Relações entre os estudos dos significados e a gramática tradicional
Elisabeth Ramos da Silva
Profa. Dra. do Programa de Mestrado em Lingüística Aplicada e do
Curso de Letras da Universidade de Taubaté.
Marlene Silva Sardinha Gurpilhares
Profa. Dra. do Curso de Letras das Faculdades Integradas Tereza
D’Ávila.
RESUMO
Este texto apresenta abordagens históricas acerca
dos estudos sobre o sentido e suas relações com a
Lingüística e com a Gramática Tradicional. Nessa
perspectiva, optamos por acompanhar brevemente o
caminho dos estudos lingüísticos, desde a Antigüidade
até nossos dias, com o intuito de esclarecer a relação
tríplice e necessária entre os estudos da língua, a
Semântica e o significado. Para tanto, nosso
procedimento consistiu em pesquisar o que tem sido
estudado no âmbito da Semântica ao longo do tempo, e nas diferentes escolas de pensamento, especialmente no que diz respeito à Gramática Tradicional e à
Lingüística. Constatamos que a preocupação com o
sentido se faz presente, embora de forma implícita,
mais ou menos nítida, nas várias vertentes lingüísticas.
Acreditamos que a compreensão desses aspectos possa contribuir para a ressignificação do ensino da gramática, na medida em que propicie ao professor fornecer, de forma crítica e consistente, os acréscimos
necessários ao arcabouço teórico da Gramática Tradicional.
PALAVRAS-CHAVE
Semântica; estudo dos significados; Gramática Tradicional; Lingüística.
INTRODUÇÃO
Partindo-se do pressuposto que a aprendizagem
da gramática favorece o desenvolvimento cognitivo
do aluno (VYGOTSKY, 1987) e que fornece critérios
para a adequação da linguagem na produção de textos
formais (SILVA, 2004; SILVA 2005), torna-se necessário
repensar o ensino da gramática, enriquecendo-o com
contribuições advindas da Lingüística Aplicada (SILVA
e GURPILHARES, 2006) ou com estudos que
Rev. ciênc. hum, Taubaté, v. 13, n. 1, p. 60-71, jan./jun. 2007.
possibilitem minimizar as lacunas que a Gramática
Tradicional apresenta (BECHARA, 2000). Insistimos na
Gramática Tradicional porque ela é ainda o arcabouço
teórico eminentemente pedagógico, destinado ao
ensino da norma-padrão (CÂMARA JR. 1987), além de
estar oficialmente presente nos livros didáticos, já que
estes devem atender ao que rege a Nomenclatura
Gramatical Brasileira (NGB).
É preciso, no entanto, esclarecer que não se trata
de insistir no modelo de ensino que priorizava
memorizações, mas sim de oferecer novos olhares, a
fim de que a reflexão sobre a língua possa tornar-se
uma ferramenta útil para o desenvolvimento da competência lingüística. Lembramos ainda que tal competência refere-se à noção de “aceitabilidade”, isto é,
refere-se à capacidade de saber discernir e utilizar a
variante mais adequada às diversas situações sociais
que o falante enfrenta em seu dia-a-dia.
Neste texto, optamos por abordar os estudos sobre
os sentidos e suas relações com a Lingüística e com a
Gramática Tradicional. Nossa proposta para este
trabalho consiste em percorrer o longo caminho dos
estudos lingüísticos, desde a Antigüidade até nossos
dias. Acreditamos ser possível estabelecer uma relação tríplice, absolutamente necessária, para esclarecer devidamente esta questão: Lingüística1 ? Semântica ? Significado. Para tanto, o caminho adequado consiste em “levantar e historiar o que tem sido estudado
no âmbito da Semântica, ao longo do tempo, e nas
diferentes escolas de pensamento” (MARQUES, 1996,
p.17).
De fato, das primeiras especulações do homem
sobre a natureza da linguagem, originaram-se muitas
doutrinas, as quais, desde séculos a.C até hoje,
constituem temas das gramáticas ocidentais e de procedimentos estilísticos, filológicos, aplicados aos estu-
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dos das línguas. Em vista disso, evidencia-se a importância de abordarmos os estudos mais antigos e tradicionais, bem como de estabelecermos relações entre
os estudos do significado e a Gramática Tradicional.
DIFICULDADES INICIAIS
Falar em Semântica implica necessariamente falar
de sentido, uma vez que este é o objeto de estudo
da Semântica. Mas, o que é o sentido? Tudo seria muito
simples não fossem as dificuldades intimamente ligadas à amplitude e à complexidade inerentes aos fenômenos relativos ao “sentido”. Daí o tipo de tratamento que a Semântica tem recebido nos estudos
lingüísticos e na Gramática Tradicional.
No corpo da Lingüística, nos últimos 50 ou 60 anos,
vê-se uma preocupação com princípios teóricos e
metodológicos formais, propiciando amplo conhecimento da gramática (fonologia, morfologia e sintaxe),
mas o mesmo não ocorreu com a Semântica (MARQUES, 1966). Os mais antigos textos lingüísticos de
que temos notícia giram em torno de problemas semânticos, mas a Semântica continua sendo, de todas
as disciplinas lingüísticas, uma das menos integradas.
Por ter um domínio de investigações cujos limites são
movediços, a Semântica se opõe à imagem integrada
que a palavra “ciência” evoca.
Tornou-se um lugar comum afirmar que as formas
lingüísticas são sinais portadores de sentido; porém as
dificuldades surgem quando se trata de determinar
no que consiste esse “sentido”. No campo dos estudos gramaticais, começou a tornar-se evidente a impossibilidade de estudar aspectos gramaticais sem
estabelecer uma relação com o sentido. Então, a Semântica começou a ser tratada como um componente da teoria lingüística nos estudos modernos. Surgiram, a partir daí, trabalhos que tratam da evolução do
significado das palavras, dos chamados “usos figurados”, tais como a metáfora, a metonímia, a polissemia,
a sinonímia, entre outros. A Lingüística, no entanto,
não considerou tais estudos devido à natureza
interpretativa que estes apresentam e ao fato de estarem em desacordo com os princípios teóricometodológicos explicativos das correntes lingüísticas
mais modernas. Assim, a Semântica permaneceu marginalizada dos interesses investigativos da Lingüística.
Como vimos, o significado é o objeto da Semântica; no entanto é preciso esclarecer no que consiste o
“significado”, já que as dificuldades principiam pela
falta de consenso quanto à própria terminologia: sigRev. ciênc. hum, Taubaté, v. 13, n. 1, p. 60-71, jan./jun. 2007.
nificado, sentido ou significação (nesta pesquisa, não
se faz distinção entre esses termos). Enfim, partindose do pressuposto que a teoria lingüística precisa incluir a Semântica em seu corpo de investigações, e
que esta se fundamenta na veiculação de significados, conclui-se que o termo “significado” deve ser
conceituado a partir de uma vinculação estreita com
os estudos lingüísticos, os quais são, naturalmente,
condicionados aos contextos socioculturais nos quais
se inserem. Teremos, dessa forma, “várias semânticas”,
visto que o conceito de sentido está necessariamente
atrelado ao paradigma teórico no qual está inserido.
A VISÃO TRADICIONAL: A ANTIGÜIDADE CLÁSSICA .
Entre os gregos, desde o século V a.C., é evidente
a preocupação com a linguagem no que concerne à
interpretação dos fenômenos naturais e às suas
relações com as instituições sociais. Os interesses
recaíam, principalmente, no aspecto relativo à origem
e natureza da linguagem, de um lado; de outro, na
relação entre as palavras e as coisas que elas
nomeavam ou significavam.
De fato, a primeira pergunta que os perseguiu por
muitos séculos foi: a relação entre o objeto e o seu
significado é natural ou convencional? Em outras
palavras, se aos elementos do mundo correspondem
nomes, as palavras se associam, naturalmente ou
convencionalmente, às coisas a que se referem?
Os adeptos da relação natural denominavam-se
“naturalistas”, e os da relação convencional,
“convencionalistas”. Coube às duas correntes, durante um longo período de tempo, levantar argumentos
que pudessem comprovar o seu ponto de vista. No
campo dos estudos fonéticos, por exemplo, os naturalistas se preocuparam em confirmar a origem
onomatopaica das línguas e tentaram estabelecer vínculos naturais entre o corpo fônico das palavras e as
coisas que elas nomeiam. No entanto, bem cedo perceberam que as palavras onomatopaicas representam
um percentual pouco significativo em relação ao léxico de uma língua. Utilizaram, então, o argumento referente aos estudos etimológicos, a fim de descobrir
o significado primeiro das palavras e analisar as transformações de seus constituintes.
A
RELAÇÃO SOM / SENTIDO
Embora o percurso da semântica nos estudos
lingüísticos seja bastante tortuoso, o sentido sempre
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foi causa de preocupação dos estudiosos, quer no
âmbito da Lingüística, quer no da Filosofia, quer no de
outras áreas do conhecimento. A relação som/sentido, desde a Antigüidade, constitui, para a ciência da
linguagem, um eterno problema, cuja origem encontra-se no seio da Filosofia ou, mais precisamente, no
diálogo “Crátilo” de Platão, escrito presumivelmente
no ano 388 a.C. Nesse diálogo, trava-se uma disputa
entre duas posições que, na história da Semântica,
receberam o nome de “naturalismo”, segundo o qual
cada coisa tem nome por natureza (posição defendida por Crátilo no diálogo), e “convencionalismo”, segundo o qual a significação é fruto da convenção e
do uso da linguagem (posição defendida por
Hermógenes) (OLIVEIRA, 1996). No diálogo, “o condutor do jogo, Sócrates, inclina-se a reconhecer que a
representação por semelhança é superior ao emprego de signos arbitrários [...]” (JACOBSON, 1973, p.102).
Platão não defende, em sua obra, um naturalismo
extremado, que possibilitasse descobrir a significação
de uma palavra na própria forma do som, o que seria
um absurdo; pois, se assim fosse, poderíamos
compreender línguas estrangeiras imediatamente. Ele
defende uma certa afinidade natural que, segundo
ele, deveria haver entre o som e o sentido. Como
exemplo desse caso, teríamos as palavras
onomatopaicas, as quais, no entanto, constituem casos raros, o que leva Platão a apresentar a tese naturalista, segundo a qual as palavras não imitam propriamente os sons, mas apresentam a essência das coisas. Assim, não se trata de imitação do som e das
formas das coisas, mas de seu próprio ser. Ou seja,
uma palavra é justa, certa, na medida que traz a coisa
à apresentação, isto é, na medida em que é apresentação da coisa.
Alia-se a essa concepção o que a filosofia grega
concebia como a função do pensamento: este era
concebido como a visão intelectual, a contemplação
do ser verdadeiro. Segundo Oliveira (1996, p.19), “O
olho do espírito era capaz de captar a ordem objetiva,
e essa ordem percebida era, por sua vez, a medida, a
norma da retidão da linguagem”. A tarefa da linguagem consistia na expressão adequada da ordem
objetiva das coisas.
Aprofundando essa concepção, Platão afirma que
há uma correspondência entre estrutura gramatical e
estrutura ontológica. Segundo tal postulado, a
construção de uma língua não é arbitrária. Os sinais
combinam-se no sistema a que pertencem, de maRev. ciênc. hum, Taubaté, v. 13, n. 1, p. 60-71, jan./jun. 2007.
neira que correspondem à estrutura ontológica por
eles designada. Cabe, pois, à linguagem a tarefa de
descrever, comparar, exprimir as diferenças, entre
outros aspectos. Trata-se de uma semântica realista. É
essa teoria que está subjacente ao naturalismo
platônico: a tese da afinidade entre sons e qualidades.
No entanto, Platão reconhece que essa afinidade
é limitada e admite que, na formação das palavras, há
convenções, embora não sejam explícitas e arbitrárias,
mas provenientes dos costumes tradicionais do uso
da língua: “as tradições significativas em linguagem
não são tomadas arbitrariamente por qualquer um. A
linguagem só pode ser instrumento de comunicação
se seus participantes usam as palavras no mesmo
sentido, e as normas de uso permanecem praticamente
constantes.”(OLIVEIRA, 1996, p.21). Finalmente,
arrematando essa questão, Platão expõe a discussão
fundamental sobre a linguagem: o poder cognoscitivo
da linguagem.
Crátilo sustenta a idéia de que o conhecimento
dos nomes constitui o princípio da sabedoria, o que é
contestado por Sócrates, para quem todo o sistema
de nomes pode tanto ajudar, quanto atrapalhar o
conhecimento. Em síntese, Platão afirma que é possível conhecer as coisas sem os nomes. Em outros
termos, como esclarece Oliveira (1996), o real só é
conhecido verdadeiramente em si, sem palavras, sem
a mediação lingüística. Isso significa que, por meio da
linguagem, não é possível atingir verdadeiramente a
realidade. O puro pensar, a contemplação da Idéias é,
para Platão, um diálogo sem palavras, da alma consigo mesma, sendo que a designação com sons do que
é intelectualmente percebido ocorre posteriormente.
Para Platão, o sentido está no pensamento, no ser,
sendo a palavra instrumento puro, o que, aliás, constitui o fundamento da teoria instrumentalista da linguagem.
AS CONCEPÇÕES DE ARISTÓTELES
As preocupações platônicas relativas ao sentido,
expostas na polêmica naturalismo X convencionalismo,
perpassam os períodos subseqüentes, estando inclusive
presentes no pensamento de Aristóteles, embora com
algumas modificações.
A preocupação com a significação permanece,
subsistindo a dúvida: as palavras são significativas por
convenção ou o são naturalmente? Admitindo-se a
primeira hipótese, o que garante que tal palavra
conserve a unidade de significação? Aceitando-se uma
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convenção universal, surge ainda outra questão: como
explicar esse acordo, uma vez que, normalmente, o
que é convencional só é universal acidentalmente?
De acordo com Aristóteles, para que uma
comunicação se efetive, é necessário pressupor um
fundamento objetivo. É o que denomina de essência.
A linguagem é um instrumento imperfeito para o pensamento, por isso é sempre ultrapassável. Por outro
lado, é somente pela unidade de sentido que existe
nas palavras que se torna possível a comunicação humana. Isso revela o caráter obrigatório da mediação
lingüística. Assim, para Aristóteles, a linguagem não é
imagem, reprodução do real, mas seu símbolo. Daí
dizer-se que a linguagem não manifesta o real, mas o
significa, isto é, ela não é um instrumento natural da
designação, mas apenas convencional. Nada é naturalmente símbolo, por isso é preciso que haja
convenção.
O filósofo, entre os diferentes atos de fala (pedir,
perguntar, ordenar, desejar), dá preferência à
proposição (sentença declarativa), a qual consiste em
um julgamento a respeito da existência do que é significado. Daí sua estrutura fundamental: dizer algo a
respeito de algo. É na proposição que a linguagem
ultrapassa a simples perspectiva de pura significação
para tentar atingir as coisas em si mesmas. A essência
da proposição não está em seus termos (que são apenas símbolos), mas no próprio ato da composição.
Aristóteles consagrou-se a análises da estrutura
fundamental de proposições sobretudo teóricas e, a
partir daí, fundou a lógica orientada por essa concepção de linguagem como sentença (proposição). No
entanto, o termo lógica é posterior a Aristóteles. Deriva
da palavra grega “logos”, cujo significado assemelhase à “razão”; por isso, segundo Lungarzo (1990), para
os antigos a “lógica” era uma ciência do discurso
racional. A lógica clássica era considerada uma ferramenta, um método para raciocinar corretamente.
Dentre os aspectos desenvolvidos na lógica, um
deles é de interesse desta pesquisa: a lógica dedutiva, que é decorrente do raciocínio dedutivo, também
conhecido como silogismo. Um raciocínio dedutivo
parte de premissas gerais para chegar a uma conclusão. Se as premissas forem verdadeiras, a conclusão
forçosamente também o será. Nesse tipo de raciocínio, não se precisa do conteúdo para extrair a conclusão. Esta é obtida apenas pela forma. Assim, é o
conhecimento da forma que garante a verdade da
conclusão, desde que as premissas sejam verdadeiRev. ciênc. hum, Taubaté, v. 13, n. 1, p. 60-71, jan./jun. 2007.
ras.
A SEMÂNTICA
NA GRAMÁTICA TRADICIONAL
O termo semântica foi proposto por Michel Bréal,
o primeiro a escrever uma Semântica (Essai de
semantique, 1896). Como se pode notar, a autonomia
da Semântica como disciplina particular na análise da
língua é bastante recente, não obstante a preocupação com o significado permear os estudos da língua
desde a Antigüidade. Segundo Kristeva (1969, p.55),
“a semântica cruza-se com a retórica”. O estudo do
sentido confundiu-se, na Antigüidade, com o estudo
das “figuras de palavras”, e hoje se cruza muitas vezes com a estilística. Mais recentemente, com o advento da Lingüística Comparada (início do séc. XIX),
estudam-se as mudanças de sentido a partir das causas históricas, lingüísticas e sociais.
A Lingüística Estrutural prioriza o significado da
palavra. Assim, Greimas (1966, apud KRISTEVA, 1969)
propôs-se isolar em cada palavra os “semas”, elementos mínimos de significação. Finalmente, a Lingüística
Textual, numa caminhada de quase meio século (desde
a década de 60), propõe-se a estudar o sentido como
resultado de uma interação sociocognitiva entre texto
e usuário.
Em consonância com o exposto, tudo nos leva a
crer que o caminho não foi muito diferente com
relação à Gramática Tradicional. Na Antigüidade, segundo Mattos e Silva (1989), a abordagem filosófica
que dá sustentação ao problema da “dominação”, proposta por Platão e Sócrates, fundamenta uma lexilogia
semântica, e não uma sintaxe. Talvez isso explique a
razão de, na Grécia, não se ter desenvolvido uma
teorização sobre a sintaxe que fosse consistente como
a teoria da significação referente ao léxico. No período das especulações filosóficas, as análises voltavamse para indagações sobre o universo.
Em razão de a Gramática ser parte da Filosofia,
coube a Dionísio de Trácia (séc. II-I a.C) a primeira
descrição ampla e sistemática de uma língua: o grego
da Ática. A obra foi editada em 1715. Não há nesta
gramática nenhuma parte explicitamente dedicada à
Semântica. A obra consta de 25 parágrafos sobre: a
gramática, a leitura, o acento, a pontuação, a rapsódia, o elemento, a sílaba comum, a palavra, o nome, o
verbo, a conjunção, o particípio, o artigo, o pronome,
a preposição e o advérbio.
Como se pode constatar, não há referência à
Semântica; mas, no primeiro parágrafo, ao tratar dos
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“tropos”, nota-se, subjacente ao assunto, a questão do
significado, bem como quando se trata dos parágrafos
referentes à leitura e à etimologia. A preocupação com
a Semântica revela-se também nos critérios utilizados
para conceituar as classes de palavras. O autor mistura critérios sintáticos, morfológicos e semânticos, ao
definir, por exemplo, o “nome” como parte do discurso flexionável em casos que, de modo comum ou
próprio, indicam o ser. Vemos que o autor utilizou
critérios morfológicos (parte do discurso flexionável)
e semânticos (indicam o ser). No total, constata-se
que 4 das 8 classes gramaticais são definidas por critério semântico, o que indica a preocupação com o
significado.
A gramática de Apolônio Díscolo trata, pela primeira
vez, especificamente da sintaxe (séc.II a.C). A obra
apresenta 12 partes: dos elementos (sons); da divisão
das partes do discurso (nome, verbo, particípio, artigo,
pronome, preposição, advérbio, conjunção); da sintaxe
das partes do discurso; da composição; dos acidentes;
das figuras; das figuras homéricas; da ortografia; da
prosódia; dos dialetos; sobre uma obra polêmica sobre
assunto gramatical.
Não há, nessa gramática, uma parte destinada
explicitamente ao estudo da semântica, no entanto o
autor trata das “figuras” e das “figuras homéricas”,
incluindo aí o significado. Do mesmo modo, o critério
prioritário para a conceituação das classes gramaticais
(partes do discurso) é o semântico: “Para classificar ou
definir uma palavra, leva-se em conta a forma, ou o
som, e o sentido, unido ao papel das palavras, que
determina a que classe a palavra pertence, é o sentido que tem prevalência sobre a forma”. (NEVES, 1987,
p.119).
A SEMÂNTICA
PORTUGUESA
NAS GRAMÁTICAS DA
LÍNGUA
As gramáticas gerais, fruto das teorias medievais
sobre o signo e a significação, “não são muito
estudadas e conhecidas, pela dificuldade intrínseca e
por terem sido censuradas pelo formalismo que se
impôs, no séc. XVI.” (MATTOS e SILVA, 1989, p.22).
Assim, passaremos a analisar uma gramática do séc.
XVI, de autoria de Fernão de Oliveira. Trata-se da primeira gramática da Língua Portuguesa. A obra apresenta 50 capítulos, sendo que a maioria versa sobre
“Terra e sua gente, a nobreza, cultura, arte, etc.” Na
parte destinada à língua, a fonética predomina, e não
há nenhuma referência explícita sobre a Semântica.
Rev. ciênc. hum, Taubaté, v. 13, n. 1, p. 60-71, jan./jun. 2007.
Somente dois capítulos remetem o leitor a uma reflexão sobre o significado: “etimologia” e “analogia”.
As classes de palavras abordadas nessa obra são
apenas três: artigos, nomes e verbos. O critério
utilizado é o morfológico: “os nomes se declinam em
gênero, número e caso” (OLIVEIRA, 2000, p. 143, grifo nosso).
Em 1803 (ou 1787, para alguns), surge a
“Grammatica Philosophica da Língua Portugueza” ou
“Princípios da Grammatica Geral Aplicados à nossa linguagem”, de Jeronymo Soares Barbosa. O fundamento filosófico dessa gramática remonta à Idade Média,
quando houve o advento da Escolástica, cuja influência nos estudos lingüísticos resultou na teoria dos universais lingüísticos, que se tornou o referencial teórico das “gramáticas gerais” desse período. No séc. XVII,
os gramáticos de Port Royal retomaram essa postura
com a publicação da Gramática geral e racional (1660).
Nessa linha, insere-se a gramática de Jeronymo S. Barbosa, publicada em Portugal, no final do séc. XVIII ou
começo do séc. XIX.
Essa obra é dividida em quatro livros, que tratam
respectivamente da “Orthoépia” (a boa pronúncia da
Língua Portuguesa), da “Orthographia” (a boa
“escriptura” da Língua Portuguesa), da “Etymologia” (
partes da oração) e da “Syntaxe e construcção”. A Semântica não é contemplada de forma explícita; mas,
nos livros destinados à “Etymologia” e à “Syntaxe”,
encontram-se menções ao significado: “trataremos
da parte lógica da mesma língua, considerando nas
mesmas partes da oração pelo que têm de
metaphysico, isto é, como sinais de nossas idéias e de
nossos pensamentos [...]” (BARBOSA, 1875, p.68, grifo
nosso). Tais considerações indicam que havia uma preocupação pelo sentido.
Essa obra apresenta seis classes gramaticais:
substantivo, adjetivo, verbo, preposição, conjunção,
advérbio. Os critérios utilizados são o semântico e o
sintático, como exemplifica a definição dada ao substantivo: “nome que exprime qualquer coisa como
subsistente por si mesma, para poder ser sujeito da
oração [...]” (BARBOSA, 1875, p. 80, grifo nosso). Como
se pode notar, o exemplo acima corrobora a idéia de
que havia uma preocupação com o sentido.
Em 1935 (ou 1915) surge a Gramática Histórica de
Eduardo Carlos Pereira. Trata-se de uma obra que reflete
o embasamento teórico da Lingüística Comparada, do
séc. XIX. Na opinião de intelectuais da época, um dos
méritos dessa gramática é a introdução de um capítulo
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sobre semântica, por ser esta disciplina o estudo das
leis que presidem à mudança de sentido da palavra
através da sua evolução no tempo e no espaço.
Outro aspecto positivo relacionado à comparação
dessa gramática com uma outra do mesmo teor, cuja
autoria é de Ribeiro de Vasconcelos, diz respeito à
introdução à sintaxe, estudo até então descurado. A
obra de Eduardo Carlos Pereira divide-se nas seguintes partes: Introdução; gramática histórica, phonologia,
phonética, morphologia, etymologia. É nesta última
parte que o autor introduz uma parte intitulada
“Semântica”.
Com relação às categorias gramaticais, o autor as
classifica nos capítulos destinados à morfologia (função
e flexão) e à sintaxe (história das palavras). A parte
dedicada à semântica compreende 17 páginas ( 252
a 269), e o termo semântica é conceituado como “o
estudo das leis que presidem à mudança de sentido
das palavras” [...] “A evolução lingüística attinge a palavra
não só em seus elementos phonicos e morphologicos,
mas também em seu elemento psychologico,
ideológico ou significativo.” (PEREIRA, 1935, p. 252).
Nessa parte, estudam-se os tropos, outros processos
semânticos, arcaísmos e neologismos.
Além de apresentar uma parte substanciosa sobre
semântica, a gramática de Eduardo Carlos Pereira
aborda as categorias gramaticais (substantivo, adjetivo,
pronome, verbo, advérbio, preposição, conjunção,
interjeição) conceituando-as a partir, e principalmente, do critério semântico. Trata-se de uma semântica
que se direciona totalmente para o enfoque histórico,
priorizando a etimologia.
A MODERNA GRAMÁTICA PORTUGUESA,
EVANILDO BECHARA
DE
A primeira edição da Moderna Gramática
Portuguesa, de Evanildo Bechara, data de 1961, no
entanto analisaremos a 37ª. edição, publicada em
1999, em que há mudanças substanciosas acerca de
vários aspectos gramaticais. Segundo o autor, tais acréscimos foram feitos com a intenção de aliar “a preocupação de uma científica descrição sincrônica a uma
visão sadia da gramática normativa, libertada do ranço
do antigo magister dixit e sem baralhar os objetivos
das duas disciplinas.” (BECHARA, 1999, p.20)
Vemos que essa gramática se insere no contexto
sócio-histórico das teorias lingüísticas mais recentes,
nas quais o sentido é estudado numa abordagem
pragmático-discursiva. No entanto, conforme exposto
Rev. ciênc. hum, Taubaté, v. 13, n. 1, p. 60-71, jan./jun. 2007.
anteriormente, não é papel nem função da gramática
caminhar paralelamente com os estudos lingüísticos,
nem mesmo pautar-se por tais teorias, embora, em
nossa análise, tenha sido possível observar algumas
correspondências. De fato, entre as gramáticas da
Língua Portuguesa, as mais atualizadas em relação a
teorias lingüísticas são as de Evanildo Bechara e as de
Cunha e Cintra (1985), por já introduzirem noções da
Lingüística Estrutural na análise do Português.
A obra de Bechara apresenta uma parte intitulada
“alterações semânticas”, na qual o autor conceitua a
semântica estrutural diacrônica como “o estudo
funcional das mudanças semânticas no léxico.”
(BECHARA, 1999, p.397), acrescentando ainda um
estudo das figuras. No entanto, o autor adverte: “É
uma disciplina ainda muito recente, e dada a natureza desta gramática dela não nos ocuparemos aqui.
Nosso intento é tão-somente chamar a atenção para
alterações semânticas no léxico.” (p. 397). Apesar dessa observação, encontramos ainda outras partes que
remetem a questões sobre o significado, tais como:
“Noções elementares de estilística”, “Fonética expressiva ou fonoestilística”, “Figuras de sintaxe”.
A gramática apresenta dez classes gramaticais
(substantivo, adjetivo, artigo, pronome, numeral, verbo,
advérbio, preposição, conjunção, interjeição). O autor
utiliza principalmente o critério sintático e o critério
semântico para conceituar as classes gramaticais
estabelecidas. Nesse aspecto, podemos novamente
perceber a preocupação com o sentido.
Tais considerações permitem-nos sintetizar nosso
percurso histórico em relação à Gramática Tradicional.
Vimos que as primeiras gramáticas refletem o período
das indagações filosóficas sobre a natureza da
linguagem. Na gramática de Dionísio de Trácia só
aparecem a Fonética e a Fonologia. Na conceituação
das classes de palavras, percebe-se a preocupação com
as declinações, o que vai reaparecer no Renascimento,
pois nesse período houve tentativas de recuperar a
cultura clássica. Na obra de Apolônio Díscolo surge a
sintaxe, já bastante substanciosa. Tais gramáticas constituem o embrião dos estudos gramaticais.
A terceira gramática analisada, a de Fernão de
Oliveira, reflete o espírito do Renascimento: a
exaltação das conquistas ultramarinas (no caso, as de
Portugal), incluindo sua língua e seu povo. Estes últimos são enaltecidos ao serem comparados ao Latim,
a “língua nobre”. De fato, o Latim estava no auge, e a
intenção do autor era mostrar que uma língua vulgar,
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o Português, era tão importante quanto o Latim. Daí
as declinações na Gramática e as conceituações baseadas no critério morfológico, priorizando os casos.
A quarta gramática analisada, de Jeronymo Soares
Barbosa, em aparente contramão da História, uma vez
que o embasamento filosófico remonta à Idade Média,
revela a preocupação do autor em apontar as
características universais da língua. A quinta gramática, de Eduardo Carlos Pereira, é a que melhor se insere
no contexto sociocultural em que foi elaborada, ou
seja, seu conteúdo se fundamenta nos princípios
teóricos da Lingüística Comparada. Até mesmo a parte
reservada à Semântica está a serviço da mudança e
evolução da língua. Por fim, a gramática de Evanildo
Bechara apresenta um enfoque estruturalista,
principalmente nas conceituações.
A seguir, voltaremos nosso olhar para a Lingüística,
objetivando perscrutar o lugar da semântica nos
estudos científicos relativos à língua.
A SEMÂNTICA
NA LINGÜÍSTICA COMPARADA
Iniciamos nossa exposição com a Lingüística
Histórica, embora saibamos que somente a partir do
Estruturalismo, de Ferdinand de Saussure, a Lingüística
adquiriu o caráter científico. Até então, os estudos da
língua no âmbito da Gramática Tradicional tinham
caráter especulativo, já que as análises pretendiam
fornecer respostas a especulações filosóficas sobre o
universo, sem se pautarem por exigências de comprovação empírica.(LOBATO, 1986)
No entanto, cabe lembrar que a concepção de
ciência não é absoluta, mas depende do contexto
sócio-histórico. Por outro prisma, podemos dizer que
a gramática especulativa dos escolásticos e de seus
sucessores de Port Royal era científica na medida em
que correspondia ao que então era concebido como
conhecimento. Suas demonstrações lógicas acerca dos
motivos de as línguas serem como eram baseavam-se
em princípios admitidos universalmente. A diferença
entre esse modo de encarar as questões lingüísticas e
o que resultou no período da Lingüística Comparada
não foi tanto pelo respeito aos fatos e pela cuidadosa
observação e compilação destes, mas porque havia,
no final do séc. XVIII, não só uma insatisfação geral
com as explicações apriorísticas e, assim consideradas, lógicas, mas também uma preferência pelo raciocínio histórico. (LYONS, 1979)
Aliás, o próprio conceito científico, segundo Lobato
(1986), é posto em dúvida já que não existe um
Rev. ciênc. hum, Taubaté, v. 13, n. 1, p. 60-71, jan./jun. 2007.
método unificado, válido para qualquer ciência. De
fato, a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia, entre
outras ciências humanas, não poderiam ser tratadas
com os mesmos métodos e conceitos empregados
nas ciências físicas. Assim, a tendência atual é aceitar
uma multiplicidade de métodos de investigação científica, sendo esses métodos variáveis de ciência para
ciência.
Diante do exposto, é lícito afirmar, tal como Faraco
(1991), que a Lingüística Histórica (ou Comparada) é
uma ciência. Segundo esse autor, nesse caso, o
trabalho científico, tal como ocorre em qualquer
ciência, não é uma ação direta sobre os fatos: a observação e a descrição sempre ocorrem mediadas por
pressupostos teóricos gerais, ou seja, o cientista se
aproxima dos fatos sempre orientado por uma
teorização prévia.
A Lingüística Histórica ocupa-se, fundamentalmente, com as transformações das línguas no tempo.
Reconhecendo-se o fato de que as línguas mudam no
eixo do tempo, busca-se, então, dar a esse fato um
tratamento científico, ou seja, realizar, de acordo com
teorias definidas, descrições dos diferentes processos
de mudanças que ocorrem na história de uma língua.
A partir de 1878 até os dias atuais, coexistem duas
grandes linhas interpretativas. Uma delas é mais
imanentista, ligada à corrente neogramática e
caudatária do estruturalismo, e entende a mudança
como um fato interno ocorrido no interior da língua,
e condicionado por fatores da própria língua. A outra
linha, enraizada nos primeiros críticos dos
neogramáticos e caudatária da Sociolingüística, entende a mudança articulada ao contexto social em que
se inserem os falantes.
Nesse contexto da Lingüística Histórica, a
Semântica é entendida como “a história da evolução
do sentido das palavras” (PAIS, 1980, p.95). Quer no
primeiro momento, quando as comparações
lingüísticas entre as palavras das diferentes línguas não
tinham preocupações cronológicas, quer no segundo
momento, quando a tarefa era a reconstrução
lingüística considerando a cronologia, o critério utilizado era sempre o semântico: todas as comparações
eram feitas com base no significado da palavra.
A consciência de que as línguas mudam torna-se
evidente, e as mudanças lingüísticas passam a ser
objeto de uma reflexão sistemática, já sob os
parâmetros da ciência moderna, conferindo à Lingüística
caráter científico. Enfim, embora sem constituir um
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corpo sistemático de saber, sem o “status” de ciência,
a semântica é a base de todo trabalho da Lingüística
histórico-comparativa, ficando os estudos sobre o léxico e a sintaxe relegados a segundo plano.
A SEMÂNTICA NO ESTRUTURALISMO LINGÜÍSTICO
Embora o Estruturalismo seja um assunto que
permita amplas explanações e várias abordagens, exporemos sucintamente apenas os aspectos pertinentes à nossa pesquisa. Deve-se a Ferdinand de Saussure
a transição da lingüística comparativista (preocupada
em descrever séries evolutivas isoladas) para a
lingüística cuja preocupação é explicar o funcionamento da língua. Saussure avança no estudo do significado ao criar a teoria do “signo”, definindo-o como uma
entidade de duas faces indissociáveis: o significante e
o significado. O primeiro consiste na forma acústica
ou gráfica do objeto; o segundo consiste no modelo
mental do objeto para os falantes. Aliás, ao propor
que a relação significante/significado é arbitrária e
convencional, Saussure está retomando a proposta dos
gregos na Antigüidade clássica.
Embora alguns estudiosos afirmem que os
estruturalistas não estão preocupados com o estudo
do significado, parece lícito afirmar que o significado
está presente, mas não como um conjunto de saber
sistematizado, mas como pano de fundo. Corroborando nosso ponto de vista, Oliveira afirma ( 2001, p.18)
que:
[...] há várias formas de descrever o
significado. Há várias semânticas. Cada
uma elege a sua noção particular de
significado, responde diferentemente
à questão da relação com a linguagem
e mundo e constitui, até certo ponto,
um modelo fechado, incomunicável
com outros. O estruturalismo de vertente saussuriana, por exemplo, definia o significado como uma unidade
de diferença, isto é, o significado se
dá numa estrutura de diferenças com
relação a outros significados. Assim, o
significado de uma palavra se define
não por ser um outro significado: mesa
se define por não ser cadeira, sofá,
abajur. Nesta perspectiva, o significado não tem nada a ver com o mundo.
Rev. ciênc. hum, Taubaté, v. 13, n. 1, p. 60-71, jan./jun. 2007.
A ESCOLA FONOLÓGICA
DE PRAGA
Na esteira do pensamento saussuriano, a Escola
Fonológica de Praga, cujos representantes são
Trubetzkov, Martine e Jakobson, dá um passo à frente
no estudo do significado ao propor o conceito de
fonema. Segundo esses lingüistas, deveria se levar em
conta às dicotomias já propostas, de um lado, o
significante de língua e de fala e, de outro lado, o
significado de língua e de fala.
Para Trubetzkov, seguindo Saussure, a língua é
psíquica, geral, abstrata e finita; a fala, ao contrário, é
psicofísica, particular, concreta, e o número de atos
de fala é infinito. Logo, a cada signo corresponde um
significante de língua e um número infinito de
significantes de fala. Desse raciocínio, nasce o conceito de fonema, unidade do significante de língua:
mental, psíquica, abstrata, que tem função distintiva
de signos pela oposição de seus significantes.
Exemplificando: “e” e “i” são fonemas nos pares /descrição/ - /discrição/, pois a troca de um pelo outro
altera o sentido da palavra.
Seguindo os passos de Saussure, Martinet cria a
teoria da dupla articulação, que consiste em uma
organização específica da linguagem, segunda a qual
todo enunciado se articula em dois planos. No primeiro (ou primeira articulação), o enunciado divide-se linearmente em unidades significativas: frases, vocábulos e morfemas. Assim, o enunciado “Nós falávamos
bem” articula-se, isto é, divide-se em três vocábulos:
nós; falávamos; bem. Enquanto “nós” e “bem” são
indivisíveis em unidades menores, “falávamos” decompõe-se em 4 fonemas: fal- á- va- mos. “No segundo
plano (ou segunda articulação), cada morfema, por
sua vez, articula-se em unidades menores desprovidas de significado: os fonemas.” (KOCH, 1995, p.11).
Exemplo: “nós” divide-se em 3 fonemas: /n/ /ó/ /s/.
A terminologia usada para designar as unidades da
primeira articulação varia muito. Martinet designa-as
como monemas, distinguindo os lexemas e morfemas,
os primeiros do léxico e os segundos da gramática.
Vê-se que é mais uma contribuição no estudo do
significado do signo lingüístico. De acordo com Pais
(1980, p. 102), “Ficaram então claramente definidos
os níveis de análise lingüística e as disciplinas que
lhes correspondem: a fonologia, que estuda as
unidades distintivas da segunda articulação, de
significante, [...] a semântica, que estuda a combinatória
dos elementos de que resulta o significado.” Trata-se,
portanto, de uma lingüística que analisava as estrutu-
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ras da língua, tomando por limite máximo o enunciado. É o auge dos estudos sintáticos, porém alguns laivos de preocupação com a semântica aparecem em
Greimas, cuja obra de 1976 intitula-se “Semântica Estrutural”. Como se pode notar, o emprego do termo
“semântica” no título denuncia tal preocupação, embora seja uma semântica totalmente voltada para a
palavra.
Tudo leva a crer que as tentativas de criação de
uma semântica no estruturalismo não foram levadas
muito a sério. Como afirma Pais (1980, p. 107), “a
semântica gerativa, proposta por alguns dos seguidores de Chomsky, que pretendiam contestá-lo, parece
ter chegado, em seu estágio atual, a um relativo fracasso”
Na década de 70, ocorreu a ruptura epistemológica
ao ser proposta uma concepção dinâmica de sistema
e de estrutura. Assim por exemplo, a “sintaxesemântica”, disciplina proposta por Fillmore (EUA) e
por Pottier (França), definiu-se como pós-estruturalista e desenvolveu-se muito. Os estudos sintáticos
somente poderiam ser desenvolvidos se atrelados aos
semânticos. Pottier, Audubert e Pais (1975), em
“Estruturas lingüísticas do Português”, apresentam
como classes semânticas: análise semântica, semântica gramatical e semântica lexical. A análise sêmica
mostrava-se valiosíssima, revelando a importância da
análise semântica.
No final dos anos 60, assiste-se a uma série de
proclamações antiestruturalistas, em razão de se
estudar apenas a língua, e não a fala; o sistema e não
o discurso, o enunciado e não a enunciação. Essa insatisfação corroborou o surgimento de um novo
paradigma, que orientaria a Lingüística Textual.
A LINGÜÍSTICA TEXTUAL
A Lingüística Textual surge na segunda metade da
década de 60, e seu mérito é colocar o texto como
objeto de estudo da Lingüística. Entre a década de 60
e a de 70, o texto era concebido como uma frase
completa. Porém, no estudo das relações entre
enunciados, a primazia era dada às relações
referenciais, particularmente à correferência, considerada um dos principais fatores de coesão textual. O
texto era entendido como o resultado de um múltiplo referenciamento, considerando-se os processos
anafóricos e catafóricos. Não se fazia ainda menção
aos aspectos remissivos não-correferenciais, como as
anáforas associativas e indiretas e a dêixis textual,
Rev. ciênc. hum, Taubaté, v. 13, n. 1, p. 60-71, jan./jun. 2007.
embora alguns autores alemães já mencionassem esse
processo. A retomada de porções maiores ou menores do texto (anáfora encapsuladora) igualmente não
era levada em conta.
O aprofundamento dos estudos permitiu que a
questão da coerência fosse englobada nos recursos
de coesão textual. Até então, a coerência era entendida como mera propriedade ou característica do texto.
Nesse momento, foram realizados vários trabalhos
relativos à coerência e coesão textuais. No Brasil, as
principais representantes desses estudos foram Fávero
(1999) e Koch (2002). Estava consolidada a abordagem sintático-semântica do texto.
É interessante observar que a coerência diz respeito
ao modo como os elementos subjacentes à superfície
textual entram numa configuração veiculadora de
sentidos. “Nessa vertente teórica o texto deixa de ser
entendido como uma estrutura acabada (produto),
passando a ser abordado no seu próprio processo de
planejamento, verbalização e construção.” (KOCH,
1998, p.21). Assim sendo, depreende-se que, nessa
concepção, o sentido não está no texto, mas é
construído a partir dele, no curso de uma interação.
Essa nova postura já é prenúncio da abordagem
pragmática, que vai se impondo e conquistando
proeminência nas pesquisas sobre o texto. Trata-se de
uma conquista nas pesquisas de Lingüística Textual,
pois esta passa a considerar o funcionamento da língua nos processos comunicativos de uma sociedade
concreta. Tal virada pragmática deve-se a Van Dijk,
que postula, ao lado da macroestrutura semântica do
texto, uma macroestrutura pragmática, responsável
pela coerência pragmática. Sendo assim, “a coerência
não se estabelece sem levar em conta a interação,
bem como as crenças, os desejos, as preferências, as
normas e os valores dos interlocutores.” (KOCH, 2004,
p.19).
Desse modo, a noção de coerência passa a
incorporar, ao lado dos fatores sintático-semânticos,
uma série de fatores de ordem pragmática e
contextual, o que levou Charolles (1983, apud KOCH,
2004) a mudar seu conceito de coerência, passando a
considerá-la um princípio de “interpretabilidade do
discurso”, o que o leva a postular que não existe texto
incoerente.
Na década de 80, delineia-se nova orientação: todo
fazer é acompanhado de processos de ordem
cognitiva. Trata-se da chamada “virada cognitivista”. O
texto passa a ser considerado como um resultado dos
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processos mentais. Na produção textual, são utilizados
os conhecimentos que estão armazenados na
memória. Para o processamento textual, contribuem
três grandes sistemas de conhecimento: o lingüístico
(conhecimento gramatical e lexical), o enciclopédico
(conhecimento de mundo) e o interacional
(conhecimento sobre as formas de interação através
da linguagem).
Por esse prisma, o processamento textual é
estratégico. “As estratégias de processamento textual
implicam a mobilização on line dos diversos sistemas
de conhecimento”.(KOCH, 2004, p.25). Em razão do
interesse pela dimensão sociointeracional da linguagem e processos afeitos a ela, surgem questões que
despertam interesse dos estudiosos da linguagem,
entre elas estão a referenciação, a progressão
referencial, o processamento sociocognitivo do texto,
entre outras. Nessas questões, o sentido é construído
na interação sociocognitiva, tornando-se um quesito
imprescindível ao processamento textual.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta deste trabalho consistiu em oferecer
ao leitor um percurso dos estudos lingüísticos com o
intuito de estabelecer uma relação tríplice entre
Lingüística/ Semântica/ Significado. Vimos que a
relação som/sentido tem-se revelado, para a ciência
da linguagem, um eterno problema. Na Antigüidade,
a função do pensamento era a contemplação do ser
verdadeiro, e o papel da linguagem era a expressão
adequada da ordem objetiva das coisas. As concepções platônicas relativas ao sentido foram expostas na
polêmica naturalismo X convencionalismo e
adentraram os períodos subseqüentes.
Em relação à Gramática Tradicional, vimos que
alguns autores abordam a semântica apenas de forma
subliminar, sem se dedicarem efetivamente ao assunto,
embora muitas vezes utilizem o critério semântico
para definir as classes de palavras. Em relação à
Lingüística, percorremos o trajeto das inovações nos
estudos científicos da língua, dando ênfase à maneira
como o sentido tem sido considerado dentro das várias
tendências. Vimos que, mesmo sem a existência de
uma ciência denominada Semântica, as questões
relativas ao significado sempre preocuparam os
estudiosos. Atualmente o sentido é visto como uma
construção resultante da interação sociocognitiva.
Diante do exposto, fica uma pergunta: se temos
uma gramática histórica, toda alicerçada na lingüística
Rev. ciênc. hum, Taubaté, v. 13, n. 1, p. 60-71, jan./jun. 2007.
histórico-comparativa; se temos uma gramática
seguindo uma linha da Lingüística Estrutural, por que
não temos uma abordagem discursiva na Gramática
Tradicional, que contemple as teorias mais recentes
do sentido?
Terminamos nossas considerações observando que,
na verdade, já existe na gramática um embrião desse
enfoque discursivo, que poderia ser evidenciado em
uma outra pesquisa. Muitas vezes, a classificação
sintática de um termo depende muito mais do sentido
que a palavra assume no texto do que de outros
aspectos formais. Um exemplo é a dificuldade de
diferenciar o adjunto adnominal do complemento
nominal quando se trata de termos que
complementam o substantivo. Para distingui-los, é
preciso atentar para o significado. Do mesmo modo,
as orações adjetivas restritivas diferenciam-se das orações adjetivas explicativas por causa do sentido que
adquirem num determinado contexto. Trata-se certamente de um enfoque interessante, que mereceria
mais investigações. Em suma, se acreditamos que a
gramática deva ser ensinada na escola, também é certo
considerarmos que a Gramática Tradicional precisa ser
complementada e atualizada em alguns aspectos, a
fim de que realmente possa servir de instrumento de
reflexão nas aulas de língua portuguesa.
RELATIONS BETWEEN THE STUDIES OF MEANINGS
AND TRADITIONAL GRAMMAR: CONTRIBUTIONS
FOR THE NEW MEANINGS OF GRAMMAR TEACHING.
ABSTRACT
This text presents historical approaches of the sense
studies and its relations whit Linguistics and Traditional
Grammar. In this perspective, we opt to follow briefly
the path of the linguistics studies, since Ancient times
until our days. With the intention of understand and
clear the necessary and triple relation between the
language studies, the semantics and the meanings.
For this, our procedure consisted in researching what
has been studied in semantics through time, and in
the different schools of thinking, especially in the
matters of Traditional Grammar and Linguistics. We
notice that the worry with the senses is always present,
although in an implicit form, more or less clear, in the
innumerous linguistic forms. We believe that the comprehension of this aspects may contribute to the new
meaning of the teaching of grammar, as long helps
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the professor give in a critical and consistent way, the
necessary theory of the Traditional Grammar.
KEY
WORDS
Semantics, study of meanings, Traditional Grammar,
Linguistic.
NOTA
1
____Introdução à Lingüística textual. São Paulo:
Martins Fontes, 2004.
_____; SILVA, Maria Cecília P. de Souza. Lingüística
aplicada ao português: morfologia. São Paulo: Cortez,
1995.
EXPLICATIVA
É importante salientar que o termo “Lingüística” é aqui consi-
derado como estudo de língua e não como ciência autônoma,
KRISTEVA, Julia. História da linguagem. São Paulo:
Martins Fontes, 1969.
o que só ocorre posteriormente.
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_____; GURPILHARES, Marlene Silva Sardinha.
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Ricardo de; SILVA, Elisabeth Ramos da (orgs.). Formação do profissional docente: contribuições de pesquisas em Lingüística Aplicada. Taubaté,SP: Cabral Editora
e Livraria Universitária, 2006, p.47-71.
Paulo: Martins Fontes
Elisabeth Ramos da SIlva
É doutora em Educação e professora do Programa de Mestrado
em Lingüística Aplicada e do Curso de Letras da Universidade
de Taubaté.
[email protected]
Marlene Silva Sardinha Gurpilhares
É doutora em Lingüística Aplicada e professora do Curso de
Letras das Faculdades Integradas Tereza D’Ávila.
TRAMITAÇÃO
Artigo recebido: 19/01/2006
Aceito para publicação: 18/04/2006
SILVA, M. C, Peres de Souza; KOCH, I. G. Villaça.
Lingüística aplicada ao Português: morfologia. São Paulo: Cortez, 1995.
VYGOTSKY, L. S. 1987 Pensamento e linguagem. São
Rev. ciênc. hum, Taubaté, v. 13, n. 1, p. 60-71, jan./jun. 2007.
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6° art Relações entre os estudos dos significados e a gram