UNIVERSIDADE DE MOGI DAS CRUZES PATRICIA PAULA DIAS SULEIMA JOLY RODRIGUES O SENTIDO DO ABUSO SEXUAL INFANTIL PARA OS CUIDADORES DE INSTITUIÇÕES DO ALTO TIETÊ: UM ENFOQUE FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL. Mogi das Cruzes, SP 2008 UNIVERSIDADE DE MOGI DAS CRUZES PATRICIA PAULA DIAS SULEIMA JOLY RODRIGUES O SENTIDO DO ABUSO SEXUAL INFANTIL PARA OS CUIDADORES DE INSTITUIÇÕES DO ALTO TIETÊ: UM ENFOQUE FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Psicologia da Universidade de Mogi das Cruzes como parte dos requisitos para a conclusão do curso. Prof. Orientador: Ms. Rafael Ogalla Tinti Mogi das Cruzes, SP 2008 PATRICIA PAULA DIAS SULEIMA JOLY RODRIGUES O SENTIDO DO ABUSO SEXUAL INFANTIL PARA OS CUIDADORES DE INSTITUIÇÕES DO ALTO TIETÊ: UM ENFOQUE FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Psicologia da Universidade de Mogi das Cruzes como parte dos requisitos para a conclusão do curso. BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. _________________________________________________________ Instituição _________________________ Assinatura _____________________ Prof. Dr. _________________________________________________________ Instituição __________________________ Assinatura ____________________ Prof. Dr. _________________________________________________________ Instituição __________________________ Assinatura ____________________ Trabalho apresentado e aprovado em _____ de _________________ de ___ RESUMO DIAS, Patricia Paula; RODRIGUES, Suleima Joly. O sentido do abuso sexual infantil para os cuidadores de instituições do Alto Tietê: Um enfoque Fenomenológico Existencial. Trabalho de Conclusão de Curso. Mogi das Cruzes, Universidade de Mogi das Cruzes, 77 p, 2008. A violência sexual representa um problema de saúde pública, que implica em grande impacto para aqueles que a ela são expostos. Os estudos sobre o tema indicam que a maior parte da violência sexual contra crianças é praticada por parentes ou pessoas próximas, tornando maior a dificuldade da denúncia. Assim, este se manifesta como um dos maus-tratos que estão assumindo proporções epidêmicas, no qual a omissão e a precariedade para lidar com a situação, nutrida pelo silêncio e cumplicidade da sociedade, perpetuam o tabu sobre o tema e o seguimento deste como um segredo de família. O objetivo desta pesquisa foi: compreender o sentido do abuso sexual infantil para os cuidadores de instituições do Alto Tietê, analisando compreensivelmente as experiências do encontro com o fenômeno. Esta pesquisa foi caracterizada pela idéia de uma investigação psicológica que implica em uma intervenção. O método utilizado foi o de um enfoque fenomenológico e hermenêutico, com ênfase no fenômeno, procurando evidenciar como este se dá, apresentando essa mensagem em sua significação, em sua claridade e dignidade. Nesse sentido, o material de análise, foram as entrevistas realizadas com cuidadores de crianças institucionalizadas do Alto Tietê. Estas entrevistas apontaram para a questão do abuso sexual como um problema que envolve toda a sociedade, em que o silêncio contribui para uma perpetuação do tabu da sexualidade e onde os profissionais que lidam com a criança que foi abusada se encontram despreparados para tal, por não saber como falar e lidar com a questão. O abuso sexual mostra-se nas falas dos cuidadores, como o tipo de violência que deixa uma marca mais profunda. Pode-se concluir que o não-dito emerge como perpetuador para que o abuso sexual infantil continue velado. Torna-se necessário, portanto, refletir constantemente sobre o assunto, fazendo emergir esta questão da maneira mais originária, propondo, talvez possíveis mudanças numa ação conjunta, onde a simples oportunidade de iluminar a questão dará abertura para se poder falar sobre ela. PALAVRAS-CHAVE: abuso sexual; fenomenologia e pesquisa-intervenção. 5 1. APRESENTAÇÃO “Tudo que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar)”, com base nessas palavras da filósofa Marilena Chauí, iniciamos este trabalho com um questionamento: Até que ponto o ser humano se considera tão poderoso, chegando a subjugar o outro em benefício próprio? Até muito recentemente, o abuso sexual de crianças era tratado como um assunto proibido na sociedade. Entretanto, de alguns anos para cá esse tabu vem sendo vagarosamente quebrado, principalmente por conta da ação dos movimentos feministas, visto ser a mulher a vítima mais comum. E o que tem sido encontrado é alarmante, não apenas em freqüência de tais práticas, mas também no que se refere à criança, que além de todo sofrimento durante o abuso sexual, pode sofrer danos a curto e longo prazo. A violência por abuso sexual é mais difícil de ser identificada, por não apresentar, na maioria dos casos, marcas físicas. E este ato foi, e ainda é, uma afronta à humanidade, sendo um assunto carregado de tabus, que impede o ser humano de fazer sua caminhada de uma forma digna que é o mínimo que se espera da vida. As vítimas do abuso sexual carregam uma grande dor em toda sua caminhada, tendo que enfrentar muitos desafios de superação. O desafio da humilhação, da falta de apego, do desamparo, da angústia. Sentem-se sozinhas, tendo que carregar uma marca profunda de sofrimento, escondendo a sete-chaves toda afronta recebida, caminhando ao lado do não-dito, pois sua fala é velada pelo tabu do segredo. O silêncio misterioso que envolve a questão do abuso é vivido com angústia máxima, silêncio que torna invisível sua identidade, silêncio que produz uma ruptura radical nas relações afetivas parentais, uma quebra nos vínculos fundamentais para os processos de identificação, roubando as fantasias e desejos de infância. Sendo assim, por discutir sobre este tema algumas vezes, logo que iniciamos a vida acadêmica nesta universidade, sentimos então um chamado para falar mais um pouco sobre ele na oportunidade da produção de um Trabalho de Conclusão de Curso. Deste modo, nessa pesquisa, fomos levadas a um lugar em que a fala carrega muitas angústias, onde o que se mostra é que a “evolução” do homem no planeta se voltou apenas para o que se “engrandece” perante aos olhos, onde esse esquece de olhar para si mesmo. O que se apresentou foram situações que apontam como as pessoas carregam preconceitos e como se sentem impotentes perante uma situação que vem se repetindo cotidianamente. 6 Portanto, nossa intenção foi iluminar este fenômeno, ao olhar para ele naquilo que se apresentou na fala dos profissionais, que estão frente ao abuso sexual vivenciado por crianças que se encontram institucionalizadas. Percebemos assim, que a criança que sofre o abuso sexual tem um papel fundamental na constituição do sentido vivido pelos profissionais entrevistados e buscar conhecer ou olhar para este sentido com mais cuidado, foi nosso intuito, onde se pode olhar de novo para esta questão tão presente, e ao mesmo tempo, tão secreta. Vários foram os sentidos construídos a partir das informações colhidas, mas a prioridade da análise foi no que se mostrou mais significativo, quanto às relações estabelecidas entre os cuidadores, as crianças e suas famílias. Por fim, com base na Fenomenologia Existencial proposta por Martin Heidegger, o referido trabalho também visou reafirmar esta linha de pesquisa como uma abordagem que viabiliza a compreensão do humano. É, portanto, dentro do conceito fenomenológico de que a pessoa deve ser compreendida em sua totalidade, o que vai além do estigma e da "patologia", que se baseia o trabalho aqui proposto. Olhar fenomenologicamente para uma pessoa que tenha sofrido abuso sexual é também olhar para o social, o cultural e, sobretudo, para nós mesmos. 7 2. INTRODUÇÃO Na década de 50, principalmente nos Estados Unidos e Europa, o maltrato infantil e o estudo das diversas formas de vitimização das crianças, obtiveram maior importância, porém, somente vinte anos depois a devida atenção ao tema foi dada a partir do interesse científico nos casos de abuso sexual infantil, apesar destes ocorrerem desde as épocas mais remotas (Dobke, 2001). O que contribuiu muito para este interesse científico, foi a organização pelos estados americanos, no período de 1963 a 1967, de legislação encorajando a notificação dos casos suspeitos ou confirmados de violência doméstica aos serviços de proteção infantil (Guerra, 1998). Mas o abuso sexual infantil passou a ter maior revelação e atenção, a partir da criação e instalação dos Conselhos Tutelares, que através do Estatuto da Criança e Adolescente, cuidam para que os direitos infanto-juvenis sejam cumpridos. (Dobke, 2001). A violência considerada uma das principais causas de morbimortalidade, especialmente na população jovem, atinge crianças, adolescentes, homens e mulheres, de diferentes etnias, classes sociais, culturas ou religião (Ribeiro, Ferriane & Reis, 2004). Nas estatísticas da violência na sociedade brasileira destacam-se, com grandes proporções, a violência contra crianças e adolescentes, em que a família aparece como a maior violadora dos direitos infanto-juvenis (Inoue & Ristum, 2008). Ainda hoje no Brasil, a violência sexual especificamente, está muito ligada a questões de gênero, principalmente quando esta tem sua natureza intrafamiliar, levando a conclusão de que o abuso incestuoso tem um caráter de afirmação de poder do homem e do adulto, sobre mulheres e crianças (Costa, J. J., 2007). Heleieth Saffioti constata impressionantemente que a sedução das filhas e o estupro das mulheres em geral, não constituem ação isolada de anormais, ao contrário, integram visceralmente a organização social de gênero, as relações homem-mulher. (Saffioti, 1997). Segundo Inoue e Ristum (2008), na literatura, a violência é conceituada de diferentes formas, não havendo critério quanto ás rotulações e classificações, ou, quando se utilizam critérios, estes são confusos, dificultando seu uso por outros pesquisadores. Embora a definição de abuso sexual pareça óbvia, trata-se de um tema bastante controverso, envolvendo 8 questões relativas á normalização da sexualidade humana. Para dimensionar o fenômeno com maior precisão, compreendê-lo e preveni-lo, é necessário verificar sua prevalência e incidência. A violência sexual representa um problema de saúde pública, que implica em grande impacto físico e emocional para aqueles que a ela são expostos. Estudos mostram que crianças e adolescentes sexualmente abusados podem desenvolver transtornos de ansiedade, sintomas depressivos e agressivos, podendo também apresentar problemas quanto ao seu papel e funcionamento sexual e dificuldades sérias em relacionamentos interpessoais. Evidências ainda apontam para a existência da associação entre abuso sexual na infância e adolescência e ocorrência de depressão na idade adulta. As estimativas de prevalência e incidência da violência sexual contra crianças e adolescentes e o quão freqüentemente estão presentes em seus cotidianos são fundamentais para o desenvolvimento de políticas de prevenção e de abordagem desse fenômeno complexo (Polanczyk, et al, 2003). Apesar das dificuldades conceituais, várias são as definições encontradas na literatura, como a proposta por Kristensen (2001), que define o abuso sexual de crianças e adolescentes enfatizando as limitações do seu estágio de desenvolvimento, as expectativas sociais dos papéis familiares e as relações de poder entre agressor e vítima. A literatura apresenta uma imprecisão terminológica, em que há a utilização de diferentes palavras como sinônimos ou como correspondentes a um mesmo conceito (Faleiros & Campos, 2000). Todos os termos utilizados para conceituar as diferentes modalidades de crimes sexuais apresentam dificuldade em atender adequadamente aos aspectos médicos, jurídico, psicológico e ético que tais crimes envolvem (Inoue e Ristum 2008). Segundo Faleiros e Campos (2000), a inclusão do abuso sexual na categoria de maus tratos, deve-se ao fato de que, os primeiros estudos sobre violência contra crianças e adolescentes foram realizados a partir do atendimento á vítima de maus tratos físicos. Esses mesmos autores colocam que o abuso sexual deve ser entendido como: [...] uma situação de ultrapassagem de limites, de direitos humanos, legais, de poder, de papéis, do nível de desenvolvimento da vítima, do que esta sabe e compreende, do que o abusado pode consentir, fazer e viver, de regras sociais e familiares e de tabus, e que as situações de abuso infringem maus tratos ás vítimas (Faleiros & Campos, 2000, p.7). 9 Apresentam-se também definições do abuso (Aurélio, 1988), derivadas do latim abusu, com várias significações das quais destacam-se: mau uso de; uso excessivo, injusto; apropriação; exorbitante: que sai da órbita dos limites normais; ultraje ao pudor: afronta, ofensa à dignidade, insulto, difamação, sentimento de vergonha resultante do que pode ferir a decência a honestidade, a castidade. Chauí (1985, p.71) conceitua a violência como: Tudo que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); Todo ato de força contra a espontaneidade, à vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar); Todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); Todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito; Conseqüentemente, a violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror. A violência trata os seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade, como se fossem coisas, isto é, irracionais, insensíveis, mudos, inertes e passivos. Tratar alguém desta forma é tratá-lo não como humano, e sim como outra coisa qualquer, que possa ser violentada e abusada em todos os sentidos agrupados por estas palavras. Kaplan e Sadock (1990), destacam que o abuso sexual tem se tornado um dos maustratos mais freqüentes que ocorrem contra crianças e adolescentes, assumindo proporções epidêmicas. Apesar de pouco falado, a situação tem recebido atualmente uma maior atenção tanto da mídia, como dos meios acadêmicos (Kristensen, 1996). Entretanto, “a luta contra o contexto de violência endêmica que existe no Brasil, a favor de crianças e adolescentes ainda é assumida por poucos” (Costa, J. J., 2007, p.45). Os crimes são silenciados, e assim alimentados pelo medo e vergonha das vítimas em denunciar, bem como na omissão e precariedade que existe hoje no poder público para lidar com tal situação. O abuso sexual infantil se torna cada vez mais freqüente, uma vez que o silêncio e a cumplicidade social nutrem este ato, e onde também, o receio e o tabu perpetuado na sociedade sobre o tema, atinge seu grau mais elevado já que se encontra enraizado em todos os setores sociais (Costa, J. J., 2007). Por isso, o abuso sexual contra crianças torna-se um segredo de família bem guardado, envolto num manto de silêncio, sendo o menos notificado entre os crimes do gênero (Dias, 2006). 10 O silêncio que ronda o abuso sexual sofrido encontra raízes no tabu do “segredo”, que traduzido do latim secretu (Aurélio, 1988), traz algumas significações interessantes, como por exemplo: aquilo que se quer cuidadosamente ocultar ou que não se deve dizer; mistério; lugar oculto; prisão rigorosa em que se está incomunicável. Estas significações podem representar, muito bem, os estados em que se encontram e talvez por muito tempo estejam as crianças e adultos que passaram pela experiência do abuso sexual, que se sentem talvez como prisioneiros de um local oculto no qual não há a menor chance de falar, de comunicar aos outros seus sentimentos. Como que solitários em uma situação marcante em sua vida, da qual não podem dizer uma palavra sem chocar ou serem mal interpretados pelos seus ouvintes, sem poder, ao falar, dar novos significados à experiência vivida, ou quem sabe apenas poder compartilhar como ser-com-os-outros que são, suas inquietações, ou mesmo não causando dor ou qualquer outro mau sentimento, o que é pouco provável, a pessoa, ou as pessoas que conhecem o caso não falam sobre ele pelo entendimento de que este assunto deve ser cuidadosamente ocultado. Mas aqui surge o questionamento: Ocultado de quem? Ocultado com qual sentido? Flores & Caminha (1994) apontam, que a violência física e sexual contra crianças e adolescentes, ainda é um fator surpresa para na sociedade. Muitas pessoas e infelizmente profissionais, tem dificuldade em aceitar que o abuso sexual de crianças seja cometido por aqueles que estão mais próximos, e na maioria das vezes possuem laços sanguíneos com os abusados. O abuso sexual deixa a maioria das pessoas incomodadas. É triste pensar que adultos causem dor física e psicológica nas crianças, para satisfazer seus próprios desejos, especialmente quando esses adultos são amigos ou confiáveis membros da família (Watson, 1994, p.12 apud Amazarray & Koller, 1998, p.01). Os estudos sobre o tema indicam que a maior parte da violência sexual contra crianças e adolescentes é praticada por parentes ou pessoas próximas, conhecidas, tornando maior a dificuldade da denúncia. Estima-se que menos de 10% dos casos cheguem ás delegacias (Inoue e Ristum 2008). Dentre os tipos de violência cometida contra o ser humano, a violência sexual, segundo Brino e Williams (2003), é o delito menos denunciado na sociedade brasileira, por várias razões; o fato de a sexualidade humana ser ainda hoje tabu, sentimentos de culpa, vergonha e estigma, favorecedores de isolamento social, além do medo de represálias e 11 ameaça. Em alguns casos, quando o agressor é membro da família, o temor de que ele seja afastado se denunciado é um grande obstáculo á denúncia, pois o afastamento poderia resultar em implicações de ordem emocional e econômica. A reportagem de O Estado de São Paulo de 23 e 24 de novembro de 1997 sobre “abuso sexual doméstico”, traz dados e resultados de entrevistas com pesquisadores e vitimizados. Estudos do IML de São Paulo, presentes na reportagem, feitos por Carlos Alberto Diêgoli mostram que das “2.043 queixas de abuso sexual feitas em 1995, 69,77% envolvem garotas menores de 18 anos. O pesquisador, segundo a reportagem, avalia que possam existir 17.000 casos de violência desse tipo em São Paulo, supondo que apenas de 10% a 15% dos casos sejam revelados. O mesmo pesquisador coordena o setor de atendimento do Programa de Atendimento às Vítimas de Abuso Sexual da Faculdade de Saúde Pública da USP (PAVAS). Das 150 meninas atendidas entre agosto de 1996 e setembro de 1997, 57,4% tinham de 11 a 15 anos. Dos casos, 55,9% eram estupros, 14,9% atentado violento ao pudor, 10,9% tentativa de conjunção, 5,8% sedução, e 6,6% suspeitas. Dessas 150, 05 estavam grávidas e 1,6% tinha o HIV positivo. Segundo o pesquisador, 7,94% dos atendimentos são de meninos (Leal & César, CECRIA 1998)”. Dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), trazem estimativas de que a cada ano, um milhão de crianças são diretamente afetadas pela violência sexual em todo o mundo (Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI, 2003)). Outros dados, embora não sejam dados que apontem a idade das vítimas, mostram que existem comprovações de que mais de 50% dos casos de abuso sexual ocorrem dentro da própria família. As estatísticas do S.O.S Criança, revelam que em 1993, os pais representavam 44% dos vitimizadores sexuais, devendo agregar a esta quantia mais 18% de outros parentes. Assim os autores de agressões incestuosas somavam, naquele ano, 53%. Os casos de abusos incestuosos se distribuíam da seguinte forma: 38% de atos libidinosos; 38% de estupro/sevícia; 05% de prostituição infantil; 19% de sedução/corrupção de menores. Das vítimas, 77% eram do sexo feminino. Foi constatado também que quando a denúncia depende de familiares, a violência sexual contra garotos é ainda mais silenciada. Na Casa Abrigo, os dados comparativos do atendimento a casos de violência sexual intrafamiliar sofreu aumentos significativos, sendo que em 1988 os casos registrados eram de 71,4%, passando para 82,2% em 1992. Já a violência praticada por terceiros diminuiu de 28,6% para 23,5%. O estupro por sua vez teve um crescimento altíssimo levando-se em consideração o período, subindo de 14,3% para 42,8%. (Costa, J. J., 2007). 12 Em notícia publicada em 2007 no Jornal Diário de Mogi, há dados de que no Brasil houve uma explosão de denúncias encaminhadas à Secretaria Especial de Direitos Humanos, órgão do governo federal que centraliza o tema. Foi abordado nesta manchete, que a troca do número de 0800 para o número de denúncia 100, que ocorreu no ano de 2006, fez com que as denúncias ultrapassassem o número de 1000 por mês, em todo o Brasil. Desta forma um panorama de denúncias foi levantado, destacando que em 2003 houve 4.994 denúncias, em 2004 este número era de 3.774 e em 2005 as denúncias atingiram a casa de 5.136 em todo o país. Espantosamente este total aumentou então para 13.823 denúncias em 2006 e somente até 04 de junho de 2007, já estavam registradas 7.808 denúncias. É claro que não podemos desconsiderar o número de trotes que englobam estas estatísticas, sendo que dos totais pelo menos 20% dos casos foram identificados como tal. (Castilho, 2007). Castilho (2007) descreve que observou um panorama geral do número de casos registrados pelo Disque-Denúncia do governo federal entre 2003 e 2007. Os dados apresentados apontam que nos casos de abuso-sexual infanto-juvenil aparecem 224 casos na cidade de São Paulo, 33 casos na cidade de Bauru, 23 casos em Campinas, 22 casos em Guarulhos, 18 casos em São José dos Campos, 17 casos em Osasco, 12 casos em São José do Rio Preto e Sorocaba, 11 casos em Santos, 10 casos em Carapicuíba e Franca, 09 casos em Mogi das Cruzes, Piracicaba e Santo André, 08 casos em Guarujá, Itapetininga e São Bernardo do Campo e 07 casos em Ribeirão Preto. Quanto aos dados referentes à Violência contra crianças e adolescentes há registros de 507 casos em São Paulo, 64 casos em Campinas, 56 casos em Guarulhos, 40 casos em Osasco, 35 casos em São José dos Campos, 32 casos em São Bernardo do Campo, 31 casos em Bauru, 27 casos em Santo André, 25 casos em Carapicuíba, 24 casos em Mogi das Cruzes, 23 casos em Sorocaba, 18 casos em Guarujá, Piracicaba e São Vicente, 15 casos em Praia Grande, 14 casos em Ribeirão Preto e 13 casos em Diadema e Francisco Morato. Outras informações também foram coletadas, dando um panorama geral das denúncias e da situação da região do Alto Tietê, nos casos de abuso e violência sexual. Os dados apresentados demonstram que o município de Mogi das Cruzes ocupa o 11° lugar entre as cidades de São Paulo, os dados apresentados são de 24 casos de Violência, 21 casos de Negligência, 09 casos de Abuso Sexual e 04 casos de Exploração Sexual. A cidade de Suzano ocupa o 25° lugar, apresentando 15 casos de Negligência, 10 casos de Violência, 03 casos de Abuso Sexual e 02 casos de Exploração Sexual. No município de Itaquaquecetuba foram 15 casos de Negligência, 11 casos de Violência, 06 casos de Abuso Sexual e 02 casos de Exploração Sexual. Em Ferraz de Vasconcelos temos 06 casos de 13 Violência, 05 casos de Negligência, 02 casos de Abuso Sexual e 01 caso de Exploração Sexual. As outras cidades têm um menor número de casos, sendo que em Poá as informações são de 02 casos de Violência, 02 casos de Exploração, 01 caso de Negligência e 01 caso de Abuso Sexual. Biritiba Mirim apresenta 02 casos de Negligência, 01 caso de Violência e 01 caso de Abuso Sexual. Em Salesópolis temos 01 caso de Exploração, 01 caso de Negligência, 01 caso de Violência e nenhum caso de Abuso Sexual, o mesmo ocorre no município de Arujá e em Guararema onde se apresentou somente 01 caso de Exploração Sexual. O que chama atenção, nestes dados apresentados acima, é a grande quantidade de denúncias registradas para outros atos cometidos contra crianças e adolescentes, como a Negligência e Violência, enquanto que os casos de Abuso Sexual aparecem sempre em menor número, demonstrando que na região do Alto Tietê, ou esses casos pouco ocorrem realmente, ou confirmando o silêncio em volta deste acontecimento, que em sua maioria, são enterrados dentro da própria família. De acordo com Dias (2006), os crimes sexuais, crimes dentro do lar e crimes cometidos contra crianças pelos próprios pais, padrastos, tios, avós entre outros, são fatos que ninguém gosta nem de pronunciar, sendo um crime que não tem nome, não está tipificado no Código Penal, e que parece não existir. O abuso sexual é uma questão tanto social e política, quanto psicológica e clínica. O grande desafio existente para os profissionais que lidam com o assunto, revela a necessidade de uma reorganização profissional dos responsáveis pelo manejo e pelo tratamento das vítimas e suas respectivas famílias, pois, há uma complicação em se trabalhar com crianças que sofreram abuso sexual por quatro fatores básicos: cooperação de uma gama multiprofissional; conhecimento por parte de todos os profissionais envolvidos dos aspectos criminais e de proteção da criança, bem como dos aspectos psicológicos; a “síndrome conectora de segredo para a criança”; e a “síndrome de adição para a pessoa que cometeu o abuso” (Furniss, 1993, p.25). Gonçalves & Ferreira (2002 apud Habgzang, Azevedo, Koller, Machado 2006) relatam que apesar das determinações legais, não é possível notificar realmente a quantidade de casos de violência sexual no país. A investigação desses casos gera ainda muitas incertezas, pois na maioria dos currículos de graduação esta questão não tem sido tratada, resultando assim em profissionais que não possuem as informações básicas para diagnosticá-la. Isto se estende para toda a rede de profissionais que lidam com o abuso sexual infantil, desde os profissionais da saúde, educadores, juristas até instituições escolares, hospitalares e jurídicas. Sendo assim o 14 trabalho nessa área ainda é fragmentado, desorganizado e em geral metodologicamente difuso. Segundo João de Jesus da Costa, coordenador do Conselho Estadual dos Direitos de Crianças e Adolescentes de São Luís (CEDCA), nem todas as crianças que sofrem abuso sexual apresentam profundos traumas por conta disto, porém a maioria sofre muito, é de extrema necessidade que todas as crianças tenham direito a uma avaliação psicológica emergencial, sendo este, um ato de política pública. Especialistas afirmam que em geral as vítimas de abuso sexual tendem a fragmentar sua personalidade, avalia-se o choque da situação de uma criança que sofre abuso do pai, ou outro membro da família que deveria protegê-la, ou ainda quando o abusador é o “marido da mãe”, associa-se ao quadro um grande sentimento de culpa (Costa, J. J., 2007). Segundo Inoue & Ristom (2008), a vítima de violência sexual está exposta a diferentes riscos, que comprometem sua saúde física e mental. As conseqüências da violência sexual são múltiplas e seus efeitos físicos e psicológicos podem ser devastadores e duradouros (Kaplan & Sadock, 1990). A literatura refere-se a alterações resultantes do impacto da vitimização sexual que seriam úteis para a sua identificação. Depressão, sentimentos de culpa, comportamento autodestrutivo, ansiedade, isolamento, estigmatização, baixa auto-estima, tendência á revitimização e abuso de substâncias, queixas somáticas, agressão, problemas escolares, transtorno de estresse pós-traumático, comportamentos regressivos, fuga da casa e ideação suicida, são sintomas que podem aparecer na infância e se estender pela vida adulta. Interessante lembrar também, que quando o abuso é denunciado a criança é institucionalizada, enquanto o abusador fica solto a espera do julgamento. Sentimentos dos mais variados podem surgir, desde a culpa e o abandono, já que é ela quem perde a família, até uma sensação de revolta, pois parece que a criança é a única a ser punida (Dias, 2006). Desde 1940 o Código Penal Brasileiro (Faria, 1961) prevê os crimes de abuso e exploração sexual, focando a proteção da menina virgem e a mulher honesta, estando este no capítulo de Crimes Contra os Costumes, ao invés de constar no capítulo de Crimes Contra a Pessoa, para complicar a situação, há uma grande dificuldade de se penetrar na família, que perante a lei é inviolável (Costa, J. J., 2007). Entretanto, novos projetos e leis estão sendo criados na intenção de endurecer as penas e reduzir o poder da família sobre as crianças e adolescentes em casos de violência. 15 Mesmo que a criação de leis seja um grande avanço, se faz necessário pensar e refletir sobre possíveis mudanças ideológicas, culturais e de valores arcaicos que permitem a perpetuação do problema. Neste contexto, informar sobre sexualidade seria um modo de educar a sociedade e aqueles que estão em contato direto com as crianças. Em 1990, publicou-se o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal 8069/90, de 13 de Julho de 1990, substituindo o Código de Menores, e transformando todo o panorama legal no campo dos direitos da infância. Hoje existe um Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil, aprovado em junho de 2000 por mais de 160 organizações da sociedade civil e do governo. Uma vitória deste Plano foi à instituição do dia 18 de maio como Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A falta de informações sobre os dados reais revelam, que são poucos os profissionais que lutam hoje para provar que o fenômeno é real e grave. Um diagnóstico deve ser feito urgentemente e o atendimento e notificação dos casos de violência devem ser entendidos como um compromisso da área da saúde, em prol da transformação desta realidade (Negrão & Pra, 2005). Assim sendo, no intuito de auxiliar a vencer os muitos desafios ainda existentes a respeito do abuso sexual, este trabalho busca então, clarear o entendimento da sociedade que caminha com viseiras do cotidiano, a respeito de um tema tão freqüente e tão “secreto”. Na maioria das vezes, o acontecimento do abuso segue como um segredo com o qual de alguma forma a criança terá de conviver, guardando dentro de si para o resto da vida, e talvez não podendo ou não conseguindo mostrar o sentido que este acontecimento teve ao longo de suas vivências, pois o mundo, a “sociedade”, não permite que isto se mostre, que isto seja extravasado da maneira mais genuína e mais digna. E é aqui que esta pesquisa se coloca, como possibilidade para este extravasar, com respeito e ética ao que for relatado, sendo o maior anseio levar a mensagem, o significado do que muitas vezes não é falado, para uma maior reflexão e entendimento deste acontecer humano. Neste sentido, tratar do fenômeno do abuso sexual infantil, trouxe a idéia de uma investigação psicológica que implicará sem dúvida em uma intervenção, e neste princípio, esta pesquisa tornará o processo de investigação um ato no qual, pesquisadoras e participantes, serão afetados pela situação da pesquisa. 16 Enfim, é no desejo de compreender e militar numa pesquisa-intervenção a favor de crianças e adolescentes, tendo como motivação pessoal reverter a atual situação de violência em que se encontram esses oprimidos sem voz, que este trabalho empenha-se de maneira sutil e sem mais “abusos”, para desvelar algumas experiências e caminhos trilhados pelas vítimas desta terrível condição de violência, através do relato de seus cuidadores e responsáveis. 17 3. OBJETIVOS 3.1 Objetivo Geral Compreender o sentido do abuso sexual infantil para os cuidadores de instituições do Alto Tietê. 3.2 Objetivo Específico Analisar compreensivelmente as experiências do encontro com o fenômeno segundo a percepção dos profissionais ou cuidadores que lidam com crianças abusadas sexualmente. 18 4. MÉTODO Durante o processo de elaboração desta pesquisa, uma grande dificuldade para a escolha do método foi apresentada, como por exemplo, o fato da proibição, de certa forma, de trazer a luz algo que de início não era permitido legalmente, ou seja, a fala da criança sobre sua experiência. Porém, pensando na raiz da palavra método que indica, “caminho para...” (Aurélio, 1988) foi escolhido, percorrer um caminho que fosse, antes de tudo cuidadoso e rigoroso, já que se levava em conta aqueles que iriam juntos neste caminhar. Sendo assim, foi decidido então, ouvir os cuidadores que estariam em contato direto com as crianças que foram abusadas sexualmente. A escolha do método fenomenológico se deu, por entender que apesar do método experimental ter contribuído com importantes descobertas sobre o psiquismo animal e humano, este olhar experimental, metafísico¹, não era satisfatório, ou pelo menos não era o único, ou melhor, não dizia do homem em sua totalidade. De acordo com Forghieri (2001, p. 57), [...] os cientistas em geral em suas investigações recorrem ao método experimental, como um meio para captar e enunciar o verdadeiro significado da realidade estudada, neste método se compreende cientista e seu objeto de estudo como completamente separados e independentes. Trazendo esta compreensão para a Psicologia, sua utilização implicaria em considerar o ser humano como um objeto entre outros objetos da natureza, como coisa de uso. Entretanto, a busca nesta pesquisa não era por medir, representar, ou chegar a conclusões apressadas que violassem a linguagem do fenômeno e que viessem somente confirmar o ente simplesmente dado. Como afirma Heidegger (2005, p.37), A “lógica” é um esforço subseqüente e claudicante que analisa o estado momentâneo de uma ciência em seu “método”. Aqui, porém, trata-se de uma lógica produtiva na medida em que antecipa, por assim dizer, determinado setor do ser, libertando-o, pela primeira vez, em sua constituição ontológica e tornando disponíveis para as ciências positivas as estruturas obtidas enquanto perspectivas lúcidas de questionamento. 1 Existem várias compreensões do conceito de Metafísica. Aqui, pensamos a partir do conceito heideggeriano de Metafísica. 19 Sendo assim, a busca neste trabalho foi pelo sentido e pelo significado do que se mostrou, olhando pela primeira vez, longe de todo conhecimento anteriormente adquirido sobre a experiência que se esta investigando. Compreende-se assim a pessoa como pessoa, e o fenômeno como aquele que surgiu através da fala desta pessoa. Neste trabalho trata-se do fenômeno desta criança abusada, vista por alguém, que esteve junto a ela e possuía também uma maneira de enxergar sua dor. A opção por este caminho se deu, em contrapartida às ciências humanas que optam pelo caminho mais rápido e lógico no que se refere às metodologias utilizadas na compreensão da complexidade inerente aos fenômenos humanos, pois diferentemente dos animais e das coisas da natureza, os objetos por assim dizer, o humano é sensível, afetivo, valorativo, opinativo e tem como morada o significado que dá aos acontecimentos de sua existência. Desta maneira, o processo de caminhar junto ao fenômeno, foi um processo de trazer para a luz do dia, de pôr no claro de forma acolhedora a fala que se mostrou, trilhando este caminho de forma serena e atenta. Portanto, o método utilizado foi o da fenomenologia proposta por Martin Heidegger (2005, p. 65), que parte da seguinte compreensão: Fenomenologia diz, então: deixar e fazer ver aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo. É este o sentido formal da pesquisa que traz o nome de fenomenologia. Com isso, porém, não se faz outra coisa do que exprimir a máxima formulada anteriormente - ‘para as coisas elas mesmas’. Esta pesquisa esteve voltada para um enfoque fenomenológico e hermenêutico, com ênfase no fenômeno, procurando evidenciar como este se deu, abrindo horizontes a respeito do que se mostrou, como se mostrou, a partir de si mesmo. E na hermenêutica que diz do desvelar de uma mensagem, ou seja, da manifestação dessa mensagem em sua significação, em sua claridade. Para melhor compreensão do significado, abre-se aqui um parêntese para descrever sobre a palavra hermenêutica. Esta, associada a Hermes, o mensageiro dos deuses gregos, o responsável por decifrar para os humanos as mensagens divinas. A hermenêutica, portanto, não se trata de interpretação, no sentido de acrescentar uma intenção, mas simplesmente de traduzir a mensagem que foi recebida de forma compreensível. Como descreve Ayres (2005, p.555), a hermenêutica pode ser entendida como: 20 [...] reflexão metadiscursiva que funda na linguagem a compreensão não apenas das obras humanas, mas das próprias realidades humanas. Essa ampliação vai ter por base a proposição de Heidegger (1995) de que a compreensão, em sua circularidade e reflexividade, não é apenas um modo de se conhecer o humano, mas o próprio modo de ser humano. Ser é compreender-se. Sendo assim, os dados obtidos foram descritos através da hermenêutica, que como método de pesquisa tem em sua base a tese ontológica de que a experiência vivida é em si mesma, um dos modos de ser-no-mundo, ou seja, a experiência que adquiriu significado e passou a ser morada, mostra-se muitas vezes como o modo que a pessoa tem de habitar o mundo, de modo que o entendimento e a interação entre as pessoas, e da pessoa com o mundo que habita é traduzido por meio da linguagem, na exposição do mundo através de uma descrição direta da experiência como tal, sem outras explicações causais. Tratou-se aqui de descrever e não de explicar ou analisar o mundo vivido, pois a fenomenologia busca colocar as idéias e tratar de esclarecê-las sem definições ou conceitos, voltando a compreensão para os significados do perceber, os quais se expressam pela própria pessoa que percebe, reconhecendo-se como aquele que pensa a própria existência. O interrogador faz parte do que ele “quer saber” e “do que ele pode ver”. Ele é elemento constituinte desse “olhar” em que tudo o que é tem sua chance de aparecer, mesmo que como mera testemunha. O interrogador do real deve dispor a si mesmo como alguém a quem também deve voltar sua interrogação. Esse mesmo real que ele quer conhecer só chega a ser, inclusive, pelo seu olhar.(Critelli, 1996, p. 134). Pode-se dizer então, que esta pesquisa não se realizou com técnicas, mas sim com um método que foi, antes de tudo, uma postura, uma atitude fenomenológica. Sendo esta uma atitude de abertura, no sentido de se estar livre de conceitos e definições do ser humano para compreender o que se mostrou, relatando a fala, o discurso, em todas as suas possibilidades. A escolha por esta postura/atitude se deu primeiramente pela consideração de que esta perspectiva metodológica é mais rigorosa, pois com ela se pode compreender e fazer ver a experiência humana como tal, a partir de uma ontologia fundamental. O foco foi na totalidade da experiência, em vez da preocupação com determinada parte desta, buscou-se significados, em vez de explicações causais, podendo descrevê-los através dos relatos e dados obtidos, valorizando-os assim como uma das formas de compreender o humano, visando o método, o encontro, como uma relação já de intervenção e cuidado. 21 O trabalho de pesquisa-intervenção pode ser visto como uma associação do método fenomenológico à prática dialógica, permitindo maior dinamismo ao processo, e isto passou a determinar os próprios caminhos que este tomou. A pesquisa-intervenção consiste em uma tendência das pesquisas participativas que busca investigar a vida de coletividades na sua diversidade qualitativa, assumindo uma intervenção de caráter sócio-analítico (Aguiar, 2003; Rocha, 2001 apud Rocha & Aguiar, 2003). Rodrigues e Souza (1987, p. 31 apud Rocha & Aguiar, 2003) evidenciam que a pesquisa-intervenção representa uma crítica à política positivista de pesquisa: A antiga proposta lewiniana vem sendo resignificada à luz do pensamento institucionalista: trata-se, agora, não de uma metodologia com justificativas epistemológicas, e sim de um dispositivo de intervenção no qual se afirme o ato político que toda investigação constitui. Isso porque na pesquisa-intervenção acentua-se a todo o tempo o vínculo entre a gênese teórica e a gênese social dos conceitos, o que é negado implícita ou explicitamente nas versões positivistas 'tecnológicas' de pesquisa. Enfim, por pensar que atualmente existem alguns bloqueios na prática de formação em relação às instituições universitárias, pois estas cada vez mais buscam modelos universais das especialidades científicas, apresentando aos formandos um conjunto de técnicas a serem aplicadas. A pesquisa-intervenção surgiu então como um outro caminho possível, onde não houve o que se medir nos modelos já ditados como melhores e mais eficazes, mas sim, onde ocorreu a experiência do encontro, já intervindo de alguma maneira no fenômeno. O primordial não foi a mudança imediata, mas a produção de uma outra postura na relação teoria e prática que pôde ter como conseqüência, talvez, a transformação da realidade encontrada. 4.1 Participantes Neste estudo foram realizadas entrevistas individuais, através do encontro com os funcionários de algumas instituições do Alto Tietê, que cuidam de crianças vítimas de abuso sexual. Foram selecionados 04 participantes, dispostos a colaborar com esta pesquisa, que responderam ao questionário base, disponível no anexo 2. 22 Nas entrevistas, o caminho que se pretendeu seguir foi a descrição da experiência individual de cada entrevistado, visando a compreensão do significado desta experiência vivida. 4.2 Instrumento e Materiais Nos encontros as entrevistas foram gravadas em equipamento de áudio e posteriormente foram transcritas para análise. A gravação do diálogo ocorreu na aplicação do questionário base que foi respondido no encontro com os funcionários das instituições que abrigam menores. Os trabalhos de intervenção foram através destes diálogos de interação com os participantes, que auxiliou o método da narrativa. As conversas registradas em gravações de áudio ou manuscritas em forma de relatórios respeitaram o anonimato dos participantes e a ética na pesquisa, de acordo com as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos, resolução 196/96. 4.3 Procedimento Foram realizadas, portanto, entrevistas com quatro cuidadores de duas instituições para crianças e adolescentes do Alto Tietê. Na primeira conversou-se com dois educadores, que são responsáveis pelas crianças em turnos diferentes da mesma instituição. E na segunda instituição a conversa se deu com a coordenação geral e pedagógica. Para a realização das entrevistas, a maior dificuldade, em primeiro lugar, foi o difícil acesso à pessoa, a alguém que estivesse disposto a falar de maneira aberta, livre, sem medo. Sentimento este, que acompanhou todas as entrevistas, tanto por parte dos entrevistados ao relatar algumas situações, como das pesquisadoras em aprofundar alguns assuntos e questionamentos. As primeiras entrevistas foram possíveis então, devido um amigo que com muita boa vontade, fez o intermédio entre as pesquisadoras e os cuidadores, e a conversa realizada com A., a primeira a ser agendada, foi marcada para a noite, em uma universidade, pois devido ao tempo escasso de todos, considerou-se então que seria melhor aproveitar esta oportunidade. A segunda entrevista realizada com J., foi agendada para mesma semana, só que neste caso, devido à disponibilidade do cuidador em estar num local próximo as pesquisadoras, foi 23 optado por ir até a instituição e realizar a entrevista lá mesmo, conforme sugestão feita pelo próprio cuidador. Entretanto, a terceira entrevista foi respondida por dois entrevistados ao mesmo tempo e foi realizada em outro município da região do Alto Tietê. Esta se tornou possível por intermédio da indicação de outra instituição visitada anteriormente na mesma cidade. Ao chegar no local indicado, pois não havia mais o costume de se ligar antes, pediu-se então para falar com o responsável, informando que se chegou até lá por indicação prévia. Como resposta, foi informado que este estava almoçando e dentro de meia hora poderia atender. Durante a espera, se admirou a paisagem que possuía muito “verde”, flores, coqueiros, e pequenos prédios antigos como se fossem casas. Nas árvores, os pássaros cantavam e uma sensação de tranqüilidade se fez presente. Havia uma apreensão em ouvir mais um “não posso ajudar”, que de certa forma ficar ali, naquela mansidão, fez bem. Quando a coordenadora pôde atender, se mostrou atarefada. Durante a conversa seu celular toca, ela pede licença, atende, e pelo que se percebe é algum assunto da própria instituição que ela diz que já irá resolver. Ao desligar, volta-se novamente a uma rápida explicação que era dada sobre as intenções da visita e sobre a pesquisa, e neste momento foi feito o pedido para entrevistar um membro da instituição. A resposta foi positiva, ela disse que havia possibilidade e que a entrevista poderia ser realizada com ela mesma e mais um coordenador, só que naquele dia não seria possível. Marcou-se então, para o próximo dia de manhã, houve a troca de telefones, e a sensação ao sair daquela instituição, era como de “vitória”, pois uma entrevista foi possível agendar já na primeira tentativa. 24 5. RESULTADOS E DISCUSSÕES Visando um processo educativo da pesquisa a serviço da humanidade, num trajeto de mão-dupla, de uma ética pessoal e intransferível, juntamente com a responsabilidade das pesquisadoras pelo auxílio para a uma melhor compreensão do fenômeno do abuso sexual infantil, esta análise se constituiu em descrever os relatos obtidos, de maneira, rigorosa e humana. Conforme Tinti (2006), o processo educativo, embasado pela compreensão de educação proposta por Paulo Freire, é o momento em que a fala, a prática do diálogo e a liberdade da relação ensino aprendizagem concorrem para o mesmo fim. [...] em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se na práxis, com a sua transformação [...] e transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação (Freire, 1987, p.30). Nesta compreensão de educação, esta análise se deu na busca pelo sentido da fala dos entrevistados, funcionários e cuidadores de menores institucionalizados, e junto a isto, as repercussões da dificuldade que hoje existem para que esta fala se desvele. Levando em consideração a importância desta, para a própria pessoa, bem como para o auxílio na conscientização da sociedade sobre esta questão tão freqüente, mas que parece, ou torna-se, tão invisível. A descrição fenomenológica hermenêutica realizada nesta pesquisa, propôs uma reflexão rigorosa e contínua sobre o encontro das pesquisadoras com os cuidadores, tornando possível estar-se atento a tudo o que se mostrou mais digno, buscando vê-los sem préconceitos, mas com um olhar cuidadoso, ao contrário da metafísica e da técnica, da medida e da categorização, onde o tempo é rapidez e onde a reflexão demorada não habita. Neste sentido o desafio foi sair do conforto e da tranqüilidade que o pensamento metafísico propõe, para embarcar num encontro de abertura de espaço para a fala daqueles que estão com essas crianças que se encontram marginalizadas. Onde houve a disponibilidade de se estar junto, ouvindo e deixando que os significados aparecessem. Sendo assim, na posição de ouvintes atentas, surgiu então a dificuldade de encontrar quem estaria disposto a falar. Como o assunto, é de certa forma, “complexo”, levando-se em conta as leis, burocracias quanto a autorizações e tudo mais, esta não foi tarefa fácil. 25 O entendimento inicial, era de que as questões poderiam ser respondidas, sem maiores problemas, pois no caminhar de uma vida ouvem-se e conhecem-se muitos casos. Porém, nas dificuldades percebidas tanto para aprovação da escolha do tema, como no decorrer de todo o processo inicial do projeto de pesquisa e depois na complicação que norteou o agendamento das entrevistas. Havia uma pergunta que se tornava recorrente: se o abuso sexual é freqüente, por que as pessoas se recusam a falar? Os primeiros contatos com instituições e cuidadores, se deram por meio de ligações telefônicas, a experiência de ligar e solicitar a colaboração de algum membro da instituição era de início bem recebida, mas quando a conversa avançava e o tema “abuso sexual” era mencionado, as coisas simplesmente mudavam, pois a solicitude se transformava em um gélido “não temos esses casos na instituição, não podemos ajudar”. Indagava-se então, seria o segredo de justiça que impedia que as pessoas falassem do assunto? Mas era explicado que as pesquisadoras não iriam falar com as crianças, mas sim com seus cuidadores. Não haveria um contato direto com os abusados, mas a busca por um sentido que se daria a partir do olhar de um cuidador. Sempre ficou bem claro de que forma seria feita a pesquisa, e que em nenhum momento as crianças ficariam expostas, mesmo assim, a esquiva era mostrada de todas as formas possíveis. Percebeu-se assim, a enorme fragilidade que envolvia a palavra “abuso”, muitas vezes evitava-se até pronunciar essa palavra. As pessoas mais antigas tinham receio em falar a palavra “câncer”, como, se ao pronunciar, iriam adquirir a doença. Pode-se refletir que com o passar dos anos, não mudou muita coisa, aquilo que dá medo, é evitado, e prossegue-se não sendo falado. Na maioria das vezes o receio em tratar do assunto, o não querer fazer parte disto, o não estar disposto a mexer numa ferida aberta que é o abuso sexual, era percebido. Assim aos poucos, não se ligou mais para as instituições e a visita pessoal, com a disposição para aguardar um tempo considerável, era a maneira de buscar uma conversa que pudesse surgir. Em uma das abordagens, ao se falar com a coordenação da instituição, foi mencionado que talvez eles não pudessem ajudar, e que seria melhor a procura pelo Centro de Referencia de Assistência Social (CRAS) do município, pois naquela instituição não havia muitos casos. Mesmo assim, foi colocado que se fosse possível e se de acordo, era de grande auxílio ouvir os relatos daquela instituição também. O resultado disto contribuiu ainda mais para a reflexão 26 sobre o sentido do não falar, pois foi nessa entrevista, que se apontou mais casos de abusos sexuais infantis sofridos. Então fica a questão: por que se calam se todos sabem que o abuso sexual existe e que está aí, na marca que as crianças desta sociedade carregam, seja na clandestinidade, na cumplicidade ou na solidão? Seria por proteção? Pois, ao falar do abuso sofrido, poderia ocorrer um maior trauma na criança? Será por não conhecer e não estar preparado para lidar com isso? Dentro destes questionamentos, iniciamos essa análise. Entrevistas 1 e 2 Na primeira entrevista que foi marcada, ao entrar na universidade, e esperar que A. chegasse, notou-se um enigma, pois a conversa inicial se deu por um telefonema. Assim, ao notar a entrada de uma pessoa diferente, sempre havia a troca de olhares, porém, em uma dessas entradas, surge um apontamento receoso e ouve-se: “são vocês que estão me esperando?”, a resposta foi: “sim, você é A?”. Conversou-se um pouco então sobre a universidade, o curso que A. esta graduando e de como naquele dia estava cansada, devido às atividades que havia desenvolvido na instituição. Foi então, explicada novamente a pesquisa, o termo de consentimento foi lido e avisou-se que a entrevista seria gravada. A. aceitou e a conversa fluiu normalmente. Entretanto, na segunda entrevista, ao chegar à noite no abrigo, onde se encontraria J., houve a permanência por alguns minutos do lado de fora da instituição, na espera de que o cuidador chegasse para iniciar seu turno de trabalho. Ao se olhar para a instituição, uma enorme sensação de vazio tomou conta das pesquisadoras, pois se observou uma interna chegar da escola e comentou-se, como deveria ser triste não ter pra onde voltar. Então foi analisado, que ela tinha pra onde voltar, voltava para o abrigo, mas sentiu-se que não era a mesma coisa, a impressão que se teve é de que ela voltava para o nada, para um vazio, não existia um vínculo forte ali, não tinha uma família esperando por ela, não havia nada que fosse realmente dela lá. Essa sensação, diga-se de passagem, foi muito particular das pesquisadoras, e saber se estar abrigado, longe de uma família, e é claro, dos maus-tratos sofridos nessa, seria algo bom ou ruim para aquelas crianças, não compete analisar nesse momento. Assim, enquanto ainda se discutia sobre a condição de abrigo daquelas crianças, J. chegou, e fez o convite para entrar. Observou-se que se tratava de uma bela casa, muito grande, com árvores, piscina, lembrando uma chácara, mas a sensação, ainda era de que não 27 havia “vida” ali, não existia alegria, mas somente um grupo de jovens e crianças que a todo o momento pediam aos cuidadores atenção, carinho, um olhar, uma identificação. Era um lugar onde pessoas carregavam diariamente suas cicatrizes mais profundas. Dessa maneira, nessa sensação de se adentrar num local impróprio, foi iniciado o segundo encontro. Nestas primeiras duas entrevistas, que trazem o relato de cuidadores que trabalham na mesma instituição, várias reflexões puderam surgir sobre a questão do abuso sexual, que serão discutidas a seguir. Para dar início a esta análise, foi decidido ser importante, falar um pouco da compreensão que se teve dos entrevistados. Na primeira entrevista A. mostrou-se uma pessoa que é tocada pela questão, e que mesmo não tendo nenhuma formação para isso, tem essa preocupação no tratar com a criança sexualmente abusada, ela diz: “É muito difícil para o cuidador agüentar isso, porque você mesmo começa a se policiar para seu olhar não mudar em relação àquela criança, aquele adolescente”. J., no entanto, já se mostrou com mais segurança, seu jeito de falar sobre o abuso, trouxe também as aflições e questionamentos, mas sua fala foi mais rebuscada, e a dúvida no tratar com a criança também apareceu, mas foi colocado que esta questão já estava de certa forma, resolvida, “Depois, com o tempo, a gente vai percebendo que a melhor forma, pelo que eu entendo é lidar tranqüilamente. Lidar respeitando as individualidades como respeitamos as individualidades de todo mundo, sabendo até aonde podemos ou não se aproximar. E mantendo esse respeito, a relação é possível”. Notou-se também já nesse primeiro encontro, que há uma falta de preparo dos profissionais para lidar com a situação de abuso sexual. A.: “Tenho dificuldade, não me acho com formação nem preparo, sendo assim, vou muito mais no intuitivo”. J.: “O fato de que as crianças que sofreram abuso sexual tem peculiaridades diferentes, tem que ter um atendimento especializado, mas na casa, no dia a dia são tratados com o respeito e a individualidade que são tratados os demais, nada de tratamento especial, tem tratamento psicológico, estão inseridos na rede pública, então tem atendimento ou do CAPS ou de Instituições como a APAE, participam dos programas que a rede disponibiliza. Não é suficiente”. Diante disso, há um certo atrevimento aqui, ao se afirmar então, que esta falta de preparo estaria de alguma forma dando sinais do não-dito, pois quanto mais o assunto é 28 velado, menos se fala e se pensa sobre ele, sendo assim: onde encontrar o preparo necessário para trabalhar com esta criança? Pode-se responder: mas o problema está nas instituições, que contratam profissionais despreparados. E volta-se o questionamento: se esse assunto é ainda hoje tão trancado a sete-chaves, onde o falar sobre ele não se dá, como preparar os profissionais para isto? Como preparar uma mãe, que tem esse fato ocorrendo em casa? Ou um educador que vai todos os dias olhar para essa criança e conversar com ela sobre diversos assuntos? Como se preparar? Tem-se hoje à disposição uma quantidade incalculável de informações sobre qualquer tema que se queira conhecer, assim, a definição de abuso sexual parece já estar clara e resolvida, mas o humano vive nessa contradição: onde ao mesmo tempo em que o avanço tecnológico proporciona um acesso rápido ao conhecimento, alguns assuntos, como por exemplo, os relativos à sexualidade humana, se perpetuam na condição de tabus. A. diz: “Existem nossos próprios tabus, falar de sexo com adolescentes, por exemplo, é uma coisa comum” . E o falar de sexo com uma pessoa que passou pela experiência do abuso sexual? Isto parece um problema maior ainda, A.: “Houve um caso em que estava conversando com uma adolescente sobre beijar na boca, que é legal e tudo o mais, e o papo esta acontecendo de uma forma boa, perguntei se a primeira vez dela tinha sido boa e de repente percebi que estava fazendo essa pergunta para uma adolescente que havia sofrido o abuso de pequena (8 anos), ela apenas me respondeu secamente que não havia sido legal, procurei então sutilmente mudar o rumo da conversa”. O abuso sexual mostra-se nas falas, como o tipo de violência que deixa mais marca, ou melhor dizendo, uma marca mais profunda. Aqui então, volta-se a compreender que o mais profundo estaria sim, ligado ao não-dito. O homem que hoje, em sua maioria, vive no impessoal, não reflete e fala sobre suas questões mais próprias, daquilo que coloca a sua existência em jogo, que o deixa vulnerável e diante da sua condição precária. Neste sentido se fecha em tabus, ou busca as tão conhecidas relações de causa e efeito, onde dessa forma, consegue se distanciar da questão, e se distanciando fica mais fácil lidar com ela. No momento em que a presença se perde no impessoal, já se decidiu sobre o poderser mais próximo e fático da presença, ou seja, sobre as tarefas, regras, parâmetros, a premência e a envergadura do ser-no-mundo da ocupação e preocupação. O impessoal já sempre impediu para a presença a apreensão dessas possibilidades ontológicas. O impessoal encobre até mesmo o ter-se dispensado do encargo de escolher explicitamente tais possibilidades. Fica indeterminado quem “propriamente” escolhe. Essa escolha feita por ninguém, através da qual a 29 presença se enreda, na impropriedade, só pode refazer-se quando a própria presença passa da perdição do impessoal para si mesma (Heidegger, 2006, p.346). Esta impessoalidade é mostrada nas duas entrevistas, onde os cuidadores relatam que tiveram conhecimento da situação das crianças através dos prontuários que foram instruídos a ler. Solicitar que se leia os prontuários, é um modo muito utilizado hoje pra apresentar uma situação, uma pessoa, mas como já foi mencionado, é um modo impessoal. Assim, perguntase: e se ao apresentar os casos, em vez de prontuários, fossem feitas conversas sobre eles? A.: “[...] ficamos cientes via prontuário, posso falar um pouco da sensação de pegar um prontuário com todo o processo judicial e começar a analisar aquilo [...] É muito duro, você estar lidando com eles no dia a dia, e quando você tem acesso a este histórico, porque todos tem histórico de vida bastante traumática, mas os casos de abuso sexual mexe muito, principalmente quando você pega o relatório para ler, quando as informações estão completas, e pega o relato detalhado da criança [...]”. J.: “Quando chegamos na instituição, uma das primeiras orientações foi a de ler os prontuários para verificar os históricos para ter uma idéia de quais são as realidades das crianças que estão aqui. Me lembro, de ter começado a ler os prontuários e lia dois prontuários por dia, mas teve um prontuário que eu comecei a ler e não tive condições de continuar a ler no dia, o caso mais grave, mais crítico, porque mexe muito [...]”. Que se reflita então, no significado do que está proposto nesta pesquisa. Nas falas anteriores, sobre os prontuários, nota-se que mesmo sendo algo impessoal e impróprio, o simples fato de ler num prontuário que uma criança foi abusada sexualmente, toca, mexe com aquele que lê, que sabe que vai lidar com aquela criança. A questão dessa pesquisa, o sentido do abuso sexual vivido pela criança para os cuidadores, aqui ganha mais relevância, pois com estes relatos observa-se que não é o mais verificável, mensurável, que estamos tentando compreender, mas sim aquilo que faz mais sentido, que se busca olhar com calma e com o intuito de iluminar. Falar sobre o abuso sexual, ler a respeito de alguém que foi abusado e com quem se lida no dia a dia, traz uma sensação de insegurança, por não se ter a “resposta certa” para essa questão, por ser muito difícil encarar a situação, assim, é optado então por não falar, por tapar e por fechar o prontuário, talvez. O afastamento surge pra não se lembrar mais, pois lembrar deste ato, mostra o quanto se é vulnerável, o quanto se tem uma relação com a vida e com os outros numa condição de poder, de utilidade, e como essa relação pode assumir um viés 30 perverso. A aproximação, porém, pode trazer a consciência à reflexão de que este ato, como outros atos violentos, tem seu impedimento de emergir, de certo modo, numa cultura ideológica de alienação (Macedo, 2007). Pensa-se então: como falar do abuso sexual, deste não-dito, se ninguém ainda experenciou dar essa abertura para a fala. A não ser é claro, na continuidade do segredo, de uma sala fria de um consultório, seja ele médico ou psicológico. Pode-se questionar sobre as diversas pesquisas publicadas sobre o assunto, e as reportagens televisivas, e a gama de informações hoje disponíveis pra quem quer que seja. Novamente aqui é colocado que a maioria das pesquisas busca mensurar a questão, ou tratar das relações causais e isso continua sendo não olhar cuidadosamente para o abuso sexual. Já na TV, o não falar torna-se presente, porque esta não mostra a questão em si, mas o horror, dando a impressão também, que são casos de pessoas distantes daqueles que assistem, fica-se a sensação de que acontece só com os outros, é um espetáculo à distância. Este espetáculo então, apenas encobre mais a questão, pois deixa em evidência aquele que é abusado e esta evidencia, nesse caso, não é tratada pela mídia com cuidado, deixando a marca ainda mais forte, no sentido mais pejorativo que ela possa ter. O que é observado na tv, é o sensacionalismo em relação ao ato, não a lacuna que existe em relação ao abuso sexual infantil. Outros casos informados pela mídia mostram também os “abusadores” sendo presos, tendo diminuição de pena através de recursos utilizados pelos seus advogados e muitos ainda conseguindo diminuir a pena ainda mais com bom comportamento na prisão. O Parágrafo 4° da Constituição Federal, Art. 227 que afirma: “- A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente" (Código Penal e Estatuto da Criança e do Adolescente, 2002). Parece não se referir realmente ao que acontece. Desta forma, todo este modo de lidar com a situação, faz ver como o abuso sexual em si, está encoberto, esquecido, e que dar um passo atrás, olhar com mais cuidado para este nãodito, é talvez uma das possibilidades de enxergá-lo, e de quem sabe, fazer emergir esta questão da maneira mais originária. Pode-se compreender, também, que a marca se faz presente, que é profunda e que traz ao homem um desconforto para tratar com ela. No relato destas duas entrevistas é mostrado que há a preocupação de que o olhar diante da criança abusada não mude. E qual o sentido 31 desta mudança de olhar? Aqui se ousa novamente responder, que o sentido poderia estar no ter que olhar para o mais profundo, para a dor em si. A.: “[...] é uma marca que eles tem que”carregar” e resta saber da forma com que eles vão conseguir carregar ... cada um tem uma forma de levar essa vivência, talvez até o nosso olhar para certos comportamentos acabem mudando, pelo fato de estarmos cientes do ocorrido, aí que se encontra a dificuldade do cuidador não demonstrar”. J. também traz esta questão, “Mas quando lidamos com os fatos, ou detalhes de como isso aconteceu ou quando lidamos com a agressão do abuso sexual, porque a impressão que dá é que é o tipo de agressão que deixa mais marcas, que causa mais transtornos no desenvolvimento emocional [...] A primeira reação é como é que eu vou lidar com a pessoa, se eu vou conseguir chegar na frente dela e conversar com ela, lidar com ela, como eu lidava antes, no começo você tem medo de ter uma atitude condescendente de tratá-la diferente ou você pensa: talvez eu deva tratá-la diferente, lidar com isso é muito difícil”. A marca, quando há a abertura para olhar pra ela, ou quando ela surge na surpresa de um prontuário, é de certa forma, dividida. Os cuidadores, aqueles que estão juntos, passam a carregá-la também. A dor dividida, essa experiência compartilhada torna-se algo que interfere e impossibilita a vivência cotidiana (no sentido de uma vivência de esquecimento das questões fundamentais do homem), os relacionamentos são afetados, o olhar toma um outro significado. A ferida exposta e não cuidada emerge. A angústia, a dor e o sofrimento abalam os projetos de vida do homem, pois, no decorrer da vida do indivíduo, há períodos em que as rupturas com a origem em alguma crise fazem com que algum tipo de significado da existência humana passe por mudanças bruscas, não compreendidas de imediato, gerando a perda de sentido. Em tal processo de ruptura, o homem procura não apenas alívio para tal situação que associa à dor, mas também a compreensão desse todo ocorrido, quase como a procura por um estado de proteção[...] (Pereira, 2006, p.122). Essa marca, que se encontra presente e que poderia ser a vergonha, culpa, raiva, revolta, será que haveria preparo pra ouvir sobre ela? Será que haveria coragem, de destapar essa questão tão bem guardada? Se for destapada, o que virá? Não se sabe se seria bom ou ruim, não se pode julgar, mas pode-se tentar olhá-la por outro prisma. Poderia se discutir talvez a vergonha, a culpa ou a raiva, entre outros sentimentos. Na primeira entrevista, houve um momento em que foi falado sobre a culpa, perguntou-se a A. se ela acreditava que as crianças carregavam alguma culpa por terem sido 32 retiradas do convívio familiar, ela nos disse, “Carregam sim, mas demonstram de uma maneira subliminar, primeiro porque não tem consciência da realidade dos fatos, tentam ver com outros olhos, por exemplo: meu pai não era mau, meu avô não era mau, floreiam muito. Costumam dizer: se eu fosse boazinha, estaria lá em casa [...] Dos casos que temos, nenhum foi denunciado pela criança, mas sim denúncias feitas de vizinhos, parentes, etc”. No Aurélio da língua portuguesa, "culpa" é definida como, um sentimento de autorepulsa por acreditar que se fez algo errado. A culpa é uma experiência psicológica e emocional própria do homem, tal como a alegria, o medo, a confusão, o ódio, a apatia, a raiva e o espectro de sentimentos que vai do branco mais brilhante ao negro mais escuro. Todos têm seu lugar nas vivências e cada um expressa o que vai em si. Todos, independentemente de fatos, fantasias ou razões, podem fazer coisas na vida, de acordo com o grau de culpa que sentem. Cada um traz consigo, em todos os minutos de sua existência, acordado ou dormindo, todas essas coisas que preferem manter a distância, num passado sombrio, sobretudo escondidas daqueles que poderiam recriminá-las. Nota-se, entretanto, que até pelo fato da pouca idade, a criança não entende muito o que está acontecendo, o que ela pode ter feito de errado pra ser retirada de casa. Essa culpa que fica é então, uma culpa cotidiana do pensar humano, há a causa (denúncia, falar) e o efeito (ser retirada de casa, separação dos pais). O não-dito, mais uma vez está presente, e é perpetuado pela experiência do que aconteceu ao se falar do assunto. E há só isso. Pelo distanciamento com a questão, o fato depois de exposto é abafado, não se fala sobre ele, pois o falar traz culpa novamente. A criança nesse sentido, não pode vivenciar a culpa existencial, aquela que mostra a falha do humano, a sua vulnerabilidade, que traz pra si o acontecimento e de certa forma a responsabilidade por si, pela família, pelo que aconteceu. Como diz Pompéia e Sapienza (2004, p.104), “Quando a culpa é totalmente retirada dele, aumenta sua sensação de que, de fato, ele não conta pra nada. Entre todas as coisas que lhe foram negadas na vida, há agora mais uma: a possibilidade da culpa”. Desta forma o que pensar, se a criança neste universo todo do abuso, das suas conseqüências, está crescendo. A marca está lá, a dor é sentida. Ou ela também já esqueceu, achou melhor não pensar nela, afinal ninguém fala. Deve ser realmente a pior coisa que existe, e certamente deve haver algo de errado com ela. Qual o significado disso tudo? Afinal a culpa é de quem? Carregar essa sombra, sem poder falar é melhor? A sociedade não aceita? É vergonhoso? Que nome dar a isso tudo? Será que realmente existiu? 33 Talvez se fosse falado, se houvesse abertura para o dizer e refletir, se a criança ao se desenvolver pudesse ter contato com essa realidade de forma mais própria, se pudesse não obter respostas rápidas, mas a simples compreensão do que houve, de que acontece mais do que se pensa, e de que esta é sua história, sua condição: poderia sua vida assim, seguir um caminho mais digno? Talvez sua vida continuaria da mesma maneira, só que mais significativa, seu espaço na realidade estaria de certa forma afirmado em tudo aquilo que ela possui, e também em tudo aquilo que lhe faltou e que lhe falta. O homem na condição de se fazer pelas escolhas, se torna assim mais próprio. Quando o escolher falar é negado, é sufocado, o que sobra? Seria neste caso melhor falar ou calar? Não se pode afirmar. Mas refletir é possível. O não dito que para Heidegger, significa descobrir a clave oculta, aquilo que não foi expressamente escrito, mas que está subjacente ao que foi dito. Mas em que sentido se faz a experiência de um dizer. Será que dizer refere-se apenas à vocalização daquilo que uma palavra ou frase significam. Será que aqui se apreende o dizer como expressão de um interior (da alma), que assim se deixa dividir em duas partes, a fonética e a semântica? Não há nenhum vestígio desse entendimento na experiência do dizer. Tudo isso, porém, porque vige como o que deixa aparecer. Em que consiste a diferença entre o que é dito e o que é pronunciado? (Heidegger, 2002, p.215). Destaca-se na fala dos cuidadores, o dizer sendo acolhido no simples cuidado ao olhar o que é pronunciado. J. diz: “A violência que ela sofreu é fácil de perceber até por conta dela deixar claro de que forma foi coagida. Os relatos que ela faz do que aconteceu, das coisas que ela tem medo, parecem ser carregados de um simbolismo muito forte, por exemplo, ela tem medo do caminhão de melancia, de vez em quando ela conta como era coagida: meu pai falava que se eu não fosse boazinha, o caminhão de melancia iria me levar [...] ou iria me levar para o açougue. Freqüentemente ela pergunta: “o que é que tem no açougue?”. No relato de A. este acolhimento também aparece: “Foi dada uma atividade de auto retrato no espelho. Uma adolescente com historia de abuso sexual se negou a olhar no espelho, fez um desenho de seu auto-retrato, colocou uma interrogação e me entregou dizendo: essa sou eu!”. Quando se consegue olhar e permanecer olhando para o que se mostra, talvez possa ser aberto um modo desse existir se pronunciar de maneira mais significativa. Em todo esse processo, também emerge outra questão, a infantilização permanente que acompanha o desenvolvimento daqueles que foram abusados, muitas vezes podendo aparecer até na vida adulta, J. nos conta: “Os casos de abuso tem suas peculiaridade. A forma de lidar com a sexualidade tem características infantis, não tem a noção de: estou fazendo 34 uma coisa errada! Não conseguem estabelecer os parâmetros do que é ou não é aceitável socialmente, não sabem discernir o que faz parte do desenvolvimento normal do comportamento aprendido”. A. também relata: “Há outros que se fecham completamente e acabam criando um mundo “paralelo” e não conseguimos nem entrar para entender esse mundo, na verdade, acredito que eles partem para um processo de reconstrução, porque estavam em um processo de construção de identidade, são interrompidos e começam então a reconstruir”. Aqui novamente o não-dito é clareado, pois, a criança ao se desenvolver, se relaciona com o mundo que diz quem ela é, quando surge então a vivência do abuso sexual toma conta deste universo, o não-dito, ela é privada da discussão, do que é certo, do que é errado. Não há espaço, muitas vezes para contar, para se identificar na propriedade da sua condição, para escolher falar ou calar. Nessa privação que o não-dito traz, essa criança se torna como um cristal, que não pôde ser lapidado. Assim, sem propriedade sobre quem se é, avança e retorna, está perdida no seu existir. Sem poder dialogar com o mundo, permanece na infância. Para os outros permanece intocável, por uma dor que se entende ser melhor abafar. Estas reflexões possíveis nessa primeira análise das entrevistas finalizam-se no destaque, de que não há cuidado com o abuso sexual sofrido pela criança, há apenas um tampão, e isto se mostra até no despreparo dos cuidadores para lidar com a situação. O medo de falar está sempre presente, o parar pra pensar dos entrevistados após as perguntas, dá uma sensação de que se deve escolher as palavras certas a dizer. Do mesmo modo, na orientação desta análise, apareceu a mesma questão: falar ou não falar sobre um fato ocorrido. Optou-se então pela primeira, mesmo sabendo dos riscos embutidos. Essa opção se deu, pelo sentido de não manter mais uma vez, o não-dito do mesmo modo. Sendo assim, cabe aqui colocar, que em uma das entrevistas, quando as perguntas já haviam terminado, houve um pedido que foi aceito sem pensar. A pessoa que estava sendo entrevistada possuía uma vontade de falar mais, de relatar exatamente o que a chocou tanto nos prontuários. Foi pedido então pra que se desligasse o gravador. Ao desligar, um alívio apareceu, e foi relatado, que na instituição, o caso que mais choca é o de uma menina. Por motivos não ditos, foi contado que ela morava com o pai e durante três anos, esse pai mantinha relações anais com esta menina, constantemente. O resultado disso, ou não se sabe se já havia algum comprometimento, foi uma deficiência mental, com aparecimento de surtos psicóticos. A menina hoje não tem ninguém, a família a abandonou. Ela já tem 17 anos, e pela 35 lei das instituições, aos 18 não poderá mais ficar no abrigo, tendo que se responsabilizar por si, ou na falta dessas condições ser encaminhada para uma outra instituição. Reflete-se então, a que ponto chegou essa relação parental, onde um pai foi capaz de usar sua filha como um meio de obter satisfação sexual. Que estrutura de família foi criada, onde, esta passa a ser a maior violadora dos direitos da criança? Que modo de enxergar o outro e a si próprio está presente nessa relação, que em sua maioria, não é um ato praticado por um “louco”, e onde as relações de poder ficam expostas. Se o homem é ser-com-osoutros: como acontece o relacionar-se neste processo destrutivo, como entender essa intimidação, que podem limitar de maneira tão pesada, o desenvolvimento de uma criança? O não-dito alimentou a extensão de três anos de abuso, ininterruptos, onde ninguém soube, ninguém comentou, e talvez quando a situação foi escancarada, quando a situação foi descoberta, já era tarde demais. Assim, enquanto esta análise era escrita, uma das pesquisadoras, coloca um sentimento muito próprio, que se fez presente de maneira espontânea, e que por isso mesmo, se pensou ser de contribuição a esta pesquisa, pois como coloca Critelli (1996, p.135) [...] o interrogador faz parte daquilo que é interrogado e porque o que é em manifestação se manifesta de diversas maneiras, tudo o que toca o interrogador, o que aparece a ele, mesmo que sejam lembranças, sensações, e que “pareça ser” irrelevante deve ser levado em conta. Através de qualquer coisa, do que quer que seja, o sentido procurado pode se revelar. É com base neste entendimento, que se abre um espaço para relatar então, o sentimento manifesto durante a análise: “Me questiono, como pode, com toda evolução que o planeta passa, com tantas informações oferecidas, existir tantos casos de abuso sexual, por pessoas tão ligadas a nós. Aonde se encontra o maior vínculo da vida? Como pode, um “ser” que tem coragem de se denominar humano, causar tamanha afronta contra vidas tão fragilizadas, despertas para o mundo, cheias de alegria, a procura de afeto? Nesse momento choro, choro ao escrever isso, porque me invade um sentimento muito ruim, de desamparo e solidão. Talvez sinta isso, por ter passado pela mesma afronta. A “marca” que tenho é o esquecimento completo da minha infância, apenas carrego comigo uma sensação de profunda agonia e traição. A revolta maior é saber da existência de inúmeras pessoas impunes, devido ao medo de retirar o “tampão”, medo de se expor. Não digo somente a família, mas cuidadores também. Existe um medo de uma Retaliação da sociedade ao se expor. O que conta para todos é apenas “olhar em volta do próprio umbigo”. 36 Portanto encerra-se esta primeira parte da análise com a pergunta que se faz presente: Diante do sentido que emerge, o que escolher, tapá-lo novamente, ou se aproximar da questão? Entrevista 3 A terceira entrevista, da qual tratar-se-á agora, foi respondida por dois entrevistados numa mesma conversa. Esta será analisada separadamente, pois mesmo havendo muitas questões que reafirmam as primeiras já expostas, algumas peculiaridades, tanto da instituição como dos casos relatados, mostrou a necessidade de uma reflexão à parte. Inicialmente, descreve-se aqui como se deu este encontro. Na chegada a instituição, foi pedido que se aguardasse a coordenadora numa ante-sala onde havia sofás enormes, com móveis antigos. Passados 20 minutos ela aparece, dizendo que demorou porque estava conversando com uma mãe. Mal teve a chance de fazer um cumprimento, o telefone tocou, ela foi chamada a atender: pois era uma antiga colaboradora da instituição, uma senhora muito idosa, que ligava quase todos os dias só pra conversar. Isto foi explicado, após ela desligar o telefone. Aguardou-se então, mais um pouco, para que a outra pessoa com quem a entrevista seria realizada fosse chamada, quando esta chegou uma sala de reunião foi reservada, e lá se iniciou a conversa. Foi lembrado do que se tratava a pesquisa e foram apresentados, mais uma vez, a autorização do comitê de ética e os termos de consentimento. Logo que estes foram lidos, ainda em pé, a coordenadora disse que não tinha entendido direito que se tratava da questão do abuso sexual, e que talvez fosse melhor a procura de outra instituição para maiores informações, pois naquela não havia muitos casos. Antes que uma resposta pudesse ser dada, a coordenadora continuou já relatando alguns casos de que se lembrava e nesse momento houve a escuta atenta de tudo que era dito. Quando surgiu um espaço na fala, pois nos primeiros relatos deu para perceber que havia mais de um caso, foi pedido então, a autorização para gravar a entrevista, que com a permissão por ambas as entrevistadas deu inicio a conversa que será analisada a seguir. Primeiro é interessante informar, que esta entrevista foi a que durou mais tempo, ficou-se mais de uma hora conversando. A entrevistada que de início aconselhou que se procurasse outra instituição foi a que mais se sentiu à vontade pra falar, e muitas histórias foram contadas nesse período. 37 Ficou-se sabendo que essa instituição, não era mais um abrigo, ou melhor, como I. conta, foi um internato por muito tempo, mas agora a função era outra, funcionava mais como um semi-internato, onde depois de passar o dia na instituição, as crianças voltavam para suas casas. As atividades realizadas eram de educação infantil, entre outras. E o tratamento era como de um abrigo, pois a alimentação, a educação e o cuidado eram feitos quase que somente pelos responsáveis da instituição, diferenciando somente na volta das crianças para dormir em suas casas. Deste modo, a entrevista se deu com relatos de como a instituição funcionava na época em que era um abrigo, e como funciona hoje na condição de escola infantil. Nos casos relatados de abuso sexual, pode-se perceber um maior envolvimento da família, a relação da criança com o abusador, e a maneira como os cuidadores lidam com isso no dia-a-dia. E já de início, nas falas, surgiu a renúncia, novamente, em se pronunciar a palavra abuso, como se esta mesmo tivesse o poder de quebrar a vulnerabilidade daqueles que se colocassem na abertura para falar sobre o assunto. Aqui, o não-dito, o medo de destampar a questão e os tabus reapareceram. Quando foi perguntado se na época em que a instituição era um abrigo, havia casos de abuso sexual foi respondido, por I. que: “[...] eu acredito que sim, naquela época era bem diferente, não se falava tanto, mas eu acredito que sim, existia e bastante [...] antigamente era mais restrito não se falava nisso daí [...]”. Pode-se perceber nesta fala o receio em pronunciar a palavra abuso, que é tratado como: isso daí. Talvez este não pronunciar tenha aparecido por medo de se comprometer, ou como já dito pela própria manifestação do abuso como não-dito. Outra percepção se deu, no entendimento de uma confirmação de que este foi sempre um assunto mantido em silêncio, apesar de acontecer bastante, como a própria entrevistada coloca. I. conta também que nesta instituição, antigamente, as crianças eram abrigadas, mais por motivos das condições econômicas da família, ela relata: “[...] mais a situação financeira da família, como o diretor sempre conta o relato dos pais era: eu não tenho condições financeiras de ficar com meu filho. Então se procurava internar ou algum lugar pra colocar aquela criança lá, e a mãe vinha visitar final de semana [...]”. Novamente é mostrada, também a contradição, onde há a crença de que o assunto está resolvido e é conhecido. 38 I.: “[...] hoje em dia, eu acredito que até melhorou muito, porque você é mais aberto pra conversar com as crianças, se conversa dentro da escola, você vai ao médico o médico fala, antigamente era mais restrito não se falava nisso daí, antigamente era mais fechado, agora, hoje em dia, tem muita orientação, onde você for, num posto de saúde, uma diretora de escola, uma professora, todo mundo já tem uma orientação sobre isso aí, já pode encaminhar pra alguns certos lugares pra poder te ajudar”. Mas ao mesmo tempo com toda a informação disponível o abuso continua a acontecer e os profissionais não estão preparados para lidar com ele. I. conta que disse pra uma mãe: “[...] então agora, não somos nós, não somos especialistas, não estudamos pra isso, não sabemos como lidar, então nós vamos passar o caso da senhora, para as pessoas que possam ajudá-la nessa situação” . Nessa colocação, se vê que quando o abuso vem à tona, se procura logo alguém que possa tratar do assunto. Mesmo havendo tanta informação como se afirmou na fala anterior, a conversa sobre ele não ocorre, pois não se quer ou não se pode falar. Há então a procura para se passar o problema para outras mãos, como se houvesse alguém que realmente fosse especialista em tratar dessas angústias humanas. Em uma pesquisa realizada por Koshima (2003, p.133), onde este descreve o atendimento psicossocial e jurídico de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. Podese observar alguns relatos feitos por crianças em atendimentos, que de certa maneira, servem aqui para reforçar as análises desta pesquisa, uma vez que estes relatos, a fala das crianças, não nos foi possível obter. É grande a dificuldade que existe em falar sobre o abuso sexual. Durante o atendimento percebe-se que a maior parte das crianças atendidas levou algum tempo até conseguir contar a alguém e pedir ajuda. Revelam, além de um grande medo das ameaças dos agressores, um medo de não serem acreditadas ou mesmo de serem responsabilizadas pelo acontecido. "Eu tentei contar várias vezes, eu tentava, mas ninguém me ouvia. Todo mundo me olhava desconfiado e dava risada. Eu sofri muito”. Essa frase foi dita no primeiro atendimento de uma menina de onze anos, que vinha sendo abusada sexualmente pelo pai desde os seis anos e que tinha recentemente contado à sua irmã mais velha. Felizmente ela acreditou. Além do medo do descrédito na sua palavra, o medo da reação dos responsáveis ou das ameaças do agressor, vergonha e culpa, são os elementos que contribuem no prolongamento do silêncio que envolve os abusos sexuais. "Eu vou ser presa, vocês vão me castigar", essa foi à reação desesperada de uma menina de nove anos, que vinha sendo abusada, desde os sete por um vizinho de sessenta anos, no momento em que foi questionada pela mãe. Além desses fatores podem não falar por medo de retaliações contra si mesmas ou contra as pessoas que amam. Existe também o medo de ruptura familiar. Outra adolescente de dezessete anos que foi abusada quatro vezes pelo pai, a partir dos onze anos, conta que nunca falou porque ele a 39 ameaçava usando o argumento de que se ela contasse ele se separaria da mãe e elas iriam morrer de fome. Uma outra criança que foi violentada pelo tio, dos cinco aos onze anos, conta: "Cada vez que o tempo passava, ficava mais difícil contar, minha mãe não prestava atenção em mim, eu dava pistas, tentava falar, ela é muito rígida. Tinha muito medo dela perguntar porque eu não contei antes, mas eu só queria proteger eles, manter minha família unida. Mas não adiantou nada, eu não presto e quero morrer". Nesta terceira entrevista uma das falas que trouxe a questão relacionada ao silêncio que envolve o abuso sexual, no que diz respeito à fala da criança sobre o ocorrido, foi contada por I., num caso em que por desconfiança das cuidadoras de que algo de errado estava acontecendo, houve o questionamento a um garoto que de início não respondia as perguntas, mas que com o passar do tempo, desenhou para elas toda a situação, ela diz: “[...] o interessante foi ele ter desenhado tudo o que acontecia, porque não conseguia falar, e sempre que se tocava no assunto, ia brincar, não falava, e no desenho, você olhava e ficava horrorizada!”. O despreparo dos cuidadores reaparece nesta entrevista, mas neste caso é relatado que se busca por ajuda, uma vez que esta está disponível na instituição, foi dito por I. que uma menina filha de um ato de abuso sexual, estava sendo levada para passear pelo seu pai, o abusador da mãe. Tendo conhecimento desta situação, por uma vizinha da mãe, que temia que o pior acontecesse, I. conta o seguinte: “[...] nós tínhamos aqui atendimento da Fundação Casa, que era a FEBEM, então nós cedíamos o espaço aqui para as psicólogas, as técnicas da Fundação Casa, para estar atendendo esses meninos que praticavam infrações, infrações leves como pesadas, eles tinham que passar pelas atendentes. E aí nós comentamos com elas a situação: olha, estamos com uma situação assim, assim e não sei como é que vamos fazer?” Há então, por parte das cuidadoras um maior interesse em estar sempre verificando denúncias ou possíveis suspeitas. I.: “A gente fica assim, principalmente nós que estamos com a criança o dia inteiro, quando chega a criança a gente vai olhar, enquanto ta brincando, nós no geral, os professores, vamos observando se tem machucado, se chegou com alguma conversa, a gente vai participar da conversa, a gente senta, brinca, pra ver os papos, pra ver se tira alguma coisa [...]”. Cabe colocar, portanto, que talvez o interesse possa se dar realmente por se tratarem de suspeitas, pois quando há a confirmação do ocorrido, o espanto e a dificuldade para lidar com ele, tornam-se presentes como foi relatado nas entrevistas anteriores, onde já havia a confirmação do ocorrido. A dificuldade para tomar realmente conhecimento da situação, é 40 relatada por I. que diz: “Até então a gente não soube, porque ninguém contou pra gente, a gente sabia alguma coisa que ela soltava, mas nunca forçamos a nada, nunca perguntamos, sempre de olho, pra ver as atitudes dela, algumas reações de curiosidade [...] e R. complementa: “[...] é muito delicado pra gente essa situação, saber alguma coisa também [...]”. Entretanto, como já foi dito, o que se mostrou mais digno nessa segunda conversa foi à relação da criança com a situação do abuso ou frente uma situação de risco de que esse pudesse ocorrer. Além da sua relação com a família. Durante a entrevista, nos relatos é mostrada a compreensão de uma família que está desorganizada, desestruturada, onde a situação de conflito é constante. I.: “ [...] aqui 80% das crianças os pais são separados, são mães solteiras, são mães sozinhas que realmente trabalham, pra poder sustentar seus filhos, e a falta de informação delas é porque são novas, colocaram filhos no mundo sem experiência, sem orientação de pai, nem mãe, então a primeira pessoa que elas acham, que você tem obrigação de ajudá-las, tem obrigação de ajudar ela a criar o filho dela, e falta experiência [...]”. A questão do abuso nessas famílias desestruturadas, também sofre a repressão do não falar, mas nesta instituição, podemos notar que os casos acabam emergindo nas relações das crianças que passam praticamente todo o dia juntas. I.: “ [...] então nessa situação aqui, ele dizia que o irmão mais velho praticava com o do meio, que ele não deixava porque ele não se sentia bem, doía, então o irmão mais velho dava carrinho, essas coisas pra ele brincar, mas não que o irmão não tivesse tentado com ele, já tinha feito com ele também”. Nesse caso são os cuidadores, aqueles que percebem que algo esta diferente e que acabam interferindo na situação. Ao se refletir sobre esses casos, a questão já mencionada em outras pesquisas que serviram de base teórica para esta, mostram que a família, muitas vezes conhecedora de que o abuso ocorre, estaria tolerando esta situação. Essa tolerância estaria de alguma forma, no medo de que a família se desestruture ainda mais. Com relação à condição sócio-econômica destas famílias, Costa, (apud Faleiros 1997 e Saffioti 1997b) enfatiza a relação direta entre a violência contra a criança e as condições de carências múltiplas que o contexto de pobreza estrutural oferece, mostrando que este contexto propicia a dinâmica do abuso sexual intrafamiliar, por sua luta pela sobrevivência, pela mudança de papéis, pelas rupturas familiares, pela migração e pelas relações familiares sujeitas a uma verdadeira economia de guerra. “As políticas de atendimento às vítimas de exploração sexual precisam 41 estar acompanhadas de políticas de combate à impunidade e recuperação social dos agressores, junto com as mudanças econômicas sociais e culturais” (Costa,2007, p. 02). Culturalmente a família brasileira vem sendo considerada como um espaço inviolável, inclusive para a intervenção da lei, contudo, sempre ocorreram, denúncias de abuso sexual de crianças e adolescentes no seio de famílias de baixa renda, o que não significa que esse tipo de violência não ocorra dentro das famílias de outras classes sociais. O abuso sexual consiste no mais difícil tipo de violência a ser identificado e admitido, pois a intervenção da lei esbarra no tabu do incesto, e a etiqueta sexual faz com que as pessoas afirmem: não quero me meter na vida dos outros, não sou especialista no assunto. R.: “Interessante, que ela contava como se fosse uma história, então ela começava a fantasiar, ela contava historias, aí a gente ficou: até onde é historia e ate onde alguém ta contando? Ou ta acontecendo com ela? Aí começou a dar um nó na nossa cabeça também [...]”. Assim o problema na identificação do abuso sexual, se torna maior ainda, pois os atos libidinosos podem, muitas vezes, não deixar vestígios. E se a criança não falar, ou se nesse falar lhe for negado a escuta atenta, o cuidado para que se perceba o sofrimento e o que realmente acontece, pode haver a ocorrência de casos parecidos com o caso que optamos por falar na análise anterior, onde a situação do abuso pode se prolongar por anos no seio familiar sem causar suspeita até ser revelada. É percebido nas falas que as famílias de baixa renda, são em sua maioria lideradas somente pela mãe que fora abandonada pelo marido, ou por garotas que engravidam muito novas e não tem muita experiência. Assim, as crianças nestes ambientes vivem numa situação de risco constante, onde a mãe movida especialmente pelas dificuldades econômicas tenta trazer novos parceiros para sua casa, que movidos pelas mesmas dificuldades abandonam o lar também. I.: “ [...] você percebe que elas precisam mais de ajuda do que as próprias crianças. São meninonas ainda, vinte e poucos anos, já tem crianças de cinco e seis anos, e aí são sozinhas, algumas que estão aqui a gente sabe que os pais colocaram na rua, então: vai se virar. E ela tem que cuidar da criança, trabalhar e se virar sozinha [...]”. O que fica é uma rotina, onde as maiores vítimas são as crianças e adolescentes, que vivenciam situações de risco a cada novo parceiro da mãe. Podendo em alguns casos, não ter nem local fixo para passar o dia, ficando quase sempre com pessoas diferentes, sem vínculos familiares, como conta R.: “ [...] aí ela fala que quem cuida dela final de semana são as tias, 42 mas assim, são amigas da mãe, que a mãe não esta presente, então leva pra casa de outra pessoa pra ficar, então cada final de semana, ela está na casa de um, ela não tem uma imagem de família”. Ou ainda passando a conviver dentro de um novo ambiente familiar, que atualmente vem se tornando comum, a união de casais homossexuais, R.: “ [...] ela largou do pai da menininha, pra morar com uma outra menina, a menina não tem mais do que quatorze anos, se veste como homem mesmo, percing pra tudo quanto é lugar, os cabelos delas são pintados, metade preto, metade cor de rosa, o da mãe da menina também. E assim ela fala: a minha mãe não dorme mais comigo, a minha mãe só quer dormir com a tia C.” . Outra situação também comum é aquela onde a denuncia até pode ocorrer, e o pai ou parceiro da mãe é preso, mas ao sair, este é recebido de volta ao lar, neste caso, isto pode ocorrer por conta da necessidade financeira mesmo. Ou se houver uma reflexão mais cuidadosa, pelo fato da marca exposta poder ser mascarada, há a demonstração de que a família já superou o problema e de que estão juntos, buscando a aceitação social. A família que não deu certo passa uma imagem de que está unida novamente, para evitar falar do ocorrido. R.: “ [...] você pode ver que a maioria, ta aí, “ai eu sou apaixonada pelo meu marido, então eu vou aceitar, essas condições”. Esse caso que eu tava falando pra vocês, o rapaz foi preso, ela ia visitar ele, lá tinha relações intimas com ele na delegacia. Ele saiu, ela recolheu pra dentro de casa de novo, aí: onde que ta essa mãe? No primeiro momento a filha é que paga, não ele é que paga!! Ela que paga porque ela era isso, era aquilo, não o marido dela, porque ela era apaixonada pelo marido. Então ela ia visitá-lo e lá ele a tratava bem, e quando tava dentro de casa, tratava mal, mas depois que ele foi preso, ela começou a receber um outro tratamento dele, porque ela levava comida, levava tudo que ele precisava, aí ele saiu e vai lá recolher ele pra dentro de casa de novo, sem medo que isso vai acontecer outra vez.” . Nos casos relatados, percebe-se que as crianças não trazem a questão do abuso em si, elas contam brincadeiras e situações que por serem vividas dentro do lar, são consideradas por elas como normais. R.: “ [...] essa semana estávamos falando de uma brincadeira que a criança, 4 ou 5 meninos e 1 menina, eles inventaram uma brincadeira, que é assim, que nem aqueles corredor que eles batem, mas não é assim, ficavam os meninos e as meninas passavam e conforme elas passavam, eles [faz gesto com a mão] enfiavam o dedo [...]chamamos os pais pra conversar e daí perguntando aos alunos quem é, ele mesmo falou: 43 não tia, eu faço porque meu irmão faz em mim, essa brincadeira faz em mim. O que acontece, dentro da casa onde ele mora, os tios são homossexuais [...]. Cabe aqui refletir então: onde está a normalidade disso tudo? O que é normal, afinal? Como ir contra essa família, que hoje esta estruturada de diversas maneiras. Não se quer aqui, fazer nenhuma conexão com o fato da homossexualidade e o abuso sexual, mas nos relatos que se mostraram, tornou-se claro que certos comportamentos e brincadeiras podem sim estar camuflando um abuso sexual que a criança pode estar sofrendo, sem ao menos entender como isso se dá. Como também pode revelar apenas jogos sexuais naturais do período. Neste sentido, duas questões podem, de certa forma, compreender toda a reflexão desta segunda parte da análise. A primeira ligada ao fato de que nessa instituição, e talvez na sociedade em geral, a política de tratamento que se tem referente ao abuso, é o da remediação, e não o de prevenção, como a própria entrevistada coloca. R.: “ Na verdade é uma coisa de você ir cuidar depois que aconteceu, não tem aquele trabalho de prevenir, então: teve um caso ali, vamos correr pra ver o que vai ser feito. Na verdade ate então passa tudo normalmente, aquela coisa: acontece lá na casa do meu vizinho, mas na minha casa nunca. E quando você vê o problema na sua mão, aí você vai se desesperar e vai correr atrás. Deveria haver toda uma prevenção e cuidado antes” . A segunda questão levanta a necessidade de uma mudança na educação das crianças pelos pais e familiares. É proposto pela entrevistada, a conversa, o falar sobre a sexualidade e sobre os limites do certo e errado. Isto poderia, ajudar a criança a se defender, não permitindo que o abuso acontecesse, ou que se ocorrido, fosse denunciado imediatamente. I.: “Esse tipo de conversa teria que existir mais nas escolas, na reunião de pais, então vai chamar uma psicóloga, pra ter uma palestra sobre isso com os pais, porque falando: puxa na minha casa ta acontecendo uma situação assim, vou ficar mais alerta [...]”. Torna-se significativo aqui pensar: que o falar sobre o abuso sexual, não precisa ser somente aquele que se dá na abertura para que a história vivida seja contada. Mas também pode ser um falar que torne a questão mais próxima, que leve a reflexão de que familiares e cuidadores necessitam estar preparados para cuidar ou evitar que este ato aconteça. 44 6. CONCLUSÕES E SUGESTÕES Foi analisado portanto, nas entrevistas, a relação do cuidador com a criança que foi abusada sexualmente e como nesta relação os sentidos podem se fazer ver se olhados com cuidado e atenção. A busca foi por evidenciar a fala do encontro no que pareceu mais digno, sem tentar fundar verdades ou mensurações sobre o tema. Dentro disto, pode-se observar que a violência sexual se apresentou de diferentes formas. E a criança que sofre o abuso sexual mostrou exercer uma influência muito forte na atuação dos cuidadores, pois em muitos relatos, ela é vista como desprotegida, indefesa, que necessita de um adulto para protegê-la. Sendo assim, o cuidador, traz para si muitas vezes, a tarefa de proteção e atenção à criança que foi abusada ou que está numa situação de risco. Se angustiando frente a possibilidade de não suprir essa expectativa de proteção, o que normalmente acontece. Os profissionais que lidam com crianças vítimas de abuso, até se mobilizam emocionalmente quando entram em contato com os relatos ou com maiores informações a respeito do ocorrido. No entanto, pela falta de preparo, essas emoções, que acabam gerando dificuldades e ansiedade na convivência com as crianças, são por fim “tapadas” pela opção da impessoalidade. Os cuidadores entrevistados nessa pesquisa estão pedindo ajuda, pois reconhecem não saber lidar com a questão, e isso, não por falta de saberes a mão, que estão espalhados em qualquer lugar que se queira achar, mas simplesmente pelo fato de não se falar sobre o assunto. O abuso sexual neste caso, é tratado por todos, como se trata a morte, onde só há uma reflexão sobre ela, e junto a isto a lembrança de que ela ocorre, quando alguém que se está próximo passa por esta experiência. Com base nestas questões e reflexões que foram iluminadas nos tratamento dos resultados apresentados, pode-se dizer que o sentido do abuso sexual sofrido pela criança, surge para ela na marca que esta carrega e que no acontecer do não-dito permanece com ela, sem encontrar um espaço em que possa aparecer. Apesar dessa pesquisa não se propor a investigar acerca do abusador, nos arriscamos a dizer que para o abusador, o sentido talvez seja a perpetuação do ato, que nutrido pelo silêncio e pela pouca eficácia das políticas de prevenção, continua ocorrendo, sem que se fale ou se tome medidas realmente eficazes. E no caso dos cuidadores, que se tornam responsáveis, de certa maneira, por essas crianças, o 45 sentido vivenciado acaba emergindo na angústia que num ciclo vicioso perpetua o não-dito, que causa mais angústia ao tratar todos os dias com um problema para o qual a sociedade e os meios organizados para tal, não foram capazes de prepará-los. Optou-se aqui, portanto, por olhar para aquilo de que não se quer falar, para aquilo que não é fácil de dizer, e pode ser que nesta primeira tentativa, tenha-se cometido erros ou enganos, pelo fato das próprias cuidadoras estarem também imersas nesta cotidianidade do impróprio. Porém, mesmo nesta condição, tentou-se clarear um pouco do que transborda nas vivências e experiências do humano. Assim, diante de um produzir frenético de conhecimentos e novas pesquisas, nos quais na maioria das vezes, só é dito o que é mais fácil de dizer, que tornam-se tão numerosas, que a busca por algo original faz com que muitos pesquisadores olhem para questões, que de tão inusitadas acabam gerando resultados como a pesquisa feita por britânicos, da área de medicina, que estudaram sobre os efeitos colaterais da prática de engolir espadas. Ou na área da Biologia, onde a Drª. Johanna van Bronswijk, da Universidade de Eindhoven, na Holanda, promoveu um censo de todos os fungos, insetos e bactérias que habitam nossas camas. Sendo que para estas se criou até um prêmio chamado Ignóbil, que em contrapartida ao Prêmio Nobel, vem de certa forma mostrar que a busca por conhecimentos e verdades, acaba esbarrando na produção e mais produção de idéias que parecem sérias, mas que tem como intuito levar aquele que produz, a ser reconhecido por “tamanha competência”. Esta pesquisa não foi portanto, realizada com o propósito de que seu final seja na estante, onde a roda continua rodando e as coisas continuam invisíveis. E muito menos com o intuito da produção de saberes que visam somente à conclusão de um curso, uma graduação ou a obtenção de um título. Ao contrário disto, a realização se deu pela busca talvez do mais simples e do que se mostrou parecer o mais difícil: iluminar a questão e poder falar um pouco sobre ela. Cabe sugerir então, que a busca pela aproximação entre os profissionais da saúde, as famílias, educadores e sociedade em geral, venha produzir o desenvolvimento de uma reflexão crítica sobre o assunto, podendo resultar em medidas protetivas que só seriam possíveis numa atuação conjunta. E assim no exercício da reflexão da vivência, abrindo possibilidades de observar as coisas como elas se manifestaram, trazer à consciência novos olhares, compreendendo que em todo processo se está em constante elo com o outro. 46 REFERÊNCIAS AMAZARRAY, Mayte Raya; KOLLER, Silvia Helena. Alguns aspectos no desenvolvimento de crianças vítimas de abuso sexual. Psicologia: Reflexão e Crítica. v. 11, n.3, p. 559-578, 1998. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010279721998000300014>. Acesso em: 20 Janeiro 2007. ANDI, Agência de Notícias dos Direitos da Infância. O Grito dos Inocentes: os meios de comunicação e a violência sexual contra crianças e adolescentes. 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