REVISTA REDAÇÃO PROFESSOR: Lucas Rocha FELIZ DIA DAS MÃES! : ) 18 DATA: 11/05/2014 O mundo nerd (FABÍOLA PEREZ) Eles deixaram de ser os esquisitos das salas de aula, conquistaram público fiel e anunciantes de peso. Saíram de trás dos computadores, têm séries de TV e até literatura própria. E o que parecia brincadeira se transformou em negócio milionário TUDO COMEÇOU com uma diversão. Em 2009, o estudante Bruno Aiub, 23 anos, conhecido como Monark, criou um canal no YouTube a fim de ensinar as melhores estratégias para jogar Minecraft – game que possibilita aos usuários construírem um mundo formado por blocos. Em novembro de 2010, o espaço batizado RandonsPlays atingiu 32 mil visualizações. Hoje, três anos depois, a audiência saltou para dez milhões de views mensais. E o que começou como um hobby se tornou um negócio lucrativo. ―Sempre que via algum jogo novo fazia comentários, sátiras ou piadas e o público começou a gostar‖, diz. Aiub faz parte de uma geração de nerds que ultrapassou as barreiras do preconceito no ambiente escolar e encontrou na tecnologia um aliado para ganhar o mundo. ―A sociedade precisa de profissionais com conhecimento tecnológico. São essas pessoas que movimentam a economia e fazem tantas outras estarem empregadas‖, afirma David Anderegg, psicólogo americano e autor do livro ―Nerds: Quem São e Por Que Precisamos Deles‖. Um dos protagonistas da revolução pela qual passa a cultura nerd atual é o ultra bem-sucedido Mark Zuckerberg, criador da rede social Facebook. Segundo um relatório da consultoria GMI Ratings, ele é o empresário mais bem pago dos Estados Unidos, com salário mensal superior a US$ 1 milhão. Além disso, o jovem de 29 anos é o símbolo do nerd que soube transformar sua inteligência em respeitáveis cifrões. MADE IN USA - Pierre Mantovani, criador do portal Omelete, vai trazer ao Brasil em dezembro a Comic Con Experience, versão brasileira da maior feira nerd dos Estados Unidos ————————————————————————————————————————————— 1 Inspirada na trajetória de outro exemplo bem-sucedido do universo geek, o fundador da Apple, Steve Jobs, a Rede Globo lançou, na segunda-feira 5, a novela Geração Brasil, que aborda o mundo da tecnologia. A trama gira em torno da história de sucesso do jovem Jonas Marra, interpretado por Murilo Benício, que desenvolve um computador pessoal de baixo custo. Na década de 1990, o personagem viaja aos Estados Unidos e, tempos depois, torna-se CEO de uma das maiores empresas de tecnologia e ídolo de milhares de jovens que se encantam com o mundo da informática. Quando decide voltar ao Brasil em 2014, ano de Copa do Mundo, o milionário atrai milhares de jovens que se identificam com a indústria nerd. Fora da ficção, a realidade não é muito diferente. Exemplo mais modesto, o brasileiro Leon Oliveira Martins, 30 anos, começou sua carreira nesse universo produzindo vídeos durante uma viagem pela Alemanha, em 2008. Quatro anos depois, havia criado o próprio canal no YouTube, ―Coisa de Nerd‖, voltado a comentários sobre jogos não convencionais. ―Na época, não tinha tantas informações sobre games em português, então misturava uma série de informações para divertir e informar quem buscava estratégias de jogo‖, afirma Martins. Hoje chamados de ―influenciadores‖, Monark e Leon têm um alto índice de audiência e contam com agências próprias para trazer mais anunciantes para seus canais. ―São jovens sem histórico na televisão, mas com um nível de interatividade com o público que gera convencimento e identificação‖, diz Gustavo Teles, sócio-diretor da agência Influencers. Uma pesquisa realizada pelo portal Omelete, direcionado a esse público, detectou que 32% dos nerds e geeks no Brasil possuem seu próprio canal no YouTube. ―Eles começaram a gerar audiência na internet e a ser remunerados pelo Google e por outros anunciantes‖, diz Teles. ―Jovens como esses estão alcançando um faturamento mensal que varia de R$ 10 mil a R$ 40 mil e anunciantes de peso nos setores de tecnologia, eletrônica e telefonia.‖ A produção de conteúdo e os apresentadores nerds fizeram a agência Influencers triplicar sua projeção de faturamento neste ano, para R$ 1,5 milhão. ―Escolhemos ter essa abordagem nerd porque eram os canais na internet com mais regularidade e onde os apresentadores tinham mais compromisso com seu público‖, diz. O estudo revelou ainda que 90% dos nerds e geeks costumam ficar online mais tempo que a maioria dos brasileiros. A média do País, segundo o Ibope Mídia, é de 60 horas por mês, enquanto eles costumam gastar 84 horas. Se hoje o passatempo preferido desse público é jogar videogame, o que mais cresce, porém, é o hábito de consumir filmes e séries pela internet. ————————————————————————————————————————————— 2 ————————————————————————————————————————————— 3 ————————————————————————————————————————————— 4 ————————————————————————————————————————————— 5 Ser nerd, no entanto, nem sempre foi algo aceito e bem-visto. Muito pelo contrário. Essa turma teve de enfrentar barreiras ao longo de décadas em colégios e universidades até conseguir mostrar que, com sua inteligência – e, por que não, simpatia peculiar –, poderia ser popular e útil à sociedade. ―Quando eu estava no colégio, nosso grupo era formado por pessoas excluídas. Hoje as crianças optam por ser nerds‖, afirma Benjamin Nugent, autor do livro ―Nerd Americano: A História do Meu Povo‖. Segundo o autor, nerd virou uma identidade subcultural, assim como hippies, punks e skatistas. Os primeiros eram estudiosos que gostavam de temas relacionados a cultura, ciência e tecnologia. Pouco populares, eram arredios aos esportes. ―Hoje, a questão cultural se associou à indústria do entretenimento, que passou a produzir cada vez mais coisas destinadas a eles‖, diz a professora de educação e tecnologia do Instituto Federal de Pelotas (RS) Angela Dillmann Nunes Bicca, que coordena o projeto de pesquisa ―Aprendendo a Ser Jovem Nerd/Geek: Um Estudo Sobre a Pedagogia Cultural da Internet‖. ―É um dos mercados que mais crescem no mundo‖, diz ela.No Brasil, o crescimento no número de sites para esse público ocorreu mais intensamente nos últimos dez anos. Outro projeto nerd que se profissionalizou exatamente nesse período é o site Jovem Nerd. A ideia nasceu em 2002 como um blog de humor. Na época, os sócios-fundadores, Alexandre Ottoni e Deive Pazos, trabalhavam como designer e administrador, respectivamente, e dedicavam apenas algumas horas ao projeto. A grande estreia veio, porém, em 2006, quando a dupla conhecida como Jovem Nerd e Azaghal passou a comandar o Nerdcast – podcast que trata de temas que vão de eventos históricos a filmes de super-heróis e histórias em quadrinhos. ―Foi um ponto de virada, passamos a acreditar que o Jovem Nerd poderia se transformar em um negócio de fato‖, diz Ottoni. Hoje, o programa é um dos mais populares da internet, com uma audiência de 300 mil ouvintes por semana e prêmios nacionais e internacionais, como o de ―Melhor Podcast do Mundo‖. Na esteira do sucesso, outras ideias começaram a surgir. Depois de negociações com fornecedores e parceiros, nascia a Nerdstore, loja virtual de camisetas. Assim, em pouco tempo, esse público altamente segmentado começou a chamar a atenção das agências de publicidade digital, que viram no projeto uma oportunidade de se relacionar com esses consumidores fiéis. ―Os anunciantes enxergaram em nossos veículos a possibilidade de fazer publicidade com mais proximidade‖, afirma Guga Mafra, diretor da FTPI Digital, empresa parceira do Jovem Nerd. ―Uma característica interessante do nerd é que ele influencia seus amigos e familiares‖, diz. ―Geralmente, é ele o especialista da família em games, tecnologia, viagens e é a pessoa disposta a conhecer e testar um novo produto.‖ A percepção de que o mercado nerd vem se consolidando no País ganhou força também pela facilidade de acesso ao conteúdo de internet nos últimos anos. ―A rede igualou todo mundo‖, diz Mafra. ―Hoje é possível obter um produto em segundos pela web, tudo ficou muito mais fácil‖, diz o empresário. Esse é um dos aspectos apontados pela pesquisa do portal Omelete. No levantamento, a conectividade desse público aparece diretamente relacionada aos seus hábitos. No ano passado, 57% dos entrevistados revelaram fazer compras pela internet frequentemente, 24% o fazem algumas vezes por ano e apenas 10% utilizam o e-commerce raramente. Na onda do crescimento desse mercado, o portal anunciou um aumento de 50% em seu faturamento e 31 novos contratos para este ano – um deles com uma montadora de veículos francesa que tem fábrica no Brasil. ————————————————————————————————————————————— 6 ————————————————————————————————————————————— 7 Inspirado no potencial do mercado americano, o diretor Pierre Mantovani, do Portal Omelete, tem planos de trazer ao Brasil em dezembro a Comic Con Experience. A feira será uma adaptação dos eventos que ocorrem em Nova York e San Diego, que reúnem criadores e admiradores de quadrinhos, cinema, televisão, literatura e afins. ―Estamos adaptando tudo o que há de mais legal da realidade dos americanos para a nossa‖, afirma Mantovani. A versão brasileira contará com uma área específica para quadrinistas do País divulgarem seu trabalho. Para ele, há uma enorme demanda de pessoas interessadas em temas geeks, mas pouca coisa boa está sendo feita em território nacional. Além disso, houve uma mudança de comportamento que fez com que os nerds conquistassem o próprio espaço. ―Se minha mãe me visse com uma camiseta do Batman, me perguntaria se eu não cresci. Mas, atualmente, esses gostos passaram a ficar no DNA de algumas pessoas.‖ As empresas brasileiras, segundo Mantovani, não estavam preparadas para lidar com a liberdade de expressão que existe hoje. ―A internet possibilitou que muitos jovens com boas ideias se autossustentassem‖, diz. Pessoas com um perfil criativo começaram a levar a cultura e os hábitos nerds para todo o mundo. Prova disso é que algumas empresas brasileiras começaram a enxergar esse potencial. Em abril de 2012, a Livraria Cultura anunciou o lançamento do Projeto Geek, um espaço destinado aos entusiastas de quadrinhos, filmes, séries, objetos colecionáveis e games. ―O ponto de partida foi o crescimento do mercado de games no Brasil, a partir daí tivemos a ideia de desenhar outros produtos e serviços para essas pessoas‖, afirma o idealizador Igor Oliveira. Até então, as boas iniciativas estavam nas mãos de pequenos empresários, dentro de nichos que compunham esse universo. Com um investimento inicial de R$ 1 milhão, a Livraria Cultura criou cinco espaços geeks dentro de lojas que já existiam e abriu dois estabelecimentos independentes em São Paulo e no Recife. ―Vimos a oportunidade de unir a modernidade do mundo dos games com o caráter retrô dos quadrinhos‖, diz ele. Nos Estados Unidos, meca dos nerds, tanto grandes lojas varejistas quanto estabelecimentos menores e tradicionais abastecem esse mercado. Para Oliveira, a tendência é que as grandes livrarias acompanhem cada vez mais a segmentação também no mercado editorial. ―Trouxemos de volta um hábito que já estava esquecido, de encontrar um lugar, ler e trocar ideias aos sábados de manhã e depois do expediente.‖ Outra mudança é que as grandes editoras começaram a investir na chamada literatura fantástica, a preferida da turma. O escritor Eduardo Spohr, 39 anos, foi um dos primeiros a se aventurar nesse estilo no Brasil. Com dificuldades para emplacar sua obra ―A Batalha do Apocalipse‖ nas grandes editoras, Spohr fez uma parceria com os fundadores do programa ―Jovem Nerd‖ para lançar o livro no site. As quatro mil cópias se esgotaram em dois meses. ―Somente depois do programa e da parceria grandes editoras se interessaram pelo livro‖, diz. Atualmente, o escritor possui quatro obras, sendo uma delas o livro ―Protocolo Bluehand: Alienígenas‖, lançadoem 2011 pela editora Nerdbook, de Alexandre Ottoni e Deive Pazos. ―Nesse processo percebi que os leitores ficavam cada vez mais exigentes e queriam conversar diretamente comigo para saber o que estava por vir‖, diz Sphor, que planeja lançar o próximo livro em 2015. ―O nerd detém muito conhecimento sobre quase tudo, tem a mente mais lúdica e está sempre querendo aprender‖, diz. Essa sede de aprendizado coloca hoje esse grupo, que tem muito para ensinar, em uma posição de prestígio na sociedade. São pessoas que, como dizem os filmes de ficção que elas tanto cultuam, voltaram para se vingar e ganhar o mundo. ————————————————————————————————————————————— 8 FABÍOLA PEREZ é Jornalista e escreve periodicamente para esta publicação. Revista ISTO É, Maio de 2014. Fotos: Kelsen Fernandes/Ag. Istoé, Guilherme Pupo; Eduardo Zappia; Masao Goto Filho/Ag. Isto é. 'True philosopher' (LUIZ FELIPE PONDÉ) "HÁ UMA LUTA entre a luz e as trevas", diz o detetive Rust Cohle (Matthew McConaughey) na série "True Detective", na última cena do último episódio da primeira temporada. Já disse e repito que as séries americanas são hoje, de longe, o maior experimento dramatúrgico nos EUA, porque o cinema americano quase não existe, derretido pelo medo do politicamente correto, esta praga que em breve terá destruído toda a criatividade ocidental, à semelhança da arte soviética. Qualquer artista que submeta sua arte ao projeto "para um mundo melhor" é um artista ruim. A ideia de que há uma luta deste tipo é comum à filosofia, teologia e literatura. Dostoiévski diz algo semelhante nos "Irmãos Karamazov": "Há uma luta entre Deus e o Diabo e o placo é o coração humano". Nos "Manuscritos do Mar Morto", textos judaicos datados do período em torno do nascimento da era cristã, encontrados em cavernas do mar Morto nos anos 40, afirma-se a mesma luta entre os filhos da luz e os filhos das trevas. Nathan de Gaza, século 17, "profeta" do falso ————————————————————————————————————————————— 9 Messias Sabatai Tzvi, dizia que o mundo, assim como a alma de Tzvi, um melancólico, era dilacerado por forças antagônicas de luz e trevas. Vejo nisso uma poética da agonia como habitat da alma humana. Rust Cohle é um detetive filósofo típico da tradição que vai de Sam Spade (interpretado por Humphrey Bogart) a Philip Marlowe (interpretado por Elliott Gould e Robert Mitchum). Niilistas, todos eles trazem a marca de uma visão pessimista sobre a humanidade. Cohle, no primeiro episódio, afirma que é pessimista (e define essa condição como sendo "ruim em festas"). E afirma sua "cosmologia": a consciência humana é um erro da evolução. Segundo nosso "true philosopher", todos pensamos que somos "eus", mas somos apenas seres que arrastam essa ilusão em meio a uma programação genética que nos obriga a sobreviver. Um diálogo entre o niilismo nietzschiano e o determinismo darwinista de Richard Dawkins não seria muito diferente. De onde vem esse pessimismo que dá a esses detetives um tom maior do que meros personagens à procura de criminosos? No caso especifico de Cohle, esse pessimismo vem de uma família de origem destroçada, de uma filha morta muito jovem, de um casamento destruído devido a esta morte, de muita bebida e muita droga, de quatro anos infiltrado no narcotráfico e de uma longa investigação entre satanistas, pedófilos "cristãos" e serial killers de mulheres (esta investigação é o conteúdo dramatúrgico dos oito capítulos da primeira temporada). Entretanto, sua grandeza não é redutível às suas "pequenas causas" psicológicas. Se assim o fosse, ele seria apenas um deprimido. Sua grandeza como personagem se dá devido ao modo como ele constrói, a partir de sua miséria pessoal, um julgamento preciso da humanidade. Julgamento este que impacta por sua possível consistência. Há uma questão maior aqui, e que une os grandes detetives nesta concepção niilista de mundo: a experiência com a (sua própria) natureza humana. Sim, natureza humana, este conceito que muitos "especialistas" teimam em dizer que não existe. Não vou entrar nesta discussão sem fim, prefiro usar a ideia de natureza humana como "licença poética". Há muito que não me importo com debates "especializados". Sabe-se bem, mesmo entre policiais na vida real, que a proximidade com a miséria humana mais pura pode levar alguém à descrença na natureza dos homens. Ainda que, como bem mostram esses três personagens, isso não impede virtudes como coragem, generosidade, sinceridade, doçura. Muito pelo contrário, muitas vezes é justamente a dureza do desencanto com a natureza humana e o sofrimento psicológico que ela traz no cotidiano (como no caso de Cohle) que possibilita tais virtudes. A virtude é silenciosa e cresce sempre num terreno que lhe é hostil. Máxima ignorada por todos que, principalmente em épocas do novo puritanismo político que assola o mundo da cultura, cantam seu amor e sua misericórdia pelo mundo e pelos que sofrem. O amor ao mundo deve ser escondido como uma pérola. LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). [email protected]. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2014. Estádios, artimanhas e conluios (WALTER CENEVIVA) INICIALMENTE denominado "Obras Públicas", livro de Jorge Leitão teve seu nome aumentado por um subtítulo na terceira edição: "Artimanhas & Conluios", quando se entrava na preparação para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Com dois vocábulos acrescidos e o volume trazendo uma foto colorida do estádio do Maracanã na capa, não deixa dúvida quanto à sua mensagem. Basta pensar que a palavra "artimanha" tem mais de 120 sinônimos na língua portuguesa, desde ardil até velhacaria. "Conluio" tanto é combinação destinada a enganar terceiros, enquanto trama para tirar vantagem ilícita de alguém. Enfim, nada que o comportamento honesto prestigie. A finalidade do livro está no caracterizar com severidade científica, em face da lei, a conduta lícita ou ilícita de pessoas. Define a mostra de alternativas corretas para a construção de quaisquer obras contratadas pela administração pública que esta tenha o dever de implementar. Pelo direito, dentro da lei. A ilegalidade surge quando a obra provoca resultado contrário ao interesse geral, por efeito da licitação entre os concorrentes ou pelos fatos posteriores, resultantes do mau cumprimento do contrato, em termos econômicos, de engenharia ou de outra natureza. Pode surgir em cada uma das etapas de desenvolvimento. É assim até sua quitação pelo poder público. Indo por partes: no momento inicial da licitação, os interessados manifestam por escrito seu interesse em participar. Cumprem, para esse efeito, os termos do edital, nos imperativos prazos estipulados. Têm cuidado com a concorrência ao calcular seus gastos, investimentos, custos diretos e indiretos e tudo o mais, além da taxa BDI (Benefícios e Despesas Indiretas). A avaliação compreende os encargos envolvidos, até os tributos. Envolve muitos temas técnicos para todos os concorrentes, mesmo que entre alguns deles (ou todos) haja acordos à parte (revelados ou ocultos) para a divisão final. Na gíria forense, é a "rachatio", em falso latim (pronuncia-se rachácio), divisão dos resultados finais confessada ou não. Para dar uma ideia ao leitor dos cuidados do legislador, há uma lei (nº 12.529/2011) que relaciona 19 situações que caracterizam infração da ordem econômica do concorrente. No outro lado do jogo, são comuns os aditamentos, no chamado reajuste, revisão ou repactuação do preço, quando o vencedor pede maior suprimento para custo acrescido. Nas grandes obras, é comum o chamado cartel, no qual cartelistas combinam variações de suas propostas, afastando ou prejudicando ————————————————————————————————————————————— 10 outros participantes. Técnica própria do vencedor consiste em demorar a entrega da obra, até perto da data limite, gerando perigos políticos e econômicos da não entrega para obterem acréscimos do preço ajustado. Como o leitor percebeu, hoje são avaliados quais são ou foram os fatos relevantes detectados nos vários estádios construídos ou reformados pelo Brasil afora nos últimos anos. Mesmo assim, o livro de Antônio Jorge Leitão é bom de ler, pela clareza do estudo. Tem uma análise severa técnica muito interessante que permite, mesmo ao leitor não afeito à linguagem jurídica, a avaliação pessoal sobre os fatos da vida recente em nosso país. WALTER CENEVIVA, 86, é advogado. Foi professor de direito civil da Pontifícia Universidade Católica de SP. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2014. Ensino superior e sociedade (ROSELY SAYÃO) O MUNDO poderia ser melhor e mais tranquilo, e a vida mais compreensível, se as universidades, em vez de olharem para o mercado de trabalho para identificar suas demandas, olhassem para a sociedade para identificar o que ela mais precisa. Creio que, assim, o mundo poderia avançar. Hoje, a formação acadêmica segue a seguinte lógica: as faculdades oferecem cursos tradicionais, nossos velhos conhecidos, que pouco têm mudado para permitir que os novos profissionais entendam melhor o mundo atual e possam nele intervir de modo inovador. Quando cursos são criados, isso acontece em função exclusivamente da economia, ou seja, da abertura de novas chances no mercado e das possibilidades de profissões rentáveis em nosso contexto. A economia tem funcionado como um eixo importante para as faculdades e também para os jovens que as procuram. Melhor dizendo, para o mundo. Mas e nossa vida em sociedade, tão plena de agruras, dissabores e incompreensões, não mereceria o mesmo olhar atencioso? Afinal, sem uma vida boa e digna em sociedade, de pouco adianta a economia ir muito bem. Já temos sentido isso na pele. E quais cursos de que estamos precisando muito poderíamos oferecer na atualidade? Que tal podermos contar, por exemplo, com um curso de diplomacia familiar? O relacionamento familiar tem demandado especialistas em diplomacia, porque os conflitos já não são os mesmos de antes, tampouco as famílias. Noras e filhas, para citar um exemplo, têm estranhado suas mães e sogras em relação aos cuidados com os seus filhos. Acredita, caro leitor, que há mães que deixam seus filhos pequenos com sua própria mãe ou sogra e monitoram por câmera o que acontece? E que há jovens mães que ficam escandalizadas quando a sogra ou a mãe as aconselham, tomam determinadas atitudes com o neto, criticam a maneira como o neto tem sido criado? E os pais, já velhos, que não aceitam sair do palco e ceder a vez para que seus filhos brilhem? E os filhos às voltas com um fim de vida difícil de seus pais? E o relacionamento entre irmãos, competitivo e/ou possessivo mais do que enciumado? Essas questões e outras criam incidentes diplomáticos dos mais complexos para o grupo familiar. Precisamos ou não de especialistas em relações diplomáticas familiares? Poderíamos ter, também, profissionais formados para colaborar com a formação dos nossos jovens que, tão plurais e diferentes entre si, precisam de ajuda. Eles precisam aprender a criar resiliência na vida pessoal e na profissional e a encontrar seu foco na vida. Precisam também perceber que, para se comunicar, é preciso reconhecer que hoje há múltiplos ambientes e que cada um deles exige um tipo específico de comunicação. Precisam de ajuda também para entender que a complexidade das escolhas reside nas renúncias, o que é difícil aceitar num mundo que insiste em dizer que não devemos renunciar a nada. Além disso, eles precisam entender que, queiram ou não, sempre fazem política, e que ser ético e justo é uma escolha. Essas questões nos mostram que precisamos de um curso de assistente de jovens, ou coisa semelhante. É claro que diferentes profissionais podem realizar essas funções, mas o ideal seria não termos de recorrer a um batalhão de profissionais para conseguirmos ajuda em questões que pertencem ao mesmo campo. Que venham, portanto, as universidades com novos cursos! ROSELY SAYÃO é psicóloga e consultora em educação, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2014. Dois séculos de argumentos (FREDERICO GARCIA) VAMOS legalizar o ópio. É uma droga natural, extraída da papoula, flor do Afeganistão. Anestésico potente, é bom para dores do câncer, unhas encravadas, pernas quebradas e outras mais. Tem poder relaxante, cura o "mal-estar" da civilização. Antes liberado em vários países, o ópio acabou banido devido a seus efeitos nefastos. Após sua introdução ilegal por comerciantes ingleses em 1839, a China proibiu o comércio da droga que ameaçava a estabilidade social e financeira do país, bem como a saúde da população. A medida resultou em guerra declarada pela Inglaterra. O discurso atual sobre a maconha é semelhante ao que se empregava em defesa da legalização do ópio. Diz-se que a erva não causa dependência, tem efeitos terapêuticos e sua liberação traria consequências sociais positivas, como reduzir o encarceramento de jovens ————————————————————————————————————————————— 11 das classes menos favorecidas. Idealiza-se que o óleo de maconha está na mira da indústria automobilística como fonte de combustível barato. Ou seja, é uma panaceia: cura tudo, resolve mazelas sociais e ainda melhora a economia do país. Será mesmo? A "legalização" beneficiaria a quem? Quais as consequências para os usuários? Conseguiríamos controlar seu uso por crianças e adolescentes, ou esse dado também seria irrelevante, já que maconha não faz mal? A dependência de qualquer droga decorre de múltiplos fatores biopsicossociais. Até o momento, não temos teste para identificar quem se tornará dependente ou não. O que sabemos é que 30% dos usuários de maconha desenvolvem o vício e que alguns genes aumentam em até sete vezes o risco de dependência. O princípio ativo da maconha, o THC, fica armazenado no tecido gorduroso por até 28 dias e age no cérebro durante todo esse tempo. O efeito prolongado pode ter implicações graves, por exemplo, na condução de veículos. Quanto mais THC no sangue, maior o tempo de resposta do cérebro. Esse argumento fez a Inglaterra adotar uma política de tolerância zero à presença de THC no sangue de motoristas. Mais alarmante é o potencial para desencadear doenças graves. Quadros psicóticos agudos, com delírios e alucinações, são consequências comuns da intoxicação por drogas como a maconha. O que poucos sabem é que a maconha hoje comercializada é geneticamente modificada para ter alta concentração de THC, o que acelera a dependência e potencializa as alucinações. Mais grave ainda é o risco do desencadeamento de esquizofrenia em adolescentes com predisposição a essa gravíssima doença mental crônica e incapacitante. Segundo estudo norueguês, 13% dos casos de esquizofrenia seriam evitáveis se o uso regular de maconha não ocorresse. As consequências sociais são palpáveis. Um estudo neozelandês demonstrou que, quanto mais cigarros de maconha uma pessoa fuma, menores são suas chances de completar o segundo grau, ingressar na faculdade ou estar empregada aos 20 anos, diminuindo sua renda e sua satisfação com a vida. A maconha reduz a capacidade cognitiva: prejudica a atenção, a memória e o raciocínio e dificulta o planejamento. Dados mostram que pessoas que fizeram uso habitual de maconha dos 15 aos 30 anos apresentam, em média, cinco pontos a menos de Q.I. em comparação aos que apenas a experimentaram. Procura-se confundir uso recreativo com uso de substâncias extraídas da maconha que, purificadas e aplicadas em doses conhecidas, podem ter efeito medicamentoso, desde que sob prescrição médica e manejo clínico, como acontece com qualquer outro medicamento. É estranho que a discussão do "uso recreativo" da maconha seja prioritária. No Brasil, há 12 milhões de dependentes de álcool e estamos nos tornando os maiores consumidores de cocaína do planeta. Será que outro entorpecente deve ter seu uso banalizado ou passa da hora de o Brasil encarar com ponderação a herança que o abuso de drogas, lícitas e ilícitas, deixará? Que a China do século 19 nos sirva de exemplo. Que a incapacidade de planejamento gerada pelo uso da maconha não afete a política brasileira, como parece ter acontecido no Uruguai. FREDERICO GARCIA, 35, é professor-coordenador do Centro de Referência em Drogas da Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Associação Mineira de Psiquiatria. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2014. Meus sete meses no obscuro mundo das contas de hospital (CRISTIANE SEGATTO) Como pagar uma dívida de R$ 5 milhões? O drama e a solidão das famílias falidas pela medicina privada DESAFIOS profissionais intensos invadem a vida pessoal e deixam rastros pela casa: três sacolas de material de pesquisa e bloquinhos de anotações no escritório, livros e revistas na sala, embalagens de remédios e produtos de uso hospitalar sobre o armário da cozinha – o único lugar que restou. Nos últimos sete meses, segui os passos de famílias arrasadas por um duplo infortúnio: uma doença grave e a morte financeira provocada pelas contas de hospital. Todas tinham plano de saúde, mas não puderam contar com eles na hora em que precisaram de um tratamento de alto custo. Caíram, sem paraquedas, no obscuro mundo dos custos exorbitantes da medicina privada. Caí junto com elas. Cubro saúde há 19 anos. O tempo e a experiência não foram suficientes para me ensinar tudo o que aprendi durante a produção dessa reportagem. Várias informações sobre os bastidores desse mercado doente me surpreenderam. Espero que vocês também se surpreendam. Foram dezenas de entrevistas com famílias, médicos e especialistas em gestão hospitalar e economia da saúde. O esforço e o investimento de ÉPOCA são uma tentativa de lançar luzes sobre as distorções que prejudicam as famílias e elevam os custos de saúde no país. O resultado completo dessa investigação está reunido em 20 páginas da edição impressa desta semana. Os convênios vendem uma segurança que nem sempre entregam. Diante das falhas do sistema público de saúde, ter um plano privado tornou-se uma das maiores aspirações da população. Nos últimos cinco anos, 10 milhões de cidadãos conquistaram a sonhada carteirinha. São hoje 49 milhões de almas (25% da população) a acalentar a ilusão de escapar das filas e da limitação de recursos do SUS, graças ao plano de saúde privado. Em muitos casos, como os das famílias entrevistadas, essa ilusão não resiste ao teste da primeira doença grave. Quando o convênio se recusa a cobrir algum procedimento e o doente passa a ser considerado pelo hospital como um paciente particular, a família fica à mercê de um sistema de preços confuso, criado num ambiente de transparência zero. Durante ou depois da internação, o paciente ou seu responsável legal se veem atolados em cobranças. São contas impagáveis. De onde uma família de classe média pode tirar dinheiro para pagar contas hospitalares de R$ 400 mil, R$ 1 ————————————————————————————————————————————— 12 milhão, R$ 5 milhões? Processadas pelos hospitais por inadimplência, elas perdem os bens ou sofrem as consequências de ser devedor no Brasil. Quando se discute o aumento dos custos de saúde num país, dois responsáveis costumam ser apontados: a tecnologia (recursos sofisticados custam caro) e o envelhecimento (viver mais requer mais cuidados e custa mais). Tudo isso é verdade, mas há uma terceira causa de aumento de custos sobre o qual pouco se fala: a indefinição do valor dos serviços de saúde. A ele me dediquei nessa reportagem. Qual é o valor adequado de um par de luvas ou de uma seringa descartável? Por que um frasco de soro fisiológico custa num hospital o dobro do preço cobrado na farmácia da esquina? Há várias razões – quase todas passíveis de indignação. De acordo com as regras atuais do mercado privado de saúde, a função dos hospitais é distorcida. Eles visam à doença – não à saúde. Quanto maior o uso de insumos banais como esparadrapo e seringa, mais o hospital ganha. Ele não é remunerado pelos planos de saúde pela qualidade técnica, pela segurança e por aquele que deveria ser o grande valor de uma instituição de saúde: diagnosticar, tratar e curar. Elas são remuneradas pelos produtos que usam. Os materiais são hoje a principal fonte de receita dos hospitais privados. Respondem por 47,9% do total das receitas. Planos de saúde e hospitais vivem às turras por causa desse sistema de remuneração. Enquanto essa é uma briga entre iguais (hospitais de um lado, planos de saúde de outro), os consumidores têm pouca consciência sobre os danos que ela acarreta à sociedade. Quando o jogo de forças se torna desigual (hospital de um lado, paciente de outro), as famílias ficam exauridas financeira e emocionalmente. Recebem contas astronômicas e não encontram parâmetros para saber se estão pagando valores justos. Nem por materiais, nem por procedimentos. Isso precisar acabar. Nos Estados Unidos, o governo criou dois sites para ajudar os cidadãos a comparar a qualidade e os preços cobrados pelas instituições de saúde. Nas páginaswww.medicare.com e www.cms.gov, é possível acessar indicadores de qualidade de 3,3 mil hospitais e comparar preços de 130 procedimentos. No Brasil, não há nada parecido. O discurso da transparência é mais eloquente que a prática. Esse trabalho me deu a clara noção de que qualquer cliente de plano de saúde pode, um dia, se ver na situação dramática dessas famílias. Para reduzir o risco, o advogado Julius Conforti, especializado em direito da saúde, preparou uma relação de cuidados que o consumidor deve ter ao escolher um plano de saúde: · Busque informações sobre a qualidade dos serviços Antes de contratar um convênio, pesquise a situação dele no site www.ans.gov.br, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Cada operadora oferece diferentes planos. Verifique se a empresa ou o plano desejado estão na lista dos produtos com maiores índices de reclamações. · Analise as vantagens e desvantagens existentes entre plano individual/familiar e plano coletivo por adesão Os planos coletivos por adesão, que são aqueles contratados por intermédio de pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial, como conselhos, sindicatos e associações profissionais, tendem a ter valores de mensalidades menores no início da contratação. Porém, como a ANS não determina o teto máximo dos reajustes anuais desse tipo de contrato, ao longo dos anos, eles passam a ter valores superiores aos dos contratos individuais/familiares. Além disso, os contratos coletivos podem ser rescindidos unilateralmente. O ideal é contratar um plano individual/familiar porque os reajustes anuais dessa modalidade são regulados pela ANS e somente podem ser cancelados se o cliente se tornar inadimplente. O problema, atualmente, é que poucas empresas de assistência médica privada vendem esse tipo de plano. · Escolha um tipo de plano adequado às suas necessidades Os planos de saúde podem ter apenas cobertura ambulatorial, apenas cobertura hospitalar ou abranger esses dois tipos. O ideal é que o plano tenha duas coberturas. O consumidor deve escolher, também, o tipo de acomodação, que pode ser em quarto particular ou enfermaria. A escolha pelo quarto individual, em geral, garante o acesso a um número maior de hospitais credenciados. As mulheres que tenham a intenção de engravidar devem contratar um plano que possua também cobertura para obstetrícia. · Área de abrangência do plano Pensar na área de abrangência do plano de saúde é outro fator importante. Há planos de coberturas municipal, estadual e nacional, entre outras possibilidades. Informe-se com antecedência sobre a rede credenciada de hospitais, clínicas, laboratórios e profissionais de saúde que atenderão. O plano que garante atendimento nacional, embora custe mais, permite o acesso a um número maior de prestadores de serviços. · Rede Credenciada Independentemente da abrangência geográfica do plano escolhido, é importante, antes da contratação, verificar se o produto ao qual se pretende aderir possui os hospitais, laboratórios e profissionais que são do interesse do consumidor. ————————————————————————————————————————————— 13 Guardar eventuais panfletos publicitários que mencionem os prestadores de serviços que estarão disponíveis também é bastante útil, caso existam descredenciamentos irregulares na vigência da relação contratual. · Preenchimento da Declaração de Saúde No momento da contratação, a operadora solicitará o preenchimento de uma declaração de saúde, formulário no qual o consumidor deve informar as doenças ou lesões de que saiba ser portador naquele momento. Caso uma doença preexistente não seja declarada, o plano de saúde poderá solicitar à ANS um julgamento para verificar se houve fraude (não declaração de doença/lesão conhecida na hora da contratação). Nesses casos, o contrato pode ser cancelado. · Fique atento aos prazos de carência Os períodos máximos de carência são: 24 horas para urgência e emergência; 180 dias para internações, cirurgias e procedimentos de alta complexidade e 300 dias para parto. A operadora pode exigir prazos menores, mas isso deve ser garantido por escrito. · Promessas feitas pelas empresas e corretores É preciso, ainda, ficar atento a promessas feitas pelas operadoras de saúde e pelos corretores que agem como intermediários na venda do plano. Para não ser enganado, é importante solicitar que todos os benefícios prometidos constem do contrato e sejam previstos, por meio de aditivos contratuais. Por causa dessa reportagem, fiquei ausente desta coluna durante algumas semanas. Peço desculpas. Espero que tenha sido por uma boa causa. Se você respira, suspeito que esse assunto lhe interessa. CRISTIANE SEGATTO é Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 17 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo. Revista ÉPOCA, MaIO de 2014. O mal-estar em torno de nós (LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA) ESTOU há duas semanas fora do Brasil e, valendo-me desse pequeno distanciamento, eu me pergunto: qual é a natureza do mal-estar atual? Não estamos atravessando um período que possa ser chamado de crise. Não há nada ameaçante à nossa frente. Mas pesquisas vêm demonstrando que o nível de satisfação das pessoas vem baixando, que estão quase todos pessimistas. Qual o foco desse mal-estar? A economia? Serão as taxas baixas de crescimento que incomodam a todos? É possível. A política? Talvez, tantas são as denúncias e as críticas aos políticos no governo federal e nos demais governos, independentemente dos partidos a que se filiem. Mas os políticos não mudaram nos últimos anos; não se tornaram nem melhores nem piores do que eram e, portanto, creio que o aumento da insatisfação com os políticos é mais um sintoma do que uma causa do problema. Para a direita liberal, o problema está nos quase 12 anos de governo do Partido dos Trabalhadores. Antes disso, nunca o Brasil fora governado por um partido de esquerda. Mas os governos anteriores não foram melhores. Creio que o problema é mais profundo e está relacionado com o esgotamento do Ciclo Democracia e Justiça Social, que desde a transição democrática substituiu o Ciclo Nação e Desenvolvimento, que comandou a revolução nacional e industrial brasileira entre 1930 e o fim dos anos 1970. Denomino assim os ciclos da relação sociedade-Estado que vêm presidindo o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social brasileiros. No primeiro ciclo --o ciclo do nacional-desenvolvimentismo de Vargas e dos militares--, a prioridade coube ao crescimento econômico. O Brasil cresceu a taxas extraordinárias e completou sua revolução capitalista, mas a desigualdade cresceu. A alternativa ao nacional-desenvolvimentismo era o liberalismo dependente e moralista que esteve fora do poder durante o período 1930-1980, exceto momentos pontuais, não obstante todos os golpes e tentativas de golpe de Estado em que se envolveu. A transição democrática (1977-1987) não foi comandada pelos liberais, mas pelos desenvolvimentistas na oposição, agora desenvolvimentistas sociais, como atesta a Constituição de 1988. Durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o liberalismo dependente teve mais força, mas não chegou a ser dominante. Houve um substancial aumento do gasto social, e o governo resistiu à pressão americana para que participasse da Alca (Área de Livre Comércio das Américas). Terá o Ciclo Democracia e Justiça Social fracassado? Não, porque implantou a democracia e porque logrou a diminuição da desigualdade. Houve grande aumento nos gastos com a educação fundamental - algo que jamais havia sido feito antes no Brasil - e com a saúde, que se expressou no SUS --a universalização do sistema de saúde prevista na Constituição de 1988. Houve também o Bolsa Família e o aumento real do salário mínimo, que contribuíram para a redução das desigualdades. Mas o custo dessa pequena diminuição da desigualdade foi tornar a classe média conservadora (como se viu pela divisão política entre ricos e pobres) e o crescimento baixo, principalmente porque a taxa de câmbio se manteve depreciada ————————————————————————————————————————————— 14 desde 1991. Excluindo-se os anos 1980, que foram de estagnação econômica causada pelo endividamento externo, a taxa de crescimento anual per capita entre 1931 e 1980 foi de 4% ao ano contra apenas 1,6% ao ano entre 1991 e 2013. Se definíssemos desenvolvimentismo pelo crescimento, nem se poderia falar nisso, mas como houve uma tentativa de planejar os investimentos na infraestrutura e uma política industrial ativa, a denominação desenvolvimentismo social é correta. Creio que o baixo crescimento é um sinal de que o Ciclo Democracia e Justiça Social se esgotou, e talvez derive daí o mal-estar brasileiro atual. Durante mais de 30 anos, a diminuição da desigualdade foi um projeto, mas não se imaginava que o desenvolvimento econômico que a acompanharia fosse tão baixo. Hoje, falta aos brasileiros tanto projeto de desenvolvimento quanto projeto de distribuição. Teremos eleições no final do ano, mas os candidatos não têm projetos. Na verdade, nunca a sociedade brasileira foi tão dividida politicamente entre ricos e pobres, e falta à nação um projeto --sobra o mal-estar. LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA, 79, é professor emérito de economia, teoria política e teoria social da Fundação Getulio Vargas. Foi ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (governo FHC). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2014. 'Somos uns boçais' (PASQUALE CIPRO NETO) SOU PROFESSOR desde 1975. Desde sempre, a base das minhas aulas reside em textos dos mais diferentes matizes, da literatura clássica à moderna, da publicidade à nossa riquíssima música popular, do jornalismo aos fatos dos nossos dialetos etc. Ninguém consegue compreender um texto sem o domínio da variedade linguística em que ele foi escrito, mas esse domínio não é suficiente. Sem compreender os diálogos que o texto que se lê estabelece com outros textos, com a história, com o presente, com o mundo em que se está e com outros mundos, nada de nada de compreender o que se lê. Pois bem. Os brasileiros estamos, dia após dia, em contato com sucessivos fatos que expõem a nossa tragédia, a nossa miséria, o nosso atraso, a face crua da nossa barbárie, o nosso horror cotidiano, inexorável, boçal. Como dizia Caetano Veloso na canção "Podres Poderes", de 1984, "Enquanto os homens exercem seus podres poderes / Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos / E perdem os verdes / Somos uns boçais". Gente que leva tudo ao pé da letra talvez não consiga entender a relação "avançam os sinais vermelhos/perdem os verdes", chave para a compreensão do excerto, finalizado com a triste e lamentavelmente verdadeira sentença: "Somos uns boçais". Note que o verbo não está na terceira do plural ("São"), mas na primeira ("somos"). Poderia soar arrogante e presunçoso excluir-se do bolo, da massa, da massa bruta, da bruta massa de que fazemos parte neste triste Brasil. O Brasilzão de 2014 ainda avança os sinais vermelhos e perde os verdes, se é que chega a enxergá-los. Num álbum posterior (o primoroso "Circulado", de 1991), o mesmo Caetano incluiu a também ainda atual canção "O Cu do Mundo", em cuja letra se encontram estes versos: "O furto, o estupro, o rápido pútrido / O fétido sequestro / O adjetivo esdrúxulo em U / Onde o cujo faz a curva / (O cu do mundo, esse nosso sítio) / O crime estúpido/ o criminoso só / Substantivo, comum / O fruto espúrio reluz / À subsombra desumana dos linchadores / A mais triste nação / Na época mais podre / Compõe-se de possíveis / Grupos de linchadores". Certamente Caetano não tirou do nada esses versos. Duas décadas depois, nada mudou, nada muda neste país. Fico me perguntando o que poderia ter mudado se, nesses anos todos, os professores tivéssemos trabalhado textos como esses (não só nas aulas de português, mas também nas de história, geografia, filosofia etc.). Será que a sala de aula ainda tem (se é que já teve) o poder de fazer a garotada mergulhar na reflexão sobre a nossa dura realidade? Será que o nosso sistema educacional e os nossos professores têm mesmo condições de promover a tão propalada "revolução pela educação" e, consequentemente, de pôr para aprender a pensar a nossa garotada toda? E será que a nossa sociedade, violenta até mais não poder, tem condições de estabelecer a paz? Quando digo "violenta até mais não poder", não me refiro aos criminosos "verdadeiros"; refiro-me ao cidadão brasileiro médio, aquele que trafega no acostamento das rodovias, que ultrapassa na entrada da cabine de pedágio, que não respeita a faixa de pedestres, que impõe a toda a vizinhança, em altíssimo volume, o som de bate-estaca etc., etc., etc. Isso tudo não é característica de uma sociedade violentíssima e boçal, caro leitor? Lamentavelmente, a arte quase sempre tem razão quando escancara a realidade. Os velhos versos de Caetano são apenas uma pequena amostra do que se pode aprender, apreender, compreender e depreender da leitura e da audição do que não é lixo. Aliás, chega de lixo! É isso. PASQUALE CIPRO NETO é Professor de português desde 1975 e também colunista semanal desta publicação. É o idealizador e apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa, transmitido pela Rádio Cultura (São Paulo) AM e pela TV Cultura, e do programa Letra e Música, transmitido pela Rádio Cultura AM. E-mail: [email protected]. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2014. ————————————————————————————————————————————— 15 Amor à venda (CONTARDO CALLIGARIS) "AMANTE a Domicílio", de John Turturro, é um filme, como se diz, "delicioso". Nos Estados Unidos, uma série de artigos celebraram a "descoberta" de que existiria um "lado bom" da prostituição. Em várias entrevistas, Turturro (que escreve, dirige e atua junto com Woody Allen, Sharon Stone, Vanessa Paradis e Sofia Vergara, todos notáveis) levou a conversa por esse lado: "Há coisas positivas no que fazem os trabalhadores do sexo". Por exemplo, Avigal, oprimida e entristecida pela viuvez e por sua própria tradição religiosa, redescobre a "magia" do amor graças a Fioravante, o gigolô. E é transando com ele que a dra. Parker se permite enfim mandar o retrato do marido à merda. A consagração dessa visão do filme veio com um artigo de Karley Sciortino no "Guardian". Karley Sciortino escreve sobre sexo para "Vice" e para "Vogue", além de manter um (ótimo) blog, "Slutever" (sempreputa). Sciortino recorreu a Camille Paglia para lembrar que "moralismo e ignorância" são responsáveis por nossos estereótipos sinistros da prostituição e confirmar que Turturro nos mostrou o que há de positivo nela. No Brasil, estranha-se menos que a prostituição possa ter algum lado "bom", mesmo que seja pela ideia machista e idiota de que ela serviria para a iniciação dos garotos (que, aliás, não precisam mais disso há tempos). Mas, nos EUA, a coisa é diferente: com a exceção de Nevada, prostituir-se e contratar os serviços de uma ou de um prostituto são condutas punidas por prisão e multa. Isso, sem falar no que acontece com quem "promove a prostituição" (o que vai desde ser cafetão até alugar um apê a quem exerça a profissão). Enfim, em 2007, Eliot Spitzer se tornou governador do Estado de Nova York por ter sido um promotor severo contra as prostitutas e, em 2008, ele perdeu o governo por ter se relacionado, justamente, com prostitutas. De fato, imaginar que a prostituição seja proibida em Nova York é uma piada. Mas a legislação reflete pensamentos comuns. Numa pesquisa-brincadeira de 2008, em Chicago, 200 clientes aceitaram falar de por que frequentavam prostitutas: 83% declararam que eles eram viciados e 40% afirmaram que só procuravam prostitutas quando estavam bêbados. A maioria acreditava que as prostitutas exercem sua profissão porque foram abusadas na infância. Em suma, clientes e prostitutas (ou prostitutos), todos doentes! Não vale acusar o proverbial puritanismo dos EUA. Na própria França, ainda este ano, tem chances de ser aprovada uma lei que ("para acabar com a prostituição" - hello?) vai criminalizar o cliente. Enfim, constata-se que existe um tabu sobre o sexo pago. Uma hipótese, para explicá-lo, é o seguinte círculo vicioso: 1) recusamos a ideia de que exista uma fantasia sexual que envolve a troca de dinheiro, 2) concluímos que, portanto, a prostituição só acontece por necessidade absoluta de quem se prostitui, 3) queremos abolir a prostituição (de fato ou mentalmente) porque não queremos que existam diferenças econômicas que possam induzir alguém a vender sua intimidade. O problema é o pressuposto: por que recusaríamos a ideia de que existam fantasias sexuais que envolvem a troca de dinheiro? Talvez por elas serem quase sempre fantasias de dominação, e muitos que gozam sonhando com a distribuição do poder preferem não saber exatamente do que eles estão gozando. Em outras palavras, o dinheiro organiza fantasias eróticas, mas ele é presente demais na nossa vida social (inclusive nas relações de casal, entre parentes, amigos etc.) para que a gente se permita reconhecer esse efeito de sua circulação. Nota: não é necessariamente quem paga que gosta de dominar. Certo, há os que curtem comprar amantes ou mulheres ou maridos. Mas também há os que pedem para ser explorados e, nas salas de bate-papo, se apresentam assim: acabe com a minha vida!, quero ser chantageado! Achamos "Amante a Domicílio" "delicioso" porque ele confirma nossa crença (esperança?) de que a troca de dinheiro nas relações seja indiferente (no filme, apaixonamentos, renúncias, generosidades e pequenezas, tudo acontece como se ninguém estivesse pagando ninguém). Será, então, que Turturro nos propõe uma ilusão? Talvez. Mas é a mesma ilusão na qual vivemos: nas nossas relações de cada dia, sempre tentamos esquecer o "erotismo" silencioso das trocas financeiras. CONTARDO CALLIGARIS, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2014. O avanço da ciência brasileira (ROGÉRIO MENEGHINI) O BRASIL tem tido uma posição sofrível nos recentes rankings mundiais de universidades. Quando indagados, os gestores das classificações apontam como principal causa a fraca interação internacional de nossos cientistas. Embora existam outros fatores, este é apontando há tempos e que agora o governo procura atacar com o programa Ciência sem Fronteiras (CSF), sob a alçada do CNPq e Capes, órgãos do Ministério de Ciência e Tecnologia e Ministério da Educação, respectivamente. O programa prevê 101 mil bolsas de estudos no exterior no período de 2012-2015. Até fevereiro de 2014, haviam sido concedidas 49.067 bolsas. Entre as várias categorias de bolsas, a grande maioria, 81%, é do tipo "sanduíche graduação", em que alunos são selecionados para permanecerem de 12 a 18 meses em universidades estrangeiras. Durante a permanência, eles devem cumprir disciplinas de graduação relacionadas com seus cursos no Brasil e ganhar domínio de uma ————————————————————————————————————————————— 16 segunda língua. Segundo dados da Unesco, em 2011 o total de alunos de graduação no exterior era de 3,8 milhões, e o Brasil alcançava apenas 0,8% deste total. Com o CSF/graduação, esse valor aumentará significativamente. Ainda assim, o privilégio de obter uma bolsa caberá a uma proporção muito baixa do alunato brasileiro de graduação. Porém, é incontestável que os contemplados constituem uma semente importante para uma mudança cultural e profissional, pela aquisição de uma visão mais cosmopolita, significativa para um país geograficamente isolado das nações mais avançadas. Porém, é incorreta a ideia de que essas bolsas de graduação são um passo importante para a internacionalização de nossa ciência. Em primeiro lugar, é altamente improvável que, frente aos vários desafios a serem enfrentados pelos jovens, como aprendizagem de uma nova língua e de novas disciplinas, haja tempo para uma iniciação científica, que consiste de um trabalho científico efetuado sob a direção de um docente da instituição. Talvez por isso ela não seja exigida pelo CSF/graduação. Em segundo lugar, não há uma razão especial para se esperar que esses bolsistas tenham interesse superior aos dos demais concluintes da graduação em se tornar cientistas, algo em torno de 1%. Portanto, não se trata de um caminho para internacionalizar a ciência brasileira. Não é claro por que o programa ficou da alçada do CNPq e Capes, duas instituições com técnicos e infraestrutura voltados para o progresso da ciência brasileira. Há vários estudos mostrando que os programas de doutorado e pós-doutorado no exterior são, estes sim, de extraordinária importância para o avanço de nossa ciência. Em um recente levantamento de dados verificamos que, entre os 241 pesquisadores brasileiros mais destacados em biologia, química e física, segundo a Plataforma Lattes do CNPq, 213 fizeram doutorado ou pós-doutorado no exterior. Certamente, esses programas deveriam ser contemplados prioritariamente quando se visa uma maior internacionalização da ciência brasileira. Todavia, tal iniciativa não deveria prejudicar o CSF/graduação, cuja supervisão deveria caber ao Ministério da Educação. ROGERIO MENEGHINI, 73, é professor titular aposentado de bioquímica da Universidade de São Paulo e diretor científico do programa SciELO de revistas científicas brasileiras. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2014. Linchamentos (LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO) EM 1879, em Itu, multidão enfurecida arranca Nazário da prisão, "arrasta-o pelas ruas e lincha-o sem hesitação e piedade", conta o historiador Xavier da Veiga no final do século 19. O escravo matara a machadadas um ex-deputado, duas filhas e mais duas pessoas que com ele moravam. O verbo "linchar", proveniente da língua inglesa (lei de Lynch, de origem controvertida, mas relacionada a execuções sumárias nos Estados Unidos da América), já fazia parte de nosso vocabulário. A biografia autorizada de Lula, "O Filho do Brasil", revela que, nos anos 60, o jovem sindicalista presencia o linchamento de alguém que alvejara um grevista: "Eu achava que o pessoal estava fazendo justiça". Esta semana, no Guarujá, balneário paulista com alto índice de criminalidade, um episódio estranho, que mistura boato, redes sociais e suposto ritual de magia negra, culmina com espancamento e morte de mulher inocente. Uma onda de linchamentos também afeta a Argentina. A presidente Cristina Kirchner chegou a se pronunciar no começo de abril, depois de dez casos em dez dias, pondo a culpa em "políticos mentirosos e sem escrúpulos". O Núcleo de Estudos da Violência da USP contabiliza 1.179 ocorrências no Brasil entre 1980 e 2006, com mortes, ferimentos, fugas e intervenções policiais que evitaram o pior. O sociólogo José de Souza Martins tem ensaios primorosos sobre o tema. Documentou mais de 2 mil casos, e, em entrevista concedida em 2008, estimava que, em 50 anos, cerca de 500 mil brasileiros participaram de tentativas ou barbáries consumadas. Fala em três a quatro linchamentos por semana. Aponta as periferias de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador como cenários principais. Por que lincham? Se nos EUA - onde a prática foi extirpada depois de uma história dramática de acontecimentos e de política de Estado desenvolvida para o problema - as questões da supremacia racial e da moral puritana estavam em pauta, no Brasil o linchamento tem caráter essencialmente punitivo. É voltado contra pessoas envolvidas em um delito, mais ou menos grave, seguido de "julgamento" instantâneo, informal e popular. É importante não confundir linchadores com justiceiros, linchamento (espontâneo) com chacina (premeditada). A falência do Estado e sua incapacidade de promover, com eficácia, a expropriação da vingança privada podem até aparecer como ingredientes em determinadas ocasiões, mas não explicam o fenômeno. O linchamento é reação súbita, anônima, eufórica, irracional, desorganizada e ritualística de gente que se sente ameaçada. A vontade coletiva se impõe à vontade individual. Sua raiz psicológica lembra, de certa maneira, a do genocídio. A turba identifica um inimigo intrinsecamente mau, conforme o imaginário, e comete atrocidades infinitas. Martins cita a precariedade da construção do nosso ambiente urbano, de uma "população dividida entre a desmoralização completa e a desesperada necessidade de afirmação de valores mais tradicionais da família e da vizinhança". As cidades recebem, mas não acolhem. O caso do Guarujá mostra que a internet potencializa a reação histérica de massas. A repulsa eventual e a punição de um ou outro envolvido não são capazes de conter a epidemia. [email protected]. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2014. ————————————————————————————————————————————— 17 Macacos, bananas e privadas na cabeça (MALU FONTES) NA SEMANA em que a banana entrou na moda pela porta dos fundos, a do preconceito, o Brasil e parte do mundo fizeram uma súbita descoberta: #somostodosmacacos. Foi um #deusnosacuda no universo paralelo das hashtags e dos trendtopics. A turma dos hypes uniu forças e posts com a dos modernetes, que, por sua vez, passou, num clicar de teclas, a compartilhar toda a pauta do movimento negro. Tudo ia muito bem até que, estimulado pela presença de espírito de Daniel Alves no campo espanhol, ao degustar a banana-fruta atirada por um banana-gente preconceituoso, Luciano Huck com sua máquina de fazer dinheiro entrou em outro campo, o da web, para ganhar dinheiro com o episódio. A metade da laranja do casal louro mais famoso e rico do show bizz tupiniquim acionou seu lado aperfeiçoadíssimo de mascate e camelô da indústria do bem e, em segundos, sua caixa registradora já tilintava com as vendas de uma camiseta logomarcada com #somostodosmacacos. Ao preço módico de 70 reais, diga-se. Ou umas tantas parcelas constrangedoras de 11 reais e alguns centavos. Mas, uma vez digerida a banana de Daniel, o bom senso começou a dar o ar da graça aqui e ali. Os ânimos da macacada de primeira hora começaram a arrefecer e começaram os murmúrios de que a banda não deveria ser tocada bem assim. Do ponto de vista genético é mais do que razoável e sensato lembrarmo-nos todinhos da nossa herança símia, mas, por outro lado, houve quem lembrasse que repetir o coro dos preconceituosos de que ser macaco é normal e legal pode, sim, reforçar os estereótipos. Assim, o disco foi mudando de letra e começou a dar lugar a um tímido #somostodoshumanos. Sim, pode-se dizer que foi a fome de marketing e de dinheiro de Neymar e Huck que começou a amarelar o orgulho de ser macaco. Umas tecladas e pronto: descobriu-se que o mantra que virou hashtag e trendtopic, bem como uma campanha publicitária mais ampla com esse mote, havia sido encomendada por Neymar e já estava prontinha da silva antes mesmo de Daniel Alves comer a banana. Esse, sim, até que se prove o contrário, autor de um gesto espontâneo. Sim, claro, até aí celebridades do primeiro ao quinto escalão, passando por aquelas que há muito já habitam o subsolo da decadência e do esquecimento público, acorreram todas às suas redes sociais em poses de engolidores de bananas. Enquanto isso, a turba sem fama, mas com algum senso crítico, começou logo a perceber que assumir a condição de macaco estava mais para assumir-se como banana. E, na falta de alguém melhor para bater, desceu o verbo em Huck. A enxurrada de críticas foi tão pesada que o bom rapaz do narigão logo mexeu os pauzinhos para, como sempre, ficar bem na fita: anunciou que não embolsaria um centavos da camiseta dos macacos. Doaria tostão por tostão a entidades do bem. Nem por isso parou de apanhar. Assim, com alguma perversão, e aproveitando para atirar uma casquinha de banana podre na Globo, o Fantástico da Record, que atende pelo nome de Domingo Espetacular, anunciou em tom solene que o marido de Angélica entregou os pontos: desistiu de vender, a esta altura, a maldita camisa símia. Diante desse barulho todo, os compradores certamente se sentirão meio bananas usando a camisa por aí, pois comer a fruta permanece uma boa ideia, mas autocharmar-se de macaco já não tá soando tão bem na fita. E, aqui entre nós, é fácil faturar com a relação macacos versus bananas. Em tempos de Copa quero ver é neguinho vender graça usando outros bichos que atiram privadas na cabeça de torcedores, matando-os, como aconteceu na última sexta-feira no estádio do Arruda, em Recife. MALU FONTES é Doutora em Cultura pela UFBA, jornalista e professora de Jornalismo da mesma Universidade. Jornal CORREIO, Maio de 2014. O Brasil e a Copa (ABILIO DINIZ) SEMPRE declarei meu amor pelo Brasil. Trabalho para ajudar a melhorar este país, gerando empregos, dando aulas, apoiando iniciativas nas áreas de educação e esporte e investindo em empresas que possam contribuir para o seu crescimento. Como milhões de brasileiros, eu tenho o futebol como paixão. E não acho que protestando contra a Copa diante dos olhos do mundo ganharemos alguma coisa, pelo contrário. Devemos aproveitar a atenção mundial para mostrar a grandiosidade e as oportunidades do Brasil, não os nossos problemas. Estes, resolvemos nós. A quase um mês da Copa do Mundo, vejo a bola rolando quadrada no país do futebol. A festa que se previa deu lugar à tensão e ao ceticismo. Pesquisa Datafolha aponta que hoje mais brasileiros rejeitam a Copa do que a apoiam. É possível que saia mais gente às ruas do país para protestar contra o torneio do que para celebrá-lo. A intenção deste artigo não é desestimular ninguém a protestar. São muito justas as reivindicações por investimentos em educação, saúde, moradia, segurança e transportes. Com a nossa pesada carga de tributos, o Estado brasileiro deve, urgentemente, serviços mais eficientes e mais ética na gestão pública. Ter uma população mais engajada, exigindo serviços e gestão com a qualidade da nossa seleção e dos novos estádios, é saudável e legítimo. Mas nós não podemos esquecer que a Copa do Mundo é uma das melhores oportunidades de projeção do país. Se a usarmos de forma eficaz na promoção da marca Brasil, ganharemos muito. E quanto mais ganharmos com a promoção global do país, menos a Copa nos terá custado. Num mundo cada vez mais globalizado, a imagem ou marca de uma nação pode ser mais importante do que o que ele produz e vende. ————————————————————————————————————————————— 18 O Brasil não é só um país em construção, mas uma marca em construção. Uma marca que reflete tudo o que somos: um gigante em paz com os vizinhos, um país com enormes recursos humanos e materiais, uma das maiores democracias do mundo, uma economia de mercado de cerca de 200 milhões de consumidores, imprensa livre, Justiça independente, instituições sólidas. Quantos países têm essas credenciais? O interesse das grandes empresas e dos grandes empresários estrangeiros pelo Brasil é enorme, vejo quando viajo para o exterior para promover nossos produtos e o nosso mercado. E não são apenas os empresários. Existem interesse e simpatia generalizados por um país de povo tão criativo, alegre e empreendedor. Durante a Copa do Mundo, um terço do planeta estará grudado nas telinhas para ver os jogos e, por tabela, o país que os sediará. Não tem cartão de crédito nem emissão de títulos da dívida pública que paguem essa massiva publicidade global. Precisamos aproveitá-la ao máximo. O Brasil ainda é pequeno em comércio internacional e atração de turistas. Atrairemos muito mais recursos realizando uma Copa ordeira, que revele um país dinâmico, alegre e capaz de se organizar. Isto trará frutos para todos os brasileiros. Também acho que foram cometidos equívocos. Não precisávamos de tantas sedes e estádios tão caros em cidades sem torneios de futebol expressivo. As obras de mobilidade urbana poderiam ter sido entregues a tempo. Precisamos tirar todas as lições desses fatos lamentáveis. Mas a bola, afinal, vai rolar. O Brasil, maior seleção da história, sediará uma Copa já especial pela presença de todas as grandes seleções e seus craques fabulosos. Que honra receber e, torçamos, derrotar Messi, Cristiano Ronaldo, Balotelli, Özil e Iniesta. O Brasil é muito maior que as dificuldades que atravessamos. Está na hora de mostrar o nosso amor por este país - de começar a Copa cantando "sou brasileiro, com muito orgulho" e encerrá-la com "we are the champions". ABILIO DINIZ é presidente do Conselho de Administração da companhia de alimentos BRF. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2014. O velho conflito de gerações (MARIA IRENE MALUF) Muito se fala sobre as perdas envolvidas no processo de amadurecimento. Contudo, este processo traz, também, muitos ganhos. Um deles é quando nos tornamos avós, como mostra a carta a seguir OS CONFLITOS gerados pelas diferenças de objetivos de vida entre as gerações nunca foram tão marcantes como nos dias atuais. Jovens avós, filhos e netos parecem de um lado nascidos na mesma década: possuem interesses culturais e sociais similares, assim como seu gosto por moda, passeios, música, viagem, esportes é bastante próximo. De outro lado, por seus objetivos essenciais de vida, são muito distintos, parecem por vezes nascidos em séculos diferentes! A geração dos anos quarenta e cinquenta, hoje tornada avó, foi de crianças educadas dentro de princípios chamados tradicionais, nos quais a figura paterna era extremamente respeitada, os papéis eram bem definidos, a autoridade tendia ao autoritarismo, a obediência não era discutida, posta em dúvida e, provavelmente, sua educação pouco se distinguia daquela recebida por seus pais. Tratava-se, antes de imitar, de seguir modelos, sem desejo ou necessidade de arriscar mudanças. A linguagem, as roupas, os gostos entre as pessoas da mesma geração eram similares, mas até por qualquer desses itens se podia saber quem era o pai e o filho, claramente. Houve o começo do uso da informática para fins comerciais, embora ainda não de forma massificada, e teve início a grande revolução comportamental, como o surgimento do feminismo e os movimentos civis em favor dos negros e homossexuais. Esses acontecimentos mudaram gradativamente o pensamento, o comportamento das pessoas, a maneira de pensar e agir. A geração dos anos setenta cresceu em uma fase de transformações marcantes, com muitas mudanças na família, na sociedade, no mundo: a ciência começou a sair em ritmo acelerado dos centros de pesquisas, das universidades para o ————————————————————————————————————————————— 19 mundo, para o cotidiano, alterando, definitivamente, os meios de comunicação e as relações entre as pessoas e as gerações. Evidentemente, os modelos educacionais vivenciados já não eram os mesmos, porque as necessidades do momento já não eram as mesmas. O tempo passou, a sociedade que tinha o objetivo de criar um cidadão ―obediente‖ também foi vencida pelo anseio de educar pessoas responsáveis, autônomas em circunstâncias novas, sem padrões anteriores a seguir. A liberdade de pensamento passou a ser uma exigência dos jovens, que começaram a se tornar senhores de sua vida, quebrando normas tradicionalmente aceitas. Experimentaram, na juventude, muitos caminhos, e amadureceram de modo diferente de seus familiares. CRIANÇAS SÃO, POR NATUREZA, ADMIRADORAS DE SEUS PAIS E VERDADEIROS “DISCÍPULOS” NATURAIS DESTES, E DESPERTAR UMA AMOROSA ADMIRAÇÃO DE SEUS FILHOS SE TORNA UMA RESPONSABILIDADE MUITO PESADA PARA QUEM NÃO ESTÁ PREPARADO PARA ISSO Ao se tornarem eles pais, não tendo um modelo educativo estabelecido e vivendo um momento extremamente dinâmico da sociedade, naturalmente, transformaram-se nos primeiros pais que têm – justificadamente – maior dificuldade em estabelecer limites entre eles e seus filhos: muitas vezes confundem os papéis, delegam responsabilidades, acabam por parecer irmãos e irmãs dos filhos, que acabam por se tornar órfãos de pais vivos. Com a desculpa ilusória de serem amigos dos filhos, deixam-nos sem pais... Acontece que crianças são, por natureza, admiradoras de seus pais e verdadeiros ―discípulos‖ naturais destes, e despertar uma amorosa admiração dos filhos se torna uma responsabilidade muito pesada para quem não está preparado para isso. E admiração se cria na observação, no dia a dia, de comportamentos coerentes e serenos, que transmitem segurança, geram ordem e disciplina, elementos, estes, sem os quais, obviamente, não se estruturam relações equilibradas, personalidades estruturadas, pessoas responsáveis ou autocontroladas. Nunca se ouviu falar tanto como na atualidade em problemas disciplinares e a razão, provavelmente, está – na maioria dos casos –, justamente, na questão do autocontrole e da responsabilidade, que deixam de ser ensinados e cobrados das crianças, seja por excesso de zelo, de superproteção familiar ou por negligência, três terríveis violências contra a saúde mental infantil. A disciplina verdadeira e duradoura é criada por uma identificação contínua e profunda com adultos, e é responsável pelo estabelecimento do autocontrole. Quando tal processo é supérfluo, as crianças desenvolvem um autocontrole frágil e, assim, sempre precisarão de alguém que as vigie, já que não sentirão a necessidade e nem a possibilidade de se controlar e agir certo em qualquer situação onde não sejam cuidadas. O castigo entra nesse ponto, onde se exige a obediência e não o autocontrole: a punição acaba por tornar a criança menos cooperativa, o adulto perde a paciência, o autorrespeito e o respeito pela criança, e parte para a agressão física ou verbal, no desejo de reprimir o comportamento infantil. O castigo, físico ou verbal, não leva em conta a necessidade real de se dar a oportunidade à criança de agir bem, repensar seus atos, palavras e comportamentos, de se sentir amada e respeitada ao longo de seu crescimento, e pior: não ensina autocontrole, não desenvolve o desejo de copiar comportamentos admirados por elas mesmas. Compreendermos a relação entre as gerações. Nosso papel e responsabilidade social e familiar na criação de nossos filhos certamente farão, de todos nós, pais melhores, capazes de oferecer oportunidades reais de educar crianças e adultos equilibrados, autocontrolados, responsáveis e mais felizes em um mundo cada vez mais dinâmico. MARIA IRENE MALUF é especialista em Psicopedagogia, Educação Especial e Neuroaprendizagem. Foi presidente nacional da Associação Brasileira de Psicopedagogia – ABPp (gestão 2005/07). É editora da revista Psicopedagogia da ABPp e autora de artigos em publicações nacionais e internacionais. Coordena curso de especialização em Neuroaprendizagem. Revista PSIQUE, Maio de 2014. ————————————————————————————————————————————— 20