Portugal Entrevista de vida AdrianoMoreira. Foi preso no Estado Novo e depois foi ministro de Salazar. Chegou a serapontado como o seu delfim, mas deixou o governo em 1963. Foi saneado depois do 25 de Abril, regressou e liderou o CDS. Faz90 anos no dia 6. Por SaraCapelo NÃO ME SENTIRIA PREPARADO PARA SUBSTITUIR SALAZAR 44 Encontrei três datas da nascimento: 6, 15 e 22 de Setembro de 1922. Qual é a verdadeira? Ade 22 é errada. Seis é a data certa e o 15 é a datado registo. Isso aconteciamuito naprovíncia. Nascíamos naaldeiaeoregistoerano concelho,queeralonge. Emregra,adataque ficava no registo era a do baptismo. Mas celebram-se os anos dia 6 – acredito mais na minha mãe do que no registo. Tem memórias da aldeia onde nasceu, Grijó de Vale Benfeito, em Macedo de Cavaleiros? As férias grandes eram sempre três meses, queeupassavanaaldeia. E emLisboao nosso convívio era só com transmontanos. Fiquei profundamente transmontano. Que características têm? É gente sóbria. As pessoas definem-se pela maneira como vivem e não pela maneira como ganham a vida. Isto é fundamental. Aprendeu isso com o seu avô? O meu avô Valentim tinha muito essa noção. Asolidariedade que havia era notável. Era miúdo ainda quando andei a apanhar água para apagar o fogo de uma casa. Fazia-se umacorrente de baldes. Depois aaldeia reconstruía a casa. Um dava a pedra, outro amadeira, outro emprestavaos bois parao serviço. Eraumasolidariedade total. O meu avô tinhamais experiênciade mundo. Ele era o pai da minha mãe, eu não conheci o meu avô paterno. Que era moleiro. Era. Já tinha morrido quando nasci. O meu avô materno [que era comerciante] esteve exilado no Brasil depois de uma insurreição quenão seidescreverbem, antes daimplantação da República. Depois voltou à aldeia e nunca mais saiu de lá. Acasa tinha um ban30 AGOSTO 2012 “A ESPUMA DO TEMPO. MEMÓRIAS DO TEMPO DE VÉSPERAS”, ALMEDINA, 2008 tempos foi lá a uma cerimónia e pediramlhe para falar. Era o mais velho aluno presente. Faz 90 anos dia 6. t A driano Moreiradesligao telefone. AcabadepediràmulherMónicaparaoirapanharcomochofer à Academia das Ciências, a que aindapreside. Pousao auscultadore desabafa: “Tem sido umagrande companhia.” Estãocasados desde1968 etêm seis filhos – a mais nova nasceu em 1990. Mónica Mayer acompanhou-o quando foi afastado dauniversidadeporJoséHermano Saraiva e quando foi saneado de presidente da Sociedade de Geografia depois do 25 de Abril. Viveram no Brasil, onde nasceu Isabel, deputada independente eleita pelo PS. Mas a mulher não assistiu aos seus quase três anos no governo de Salazar – primeiro como subsecretário de Estado e depois, quando já havia conflito em Angola, como ministro do Ultramar. Nemos seus anos no liceu Passos Manuel, que Adriano Moreira consegue ver da janela do seu gabinete. Há Com a mulher, Mónica Mayer, e o primeiro filho, António, a 27 de Julho de 1969 t PORTUGAL ENTREVISTA DE VIDA co de pedra cá fora onde ele se sentava a ler o jornal e as pessoas pediam-lhe conselhos. Tinhaumaespéciedeautoridadeeprestígio. Dizquenunca ouviu oseu avôlevantara vozpara repreender ou a mão para castigar. Também foi assim com os seus filhos? Tento [risos]. Tenho seis filhos e 13 netos e sinto-mefelizcomeles. Têminteiraliberdadedepensamento,deconvicções. O meupai só tinhaainstruçãoprimária. Aoformar-me, com 21 anos, fui à Galiza. Tinha lá um amigo quetinhavivido emPortugal. Assimque cheguei escrevi uma carta ao meu pai. Ele respondeu-me: “Querido filho, tanto sacrifício e não aprendeste a escrever.” [risos]. A minha letra é muito difícil. Quase de médico? É. Não me recordo de o meu pai me castigar, nem à minha irmã. Recordo-me de só uma vez o ver emocionado: eu era muito pequenino e ele levou-me ao Coliseu. Tinham-me oferecido um copo com uns desenhos, que ele não me deixou levar. Disse que era perigoso. E eu escondi o copo aqui [coloca as mãos junto à barriga]. É claro que dei um trambolhão, partiu-se o copo, tiveram de me levar ao hospital. E vi-o enervadíssimo. A sua mãe costurava para juntar dinheiro? jogar com uma bola de trapos. Depois deixavam-nos irbrincarparaaparadado quartel de Caçadores 5, onde é hoje a Universidade Nova. Éramos soldados. Tínhamos umabandeira, feitacompapelazulevermelho. As réguas eram as espadas. Uma vez caímos num campo de milho, aos gritos: “Santiago aos Mouros” e demos cabo do milho [risos]. A vida 1925 Com a mãe, Leopoldina, que costurava, e o pai, António, que era da PSP do Porto de Lisboa Dizque a guerra de Espanha foi oque ofezdescobrir a política. Fundamentalparamimfoiestarnas Nações Unidas e a anterior visita a África. Foi onde percebio atraso dePortugal. Mas o meucurso no liceu Passos Manuel foi o curso da guerra de Espanha. Era muito novo, entrei nafaculdade com16 anos. Aquilo começou a despertar-nos. No liceu, foi colega de Baltazar Rebelo de Sousa. Porque é que ele entrou para a Mocidade Portuguesa e o professor não? 1944 A falar em nome dos finalistas da Faculdade de Direito de Lisboa Porque não me interessava. Quando começou,eraobrigatóriaparaquemtivesseaté14 anos. E eu fiz 14 anos nesse ano. Ainda tive deiraumamanifestação na Avenida da Liberdade. Ummatulão mandava-nos gritar: “VivaoSalazar!”Enós ouvimos alguém dizer: “Viva o Armindo Monteiro!”, que não sabíamos quem era. Fartámo-nosdedarvivas aoArmindoMonteiro. Vê-se mesmo que éramos miúdos. Salazar disse esta coisa trágica: ‘Há mais de 20 anos que não leio um romance.’ Emprestei-lhe alguns É verdade. A nossa casa tinha uma janela e uma espécie de banco [faz o gesto como se se deitasse no banco] eeuadormeciaaliànoite, porque ficava a conversar com ela. Não havia água corrente, era preciso ir ao chafariz buscar. Quantas vezes eu fui... Ainda reza todas as noites as orações que a sua mãe lhe ensinou? Sempre. Naaldeia,ocultoeraconstante. Mas emCampolide, no beco Estevão Pinto, onde morávamos e que foi deitado abaixo, as casas eram modestas, baixinhas e não havia igreja. Amais próximaeraem São Sebastião da Pedreira. Portanto, a minha educação religiosa veio dela. 1959 A discursar na ONU – organismo em que mudou a sua visão de Portugal 1961 Semconsciênciapolítica? Em Luanda, com o novo governador, general Venâncio Deslandes Sem, paraprovocar. Até ao CDS não pertenci a nenhuma organização. E a ideia de que foi marxista na juventude? É inteiramente falsa. Mas quem tem vida públicanuncafoge aisso. Fuisempre muito marcado pela doutrina social da Igreja. Quando fiz as reformas do Ultramar, mexeram com muitos interesses. Por isso é que durei tão pouco. O normal nessa altura era que quem dissesse isso era marxista. Depois apareciamos mais suaves, que diziam “pelo menos é maçom”. Aque é que brincava? Diz que Marcello Caetano, que foi seu professor, tinha grande influência nos alunos. E em si? 1961 Naquele tempo, em Lisboa, havia bairros. Hoje só Campo de Ourique é que é bairro. E nós jámais crescidos, no liceu, ao fim-de-semana, íamos para Campo de Ourique, onde estavam as raparigas. No meu bairro havia as brincadeiras de rua: saltar ao eixo, Era um bom professor, de tal maneira que, quando foiarevolução, afaculdade reuniu-se e votouparaque ele voltasse paraas aulas. Ele escolhia alunos que achava que tinhamperspectivas efaziareuniões nafaculdade. Haviagente de Agronomia, de Medi- A 13 de Abril, na tomada de posse como ministro do Ultramar. Já fora secretário de Estado 46 30 AGOSTO 2012 cina. Punha temas a debate e não tomavapartido. Deixava-nos falar. Nós gostávamos daquilo. E havia a ideia de que ele ia ser o sucessor de Salazar. Foidifícil. ACatólicaconvidou-me paracatedrático e viviacomo pode viver um professor catedrático no Brasil. Não pode viver em festa, mas dáparatratardafamília. AIsabelnasceulá. E depois voltoutudo ao normal: o Conselho daRevolução mandou-me outra vez para a universidade. Mas passámos quase três anos de dificuldades. Ele teve mesmo influência na sua libertaçãodoAljube,depoisdedoismesesde prisão? Teve. Há uma carta violenta dele a dizer que aquilo era puramente umaquestão profissional. Podeparecerestranho como équeummiúdo com 23 ou 24 anos resolve que há-de meter o ministro na cadeia, semimaginarque o ministro é que o metia a ele. Arevolução foi uma surpresa para si? Não, não foi. Como viveu o dia 25 de Abril? Estava em casa e o meu filho mais velho, o António, estavacommuita febre. Ouvi pela rádio. Andei pelo Chiado a ver como era aquilo. Queria ter elementos para ter uma opinião pessoal sobre o que iria acontecer. Depois, ficou magoado com Marcello Caetano. O doutorMarcello Caetano tinhaumadebilidade que nós todos podemos ter. Não se podia tocar nas coisas que ele tinha feito. E eu,noMinistériodoUltramar,revogueioestatuto dos indígenas que ele tinhaalterado; e metiaescolacolonial, que ele tinhareformado, na Universidade. É verdade que desde que foi demitido por José Hermano Saraiva do Instituto Superior de CiênciasSociaisePolíticasUltramarinas(ISCSPU),em 1969,nãofalou maiscom MarcelloCaetano,que era o presidente do Conselho? Encontrei-o no Brasil uma vez. Sou da Academia de Letras do Brasil e ele também era. Depois da revolução, fui professor da Universidade Católica do Rio de Janeiro, ele na UniversidadeGamaFilho,eencontrámo-nos umdia. As nossas cadeiras eramlongeenão houve conversa. Mas houve uma indelicadeza sua anterior, quando não lhe apertou a mão ainda aqui em Lisboa. Pois foi, porque achei que ele me tinha tratado rudemente. Fiquei logo arrependido porque um cristão não faz aquilo com um professor,comidade. Areacção físicaqueele teve foi de grande perturbação. SÁBADO Quando eu levantava voo, podia revogar todas as leis, menos aConstituição. Não é maneirade governar Escreveu quea revoluçãotinha oobjectivo de derrubar o governo mas que não havia o objectivo de governar. Acontece muito com as revoluções: sabem o que é não querem, mas não o que querem. Háumavisão erradado que foi o 25 de Abril em relação às colónias. Não foi descolonização, foi o fim da guerra. A descolonização começou depois e foi uma trapalhada. É verdade que ajudou a libertarAgostinho Neto? Ou não quis reparar? Conhecia-o apenas como poeta. Ele casou com uma senhora portuguesa que apareceu [no Ministério] e me disse: “Estou grávida. Ele estápreocupadíssimo como miúdo que estánabarrigae, ao mesmo tempo, com ciúmes. Estápreso porque dizem que é comunistamas eugaranto-lhe que não é.” Mandei perguntar e disseram-me que estava preso por suspeita. No meu governo só há presos por factos. Dei um despacho adizer: “Nomeio paraavagatal do quadro de Saúde de Cabo Verde o doutor Agostinho Neto, com carácter de urgência, devendo tomar posse no prazo de 30 dias.” É evidente. Foi ele que me demitiu. Independentemente de estar preso? Ficou mais magoado com essa demissão ou com o saneamento da Sociedade de Geografia depois do 25 de Abril? Isso eunão disse. Eles tinhamque cumprir a ordem, nem que o fossem tirar ao fundo de um poço. Arranjei-lhe dinheiro para a passagem e nunca mais ouvi falar dele. Nunca pensou voltar atrás? Não houve ocasião. Não acho uma página brilhante da minha vida. José Hermano Saraiva tentou cumprimentá-lo várias vezes e fez exactamente o mesmo. Não,euestavaalerojornalenãorepareique queria falar comigo. No 25 de Abril, preocupei-me mais com o País do que comigo. Não fugi para o Brasil. Tinha lá ido, por exemplo, tentar convencer a Ordem dos Advogados a pedir ao governo brasileiro que protegesse os refugiados portugueses naONUe daquidisseramme para não voltar. E o que é que faço à mulher e aos filhos? Lá tiveram de ir. Foi fácil a adaptação da família? Qual era a opinião que tinha sobre os líderes dos movimentos de libertação? O AmílcarCabralerao homemmais marcadopeloluso-capitalismo. Eraumintelectual dealtacategoria. Erachefedeummovimento de um territoriozinho e davam-lhe honras de chefe de Estado em toda a parte. Quando o convidou para ministro, Salazar disse47 t Acusei-o de dolo eventual, o que não é a mesma coisa. Mas como ele tinha uma grande rivalidade com o Marcello Caetano, inventaram que eu tinha tido aquela opinião porque o Marcello me tinha convencido. É inteiramente falso, ele não fazia ideia. Mas escreveu umacartaduríssimaao presidente do Conselho e, portanto, acho que teve importância. Como é que um advogado, porque tem opinião profissional, é preso? RAQUELWISE Não pensou nessa hipótese quando acusou o ministro da Guerra Fernando Santos Costa de homicídio do General Godinho? PORTUGAL ENTREVISTA DE VIDA t lhe:“Temalgumasrazõesparamedizerquenão.” Referia-se à questão do Aljube? 1962 Quando Salazar recebeu o Coro de Moçambique no Estoril Não era só isso. Era também sobre o que eu escrevia. Respondi-lhe: “O senhor não é o único português que põe os interesses portugueses acima dos interesses pessoais.” Mas Salazar disse-lhe também: “Faça lá essas ideias que anda a expor.” Nuncatevequalquerinterferência,nuncame pediu nada, a não ser quando achou que a base de apoio dele estava a abanar. E aídeixou o governo. A sua vontade de descentralizar pôs em causa o que era um ministro do Ultramar na altura, que era muito poderoso. Masnãoerasóoportuguês. Oinglêseofrancês também. Quando eu levantava voo daqui, podia revogar as leis todas do País com excepção da Constituição da República. Sozinho. Não é maneira de governar. 1988 Com os filhos António, Isabel, Mónica, Nuno e João, na casa dos pais Diz que Salazar “já era um velho” quando o conheceu. Jánãoeraaquelehomemcommuitaenergia. Ele oferecia um aspecto mais idoso do que eu próprio ofereço e sou mais velho do que ele era. Quase nuncareunia o Conselho de Ministros. Houve ministros que passaram anos sem o ver. Só se concentrava nos Negócios Estrangeiros, no Exército(elefoiministrodaDefesa) enoUltramar. Quando o convenciarevogaro estatuto dos indígenas, disse-lhe: “Isto altera a estrutura doPaís,nãoeramelhorlevaraoConselhode Ministros?” Ele diz assim: “Tem toda a razão, mas sendo dois.” Já era conselho. Era umhomemquenuncaviajou. O mundoque conhecia era o que lhe contavam. que as colónias continuassem. Alguma vez se sentiu o delfim de Salazar? Lembro-medeas pessoas dizeremisso. Mas eunãomesentiriapreparadonemcomexperiênciaparaisso. Comtodaasinceridade. Quando regressou do Brasil, disse que não voltaria à vida política activa. Mas foi convencido por Adelino Amaro da Costa e por Freitas do Amaral. Que argumentos usaram? E pelo Narana Coissoró. Muito simples. É que não havia nenhuma defesa da doutrina social da Igreja nos partidos. Na altura do partido do táxi, achou que seria o fim do CDS? Não. Foiumacoisatransitória, defaltaderecursos. Na altura não tínhamos dinheiro. Como vê este CDS? É muito dependente de Paulo Portas? Só lhe douumaresposta. Souo único presidente do CDS que continua no CDS. Ficou surpreendido com os aplausos em pé das bancadas parlamentares, excepto do PCP, quando deixou o parlamento? No Brasil vivia como pode viver um professor catedrático. Não pode viver em festa, mas dáparaafamília ANOS 90 Com os seis filhos: Teresa, a mais nova, está ao colo da filha Mónica Maria Como é que um homem que nunca viajou podia ter nas suas mãos um império? ANOS 90 Com Teresa junto à casa em Grijó de Vale Benfeito onde nasceu 48 Comdificuldades. Parao convencerqueo racismo era das maiores ameaças para a humanidade, disse-lhe: “Nuncafoiàs colónias, mas há uns livros de combate que animam o conhecimento disso. Empresto-lhos.” Como o Cry, The BelovedCountry, o Blue Bird. Ele fez uma pausa e disse esta coisa trágica: “Há mais de 20 anos que não tenho tempo para ler um romance.” Emprestou-lhos? Emprestei. Não sei se os leu. Ele imaginava que a terceira guerra mundial ia começar e que nessa altura seria útil aos aliados FoioAlmeidaSantos queselevantouefez um discurso. Eu fiquei quase a chorar. Foi um dos momentos da vida política em que chorou? Fiquei comovido. Outro foi quando chegueiaCarmona, debaixo de uma chuva torrencial, em pé num jipe aberto, e aquela gente ali cheia de bandeiras e desatam a cantar A Portuguesa, digo-lhe que é um espectáculo... Asua filha Isabel é muito activa no parlamento. Fazmuitosapartesparlamentares. Também era assim? Eu já tinha mais idade [risos]. Aprecio muito nela a autenticidade. Quando acredita numacoisa, não se cala. Foisempre assim. E ela diz que é assim por causa do pai. Porque é que nunca se candidatou a Presidente da República? Chegou a falar-se nisso. Falaram-me emtudo, mas não tenho essas ambições. Cumpriu o que imaginava que seria a sua vida naqueles primeiros anos? Inteiramente, não. Aprimeira vez que fui [a África] para estudar o sistema prisional, dei comaquelasituação e aminhavidamudou. Foi a minha queda do mundo. Senão, teria continuadocomoadvogadoeteriaumadata de empregos realmente pagos. 30 AGOSTO 2012