No tempo de Salazar havia mais estado social
João Duque, 83 anos, um homem influente noutros tempos diz que no tempo de Salazar havia mais
estado social e que a banca, os telefones, a electricidade e os combustíveis estavam bem controlados
pelo Estado Português. O PS e o PSD entregaram tudo à iniciativa privada. Agora são os Amorins que
mandam.
João Duque é uma figura da terra que toda a gente conhece na Chamusca mas com quem pouco gente falou. Nomeadamente
as pessoas das últimas gerações. Tenho para mim que ele hoje é mais conhecido pelo homem alto, de chapéu, que ás vezes
está ali ao portão da sua casa a olhar quem passa, do que pelo seu currículo, ou pelo seu passado, que é grande e com muitas
histórias.
Esta entrevista impôs-se pela história que contamos neste jornal relacionada com o seu pai, Rafael Duque, que tem nome de
rua em Lisboa e foi Ministro de Salazar durante 10 anos. Na Chamusca, onde também tinha nome, a placa foi arrancada em
plena revolução de Abril.
Outra razão que justificou esta entrevista: diz-se na Chamusca que João Duque tinha decidido doar toda a sua fortuna a uma
instituição da terra. O assunto foi tema de conversa durante o nosso encontro mas o entrevistado pediu que guardássemos
reserva dessa parte importante da conversa. Foi uma das razões para que esta entrevista quase morresse no computador.
Achamos, agora, que uma andorinha não faz a primavera. E o jornalista sempre pode guardar a informação para outra altura.
Escrevo esta introdução com os poucos apontamentos que guardo do dia em que João Duque se sentou à minha frente num
cadeirão de um hotel de Lisboa. Vejo agora que o título desta entrevista poderia estar naquilo que conversamos com o
gravador desligado, nomeadamente quando a meio da conversa confessou que só acreditaria no comunismo como ideologia e
prática política se todos os homens fossem missionários.
Publicar uma entrevista com João Duque não é tarefa fácil para quem tem apenas três páginas de jornal.
Não é só o passado familiar e politico de João Duque que justificam esta entrevista (aparte a possibilidade de se tornar
benemérito). Duque foi um homem muito influente nomeadamente quando foi presidente da RTP. Mas é também uma figura
da terra que, com oitenta e três anos, deixa marcas inconfundíveis de tempos que nunca mais viveremos, que nos ligam a
outras personagens, também elas tão importantes nas nossas memórias colectivas.
No período revolucionário do 25 de Abril a placa com o nome de rua do seu pai foi arrancada. A mágoa ainda não passou ?
Não. Nem passará. O meu pai nunca pediu um nome de rua. Acho que a ideia foi do Eng. Carlos Amaral Netto. Mas não achei
justo o que alguns indivíduos fizeram.
Pelo que percebo não estava na Chamusca quando isso aconteceu
Foi arrancada a um domingo. Nessa altura passava os fins-de-semana em Lisboa.
O seu pai foi um dos ministros mais importantes dos primeiros governos de Salazar
Foi Ministro da Agricultura de 1934 a 1940 e depois Ministro da Economia, de 1940 a 1945, mais ou menos. Mas antes disso
tinha sido secretário de Lima Duque, nosso parente. Nessa altura vários políticos foram mortos. Daí a minha mãe não gostar
que o meu pai fosse Ministro ou fosse o que fosse na política e ainda Presidente da Comissão Administrativa na Câmara da
Chamusca em 1926 e em 1933, Director Associativo e Advogado.
Então a mãe não gostava que o pai fosse da política.
Não, não gostava. Um dia o Doutor Mário de Figueiredo apareceu na nossa casa e disse para o meu pai: “o Salazar quer que tu
sejas candidato a Presidente da República. Ou tu ou o Supico Pinto”. E a minha mãe meteu-se na conversa e disse: “Se te
metes noutra - nessa altura o meu pai já tinha feito todos aqueles anos no Governo de Salazar - eu pego nos rapazes (eu tinha
20 anos e o meu irmão mais velho 26, já estavam todos formados, eram engenheiros agrónomos, eu é que ainda estava na
Faculdade de Direito) vou-me embora para a Chamusca. E nós todos demos uma gargalhada. E a minha mãe viu o que tinha
dito e foi uma coisa espantosa: ria e chorava ao mesmo tempo.
Como o seu pai nunca chegou a ser candidato deduzo que foi Salazar que mudou de ideias?
Salazar queria afastar os militares da política. Quanto ao meu pai, o convite nunca chegou. Acabou por convidar Américo Tomás
que era uma figura de confiança. Era um marinheiro. Mas o grande apoio de Salazar era a tropa. Há muita gente que não sabe
isso. Ou tenta ignorar. Havia seis ou sete regimentos de confiança. Era aí que o Salazar se apoiava. E esses regimentos tinham
as balas. Os outros regimentos não tinham. Se fosse ali dizer ao comandante de um regimento “revolte-se lá”, ele dizia que
não. Daí aquelas pseudo-revoluções durante o Governo de Salazar acabarem sempre em julgamentos em Santa Clara. E eu
assisti a alguns nesse tempo. O próprio Prof. Paulo Cunha dizia-nos “vão assistir”. Mas era para praticarmos. É claro que eu ia
porque gostava de ouvir aquelas boatices políticas.
Salazar era visita de casa de seu pai.
Sim, mas o conhecimento vem de Coimbra. O meu pai foi aluno de Salazar no terceiro ano de Direito e fez parte do Centro
Académico da Democracia Cristã. Salazar foi à nossa casa da Chamusca e algumas vezes em Lisboa, quando o meu pai estava
doente. Mas não ia assim sem mais nem menos.
E quando seu pai era Ministro ia reunir com ele na casa de S. Bento em Lisboa?
Sim e telefonava porque era mais fácil. Tinha piada porque as empregadas lá de casa diziam sempre “ O Sr. Dr. Salazar está ao
telefone”. Salazar tratava-se na altura por doutor mesmo lá em casa. Ninguém lhe chamava Presidente do Conselho. É
engraçado. E Salazar estava habituado àquilo. Naquele tempo não se chamava professor a um professor universitário. Professor
era o professor de instrução primária.
Quem frequentava também a casa de seu pai em Lisboa era Humberto Delgado.
Delgado era nosso conterrâneo. Tenho um livro do Humberto Delgado com uma dedicatória para o meu pai. Ninguém mais
escreveu um livro como aquele a fazer a apologia do regime anterior.
Uma dedicatória de amigo para amigo?
Uma dedicatória altamente laudatória.
O assassínio de Humberto Delgado é um dos grandes crimes de Salazar?
Eu respondo-lhe com o nosso Freitas de Amaral: o Salazar, se tivesse de matar alguém, ou mandar matar alguém, que nunca
mandou - penso eu - não era o Humberto Delgado. O Freitas do Amaral diz que seria o Álvaro Cunhal.
Alguém quis ser mais papista que o papa?
Pode ter havido uma precipitação de Delgado. Ele era muito repentista. Uma vez ali à entrada do café Avis, nos Restauradores,
em Lisboa, vi o José Manuel Salgado, que pertencia à Legião Portuguesa, assim com os braços levantados “ó meu general, veja
lá o que é que faz”. Era Delgado que estava com uma pistola apontada para ele. Suponho que julgava que o outro pertencia a
uma polícia qualquer. E que o podia incomodar. Depois o Delgado guardou a pistola e entrou para o cinema.
Humberto Delgado não era, na altura, um opositor de Salazar?
Não sei. Mas havia homens como o Botelho Moniz, o Beleza Ferraz, que eram generais e esses traziam o regimento cá para
fora. Mas tinha que ser um regimento com balas. E mesmo esses não os traziam cá para fora porque eram regimentos com
muitos oficiais da maior confiança de Salazar. E foi isso que aguentou Salazar durante muitos anos e as tentativas de revolução
falharam todas. A Guarda Republicana era dele, a Polícia de Segurança Pública era dele, a Polícia Internacional também, e
depois tinha esses regimentos que serviam de apoio. Não era possível fazer uma revolução. Diziam que Salazar era tão forreta,
tão forreta, que obrigava os soldados - depois da carreira de tiro, a entregarem as cápsulas das balas, que toda a gente
pensava era para fazer novas balas. Mas não era. Distribuíam “X” balas e queriam ter a certeza que eles não tinham ficado com
balas a sério. A ideia era essa. A coisa nesse aspecto era muito vigiada. Era impossível fazer qualquer revolução. Além disso,
recordo, nesse tempo havia uma paz diferente da de agora, até muito diferente da do tempo da República. Quando se fala no
antigamente é claro que não havia liberdade, assim como há hoje. Nada disso. Mas comparado com 1910 até estes homens do
25 de Abril de 1974 são uns santos ao pé desses que cometeram verdadeiras atrocidades. Entre 1910 e 1926 matou-se muita
gente. Começaram com o rei e com o príncipe, depois vão para o Sidónio, e por aí fora.
A sua relação com Salazar é, a determinada altura, muito próxima nomeadamente quando é Presidente da Administração da
RTP?
Não era assim tão próxima porque ele não dava muita confiança. Muito poucas vezes recebi instruções directas de Salazar
porque ele tinha um Secretário de Estado que superintendia no meu sector.
É verdade que andou por África na altura em que era administrador da RTP?
Fui em trabalho a Angola, Moçambique e à Guiné dois anos seguidos. Entrava em operações. Levava repórteres comigo. Quem
queria ia de livre vontade. O meu pai dizia-me: “Vê lá o que fazes. Olha que os teus irmãos morreram (nessa altura já tinham
morrido os meus dois irmãos mais velhos). E o teu irmão Feliciano está doente. Olha que não temos mais ninguém.”
Quando o Papa Paulo VI veio a Portugal como decorreram as transmissões da RTP?
Quando o Papa veio a Portugal foi-nos transmitido pelo seu Secretário que queriam que fosse a televisão italiana a fazer as
reportagens. E eu fiz finca-pé e disse não, isso não, nós somos competentes para fazer o trabalho. E não cedi. Nessa altura até
falei com o meu pai e ele disse-me. “Homem, vê lá isso.” E eu respondi “Deixe lá, o máximo que pode acontecer é vir para
casa. E disse ao Secretário de Estado Dr. Paulo Rodrigues “se o senhor Presidente do Conselho entende que eu não estou a
servir os interesses de Portugal, o lugar está à disposição. Eu vou-me embora e põe cá outro indivíduo com quem chegue a
acordo”. Daí a uma hora telefona-me e diz-me assim: “Olhe que o Presidente do Conselho manda dizer que não é o Senhor que
não serve os interesses de Portugal” (risos).
Fui então a Fátima esperar o Papa e aconteceu um episódio digno de nota: ia com o Monsenhor Lopes da Cruz, e fomos
apresentados ao mesmo tempo. O secretário anunciou-me “II presidente de Ia televizione, Giovanni Duque”. Depois do beijamão o Papa fez um sinal a Monsenhor Lopes da Cruz para que se retirasse. Portanto ali eu é que era o tipo importante (risos).
Algumas semanas mais tarde, já tinha sido condecorado com a Comenda da Ordem de S. Gregário Magno pelo Vaticano,
propus ao Secretário de Estado ir a Roma, levar as reportagens da RTP sobre a vinda de Sua Santidade a Fátima. Fui
imediatamente autorizado a partir para Roma e onde fui recebido por Paulo VI e onde fiquei alguns dias a convite da Santa Sé.
Com o passar do tempo tem cada vez mais saudades desses tempos antigos?
Hum!! Pois!!!. O tempo não volta para trás. Parece que não se pode conseguir melhor do que o sistema em que vivemos. E
agora com a União Europeia tem mesmo que manter-se. Mas volto a frisar que o sistema autoritário que existiu de 1926 a
1974, incluindo já o período de Marcelo, tinha que acontecer. Se pegar no livrinho de Vasco Polido Valente, “O Poder e o Povo”,
entre outros, vê o que foi Portugal de 1910 a 1926.
Sei que reúne frequentemente em tertúlia com pessoas ligadas ao antigo regime e que discutem muita política? Ainda há muita
mágoa pela alteração do regime político.
Olhe que, de maneira geral, não é isso que vejo. Não aceitamos é a forma como a democracia é exercida. O comportamento de
certas pessoas, a onda de violência que abala a sociedade portuguesa... No nosso tempo, na Chamusca, podíamos dormir de
porta aberta. E até em Lisboa, ninguém assaltava ninguém. Houve aquele assalto dos homens da LUAR mas isso foi um caso
político. Não eram ladrões.
Mas essa desconfiança tem a ver com o sistema democrático que está implantado na Europa ocidental?
Não, não. Se for à Suíça aquilo funciona melhor. E funciona bem e aceita-se perfeitamente. Ou até mesmo em Inglaterra. Se
for lá para cima para o norte para a Suécia ou Noruega também se aceita bem. Mas se for para a Itália aquilo já é uma
barafunda. Em Espanha aquilo é uma maçada. Nós aqui não estávamos habituados a tantos assaltos.
Mas a democracia não vale esses sacrifícios?
É vantajosa em certos aspectos. Isto é. As pessoas podem manifestar-se mais à vontade, pode haver mais liberdade. Mas sob o
aspecto económico, social, educativo... É tudo pior. Funciona tudo pior.
A nova classe política nascida do 25 de Abril não soube aproveitar as oportunidades?
Não, não soube. Só aquele período do Cavaco é que foi um bocadinho melhor... Este homem que lá está agora que é do
Partido Socialista tentou, ao princípio, fazer alguma coisa.
Como é chegar aos 83 anos?
É verdade! Com tanto sarilho! Com tanta maçada! Olhe é isto! Com um principio de tuberculose aos oito anos, com uma
pneumonia aos três anos. Depois com uma dilatação na aorta, de uma cornada de uma vaca no início da minha passagem pelo
Grupo de Forcados de Santarém e uma embolia pulmonar.
O seu irmão Jorge Duque é que ficou mais conhecido e até imortalizado num fado bem castiço?
Sim, era mais velho do que eu. Faleceu com 33 anos. Só cá fiquei eu que era o pior (risos). Veja lá o azar do destino. Os meus
irmãos eram todos melhores do que eu. O Jorge foi o melhor aluno de Agronomia do seu ano. Foi um grande forcado também.
O senhor foi forcado no grupo de Santarém durante quantos anos?
Dois anos. Um dia peguei na Figueira da Foz. A coisa correu bem, dei a volta à praça com o João Núncio. Quando entrei em
casa já era meia-noite. Foi o Fernando Mascarenhas que me trouxe para Lisboa. Abri a porta e páaafff... levei uma estalada
bem dada que até quase caí para chão. O meu pai disse-me: “seu patife, foste para a Figueira da Foz!”. O Mário Figueiredo
entretanto tinha ido dar os parabéns pela minha actuação sem saber que o meu pai não queria que eu andasse por lá.
Na altura tinha 16 anos, a primeira vez que peguei um toiro. Aos 20 anos já não levava estaladas.
Rafael Duque era um pai severo?
Em certas situações era. Noutras era tolerante ou fingia que não sabia. Combinava-se com minha mãe. Por exemplo na questão
dos cigarros. A certa altura, ao almoço ou ao jantar, levantavam-se todos da mesa e iam fumar. Não era porque o fumo
incomodava ou fazia mal à saúde de quem não fumava; era por respeito: não se fumava à frente dos pais ou de pessoas mais
velhas. Era feio.
Viver sozinho foi uma opção de vida?
Não, não foi. A coisa calhou assim. Se me pergunta se eu gostei de mulheres, respondo-lhe que mulheres é o melhor que há
nesta vida. Eu até gostei de uma com a qual podia ter casado. Morreu cedo demais.
Teve uma vida sempre bem vivida?
Bem vivida!? Não digo tanto. Agora para o fim até vivo às vezes com algum aborrecimento. Já quase nem vou às touradas, veja
só, que era o espectáculo que mais gostava ver!
Já sabemos que gosta de mulheres e de corridas de toiros. Que outras paixões alimentou?
Ai! Muitas, muitas! Olhe, ainda hoje gosto muito de ler. Se acordo durante a noite leio e faço horas de leitura todos os dias. Ler
os jornais e aquelas revistas e suplementos, só isso leva-me algum tempo...
Que jornais costuma ler?
Leio o Público, o Diário de Notícias, o Diário Económico, o Expresso...
Costumo ler a imprensa regional?
O MIRANTE e pouco mais.
Concorda com a regionalização ?
Não, não. É um país muito pequeno e não há muitas diferenças que justifiquem a regionalização. Só as gentes do Porto é que
dizem “binho” em vez de “vinho”. Dizem “ôn” em vez de “ão”. De resto é tudo igual. Agora é preciso não esquecer é que já cá
estão meio milhão de estrangeiros.
A quem é que foi buscar esse porte altivo, essa forma de estar, essa voz sonante? As pessoas olhavam e ainda olham para si
com desconfiança?
Não, não me parece...
Diria até com algum receio de lhe dirigirem a palavra...
Repare que ao longo da minha vida sempre tive uma conduta regrada. Fui sempre um homem de princípios e de regras. E isso
influi muito na nossa imagem e na consideração das pessoas.
Hoje está mais sociável?
Não, não. Ainda hoje sou assim.
É uma forma de se proteger. Ou é uma forma de se evidenciar?
Não. Não tem nada a ver com isso. Tem a ver com a minha maneira de ser.
Qual é o sentimento que tem com a Chamusca?
É muito grande. Ainda hoje para lá vou e é onde tenho vivido nestes últimos quase quarenta anos.
Ainda tem amigos na Chamusca?
Tenho. Mas já muito poucos. Já morreram quase todos. Tenho lá alguns afilhados.
As suas propriedades na Chamusca ainda são uma boa razão para continuar a ir à terra?
Sim, são um escape.
Que imagens guarda da sua infância na Chamusca?
Olhe, sei lá! Desde o Tejo e de quando haviam cheias, andar de jangada. Tantas coisas: as terras, o campo, o andar a cavalo, a
caçada às lebres, os jogos de futebol. Até os meus companheiros da bola já morreram quase todos!
Quem é que influenciou mais a sua formação como Homem?
O meu pai e o meu irmão mais velho tiveram uma influência muito grande. Eu dei-me sempre com pessoas mais velhas. Não
sei se era por ser o mais novo dos meus irmãos mas gostei sempre de andar com pessoas mais velhas do que eu.
Como é que se descreve a si próprio?
Olhe não sei, nunca pensei nisso. Agora apanhou-me de surpresa!
Por que é que nunca fez política mais a sério?
De certa maneira, naquele tempo fiz. E fui aceitando os lugares. Eu gostava era das coisas económicas, à medida que ia
progredindo na vida. Simplesmente, a coisa acabou em 1968, com a saída do Salazar do governo e a doença do meu pai. Mas
fiquei até Abril de 1969 a pedido do Dr. Marcelo Caetano.
Não era Marcelista?
Não, não era. E além disso, com o falecimento do meu pai, tive que ficar a tomar conta das coisas. Ainda hoje, e é uma coisa
que as pessoas desconhecem, e julgam que o meu pai era um agricultor muito grande, mas não era. As grandes casas
agrícolas eram da família Amaral Netto, da família Norberto Pedroso, etc.. Tínhamos era casais de charneca de renda, que eu
ainda mantive até ao 25 de Abril.
O Marcelo não o entusiasmava como político?
O Marcelo Caetano era um grande professor de Direito Administrativo e com quem eu sempre me dei bem. Ainda hoje o
Marcelo é considerado o melhor administrativista português.
Considera então que a escolha foi boa?
Não, a escolha não foi boa. Porque o Marcelo tinha ideias diferentes. Já nessa altura nós conhecíamos as cedências de Marcelo
Caetano e do pouco conhecimento das realidades. Faltava-lhe vida prática, conhecimento do que se passava no terreno,
faltava-lhe conhecer mais as pessoas, o mundo. O sentido da realidade é uma coisa muito importante para se poder governar.
Era o que Salazar tinha. Salazar era como Filipe II. Filipe II conhecia até o barbeiro de Saragoça (estou a exagerar talvez). O
Salazar nunca tinha ido a África mas conhecia tudo.
Se não tivesse sido Marcelo Caetano a subir ao poder a Revolução dos Cravos tinha sido adiada por muitos mais anos?
É possível.
E não era pior para Portugal?
Não. Acho que teríamos conseguido uma transição mais pacífica. A seguir ao 25 de Abril, o Partido Comunista ia tomando conta
disto. Pouco faltou. Se não fosse a América e alguns portugueses, tinha sido um sarilho.
Mas nessa altura a maior parte da Europa já era um mundo livre e de liberdades.
Não era tanto assim. Repare que os franceses andaram aos tiros até ao fim antes de perderem as suas colónias. O nosso
homem do Partido Socialista, que escreveu umas memórias de muitas páginas... não me recordo o nome...
Almeida Santos...
Sim, o Almeida Santos, que eu li. Nesse livro, ele diz que a nossa descolonização foi a melhor, apesar dos defeitos. Ora, se foi a
melhor, dá-me ideia que os prejuízos não vieram de Salazar. Os ingleses tiveram cenas piores. Os belgas foram uma vergonha.
E veja os franceses: na Argélia e depois na Indochina, chegaram a ter lá 500 mil homens. Morreram lá 60 mil homens... 80 mil
homens. Podíamos ter feito um referendo em Portugal e tudo teria sido muito melhor para todos.
Já percebi por que é que não foi marcelista. Achava que o regime poderia ter sido prolongado...
Sim, sim... além disso deixe-me dizer-lhe uma coisa. Salazar nunca fez finca-pé pela permanência no poder. E as eleições que
ele começou a promover eram um bom sinal. Simplesmente a oposição em Portugal nunca foi às eleições. Só foi o Humberto
Delgado porque era valente. Eles tinham medo do Delgado. Repare que o Norton de Matos, mais dois ou três, agora não me
recordo o nome deles, não foram às eleições e até os partidos acabavam por não ir às eleições e o argumento era que não
estava feito o recenseamento completo e assim perdiam sempre as eleições. Em Espanha tinha havido uma guerra civil e o
regime era muito mais à direita que o nosso. E eles foram à luta em eleições até ganharem. Por cá a esquerda incitava as
pessoas a não se recensearem. Lembra-se disso? De maneira que quando eles diziam “roubaram os votos ao Delgado”. Não
roubaram votos a ninguém. O problema é que só votavam os cidadãos recenseados e esses eram quase todos a favor do
regime. Em Espanha a oposição começou por ter dez por cento, depois da outra vez já tiveram quinze por cento, e depois da
outra lá ganharam as eleições.
Em termos ideológicos considera-se um homem de direita?
Em termos ideológicos sou do centro, um pouco à direita. O mundo mudou muito e de forma muito estranha. Antigamente a
Caixa Geral de Depósitos, o Banco Ultramarino estava tudo nacionalizado. Os telefones, a electricidade também. Agora é tudo
privado. Afinal quem é que é de direita? O Partido Socialista entregou tudo à iniciativa privada. No tempo de Salazar havia mais
Estado Social que hoje. Até a gasolina, a SACOR, era do Estado português e agora não. A GALP é do Amorim e companhia.
Entregaram tudo à iniciativa privada.
Para si o actual regime é mais capitalista do que o regime anterior?
Pois é. Não tenho dúvidas. Nos outros tempos não se brincava em serviço. Os grandes donos do capital tinham que “dar contas
a Salazar”. Ninguém fazia nada que prejudicasse o Estado Português. Agora é ao contrário.
Podemos falar de uma falência de uma certa ideologia, de um pensamento?
Para mim é a falência do Homem. Quando foi o 25 de Abril eu não fugi. Uns foram para o estrangeiro, outros fugiram cá
dentro. Foi uma vergonha. Eu estava na Chamusca. E toda a gente sabia que Salazar lá tinha ido a casa e que eu era o filho do
Rafael Duque. Só me apareceram, uma vez, lá na adega, uns tipos. Queriam entrar todos. “Então o que é”, perguntei. “É a
comissão de trabalhadores”, disseram. “não há comissão de trabalhadores nenhuma, eu é que mando nisto!”, respondi. É claro
que podia ter sido preso. Podia ter sido mal tratado. Mas comparado com o que se passou entre 1910 e 1926 estes homens de
25 de Abril foram uns santos.
Se quisesse teria tido uma maior influência na vida activa portuguesa depois de 25 de Abril?
Sim, até fui convidado. Mas não aceitei.
Essa tertúlia de que faz parte tem muita gente?
Tem para aí 12 a 15 pessoas.
Nada de conspirar contra a democracia?
Nada de conspirações. Lá toda a gente aceita a situação política que vivemos. Isto é, aceita-se o regime. Mudar para quê? Há
um ou outro que é monárquico, mas sabem perfeitamente que monárquicos em Portugal são poucos. Ser monárquico em
Portugal é como ser Republicano em Inglaterra.
Concorda que as coisas evoluíram para melhor desde o 25 de Abril?
Não. Em 1932, quando Salazar começou a governar, havia 6 milhões e 700 mil portugueses. Em 1968 quando ele saí do
governo há 10 milhões. Portanto, mais 3 milhões e 300 mil. Agora há os mesmos 10 milhões. O crescimento económico chegou
a ser de 1960 a 1970 de 7,5 %. Assim, qualquer estatística que se faça no aspecto cultural, saúde, economia, bem se vê que
não tem comparação com o tempo anterior.
Foi precisamente quando estava à frente dos destinos da RTP que se criou o curso unificado de ensino à distância. Sente que
contribui para melhorar a educação nacional?
Deixe-me dizer que a ideia foi em parte minha. E criei o segundo canal de televisão para dar a Tele-Escola todas as manhãs. E
à tarde eram tudo programas culturais e quando havia acontecimentos desportivos também passavam. E alguns tauromáquicos
(risos).
Se fosse Ministro da Agricultura que medidas imponha?
Uma delas era a rectificação do acordo com a Comunidade Europeia. Antigamente conseguíamos abastecer o país em 80
porcento. A lavoura veio por aí a baixo, sobretudo a Norte. Só 30 por cento do país é que tem aptidão agrícola. Dantes
dizíamos por brincadeira que Portugal tem aptidão pedrícola. (risos)
Cursou advocacia e pertence à Ordem dos Advogados. Exerceu durante quanto tempo?
Pouco. Tirei o curso, fiz os estágios, mas o que eu gostava de economia, talvez por influência do meu pai, não sei.
Ainda não falou ao longo da nossa conversa do estado da justiça no nosso país?
Olhe, aprecio muito o actual Bastonário da Ordem dos Advogados (Marinho Pinto).
No entanto é um homem muito conotado com o Partido Socialista e com a esquerda...
Muito bem. Desde que seja sério no que diz e no que faz...
Do que é que vive?
Vivo da reforma e de alguns rendimentos. Mas as reformas são muito baixas porque naquele tempo não se ligava a isso e não
tínhamos esta ganância que há hoje. Por exemplo eu não tenho reformas da televisão. Tenho é reformas do tempo em que era
funcionário e depois da Ordem dos Advogados. Descontei sempre para lá durante trinta e tal anos.
Se o seu pai fosse vivo acha que ele seria tão de direita como o senhor?
Talvez menos. Ele era um republicanaço! (risos) e o meu irmão mais velho era dos mais à direita da família, de formação
monárquica. E a minha mãe também era mais à direita, mas não gostava de política.
A ligação do seu pai com a Chamusca acabou quando ele veio para Lisboa?
Não senhor! Ele sempre administrou a minha casa de lavoura durante muito tempo. Às vezes, com grandes dificuldades. Depois
é que o meu irmão mais velho tomou conta daquilo.
As pessoas diziam que o seu pai fazia aumentar o preço do trigo, quando era Ministro da Agricultura, conforme os hectares que
ele semeava...
(Gargalhada) Isso não se podia fazer. Era impossível!
Tem esperança que o seu pai volte a ser nome de rua na Chamusca?
Sou um filho a falar do pai. Tenho desculpa. O meu pai merecia e não se apaga a História.
Gosta do actual Presidente da Câmara Sérgio Carrinho?
Gosto. O Sérgio Carrinho só tem uma coisa, que de resto ele já se explicou: o endividamento da câmara. Mas não há dúvida
que ele melhorou muita coisa na terra.
Numa referência à sua pessoa no livro Salazar, Caetano e a Televisão Portuguesa, Francisco Cádima, considera-o “o
nacionalista, conservador, muito respeitado pela integridade e coerência”. É um homem tolerante?
(pausa) Eu? Acho que sou. Acho que me posso considerar um homem tolerante.
Em 83 anos arrepende-se de alguma coisa que tenha feito?
Oh tantas! Valha-me Deus! Nós fazemos sempre tantas coisas que não se devem fazer!
Guarda rancores de alguém?
De ninguém! A sério, de ninguém.
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