com Daniel Carnio Costa e Paulo Furtado de Oliveira Filho, Juízes das Varas Especializadas em Falências e Recuperações Judiciais da Capital de São Paulo, cujos posicionamentos têm grande influência na formação da Jurisprudência nacional sobre a matéria, pelo número, importância e complexidade dos processos aos seus cuidados. Os magistrados mostram a sua visão acerca de diversos pontos controversos da disciplina, a exemplo dos limites à atuação jurisdicional no processo recuperacional. Os artigos desta edição, além disso, apresentam reflexões de autores com experiência acadêmica e profissional no direito das empresas em crise, discutindo temas relevantes da matéria e propondo soluções para o seu aprimoramento. O artigo de Sheila C. Neder Cerezetti, Professora Doutora do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP , sugere um audacioso próximo passo após o reconhecimento da legalidade da criação de subclasses de credores e a exigência do tra- tamento igualitário dentro dessa subdivisão organizativa promovidos pelo Enunciado 57 da I Jornada de Direito Comercial: a votação do plano e apuração do quórum dentro de cada uma das subclasses. Paulo Fernando Campana Filho, Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra e Doutor em Direito Comercial pela USP, além de advogado com atuação destacada, discorre com propriedade sobre a discussão verificada no caso OGX quanto à possibilidade do ajuizamento de recuperação judicial de sociedades estrangeiras no Brasil, apontando as visões existentes sobre o assunto e a necessidade de reforma da legislação brasileira. Daltro de Campos Borges Filho e Thiago Peixoto Alves, respeitados advogados com atuação em processos concursais relevantes, além de expressiva experiência acadêmica, por seu turno, abordam a necessidade de desenvolvimento do mercado de distress no país, a exemplo do que ocorreu no mercado de capitais brasileiro, indicando fatores que obstariam essa evolução e os benefícios que ofertaria à reestruturação das empresas em crise. Gustavo Lacerda Franco, mestrando em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da USP e membro do Conselho Editorial Discente da Revista Comercialista, em seguida, apresenta as mudanças recentemente promovidas pela LC nº 147/2014 na LRF, apontando, criticamente, os avanços e retrocessos no tratamento dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte, enquanto devedoras e credoras, na recuperação judicial. O artigo de Talitha Saez Cardoso, mestranda pela Faculdade de Direito da USP, por fim, examina a alienação fiduciária de bens essenciais à atividade da empresa em recuperação judicial e a sua compatibilidade com as finalidades da LRF. Espera-se que esta edição especial da Comercialista sobre o direito das empresas em crise, ensejada pelo aniversário de 10 anos da LRF, contribua ao debate acerca de temas controversos da matéria e, especialmente, forneça elementos úteis à imprescindível reflexão dos estudiosos e profissionais com interesse na disciplina, diante da sua inegável importância no desenvolvimento social e econômico do país, principalmente em momentos de crise. Conselho Editorial Revista Comercialista 5 Perfil REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Montagem com fotos de divulgação. 6 Revista Comercialista Perfil REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Entrevista: Daniel Carnio Costa e Paulo Furtado de Oliveira Filho Os magistrados apresentam à Comercialista o seu entendimento sobre temas polêmicos no direito das empresas em crise Por Gustavo Lacerda Franco Comercialista - Ao que parece, o mercado se prepara para enfrentar um ano difícil em 2015. Caso esse cenário realmente se concretize, ocorrendo um aumento expressivo no número de recuperações e falências, o Judiciário estará pronto para atender adequadamente a essas demandas? A quantidade atual de varas especializadas em falências e recuperações judiciais da capital é suficiente? Quais as principais dificuldades enfrentadas no cotidiano dessas varas? Daniel Carnio Costa - Com relação à sua primeira pergunta, a resposta é: infelizmente o Judiciário não tem uma estrutura suficiente para dar vazão à demanda já existente e, menos ainda, a uma vazão substancialmente maior em razão da perspectiva de um cenário de crise em 2015, a estrutura é insuficiente, o número de funcionários é insuficiente e o número de juízes também é insuficiente. Hoje nós temos duas varas de falência e recuperação de empresas aqui em São Paulo. Considerando que na primeira vara, por exemplo, nós temos aproximadamente 1.300 processos principais, o que aparentemente não é muito, mas cada processo principal de falência gera diversos incidentes, sendo que cada um é um processo, tem que ter sua decisão, nós temos em torno de 30.000 processos em andamento para aproximadamente 10 funcionários e um juiz, então, infelizmente, é insuficiente. Eu acho que, já emendando para a segunda subpergunta – sobre se a quantidade de varas é suficiente ou não – eu acho até que a quantidade de varas seria suficiente, se as varas tivessem uma estrutura melhor e se nós tivéssemos, como acontece nas varas cíveis centrais, dois juízes por vara. Então, com 4 juízes e uma estrutura de cartório mais adequada, eu acho que seria suficiente para fazer um bom trabalho, sim, aqui em São Paulo. E a principal atividade que se enfrenta no cotidiano, no dia-a-dia, é justamente a dificuldade que decorre dessa Revista Comercialista 7 8 Perfil falta de estrutura: o processo demora na sua tramitação cartorária, então quando eu determino a expedição de um ofício, algo que poderia ser expedido em um único dia, acaba demorando um mês e não é porque ninguém trabalhou, é porque o escrevente que é responsável pela expedição dos ofícios tem uma pilha enorme de ofícios para fazer, então até que ele chegue nesse, tem que obedecer essa fila de antiguidade, então isso faz com que o andamento dos processos se torne mais lento, mais demorado. Se a gente tivesse uma estrutura melhor e um número maior de juízes, com certeza teríamos muito maior agilidade na tomada de decisões e teríamos também mais agilidade no cumprimento dos atos, das decisões judiciais. Eu tenho utilizado uma técnica de gerenciamento de processo diferenciada justamente para tentar driblar a inefetividade, a ineficiência e a demora no cumprimento dos atos processuais, que eu batizei de gestão democrática de processos. O que eu faço com a gestão democrática de processos: nesses processos falimentares e recuperacionais, que são processos concursais, o juiz tem que decidir diversas questões paralelas, que correm ao mesmo tempo, sob pena de o processo não andar de maneira adequada. Vou dar um exemplo prático: o juiz tem que resolver sobre a questão de arrendamento de alguns imóveis da massa falida, porque esses Revista Comercialista REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 imóveis, embora tenham sido arrecadados, não podem ser vendidos rapidamente, porque existem demandas judiciais que impedem isso. O que fazer com esses imóveis? No modo tradicional, o juiz diria “diga o administrador, digam todos os interessados, diga o comitê de credores, diga o ministério público e após volte para decisão”. Isso demora um ano, porque esse “diga um, diga outro, diga outro” com todas as dificuldades de andamento do processo que o cartório tem, vai demorar um ano para o juiz decidir. E aí, durante um ano nada foi feito, e esse imóvel fica sujeito à invasão, à depreciação, cria problemas urbanísticos, de segurança pública, sanitários, veja ai o Pinheirinho, o imóvel que é de uma massa falida, que não tinha nenhum tipo de destinação, e foi invadido. Aqui no centro de São Paulo a gente encontra também esse tipo de situação, por quê? Porque demorou um ano ou mais para que se pudesse decidir. Então, o que eu faço: eu importei uma ideia que é absolutamente natural na iniciativa privada para a iniciativa pública. Na iniciativa privada, a ideia de eficiência é muito presente, porque eficiência significa lucro, não é? E eles buscam sempre a realização do lucro, mas a eficiência também é princípio constitucional aplicável à iniciativa pública – art. 37 da Constituição Federal diz isso –, e isso vale para o Judiciário também, gestão de processo é gestão públi- ca, de modo que nós devemos também ter essa preocupação com eficiência. Então o que eu faço, eu monto uma pauta de uma reunião, de audiência, com todos os pontos que devem ser discutidos e decididos, marco uma audiência intimando todos os interessados na discussão e decisão daqueles pontos, eles no dia da audiência vêm todos aqui, a audiência é aberta, é pública, a todos os demais interessados, credores, sindicatos, quem mais queira acompanhar o andamento do processo e nessa audiência, então, eu ouço todos os interessados no mesmo momento, consigo deliberar a questão e decidir muitas vezes de maneira consensual, porque tem a oportunidade de fazer os ajustes na decisão para que ela atenda de maneira geral o interesse de todos, inclusive o interesse público, o interesse dos credores. Além disso, você dá muito mais transparência ao processo, as partes entendem como o processo está sendo conduzido, os credores não se sentem apenas parte do problema, mas também parte da solução, eles têm a possibilidade de interferir diretamente no processo decisório, então eles têm uma postura muito mais colaborativa e menos resistente na condução do processo. Você impõe uma fiscalização muito maior e muito mais eficiente em todos aqueles que trabalham no processo, porque as tarefas são determinadas em audiência na frente de todos, então todo mundo REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 fica sabendo qual é a obrigação de cada um e, se alguém não cumprir a sua obrigação, todo mundo vai saber quem é que não está trabalhando direito no processo. E, naturalmente, depois de distribuídas as tarefas nessa audiência, determinando, por exemplo, que seja feita a avaliação, que seja feito isso, que seja feito aquilo, decidindo o que tem que ser decidido para que o processo ande, eu marco uma nova audiência, para algum tempo depois, normalmente um mês, um mês e pouco depois, para fazer o acompanhamento do cumprimento dessas tarefas. Essa forma de gestão de processo tem se mostrado muitíssimo benéfica, contribuindo e muito para a efetividade do processo, para a transparência, a fiscalização, então os processos tem andado muito bem assim. Eu comecei fazendo assim com a VASP e hoje aplico essa forma de gestão com vários outros processos também. Paulo Furtado de Oliveira Filho Bom, a economia realmente não tem sido favorável ao desenvolvimento da atividade empresarial nesse ano de 2014 e se avizinha um ano difícil em 2015. O Judiciário está pronto para atender adequadamente a essa demandas aqui na capital? Eu acredito que sim, mas o número de varas especializadas poderia ser aumentado. Eu acredito que já existem três varas criadas, mas apenas duas instaladas. Então, eu acho que Perfil a instalação da terceira vara da? Pensa-se, no TJ/SP, em alguseria uma medida importante ma mudança nesse sentido? para atender mais adequadaDaniel Carnio Costa - Bom, eu mente aos processos de recu- não sou favorável à criação de peração e falência. Digo isso varas empresariais com falênporque houve uma redução cia e recuperação. Eu acho que do quadro de funcionários das a vara de falência e recuperaduas varas nos últimos anos, ção tem que ser separada da desde que essas duas varas vara de direito empresarial. Eu foram instaladas não houve a sou favorável à criação de vareposição de funcionários e ras empresariais, porque é um evidente que, com uma menor assunto específico, super comquantidade de funcionários, plexo e exige juízes que tenham não se consegue dar a vazão especialização nessa área, mas aos processos com a mesma não acho que a falência e a rapidez. Então nós temos di- recuperação devam estar inficuldade em algumas tarefas cluídas nessas varas, porque relevantes, como, por exem- o processamento da falência plo, a autuação de petições, é complemente diferente dos de habilitações e impugnações processos convencionais. No de crédito, e isso acaba retar- processo civil tradicional – e as dando um pouco o julgamento varas empresariais tratam de desses incidentes. Outra difi- processo civil tradicional – é o culdade enfrentada no cotidia- autor contra o réu, A contra B, no dessas varas é que falta uma processos individuais. O proequipe técnica de economistas cessamento desse tipo de caso e de contadores que poderia é muito diferente de um proauxiliar no exame de alguns as- cesso concursal, como é a fapectos técnicos, econômicos e lência. As rotinas cartorárias da contábeis quando se ajuíza um falência e da recuperação são pedido de recuperação judi- muito diferentes das rotinas cial. Então muitas vezes há ne- cartorárias de um processo cícessidade de um maior tempo vel, de um cartório cível. Então para o juiz analisar esses do- eu acho que não seria adequado cumentos contábeis apresen- termos varas empresariais com tados pelo devedor e, se hou- falência e recuperação, sou favesse um assessoramento por vorável a criarmos varas emparte de uma equipe técnica, presariais e, ao lado delas, ou esse exame seria mais rápido. sem prejuízo, também termos as varas de falência e recuperaComercialista - V. Exa. seria ção, que é uma especialização favorável à conversão das varas dentro da especialização. especializadas em falências e recuperações judiciais em varas Paulo Furtado de Oliveira Filho empresariais, a exemplo do que Olha, particularmente, eu acho ocorreu com a Câmara Reserva- que deve haver uma especialiRevista Comercialista 9 10 Perfil zação em matéria empresarial, ou seja, eu defendo que haja a instalação de varas empresariais na comarca da capital e até em algumas comarcas do interior de maior relevância, como Ribeirão Preto, Campinas. Seriam várias varas especializadas em direito empresarial regionais. Então, uma vara de Campinas, por exemplo, cuidaria de toda a região de Campinas, como Valinhos, Vinhedo e Indaiatuba. A vara de Ribeirão Preto cuidaria da grande região de Ribeirão Preto. Agora, me parece que uma vara empresarial aglutinando toda a matéria de direito empresarial e mais o direito falimentar, hoje, não seria uma medida interessante. Acho que seria mais prejudicial para o bom funcionamento das varas de recuperações e falências. Eu acredito que se possa manter separadas essas duas varas, uma ou algumas varas especializadas em direito empresarial e, paralelamente, varas especializadas em falência e recuperação. Alternativa seria a vara especializada em falência e em empresarial, mas com uma maior quantidade de juízes, como se fossem as varas cíveis. Mas acredito que hoje, com apenas um juiz auxiliar, não seria suficiente. Acho que deveria haver um maior número de juízes auxiliando as varas empresariais com ampla competência. Acho que o ideal seria ter varas especializadas em recuperação e falência e varas empresariais com a competência do restante do direito emRevista Comercialista REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 presarial, todo o Código Civil, do direito de empresa, títulos de crédito, S/A e propriedade industrial, mais ou menos como a competência das Câmaras Reservadas. Comercialista - O número de arbitragens tem aumentado a cada ano no Brasil, o que se costuma atribuir à ineficiência ou ausência de especialização do Poder Judiciário para apreciar determinadas causas, especialmente no âmbito do direito empresarial. Como V. Exa. enxerga essa questão? Quais são os limites de apreciação de matérias referentes a processos de recuperação e falência em arbitragens? Daniel Carnio Costa - Veja, o crescimento da arbitragem, como uma forma alternativa de resolução de conflito, se deve à ineficiência em geral do Poder Judiciário, que normalmente decide com atraso, é lento e tem um custo de tramitação, além de as causas não serem julgadas por pessoas especialistas, normalmente, naquelas áreas muito especificas. Por isso se diz que a arbitragem teria uma vantagem com relação à jurisdição convencional. Aos poucos, essa ideia vem mudando, especialmente naqueles locais, naqueles estados onde você já tem varas especializadas. Então, o Judiciário tem dado respostas extremamente técnicas, com juízes extremamente especializados nas áreas empresariais, que são objeto de julgamento, e tem se mostrado mais barato do que arbitragem, que hoje, de modo geral, é muito cara para ser feita. E também o mito da celeridade da arbitragem é algo que vem sendo relativizado, porque hoje, vou falar por São Paulo, é possível que você tenha uma questão empresarial, em um caso individual, julgado em um ano, um ano e meio, com trânsito em julgado, inclusive já com recurso julgado pelo Tribunal de Justiça. Então eu vejo assim, que a arbitragem teve um boom inicial, mas na medida em que o Poder Judiciário vai se aparelhando para resolver essas questões empresariais de maneira mais segura, de maneira mais técnica e mais rápida, vai haver um equilíbrio entre essas duas formas de solução de litígio. E não há nenhum tipo de limite especial para arbitragem na recuperação judicial, porque a empresa em recuperação judicial é uma empresa em funcionamento, gerida por seus administradores e continua atuando no mercado. Portanto, se ela contratou cláusula de arbitragem em algum contrato que ela fez, deve ser observada a arbitragem para resolução daquela questão de direito material, resolvida naquele contrato. Resolvida a existência do crédito e a existência do valor, ok, se inclui no processo de recuperação. Paulo Furtado de Oliveira Filho Eu acho que essa tendência de conflitos empresariais serem solucionados por meio de arbitragem acabou de certa maneira diminuindo com a espe- REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 cialização do Tribunal. Então, no momento em que o Tribunal criou Câmaras especializadas em direito empresarial, com integrantes efetivamente especializados, dando soluções técnicas adequadas e em tempo razoável, com a mesma celeridade de uma solução arbitral, eu acho que essa tendência de se buscar arbitragem acabou diminuindo. Eu ouvi até de alguns advogados que eles, diante dos julgamentos das Câmaras Empresariais do Tribunal, estavam revendo a anterior diretriz de ter cláusulas compromissórias, cláusulas arbitrais nos contratos. Eles estavam preferindo, muitas vezes, deixar que a solução fosse ao Poder Judiciário, porque era tecnicamente boa a solução, em tempo rápido e menos custosa. Então, me parece hoje que essa especialização do Poder Judiciário mostrou que o Judiciário tem capacidade de dar resposta rápida e tecnicamente adequada a esses conflitos empresariais. Com relação aos limites, acredito que não haja impedimento de solução arbitral para questões relativas a devedores em recuperação e a massas falidas. Recentemente, eu acabei apreciando uma ação para anulação de um laudo arbitral e a massa falida era parte nessa ação. Acabei julgando improcedente a ação, reconhecendo a competência para apreciar a ação de nulidade porque havia a massa falida no polo passivo e acabei prestigiando a sentença arbitral, pois entendi que não estavam presentes os requisitos para anulação da sentença. É o caso da Imbra, GP Investimentos perdeu a arbitragem e pediu a anulação. Caso muito interessante. Comercialista - Para V. Exa., a lei nº 11.101/2005 apresenta coerência entre seus princípios, dispostos especialmente no art. 47 do diploma, e suas regras? Quais dispositivos do diploma, em sua visão, deveriam ser reformados com maior urgência pelo legislador? Estaria entre esses dispositivos o art. 83 da lei, que estabelece a classificação dos créditos na falência e é criticada por alguns autores? Daniel Carnio Costa - Veja, eu acho que de maneira geral os princípios que orientam a aplicação da lei 11.101 são coerentes com as suas regras. A ideia da recuperação judicial, basicamente, é preservar os benefícios decorrentes da atividade empresarial saudável, benefícios econômicos e sociais. Toda a atividade que se tem no processo de recuperação judicial deve ter como finalidade isso, preservar os benefícios econômicos e sociais que decorrem da manutenção da atividade empresarial saudável, viável. Eu acho que o problema maior não está especificamente nas regras da lei e sim na forma como se interpretam essas regras e na forma como elas são aplicadas. Eu tenho uma teoria que eu venho desenvolvendo acerca desse tema chamada teoria Perfil 11 da superação do dualismo pendular. O Fábio Konder Comparato cunhou essa expressão “dualismo pendular” quando identificou aquele fenômeno de oscilação do pêndulo de proteção legal. Algumas legislações protegem mais os interesses dos credores, outras dos devedores, e esse pêndulo de proteção vai variando conforme o tempo, em um mesmo país, ou conforme as legislações de países diferentes. Eu acho que a lei 11.101 representa uma superação desse dualismo pendular. Não se trata de defender os interesses do credor, nem se trata de defender os interesses do devedor, trata-se de proteger os benefícios sociais e econômicos que decorrem da atividade empresarial saudável. Esse deve ser o objetivo, o norte na aplicação dessa lei, e é assim que nós devemos interpretar esses artigos legais. Vou pegar um exemplo concreto: Qual deve ser o papel do juiz na análise da documentação que instrui a petição inicial de um pedido de recuperação? A lei impõe que vários documentos contábeis e comerciais constem ali, como balanço, projeção de faturamento, tudo mais. Tradicionalmente, a Jurisprudência vem dizendo que o juiz não deve analisar o mérito daquela documentação, ele deve apenas fazer um “check list” da presença daqueles documentos e cabe à assembleia geral de credores analisar se aquela documentação reflete ou não a realidade da empresa, se ela é Revista Comercialista 12 Perfil viável ou não. Eu já penso que não é a melhor interpretação. A melhor interpretação é aquela segundo a superação do dualismo pendular, que prestigia o atingimento da finalidade do sistema dentro do qual se inclui essa relação de direito material. Qual a finalidade da recuperação, não é preservar os benefícios sociais que decorrem da atividade empresarial saudável? Ok, é isso que eu tenho que fazer. Então, se eu interpretar que devo fazer apenas o “check list”, corro o risco de deferir o processamento de uma recuperação a uma empresa cujos documentos demonstram a evidente inviabilidade. E qual é o sentido de eu deferir o processamento para uma empresa evidentemente inviável, que não tenha atividade, não gera empregos, não circula bens ou receitas, não gera recolhimento de tributos, não produz bens ou serviços de utilidade, qual é o sentido, se é justamente tudo isso que eu pretendo garantir com o processo de recuperação e ela não produz nada disso e os documentos mostram isso? Então qual é a minha interpretação desse artigo: o juiz deve olhar, sim, o conteúdo dessa documentação e, se ele identificar uma evidente inviabilidade, ele deve indeferir o processamento da recuperação judicial, o indeferimento do processamento da recuperação judicial. Veja, ele não tem que discutir viabilidade, porque viabilidade é um conceito difícil, eu não Revista Comercialista REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 posso afirmar se a empresa é viável, mas eu consigo identificar se ela é absolutamente inviável, como, por exemplo, alguns casos que eu já tive de empresas que pedem recuperação e elas só existem no papel, a empresa está fechada há dois, três anos, não tem empregados, não produz nenhum produto, nem serviço, não recolhe tributo, ela apenas tem dívidas e quer usar o processo de recuperação como uma forma de garantir ou de criar um ambiente favorável à renegociação dessas dívidas em favor do empresário, do devedor, e não em função do atingimento do objetivo da recuperação. Eu penso que o problema da lei não são os seus artigos, as suas regras, é a forma como a gente vem interpretando, a gente está sempre preso nesse dualismo pendular, “ah, eu vou interpretar aqui mais em benefício do credor ou do devedor?”. Nada disso, eu vou interpretar em benefício do objetivo final desse sistema de recuperação judicial. Há várias outras aplicações práticas, vou dar mais um exemplo: essa criação da nova classe, da classe quatro, de micro e pequenas empresas. Surge a dúvida: foi criada essa nova classe, mas não se alterou o artigo de lei que fala do “cram down”, que diz que o “cram down” pode ser aplicado com aprovação em duas classes, só que em duas de três. Agora, ele continua falando em duas classes, mas nós temos quatro. Como eu devo interpretar isso, devo dizer que a aprovação só em duas já é possível o “cram down”, preenchidos os requisitos legais, ou devo entender que tem que ser aplicado, aprovado em 3? Porque bateu na trave, aquela ideia. Veja, você pode aplicar várias técnicas de interpretação e chegar a vários resultados diferentes, todos eles juridicamente sustentáveis, mas qual é a melhor interpretação? Segundo a teoria da superação do dualismo pendular, é aquela que prestigia a finalidade do instituto, que é preservar os benefícios sociais e econômicos decorrentes da atividade empresarial. Então se eu tenho uma empresa que é viável e eu tenho a possibilidade de preservar esses benefícios todos que o processo busca, eu vou interpretar de maneira a facilitar a concessão da recuperação. Então, duas classes já é o suficiente para o “cram down”. Esses são exemplos de como a gente aplica essa teoria. Eu acho que é muito mais como você aplica do que a lei propriamente dita. Quanto ao art. 83, não vejo necessidade de reforma, eu vejo uma necessidade de reforma na mentalidade dos aplicadores. O Brasil tem mania de querer mudar a lei antes de aplicar a lei. Então, vamos aplicar a lei na sua inteireza, não há necessidade de se mudar a lei. É claro, ajustes pontuais para evitar discussões jurisprudenciais e prestigiar a segurança jurídica são sempre bem-vindos, mas são ajustes de sinto- REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 nia fina, não há necessidade de se mudar a lei, de se criar uma coisa diferente, vamos aplicar o que a gente tem. Paulo Furtado de Oliveira Filho Acredito que há coerência entre os princípios que estão previstos no art. 47, sendo difícil fazer com que esses princípios do art. 47 fiquem realmente em harmonia, já que ele fala em preservação da atividade empresarial, em preservação dos interesses dos credores, preservação dos empregos, quer dizer, é difícil aplicar, conseguir dar harmonia a todos esses princípios, que muitas vezes são conflitantes, porque para preservar a atividade empresarial, para que ela possa ser lucrativa, eu vou ter que prejudicar um determinado número de empregos, vai ter que haver uma redução do número de empregos, para que ela possa aumentar o fluxo de caixa, conseguir atuar de forma lucrativa. Então, no próprio art. 47 eu acabo enxergando um certo conflito, há um problema na hora da sua aplicação. No caso a caso o Judiciário se vê diante de como fazer a aplicação dos princípios do art. 47, como preservar a empresa, muitas vezes fazendo com que alguns empregos sejam reduzidos, mas a atividade seja mantida e depois, com a atividade lucrativa, novos empregos possam ser retomados. Agora, algumas regras, de fato, acabam conflitando com o disposto no art. 47, por exemplo essa que exige a certidão negativa de débito tributário, o art. 57 que, combinado com o art. 68, diz que a certidão negativa de débitos tributários é uma exigência para concessão da recuperação e o devedor deveria obter um parcelamento nos termos da lei para conseguir a CND. Então, me parece que exigir que haja uma quitação das dívidas tributárias, ou mesmo que ele tenha que fazer um parcelamento, pode levar à inviabilização do princípio maior da preservação da empresa. Outra regra que me parece que acaba beneficiando uma certa categoria de credores é a do art. 49, §§ 3º e 4º, porque ela acaba excluindo certos credores do processo de negociação, os credores financeiros, por ACC, por leasing, eles podem satisfazer seus créditos diretamente, então podem inviabilizar qualquer mecanismo de recuperação da empresa. Eu acho que a inclusão do credor excluído no art. 49, §§ 3º e 4º em uma classe autônoma, própria, seria uma medida importante para que eles participassem do processo de renegociação. E me parece que a lei, a recente lei que instituiu o parcelamento fiscal para empresas em recuperação, também poderia ter sido melhor estabelecida, já que os critérios de parcelamento que ela instituiu – prazo de 7 anos, 84 meses – quando outras leis de parcelamento permitiram prazos maiores, geram uma incoerência. Permite-se que um credor que não está em recuperação possa pagar o passivo Perfil 13 fiscal dele em 180 meses e justamente o devedor em recuperação só pode pagar o passivo em 84 meses? Parece-me que o próprio parcelamento fiscal agora introduzido não está de acordo com o art. 47. Com relação ao art. 83, me parece que não tem nenhum problema em sua aplicação, quer dizer, na falência ele acabou estabelecendo uma nova classificação dos credores, em primeiro lugar, ele colocou os credores trabalhistas até 150 salários mínimos, me parece razoável essa limitação. Depois, colocou os credores com garantia real na segunda classe, acho que até o credor com garantia real de fato merece um tratamento melhor, porque de fato ele tinha uma garantia para receber o seu crédito, ele deve ser colocado acima de outros credores. E colocar o fisco em terceiro lugar eu também não vejo problema, já que o crédito público também é importante. Eu acho que essa classificação não é um problema crítico na lei. Comercialista - Qual a correta interpretação, em sua visão, a ser conferida ao Principio da Preservação da Empresa? Em que medida interesses estranhos aos credores e ao devedor devem ser prestigiados nos processos concursais? Daniel Carnio Costa - Já acabei respondendo essa também. A preservação da empresa deve ser entendida como principio da preservação dos benefícios Revista Comercialista 14 Perfil econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial, e não da empresa em si. Porque se a empresa é inviável, a resposta legal correta para ela é a falência. A falência não é um mal em si mesmo, como a gente costuma imaginar, “a falência deve ser evitada a qualquer custo”. Se a empresa não tem condições de produzir todos aqueles benefícios que nós pretendemos proteger, a resposta para ela é a falência, vamos retirá-la do mercado, assim ela vai abrir espaço para que outra empresa possa ocupar esse espaço e de maneira adequada, produzindo tudo aquilo que a gente pretende que ela produza. Sobre se é possível prestigiar interesses estranhos aos credores e devedores, sim, o interesse maior que deve ser prestigiado aqui não é nem dos credores, nem dos devedores, é o interesse público, o interesse social, é o interesse para o qual existe o processo de recuperação, que não é nem para acertar a vida do devedor, nem para acertar a vida do credor. Credores e devedores devem suportar ônus na recuperação judicial, de modo que a gente consiga atingir o seu objetivo final, que é a preservação daqueles benefícios sociais e econômicos que decorrem da atividade empresarial. Daí uma outra teoria que eu venho desenvolvendo aqui, chama teoria da divisão equilibrada de ônus na recuperação judicial, onde eu digo exataRevista Comercialista REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 mente isso: todos devem suportar ônus para que o resultado final seja atingido. Então os credores devem suportar ônus, eles devem suportar um plano que vai implicar no recebimento de valor menor ou de forma diferente do combinado, e o devedor também tem que suportar ônus, ele não pode se colocar na situação cômoda de dizer “devo, não nego, pago quando eu quiser e como eu puder”, não é assim, ele tem que apresentar um plano factível, que faça sentido econômico, e esse equilíbrio de distribuição de ônus é que vai fazer com que a gente chegue em um resultado de sucesso. Então, se o problema da empresa, da atividade empresarial, é o empresário, que saia o empresário, tire-se então o empresário. Se o problema é o credor, que é relutante e, por isso, tem um voto negativo, injustificado, que impede a concessão da recuperação, que se supere esse voto negativo, como eu fiz no caso das Óticas Voluntários, onde eu declarei abusivo o direito de voto de uma instituição financeira, concedendo a recuperação mesmo contra a vontade desse credor que, sozinho, tinha a possibilidade de vetar a recuperação. Então é possível prestigiar outros interesses? É sim, sendo evidente, aliás, que o interesse maior que deve superar o interesse do credor e do devedor é o interesse social, o interesse público. Paulo Furtado de Oliveira Filho Parece-me que o princípio da preservação da empresa busca a manutenção da atividade, então a atividade gera benefícios, evidentemente, aos credores, ao devedor, mas também deve gerar benefícios aos demais interessados na atividade empresarial, não é? No caso dos empregados, da própria comunidade do município, por exemplo, onde tenha atuação aquela determinada empresa em dificuldade, me parece que esses interesses também deveriam ser levados em conta na hora de se decidir a respeito do plano. Então, outros interesses são relevantes na aplicação do princípio da preservação da empresa, o problema é que muitas vezes esses interesses não estão de certo modo colocados na lei ou os titulares desses interesses não conseguem se manifestar no processo. Por exemplo, como é que uma comunidade ou um município que depende da arrecadação tributária que decorre de uma atividade empresarial pode fazer valer seus interesses no processo de recuperação? Hoje, a lei não prevê isso, essa possibilidade de a própria comunidade, de esses interesses maiores do que o dos credores e do devedor, se fazer representar. Então, parece que, por exemplo, o Ministério Público poderia atuar nesse sentido, tomar uma iniciativa para preservar uma atividade empresarial para beneficiar uma comunidade, mas a lei não permite a iniciativa do Ministério Público, para que ele impetre uma REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 medida de recuperação. Hoje, a iniciativa é exclusivamente do devedor. Então, talvez seja um ponto a ser melhor estudado. Será que a nossa lei deveria também dar legitimidade não só ao devedor, ou ao Ministério Público e mesmo ao credor, ou aos empregados que não sejam credores com uma sentença transitada em julgada, mas que estão vendo seus interesses de empregados sendo violados? Talvez eles pudessem também tomar uma medida de recuperação. Comercialista - V. Exa. entende cabível, no momento da homologação do plano de recuperação judicial aprovado pelos credores, a análise dos percentuais de hair cut, dos prazos de carência e pagamento e de previsões relativas a juros/correção monetária pelo magistrado? Daniel Carnio Costa - Em princípio, não. Todas essas questões que são relacionadas a direito disponível, conveniência e oportunidade devem ser negociadas entre credores e devedores, mas a gente tem que entender que a decisão da maioria vai ser imposta a todos, então não é tão simples assim, “ah, o credor pode inclusive abrir mão do crédito se ele quiser, então ele pode dar 90% de desconto”. Individualmente falando sim, mas quando ele aprova uma cláusula de 90% de desconto ele aprova para a categoria inteira, inclusive para aqueles que rejeitaram. Então, assim, eu acho que o juiz tem que controlar e verificar os contornos legais do plano de recuperação. E ilegalidades têm vários níveis. Tem ilegalidade flagrante, que é aquela onde a cláusula viola diretamente o texto expresso da lei, mas existem ilegalidade mais tênues, como, por exemplo, de que maneira foi construída essa maioria? Como é que ele conseguiu aprovar um plano que tem um hair cut de 98% para pagar em 200 vezes? Como os credores aprovam isso? Então isso tem que ser analisado. Será que foram feitas cessões de crédito fraudulentas, porque credor nenhum em sã consciência faria um negócio desse. Quer dizer, o ônus do devedor é apresentar um plano que faça sentido econômico, porque ser empresário dando um calote em todo mundo, pagando 2% do que você deve em 20 anos, qualquer um é. Então isso não é viável. Nós temos que analisar os contornos legais e a questão do abuso, e isso tudo, a nossa legislação permite. Agora, o mérito efetivamente do plano, em regra, é algo que os credores devem decidir, não o juiz. Perfil 15 juiz deve analisar, muitas vezes, se não há um abuso no plano de recuperação. Então, se por acaso o hair cut, o desconto proposto, o deságio, o prazo de carência, for manifestamente abusivo, ele poderia, eu acredito, fazer essa atuação, fazer essa intervenção judicial no plano. Comercialista - Em que medida a Assembleia Geral de Credores é soberana no exame do plano de recuperação judicial? Caso rejeitado o plano pelos credores, a decretação de falência do devedor é a medida a ser adotada imediatamente pelo magistrado? Daniel Carnio Costa - Então, é uma soberania relativa. A soberania não implica em dizer que o juiz é simplesmente um chancelador da decisão da assembleia. O juiz vai fiscalizar os contornos legais da decisão assemblear. Se a decisão assemblear é ilegal, o juiz não deve homologar essa decisão. Se a decisão é abusiva, o juiz não deve homologar, como qualquer negócio jurídico. O juiz deve fiscalizar a assembleia geral e a decisão da assembleia geral, como fiscaliza qualquer Paulo Furtado de Oliveira Filho - negócio jurídico, que tem que Esse é um ponto muito delica- ter objeto lícito, parte capazes, do, porque aparentemente o objeto previsto ou não defeso conteúdo do plano é elaborado em lei, tem que analisar os vípelo devedor e submetido aos cios do negócio jurídico, erro, credores, então isso seria uma dolo, simulação, coação, fraumatéria eminentemente nego- de, tudo isso o juiz deve anacial e que ficaria exclusivamen- lisar. É nesse sentido que ele te para a decisão dos credores, tem que fazer. Se a assembleia e não submetida à intervenção rejeitou o plano e a decisão não judicial. Porém, acredito que o encontra nenhum tipo de ileRevista Comercialista 16 Perfil galidade ou abuso, a falência é a resposta adequada, não tenho dúvida nenhuma, mas se essa decisão encontra algum tipo de vício, pode o juiz superar a decisão da assembleia por uma outra decisão, por exemplo, determinando a realização de uma nova assembleia ou simplesmente desconsiderando o voto de alguns credores, que seriam decisivos para a quebra ou não da empresa, isso não tem problema nenhum. REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 to de voto, e sendo abusivo o direito de voto, o juiz poderia afastar, até com base no Código Civil, esse voto. Afastando esse voto, poderia considerar aprovado o plano e conceder a recuperação. Ou seja, a soberania da assembleia existiria desde que todos os votos fossem manifestados de forma regular, que não houvesse nenhum voto abusivo, que todos os votos tivessem levado em conta o melhor interesse do credor, e não Paulo Furtado de Oliveira Filho - uma intenção de prejudicar o Eu acredito que o legislador, ao devedor ou de ter um interesse estabelecer que cabe à assem- alheio à satisfação do seu crébleia geral de credores o exa- dito, ou de não considerar que me do plano de recuperação a concessão da recuperação judicial, deu grande poder aos pode ser melhor do que a facredores, mas não subtraiu do lência pra ele. juiz a análise do modo como é exercido esse direito por parte Comercialista - Em sua experidos credores. Então, eu acre- ência na condução de processos dito, com base na doutrina, de recuperação judicial, quais são na experiência estrangeira, na os fatores decisivos no êxito ou legislação estrangeira, que o fracasso da iniciativa? O número judiciário pode superar uma de empresas em recuperação judecisão da assembleia pela re- dicial que superam a crise é maior jeição do plano. Um dos casos do que o de empresas que apenas em que o juiz pode superar adiam a quebra? uma decisão rejeitando o plaDaniel Carnio Costa - Comeno, me parece, é quando há um çando pelo fim: infelizmente exercício abusivo do direito de o número de empresas que se voto por parte do credor. En- recuperam é menor do que as tão, o credor profere seu voto, que quebram. Isso se deve a mas esse voto não tem nenhum vários fatores, mas o principal interesse na satisfação do cré- fator é que, aqui no Brasil, por dito daquele credor. A falência enquanto, quando as empresas será mais prejudicial a ele do procuram a recuperação judique a concessão da recupera- cial, elas já perderam o timing ção, então não há um sentido de fazer isso, elas já são inviáeconômico no voto dele, de veis, elas já estão insolventes, modo que cairia na hipótese elas já estão para falir, então do exercício abusivo do direi- isso acaba apenas adiando a Revista Comercialista quebra. Por vários fatores. Por exemplo, aqui as empresas têm dono. Nos Estados Unidos, as empresas têm acionistas, e o gestor é alguém profissional, contratado para isso, aqui é o dono que gere a empresa e ele tem uma vinculação diferenciada com a empresa, então ele entende que se os negócios vão mal, aquilo é um atestado de incompetência dele, então ele quer resolver, quer resolver, quer resolver e, quando ele procura ajuda, já é tarde demais. O sucesso do processo de recuperação está em acertar o timing de requerer a recuperação, em fazer um plano que seja viável para a recuperação da empresa e, do ponto de vista do processo, o administrador tem que fazer um acompanhamento muito próximo da conduta da recuperanda, tanto do ponto de vista empresarial, quanto do ponto de vista processual. Paulo Furtado de Oliveira Filho Olha, eu tenho uma experiência recente aqui na vara, são só nove meses, mas tenho percebido que em muitos pedidos de recuperação, a descrição na petição inicial é de uma crise que já vem de alguns anos e o pedido de recuperação é feito tardiamente, então na hora de expor os fatos que levaram à situação de crise, já se verifica que a situação de crise não é de agora, que a situação de crise é de mais de ano, então me parece que a demora no ajuizamento da recuperação é um fator decisivo para o fracasso REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 da iniciativa. Ele entra em recuperação quando já não tem mais condições de se recuperar, já está em uma situação de absoluta crise, sem condições de conseguir uma aprovação do plano de recuperação. Outro fator que me parece que tem sido decisivo para o fracasso da iniciativa é, muitas vezes, a falta de diálogo com os credores, a falta de uma melhor aproximação, da apresentação do plano, de uma tentativa de convencer os credores de que aquele plano é viável, de que as informações fornecidas são fidedignas, que elas merecem credibilidade. Então me parece que muitos devedores acham que é simplesmente apresentar o plano e ir para a assembleia, sem que eles tenham que expor, sem que eles tenham que ter a devida transparência na apresentação e na negociação do plano. Muitas vezes é só uma tentativa de suspender ações em andamento, ganhar fôlego e depois tentar uma renegociação, não se busca efetivamente a recuperação, utiliza-se indevidamente o processo para suspender as ações em andamento. Agora, quanto à segunda questão, nessa experiência que eu tive, que foi uma curta experiência, eu não posso afirmar peremptoriamente que o número daquelas que superam a crise é maior do que o das empresas que apenas adiam a quebra, porque eu já me deparei com vários casos em que eles obtiveram a recuperação e estão efetivamente conseguindo preservar a atividade, e outras em que eu vi que realmente foi apenas um adiamento da quebra, mas hoje eu não tenho condições de afirmar com base nos processos que eu já julguei que o número de empresas que estão adiando a quebra é maior do que o daquelas que superam a crise. O sucesso da recuperação eu ainda não consegui constatar se é maior do que o fracasso. Comercialista - Verificando-se que as condições previstas na recuperação judicial para a satisfação de determinado crédito são mais vantajosas do que seriam na falência, é abusivo o voto do seu titular contra o plano apresentado? Quais critérios V. Exa. entende serem aplicáveis para a apuração de eventual abuso no exercício do direito de voto pelos credores em Assembleia? Daniel Carnio Costa - Vamos lá, você vai ter que usar aquela teoria minha da superação do dualismo e da divisão equilibrada de ônus. O abuso do direito de voto pode ser identificado por vários critérios. Um deles é esse critério econômico, o critério do sentido econômico do voto, porque não faz sentido que alguém vote para se colocar em uma situação pior do que ficaria se tivesse votado em sentido contrário. Então, não faz sentido eu votar para piorar minha situação, eu sempre voto para melhorar a minha situação. Se a minha situação na recupe- Perfil 17 ração seria melhor do que na falência, porque na falência eu sou quirografário e vou receber zero e, na recuperação, eu vou receber mais do que receberia na falência, então, em princípio, esse é um voto abusivo, esse é um indicativo de voto abusivo. Mas, ainda que a minha situação na falência seja melhor do que a minha situação na recuperação, eu posso ter o voto declarado abusivo, porque a finalidade do processo é que tem que ser prestigiada, não é o interesse particular de um credor que deve ser prestigiado, e sim o interesse social, o interesse público. Então, se eu, egoisticamente, voto contra o plano porque me recuso a negociar, justamente porque a minha situação na falência é uma situação privilegiada, não é, eu tenho um crédito privilegiado na falência, eu não vou negociar, não me importo, mas a sua atividade é viável, você gera empregos, você produz serviços e produtos de boa qualidade, quer dizer, então por causa de um credor que não quer negociar nós vamos quebrar a empresa no processo de recuperação? Então, esse voto é um voto abusivo porque é um voto que se descola das finalidades do instituto. Então, de novo, divisão equilibrada de ônus: é ônus do credor apoiar um plano factível, é ônus dele, e superação do dualismo pendular, o objetivo é o benefício social e econômico, e não o interesse de um ou de outro. Revista Comercialista 18 Perfil Paulo Furtado de Oliveira Filho Esse é um critério que eu considero objetivo e que me parece que deve nortear o exame da abusividade. Quer dizer, se o devedor apresenta um plano que tem condições mais vantajosas na recuperação do que na falência, o credor não tem sentido, razão econômica, para votar em sentido contrário. Eu não vejo realmente ele ter um direito de voto para satisfazer os interesses dele, que são receber o crédito, continuar a fornecer e, ao mesmo tempo, ele votar no sentido da quebra, votar contra o plano. Eu acho que aí o direito é para ele conseguir obter o fim econômico para o qual foi concedido o exercício desse direito. Qual é? Satisfazer o crédito dele da forma melhor do que na falência. Se ele tem essa situação melhor na recuperação e vota contrariamente à recuperação, me parece que é abusivo. Esse é um critério que eu tenho adotado, acho que já adotei em dois casos. Um levou à quebra, eu afastei a abusividade do voto, porque a situação na quebra para aquele credor era melhor do que na recuperação e, no outro, eu aprovei o plano, porque ele votou contrariamente à recuperação, mas na recuperação ele receberia de forma melhor do que na falência. Eu acredito que essa aferição é difícil, mas como a lei exige várias informações financeiras, econômicas e patrimoniais que o devedor deve apresentar aos Revista Comercialista REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 credores, eu acho que, diante dessas informações, os credores deveriam objetivamente dizer “realmente, estou votando contrariamente ao plano porque, diante desses elementos que eu considero que são verdadeiros, dessas informações patrimoniais, eu verifico que a minha situação na falência é melhor, então meu voto está fundamentado na análise das informações que o devedor me entregou”. Aí a questão: essas informações são realmente confiáveis? Quem presta essas informações? A empresa que é contratada pelo devedor merece credibilidade? Ou em que altura estão essas habilitações de crédito? É por isso que muitas vezes eu vejo que se o devedor tem um assessor financeiro que tem credibilidade, esse é um fator importante, decisivo ao êxito. Isso eu já percebi, assessor financeiro com credibilidade, boa reputação no mercado, auxilia o devedor na hora de obter a aceitação do seu plano, porque quando os credores percebem que o assessor financeiro é alguém de confiança, que tem boa reputação no mercado, passa credibilidade, eles passam a enxergar aquele devedor de uma outra maneira, isso eu percebi também aqui, já ouvi de credores e de administradores judiciais que um bom assessor financeiro também é importante, que tenha boa reputação, os credores costumam ver esse devedor de uma forma mais amigável. Então, é um ponto importante, se essas informações são críveis, fidedignas, se têm correspondência com a realidade, parece-me que elas tem que ser levadas em conta pelo juiz, e os credores deveriam basear o seu voto nessas informações, “olha, diante dessas informações patrimoniais, econômicas e financeiras, eu voto contra e está fundamentado o meu voto, a falência é melhor ou a recuperação será melhor”, e o juiz irá decidir. Comercialista - Quanto à recuperação judicial de grupo de empresas, em litisconsórcio ativo, V. Exa. entende ser possível a apresentação de um plano de recuperação único? Como se daria, nesse caso, a computação dos votos na Assembleia Geral de Credores? Daniel Carnio Costa - Essa é uma questão ainda muito casuística, vai depender de caso a caso. Em princípio, se você tem um grupo de empresas em um único processo de recuperação, o plano tem que ser único ou pode ser único, é um único plano que pode prever obrigações a serem cumpridas pela unidade A, B, C, D, mas é um único plano que vai ser votado. Essa é a minha primeira impressão acerca desse caso. Mas, de novo, é muito casuístico, a gente tem que analisar dentro do contexto do caso concreto. Mas, em princípio, um processo de recuperação com um grupo de empresas, um plano para todas elas, que pode estabelecer obrigações distintas, mas um único plano. Nós não vamos vo- REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 tar separadamente, vamos votar um único plano, não é credor da unidade A, credor da unidade B, credor da unidade C, é credor do grupo, até por isso ela pediu a recuperação em grupo, senão, pedisse individualmente. Se pediu em grupo, um plano só. Paulo Furtado de Oliveira Filho Eu acho que nunca me deparei com um caso em que eu tenha sido obrigado a apreciar essa questão do litisconsórcio ativo, mas eu me recordo que, no caso da Rede Energia, houve o litisconsórcio ativo entre várias concessionárias do mesmo grupo e, salvo engano, era um plano de recuperação único. E, com isso, todos os votos foram computados como se fosse uma única devedora, não é? No caso, em se tratando de um plano que deve servir para a recuperação de todas as empresas, quer dizer, um plano único para a solução de uma crise única, de todo o grupo, parece-me perfeitamente razoável que seja admitido o litisconsórcio ativo, um plano único e uma única assembleia com uma votação unificada, nesse caso específico. Comercialista - Como V. Exa. interpreta a expressão “local do principal estabelecimento do devedor”, no art. 3º da LRE? Daniel Carnio Costa - Essa é questão que varia de legislação para legislação e de tribunal para tribunal, juiz para juiz. Local do principal estabelecimento deve ser interpretado segundo a superação do dualismo pendular, ou seja, qual é a finalidade última do processo? Na falência, a finalidade é arrecadar, alienar, vender e pagar os credores. Então, qual é o principal estabelecimento para a falência? Onde estão os principais ativos, é o principal estabelecimento do ponto de vista econômico da empresa, e onde estão também os livros da empresa, porque é onde vai me permitir fazer a investigação dos seus ativos. Estando os livros em um local e os ativos em outro, a minha tendência é prestigiar aquilo que vai viabilizar o processo de maneira mais eficaz, não é, eu tendo a dizer que é o economicamente mais forte, na falência, que é onde estão os principais ativos da empresa, e não onde estão os livros. Mas, de novo, se você fizer uma pesquisa de jurisprudência, você vai ver decisões em todos os sentidos. No caso da Boi Gordo, por exemplo, os ativos estão lá no Mato Grosso, mas a sede da empresa era em São Paulo e se decidiu que é o centro gerencial o juízo competente para a falência. E acho que foi acertada a decisão, porque nesse caso era o que faria com que o processo se desenvolvesse de maneira mais eficaz, porque aqui nós temos vara especializada, temos uma estrutura muito melhor do que uma cidade no interior do Mato Grosso. Então, acho que a gente tem que interpretar sempre com vistas àquela teoria. Perfil 19 Paulo Furtado de Oliveira Filho Eu sempre entendi que o principal estabelecimento seria do ponto de vista patrimonial, nas falências eu sempre me preocupo em verificar onde efetivamente a atividade é exercida, onde estão os maiores ativos desse devedor, não me preocupo tanto com a questão administrativa, onde é que está a diretoria, acho que isso não é o relevante, ou o principal volume de negócios. Eu sempre achei que o principal estabelecimento para fins de falência seria do ponto de vista patrimonial. E já tive, infelizmente, uma falência que decretei em São Paulo, que a sede era em São Paulo, mas se descobriu que era uma pequena sala em uma rua do centro e o principal estabelecimento dela estava na região de Ribeirão Preto, porque era uma sociedade que era arrendatária de terras. Nessas terras havia plantação de cana e essa cana depois iria ser moída em uma usina para que uma outra empresa exportasse álcool para a China. Álcool e depois acho que açúcar. Essa quebra decretada em São Paulo, ao meu ver equivocadamente, porque na época eu não tinha nenhum elemento para descobrir que a atividade principal era lá, o credor pediu a falência aqui, informou que a sede era aqui, foi revel o réu, não contestou, eu decretei a falência. Só depois o síndico descobriu que os ativos principais, que o patrimônio realmente relevante da devedora ficava lá na região. Então isso Revista Comercialista 20 Perfil dificultou muito a arrecadação dos ativos. O síndico ter que se deslocar daqui e fazer toda a arrecadação no interior. Então acho que esse é um critério importante: onde é que estão os principais ativos do devedor? Esse é um critério relevante para definir o principal estabelecimento. Recentemente, em um caso de recuperação, não de falência, havia a recuperação da Ajax, uma indústria que pediu recuperação aqui em São Paulo. Examinando a inicial, dava para ver que 95% das ações contra ela haviam sido propostas em Bauru, 95% dos funcionários trabalhavam em Bauru, 95% dos protestos em Bauru, onde se fornecia energia elétrica para ela era em Bauru, quer dizer, a atividade principal dela era em Bauru, então eu entendi que competente era o juízo de Bauru para processar a recuperação, reconheci a incompetência de ofício e enviei para Bauru. Comercialista - A LRE estabelece, em seus artigos 49, § 1º e 59, que os efeitos da novação recuperacional não se estendem aos coobrigados do devedor. Em sua visão, a orientação manifestada nos dispositivos legais mencionados é correta? Daniel Carnio Costa - É, eu acho que é correta e, inclusive, o STJ agora em sede de recursos repetitivos afirmou isso, pacificou essa questão. Eu acho que é correto, de novo, uma coisa é a atividade empresarial e a preservação dos benefícios Revista Comercialista REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 econômicos que dela decorrem, outra coisa é a proteção dos interesses do devedor. Se você pretende estender a coobrigados a proteção legal da recuperação, você está protegendo interesses particulares do devedor, que nada têm a ver com a preservação da atividade empresarial. Então, em princípio, acho que é correto, sim. Normalmente, o que acontece na prática é que o coobrigado é o próprio dono, diretor da empresa, e você está pretendendo aqui prestigiar a proteção do patrimônio particular do devedor, do diretor da empresa, o que isso tem a ver com o desenvolvimento da atividade da empresa, não é? Não tem nada ver, então eu acho que está correto. Agora, claro, vai gerar problema em regresso? Vai, porque a lei diz que você vai voltar em regresso pelo valor aprovado no plano, não pelo valor que você pagou, a regra do jogo é essa, simples. É o ônus da atividade empresarial. responsabilidade dos coobrigados, não é errada. Aspectos como a dificuldade no regresso e na gestão da empresa pelo controlador que está respondendo como garantidor podem até impactar realmente na preservação da empresa, não é? Se ele realmente for obrigado a pagar a dívida para o credor, ele teria o direito de regresso contra a devedora, realmente isso poderia causar um impacto, mas ele teria na medida em que ele propôs o pagamento no plano, esse seria o limite do direito de regresso, não é? E realmente, não conheço outros ordenamentos para dizer se há um outro posicionamento, uma possibilidade de estender a novação, mas essa é uma questão relevante, quanto à administração da empresa pelo garantidor. Outro dia até, em uma audiência, um sócio comentou “não está querendo fazer acordo porque quer que eu pague a dívida como pessoa física, estou sendo executado”, e falou “o banco disse que se eu fizer uma Paulo Furtado de Oliveira Filho - proposta melhor na execução Acho que se o objetivo da lei individual, ele até pode coné viabilizar a recuperação da cordar com a proposta de paempresa, tentar manter a ati- gamento”, quer dizer, pode ser vidade empresarial, eu acho um abuso por parte do credor, que não há razão para que se condicionar a sua manifestação beneficie o coobrigado do de- favorável ao plano a um benevedor. Na verdade o objetivo da fício que seria proporcionado lei deve ser tentar preservar a pelo devedor, pelo coobrigado. atividade empresarial, e não o Outro dia, em um caso, na reempresário que prestou uma cuperação da Rede [Energia], garantia, que geralmente é o havia no plano a previsão de sócio, o controlador. Então me que quem aceitasse uma deterparece que essa orientação de minada forma de pagamento já manter as garantias, manter a abria mão do aval que o sócio REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 havia dado. Então, isso estava no plano, e acho que quem recebia à vista, recebia 25% e, evidentemente, abria mão da garantia. E quem também recebesse todo o valor devido, recebia em 20 anos, mas também abrindo mão das garantias. Isso acabou sendo aprovado. Comercialista - O prazo de 2 anos para o encerramento do processo recuperacional, disposto no art. 61 da LRE, é adequado ao sistema concursal brasileiro? Daniel Carnio Costa - Eu acho que é. O prazo de dois anos, pode ser de três, pode ser de um, pode ser de um e meio, aí é uma questão de critério legal. Esses dois anos são para fiscalização judicial do cumprimento do plano. O legislador poderia dizer que é três, é dois. Eu acho que dois é um prazo razoável para que se fiscalize se as obrigações assumidas no plano estão sendo cumpridas. Agora, o grande problema é que aqui no Brasil não se encerra a recuperação. O prazo é de dois anos, mas você tem recuperação há cinco anos, seis anos, desde 2005 até hoje, que não se encerra nunca, porque o credor não quer e o devedor também não quer. O devedor quer ficar pendurado no processo de recuperação porque ele se sente mais protegido, quando não é essa a ideia legal. Então, passados dois anos, cumpriu todas as obrigações? Cumpriu, um abraço. Eu encerro, ainda que não tenha havido o cumprimento de todas, porque você tem obrigação de 10, 20 anos. Eu não vou ficar 20 anos fiscalizando, eu vou ficar dois anos, até porque não tem sentido algum. Se ele descumprir alguma obrigação depois do prazo de dois, qual a consequência? Nenhuma. A consequência é que o credor vai ter que executar individualmente isso daí, não há mais a possibilidade de conversão da recuperação em falência, não tem sentido você manter o processo depois de dois anos. Então, depois de dois anos, cumpriu? Cumpriu, encerra o processo de recuperação e a empresa vai andar com as suas próprias pernas. Paulo Furtado de Oliveira Filho Eu tenho visto na prática que os processos têm se alongado além do prazo de dois anos e, pelo conteúdo dos planos apresentados, também me parece que não é um prazo suficiente para a recuperação. Enfim, nós temos um prazo que não tem muito a ver com a realidade econômica. O que têm feito os credores, os devedores, por força até de uma interpretação do Tribunal, é estabelecer alguns pagamentos pelo menos dentro do prazo de de 2 anos de supervisão, para que o plano possa ser aprovado, só que esses planos se alongam por 5, 10 anos, às vezes 15 anos. Eu sou favorável ao encerramento, apesar de estar fora da realidade econômica, acho que se ele se mostrar ao menos capaz de iniciar o cumprimento do plano, de dar um adequado cum- Perfil 21 primento do plano nos dois anos, ele que depois caminhe com as próprias pernas realmente. Encerra-se o processo e, daí, uma vida normal, um crédito como outro qualquer, se ele descumprir o plano, está sujeito à falência. Mas, se o objetivo da lei fosse tentar que ele ficasse sob supervisão durante todo o cumprimento do plano, talvez não fosse nem necessária a fixação de um prazo. Acho que tem que ter um prazo, realmente. Talvez esse prazo tivesse que ser um pouco maior diante da realidade econômica atual, mas sem prazo não faz sentido. Acho que talvez um prazo de 4 anos, hoje, fosse mais adequado, não é? Mas eu tenho acompanhado, o Dr. Daniel tem decidido que deve ser encerrado no prazo de 2 anos, tentar manter essa linha, até para que alguns devedores não abusem, porque alguns querem se manter sob o guarda-chuva da recuperação, protegidos para sempre, porque então eles não sofrem as penhoras individuais, os credores têm que toda hora se dirigir ao juiz da recuperação para pleitear os seus créditos e eles trabalham com essa existência da recuperação há 4, 5, 6 anos. Aí os credores tentam receber na execução individual, eles suscitam conflito no STJ e o STJ diz que cabe ao juiz da recuperação verificar se aquele crédito está ou não sujeito ao plano e se o pagamento deve ser feito ou não de acordo com o plano, eles não sofrem nenhum efeito das execuções individuais. Existe Revista Comercialista 22 Perfil REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 também a questão do eventual interesse dos advogados e administradores judiciais na manutenção do processo. adiantava nada. Agora, a tendência é que sejam mais utilizados, pela ampliação que essa última reforma deu. Comercialista - Por quais razões a recuperação extrajudicial e o plano especial de recuperação judicial para microempresas e empresas de pequeno porte são tão pouco utilizados no Brasil? Daniel Carnio Costa - É, a recuperação extrajudicial por uma questão cultural e também pelo fato de que, normalmente, o devedor não está em condições de negociar com o credor, ele está numa posição de inferioridade em relação ao seu credor e o credor não aceita sentar à mesa para negociar. Então, justamente é por isso que ele tem que recorrer à recuperação judicial, para que os pratos da balança sejam equilibrados e os credores venham à mesa para negociar o plano de recuperação. Com relação à pequena empresa e microempresa, o modelo anterior, antes da última reforma, era absolutamente ineficaz, na medida em que repetia exatamente o que era a antiga concordata. Então, se já se chegou à conclusão, depois de décadas, de que a concordata já não atendia mais aos interesses do mercado e dos empresários em geral, manter exatamente o mesmo sistema para a micro e pequena empresa não fazia o menor sentido, por isso não era utilizado. Só estavam sujeitos credores quirografários, com limite de valor, quer dizer, não Paulo Furtado de Oliveira Filho A recuperação extrajudicial, me parece, não oferece a mesma segurança em termos de sucessão na alienação dos ativos, então, por exemplo, a lei é clara quando se trata de recuperação judicial, que a venda de uma unidade produtiva isolada é feita sem a sucessão, e não há um dispositivo específico na recuperação extrajudicial. Então me parece que se o plano de recuperação tiver uma previsão de unidade produtiva isolada, se esse for um dos meios de recuperação, a utilização da extrajudicial talvez não seja o caminho mais adequado, porque talvez o arrematante tenha o receio de não ter a proteção da inexistência da sucessão. Essa recuperação extrajudicial, confesso que só um caso eu vi aqui na vara, em que a proposta também era só de parcelamento com deságio, acho que não havia previsão de alienação de unidades produtivas isoladas, e até por sinal houve uma renegociação do acordo, houve adesão novamente dos credores e, por maioria legal, foi homologada essa renegociação do plano, só que mesmo assim não foi cumprido. E a questão que se põe hoje é se esses credores, agora, podem requerer o cumprimento do acordo aqui, das prestaComercialista - A LC nº ções que não foram cumpridas, se eles podem requerer agora 147/2014 promoveu alterações na Revista Comercialista no próprio juízo que homologou a recuperação, porque tem uma sentença a favor deles, um título executivo judicial, ou se essas execuções, esses pedidos de cumprimento de sentença deveriam ser dirigidos às varas cíveis. Porque, se eu entender que sou competente para processar esses pedidos de cumprimento de sentença, essa vara que era só para homologar um plano de recuperação extrajudicial vai se transformar em uma vara que vai dar cumprimento a cada um dos pedidos de cada credor individualmente. Quer dizer, não vai ser só um juízo para supervisionar a negociação, vai ser um juízo para fazer valer o acordo, cada uma das obrigações assumidas. Eu entendi que o juízo é competente e o devedor agravou, o Tribunal vai decidir, acho que é uma questão até interessante. Se aqui vai ser competente, se esse juízo é competente para esses pedidos de cumprimento de sentença, ou não. E a de microempresas e empresas de pequeno porte, acho que pela limitação das condições, da proposta, do plano, não é? Eu acho que é uma alternativa que não é viável, as condições de pagamento são muito acanhadas, então o microempresário e o empresário de pequeno porte acabam indo buscar solução na recuperação comum, que dá muito mais alternativas a eles. REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Lei de Recuperação de Empresas e Falências, sendo notável a criação da classe de credores micro e pequeno empresários. Em sua visão, as mudanças ocorridas são positivas, no sentido de destinar melhor tratamento às micro e pequenas empresas em crise? Daniel Carnio Costa - Eu acho que sim, deu melhor tratamento tanto à EPP e ME, como credora e como devedora. Porque, como devedora, ampliou a possibilidade da recuperação e, como credora, criou uma classe nova, especial para elas, com todos os problemas que isso pode causar, de identificação, quem é, quem não é, de homogeneidade, mas eu acho que vai facilitar a aprovação dos planos. Porque essa é uma categoria muito parecida com a categoria dos trabalhistas, inclusive votam por cabeça. Quem são as micro e pequenas empresas que são credoras de uma outra empresa? Provavelmente são fornecedores, que dependem da existência daquela empresa para continuar vendendo. Então, eu acho que, se por um lado facilita a vida do credor ME e EPP, porque ele vai ter uma condição de barganha muito melhor, fala “olha, eu voto por cabeça, eu sou uma classe separada, ou você atende aos nossos interesses, também, para a aprovação do plano, ou o plano não vai ser aprovado na nossa classe” e, por outro lado, facilita a aprovação do plano, pela própria recuperanda, porque essa é uma classe muito mais sensível às necessidades da recuperanda, por exemplo, do que os credores com garantia real, que no caso de falência fala “ah, eu tenho minha garantia, eu sou privilegiado” e EPP e ME vão ser quirografários, provavelmente. Então eu acho que foram boas, apesar das críticas que eu ouvi aí, eu acho que foram boas as modificações. Melhor do que estava, foi um aperfeiçoamento. Paulo Furtado de Oliveira Filho Eu acho que é um tratamento favorecido que a própria Constituição recomenda que seja dado às micro e pequenas empresas, dar maior poder de negociação para elas nos planos de recuperação. Então, me parece positivo esse tratamento diferenciado e favorecido. Tirar essas empresas da classe, em geral, dos credores quirografários, em que elas geralmente têm um poder de negociação menor, e colocá-las em uma classe em separado, embora haja distinção entre elas mesmas – pode haver micro e pequenas empresas com créditos de diferentes valores, elas vão ser tratadas igualmente, porque o voto é por cabeça –, parece-me que o tratamento foi melhor, é positivo. Perfil 23 peração do veto de determinada classe de credores ao plano proposto)? Daniel Carnio Costa - Como mencionado anteriormente com mais detalhes, a melhor interpretação, nessa hipótese, é aquela que prestigia a finalidade do instituto da recuperação, que é preservar os benefícios sociais e econômicos decorrentes da atividade empresarial. Então, se eu tenho uma empresa que é viável e eu tenho a possibilidade de preservar esses benefícios todos que o processo busca, eu vou interpretar de maneira a facilitar a concessão da recuperação. Desse modo, a aprovação por duas classes já é o suficiente para o “cram down”, além do atendimento aos demais requisitos legais. Paulo Furtado de Oliveira Filho Aplica-se o art. 58, § 1º como ele foi estruturado, ou seja, se duas das quatro classes aprovarem o plano, e naquelas classes em que houve rejeição também tiver aprovação de mais de um terço, e no somatório de todos os votos favoráveis se atingir mais da metade do total dos créditos, acho que dá para o juiz conceder a recuperação. Acho que não é necessário ter a aprovação de três das quatro Comercialista - Com a cria- classes. Se for aprovado o plação da classe de credores micro no em duas classes, mais os ree pequeno empresários pela LC quisitos de aprovação por mais nº 147/2014, como deverão ser de um terço nas classes que observados os critérios do cram rejeitaram, mais a aplicação do down do art. 58, § 1º da Lei nº § 2º, acho que seria possível a 11.101/2005 (possibilidade de su- concessão da recuperação. Revista Comercialista 24 Doutrina REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 O passo seguinte ao Enunciado 57: em defesa da votação nas subclasses Por Sheila C. Neder Cerezetti* C omo se sabe, um dos graves defeitos da Lei 11.101/2005 (“LRE”) refere-se à rigidez da classificação dos credores em processos de recuperação judicial. Rigidez esta que acarreta injustiças e desestímulo à participação e cooperação no procedimento. Nos termos do art. 41 da LRE, os credores se organizam, para fins de recuperação, em quatro classes, quais sejam, aquelas formadas por (i) titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho, (ii) titulares de créditos com garantia real, (iii) titulares de créditos quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral e subordinados, e (iv) titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte. Ocorre que o agrupamento de créditos nessas quatro categorias acarreta a aglomeração de interesses bastante díspares, na medida em que permite a reunião de créditos de naturezas distintas. Em decorrência disso, as classes, instrumento essencial do direito da empresa em crise destinado a ordenar os interesses dos credores, aproximando os homogêneos e apartando os assimétricos1, apresentam-se, no direito brasileiro, como técnica incapaz de satisfazer seu propósito. 1 A função de organização de interesses a ser cumprida pelas classes é extensamente abordada no direito italiano. Vide, exemplificativamente, A. Revista Comercialista Gambino, Limiti Costituzionali dell’Iniziativa Economica nella Crisi dell’Impresa, in Giur. Comm. I (1988), pp. 493, 495, e G. Presti, Rigore è quando Arbitro Fischia?, in Il Fallimento 1 (2009), p. 29. REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Doutrina 25 Daí a relevância de se permitir que o devedor proponha plano de recuperação em atenção ao alinhamento de interesses das partes e, portanto, com mais chances de alcançar sucesso na negociação voltada à superação da crise empresarial. Justamente a esse propósito se destina a subclasse, cujo reconhecimento deve vir acompanhado da exigência de tratamento igualitário aos seus membros. À luz desse cenário, pode-se afirmar que, ao final de 2012, na I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal, importante passo foi dado no que tange à interpretação da forma de organização dos credores nos planos de recuperação judicial de empresas. O texto do Enunciado 572, originado de estudo específico sobre a organização de classes como instrumento fundamental de composição de interesses3, contribuiu para que a jurisprudência reconhecesse a legalidade da criação de subclasses de credores e exigisse o tratamento igualitário dentro dessa subdivisão organizativa4. A afirmação da legalidade da criação de subclasses e a consequente exigência de que créditos que as compõem fossem lidados em bases equânimes fundamentaram-se na aplicação de critério de igualdade material no âmbito da recuperação judicial. Preconizou-se a apuração de igualdade ou desigualdade de tratamento em vista das características específicas do crédito e do credor e não apenas com base na classe a que foram legalmente alocados. Ao mesmo tempo, tornou-se claro que cláusulas de plano que previssem tratamento desigual a créditos apenas deveriam ser aceitas na medida em que a desigualdade fosse reflexo da dessemelhança entre os destinatários do tratamento previsto. Em consequência, indicou-se que o controle de legalidade a que procede o magistrado da causa deve abranger também a conferência da previsão de medidas materialmente igualitárias aos envolvidos. Muito embora bastante relevante, o Enunciado 57 possui limitados efeitos. Sendo resultado de construção doutrinária oferecida à apreciação de pares em ambiente voltado a aclamar boas inter- pretações das regras comerciais vigentes, ele esbarrou nos limites interpretativos naturalmente impostos pelo foro em que foi exposto. A apresentação da proposta do Enunciado, à época, buscou, de forma cautelosa, contribuir para que um primeiro passo fosse dado no caminho para que as classes de credores efetivamente cumprissem o papel organizativo a que se destinam. A ampla aceitação do conteúdo ali apresentado, ao mesmo tempo em que demonstra que ele cumpriu seu papel, serve de estímulo para que se sugira que o próximo importante passo seja dado: a votação do plano e apuração do quórum dentro de cada uma das subclasses. Propõe-se aqui que os quóruns deliberativos previstos no art. 45 da LRE sejam verificados em cada subclasse, quando estas existirem, seguindo-se, para tanto, a regra geral que seria aplicável à classe da qual ela decorre. Nesse sentido, caso um plano propusesse que créditos da classe III fossem subdivididos em créditos financeiros e créditos de fornecimento, a aprovação deste plano pela 2 O Enunciado 57 conta com a seguinte redação: “57. O plano de recuperação judicial deve prever tratamento igualitário para os membros da mesma classe de credores que possuam interesses homogêneos, sejam estes delineados em função da natureza do crédito, da importância do crédito ou de outro critério de similitude justificado pelo proponente do plano e homologado pelo magistrado”. 3 S. C. Neder Cerezetti, As Classes de Credores como Técnica de Organização de Interesses: em Defesa da Alteração da Disciplina das Classes na Recuperação Judicial, in P. F. C. S. Toledo, F. Satiro (coord.), Direito das Empresas em Crise: Problemas e Soluções, São Paulo, Quartier Latin, 2012, pp. 365-385. 4 Vide, por exemplo, TJSP, Agravo de Instrumento 0119370-56.2012.8.26.0000, Rel. Des. José Reynaldo, j. 8/4/2013, e TJSP, Agravo de Instrumento no 0271407-68.2012.8.26.0000, Rel. Des. Enio Zuliani, j. 13/6/2013. Revista Comercialista 26 Doutrina REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 assembléia dependeria da satisfação do quorum de maioria dos presentes e maioria dos créditos dos presentes em ambas as subclasses. Em outras palavras, o quórum legalmente previsto para a votação na classe III (art. 45, § 1 o) deveria ser atingido em cada uma das suas subclasses. É de se destacar que, não obstante pretensiosa, na medida em que caminha para além do expressamente previsto na LRE, esta interpretação já foi bem acolhida em acórdão da lavra do Des. Ricardo Negrão, que contou com votação unânime dos membros da 2 a Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo 5. Com efeito, após reconhecer a legalidade da subclassificação de créditos, indicou-se a necessidade de votação em consideração a cada uma das subclasses, sob pena de se permitir que a maioria da classe utilizasse seu poder de voto em prejuízo de uma subcategoria de créditos. Cabe enfatizar que a proposta ora descrita está em linha com estudos de direito societário6 que destacam que o princípio da maioria em assembléias ganha legitimidade quando aplicado a ambientes marcados por interesses comuns. Busca-se, assim, garantir que a aprovação de decisões não seja imbuída de meros propósitos egoísticos. Ao se aplicar o princípio majoritário a institutos de recuperação empresarial, a mesma preocupação com a tutela da formação de vontade genuína se impõe. Há que se buscar decisão alcançada com base em acentuada comunhão de interesses e onde os votantes usufruam de posições paritárias.7 A experiência demonstra que se a subdivisão dos créditos servir apenas para fins de definição do tratamento a ser a eles conferidos, sem gerar efeitos na apuração da votação do plano, ela acaba por permitir que credores eventualmente favorecidos pelo plano determinem a decisão de toda a classe. Nesta situação, uma eventual maioria agradada pelos termos contratuais oferecidos para a sua subclasse tem o condão de definir a vontade de toda a classe, ainda que titulares de créditos de outra subclasse estejam fundadamente insatisfeitos. No limite, ao não se dar o passo seguinte ao Enunciado 57, admite-se que o devedor favoreça uma determinada subclasse, angarie a maioria necessária para a obtenção do voto positivo da classe e adote postura prejudicial aos componentes das demais subclasses. Desacompanhada da votação nas subclasses, o louvável Enunciado 57 pode ocasionar iniquidades. Mas, muito embora necessária, a proposta ora feita levanta questões não abordadas pela LRE. Dentre elas, chama atenção a forma de aplicação do cram down. Com efeito, o mecanismo de superação de veto de classe previsto no art. 58 lida apenas com a votação pelas classes legalmente previstas 8. Obviamente, o seu emprego em ca- 5 Agravo de Instrumento 87.2011.8.26.0000, j. 4/12/2012. cordati, in Il Fallimento 7 (2010), p. 783). nem mesmo se pode dizer que o cram down lide com as classes legais. Isso porque a criação da classe IV (titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte) não foi acompanhada de alteração dos incisos do § 1o do art. 58, os quais continuam a fazer referência apenas a três classes de credores e, portanto, cuidam expressamente apenas da hipótese em que duas delas aprovem o plano de recuperação judicial. Cabe aos intérpretes sugerir a melhor leitura da norma à luz da nova classificação. Sobre o tema, vide M. J. Bezerra Filho, Lei de Recuperação de Empresas e Falência, 10a ed., São Paulo, Saraiva, 2014. n. 0235130- 6 Para paralelo com o direito societário, vide F. D’Alessandro, La crisi delle procedure concorsuali e le linee generali della riforma: profili generali, in Giust. Civ. II (2006), p. 335, e M. Fabiani, Diritto e processo a confronto sul nuovo fallimento e lo spettro dei conflitti di classe, in Il Fallimento 1 (2008), p. 5. A classificação segundo interesses homogêneos é ainda indicada como mecanismo para evitar votos manifestados em conflito de interesses (cf. P. Catallozzi, Il ‘Classeamento Obbligatorio’ nei ConRevista Comercialista 7 Sobre o tema, vide R. Sacchi, Concordato Preventivo, Conflitti di Interessi fra Creditori e Sindacato dell’Autorità Giudiziaria, in Il Fallimento 1 (2009), p. 32, G. Minutoli, Il Controllo giudiziale sul mancato o insufficiente ‘classeamento’ dei creditori: il punto nella prassi e in dottrina, in Il Fallimento 1 (2010), p. 53, e G. B. Nardecchia, Le classi e la tutela dei creditori nel concordato preventivo, in Giur. comm.1 (2011), p. 81. 8 Na verdade, após a Lei Complementar 147/2014, REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Doutrina 27 sos de votação por subclasses não foi cogitado, uma vez que elas nem mesmo foram imaginadas pelo legislador brasileiro. Isso não significa, contudo, que não se possa, por analogia e à luz dos propósitos almejados pela regra9, aplicá-la ao cenário em que os votos são computados dentro das subclasses. O caminho mais condizente seria ler os requisitos dos incisos do § 1o, do art. 58, como se dissessem respeito não apenas a classes, mas, quando existentes, também a subclasses. Note-se, inclusive, que ao exigir o tratamento igualitário dentro das subclasses, o que o Enunciado 57 fez foi exatamente aplicar às subclasses a exigência do art. 58, § 2 o, a qual havia sido inicialmente pensada apenas para as classes e somente para as hipóteses de superação de veto. Um exemplo pode ilustrar e deixar mais clara a sugestão interpretativa ora formulada. Digamos que um plano de recuperação judicial estipule o tratamento a ser conferido a créditos da classe I, a créditos da classe II, a créditos de três subclasses da classe III e a créditos de duas subclasses da classe IV. Em assembléia, a aprovação da proposta do devedor dependeria da obtenção do voto favorável da (i) maioria dos presentes na classe I, (ii) maioria dos presentes e maioria dos créditos presentes na classe II, (iii) maioria dos presentes e maioria dos créditos presentes em cada uma das subclasses na classe III, e (iv) maioria dos presentes em cada uma das subclasses da classe IV. Caso, em duas das subclasses da classe III, o quórum legal não fosse atingido, os requisitos do art. 58, §§ 1o e 2o, da LRE, deveriam ser satisfeitos com relação a cada uma delas. Esta interpretação esbarra no fato de que o inciso II, do § 1 o, do art. 58, menciona a exigência de que duas das três classes aprovem o plano (ou uma, caso existam apenas duas classes) para que o cram down possa ser utilizado. A afirmação de que os credores devem votar em subclasses gera a dúvida de como aferir este requisito, uma vez que ele faz expressa menção ao número de classes legalmente previstas. A melhor interpretação parece ser a de que este requisito teve o intuito de garantir que a maio- ria das classes ou ao menos a metade delas tivesse concordado com a oferta do devedor. Ora, a mesma lógica também pode ser transposta para a situação em que não apenas classes, mas também subclasses, votem 10. No cenário hipotético descrito, apenas em dois dos sete grupos de créditos a maioria legal não teria sido obtida, o que apontaria para o cumprimento do requisito previsto no art. 58, § 1 o, II. Por fim, cabe dizer que não se ignora a audácia desse passo pelo qual se clama. Mas ela se justifica na medida em que dele decorre tanto a garantia do princípio da igualdade quanto a legitimidade da aplicação do princípio da maioria à recuperação judicial. Na esperança de que o exposto possa contribuir para reflexões sobre o tema, convidam-se estudiosos do direito da empresa em crise ao debate. 9 Sobre a interpretação do cram down brasileiro, vide E. S. Munhoz, in F. Satiro de Souza Junior, A. S. A. de Moraes Pitombo (coord.), Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, São Paulo, RT, 2005, pp. 283-289, e C. S. J. Batista, P. F. Campana Filho, R. Y. Miyazak, S. C. Neder Cerezetti, A Prevalência da Vontade da Assembléia- -Geral de Credores em Questão: O ‘Cram-down’ e a Apreciação Judicial do Plano Aprovado por Todas as Classes, in RDM 143 (2006), pp. 202-242. 58 da LRE para refletir essa alteração, a mesma lógica já pode ser hoje aplicada aos casos de cram down de planos de recuperação que abordam as quatro classes de créditos. 10 Dado que o legislador criou a classe IV de credores (art. 41, conforme modificado pela Lei Complementar 147/2014), mas não adaptou o artigo * Sheila C. Neder Cerezetti Professora Doutora do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Revista Comercialista 28 Doutrina REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 O caso OGX e a questão do ajuizamento de recuperação judicial de sociedades estrangeiras no Brasil Por Paulo Fernando Campana Filho* A o ajuizar seu pedido de recuperação judicial perante o judiciário do Rio de Janeiro, em outubro de 2013, a petroleira OGX incluiu, no polo ativo do processo, quatro sociedades, as quais chamou de “Grupo OGX”. O ajuizamento de um pedido de recuperação de um grupo societário de fato, em litisconsórcio ativo, não era nenhuma novidade no direito brasileiro. Após a entrada em vigor da Lei Revista Comercialista 11.101 de 2005, que regula o direito falimentar no Brasil, pedidos de recuperação conjuntos envolvendo diversas sociedades que alegam constituir um grupo societário ou econômico se tornaram frequentes, ainda que tal medida carecesse de amparo legal. A novidade é que, no caso da OGX, duas das quatro sociedades que constituíam o aludido grupo eram estrangeiras. Com efeito, dentre as sociedades que ajuizaram o pedido de re- cuperação judicial, duas eram brasileiras – a Óleo e Gás Participações S.A. (ex-OGX Petróleo e Gás Participações S.A.) e a OGX Petróleo e Gás S.A. – e duas haviam sido constituídas na Áustria – a OGX International GmbH e a OGX Austria GmbH. O organograma das sociedades do grupo que ajuizaram recuperação judicial, que mostra as relações entre elas (sem considerar outras sociedades do mesmo grupo), é o seguinte: Doutrina 29 REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Óleo e Gás Participações S.A. 99,99% 100% OGX Petróleo e Gás S.A. OGX International GmbH 100% OGX Austria GmbH Embora outros grupos societários tenham incluído sociedades estrangeiras nos seus pedidos de recuperação judicial (como Aralco e OAS, por exemplo) e extrajudicial (como Lupatech), somente no caso OGX houve (até o momento) litígio judicial a respeito da questão.1 No caso OGX, o argumento para inclusão das sociedades estrangeiras na recuperação judicial era o de que elas eram veículos para obtenção de financiamento para as sociedades brasileiras e se subordinavam às decisões da controladora estabelecida no Brasil, não tendo, portanto, bens, atividade operacional e nem autonomia decisória. Sendo assim, as quatro sociedades do grupo teriam seu principal estabelecimento – critério para determinação da competência jurisdicional de acordo com o art. 3º da Lei 11.101 de 2005 – na cidade do Rio de Janeiro. Após o ajuizamento do pedido, o Ministério Público, instado a se manifestar sobre o assunto, concluiu que, sob o ponto de vista jurídico, a inclusão das sociedades estrangeiras configurava um inadmissível “extravasamen- to da jurisdição brasileira” e que, sob a óptica econômica, levaria a grande insegurança jurídica. De acordo com o Ministério Público, como as sociedades austríacas e os seus respectivos credores tinham domicílio no exterior, aplicar-se-ia a regra do art. 12 do Decreto-Lei 4.657 de 1942, de acordo com a qual a obrigação, tendo se constituído no exterior, deveria ser lá cumprida. Assim, se o Grupo OGX havia optado por constituir as sociedades no exterior, deveria arcar com os ônus daí decorrentes. O Ministério Público entendeu, enfim, que o 1 As menções às manifestações da OGX e dos órgãos que atuaram no seu processo de recupe- ração foram extraídas das peças constantes dos autos nº 0377620-56.2013.8.19.0001, em curso pe- rante a 4ª Vara Empresarial da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro. Revista Comercialista 30 Doutrina Brasil adotava o sistema de territorialidade dos efeitos da falência e que, portanto, as decisões proferidas pelo juízo perante o qual se processava a recuperação judicial do Grupo OGX poderiam apenas ter eficácia nos limites das fronteiras territoriais brasileiras. O juízo da 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, encarregado do processo em primeira instância, acolhendo a opinião do Ministério Público, entendeu, em novembro de 2013, que a natureza das relações econômicas entre as sociedades do Grupo OGX não era suficiente para justificar o ajuizamento da recuperação judicial das estrangeiras no mesmo foro que as brasileiras. De acordo com a decisão judicial proferida, na falta de amparo legal, a proteção conferida pelo direito brasileiro não poderia ser aplicada a sociedades constituídas em outros países, sob pena de se desrespeitar a sua soberania. Além disso, o juiz não encontrou fundamento para desconsiderar a personalidade jurídica das sociedades austríacas e, com isso, arrastá-las para o processo brasileiro. Com isso, o juiz deferiu o processamento da recuperação judicial das sociedades brasileiras do Grupo OGX, mas não das estrangeiras. A OGX recorreu da decisão, por meio de agravo de instrumento endereçado ao Revista Comercialista REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, alegando que o Brasil teria jurisdição para processar as recuperações judiciais que tivessem o seu principal estabelecimento no país, conforme interpretação conferida ao art. 3º da Lei 11.101 de 2005. As sociedades austríacas, meros veículos de financiamento das atividades das demais sociedades do grupo, teriam o Brasil como o centro dos seus principais interesses, o que justificaria o ajuizamento do pedido no país. Além disso, sustentou que a abertura do processo de recuperação judicial das sociedades estrangeiras não violaria a soberania da Áustria, eis que aquele país teria mecanismos jurídicos para reconhecer os efeitos da decisão proferida no âmbito da recuperação judicial (e poderia aceitar, portanto, a jurisdição brasileira sobre a matéria). Finalmente, a OGX defendeu a necessidade de adoção, pelos juízes brasileiros, de um sistema da universalidade dos efeitos dos processos de insolvência, na esteira das melhores práticas internacionais e com o objetivo de atribuir eficiência e viabilizar o processo brasileiro. A Procuradoria de Justiça, ao se manifesta sobre o recurso em segunda instância, foi favorável ao entendimento do Ministério Público e do juiz de primeiro grau. De acordo com a Procuradoria, o fato de a lei brasileira estar defasada e não acompanhar os avanços da globalização não poderia servir como justificativa para a sua não aplicação. Assim, conforme a interpretação conferida pela Procuradoria ao art. 3º da Lei 11.101 de 2005, o juiz brasileiro teria jurisdição sobre as sociedades estrangeiras somente se elas tivessem filial ou estabelecimento no Brasil – o que não era, contudo, o caso das OGX austríacas. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ao julgar o recurso, em fevereiro de 2014, acolheu os argumentos do Grupo OGX e, ao reformar a decisão de primeira instância, permitiu que as sociedades austríacas fizessem parte do processo de recuperação judicial brasileiro. De acordo com a decisão do Tribunal, as sociedades estrangeiras haviam sido constituídas para financiar o Grupo OGX e, portanto, compartilhavam da mesma atividade empresarial; além disso, as sociedades brasileiras eram as responsáveis pelo pagamento dos titulares de bonds emitidos no exterior. Essa sinergia entre as sociedades do mesmo grupo foi o principal argumento para permitir o acesso das austríacas à mesma proteção legal brasileira conferida às entidades nacionais. De todo modo, conforme observou o Tribunal, os credores estrangeiros não se opunham à recuperação judi- REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 cial conjunta de todas as sociedades, e o direito austríaco dispunha de mecanismos jurídicos para conferir efeitos à decisão brasileira. Com isso, o Tribunal, entendendo haver lacuna legislativa, decidiu dar uma “solução dinâmica e atual à controvérsia”, autorizando que todas as sociedades do Grupo OGX, brasileiras e estrangeiras, se submetessem ao processo de recuperação judicial em trâmite no Rio de Janeiro. O caso OGX foi palco de um debate, até então inédito no judiciário brasileiro, a respeito dos efeitos extraterritoriais dos processos de recuperação judicial – e uma das raras ocasiões em que questões de direito falimentar internacional foram examinadas pela justiça no Brasil. As controvérsias do caso OGX replicaram, de certa forma, as intensas discussões acadêmicas, travadas há mais de um século entre autores de diversos países, entre o modelo teórico do territorialismo – que preza o respeito à soberania e aos direitos dos credores locais, ao restringir os efeitos dos processos falimentares às fronteiras estatais – e do universalismo – que, em nome do tratamento igualitário entre os credores e a eficiência na administração dos ativos do devedor, prega que os processos devam ter alcance global, produzindo efeitos extraterritoriais. O acalorado debate, que ganhou impulso com os reflexos da crise do petróleo da década de 1970, culminou na adoção, pelas Nações Unidas, da Lei Modelo da UNCITRAL sobre Insolvências Transnacionais, em 1997, e, pela Comunidade Europeia, de um regulamento comunitário a respeito do assunto, em 2000 – ambos incorporando formas modificadas ou mitigadas do universalismo. A tensão entre universalismo e territorialismo deixou, ainda, um extenso legado de casos, especialmente envolvendo países de tradição jurídica anglo-saxã, em que acordos de cooperação ad hoc foram celebrados para permitir a coordenação entre processos, de modo que uma pluralidade de insolvências pudesse, na medida do possível, ser orquestrada como se fosse uma única falência de alcance universal. As posições territorialistas e universalistas defendidas no caso OGX reproduziram, em grande parte, os argumentos utilizados pelos autores defensores das respectivas correntes teóricas. O caso inaugurou não apenas o início de salutares discussões judiciais a respeito do assunto no Brasil, como também de soluções ousadas e criativas, de cunho universalista, que, a exemplo do que ocorreu em outros países, poderão servir de exemplo para futuros casos. Além disso, as Doutrina 31 repercussões do caso ajudam a pavimentar o caminho para a adoção, pelo Brasil, de normas legais que tratem do assunto, tal como a Lei Modelo da UNCITRAL sobre Insolvências Transnacionais. A reforma da lei nesse sentido – como mostra o caso OGX – é necessária e premente. * Paulo Fernando Campana Filho Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo. Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra. Doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Advogado em São Paulo. Revista Comercialista 32 Doutrina REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Mercado de Capitais versus Recuperação Judicial: Regulamentação e Segurança Jurídica Por Daltro de Campos Borges Filho e Thiago Peixoto Alves* Introdução A regulamentação do mercado de capitais enaltece o princípio da transparência, para que os interessados disponham do maior número possível de informações e possam avaliar os riscos inerentes. A dinâmica desse mercado também exige celeridade, para que os interessados tenham a garantia de que os negócios reaRevista Comercialista lizados ocorram no momento planejado, refletindo a conjuntura econômico-financeira analisada. A conjugação desses pressupostos permite incrementar a credibilidade do mercado de capitais e garantir a segurança jurídica das múltiplas relações interdependentes. Transparência, credibilidade e segurança jurídica, essenciais para incrementar novas operações/interessados e atrair dinheiro novo no mercado de capitais, também são pressupostos necessários para que possam ser alcançados os principais objetivos da Lei nº 11.101 de 2005 (“Lei de Recuperação de Empresas”), inspirada nos institutos do processo concursal do direito norte-americano, de modo a desenvolver o incipiente mercado de distress no Brasil, que, sem dú- REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 vida, se entrelaça com o mercado de capitais. Como adiante se expõe, o êxito da Lei de Recuperação de Empresas no Brasil, permitindo reestruturar empresas em crise, também depende de pressupostos análogos a esses aplicáveis ao mercado de capitais, que permitem atrair investidores titulares de recursos e profissionais dispostos a assumir riscos nos investimentos e na gestão de empresas em crise (esses players são identificados neste artigo como “terceiros potenciais interessados”). Ocorre que empresas em crise, em geral, postergam em demasia o reconhecimento da sua situação de desequilíbrio econômico-financeiro e relutam em tomar medidas mais efetivas para equacionar a perda constante e inexorável do crédito, matéria prima vital de qualquer empresa. Qualquer estratégia que cogite de eventual pedido de recuperação judicial é rechaçada, por se tratar de postura derrotista e inaceitável. Na tentativa de adotar medidas paliativas para a solução de problemas econômico-financeiros, donos e gestores de empresas em crise optam por planejamentos equivocados, que atrelam os principais ativos como garantia de dívidas (muitas vezes) impagáveis. De fato, concretizam-se renegociações de dívidas em condições desenquadradas da realidade da Companhia. Assim, quando se torna inevitável o ingresso do processo de recuperação judicial, a maioria das empresas devedoras se encontra em uma linha tênue entre a possibilidade de reestruturação e o encerramento de suas atividades, com a bancarrota. Nesse cenário, é essencial que os trâmites do processo de reestruturação, sob o manto do Judiciário, se realizem com transparência e no menor tempo possível, tal como ocorre em operações do mercado de capitais. Com efeito, o sucesso da reestruturação depende primordialmente da revitalização do crédito da empresa para viabilizar a injeção de “dinheiro novo” no negócio. Para atingir esse objetivo, essencial atrair o maior número possível de terceiros potenciais interessados — que têm a mesma essência no mercado de capitais, como no mercado de distress, diferenciando-se pela maior ou menor disposição ao risco —, os quais poderão, v.g., (i) adquirir o estabelecimento, ou ativos isolados, (ii) conceder novas linhas de crédito, ou (iii) aumentar o capital da empresa, para compartilhar, ou assumir o seu controle. Esses recursos servem não apenas para pagamento das dívidas do passado, mas também para o fomento do “caixa” da empresa devedora (a recuperação, em última análise, reflete uma crise de “caixa”/liquidez). A premissa fundamental para aumentar o número de terceiros potenciais interessados nas operações do mercado de distress e, em consequência, valorizar os ativos das companhias em crise, sem sombra de dúvida, Doutrina 33 é consolidar a segurança jurídica no dia-a-dia dos processos de recuperação judicial, o que prestigia o princípio da livre iniciativa protegido no inciso IV do art. 1º e no art. 170, ambos da Constituição Federal. Em suma, terceiros potenciais interessados precisam estar convencidos de que, a despeito das intempéries e dos riscos usuais do mercado distress, tal como ocorre no mercado de capitais, os seus investimentos estarão protegidos nos processos concursais, especialmente no de recuperação judicial, na conformidade dos parâmetros e da estrutura legal estabelecidos pela Lei de Recuperação de Empresas. Para o sucesso do sistema recuperacional no Brasil, é necessário que haja o menor número de dúvidas possível sobre a licitude e o retorno do investimento do capital nas empresas e ativos vinculados a esses processos concursais, reduzindo-se o número de variáveis fora do controle das partes. Essa convicção, obviamente, maximizará o valor das empresas em crise e dos seus ativos, premissa que, nas palavras do saudoso Senador Ramez Tabet, serviu de base para elaboração da Lei Recuperação de Empresas: “a lei deve estabelecer normas e mecanismos que assegurem a obtenção do máximo valor possível pelos ativos do falido, evitando a deterioração provocada pela demora excessiva do processo e priorizando a venda da empresa em bloco, para evitar a perda dos intangíveis. Desse modo, não só se proteRevista Comercialista 34 Doutrina gem os interesses dos credores de sociedades e empresários insolventes, que tem por isso sua garantia aumentada, mas também diminui-se o risco de transações econômicas, o que gera eficiência e aumento da riqueza geral” Exemplos internacionais como o da reestruturação da General Motors, concluída em poucos meses, com o aporte de significativa quantia de “dinheiro novo” e o apoio dos órgãos governamentais norte-americanos, atestam o quão importantes são a transparência, a celeridade e a consequente segurança jurídica. A situação, portanto, é bastante semelhante à do mercado de capitais: os terceiros potenciais interessados, dispostos a investir no mercado de distress, à semelhança do que ocorre no mercado de capitais, necessitam de transparência, celeridade e segurança jurídica para as operações que pretendem realizar. Acontece que, diversamente do que ocorre no mercado de capitais, o mercado de distress, não obstante os 8 anos de vigência da Lei de Recuperação de Empresas no Brasil, continua incipiente, não só pela resistência das empresas devedoras em reconhecer a sua situação de crise econômico-financeira, como também por outros fatores que afetam a segurança jurídica nos processos de recuperação judicial, reduzindo drasticamente a participação de terceiros potenciais interessados, que poderiam ingressar com dinheiro/crédito novos e viabilizar reestruturações empresariais. Revista Comercialista REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Na prática, podem ser destacados, entre outros, dois fatores que vêm contribuindo para dificultar, ou mesmo inviabilizar a efetividade de soluções que preservem empresas viáveis, frustrando os objetivos da Lei 11.101 de 2005: (i) o posicionamento de recentes decisões judiciais que consideraram ilegais Planos de Recuperação Judicial regularmente aprovados pela maioria dos credores em assembleia, sob o fundamento de que haveria prejuízo inaceitável para os credores dissidentes; e (ii) a ausência de regulamentação própria, de natureza infra-legal, disciplinando matérias que estão afeitas a órgãos reguladores e fiscalizadores do mercado, tais como, CVM, BACEN e Receita Federal. Esses dois fatores trazem grande carga de incerteza jurídica para terceiros potenciais interessados e tornam ainda mais morosos os processos concursais, restringindo, repita-se, o incipiente mercado de distress no Brasil, sobretudo para investidores estrangeiros, tão receosos da complexidade de nossa legislação. As consequências, sem dúvida, são muito mais graves do que aparentam. Embora reconhecendo o erro primário de empresas devedoras que comprometem seu caixa e seus ativos, perdendo todo o seu crédito no mercado, para só então adotar as medidas previstas na legislação concursal para superar crises econômico-financeiras, este artigo se limita a apresentar uma visão crítica sobre os dois outros fatores mencionados, que, por si só, geram insegurança jurídica, prejudicando sobremaneira o desenvolvimento do mercado de distress, que deveria se assemelhar ao mercado de capitais, para que venham a ser atingidos os objetivos da Lei de Recuperação de Empresas. Além disso, será sugerida a adoção de medidas para oferecer maior grau de previsibilidade nas complexas relações entre os players dos processos concursais, tudo visando a aumentar o número de terceiros potenciais interessados, na certeza de que tais medidas permitirão maximizar o valor da própria empresa devedora e dos seus ativos nos processos recuperacionais. Incerteza quanto ao Futuro dos Planos de Recuperação Judicial Aprovados A partir da vigência da Lei de Recuperação de Empresas, os Planos de Recuperação, em processos de recuperação judicial, devem ser aprovados pela maioria dos credores, na conformidade do quórum e procedimentos previstos para a Assembleia Geral de Credores. O princípio da aprovação dos Planos de Recuperação pela maioria dos credores trouxe uma maior segurança jurídica para terceiros potenciais interessados, pois assegurou uma blindagem para o dinheiro/crédito novo que sempre são necessários para superar os problemas econômico-financeiros de empresas em crise. REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Com efeito, qualquer processo concursal envolve múltiplos interesses e, exatamente para aumentar a segurança jurídica do processo decisório, a Lei de Recuperação de Empresas enfatizou a soberania das decisões da Assembléia Geral de Credores, tomada por maioria (Lei nº 11.101/05, art. 35, I), de modo a não sujeitá-las ao risco da análise pelo Judiciário de eventual irresignação de credores dissidentes, que impugnem as condições de pagamento previstas no Plano de Recuperação. Essa foi a posição inicial da jurisprudência, bastando transcrever a ementa de um julgado do ano de 2010, da então Câmara Reservada à Falência e Recuperação Judicial do TJ/SP: “Agravo. Recuperação judicial. Plano aprovado pelas três classes de credores pelo quorum previsto no art. 45 da Lei n° 11.101/2005. Aprovado o plano pela Assembleia- Geral de Credores o juiz não pode deixar de conceder a recuperação judicial por entender que o plano de recuperação não tem consistência econômico-financeira. Soberania da Assembléia de Credores para aprovar ou rejeitar o plano de recuperação. Agravo não provido.” (AI n° 019877430.2010.8.26.0000, TJSP) No entanto, a partir do início de 2012, algumas reiteradas decisões do Judiciário passaram a mitigar o princípio da soberania da Assembleia Geral de Credores em processos de recuperação judicial, adentrando no mérito econômico-financeiro dos Planos de Recuperação, sob o fun- damento de que a decisão da maioria acarretaria prejuízos injustificados aos credores. Em um julgado recente, o TJ/ SP anulou um Plano de Recuperação Judicial por entender que o desconto nele concedido aos credores quirografários era muito grande, sem analisar qualquer aspecto patrimonial da devedora, como a proporção entre seus ativos e passivos. Destaquem-se os dois principais trechos da fundamentação: “não é possível que créditos vultosos de liquidez inquestionável sejam achatados com um deságio astronômico e que implica em reduzir mais de 90% do valor nominal” e “assim sendo, o Plano não deveria ser aprovado, mas, sim, rejeitado, competindo que se apresente outro, com proposta para pagamento descente dos credores quirografários, sem estabelecimento de tetos irrisórios diante da grandiosidade de créditos significativos.” (AI n° 0008635-19.2013.8.26.0000, TJSP, 21/05/2013) D.v., equivocada essa decisão, pois não caberia ao Judiciário analisar o mérito econômico-financeiro do Plano de Recuperação, mas apenas verificar aspectos da legalidade e homologar a decisão do conclave (Lei 11.101/05, art. 58). Realmente, uma das grandes alterações trazidas pela nova lei falimentar foi a transferência dos poderes anteriormente detidos pelo Juiz para os credores, reunidos em assembleia, a quem cabe analisar e deliberar sobre os termos do Plano de Recuperação (Lei 11.101/05, art. 35). Doutrina 35 Nesse mesmo sentido, o Enunciado nº 46 da I Jornada de Direito Comercial, realizada no ano de passado, no STJ: “Não compete ao juiz deixar de conceder a recuperação judicial ou de homologar a extrajudicial com fundamento na análise econômico-financeira do plano de recuperação aprovado pelos credores.” Mais grave ainda, nem sequer foi discutido se a falência da companhia seria pior opção para os credores do que manter as condições de pagamento previstas no Plano de Recuperação, considerando, nessa hipótese, as preferencias legais de pagamento no concurso falimentar (Lei 11.101/05, art. 83). De fato, trata-se de princípio/raciocínio econômico comum a todo e qualquer processo concursal e que estava insculpido no art. 143, I do antigo Decreto-Lei nº 7.661/45, segundo o qual cabiam embargos à concordata quando demonstrado ser ela pior do que a falência. Trata-se da aplicação do princípio do best interest of creditors, inspirado na direito norte-americano, que deve ser aplicado aos processos de recuperação judicial, como muito bem explicado na recente tese de doutorado em direito comercial da USP da Professora Sheila Christina Neder Cerezetti: “Constitui, em verdade, uma regra do mínimo, no sentido de que a grande parte dos detentores de crédito pode decidir pela aprovação do plano de recuperação desde que um valor mínimo, relativo àquele que seria angariado mediante a liquidação dos ativos, seja garantido àqueles que Revista Comercialista 36 Doutrina discordam da concessão de uma nova chance ao devedor. A regra busca, assim, traçar um equilíbrio entre o objetivo de aprovação de um e a proteção aos credores dissidentes.” (CEREZETTI, Sheila Christina Neder, A Recuperação Judicial de Sociedade por ações, O Princípio da Preservação da Empresa na Lei de Recuperação e Falência, São Paulo, Malheiros, 2012, página 381). No âmbito deste artigo, porém, a principal constatação é a de que essa posição do Judiciário, de mitigar a soberania da Assembleia Geral de Credores, no tocante à aprovação das condições econômico-financeiras dos Planos de Recuperação, compromete ainda mais a segurança jurídica dos processos de recuperação judicial, especialmente quando analisada a questão sob o ponto de vista de terceiros potenciais interessados na empresa, ou nos seus ativos. À toda evidência, se o Plano de Recuperação ficar sujeito à anulação pelo Judiciário, muitos meses após a sua aprovação pela Assembléia Geral de Credores, terceiros potenciais interessados jamais se arriscarão a aportar dinheiro/crédito novo, pois, nesse interregno temporal, ativos se depreciam; os melhores empregados se recolocam; contratos relevantes são rompidos; enfim, o fundo de comércio da empresa devedora desaparece como um “iceberg no deserto”. Ainda do ponto de vista de terceiros potenciais interessados, é inadmissível que a aquisição em hasta pública de uma Revista Comercialista REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Unidade Produtiva Isolada, conforme Plano de Recuperação aprovado e homologado, venha a ser anulada pelo próprio Judiciário. De fato, investimentos terão sido feitos e contratos firmados, pelo que essa eventual anulação gera um quadro de incerteza jurídica e um “limbo” no tocante a atos sem possibilidade de reversão, afetando terceiros de boa-fé. Essa postura do Judiciário prejudica, ou até inviabiliza a preservação de empresas devedoras economicamente viáveis, pois, ao aumentar sobremaneira a insegurança jurídica, em virtude do tempo adicional para resolver questões essenciais nos processos de recuperação judicial, gera um receio intransponível em terceiros potenciais interessados, que jamais aportarão dinheiro/ crédito novo em situações jurídicas indefinidas, uma vez que, se e quando houver um desfecho no Judiciário, as empresas, suas atividades e seus ativos já terão desaparecido dessas controvérsias nesse “deserto”. Regulamentação Inexistente Para aperfeiçoar a aplicação da Lei de Recuperação de Empresas e, com isso, gerar maior segurança jurídica para os terceiros potenciais interessados, é imprescindível que, não só o Judiciário, mas todos os demais entes ligados ao Governo, nos seus mais diversos níveis e posições, adotem a postura ativa de atuar em processos concursais com o objetivo de viabilizar a superação da situação econômico-financeira do devedor, propiciando instrumentos hábeis para facilitar o ingresso de dinheiro nos processos de reestruturação. A atuação proativa do Governo é essencial para que todos os stakeholders tenham maior confiança na aplicação da Lei de Recuperação de Empresas e, com isso, possamos ter exemplos bem sucedidos e semelhantes àqueles observados nos Estados Unidos, como o já citado caso da reestruturação da General Motors. No entanto, no Brasil, até o presente momento, a regulamentação por parte da administração pública de matérias essenciais para a reestruturação, bem como a sua participação efetiva nos processos concursais, é bastante parca, agravando o quadro de insegurança jurídica para terceiros potenciais interessados. É inquestionável, porém, que diversos aspectos práticos, por conta dessa omissão do setor público e dos seus agentes, fragilizam a credibilidade na recuperação de empresas insolventes e no desenvolvimento dos institutos da Lei de Recuperação de Empresas. Há, porém, medidas que podem ser desde logo adotadas, dependendo tão-somente da atuação política e administrativa do próprio Governo. É de todo necessário sejam instituídas o mais rápido possível regulamentações internas no âmbito da CVM, do BACEN e da Receita Federal, com a criação de vantagens para devedor e credores que aprovarem o Plano Recuperação, ou para aqueles que REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 estejam dispostos a injetar dinheiro novo no negócio. Na hipótese de um devedor aprovar uma proposta de pagamento com substancial desconto em processo de recuperação judicial, ou extrajudicial, a Receita Federal não deveria considerar esse ganho decorrente do hair cut como passível de tributação. Ou, ainda, as vantagens tributárias atribuídas aos credores que concedem esses descontos deveriam ser bem maiores, evitando que eles tenham de simplesmente “limpar” seu balanço, transferindo a titularidade de seus respectivos créditos para terceiros. Outro aspecto interessante poderia ocorrer no âmbito do BACEN. De acordo com a Resolução 2682/99, o rating atribuído às empresas em recuperação, tão logo elas ingressem com o processo concursal, é imediatamente rebaixado para o nível “H”, pior das classificações quanto à capacidade de pagamento. Esta classificação impede, muitas das vezes, que instituições financeiras ou mesmo investidores qualificados emprestem mais recursos para as empresas em crise, dificultando a reestruturação e o desenvolvimento do mercado de distress. Bastaria que o BACEN instituísse uma regulamentação mais específica, não atribuindo pura e simplesmente o rating “H” para qualquer recuperanda, mas sim criando regras de classificação (índices contábeis e financeiros) que levassem em conta a concreta situação econômico-financei- ra da devedora, tornando efetiva a distinção prevista no art. 67 da Lei de Recuperação de Empresas, entre as dívidas antigas e novas. Na CVM, por exemplo, só a partir da Instrução Normativa nº 489/11, modificando a de nº 356/01, houve a fixação de critérios e procedimentos, inclusive contábeis, para os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) adquirirem créditos de instituições financeiras, com a possibilidade de os renegociarem, de maneira mais simples e direta, com os respectivos devedores originais, inclusive aqueles em crise de insolvência. Ainda no âmbito dessa autarquia, a Instrução Normativa nº 391/03 trouxe importante inovação para a regulamentação dos Fundos de Investimento em Participações (“FIPs”), ao permitir que eles apliquem seus recursos em Companhias envolvidas em processo de reestruturação: “admitida a integralização de cotas em bens ou direitos, inclusive créditos, desde que tais bens e direitos estejam vinculados ao processo de recuperação da sociedade investida e desde que o valor dos mesmos esteja respaldado em laudo de avaliação elaborado por empresa especializada.” (art. 2º, §1º desta IN). De fato, na prática, para investimento nas empresas em crise, as regras dos FIPs são menos rígidas do que as dos FIDCs, uma vez que estes últimos, mesmo com os avanços da Instrução Normativa nº 489/11, continuam com uma estrutura bem mais engessada, prevendo diversos re- Doutrina 37 quisitos formais que restringem inúmeras situações e dificultam a participação dos prestadores de serviços. Além disso, a administração pública deveria possibilitar que o devedor, mesmo em recuperação judicial, pudesse comprovar a sua capacidade econômico financeira de participar de licitações, assinar, ou manter contratos administrativos (atualmente, esse direito vem sendo assegurado ao devedor em recuperação pelo Judiciário). Também é essencial que empresas e demais entes ligados ao setor público, diante do seu peso relevante na economia em geral, estabeleçam procedimentos claros e objetivos para se relacionarem com empresas em recuperação judicial, enquanto credor, contratante, ou fornecedor, de modo a permitir, por exemplo, que os servidores responsáveis possam, se for o caso, autorizar a aprovação de Plano de Recuperação em que esteja previsto perdão parcial de dívidas, ou a manutenção de crédito para fornecimento de matéria prima, sem risco de futura responsabilização pessoal. Na prática, o que se observa nos processos de recuperação judicial é uma abstenção profunda dos bancos públicos. Na quase totalidade das Assembleias de Credores, essas instituições votam contrariamente ao Plano de Recuperação, em razão da existência de um desconto mínimo na dívida, mesmo que isso seja melhor do que a quebra, consequência natural da rejeição do Revista Comercialista 38 Doutrina Plano de Recuperação. No máximo, elas se abstêm da votação, tudo por medo da responsabilização pessoal do agente que eventualmente decidisse aprovar a proposta de reestruturação. O Governo, em todos os seus níveis, parece ignorar a existência da Lei de Recuperação de Empresas e, diante dessa omissão, continua inviabilizando que entes ligados ao setor público efetivamente participem da tentativa de reestruturação de empresas viáveis, com consequência direta para os investidores interessados em colocar dinheiro novo na operação. Outro exemplo: a Lei 11.941/09, ao modificar a Lei 9.469/07, poderia ter se referido às situações específicas da Lei de Recuperação de Empresas, ao invés de apenas criar maiores restrições para que possam ser celebrados acordos, ou transações, pelos entes públicos com particulares, como se vê no seu art. 1º, §1º, que exige, sob pena de nulidade, a “prévia e expressa autorização do Advogado-Geral da União e do Ministro de Estado ou do titular da Secretaria da Presidência da República a cuja área de competência estiver afeto o assunto”. A complexidade do procedimento pode inviabilizar seja aprovado um Plano de Recuperação, quando estiver previsto o perdão parcial de dívidas e o voto favorável dos credores ligados ao setor público for essencial na deliberação pela AGC. O pior de tudo, entretanto, é a não sujeição do crédito fiscal ao processo de recuperação juRevista Comercialista REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 dicial e, ao mesmo tempo, a ausência de legislação específica que propicie formas realmente especiais de financiamento para empresas em crise, com parcelamentos adequados para a situação econômico financeira da Companhia, instituindo-se um “cardápio” de possibilidades para quitação das dívidas fiscais – levando em conta o valor desse passivo, a capacidade de geração de caixa da devedora e seu endividamento pré-existente. Tal omissão gera enorme insegurança jurídica e inviabiliza que novos investidores financeiros ou estratégicos participem de processos de recuperação judicial de empresas insolventes, mas viáveis e atrativas do ponto de vista de mercado. Com efeito, são poucos os terceiros potenciais interessados que se aventuram a investir ou a participar na venda de ativos nos processos de recuperação judicial, pois há diversos exemplos em que as proteções para o terceiro adquirente, previstas na Lei Complementar 118 e na Lei de Recuperação de Empresas acabam dependendo de pronunciamentos judiciais para se concretizarem, acarretando insegurança jurídica e enormes prejuízos para os investimentos realizados. São bastante conhecidas as decisões em processos fiscais que atribuem responsabilidade pelo pagamento da dívida para toda e qualquer pessoa que guarda ou guardou singela ligação com o devedor, inclusive terceiros adquirentes de ativos das companhias em crise. O art. 60 da Lei de Recuperação de Empresas, que fornece blindagem para terceiros adquirentes de UPIs em processos de recuperação judicial, tem de ser efetivamente respeitado. Esse quadro de omissão governamental deve mudar. Com urgência. Conclusão Os pontos nodais de todos os processos de reestruturação são transparência, celeridade e segurança jurídica, o que permite o ingresso de dinheiro novo e o aumento do número de terceiros potenciais interessados, fatores umbilicalmente ligados entre si, influenciando diretamente uns nos outros. Evidente que, quanto mais rápido o procedimento, maior o número de terceiros potenciais interessados, em decorrência da celeridade no retorno do investimento. Assim também, a injeção de mais dinheiro novo faz com que o tempo para a reestruturação se torne substancialmente reduzido. O aporte de recursos depende necessariamente da segurança jurídica dos processos concursais, especialmente o de recuperação judicial, tal como ocorre com o mercado de capitais. No entanto, no mercado de distress essa segurança jurídica vem sendo afetada pela possibilidade de decisões anulatórias de Planos de Recuperação já aprovados por regulares Assembleias Gerais de Credores, bem como pela ausência de participação dos mais diversos entes REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 estatais nesses processos, sobretudo em decorrência da falta de regulamentação específica da matéria. É fundamental a adoção de medidas imediatas para estancar esses dois elementos repulsores do dinheiro novo e do sucesso da recuperação judicial, elevando o interesse do mercado de distress ao mesmo grau de desenvolvimento do mercado de capitais. Para a questão judicial, deve-se seguir a linha do enunciado nº 46 da I Jornada de Direito Comercial, deixando com a AGC a competência exclusiva para deliberar sobre os termos do Plano de Recuperação, cabendo ao Judiciário apenas a análise dos aspectos relativos à legalidade, como, aliás, recentemente, decidiu o STJ: “Disso decorre que, de fato, não compete ao juízo interferir na vontade soberana dos credores, alterando o conteúdo do plano de recuperação judicial, salvo em hipóteses expressamente autorizadas por lei (v.g. art. 58, §1º, da LFRJ). A obrigação de respeitar o conteúdo da manifestação de vontade, no entanto, não implica impossibilitar ao juízo que promova um controle quanto à licitude das providências decididas em assembleia.” (REsp 1.314.209/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/05/2012, DJe 01/06/2012). No limite, se for necessário ingressar no mérito econômico-financeiro do Plano de Recuperação, o Judiciário deveria levar em conta o princípio insculpido no art. 143, I do Decreto-Lei nº 7.661/45, o qual, adaptado ao novo instituto da recuperação judicial, significa dizer que o Plano de Recuperação deve gerar para os credores uma situação melhor do que a da falência. É de todo aconselhável que, em sede de recursos repetitivos (art. 543-C do CPC), o STJ fixe os parâmetros para interferência do Judiciário nas decisões das Assembleias Gerais de Credores. Com essas balizas, os terceiros potenciais interessados saberão efetivamente o risco que estão correndo na operação, com a transparência necessária, tal como no mercado de capitais. Por outro lado, a mudança de postura dos entes do Governo e dos seus agentes é essencial para desenvolver o processo concursal no Brasil, com a instituição de regulamentações e medidas práticas nos mais diversos níveis administrativos, abandonando a postura até então vigente, e lidando diretamente com o problema. Sem isso, a recuperação judicial no Brasil tende a se transformar em um infeliz processo de “faz de conta”, onde, apesar da existência de uma legislação concursal avançada – a Lei de Recuperação de Empresas –, equiparada às melhores do mundo, os devedores em crise não conseguem efetivamente se soerguer, com a manutenção da atividade econômica e geração de emprego, havendo um enfraquecimento do mercado de distress, especialmente quando comparado ao grau de desenvolvimento do mercado de capitais. Doutrina 39 * Daltro de Campos Borges Filho Advogado, sócio do Escritório Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados, Membro do Comitê de Falências e Recuperação Judicial TMA da seção Rio de Janeiro e na de São Paulo, Membro do Instituto Brasileiro de Recuperação de Empresas (IBR) e Professor do IBMEC, no curso LLM (2002/2003). Thiago Peixoto Alves Advogado, sócio do Escritório Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados, Mestre em direito comercial pela USP, Membro do TMA da seção São Paulo, Professor Convidado do Curso de Pós-Graduação em Direito Empresarial da FGV/SP e da Faculdade Damásio de Jesus-SP, Professor Assistente de Direito Comercial da Universidade de São Paulo e Relator da Comissão “Crise da empresa: Falência e Recuperação” da I Jornada de Direito Comercial, do Conselho da Justiça Federal. Revista Comercialista 40 Doutrina REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 As recentes mudanças no tratamento dispensado pela Lei nº 11.101/2005 às microempresas e empresas de pequeno porte na recuperação judicial: progresso ou retrocesso? Por Gustavo Lacerda Franco* 1. Introdução A importância das microempresas e empresas de pequeno porte no cenário econômico brasileiro é evidente. De acordo com a relação anual de informações sociais do Ministério do Trabalho e Emprego (RAIS-MTE), as chamadas micro e pequenas empresas, em 2011, representavam 99% das empresas privadas brasileiras, bem como agregavam 51,6% das pessoas ocupadas no país1. Estudo do Sebrae aponta também que, em 2011, essas empresas contribuíram com 39,7% da renda de trabalho e cerca de 20% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil2. Destaque-se ainda que, por conta da economia informal, que chega a representar 17% do PIB brasileiro3, esses dados podem ser, na verdade, ainda mais impressionantes. A relevância das microempresas e empresas de pequeno porte ocasionou, inclusive, a elevação do tratamento favorecido para tal categoria ao patamar de princípio da ordem econômica brasileira, como estabe- 1 Mauro Oddo Nogueira e João Maria de Oliveira, Da Baleia ao Ornitorrinco: Contribuições Para a Compreensão do Universo das Micro e Pequenas Empresas Brasileiras in Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, Radar 25 (2013), p. 7. DisRevista Comercialista ponível em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/radar/130507_radar25.pdf. Acessado em 12.05.2013. 2 M. O. Nogueira e J. M. de Oliveira, Da Baleia ao Ornitorrinco cit., p. 7. 3 M. O. Nogueira e J. M. de Oliveira, Da Baleia ao Ornitorrinco cit., p. 14. REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 lecido no art. 170, IX da Constituição Federal4. O art. 179 da Carta Magna, por sua vez, apresenta disposição no mesmo sentido5. A concretização das disposições constitucionais referidas, então, exigiu a edição de diversas normas destinadas, de modo específico, à disciplina das microempresas e empresas de pequeno porte, levando-se em consideração as suas particularidades em relação às demais empresas em atividade no mercado. Nesse contexto surgiram, por exemplo, o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (Lei Complementar nº 123/2006) e a Lei de Recuperação de Empresas e Falência (Lei nº 11.101/2005), que contém disposições específicas sobre a categoria empresarial abordada6. Cumpre apontar que, a despeito dos esforços do legislador em estabelecer um regime apropriado às microempresas e empresas de pequeno porte, no tocante à sua recuperação judicial, ao elaborar o projeto que originou a Lei nº 11.101/2005, a adequação dessas disposições legais à realidade das empresas em questão tem sido objeto de controvérsia desde o surgi- mento do novo diploma concursal, como será demonstrado adiante. A recente Lei Complementar nº 147/2014, então, promoveu notáveis mudanças na Lei de Recuperação de Empresas e Falência, não apenas quanto à recuperação judicial das microempresas e empresas de pequeno porte, mas, também, com relação à sua participação no processo recuperacional de outras empresas, como credoras. Nesse cenário, o presente estudo busca examinar, sucintamente e sem a pretensão de esgotar a discussão, que está apenas em seu início, a adequação do tratamento dispensado pelo diploma concursal às microempresas e empresas de pequeno porte na recuperação judicial, como devedoras e credoras, após o advento da mencionada Lei Complementar nº 147/2014, que promoveu modificações em seu regime. Propõe-se, nesse sentido, reflexão sobre tais mudanças à luz das críticas dirigidas pela doutrina ao regime até então adotado. 4 O dispositivo estabelece, mais precisamente, que deve ser observado “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”. 6 Justifica-se o tratamento específico, no âmbito do direito da empresa em crise, por serem as micro e pequenas empresas aquelas com menor possibilidade de recuperação, em razão de não serem devidamente assessoradas nos momentos de constituição e de crise econômica, de sua frequente informalidade, de seu fluxo de caixa restrito, de sua dependência estrutural de outras empresas na venda de bens ou prestação de serviços e da rapidez com que sofrem os efeitos da queda no consumo de pessoas físicas (Frederico Augusto Monte Simionato, Tratado de Direito Falimentar, Rio de Janeiro, Forense, 2008, p. 205). 5 Dispondo, por sua vez, que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.”. Doutrina 41 de recuperação judicial, ou seja, o regime de recuperação das microempresas e empresas de pequeno porte. Antes das mudanças recentemente operadas nesse âmbito, apontou-se que a seção específica da Lei de Recuperação e Falência sobre a matéria tratada, a qual abrange os artigos 70 a 72 do diploma, apresentava diversos problemas. Afirmou-se, por exemplo, que a legislação atual teria mantido, com relação ao pequeno empresário, sistema bastante semelhante à concordata do diploma concursal anterior7, instituto criticado por não envolver a participação dos credores, consistindo em um “favor legal”, e pela excessiva rigidez, inclusive quanto ao tempo de suspensão de pagamentos. Indicou-se que a esfera de incidência da recuperação judicial dessa categoria empresarial seria mais restrita do que a da concordata, que ao menos alcançaria todos os créditos quirografários8, assim como o prazo de duração do novo regime 2. A recuperação judicial de seria pouco mais flexível do que o microempresas e empresas anterior.9 A exclusão das instituições financeiras do procedimento de pequeno porte Deve-se analisar, primeiramen- recuperacional, por meio do afaste, a disciplina do plano especial tamento da incidência deste nas 7 Manoel Justino Bezerra Filho, Lei de Recuperação de Empresas e Falências Comentada – Lei 11.101/2005 - Comentário Artigo por Artigo, 5ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008, p. 195. 8 O dispositivo criticado, relativo à restrição do procedimento aos créditos quirografários, sofreu recente mudança pela Lei complementar nº 147/2014, que será abordada adiante. 9 Osmar Brina Corrêa-Lima e Leonardo Netto Parentoni, Gargalos no Procedimento da Recuperação Judicial de Empresas, in Newton De Lucca, Alessandra de Azevedo Domingues e Nilva M. Leonardi Antonio (coords.), Direito Recuperacional II – Aspectos Teóricos e Práticos, São Paulo, Quartier Latin, 2012, pp. 284-286. Revista Comercialista 42 Doutrina REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 hipóteses de propriedade fiduciária e leasing, igualmente, foi objeto de críticas pela doutrina10, bem como o fato de que as disposições específicas não teriam logrado êxito na redução dos custos do processo recuperacional para os agentes com menor capacidade econômica.11 A suspensão apenas das ações e execuções versando sobre créditos envolvidos no plano de recuperação dessas empresas, outrossim, foi alvo de crítica doutrinária, que sugere ser a recuperação extrajudicial mais interessante, em alguns casos, a esses agentes.12 A previsão de rejeição do pedido de recuperação e da decretação de falência pelo juiz na hipótese do art. 72, parágrafo único, da Lei nº 11.101/2005, no mesmo sentido, foi alvo de severas críticas.13 Expostas as críticas mais recorrentes ao regime legal discutido antes das modificações ocorridas, cabe apresentar o conteúdo destas e, em seguida, tecer considerações críticas sobre os dispositivos alterados. A Lei Complementar nº 147/2014 promoveu alterações quanto aos créditos alcançados pelo plano especial de recuperação judicial. Antes, em disposição criticada do art. 71, I14, o plano especial abrangia exclusivamen- te os créditos quirografários, com exceção daqueles decorrentes de repasse de recursos oficiais e dos previstos nos §§ 3º e 4º do art. 49 da Lei nº 11.101/2005. Com as alterações introduzidas no diploma, o plano especial passou a abranger todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos, salvo os decorrentes de repasse de recursos oficiais, os fiscais e os previstos nos §§ 3º e 4º do art. 49. Entende-se que houve, nesse ponto, alguma melhora, porquanto já não se limita a abrangência do plano especial aos créditos quirografários, o que deve ensejar aumento no interesse dos credores integrantes das demais classes em negociar com as micro e pequenas empresas em crise e colaborar para a sua recuperação, ampliando-se as chances de êxito no processo recuperacional. A manutenção das exceções previstas anteriormente, com o acréscimo dos créditos fiscais, não é isenta de críticas, mas reflete orientação que afeta a Lei de Recuperação de Empresas como um todo, não dizendo respeito apenas ao regime das micro e pequenas empresas. É de se notar, porém, que o alegado favorecimento ao capital financeiro de um modo geral, que decorreria da exclusão dos débitos relativos a alienação fiduciária, arrendamento e outros, além dos valores devidos a título de adiantamento de contrato de câmbio, da esfera recuperacional15, pode atingir de forma ainda mais grave as microempresas e empresas de pequeno porte16. A Lei Complementar nº 147/2014 trouxe modificações, igualmente, ao art. 71, II, do diploma falimentar, referente ao prazo de parcelamento do débito. A redação do dispositivo mencionado, que antes estabelecia a previsão, no plano especial, de parcelamento em até trinta e seis parcelas mensais, iguais e sucessivas, com correção monetária e juros de doze por cento ao ano, passou a permitir parcelamento em até trinta e seis prestações mensais, iguais e sucessivas, com o acréscimo de juros equivalentes à taxa Sistema Especial de Liquidação e de Custódia - SELIC, sendo admissível, também, proposta de abatimento do montante das dívidas. Nota-se, inicialmente, não ter havido qualquer evolução da legislação no tocante à rigidez do prazo máximo fixado, que permanece em trinta e seis meses, prazo que seria “desarrazoado” para alguns autores17, sendo mais per- 10 F. A. M. Simionato, Tratado de Direito Falimentar cit., p. 206. 14 F. A. M. Simionato, por exemplo, chegou a afirmar que, com a redação anterior do art. 71, I, do diploma concursal, havia sido decretada a morte das micro e pequenas empresas que buscassem a Justiça para enfrentar crise econômica, caso tivessem passivo bancário como leasing ou reserva de domínio, pois as disposições do dispositivo inviabilizariam a recuperação das empresas em questão, in Tratado de Direito Falimentar cit., p. 206. 15 M. J. Bezerra Filho, Lei de Recuperação cit., p. 197 11 O. B. Corrêa-Lima e L. N. Parentoni, Gargalos no Procedimento cit., pp. 286-287. 12 O. B. Corrêa-Lima e L. N. Parentoni, Gargalos no Procedimento cit., pp. 288-289. 13 O. B. Corrêa-Lima e L. N. Parentoni, Gargalos no Procedimento cit., p. 291. Revista Comercialista 16 Cf., nesse sentido, O. B. Corrêa-Lima e L. N. Parentoni, Gargalos no Procedimento cit., pp. 286287. 17 Cf., por exemplo, F. A. M. Simionato, Tratado de Direito Falimentar cit., p. 207. REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Doutrina 43 tinente, porém, apontar que a imposição de prazo máximo inviabiliza a negociação do pequeno empresário com seus credores acerca de períodos específicos para o adimplemento de determinadas obrigações, conforme as peculiaridades do caso concreto18, que deveriam balizar o exame de razoabilidade do prazo previsto no plano. Persiste, ainda, a necessidade de previsão de pagamento em parcelas mensais, iguais e sucessivas, o que confirma o caráter inflexível do regime analisado. A modificação concernente aos juros que devem incidir sobre o débito parcelado, por sua vez, afastou a adoção de percentual fixo, tornando-o equivalente à taxa SELIC. Conquanto seja possível defender que, com isso, o percentual aplicado passará a refletir de maneira mais verdadeira a realidade econômica do país, causa preocupação a possibilidade de variação significativa da SELIC, o que poderia afetar sobremaneira a situação da recuperanda. Na prática, contudo, essa alteração ainda não tem ocasionado grandes variações. Mudança mais expressiva e elogiável, no dispositivo apreciado, refere-se à possibilidade de o plano conter “proposta de abatimento do valor das dívidas”, que antes não estava presente na Lei, ao menos expressamente, como afirma Carlos Klein Zanini19. Desse modo, atenua-se a rigidez do regime de recuperação judicial dispensado às micro e pequenas empresas, permitindo a adoção de medidas mais adequadas às peculiaridades de cada uma delas, de seus credores e das crises por elas enfrentadas, ainda que os instrumentos fornecidos pela legislação possam não ser suficientes à ocorrência de uma negociação favorável à devedora e que, ao mesmo tempo, prestigie os interesses dos credores. A mudança operada no parágrafo único do art. 72, o qual afirmava que o magistrado julgaria improcedente o pedido de recuperação judicial e decretaria a falência do devedor se existissem objeções, nos termos do art. 55 do diploma, de credores titulares de mais da metade dos créditos apontados no inciso I do art. 71 e passou a dispor que o juiz rejeitará o pedido de recuperação e decretará a falência do devedor se houver objeções, conforme o art. 55, de credores titulares de mais da metade de qualquer uma das classes de créditos estabelecidos no art. 83, computados nos termos do art. 45 da Lei de Recuperação, buscou harmonizá-lo com a nova redação do art. 71, I, desta, condicionando a procedência do pedido de recuperação judicial da micro e pequena empre- sa em crise, porém, como visto, à ausência de objeções de credores titulares de mais da metade de qualquer uma das classes de créditos dispostas no art. 83, ou seja, do dispositivo que determina a ordem de classificação dos créditos na falência. Além de eventuais debates sobre a compatibilidade entre os dispositivos legais adotados como parâmetros no art. 72, parágrafo único, cumpre ressaltar que não se superou, com sua nova redação, a crítica sobre ser excessivo o poder atribuído aos credores20, especialmente se adotada a interpretação de que a discordância dos credores deve ser apreciada separadamente, em cada uma das numerosas classes previstas no art. 83, e não no todo. Conforme essa interpretação, bastaria a objeção de credores titulares de mais da metade dos créditos alocados em determinada classe, por exemplo, para se inviabilizar o procedimento almejado pela empresa em crise, o que tornaria provável o acúmulo de poder considerável e até determinante na decisão de certos credores, integrantes de classes esvaziadas, consistindo em claro contrassenso. Essa situação evidencia, aliás, com relação à recuperação de micro e pequenas empresas, a necessidade de desenvolvimento da disciplina sobre o abuso 18 O. B. Corrêa-Lima e L. N. Parentoni, Gargalos no Procedimento cit., pp. 286-287. Falência – Lei 11.101/2005 – Artigo por Artigo, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007, p. 325. 19 Comentários ao Art. 71 da Lei nº 11.101/2005, in F. S. de Souza Junior e A. S. A. de M. Pitombo (coords.), Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e 20 Nesse sentido, como afirma William Eustáquio de Carvalho, “deixar a aprovação de um plano de recuperação ao alvedrio de mais da metade des- ses credores talvez implique condenar à falência a empresa em dificuldades financeiras” (O Abuso no Poder de Voto na Recuperação Judicial de Microempresas e Empresas de Pequeno Porte no Brasil, in Revista de Direito Empresarial, 13 [2010], p. 131). Revista Comercialista 44 Doutrina REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 de direito dos credores ao manifestarem objeção ao plano especial, ausência que também se verifica, de modo geral, no campo recuperacional.21 Com relação ao plano especial de recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte, portanto, conclui-se que houve modificações pontuais, as quais ensejaram algumas melhoras no regime discutido, sendo insuficientes, no entanto, para promover verdadeira mudança em sua orientação. As críticas estruturais da doutrina, apresentadas acima, em grande medida não foram superadas. A nova redação do parágrafo único do art. 72, inclusive, pode trazer uma piora ao sistema em questão, a depender da interpretação que lhe for conferida, assim como a vinculação dos juros aplicáveis ao débito da recuperanda à taxa SELIC, dependendo de sua variação. de recuperação judicial de outras empresas, como credoras. Essas alterações também merecem ser examinadas, o que se faz em seguida. Com efeito, a mudança promovida no art. 41 da Lei de Recuperação de Empresas, que passou a prever o estabelecimento de uma quarta classe de credores, “titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte”, tem reflexos bastante profundos no processo recuperacional. E, embora se trate de reforma operada recentemente na legislação concursal brasileira, já se mostra possível indicar que o legislador aparentemente não buscou inspiração nos apontamentos da doutrina sobre a inadequação do texto legal nos pontos modificados. A alteração promovida no art. 41, por exemplo, criou uma nova classe de credores com base em critério relativo à natureza do 3. Participação de credor, e não do crédito detido, gerando dúvidas sobre a obrigamicroempresas e toriedade de inclusão dos credoempresas de pequeno res micro e pequenas empresas porte como credoras em processos recuperacionais na nova classe ou, frente ao enA Lei Complementar nº 147/2014 quadramento em mais de uma operou algumas modificações re- classe e à orientação de favorecilevantes na Lei nº 11.101/2005, mento dessa categoria empresaalém disso, quanto à participação rial, a concessão da oportunidade das microempresas e empresas de escolha, pelos credores em de pequeno porte nos processos tais circunstâncias, entre as clas- ses possíveis de acordo com a sua condição e a natureza do seu crédito, conforme lhes seja mais vantajoso. Trata-se de questão complexa, que reflete na segurança jurídica do processo recuperacional e deverá ser dirimida na seara jurisprudencial. A mudança promovida nesse dispositivo legal, ademais, encontra-se distante das sugestões doutrinárias para uma melhor organização dos interesses dos credores, com destaque para as profundas considerações de Sheila C. Neder Cerezetti acerca do tema22. Critica-se, nesse ponto, a separação dos credores em classes na forma operada pela legislação brasileira, em que não teriam sido observados critérios de verdadeira homogeneidade, sendo tal regra de vital importância no estabelecimento do equilíbrio entre interesses e na própria legitimação da atribuição aos credores da deliberação sobre o plano apresentado.23 Nesse sentido, apresentando possível solução, na atual conjuntura, ao problema apresentado, editou-se o enunciado nº 57 da I jornada de direito comercial do Conselho da Justiça Federal, o qual estabelece que “o plano de recuperação judicial deve prever tratamento igualitário para os membros da mesma classe de credores que possuam in- 21 Deve-se destacar, contudo, que já existem pesquisas sobre o tema. Cf., nesse sentido, Newton De Lucca, Abuso do Direito de Voto de Credor na Assembleia geral de credores Prevista nos Arts. 35 a 46 da Lei 11.101/05, in N. De Lucca, A. de A. Domingues e N. M. Leonardi Antonio (coords.), Direito Recuperacional II – Aspectos Teóricos e Práticos, São Paulo, Quartier Latin, 2012, pp. 223-249; Ga- ganização de Interesses, in P. F. C. S. de Toledo e F. Satiro, Direito das Empresas em Crise: Problemas e Soluções, São Paulo, Quartier Latin, 2012. Revista Comercialista briel Saad Kik Buschinelli, Abuso do Direito de Voto na Assembleia geral de credores, Tese (Mestrado) – Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2013, e Álvaro A. C. Mariano, Abuso de Voto na Recuperação Judicial, Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2012. 22 Cf. As Classes de Credores como Técnica de Or- 23 S. C. N. Cerezetti, A Recuperação Judicial de Sociedade por Ações – O Princípio da Preservação da Empresa na Lei de Recuperação e Falência, São Paulo, Malheiros, 2012, pp. 287-288. REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Doutrina 45 teresses homogêneos, sejam estes delineados em função da natureza do crédito, da importância do crédito ou de outro critério de similitude justificado pelo proponente do plano e homologado pelo magistrado”24. Crítica semelhante à divisão fixa de classes estabelecida pelo diploma é realizada por Jairo Saddi, ao afirmar que a reunião de pessoas com interesses divergentes pode atrapalhar substancialmente as deliberações dentro das classes. O autor defende que a assembleia seria mais representativa se a Lei de Recuperação adotasse um sistema com maior flexibilidade, no qual a composição das classes não estaria estabelecida legalmente, mas seria determinada pelo magistrado, após verificação da recuperanda e do perfil do seu passivo, em classificação atenta à melhor representação de cada grupo de credores.25 Nota-se, dessa maneira, que a doutrina apresenta críticas ao art. 41 da Lei de Recuperação de Empresas, de modo geral, em razão da rigidez na separação das classes de credores, que não teria observado critérios de verdadeira homogeneidade entre os interesses destes, prejudicando-se o equilíbrio que seria desejável nas suas deliberações. E a Lei Complementar nº 147/2014, em vez de flexibilizar a divisão de classes até então estabelecida, solucionando os problemas abordados acima, optou por apenas criar mais uma classe, nos mesmos moldes adotados anteriormente. É possível apontar vantagens surgidas com a criação da quarta classe de credores, já que geralmente as micro e pequenas empresas integrariam a classe dos titulares de créditos quirografários e, com uma classe própria, ganharam maior poder de negociação, que não teriam naquela. Essa perspectiva é reforçada por ocorrer a aprovação do plano de recuperação judicial, na nova classe, como já acontecia na classe de titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho, ou seja, pela maioria simples dos credores presentes, independentemente do valor do seu crédito, conforme disposto no art. 45, § 2º do diploma concursal, também modificado pela lei complementar referida. Pode-se considerar, ainda, que os integrantes da quarta classe de credores, por serem microempresas ou empresas de pequeno porte, provavelmente serão fornecedores da recuperanda, os quais, em tese, apresentarão maior preocupação com a efetiva superação da crise e, por isso, tornarão mais simples a aprovação do plano proposto. Não se pode deixar de notar, porém, que os aspectos indicados apenas são considerados positivos na medida em que representam avanço, ainda que pouco expressivo, na direção da observância aos critérios de homogeneidade propostos. Ocorre que esse pretenso avanço manteve, como base, o mesmo modelo inflexível de separação dos credores em classes, de modo que os benefícios apontados apenas existirão se confirmadas as suposições no sentido da homogeneidade entre os interesses das micro e pequenas empresas credoras, que pertenceriam à classe dos quirografários e seriam fornecedoras do devedor. E, ainda que tal hipótese seja confirmada, a nova classe representará progresso mínimo em um sistema que permanece insatisfatório. As modificações promovidas pela Lei Complementar nº 147/2014 no art. 41 da Lei de Recuperação de Empresas, ademais, suscitaram dúvidas quanto à aplicação do cram down, mecanismo disposto no art. 58, §§ 1º e 2º, do diploma que permite ao magistrado superar o veto de classe de credores e homologar o plano de recuperação apresentado se houver sido lograda a aprovação por mais da metade do valor dos créditos presentes à assembleia geral de credores, independentemente de classes; se ao menos uma (existindo apenas duas classes) ou duas classes 24 I Jornada de Direito Comercial, Brasília, Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2013, p. 55, disponível in http://www.cjf.jus. br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/LIVRETO%20 -%20I%20JORNADA%20DE%20DIREITO%20 COMERCIAL.pdf [14-07-2014] Recuperação de Empresas – Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, Rio de Janeiro, Forense, 2009, p. 293. 25 J. Saddi, Comentários aos arts. 41 a 46, in Osmar Brina Corrêa-Lima e Sérgio Mourão Corrêa Lima (coords.), Comentários à Nova Lei de Falência e Revista Comercialista 46 Doutrina (havendo três classes, até então) houver(em) concordado com o plano; se houver ocorrido a aprovação do plano por mais de um terço dos credores da classe destoante e, por fim, se não houver tratamento diferenciado entre os credores dessa classe, exigindo-se o preenchimento cumulativo de tais requisitos. Conquanto possa o legislador ter se omitido em operar mudanças no mencionado art. 58, conferindo-lhe clara conformidade em relação ao disposto no art. 41, deve-se esclarecer que inexiste, atualmente, efetiva contradição entre esses dispositivos, de modo que, havendo a aprovação do plano por duas das quatro classes de credores, observados os demais requisitos legais, inclusive o voto favorável de mais de um terço dos credores nas classes que rejeitaram a proposta, o juiz poderá conceder a recuperação judicial pleiteada. Com efeito, é essa a interpretação que parece mais correta, por atender aos propósitos elencados pela Lei em seu art. 47. 4. Outras modificações As demais alterações operadas pela Lei Complementar nº 147/2014 que se inserem no âmbito do presente estudo, ou seja, a redução do limite imposto à remuneração do administrador judicial ao patamar de 2% (art. 24, § 5º da Lei nº 11.101/2005), a inclusão de um representante indicado pela classe de micro e pequenas empresas no comitê de credores (art. 26, IV do diploma), a redução de prazo mínimo a ser observado após a concessão de recupeRevista Comercialista REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 ração com base no plano especial para se requerer nova recuperação (art. 48, III da legislação) e a concessão de prazo superior no parcelamento de débitos fiscais (art. 68, par. único do diploma), igualmente, decorrem das principais modificações realizadas no diploma concursal, já abordadas, ou consistem em simples estabelecimento de regras mais favoráveis às empresas referidas, sem qualquer transformação efetiva na orientação do tratamento a elas dispensado, sendo prescindível análise mais profunda nesse ponto. porte na recuperação judicial, tratando-se, porém, em perspectiva otimista, de mero aperfeiçoamento de dispositivos insuficientes e ineficazes, provavelmente incapaz de atribuir à disciplina examinada a relevância que deveria ter. Essa visão é reforçada, ainda, pela existência de preocupantes imprecisões no texto legal, como apontado. Eis, em conclusão, a funesta resposta para a pergunta inicialmente formulada: estagnação. 5. Observações finais Realizada a análise sobre o tratamento dispensado pela Lei nº 11.101/2005 às microempresas e empresas de pequeno porte na recuperação judicial após o advento da Lei Complementar nº 147/2014, resta responder ao questionamento proposto no título deste artigo, sobre se as mudanças promovidas no diploma concursal consistiriam em progresso ou retrocesso. Nesse tocante, entende-se que o legislador perdeu valiosa oportunidade de modificar estruturalmente a recuperação judicial das micro e pequenas empresas, tornando-a mais adequada à realidade econômica destas e solucionando a notória ineficácia do mecanismo, bem como deixou de operar imprescindível flexibilização das classes de credores, observando critérios de homogeneidade. Nota-se, portanto, que houve melhoras pontuais no tratamento legal dirigido às microempresas e empresas de pequeno * Gustavo Lacerda Franco Bacharel em Direito e Mestrando em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Membro do Conselho Editorial Discente da Revista Comercialista. 47 REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Confira também as edições anteriores em: issuu.com /revistacomercialista scribd.com/ofdusp Revista Comercialista 48 Doutrina REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Alienação fiduciária de bens essenciais à atividade da empresa em recuperação judicial: breves apontamentos críticos Por Talitha Saez Cardoso* Introdução No âmbito do direito comercial moderno, sobretudo em matéria de mercado financeiro e de capitais, subsistem institutos históricos, como a fidúcia, ainda que observadas naturais modificações ao longo do tempo. Nesse sentido, o presente artigo visa a analisar os efeitos da recuperação judicial sobre os bens de capital essenciais à atividade da empresa em crise, quando tais bens constituírem objeto de alienação fiduciária em garantia. Assim sendo, faz-se necessário, em um primeiro momento, examinar separadamente a alienação fiduciária e a recuperação judicial, nos limites do escopo do trabalho, para em seguida apresentar julgados referentes a tais matérias, assim como ponRevista Comercialista tuais divergências na jurisprudência concernente ao tema em questão. A fidúcia, cuja origem remonta ao direito romano, baseia-se em uma visão de propriedade individual e absoluta. A recuperação judicial da empresa em crise, por sua vez, foi incorporada recentemente ao regime falimentar brasileiro com a finalidade de viabilizar as relações econômicas no capitalismo contemporâneo e, em alguma medida, foi organizada de modo a relativizar as categorias tradicionais do direito privado. Diante disso, mais do que um reconhecimento da proximidade entre o direito civil e o direito comercial, dada a unificação do direito privado pelo Código Civil de 2002, é evidente a influência recíproca entre eles. Com isso, o presente tema demandará, inicialmente, uma breve análise das origens do instituto da fidúcia, da natureza do negócio fiduciário, da propriedade fiduciária no ordenamento jurídico brasileiro, da relação entre os contratos de alienação fiduciária e os modernos instrumentos financeiros e, por fim, examinar seu vínculo com o instituto da recuperação judicial das empresas em crise. Cumpre ressaltar que a utilização do método histórico não almeja conduzir a um exame exaustivo das origens da fidúcia, de modo que se pretende apenas expor o contexto de seu surgimento e desenvolvimento, evidenciando um lapso temporal no qual se manteve inerte até se restabelecer sob a forma de alienação fiduciária como um meio de garantia ampla- REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 mente empregado em contratos financeiros, entre outros. Uma vez analisados os conceitos fundamentais, é preciso relacioná-los entre si e à luz da Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005 – Lei de Recuperação e Falência – LRF, a qual trouxe modificações profundas em matéria de gestão e liquidação de empresas em crise, pois, além de instituir a recuperação judicial, elegeu o princípio da preservação da empresa como norteador de seus dispositivos. Adicionalmente à citação de julgados relacionados ao tema, alguns serão tratados individualmente, a fim de se investigar em que medida a aplicação da LRF é feita de modo coerente com o sistema de princípios e valores nela expressos. Doutrina 49 mercado financeiro, de capitais e em garantia de créditos fiscais e previdenciários. No direito brasileiro, portanto, a alienação fiduciária em garantia é considerada figura típica. Trata-se de propriedade resolúvel e limitada ao cumprimento de determinada obrigação que, quando satisfeita, implica a resolução da propriedade fiduciária, e, quando não satisfeita, implica a consolidação da propriedade do fiduciário ou futuro adquirente2. À parte das especificidades permitidas ao contrato de alienação fiduciária, a transferência da propriedade para o credor constitui uma atribuição comum, sendo importante notar que a eficácia deste instrumento depende da tradição do bem, quando móvel, e do registro do instrumento no 1. Contrato de alienação competente cartório de registro, quando se tratar de bem imóvel. fiduciária No que se refere ao contrato de Ademais, em caso de inadimalienação fiduciária, trata-se de plemento ou mora da obrigação um contrato acessório, por meio garantida, pode o credor vender o do qual um bem é vinculado ao bem objeto da propriedade fiducumprimento de uma obrigação1. ciária, sendo obrigado a aplicar o No direito brasileiro, a alienação preço da venda no pagamento do fiduciária foi introduzida pela Lei respectivo crédito e despesas den. 4.728, de 14 de julho de 1965, re- rivadas da realização da garantia, guladora do mercado de capitais. recebendo o devedor o saldo, conCom a Lei n. 10.931, de 02 de forme o caso. agosto de 2004, alterou-se a Seção XIV da lei anteriormente ci- 1.1. Das origens do tada, a qual dispõe atualmente instituto da fidúcia sobre o contrato de alienação fi- O porquê de uma contextualizaduciária celebrado no âmbito do ção histórica do instituto da fidú- cia reside na ideia de abordar sua origem de modo não exaustivo, apenas com o intuito de identificar no direito romano a configuração histórica responsável por seu surgimento. A tese de que a fiducia cum creditore corresponde à mais antiga espécie de garantia real é predominante entre os romanistas. Por meio da fiducia cum creditore a propriedade sobre coisa infungível se transferia do fiduciante para o fiduciário mediante a mancipatio ou in iure cessio. Conforme José Carlos Moreira Alves, as partes se obrigavam por meio do pactum fiduciae, que atuava como um “pacto resolutivo sob condição suspensiva do ato translativo dessa propriedade, o que implica dizer que tal resolução tem caráter meramente obrigatório, e não real, como sucederia no direito moderno”3. Na hipótese de não pagamento do débito garantido, caberia ao credor vender a coisa em garantia nos termos acordados no pactum fiduciae e, caso houvesse valor excedente, assegurava-se ao devedor o direito de receber a diferença4. Conforme mencionado acima, a atual legislação pertinente à alienação fiduciária em garantia adota operação semelhante. Interessante notar que houve um longo período de inércia do instituto desde seu surgimen- 1 Nesse sentido, conferir Luciano de Camargo Penteado, Direito das Coisas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 440. ord.). Contratos nominados. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 23. 2 CHALHUB, Melhim Namem. Negócio fiduciário. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 109. 3 MOREIRA ALVES, José Carlos. Da fidúcia romana à alienação fiduciária em garantia no direito brasileiro. In: CAHALI, Yussef Said (Co- 4 MOREIRA ALVES, op. cit., p. 23. Revista Comercialista 50 Doutrina to no direito romano. No direito moderno, a fidúcia foi retomada a fim de oferecer ao credor outra forma de garantia, mais segura, sem prejudicar a atividade do devedor, permitindo sua posse do bem garantido. 1.2. Negócio fiduciário e propriedade fiduciária Do negócio jurídico fiduciário advêm ao menos duas relações5, quais sejam: relação obrigacional e relação real; respectivamente, a dívida em si e a transferência da propriedade. Quanto à natureza jurídica dos direitos do devedor-fiduciante e do credor-fiduciário, Melhim Namem Chalhub explica que devido à celebração do contrato de alienação fiduciária, o devedor-fiduciante transmite a propriedade ao credor-fiduciário, ou seja, o devedor se torna proprietário sob condição suspensiva, tornando-se titular da propriedade plena ao cumprir a obrigação objeto do contrato principal6. A propriedade fiduciária, por sua vez, é um direito real, que se distingue dos outros direitos reais de garantia (penhor, hipoteca e anticrese), pois a propriedade do patrimônio originalmente do devedor é inserida no patrimônio do credor, isto é, há uma transmissão transitória ao credor. Assim, a propriedade fiduciária não apre- 5 Nesse sentido, verificar Luiz Augusto Beck da Silva, Alienação fiduciária em garantia. Rio de Janeiro: Forense, 1982. p. 21. 6 CHALHUB, op. cit., p. 40. Revista Comercialista REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 senta um caráter perpétuo, mas sim temporário. O Código Civil de 2002 trata da propriedade fiduciária nos artigos 1.361 e seguintes e, por meio da Lei n. 10.931, de 02 de agosto de 2004, inseriu no diploma o artigo 1.368-A, resolvendo a controvérsia a respeito das demais espécies de propriedade fiduciária, submetendo-as às respectivas legislações especiais e permitindo a aplicação das regras do atual Código Civil em matérias compatíveis com as regras especiais7. A característica comum às espécies de propriedade fiduciária é a formação de patrimônios autônomos, já que apesar de transferida a propriedade ao credor, o bem transmitido fiduciariamente não se comunica com os demais bens e direitos integrantes do patrimônio do credor. 2. Recuperação judicial A princípio, o Decreto-lei n. 7.661/1945 regulava o instituto da falência e o das concordatas preventivas e suspensivas. Após sua revogação pela LRF, as concordatas preventivas e suspensivas foram substituídas pela recuperação judicial e se manteve o instituto da falência. Vale notar que o Decreto-lei n. 7.661/1945 privilegiava a satisfação dos credores por meio da liquidação do patrimônio da empresa. O 7 Vale observar também as alterações recentes, no capítulo referente à propriedade fiduciária, em decorrência da Lei n. 13.043, de 13 de novembro de 2014, que modificou a redação do artigo 1.367 e inseriu o artigo 1.368-B. avanço significativo trazido pela LRF foi exatamente alterar esse foco ao objetivar primordialmente a recuperação da empresa em crise e a manutenção da atividade empresarial. Conforme dispõe o art. 47 da LRF: Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. Consoante Paulo Fernando Campos Salles de Toledo, a recuperação de empresas visa a gerar resultados a médio prazo e mediatamente, sendo a manutenção da fonte produtora, dos empregos e a satisfação dos interesses dos credores a médio prazo, enquanto, como resultados mediatos, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica8. Nelson Eizirik, por sua vez, observa que a redação da LRF vai ao encontro de manifesta tendência legislativa disposta a oferecer instrumentos para viabilizar a superação de crises, “no sentido de salvaguardar a empresa, que tem uma função social e, por isso, de- 8 CAMPOS SALLES DE TOLEDO, Paulo Fernando. Recuperação judicial, a principal inovação da Lei de Recuperação de Empresas – LRE. In: Rev. Adv., ano XXV, n.83, 2005. p. 102. REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Doutrina 51 ve subsistir às crises, em benenão pode jamais se transforfício dos que nela trabalham, da mar em bunker das instituicomunidade e, muitas vezes, do ções financeiras. Pelo contrápróprio país”9. rio, o novo regime falimentar Importante destacar também deve ser capaz de permitir a o parecer aprovado na Comissão eficiência econômica em amde Assuntos Econômicos, referenbiente de respeito ao direito te ao Projeto de Lei da Câmara n. dos mais fracos. (...) A lei de71 de 200310, responsável pela LRF. ve guardar consonância com a Dentre os princípios enumerados realidade social e econômica no parecer, ressaltam-se a preserda época em que é elaborada, vação da empresa, a proteção aos prevendo estímulos a comtrabalhadores, a redução do cusportamentos desejáveis no futo do crédito no Brasil, a retirada turo. Sobre a tentativa de moldo mercado de sociedades ou emdar a sociedade ao desenho presários não recuperáveis, a seda lei deve prevalecer o mogurança jurídica, entre outros. vimento em sentido oposto: Conforme observado no próo conhecimento desenvolviprio parecer, deve-se atentar aos do pelas ciências sociais deve obstáculos gerados pelo confliser integrado à lei, servindoto entre os interesses envolvidos, -lhe de base. A lei deve espesendo necessária a análise das imlhar o conhecimento do munplicações sociais e econômicas de do, ao mesmo tempo que deve forma a se alcançar um ponto de infundir, na dinâmica social, conciliação. Nesse tocante, destaos valores sociais prevalecenca-se o seguinte trecho: tes. O conhecimento do munNesse sentido, nosso trado progride, amplia-se e não balho pautou-se não apeestará nunca limitado ao círnas pelo objetivo de aumenculo do conhecimento jurídico to da eficiência econômica momentâneo11. – que a lei sempre deve propiciar e incentivar – mas, prinAssim, é evidente o propósito de cipalmente, pela missão de ampliar a alcance do regime falidar conteúdo social à legisla- mentar brasileiro, considerandoção. O novo regime falimentar -se a modernização das práticas empresarias e a realidade social e econômica atual. Com isso, a base do novo regime falimentar ao se orientar pelo princípio da preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica não protege estritamente o interesse das instituições financeiras, como até então era observado. Apresentado esse breve histórico e os princípios norteadores da LRF, é oportuno destacar o dispositivo objeto do presente trabalho e sua relação com a alienação fiduciária em garantia. Trata-se do art. 4912, o qual determina que todos os créditos existentes na data do pedido, inclusive os não vencidos, se sujeitam à recuperação judicial. Tal regra, contudo, comporta exceções, conforme o §3º, que enuncia taxativamente os créditos não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial, prevalecendo assim os direitos de propriedade e as condições contratuais celebradas. Dentre os titulares de tais exceções está o credor titular de propriedade fiduciária de bens móveis ou imóveis, porém, em caso de venda ou retirada de bens de capital essenciais à atividade empresarial do devedor, deve-se observar o prazo improrrogável de 9 EIZIRIK, Nelson. Interpretação dos arts. 60 e 145 da lei de recuperação de empresas e falência. In:VON ADAMEK, Marcelo Vieira (Coord.). Temas de Direito Societário e Empresarial Contemporâneos. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 637. lidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.” 10 Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=63304>. Acesso em: 15 de julho de 2014. 11 Parecer de 2004 da Comissão de Assuntos Econômicos, sobre o PLC n. 71, de 2003, p. 11 e 12. Dis- ponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/ materia/detalhes.asp?p_cod_mate=63304>. Acesso em: 15 de julho de 2014. 12 “Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. (...) § 3o Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabi- Revista Comercialista 52 Doutrina REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 suspensão previsto no §4º do art. 6º da LRF13. Conforme será demonstrado adiante, o §3º do art. 49 se trata de dispositivo polêmico e de complexa aplicação, pois apesar da regra expressa nesse dispositivo, há julgados divergentes sobre o tema. A partir da análise de tais julgados, percebe-se que há um conflito entre a regra disposta no §3º do art. 49 e os princípios norteadores expressos no art. 47 supracitado. ção criadora de norma jurídica ao garantir a coerência da lei com o sistema de valores que a mesma pretende defender. Explica ainda que, se o princípio da preservação da empresa for aplicado de forma coerente, a recuperação empresarial se efetiva. Vale observar que os esforços no sentido de atender ao princípio da preservação da empresa devem se ater à viabilidade de manutenção desta, procedendo-se com a liquidação da empresa 2.1. Princípio da inapta à continuação de suas atividades. Em outros termos, copreservação da empresa A LRF, ao acolher expressamente mo o risco é inerente à atividade o princípio da preservação da em- empresária, é necessário o sopepresa, distancia do ordenamen- samento entre a preservação da to falimentar brasileiro o objetivo empresa e a retirada do mercaestrito de satisfazer somente aos do de sociedades ou empresários credores, já que a superação da di- não recuperáveis. ficuldade econômica da empresa é relevante tanto para a relação de- 2.2. Função social da vedor-credor, como para o poder empresa público e a coletividade. Cumpre neste ponto destacar, Neste ponto, faz-se necessário ainda que brevemente, a relação retornar às clássicas teorias con- entre a função social da empresa, tratualista e institucionalista. Co- diretamente ligada ao princípio da mo bem ressalta Calixto Salomão preservação da empresa e expresFilho14, a análise a partir de tais sa no supracitado artigo 47, e a teorias permite uma interpreta- função social da propriedade. Esta última constitui valor reconhecido constitucionalmente, conforme o art. 170 da Constituição Federal15, dentre os princípios gerais da ordem econômica. Nesse sentido, Eros R. Grau16 explica que sobre a propriedade dos bens de produção se realiza a função social da propriedade, uma vez que no sistema capitalista os bens de produção em regime de empresa são assentados em certo dinamismo, atendendo ao princípio social da empresa. Deste modo, o objeto da propriedade se vincula à busca de interesses coletivos, não somente aos interesses dos proprietários dos bens de produção. O princípio da função social da propriedade atribui ao titular de direito certo o poder-dever de fazer uso deste direito visando a benefícios à sociedade em geral. Quando este titular somente não causa efeitos prejudiciais ou se abstém de promover ações benéficas ao todo, não significa que cumpre com a função social, já que esta é atendida quando benefícios reais à coletividade são promovidos17. 13 “Art. 6o A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário. (...) § 4o Na recuperação judicial, a suspensão de que trata o caput deste artigo em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial.” da Constitucional nº 42, de 19.12.2003) VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995) Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.” 14 SALOMÃO FILHO, C. Recuperação de empresas e interesse social. In: PITOMBO, Antônio Sérgio A. Revista Comercialista de Moraes; SATIRO DE SOUZA JUNIOR, Francisco. (Coord.). Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/2005. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 41. 15 “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emen- 16 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988 (interpretação e crítica). São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 274. 17 GRAU, op. cit., p. 275. REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 2.3. Estímulo à atividade econômica Especificamente no que concerne ao estímulo à atividade econômica no âmbito do instituto da recuperação judicial, cabe tecer breves comentários, já que a análise econômico-jurídica ultrapassaria o escopo do presente trabalho. Dada a evidente importância do sistema de concessão de crédito como via de estímulo à atividade econômica, por meio de dados empíricos fornecidos principalmente pelo Banco Central do Brasil, pode-se demonstrar que a disponibilidade de crédito afeta o nível de atividade econômica de um país, a distribuição da renda e riqueza18. É evidente que a disponibilidade de financiamentos de longo prazo concede às empresas a possibilidade de realizar empreendimentos de maior escala, estimulando o processo de crescimento econômico do país. Como de fato se observa em países cujo mercado de oferta de crédito e de capitais é irrelevante, o desenvolvimento de empreendimentos resta prejudicado, afetando a capacidade produtiva, a qual acaba limitada ao autofinanciamento, à oferta de fundos de longo prazo pelo governo e às captações externas submetidas aos movi- 18 FERREIRA, Francisco Marcelo Rocha; MEIRELLES, Beatriz Barbosa (org.). Ensaios sobre economia financeira. Rio de Janeiro: BNDES, 2009. p. 48. 19 ARAUJO, P. Q. de; BORÇA JUNIOR, G. R.; SANT’ANNA, A. A. Mercado de crédito no Brasil: evolução recente e o papel do BNDES (2004-2008). In: FERREIRA, Francisco Marcelo Rocha; MEIRELLES, Beatriz Barbosa (org.). Ensaios sobre economia financeira. Rio de Janeiro: BNDES, 2009, p. 153. mentos de expansão e contração da liquidez internacional19. 3. Análise de julgados A seguir serão analisadas decisões que põem em xeque as regras que privilegiam os titulares de propriedade fiduciária no sistema da LRF, o qual propõe contemplar interesses múltiplos, com o propósito de garantir a manutenção da empresa, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores. Em julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG)20, a empresa em recuperação judicial (agravante) buscou reverter decisão que indeferiu seu pedido de extinção da ação de busca e apreensão de veículos dados em garantia a contrato de empréstimo celebrado com o banco (agravado). A agravante alegou que o contrato de empréstimo garantido por alienação fiduciária teria sido substituído pelo plano de recuperação judicial, levando à novação das obrigações. A maioria dos membros julgadores entendeu que o bem alienado fiduciariamente não se submete aos efeitos da recuperação judicial em consonância com o §3º do artigo 49 da LRF. Conforme já mencionado acima, decorrido o 20 Agravo de Instrumento nº 1.0153.08.0832436/001. Comarca de Cataguases. Agravante: Adubos Santa Maria S/A. Agravado: Banco Itaubank S/A. Relator: Exmo. Sr. Des. Antônio Bispo. Relator para o acórdão: Exmo Sr. Des. Maurílio Gabriel. Belo Horizonte, 28 de outubro de 2009. Disponível em: <http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/>. Acesso em: 28 ago. 2014. 21 Analogamente a este, cita-se outros julgados de Doutrina 53 prazo de 180 dias, pode o credor retirar do estabelecimento da devedora os bens objetos do contrato de alienação fiduciária, mesmo quando essenciais à sua atividade empresarial. A particularidade do presente julgado reside em voto vencido proferido pelo Des. Antônio Bispo, o qual entendeu que a lei instituidora da recuperação judicial concedeu um privilégio aos credores fiduciários, conforme o §3º do art. 49 da LRF, gerando um desequilíbrio patrimonial para a empresa em recuperação judicial. Em seu entendimento, apesar de transcorrido o prazo legal de 180 dias, a apreensão dos bens garantidos fiduciariamente causaria prejuízo maior, inviabilizando a recuperação da devedora e, assim sendo, a concretização da continuidade da empresa deveria prevalecer sobre os efeitos do contrato de empréstimo. Os demais desembargadores se manifestaram no sentido de rejeitar tal entendimento, uma vez que o prazo estabelecido pela LRF já havia expirado. Em resultado, foi mantida a decisão que determinou a expedição do mandado de busca e apreensão dos bens dados em garantia21. Em contrapartida, é interessante analisar também as decisões diferentes órgãos, entre eles: Agravo Regimental nº 2011/0241236-2 (STJ), Agravo de Instrumento nº 1.0035.08.124940-7/002 (TJMG), Agravo de Instrumento nº 0230231-09.2011.8.13.0000 (TJMS), Agravo de Instrumento nº 0006687-75.2010.807.000 (TJDF), Agravo de Instrumento nº 867440-6 (TJPR), Agravo de Instrumento nº 0115469-27.2005.8.26.0000 (TJSP), Agravo de Instrumento nº 1.0518.07.1222864/001 (TJMG) e Agravo de Instrumento nº 1.0477.12.000312-4/001 (TJMG). Revista Comercialista 54 Doutrina REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 que vão de encontro a tal decisão, como exemplo o julgado do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso (TJMT)22, no qual o credor pretendeu impugnar decisão favorável a grupo econômico em recuperação judicial. Tal decisão obstou a consolidação da propriedade fiduciária do credor sobre os bens dados em garantia no contrato firmado entre as partes. O credor, com isso, não teve seu pedido atendido com base no princípio da continuidade da atividade empresarial23. Cumpre destacar que os dois imóveis dados em garantia representavam 35% do faturamento do grupo econômico em recuperação judicial. Com base nisso, a turma julgadora entendeu que tais imóveis rurais eram essenciais ao desempenho da atividade da recuperanda, sem os quais a manutenção da empresa seria inviável. Ressalta-se que essa decisão silenciou a respeito do transcurso do prazo previsto no §4º do artigo 6º supracitado. Não se deve olvidar que, transcorrido esse prazo, deferir medida que permitisse a permanência dos bens alienados fiduciariamente, mesmo quando comprovadamente essenciais à continuação das atividades da empresa, seria contrário à determinação legal. Quanto à colisão entre os direitos de consolidação da propriedade e o princípio da continuidade da empresa, esta decisão nitidamente conferiu preferência à continuação da atividade da devedora em detrimento dos direitos do credor fiduciário. Vale citar outro julgado do TJMG24, o qual considerou que quando essenciais ao funcionamento da empresa devedora, os bens objeto da ação de busca e apreensão devem permanecer em sua posse até o julgamento final da ação. Nos termos do acórdão, “A paralisação das atividades da empresa dificultaria o pagamento de sua dívida perante o agravado, podendo atingir também terceiros, gerando cada vez mais prejuízos.” 22 Agravo de Instrumento nº 007569560.2012.8.11.0000. Comarca de Sinop. Agravante: Banco Votorantim S.A. Agravadas: Valegrande Indústria e Comércio de Alimentos S.A. e outro(s). Relator: Des. Orlando de Almeida Perri. Cuiabá, 22 de agosto de 2012. Disponível em: <http://www.tjmt.jus.br/jurisprudencia>. Acesso em: 28 ago. de 2014. no presente trabalho. Destaca-se do acórdão o seguinte trecho: “Após analisar conjuntamente o RAI 75695/2012 e o RAI 52243/2012, embora tirados de decisões distintas, assim considerados pela identidade de partes e de objeto, reconheço o acerto das decisões singulares ao reconhecer a existência de garantia compartilhada entre o Citibank e o banco agravante, a continuidade das atividades da agravada com resultado econômico, a regularidade do plano de recuperação e seu propósito, bem como o interesse social que deve prevalecer sobre a saga do mercado financei- 23 No acórdão, fez-se uso do termo “princípio da continuidade da atividade empresarial” entendido como equivalente ao termo “princípio da preservação da empresa” empregado Revista Comercialista mentação nos princípios ou regras nela expressos, criou-se um sistema que, apesar de inovar em seus princípios norteadores, manteve os titulares de determinados créditos afastados dos efeitos da recuperação judicial. Nesse sentido, é possível estabelecer um paralelo com o sistema anterior, construído exclusivamente com base na relação credor-devedor, ou seja, orientado à satisfação do credor e liquidação da empresa em crise. Deste modo, a LRF, em certa medida, instituiu um sistema de difícil compatibilização dos diversos interesses envolvidos na atividade da empresa, ao excluir certos credores dos efeitos da recuperação, fazendo prevalecer os direitos de propriedade e os termos contratuais. Apesar de aparentemente o legislador ter satisfeito o conflito de interesses por meio da vedação à venda ou retirada de bens essenciais do estabelecimento do deConclusão vedor pelo prazo de 180 dias, o Tendo em vista que há divergên- conflito de interesses não foi sacias a respeito da aplicação da LRF, tisfatoriamente resolvido, como se nos limites apresentados no pre- pode observar nas decisões antesente trabalho, conforme a funda- riormente citadas. ro e das suas variantes”. 24 Agravo de Instrumento nº 1.0338.09. 087007-6/001. Comarca de Itaúna. Agravante: Tornearia Peixoto Ltda. Agravada: Sicoob Centro Oeste Coop Economia Cred Com Centro Mineiro Ltda. Relator: Exmo. Sr. Des. Gutemberg da Mota e Silva. Belo Horizonte, 30 de junho de 2009. Disponível em: <http:// www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/>. Acesso em: 28 ago. 2014. REVISTA COMERCIALISTA | Ano 4 – Volume 13 Por meio da LRF se objetivou atender às questões da economia e sociedade contemporânea, buscando-se um afastamento da relação binária (credor/devedor) até então vigente. De fato, a LRF procurou acolher diversos interesses, porém na prática o instituto da recuperação judicial não atende satisfatoriamente aos interesses dos múltiplos agentes envolvidos na atividade empresária. Tendo em vista também os julgados analisados, entende-se que a LRF, ao adotar princípios orientados à manutenção da empresa, avaliando-a em seu contexto econômico e social, mostrou-se desprovida de regras que efetivamente protegessem os múltiplos interesses, ocasionando considerável insegurança jurídica. Em vista das considerações feitas neste estudo, evidencia-se a necessidade de revisão das regras da LRF, no sentido de contemplar de fato os princípios expressos no art. 47. A reestruturação do procedimento de recuperação judicial seria um meio para se buscar atender aos diversos interesses, com o máximo de cuidado para se alcançar um equilíbrio entre os mesmos na prática. Trata-se, enfim, de uma questão metonímica do direito comercial moderno, já que a relação lógica e de proximidade entre as consequências sociais e econômicas da quebra são nitidamente intensas e complexas, assim como a proposição de mecanismos capazes de equilibrar de fato Doutrina 55 os diversos interesses das classes SILVA, Luiz Augusto Beck da. vinculadas à empresa. Alienação fiduciária em garantia. Rio de Janeiro: Forense, 1982. Referências CAMPOS SALLES DE TOLEDO, Paulo Fernando. Recuperação judicial, a principal inovação da Lei de Recuperação de Empresas – LRE. In: Rev. Adv., ano XXV, n.83, 2005. CHALHUB, Melhim Namem. Negócio fiduciário. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988 (interpretação e crítica). São Paulo: Malheiros Editores, 2010. MOREIRA ALVES, José Carlos. Da fidúcia romana à alienação fiduciária em garantia no direito brasileiro. In: CAHALI, Yussef Said (Coord.). Contratos nominados. São Paulo: Saraiva, 1995. PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. SALOMÃO FILHO, Calixto. Recuperação de empresas e interesse social. In: PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes; SATIRO DE SOUZA JUNIOR, Francisco. (Coord.). Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/2005. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. * Talitha Saez Cardoso Mestranda e graduada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Revista Comercialista www.facebook.com/ revistacomercialista Envie seu artigo acadêmico para: [email protected]