REVISTA REDAÇÃO
PROFESSOR: Lucas Rocha
FELIZ DIA DAS MÃES! : )
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DATA: 11/05/2014
O mundo nerd (FABÍOLA PEREZ)
Eles deixaram de ser os esquisitos das salas de aula, conquistaram público fiel e anunciantes de peso. Saíram de trás dos
computadores, têm séries de TV e até literatura própria. E o que parecia brincadeira se transformou em negócio milionário
TUDO COMEÇOU com uma diversão. Em 2009, o estudante Bruno Aiub, 23 anos, conhecido como Monark, criou um canal
no YouTube a fim de ensinar as melhores estratégias para jogar Minecraft – game que possibilita aos usuários construírem
um mundo formado por blocos. Em novembro de 2010, o espaço batizado RandonsPlays atingiu 32 mil visualizações. Hoje,
três anos depois, a audiência saltou para dez milhões de views mensais. E o que começou como um hobby se tornou um
negócio lucrativo. ―Sempre que via algum jogo novo fazia comentários, sátiras ou piadas e o público começou a gostar‖, diz.
Aiub faz parte de uma geração de nerds que ultrapassou as barreiras do preconceito no ambiente escolar e encontrou na
tecnologia um aliado para ganhar o mundo. ―A sociedade precisa de profissionais com conhecimento tecnológico. São essas
pessoas que movimentam a economia e fazem tantas outras estarem empregadas‖, afirma David Anderegg, psicólogo
americano e autor do livro ―Nerds: Quem São e Por Que Precisamos Deles‖. Um dos protagonistas da revolução pela qual
passa a cultura nerd atual é o ultra bem-sucedido Mark Zuckerberg, criador da rede social Facebook. Segundo um relatório
da consultoria GMI Ratings, ele é o empresário mais bem pago dos Estados Unidos, com salário mensal superior a US$ 1
milhão. Além disso, o jovem de 29 anos é o símbolo do nerd que soube transformar sua inteligência em respeitáveis cifrões.
MADE IN USA - Pierre Mantovani, criador do portal Omelete, vai trazer ao Brasil em dezembro a Comic Con
Experience, versão brasileira da maior feira nerd dos Estados Unidos
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Inspirada na trajetória de outro exemplo bem-sucedido do universo geek, o fundador da Apple, Steve Jobs, a Rede
Globo lançou, na segunda-feira 5, a novela Geração Brasil, que aborda o mundo da tecnologia. A trama gira em torno da
história de sucesso do jovem Jonas Marra, interpretado por Murilo Benício, que desenvolve um computador pessoal de baixo
custo. Na década de 1990, o personagem viaja aos Estados Unidos e, tempos depois, torna-se CEO de uma das maiores
empresas de tecnologia e ídolo de milhares de jovens que se encantam com o mundo da informática. Quando decide voltar
ao Brasil em 2014, ano de Copa do Mundo, o milionário atrai milhares de jovens que se identificam com a indústria nerd.
Fora da ficção, a realidade não é muito diferente.
Exemplo mais modesto, o brasileiro Leon Oliveira Martins, 30 anos, começou sua carreira nesse universo produzindo
vídeos durante uma viagem pela Alemanha, em 2008. Quatro anos depois, havia criado o próprio canal no YouTube, ―Coisa
de Nerd‖, voltado a comentários sobre jogos não convencionais. ―Na época, não tinha tantas informações sobre games em
português, então misturava uma série de informações para divertir e informar quem buscava estratégias de jogo‖, afirma
Martins. Hoje chamados de ―influenciadores‖, Monark e Leon têm um alto índice de audiência e contam com agências
próprias para trazer mais anunciantes para seus canais. ―São jovens sem histórico na televisão, mas com um nível de
interatividade com o público que gera convencimento e identificação‖, diz Gustavo Teles, sócio-diretor da agência
Influencers.
Uma pesquisa realizada pelo portal Omelete, direcionado a esse público, detectou que 32% dos nerds e geeks no Brasil
possuem seu próprio canal no YouTube. ―Eles começaram a gerar audiência na internet e a ser remunerados pelo Google e
por outros anunciantes‖, diz Teles. ―Jovens como esses estão alcançando um faturamento mensal que varia de R$ 10 mil a
R$ 40 mil e anunciantes de peso nos setores de tecnologia, eletrônica e telefonia.‖ A produção de conteúdo e os
apresentadores nerds fizeram a agência Influencers triplicar sua projeção de faturamento neste ano, para R$ 1,5 milhão.
―Escolhemos ter essa abordagem nerd porque eram os canais na internet com mais regularidade e onde os apresentadores
tinham mais compromisso com seu público‖, diz. O estudo revelou ainda que 90% dos nerds e geeks costumam ficar online
mais tempo que a maioria dos brasileiros. A média do País, segundo o Ibope Mídia, é de 60 horas por mês, enquanto eles
costumam gastar 84 horas. Se hoje o passatempo preferido desse público é jogar videogame, o que mais cresce, porém, é o
hábito de consumir filmes e séries pela internet.
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Ser nerd, no entanto, nem sempre foi algo aceito e bem-visto. Muito pelo contrário. Essa turma teve de enfrentar
barreiras ao longo de décadas em colégios e universidades até conseguir mostrar que, com sua inteligência – e, por que
não, simpatia peculiar –, poderia ser popular e útil à sociedade. ―Quando eu estava no colégio, nosso grupo era formado por
pessoas excluídas. Hoje as crianças optam por ser nerds‖, afirma Benjamin Nugent, autor do livro ―Nerd Americano: A
História do Meu Povo‖. Segundo o autor, nerd virou uma identidade subcultural, assim como hippies, punks e skatistas.
Os primeiros eram estudiosos que gostavam de temas relacionados a cultura, ciência e tecnologia. Pouco populares,
eram arredios aos esportes. ―Hoje, a questão cultural se associou à indústria do entretenimento, que passou a produzir cada
vez mais coisas destinadas a eles‖, diz a professora de educação e tecnologia do Instituto Federal de Pelotas (RS) Angela
Dillmann Nunes Bicca, que coordena o projeto de pesquisa ―Aprendendo a Ser Jovem Nerd/Geek: Um Estudo Sobre a
Pedagogia Cultural da Internet‖. ―É um dos mercados que mais crescem no mundo‖, diz ela.No Brasil, o crescimento no
número de sites para esse público ocorreu mais intensamente nos últimos dez anos. Outro projeto nerd que se
profissionalizou exatamente nesse período é o site Jovem Nerd. A ideia nasceu em 2002 como um blog de humor.
Na época, os sócios-fundadores, Alexandre Ottoni e Deive Pazos, trabalhavam como designer e administrador,
respectivamente, e dedicavam apenas algumas horas ao projeto. A grande estreia veio, porém, em 2006, quando a dupla
conhecida como Jovem Nerd e Azaghal passou a comandar o Nerdcast – podcast que trata de temas que vão de eventos
históricos a filmes de super-heróis e histórias em quadrinhos. ―Foi um ponto de virada, passamos a acreditar que o Jovem
Nerd poderia se transformar em um negócio de fato‖, diz Ottoni. Hoje, o programa é um dos mais populares da internet,
com uma audiência de 300 mil ouvintes por semana e prêmios nacionais e internacionais, como o de ―Melhor Podcast do
Mundo‖. Na esteira do sucesso, outras ideias começaram a surgir.
Depois de negociações com fornecedores e parceiros, nascia a Nerdstore, loja virtual de camisetas. Assim, em pouco
tempo, esse público altamente segmentado começou a chamar a atenção das agências de publicidade digital, que viram no
projeto uma oportunidade de se relacionar com esses consumidores fiéis. ―Os anunciantes enxergaram em nossos veículos a
possibilidade de fazer publicidade com mais proximidade‖, afirma Guga Mafra, diretor da FTPI Digital, empresa parceira do
Jovem Nerd. ―Uma característica interessante do nerd é que ele influencia seus amigos e familiares‖, diz. ―Geralmente, é ele
o especialista da família em games, tecnologia, viagens e é a pessoa disposta a conhecer e testar um novo produto.‖
A percepção de que o mercado nerd vem se consolidando no País ganhou força também pela facilidade de acesso
ao conteúdo de internet nos últimos anos. ―A rede igualou todo mundo‖, diz Mafra. ―Hoje é possível obter um produto em
segundos pela web, tudo ficou muito mais fácil‖, diz o empresário. Esse é um dos aspectos apontados pela pesquisa do
portal Omelete. No levantamento, a conectividade desse público aparece diretamente relacionada aos seus hábitos. No ano
passado, 57% dos entrevistados revelaram fazer compras pela internet frequentemente, 24% o fazem algumas vezes por
ano e apenas 10% utilizam o e-commerce raramente. Na onda do crescimento desse mercado, o portal anunciou um
aumento de 50% em seu faturamento e 31 novos contratos para este ano – um deles com uma montadora de veículos
francesa que tem fábrica no Brasil.
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Inspirado no potencial do mercado americano, o diretor Pierre Mantovani, do Portal Omelete, tem planos de trazer ao
Brasil em dezembro a Comic Con Experience. A feira será uma adaptação dos eventos que ocorrem em Nova York e San
Diego, que reúnem criadores e admiradores de quadrinhos, cinema, televisão, literatura e afins. ―Estamos adaptando tudo o
que há de mais legal da realidade dos americanos para a nossa‖, afirma Mantovani. A versão brasileira contará com uma
área específica para quadrinistas do País divulgarem seu trabalho. Para ele, há uma enorme demanda de pessoas
interessadas em temas geeks, mas pouca coisa boa está sendo feita em território nacional. Além disso, houve uma mudança
de comportamento que fez com que os nerds conquistassem o próprio espaço. ―Se minha mãe me visse com uma camiseta
do Batman, me perguntaria se eu não cresci. Mas, atualmente, esses gostos passaram a ficar no DNA de algumas pessoas.‖
As empresas brasileiras, segundo Mantovani, não estavam preparadas para lidar com a liberdade de expressão que
existe hoje. ―A internet possibilitou que muitos jovens com boas ideias se autossustentassem‖, diz. Pessoas com um perfil
criativo começaram a levar a cultura e os hábitos nerds para todo o mundo. Prova disso é que algumas empresas brasileiras
começaram a enxergar esse potencial. Em abril de 2012, a Livraria Cultura anunciou o lançamento do Projeto Geek, um
espaço destinado aos entusiastas de quadrinhos, filmes, séries, objetos colecionáveis e games. ―O ponto de partida foi o
crescimento do mercado de games no Brasil, a partir daí tivemos a ideia de desenhar outros produtos e serviços para essas
pessoas‖, afirma o idealizador Igor Oliveira. Até então, as boas iniciativas estavam nas mãos de pequenos empresários,
dentro de nichos que compunham esse universo. Com um investimento inicial de R$ 1 milhão, a Livraria Cultura criou cinco
espaços geeks dentro de lojas que já existiam e abriu dois estabelecimentos independentes em São Paulo e no Recife.
―Vimos a oportunidade de unir a modernidade do mundo dos games com o caráter retrô dos quadrinhos‖, diz ele.
Nos Estados Unidos, meca dos nerds, tanto grandes lojas varejistas quanto estabelecimentos menores e tradicionais
abastecem esse mercado. Para Oliveira, a tendência é que as grandes livrarias acompanhem cada vez mais a segmentação
também no mercado editorial. ―Trouxemos de volta um hábito que já estava esquecido, de encontrar um lugar, ler e trocar
ideias aos sábados de manhã e depois do expediente.‖ Outra mudança é que as grandes editoras começaram a investir na
chamada literatura fantástica, a preferida da turma. O escritor Eduardo Spohr, 39 anos, foi um dos primeiros a se aventurar
nesse estilo no Brasil. Com dificuldades para emplacar sua obra ―A Batalha do Apocalipse‖ nas grandes editoras, Spohr fez
uma parceria com os fundadores do programa ―Jovem Nerd‖ para lançar o livro no site. As quatro mil cópias se esgotaram
em dois meses. ―Somente depois do programa e da parceria grandes editoras se interessaram pelo livro‖, diz.
Atualmente, o escritor possui quatro obras, sendo uma delas o livro ―Protocolo Bluehand: Alienígenas‖, lançadoem 2011 pela
editora Nerdbook, de Alexandre Ottoni e Deive Pazos. ―Nesse processo percebi que os leitores ficavam cada vez mais
exigentes e queriam conversar diretamente comigo para saber o que estava por vir‖, diz Sphor, que planeja lançar o
próximo livro em 2015. ―O nerd detém muito conhecimento sobre quase tudo, tem a mente mais lúdica e está sempre
querendo aprender‖, diz. Essa sede de aprendizado coloca hoje esse grupo, que tem muito para ensinar, em uma posição
de prestígio na sociedade. São pessoas que, como dizem os filmes de ficção que elas tanto cultuam, voltaram para se vingar
e ganhar o mundo.
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FABÍOLA PEREZ é Jornalista e escreve periodicamente para esta publicação. Revista ISTO É, Maio de 2014. Fotos: Kelsen
Fernandes/Ag. Istoé, Guilherme Pupo; Eduardo Zappia; Masao Goto Filho/Ag. Isto é.
'True philosopher' (LUIZ FELIPE PONDÉ)
"HÁ UMA LUTA entre a luz e as trevas", diz o detetive Rust Cohle (Matthew McConaughey) na série "True Detective",
na última cena do último episódio da primeira temporada. Já disse e repito que as séries americanas são hoje, de longe, o
maior experimento dramatúrgico nos EUA, porque o cinema americano quase não existe, derretido pelo medo do
politicamente correto, esta praga que em breve terá destruído toda a criatividade ocidental, à semelhança da arte soviética.
Qualquer artista que submeta sua arte ao projeto "para um mundo melhor" é um artista ruim.
A ideia de que há uma luta deste tipo é comum à filosofia, teologia e literatura. Dostoiévski diz algo semelhante nos
"Irmãos Karamazov": "Há uma luta entre Deus e o Diabo e o placo é o coração humano". Nos "Manuscritos do Mar Morto",
textos judaicos datados do período em torno do nascimento da era cristã, encontrados em cavernas do mar Morto nos anos
40, afirma-se a mesma luta entre os filhos da luz e os filhos das trevas. Nathan de Gaza, século 17, "profeta" do falso
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Messias Sabatai Tzvi, dizia que o mundo, assim como a alma de Tzvi, um melancólico, era dilacerado por forças antagônicas
de luz e trevas. Vejo nisso uma poética da agonia como habitat da alma humana. Rust Cohle é um detetive filósofo típico da
tradição que vai de Sam Spade (interpretado por Humphrey Bogart) a Philip Marlowe (interpretado por Elliott Gould e Robert
Mitchum). Niilistas, todos eles trazem a marca de uma visão pessimista sobre a humanidade.
Cohle, no primeiro episódio, afirma que é pessimista (e define essa condição como sendo "ruim em festas"). E afirma
sua "cosmologia": a consciência humana é um erro da evolução. Segundo nosso "true philosopher", todos pensamos que
somos "eus", mas somos apenas seres que arrastam essa ilusão em meio a uma programação genética que nos obriga a
sobreviver. Um diálogo entre o niilismo nietzschiano e o determinismo darwinista de Richard Dawkins não seria muito
diferente. De onde vem esse pessimismo que dá a esses detetives um tom maior do que meros personagens à procura de
criminosos?
No caso especifico de Cohle, esse pessimismo vem de uma família de origem destroçada, de uma filha morta muito
jovem, de um casamento destruído devido a esta morte, de muita bebida e muita droga, de quatro anos infiltrado no
narcotráfico e de uma longa investigação entre satanistas, pedófilos "cristãos" e serial killers de mulheres (esta investigação
é o conteúdo dramatúrgico dos oito capítulos da primeira temporada). Entretanto, sua grandeza não é redutível às suas
"pequenas causas" psicológicas. Se assim o fosse, ele seria apenas um deprimido. Sua grandeza como personagem se dá
devido ao modo como ele constrói, a partir de sua miséria pessoal, um julgamento preciso da humanidade. Julgamento este
que impacta por sua possível consistência.
Há uma questão maior aqui, e que une os grandes detetives nesta concepção niilista de mundo: a experiência com a
(sua própria) natureza humana. Sim, natureza humana, este conceito que muitos "especialistas" teimam em dizer que não
existe. Não vou entrar nesta discussão sem fim, prefiro usar a ideia de natureza humana como "licença poética". Há muito
que não me importo com debates "especializados". Sabe-se bem, mesmo entre policiais na vida real, que a proximidade
com a miséria humana mais pura pode levar alguém à descrença na natureza dos homens. Ainda que, como bem mostram
esses três personagens, isso não impede virtudes como coragem, generosidade, sinceridade, doçura. Muito pelo contrário,
muitas vezes é justamente a dureza do desencanto com a natureza humana e o sofrimento psicológico que ela traz no
cotidiano (como no caso de Cohle) que possibilita tais virtudes.
A virtude é silenciosa e cresce sempre num terreno que lhe é hostil. Máxima ignorada por todos que, principalmente
em épocas do novo puritanismo político que assola o mundo da cultura, cantam seu amor e sua misericórdia pelo mundo e
pelos que sofrem. O amor ao mundo deve ser escondido como uma pérola.
LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel
Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de
vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). [email protected]. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO,
Maio de 2014.
Estádios, artimanhas e conluios (WALTER CENEVIVA)
INICIALMENTE denominado "Obras Públicas", livro de Jorge Leitão teve seu nome aumentado por um subtítulo na
terceira edição: "Artimanhas & Conluios", quando se entrava na preparação para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos.
Com dois vocábulos acrescidos e o volume trazendo uma foto colorida do estádio do Maracanã na capa, não deixa dúvida
quanto à sua mensagem. Basta pensar que a palavra "artimanha" tem mais de 120 sinônimos na língua portuguesa, desde
ardil até velhacaria. "Conluio" tanto é combinação destinada a enganar terceiros, enquanto trama para tirar vantagem ilícita
de alguém. Enfim, nada que o comportamento honesto prestigie.
A finalidade do livro está no caracterizar com severidade científica, em face da lei, a conduta lícita ou ilícita de pessoas.
Define a mostra de alternativas corretas para a construção de quaisquer obras contratadas pela administração pública que
esta tenha o dever de implementar. Pelo direito, dentro da lei. A ilegalidade surge quando a obra provoca resultado
contrário ao interesse geral, por efeito da licitação entre os concorrentes ou pelos fatos posteriores, resultantes do mau
cumprimento do contrato, em termos econômicos, de engenharia ou de outra natureza. Pode surgir em cada uma das
etapas de desenvolvimento. É assim até sua quitação pelo poder público.
Indo por partes: no momento inicial da licitação, os interessados manifestam por escrito seu interesse em participar.
Cumprem, para esse efeito, os termos do edital, nos imperativos prazos estipulados. Têm cuidado com a concorrência ao
calcular seus gastos, investimentos, custos diretos e indiretos e tudo o mais, além da taxa BDI (Benefícios e Despesas
Indiretas). A avaliação compreende os encargos envolvidos, até os tributos. Envolve muitos temas técnicos para todos os
concorrentes, mesmo que entre alguns deles (ou todos) haja acordos à parte (revelados ou ocultos) para a divisão final. Na
gíria forense, é a "rachatio", em falso latim (pronuncia-se rachácio), divisão dos resultados finais confessada ou não.
Para dar uma ideia ao leitor dos cuidados do legislador, há uma lei (nº 12.529/2011) que relaciona 19 situações que
caracterizam infração da ordem econômica do concorrente. No outro lado do jogo, são comuns os aditamentos, no chamado
reajuste, revisão ou repactuação do preço, quando o vencedor pede maior suprimento para custo acrescido. Nas grandes
obras, é comum o chamado cartel, no qual cartelistas combinam variações de suas propostas, afastando ou prejudicando
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outros participantes. Técnica própria do vencedor consiste em demorar a entrega da obra, até perto da data limite, gerando
perigos políticos e econômicos da não entrega para obterem acréscimos do preço ajustado.
Como o leitor percebeu, hoje são avaliados quais são ou foram os fatos relevantes detectados nos vários estádios
construídos ou reformados pelo Brasil afora nos últimos anos. Mesmo assim, o livro de Antônio Jorge Leitão é bom de ler,
pela clareza do estudo. Tem uma análise severa técnica muito interessante que permite, mesmo ao leitor não afeito à
linguagem jurídica, a avaliação pessoal sobre os fatos da vida recente em nosso país.
WALTER CENEVIVA, 86, é advogado. Foi professor de direito civil da Pontifícia Universidade Católica de SP. Jornal FOLHA DE
SÃO PAULO, Maio de 2014.
Ensino superior e sociedade (ROSELY SAYÃO)
O MUNDO poderia ser melhor e mais tranquilo, e a vida mais compreensível, se as universidades, em vez de olharem
para o mercado de trabalho para identificar suas demandas, olhassem para a sociedade para identificar o que ela mais
precisa. Creio que, assim, o mundo poderia avançar.
Hoje, a formação acadêmica segue a seguinte lógica: as faculdades oferecem cursos tradicionais, nossos velhos
conhecidos, que pouco têm mudado para permitir que os novos profissionais entendam melhor o mundo atual e possam
nele intervir de modo inovador. Quando cursos são criados, isso acontece em função exclusivamente da economia, ou seja,
da abertura de novas chances no mercado e das possibilidades de profissões rentáveis em nosso contexto. A economia tem
funcionado como um eixo importante para as faculdades e também para os jovens que as procuram. Melhor dizendo, para o
mundo. Mas e nossa vida em sociedade, tão plena de agruras, dissabores e incompreensões, não mereceria o mesmo olhar
atencioso? Afinal, sem uma vida boa e digna em sociedade, de pouco adianta a economia ir muito bem. Já temos sentido
isso na pele.
E quais cursos de que estamos precisando muito poderíamos oferecer na atualidade? Que tal podermos contar, por
exemplo, com um curso de diplomacia familiar? O relacionamento familiar tem demandado especialistas em diplomacia,
porque os conflitos já não são os mesmos de antes, tampouco as famílias. Noras e filhas, para citar um exemplo, têm
estranhado suas mães e sogras em relação aos cuidados com os seus filhos. Acredita, caro leitor, que há mães que deixam
seus filhos pequenos com sua própria mãe ou sogra e monitoram por câmera o que acontece? E que há jovens mães que
ficam escandalizadas quando a sogra ou a mãe as aconselham, tomam determinadas atitudes com o neto, criticam a
maneira como o neto tem sido criado?
E os pais, já velhos, que não aceitam sair do palco e ceder a vez para que seus filhos brilhem? E os filhos às voltas com
um fim de vida difícil de seus pais? E o relacionamento entre irmãos, competitivo e/ou possessivo mais do que enciumado?
Essas questões e outras criam incidentes diplomáticos dos mais complexos para o grupo familiar. Precisamos ou não de
especialistas em relações diplomáticas familiares? Poderíamos ter, também, profissionais formados para colaborar com a
formação dos nossos jovens que, tão plurais e diferentes entre si, precisam de ajuda. Eles precisam aprender a criar
resiliência na vida pessoal e na profissional e a encontrar seu foco na vida. Precisam também perceber que, para se
comunicar, é preciso reconhecer que hoje há múltiplos ambientes e que cada um deles exige um tipo específico de
comunicação. Precisam de ajuda também para entender que a complexidade das escolhas reside nas renúncias, o que é
difícil aceitar num mundo que insiste em dizer que não devemos renunciar a nada. Além disso, eles precisam entender que,
queiram ou não, sempre fazem política, e que ser ético e justo é uma escolha. Essas questões nos mostram que precisamos
de um curso de assistente de jovens, ou coisa semelhante.
É claro que diferentes profissionais podem realizar essas funções, mas o ideal seria não termos de recorrer a um
batalhão de profissionais para conseguirmos ajuda em questões que pertencem ao mesmo campo. Que venham, portanto,
as universidades com novos cursos!
ROSELY SAYÃO é psicóloga e consultora em educação, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no
ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2014.
Dois séculos de argumentos (FREDERICO GARCIA)
VAMOS legalizar o ópio. É uma droga natural, extraída da papoula, flor do Afeganistão. Anestésico potente, é bom
para dores do câncer, unhas encravadas, pernas quebradas e outras mais. Tem poder relaxante, cura o "mal-estar" da
civilização.
Antes liberado em vários países, o ópio acabou banido devido a seus efeitos nefastos. Após sua introdução ilegal por
comerciantes ingleses em 1839, a China proibiu o comércio da droga que ameaçava a estabilidade social e financeira do
país, bem como a saúde da população. A medida resultou em guerra declarada pela Inglaterra. O discurso atual sobre a
maconha é semelhante ao que se empregava em defesa da legalização do ópio. Diz-se que a erva não causa dependência,
tem efeitos terapêuticos e sua liberação traria consequências sociais positivas, como reduzir o encarceramento de jovens
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das classes menos favorecidas. Idealiza-se que o óleo de maconha está na mira da indústria automobilística como fonte de
combustível barato. Ou seja, é uma panaceia: cura tudo, resolve mazelas sociais e ainda melhora a economia do país.
Será mesmo? A "legalização" beneficiaria a quem? Quais as consequências para os usuários? Conseguiríamos controlar
seu uso por crianças e adolescentes, ou esse dado também seria irrelevante, já que maconha não faz mal? A dependência
de qualquer droga decorre de múltiplos fatores biopsicossociais. Até o momento, não temos teste para identificar quem se
tornará dependente ou não. O que sabemos é que 30% dos usuários de maconha desenvolvem o vício e que alguns genes
aumentam em até sete vezes o risco de dependência. O princípio ativo da maconha, o THC, fica armazenado no tecido
gorduroso por até 28 dias e age no cérebro durante todo esse tempo. O efeito prolongado pode ter implicações graves, por
exemplo, na condução de veículos. Quanto mais THC no sangue, maior o tempo de resposta do cérebro. Esse argumento
fez a Inglaterra adotar uma política de tolerância zero à presença de THC no sangue de motoristas.
Mais alarmante é o potencial para desencadear doenças graves. Quadros psicóticos agudos, com delírios e alucinações,
são consequências comuns da intoxicação por drogas como a maconha. O que poucos sabem é que a maconha hoje
comercializada é geneticamente modificada para ter alta concentração de THC, o que acelera a dependência e potencializa
as alucinações. Mais grave ainda é o risco do desencadeamento de esquizofrenia em adolescentes com predisposição a essa
gravíssima doença mental crônica e incapacitante. Segundo estudo norueguês, 13% dos casos de esquizofrenia seriam
evitáveis se o uso regular de maconha não ocorresse. As consequências sociais são palpáveis. Um estudo neozelandês
demonstrou que, quanto mais cigarros de maconha uma pessoa fuma, menores são suas chances de completar o segundo
grau, ingressar na faculdade ou estar empregada aos 20 anos, diminuindo sua renda e sua satisfação com a vida.
A maconha reduz a capacidade cognitiva: prejudica a atenção, a memória e o raciocínio e dificulta o planejamento.
Dados mostram que pessoas que fizeram uso habitual de maconha dos 15 aos 30 anos apresentam, em média, cinco pontos
a menos de Q.I. em comparação aos que apenas a experimentaram. Procura-se confundir uso recreativo com uso de
substâncias extraídas da maconha que, purificadas e aplicadas em doses conhecidas, podem ter efeito medicamentoso,
desde que sob prescrição médica e manejo clínico, como acontece com qualquer outro medicamento.
É estranho que a discussão do "uso recreativo" da maconha seja prioritária. No Brasil, há 12 milhões de dependentes
de álcool e estamos nos tornando os maiores consumidores de cocaína do planeta. Será que outro entorpecente deve ter
seu uso banalizado ou passa da hora de o Brasil encarar com ponderação a herança que o abuso de drogas, lícitas e ilícitas,
deixará? Que a China do século 19 nos sirva de exemplo. Que a incapacidade de planejamento gerada pelo uso da maconha
não afete a política brasileira, como parece ter acontecido no Uruguai.
FREDERICO GARCIA, 35, é professor-coordenador do Centro de Referência em Drogas da Universidade Federal de Minas Gerais
e membro da Associação Mineira de Psiquiatria. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2014.
Meus sete meses no obscuro mundo das contas de hospital (CRISTIANE SEGATTO)
Como pagar uma dívida de R$ 5 milhões? O drama e a solidão das famílias falidas pela medicina privada
DESAFIOS profissionais intensos invadem a vida pessoal e deixam rastros pela casa: três sacolas de material de
pesquisa e bloquinhos de anotações no escritório, livros e revistas na sala, embalagens de remédios e produtos de uso
hospitalar sobre o armário da cozinha – o único lugar que restou. Nos últimos sete meses, segui os passos de famílias
arrasadas por um duplo infortúnio: uma doença grave e a morte financeira provocada pelas contas de hospital. Todas
tinham plano de saúde, mas não puderam contar com eles na hora em que precisaram de um tratamento de alto custo.
Caíram, sem paraquedas, no obscuro mundo dos custos exorbitantes da medicina privada.
Caí junto com elas. Cubro saúde há 19 anos. O tempo e a experiência não foram suficientes para me ensinar tudo o
que aprendi durante a produção dessa reportagem. Várias informações sobre os bastidores desse mercado doente me
surpreenderam. Espero que vocês também se surpreendam.
Foram dezenas de entrevistas com famílias, médicos e especialistas em gestão hospitalar e economia da saúde. O
esforço e o investimento de ÉPOCA são uma tentativa de lançar luzes sobre as distorções que prejudicam as famílias e
elevam os custos de saúde no país. O resultado completo dessa investigação está reunido em 20 páginas da edição
impressa desta semana.
Os convênios vendem uma segurança que nem sempre entregam. Diante das falhas do sistema público de saúde, ter
um plano privado tornou-se uma das maiores aspirações da população. Nos últimos cinco anos, 10 milhões de cidadãos
conquistaram a sonhada carteirinha. São hoje 49 milhões de almas (25% da população) a acalentar a ilusão de escapar das
filas e da limitação de recursos do SUS, graças ao plano de saúde privado.
Em muitos casos, como os das famílias entrevistadas, essa ilusão não resiste ao teste da primeira doença grave.
Quando o convênio se recusa a cobrir algum procedimento e o doente passa a ser considerado pelo hospital como um
paciente particular, a família fica à mercê de um sistema de preços confuso, criado num ambiente de transparência zero.
Durante ou depois da internação, o paciente ou seu responsável legal se veem atolados em cobranças. São contas
impagáveis. De onde uma família de classe média pode tirar dinheiro para pagar contas hospitalares de R$ 400 mil, R$ 1
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milhão, R$ 5 milhões? Processadas pelos hospitais por inadimplência, elas perdem os bens ou sofrem as consequências de
ser devedor no Brasil.
Quando se discute o aumento dos custos de saúde num país, dois responsáveis costumam ser apontados: a tecnologia
(recursos sofisticados custam caro) e o envelhecimento (viver mais requer mais cuidados e custa mais).
Tudo isso é verdade, mas há uma terceira causa de aumento de custos sobre o qual pouco se fala: a indefinição do
valor dos serviços de saúde. A ele me dediquei nessa reportagem. Qual é o valor adequado de um par de luvas ou de uma
seringa descartável? Por que um frasco de soro fisiológico custa num hospital o dobro do preço cobrado na farmácia da
esquina?
Há várias razões – quase todas passíveis de indignação. De acordo com as regras atuais do mercado privado de saúde,
a função dos hospitais é distorcida. Eles visam à doença – não à saúde. Quanto maior o uso de insumos banais como
esparadrapo e seringa, mais o hospital ganha. Ele não é remunerado pelos planos de saúde pela qualidade técnica, pela
segurança e por aquele que deveria ser o grande valor de uma instituição de saúde: diagnosticar, tratar e curar. Elas são
remuneradas pelos produtos que usam. Os materiais são hoje a principal fonte de receita dos hospitais privados.
Respondem por 47,9% do total das receitas. Planos de saúde e hospitais vivem às turras por causa desse sistema de
remuneração.
Enquanto essa é uma briga entre iguais (hospitais de um lado, planos de saúde de outro), os consumidores têm pouca
consciência sobre os danos que ela acarreta à sociedade. Quando o jogo de forças se torna desigual (hospital de um lado,
paciente de outro), as famílias ficam exauridas financeira e emocionalmente. Recebem contas astronômicas e não
encontram parâmetros para saber se estão pagando valores justos. Nem por materiais, nem por procedimentos.
Isso precisar acabar. Nos Estados Unidos, o governo criou dois sites para ajudar os cidadãos a comparar a qualidade e
os preços cobrados pelas instituições de saúde. Nas páginaswww.medicare.com e www.cms.gov, é possível acessar
indicadores de qualidade de 3,3 mil hospitais e comparar preços de 130 procedimentos. No Brasil, não há nada parecido. O
discurso da transparência é mais eloquente que a prática.
Esse trabalho me deu a clara noção de que qualquer cliente de plano de saúde pode, um dia, se ver na situação
dramática dessas famílias. Para reduzir o risco, o advogado Julius Conforti, especializado em direito da saúde, preparou uma
relação de cuidados que o consumidor deve ter ao escolher um plano de saúde:
· Busque informações sobre a qualidade dos serviços
Antes de contratar um convênio, pesquise a situação dele no site www.ans.gov.br, da Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS). Cada operadora oferece diferentes planos. Verifique se a empresa ou o plano desejado estão na lista
dos produtos com maiores índices de reclamações.
· Analise as vantagens e desvantagens existentes entre plano individual/familiar e plano coletivo por adesão
Os planos coletivos por adesão, que são aqueles contratados por intermédio de pessoas jurídicas de caráter profissional,
classista ou setorial, como conselhos, sindicatos e associações profissionais, tendem a ter valores de mensalidades menores
no início da contratação. Porém, como a ANS não determina o teto máximo dos reajustes anuais desse tipo de contrato, ao
longo dos anos, eles passam a ter valores superiores aos dos contratos individuais/familiares. Além disso, os contratos
coletivos podem ser rescindidos unilateralmente. O ideal é contratar um plano individual/familiar porque os reajustes anuais
dessa modalidade são regulados pela ANS e somente podem ser cancelados se o cliente se tornar inadimplente. O
problema, atualmente, é que poucas empresas de assistência médica privada vendem esse tipo de plano.
· Escolha um tipo de plano adequado às suas necessidades
Os planos de saúde podem ter apenas cobertura ambulatorial, apenas cobertura hospitalar ou abranger esses dois tipos. O
ideal é que o plano tenha duas coberturas. O consumidor deve escolher, também, o tipo de acomodação, que pode ser em
quarto particular ou enfermaria. A escolha pelo quarto individual, em geral, garante o acesso a um número maior de
hospitais credenciados. As mulheres que tenham a intenção de engravidar devem contratar um plano que possua também
cobertura para obstetrícia.
· Área de abrangência do plano
Pensar na área de abrangência do plano de saúde é outro fator importante. Há planos de coberturas municipal, estadual e
nacional, entre outras possibilidades. Informe-se com antecedência sobre a rede credenciada de hospitais, clínicas,
laboratórios e profissionais de saúde que atenderão. O plano que garante atendimento nacional, embora custe mais, permite
o acesso a um número maior de prestadores de serviços.
· Rede Credenciada
Independentemente da abrangência geográfica do plano escolhido, é importante, antes da contratação, verificar se o
produto ao qual se pretende aderir possui os hospitais, laboratórios e profissionais que são do interesse do consumidor.
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Guardar eventuais panfletos publicitários que mencionem os prestadores de serviços que estarão disponíveis também é
bastante útil, caso existam descredenciamentos irregulares na vigência da relação contratual.
· Preenchimento da Declaração de Saúde
No momento da contratação, a operadora solicitará o preenchimento de uma declaração de saúde, formulário no qual o
consumidor deve informar as doenças ou lesões de que saiba ser portador naquele momento. Caso uma doença
preexistente não seja declarada, o plano de saúde poderá solicitar à ANS um julgamento para verificar se houve fraude (não
declaração de doença/lesão conhecida na hora da contratação). Nesses casos, o contrato pode ser cancelado.
· Fique atento aos prazos de carência
Os períodos máximos de carência são: 24 horas para urgência e emergência; 180 dias para internações, cirurgias e
procedimentos de alta complexidade e 300 dias para parto. A operadora pode exigir prazos menores, mas isso deve ser
garantido por escrito.
· Promessas feitas pelas empresas e corretores
É preciso, ainda, ficar atento a promessas feitas pelas operadoras de saúde e pelos corretores que agem como
intermediários na venda do plano. Para não ser enganado, é importante solicitar que todos os benefícios prometidos
constem do contrato e sejam previstos, por meio de aditivos contratuais.
Por causa dessa reportagem, fiquei ausente desta coluna durante algumas semanas. Peço desculpas. Espero que tenha sido
por uma boa causa. Se você respira, suspeito que esse assunto lhe interessa.
CRISTIANE SEGATTO é Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve
sobre medicina há 17 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo. Revista ÉPOCA, MaIO de
2014.
O mal-estar em torno de nós (LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA)
ESTOU há duas semanas fora do Brasil e, valendo-me desse pequeno distanciamento, eu me pergunto: qual é a
natureza do mal-estar atual? Não estamos atravessando um período que possa ser chamado de crise. Não há nada
ameaçante à nossa frente. Mas pesquisas vêm demonstrando que o nível de satisfação das pessoas vem baixando, que
estão quase todos pessimistas.
Qual o foco desse mal-estar? A economia? Serão as taxas baixas de crescimento que incomodam a todos? É possível. A
política? Talvez, tantas são as denúncias e as críticas aos políticos no governo federal e nos demais governos,
independentemente dos partidos a que se filiem. Mas os políticos não mudaram nos últimos anos; não se tornaram nem
melhores nem piores do que eram e, portanto, creio que o aumento da insatisfação com os políticos é mais um sintoma do
que uma causa do problema.
Para a direita liberal, o problema está nos quase 12 anos de governo do Partido dos Trabalhadores. Antes disso, nunca
o Brasil fora governado por um partido de esquerda. Mas os governos anteriores não foram melhores. Creio que o problema
é mais profundo e está relacionado com o esgotamento do Ciclo Democracia e Justiça Social, que desde a transição
democrática substituiu o Ciclo Nação e Desenvolvimento, que comandou a revolução nacional e industrial brasileira entre
1930 e o fim dos anos 1970.
Denomino assim os ciclos da relação sociedade-Estado que vêm presidindo o desenvolvimento econômico e o
desenvolvimento social brasileiros. No primeiro ciclo --o ciclo do nacional-desenvolvimentismo de Vargas e dos militares--, a
prioridade coube ao crescimento econômico. O Brasil cresceu a taxas extraordinárias e completou sua revolução capitalista,
mas a desigualdade cresceu. A alternativa ao nacional-desenvolvimentismo era o liberalismo dependente e moralista que
esteve fora do poder durante o período 1930-1980, exceto momentos pontuais, não obstante todos os golpes e tentativas
de golpe de Estado em que se envolveu.
A transição democrática (1977-1987) não foi comandada pelos liberais, mas pelos desenvolvimentistas na oposição,
agora desenvolvimentistas sociais, como atesta a Constituição de 1988. Durante o governo Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002), o liberalismo dependente teve mais força, mas não chegou a ser dominante. Houve um substancial aumento
do gasto social, e o governo resistiu à pressão americana para que participasse da Alca (Área de Livre Comércio das
Américas).
Terá o Ciclo Democracia e Justiça Social fracassado? Não, porque implantou a democracia e porque logrou a
diminuição da desigualdade. Houve grande aumento nos gastos com a educação fundamental - algo que jamais havia sido
feito antes no Brasil - e com a saúde, que se expressou no SUS --a universalização do sistema de saúde prevista na
Constituição de 1988. Houve também o Bolsa Família e o aumento real do salário mínimo, que contribuíram para a redução
das desigualdades.
Mas o custo dessa pequena diminuição da desigualdade foi tornar a classe média conservadora (como se viu pela
divisão política entre ricos e pobres) e o crescimento baixo, principalmente porque a taxa de câmbio se manteve depreciada
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desde 1991. Excluindo-se os anos 1980, que foram de estagnação econômica causada pelo endividamento externo, a taxa
de crescimento anual per capita entre 1931 e 1980 foi de 4% ao ano contra apenas 1,6% ao ano entre 1991 e 2013. Se
definíssemos desenvolvimentismo pelo crescimento, nem se poderia falar nisso, mas como houve uma tentativa de planejar
os investimentos na infraestrutura e uma política industrial ativa, a denominação desenvolvimentismo social é correta.
Creio que o baixo crescimento é um sinal de que o Ciclo Democracia e Justiça Social se esgotou, e talvez derive daí o
mal-estar brasileiro atual. Durante mais de 30 anos, a diminuição da desigualdade foi um projeto, mas não se imaginava
que o desenvolvimento econômico que a acompanharia fosse tão baixo. Hoje, falta aos brasileiros tanto projeto de
desenvolvimento quanto projeto de distribuição. Teremos eleições no final do ano, mas os candidatos não têm projetos. Na
verdade, nunca a sociedade brasileira foi tão dividida politicamente entre ricos e pobres, e falta à nação um projeto --sobra
o mal-estar.
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA, 79, é professor emérito de economia, teoria política e teoria social da Fundação
Getulio Vargas. Foi ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia
(governo FHC). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2014.
'Somos uns boçais' (PASQUALE CIPRO NETO)
SOU PROFESSOR desde 1975. Desde sempre, a base das minhas aulas reside em textos dos mais diferentes matizes,
da literatura clássica à moderna, da publicidade à nossa riquíssima música popular, do jornalismo aos fatos dos nossos
dialetos etc.
Ninguém consegue compreender um texto sem o domínio da variedade linguística em que ele foi escrito, mas esse
domínio não é suficiente. Sem compreender os diálogos que o texto que se lê estabelece com outros textos, com a história,
com o presente, com o mundo em que se está e com outros mundos, nada de nada de compreender o que se lê.
Pois bem. Os brasileiros estamos, dia após dia, em contato com sucessivos fatos que expõem a nossa tragédia, a nossa
miséria, o nosso atraso, a face crua da nossa barbárie, o nosso horror cotidiano, inexorável, boçal. Como dizia Caetano
Veloso na canção "Podres Poderes", de 1984, "Enquanto os homens exercem seus podres poderes / Motos e fuscas
avançam os sinais vermelhos / E perdem os verdes / Somos uns boçais".
Gente que leva tudo ao pé da letra talvez não consiga entender a relação "avançam os sinais vermelhos/perdem os
verdes", chave para a compreensão do excerto, finalizado com a triste e lamentavelmente verdadeira sentença: "Somos uns
boçais". Note que o verbo não está na terceira do plural ("São"), mas na primeira ("somos"). Poderia soar arrogante e
presunçoso excluir-se do bolo, da massa, da massa bruta, da bruta massa de que fazemos parte neste triste Brasil.
O Brasilzão de 2014 ainda avança os sinais vermelhos e perde os verdes, se é que chega a enxergá-los.
Num álbum posterior (o primoroso "Circulado", de 1991), o mesmo Caetano incluiu a também ainda atual canção "O Cu
do Mundo", em cuja letra se encontram estes versos: "O furto, o estupro, o rápido pútrido / O fétido sequestro / O adjetivo
esdrúxulo em U / Onde o cujo faz a curva / (O cu do mundo, esse nosso sítio) / O crime estúpido/ o criminoso só /
Substantivo, comum / O fruto espúrio reluz / À subsombra desumana dos linchadores / A mais triste nação / Na época mais
podre / Compõe-se de possíveis / Grupos de linchadores". Certamente Caetano não tirou do nada esses versos. Duas
décadas depois, nada mudou, nada muda neste país.
Fico me perguntando o que poderia ter mudado se, nesses anos todos, os professores tivéssemos trabalhado textos
como esses (não só nas aulas de português, mas também nas de história, geografia, filosofia etc.). Será que a sala de aula
ainda tem (se é que já teve) o poder de fazer a garotada mergulhar na reflexão sobre a nossa dura realidade? Será que o
nosso sistema educacional e os nossos professores têm mesmo condições de promover a tão propalada "revolução pela
educação" e, consequentemente, de pôr para aprender a pensar a nossa garotada toda?
E será que a nossa sociedade, violenta até mais não poder, tem condições de estabelecer a paz? Quando digo "violenta
até mais não poder", não me refiro aos criminosos "verdadeiros"; refiro-me ao cidadão brasileiro médio, aquele que trafega
no acostamento das rodovias, que ultrapassa na entrada da cabine de pedágio, que não respeita a faixa de pedestres, que
impõe a toda a vizinhança, em altíssimo volume, o som de bate-estaca etc., etc., etc. Isso tudo não é característica de uma
sociedade violentíssima e boçal, caro leitor?
Lamentavelmente, a arte quase sempre tem razão quando escancara a realidade. Os velhos versos de Caetano são
apenas uma pequena amostra do que se pode aprender, apreender, compreender e depreender da leitura e da audição do
que não é lixo. Aliás, chega de lixo! É isso.
PASQUALE CIPRO NETO é Professor de português desde 1975 e também colunista semanal desta publicação. É o idealizador e
apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa, transmitido pela Rádio Cultura (São Paulo) AM e pela TV Cultura, e do
programa Letra e Música, transmitido pela Rádio Cultura AM. E-mail: [email protected]. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio
de 2014.
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Amor à venda (CONTARDO CALLIGARIS)
"AMANTE a Domicílio", de John Turturro, é um filme, como se diz, "delicioso". Nos Estados Unidos, uma série de
artigos celebraram a "descoberta" de que existiria um "lado bom" da prostituição.
Em várias entrevistas, Turturro (que escreve, dirige e atua junto com Woody Allen, Sharon Stone, Vanessa Paradis e
Sofia Vergara, todos notáveis) levou a conversa por esse lado: "Há coisas positivas no que fazem os trabalhadores do sexo".
Por exemplo, Avigal, oprimida e entristecida pela viuvez e por sua própria tradição religiosa, redescobre a "magia" do amor
graças a Fioravante, o gigolô. E é transando com ele que a dra. Parker se permite enfim mandar o retrato do marido à
merda.
A consagração dessa visão do filme veio com um artigo de Karley Sciortino no "Guardian". Karley Sciortino escreve
sobre sexo para "Vice" e para "Vogue", além de manter um (ótimo) blog, "Slutever" (sempreputa). Sciortino recorreu a
Camille Paglia para lembrar que "moralismo e ignorância" são responsáveis por nossos estereótipos sinistros da prostituição
e confirmar que Turturro nos mostrou o que há de positivo nela. No Brasil, estranha-se menos que a prostituição possa ter
algum lado "bom", mesmo que seja pela ideia machista e idiota de que ela serviria para a iniciação dos garotos (que, aliás,
não precisam mais disso há tempos).
Mas, nos EUA, a coisa é diferente: com a exceção de Nevada, prostituir-se e contratar os serviços de uma ou de um
prostituto são condutas punidas por prisão e multa. Isso, sem falar no que acontece com quem "promove a prostituição" (o
que vai desde ser cafetão até alugar um apê a quem exerça a profissão). Enfim, em 2007, Eliot Spitzer se tornou
governador do Estado de Nova York por ter sido um promotor severo contra as prostitutas e, em 2008, ele perdeu o
governo por ter se relacionado, justamente, com prostitutas.
De fato, imaginar que a prostituição seja proibida em Nova York é uma piada. Mas a legislação reflete pensamentos
comuns. Numa pesquisa-brincadeira de 2008, em Chicago, 200 clientes aceitaram falar de por que frequentavam
prostitutas: 83% declararam que eles eram viciados e 40% afirmaram que só procuravam prostitutas quando estavam
bêbados. A maioria acreditava que as prostitutas exercem sua profissão porque foram abusadas na infância. Em suma,
clientes e prostitutas (ou prostitutos), todos doentes! Não vale acusar o proverbial puritanismo dos EUA. Na própria França,
ainda este ano, tem chances de ser aprovada uma lei que ("para acabar com a prostituição" - hello?) vai criminalizar o
cliente. Enfim, constata-se que existe um tabu sobre o sexo pago.
Uma hipótese, para explicá-lo, é o seguinte círculo vicioso: 1) recusamos a ideia de que exista uma fantasia sexual que
envolve a troca de dinheiro, 2) concluímos que, portanto, a prostituição só acontece por necessidade absoluta de quem se
prostitui, 3) queremos abolir a prostituição (de fato ou mentalmente) porque não queremos que existam diferenças
econômicas que possam induzir alguém a vender sua intimidade.
O problema é o pressuposto: por que recusaríamos a ideia de que existam fantasias sexuais que envolvem a troca de
dinheiro? Talvez por elas serem quase sempre fantasias de dominação, e muitos que gozam sonhando com a distribuição do
poder preferem não saber exatamente do que eles estão gozando. Em outras palavras, o dinheiro organiza fantasias
eróticas, mas ele é presente demais na nossa vida social (inclusive nas relações de casal, entre parentes, amigos etc.) para
que a gente se permita reconhecer esse efeito de sua circulação.
Nota: não é necessariamente quem paga que gosta de dominar. Certo, há os que curtem comprar amantes ou
mulheres ou maridos. Mas também há os que pedem para ser explorados e, nas salas de bate-papo, se apresentam assim:
acabe com a minha vida!, quero ser chantageado! Achamos "Amante a Domicílio" "delicioso" porque ele confirma nossa
crença (esperança?) de que a troca de dinheiro nas relações seja indiferente (no filme, apaixonamentos, renúncias,
generosidades e pequenezas, tudo acontece como se ninguém estivesse pagando ninguém).
Será, então, que Turturro nos propõe uma ilusão? Talvez. Mas é a mesma ilusão na qual vivemos: nas nossas relações
de cada dia, sempre tentamos esquecer o "erotismo" silencioso das trocas financeiras.
CONTARDO CALLIGARIS, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New
School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade
e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2014.
O avanço da ciência brasileira (ROGÉRIO MENEGHINI)
O BRASIL tem tido uma posição sofrível nos recentes rankings mundiais de universidades. Quando indagados, os
gestores das classificações apontam como principal causa a fraca interação internacional de nossos cientistas. Embora
existam outros fatores, este é apontando há tempos e que agora o governo procura atacar com o programa Ciência sem
Fronteiras (CSF), sob a alçada do CNPq e Capes, órgãos do Ministério de Ciência e Tecnologia e Ministério da Educação,
respectivamente.
O programa prevê 101 mil bolsas de estudos no exterior no período de 2012-2015. Até fevereiro de 2014, haviam sido
concedidas 49.067 bolsas. Entre as várias categorias de bolsas, a grande maioria, 81%, é do tipo "sanduíche graduação",
em que alunos são selecionados para permanecerem de 12 a 18 meses em universidades estrangeiras. Durante a
permanência, eles devem cumprir disciplinas de graduação relacionadas com seus cursos no Brasil e ganhar domínio de uma
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segunda língua. Segundo dados da Unesco, em 2011 o total de alunos de graduação no exterior era de 3,8 milhões, e o
Brasil alcançava apenas 0,8% deste total. Com o CSF/graduação, esse valor aumentará significativamente. Ainda assim, o
privilégio de obter uma bolsa caberá a uma proporção muito baixa do alunato brasileiro de graduação. Porém, é
incontestável que os contemplados constituem uma semente importante para uma mudança cultural e profissional, pela
aquisição de uma visão mais cosmopolita, significativa para um país geograficamente isolado das nações mais avançadas.
Porém, é incorreta a ideia de que essas bolsas de graduação são um passo importante para a internacionalização de
nossa ciência. Em primeiro lugar, é altamente improvável que, frente aos vários desafios a serem enfrentados pelos jovens,
como aprendizagem de uma nova língua e de novas disciplinas, haja tempo para uma iniciação científica, que consiste de
um trabalho científico efetuado sob a direção de um docente da instituição. Talvez por isso ela não seja exigida pelo
CSF/graduação. Em segundo lugar, não há uma razão especial para se esperar que esses bolsistas tenham interesse
superior aos dos demais concluintes da graduação em se tornar cientistas, algo em torno de 1%. Portanto, não se trata de
um caminho para internacionalizar a ciência brasileira. Não é claro por que o programa ficou da alçada do CNPq e Capes,
duas instituições com técnicos e infraestrutura voltados para o progresso da ciência brasileira.
Há vários estudos mostrando que os programas de doutorado e pós-doutorado no exterior são, estes sim, de
extraordinária importância para o avanço de nossa ciência. Em um recente levantamento de dados verificamos que, entre os
241 pesquisadores brasileiros mais destacados em biologia, química e física, segundo a Plataforma Lattes do CNPq, 213
fizeram doutorado ou pós-doutorado no exterior. Certamente, esses programas deveriam ser contemplados prioritariamente
quando se visa uma maior internacionalização da ciência brasileira. Todavia, tal iniciativa não deveria prejudicar o
CSF/graduação, cuja supervisão deveria caber ao Ministério da Educação.
ROGERIO MENEGHINI, 73, é professor titular aposentado de bioquímica da Universidade de São Paulo e diretor científico do
programa SciELO de revistas científicas brasileiras. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2014.
Linchamentos (LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO)
EM 1879, em Itu, multidão enfurecida arranca Nazário da prisão, "arrasta-o pelas ruas e lincha-o sem hesitação e
piedade", conta o historiador Xavier da Veiga no final do século 19. O escravo matara a machadadas um ex-deputado, duas
filhas e mais duas pessoas que com ele moravam.
O verbo "linchar", proveniente da língua inglesa (lei de Lynch, de origem controvertida, mas relacionada a execuções
sumárias nos Estados Unidos da América), já fazia parte de nosso vocabulário. A biografia autorizada de Lula, "O Filho do
Brasil", revela que, nos anos 60, o jovem sindicalista presencia o linchamento de alguém que alvejara um grevista: "Eu
achava que o pessoal estava fazendo justiça". Esta semana, no Guarujá, balneário paulista com alto índice de criminalidade,
um episódio estranho, que mistura boato, redes sociais e suposto ritual de magia negra, culmina com espancamento e
morte de mulher inocente.
Uma onda de linchamentos também afeta a Argentina. A presidente Cristina Kirchner chegou a se pronunciar no
começo de abril, depois de dez casos em dez dias, pondo a culpa em "políticos mentirosos e sem escrúpulos". O Núcleo de
Estudos da Violência da USP contabiliza 1.179 ocorrências no Brasil entre 1980 e 2006, com mortes, ferimentos, fugas e
intervenções policiais que evitaram o pior. O sociólogo José de Souza Martins tem ensaios primorosos sobre o tema.
Documentou mais de 2 mil casos, e, em entrevista concedida em 2008, estimava que, em 50 anos, cerca de 500 mil
brasileiros participaram de tentativas ou barbáries consumadas. Fala em três a quatro linchamentos por semana. Aponta as
periferias de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador como cenários principais.
Por que lincham? Se nos EUA - onde a prática foi extirpada depois de uma história dramática de acontecimentos e de
política de Estado desenvolvida para o problema - as questões da supremacia racial e da moral puritana estavam em pauta,
no Brasil o linchamento tem caráter essencialmente punitivo. É voltado contra pessoas envolvidas em um delito, mais ou
menos grave, seguido de "julgamento" instantâneo, informal e popular. É importante não confundir linchadores com
justiceiros, linchamento (espontâneo) com chacina (premeditada). A falência do Estado e sua incapacidade de promover,
com eficácia, a expropriação da vingança privada podem até aparecer como ingredientes em determinadas ocasiões, mas
não explicam o fenômeno.
O linchamento é reação súbita, anônima, eufórica, irracional, desorganizada e ritualística de gente que se sente
ameaçada. A vontade coletiva se impõe à vontade individual. Sua raiz psicológica lembra, de certa maneira, a do genocídio.
A turba identifica um inimigo intrinsecamente mau, conforme o imaginário, e comete atrocidades infinitas. Martins cita a
precariedade da construção do nosso ambiente urbano, de uma "população dividida entre a desmoralização completa e a
desesperada necessidade de afirmação de valores mais tradicionais da família e da vizinhança". As cidades recebem, mas
não acolhem. O caso do Guarujá mostra que a internet potencializa a reação histérica de massas. A repulsa eventual e a
punição de um ou outro envolvido não são capazes de conter a epidemia.
[email protected]. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2014.
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Macacos, bananas e privadas na cabeça
(MALU FONTES)
NA SEMANA em que a banana entrou na moda pela porta dos fundos, a do preconceito, o Brasil e parte do mundo
fizeram uma súbita descoberta: #somostodosmacacos. Foi um #deusnosacuda no universo paralelo das hashtags e dos
trendtopics. A turma dos hypes uniu forças e posts com a dos modernetes, que, por sua vez, passou, num clicar de teclas, a
compartilhar toda a pauta do movimento negro. Tudo ia muito bem até que, estimulado pela presença de espírito de Daniel
Alves no campo espanhol, ao degustar a banana-fruta atirada por um banana-gente preconceituoso, Luciano Huck com sua
máquina de fazer dinheiro entrou em outro campo, o da web, para ganhar dinheiro com o episódio.
A metade da laranja do casal louro mais famoso e rico do show bizz tupiniquim acionou seu lado aperfeiçoadíssimo de
mascate e camelô da indústria do bem e, em segundos, sua caixa registradora já tilintava com as vendas de uma camiseta
logomarcada com #somostodosmacacos. Ao preço módico de 70 reais, diga-se. Ou umas tantas parcelas constrangedoras
de 11 reais e alguns centavos. Mas, uma vez digerida a banana de Daniel, o bom senso começou a dar o ar da graça aqui e
ali. Os ânimos da macacada de primeira hora começaram a arrefecer e começaram os murmúrios de que a banda não
deveria ser tocada bem assim. Do ponto de vista genético é mais do que razoável e sensato lembrarmo-nos todinhos da
nossa herança símia, mas, por outro lado, houve quem lembrasse que repetir o coro dos preconceituosos de que ser
macaco é normal e legal pode, sim, reforçar os estereótipos.
Assim, o disco foi mudando de letra e começou a dar lugar a um tímido #somostodoshumanos. Sim, pode-se dizer que
foi a fome de marketing e de dinheiro de Neymar e Huck que começou a amarelar o orgulho de ser macaco. Umas tecladas
e pronto: descobriu-se que o mantra que virou hashtag e trendtopic, bem como uma campanha publicitária mais ampla com
esse mote, havia sido encomendada por Neymar e já estava prontinha da silva antes mesmo de Daniel Alves comer a
banana. Esse, sim, até que se prove o contrário, autor de um gesto espontâneo.
Sim, claro, até aí celebridades do primeiro ao quinto escalão, passando por aquelas que há muito já habitam o subsolo
da decadência e do esquecimento público, acorreram todas às suas redes sociais em poses de engolidores de bananas.
Enquanto isso, a turba sem fama, mas com algum senso crítico, começou logo a perceber que assumir a condição de
macaco estava mais para assumir-se como banana. E, na falta de alguém melhor para bater, desceu o verbo em Huck. A
enxurrada de críticas foi tão pesada que o bom rapaz do narigão logo mexeu os pauzinhos para, como sempre, ficar bem na
fita: anunciou que não embolsaria um centavos da camiseta dos macacos. Doaria tostão por tostão a entidades do bem.
Nem por isso parou de apanhar. Assim, com alguma perversão, e aproveitando para atirar uma casquinha de banana podre
na Globo, o Fantástico da Record, que atende pelo nome de Domingo Espetacular, anunciou em tom solene que o marido
de Angélica entregou os pontos: desistiu de vender, a esta altura, a maldita camisa símia.
Diante desse barulho todo, os compradores certamente se sentirão meio bananas usando a camisa por aí, pois comer a
fruta permanece uma boa ideia, mas autocharmar-se de macaco já não tá soando tão bem na fita. E, aqui entre nós, é fácil
faturar com a relação macacos versus bananas. Em tempos de Copa quero ver é neguinho vender graça usando outros
bichos que atiram privadas na cabeça de torcedores, matando-os, como aconteceu na última sexta-feira no estádio do
Arruda, em Recife.
MALU FONTES é Doutora em Cultura pela UFBA, jornalista e professora de Jornalismo da mesma Universidade. Jornal
CORREIO, Maio de 2014.
O Brasil e a Copa (ABILIO DINIZ)
SEMPRE declarei meu amor pelo Brasil. Trabalho para ajudar a melhorar este país, gerando empregos, dando aulas,
apoiando iniciativas nas áreas de educação e esporte e investindo em empresas que possam contribuir para o seu
crescimento.
Como milhões de brasileiros, eu tenho o futebol como paixão. E não acho que protestando contra a Copa diante dos
olhos do mundo ganharemos alguma coisa, pelo contrário. Devemos aproveitar a atenção mundial para mostrar a
grandiosidade e as oportunidades do Brasil, não os nossos problemas. Estes, resolvemos nós. A quase um mês da Copa do
Mundo, vejo a bola rolando quadrada no país do futebol. A festa que se previa deu lugar à tensão e ao ceticismo. Pesquisa
Datafolha aponta que hoje mais brasileiros rejeitam a Copa do que a apoiam. É possível que saia mais gente às ruas do país
para protestar contra o torneio do que para celebrá-lo.
A intenção deste artigo não é desestimular ninguém a protestar. São muito justas as reivindicações por investimentos
em educação, saúde, moradia, segurança e transportes. Com a nossa pesada carga de tributos, o Estado brasileiro deve,
urgentemente, serviços mais eficientes e mais ética na gestão pública. Ter uma população mais engajada, exigindo serviços
e gestão com a qualidade da nossa seleção e dos novos estádios, é saudável e legítimo. Mas nós não podemos esquecer
que a Copa do Mundo é uma das melhores oportunidades de projeção do país. Se a usarmos de forma eficaz na promoção
da marca Brasil, ganharemos muito. E quanto mais ganharmos com a promoção global do país, menos a Copa nos terá
custado. Num mundo cada vez mais globalizado, a imagem ou marca de uma nação pode ser mais importante do que o que
ele produz e vende.
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O Brasil não é só um país em construção, mas uma marca em construção. Uma marca que reflete tudo o que somos:
um gigante em paz com os vizinhos, um país com enormes recursos humanos e materiais, uma das maiores democracias do
mundo, uma economia de mercado de cerca de 200 milhões de consumidores, imprensa livre, Justiça independente,
instituições sólidas. Quantos países têm essas credenciais? O interesse das grandes empresas e dos grandes empresários
estrangeiros pelo Brasil é enorme, vejo quando viajo para o exterior para promover nossos produtos e o nosso mercado. E
não são apenas os empresários. Existem interesse e simpatia generalizados por um país de povo tão criativo, alegre e
empreendedor.
Durante a Copa do Mundo, um terço do planeta estará grudado nas telinhas para ver os jogos e, por tabela, o país que
os sediará. Não tem cartão de crédito nem emissão de títulos da dívida pública que paguem essa massiva publicidade
global. Precisamos aproveitá-la ao máximo. O Brasil ainda é pequeno em comércio internacional e atração de turistas.
Atrairemos muito mais recursos realizando uma Copa ordeira, que revele um país dinâmico, alegre e capaz de se organizar.
Isto trará frutos para todos os brasileiros. Também acho que foram cometidos equívocos. Não precisávamos de tantas sedes
e estádios tão caros em cidades sem torneios de futebol expressivo. As obras de mobilidade urbana poderiam ter sido
entregues a tempo. Precisamos tirar todas as lições desses fatos lamentáveis.
Mas a bola, afinal, vai rolar. O Brasil, maior seleção da história, sediará uma Copa já especial pela presença de todas as
grandes seleções e seus craques fabulosos. Que honra receber e, torçamos, derrotar Messi, Cristiano Ronaldo, Balotelli, Özil
e Iniesta. O Brasil é muito maior que as dificuldades que atravessamos. Está na hora de mostrar o nosso amor por este país
- de começar a Copa cantando "sou brasileiro, com muito orgulho" e encerrá-la com "we are the champions".
ABILIO DINIZ é presidente do Conselho de Administração da companhia de alimentos BRF. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO,
Maio de 2014.
O velho conflito de gerações (MARIA IRENE MALUF)
Muito se fala sobre as perdas envolvidas no processo de
amadurecimento. Contudo, este processo traz, também,
muitos ganhos. Um deles é quando nos tornamos avós,
como mostra a carta a seguir
OS CONFLITOS gerados pelas diferenças de objetivos de
vida entre as gerações nunca foram tão marcantes como nos
dias atuais. Jovens avós, filhos e netos parecem de um lado
nascidos na mesma década: possuem interesses culturais e
sociais similares, assim como seu gosto por moda, passeios,
música, viagem, esportes é bastante próximo. De outro lado,
por seus objetivos essenciais de vida, são muito distintos,
parecem por vezes nascidos em séculos diferentes!
A geração dos anos quarenta e cinquenta, hoje tornada
avó, foi de crianças educadas dentro de princípios chamados
tradicionais, nos quais a figura paterna era extremamente
respeitada, os papéis eram bem definidos, a autoridade tendia
ao autoritarismo, a obediência não era discutida, posta em
dúvida e, provavelmente, sua educação pouco se distinguia
daquela recebida por seus pais. Tratava-se, antes de imitar, de
seguir modelos, sem desejo ou necessidade de arriscar
mudanças.
A linguagem, as roupas, os gostos entre as pessoas da
mesma geração eram similares, mas até por qualquer desses
itens se podia saber quem era o pai e o filho, claramente.
Houve o começo do uso da informática para fins comerciais,
embora ainda não de forma massificada, e teve início a grande
revolução comportamental, como o surgimento do feminismo e
os movimentos civis em favor dos negros e homossexuais.
Esses acontecimentos mudaram gradativamente o pensamento,
o comportamento das pessoas, a maneira de pensar e agir.
A geração dos anos setenta cresceu em uma fase de
transformações marcantes, com muitas mudanças na família,
na sociedade, no mundo: a ciência começou a sair em ritmo
acelerado dos centros de pesquisas, das universidades para o
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mundo, para o cotidiano, alterando, definitivamente, os meios de comunicação e as relações entre as pessoas e as
gerações. Evidentemente, os modelos educacionais vivenciados já não eram os mesmos, porque as necessidades do
momento já não eram as mesmas. O tempo passou, a sociedade que tinha o objetivo de criar um cidadão ―obediente‖
também foi vencida pelo anseio de educar pessoas responsáveis, autônomas em circunstâncias novas, sem padrões
anteriores a seguir.
A liberdade de pensamento passou a ser uma exigência dos jovens, que começaram a se tornar senhores de sua vida,
quebrando normas tradicionalmente aceitas. Experimentaram, na juventude, muitos caminhos, e amadureceram de modo
diferente de seus familiares.
CRIANÇAS SÃO, POR NATUREZA, ADMIRADORAS DE SEUS PAIS E VERDADEIROS “DISCÍPULOS” NATURAIS
DESTES, E DESPERTAR UMA AMOROSA ADMIRAÇÃO DE SEUS FILHOS SE TORNA UMA RESPONSABILIDADE MUITO
PESADA PARA QUEM NÃO ESTÁ PREPARADO PARA ISSO
Ao se tornarem eles pais, não tendo um modelo educativo estabelecido e vivendo um momento extremamente
dinâmico da sociedade, naturalmente, transformaram-se nos primeiros pais que têm – justificadamente – maior dificuldade
em estabelecer limites entre eles e seus filhos: muitas vezes confundem os papéis, delegam responsabilidades, acabam por
parecer irmãos e irmãs dos filhos, que acabam por se tornar órfãos de pais vivos. Com a desculpa ilusória de serem amigos
dos filhos, deixam-nos sem pais...
Acontece que crianças são, por natureza, admiradoras de seus pais e verdadeiros ―discípulos‖ naturais destes, e
despertar uma amorosa admiração dos filhos se torna uma responsabilidade muito pesada para quem não está preparado
para isso. E admiração se cria na observação, no dia a dia, de comportamentos coerentes e serenos, que transmitem
segurança, geram ordem e disciplina, elementos, estes, sem os quais, obviamente, não se estruturam relações equilibradas,
personalidades estruturadas, pessoas responsáveis ou autocontroladas.
Nunca se ouviu falar tanto como na atualidade em problemas disciplinares e a razão, provavelmente, está – na maioria
dos casos –, justamente, na questão do autocontrole e da responsabilidade, que deixam de ser ensinados e cobrados das
crianças, seja por excesso de zelo, de superproteção familiar ou por negligência, três terríveis violências contra a saúde
mental infantil.
A disciplina verdadeira e duradoura é criada por uma identificação contínua e profunda com adultos, e é responsável
pelo estabelecimento do autocontrole. Quando tal processo é supérfluo, as crianças desenvolvem um autocontrole frágil e,
assim, sempre precisarão de alguém que as vigie, já que não sentirão a necessidade e nem a possibilidade de se controlar e
agir certo em qualquer situação onde não sejam cuidadas.
O castigo entra nesse ponto, onde se exige a obediência e não o autocontrole: a punição acaba por tornar a criança
menos cooperativa, o adulto perde a paciência, o autorrespeito e o respeito pela criança, e parte para a agressão física ou
verbal, no desejo de reprimir o comportamento infantil.
O castigo, físico ou verbal, não leva em conta a necessidade real de se dar a oportunidade à criança de agir bem,
repensar seus atos, palavras e comportamentos, de se sentir amada e respeitada ao longo de seu crescimento, e pior: não
ensina autocontrole, não desenvolve o desejo de copiar comportamentos admirados por elas mesmas.
Compreendermos a relação entre as gerações. Nosso papel e responsabilidade social e familiar na criação de nossos filhos
certamente farão, de todos nós, pais melhores, capazes de oferecer oportunidades reais de educar crianças e adultos
equilibrados, autocontrolados, responsáveis e mais felizes em um mundo cada vez mais dinâmico.
MARIA IRENE MALUF é especialista em Psicopedagogia, Educação Especial e Neuroaprendizagem. Foi presidente nacional da
Associação Brasileira de Psicopedagogia – ABPp (gestão 2005/07). É editora da revista Psicopedagogia da ABPp e autora de artigos
em publicações nacionais e internacionais. Coordena curso de especialização em Neuroaprendizagem. Revista PSIQUE, Maio de
2014.
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