Grupo de Trabalho III: Políticas de proteção de direitos de meninos, meninas e adolescentes na América Latina. Políticas Públicas de Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescentes: Análise das ações do Programa Escola que Protege no Município do Recife – PE Josenita Luiz da Silva – Doutora em Serviço Social – Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Professora Titular da Faculdade Estácio Recife; Coordenadora de Pesquisa no Núcleo de Pesquisa Social – NEPS Faculdade Estácio Recife. RESUMO Esta pesquisa analisa a estrutura e o modo como vêm sendo implementadas as ações de enfrentamento à violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes, no Programa Escola que Protege - EQP, no município do Recife. O EqP é um programa inserido no interior da política estatal, criado pelo Ministério da Educação em 2004, e fundamentado na defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes, com a finalidade de enfrentar e prevenir as múltiplas formas de violências cometidas contra estes sujeitos. O presente estudo é de natureza qualitativa. Procedemos à coleta de dados através de fontes: documentos; entrevistas e questionários aplicados aos profissionais que integram o programa. A pesquisa revelou que o programa EqP é uma ferramenta importante para o enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes, colocando em prática a defesa dos direitos desses sujeitos, tendo ocorrido mudanças positivas nas ações de identificação e notificação das violências e nas práticas pedagógicas dos/as Profissionais da Educação, no entanto, apresenta fragilidades referentes à articulação entre as instituições parceiras, limitando as ações de enfrentamento ao fenômeno da violência proposto pelo programa EqP. Concluímos que, tendo em vista a complexidade do fenômeno da violência doméstica/intrafamiliar, o seu enfrentamento não se esgota na institucionalização de leis e políticas, haja vista os limites dessas iniciativas no âmbito do Estado capitalista. A violência em debate é histórica, sobretudo, levando-se em consideração a cultura patriarcal e de gênero predominante no Brasil, é social e estrutural e, como tal, devem ser consideradas as condições objetivas e subjetivas dos sujeitos envolvidos. Nesse sentido, programas criados e implementados para operacionalizar a defesa dos direitos da criança e do adolescente assumem um papel de grande importância na sociedade. Contudo, a nossa pesquisa aponta haver um distanciamento entre o que se propõem a política de garantia de direitos de crianças e adolescentes e o que é verdadeiramente efetivado. Políticas Públicas de Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescentes: Análise das ações do Programa Escola que Protege no Município do Recife - PE. Josenita Luiz da Silva Introdução Hoje, no Brasil, assim como em outras partes do mundo, em diferentes culturas e classes sociais, independentes de sexo ou etnia, crianças e adolescentes sofrem as mais variadas formas de violência em seu cotidiano, porém, os atos violentos contra esses sujeitos acontecem, em sua maioria, no âmbito familiar e ainda, de acordo com o Centro Latino Americano de Estudos de Violência e Saúde (CLAVES), constituindo hoje a primeira causa de morte na faixa etária de 5 a 19 anos e a segunda causa de morte entre as crianças de 1 a 4 anos (PIRES, 2005). Essa realidade foi o que nos motivou em realizar o presente estudo, visto ser uma contradição a despeito dos direitos coletivos conquistados no Brasil e reconhecidos pelo Estado a partir da década de 1980, sendo determinante para a construção dos direitos das crianças e dos adolescentes através de leis e estatuto que fundamentam a garantia dos direitos. A efetivação dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil ocorreu com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, pela primeira vez, na história do país, o segmento populacional composto por crianças e adolescentes aparece como prioridade no que concerne à garantia de proteção social por parte do Estado. Esse estatuto enfatiza o Sistema de Garantia dos Direitos de Crianças e Adolescentes/SGD, sistema esse que precisa ter suas determinações recuperadas a fim de garantir a proteção integral desses sujeitos. Porém, passadas duas décadas de caminhada do ECA, ainda há muito o que fazer no sentido de romper o ciclo de violações de direitos destes sujeitos. Essa realidade contraditória é um dos grandes desafios na implementação e consolidação de políticas públicas que garantam os direitos da criança e do adolescente de forma articulada, nas diversas instituições responsáveis por assegurar estes direitos, sobretudo, na família e na escola. São nestas instituições que estes sujeitos permanecem por longos períodos, convivendo com familiares e profissionais da Educação. Esses sujeitos interferem diretamente na sua formação e são responsáveis legais por sua educação. É nesse contexto que, a partir de 2004, o Ministério da Educação e Cultura – MEC, no Brasil, criou o Programa Escola que Protege – EqP que se caracteriza como uma política pública de enfrentamento às violências contra crianças e adolescentes no âmbito escolar, com o objetivo de capacitar profissionais da educação para atuar na defesa dos direitos de crianças e adolescentes em situações de violência, em uma perspectiva preventiva. Diante o exposto, o nosso estudo teve como objetivo principal, analisar a estrutura e o modo como vêm sendo implementadas as ações de enfrentamento à violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes no Programa EqP, no município do Recife. O esforço em realizar uma aproximação analítica ao programa encontra respaldo na necessidade de fortalecer e ampliar as iniciativas voltadas à defesa dos direitos da criança e do adolescente, sobretudo, nos dias atuais, quando o número de vítimas da violência infantil e adolescente cresce cada vez mais. A transgressão dos direitos de crianças e adolescentes apresenta-se em forma de violências praticadas desde os primeiros anos de vida, ocorrendo, sobretudo, no espaço familiar sendo camuflada pelo silêncio das vítimas e das pessoas próximas, dificultando a identificação inicial, contribuindo para o crescente aumento dessa prática. Porém, quando a criança freqüenta outras instituições, torna-se possível a identificação das violências por ela sofrida, em unidades de saúde e, sobretudo no cotidiano escolar. Assim, a escola se configura um espaço privilegiado para a construção da cidadania, sendo capaz de garantir o respeito aos direitos humanos das crianças e dos adolescentes no sentido de evitar manifestações da violência, favorecendo a identificação e a prevenção das múltiplas situações de violências sofridas por elas, uma tarefa que somente poderá ser cumprida pela mobilização de uma rede de proteção integral em que a escola destaca-se como possuidora de responsabilidade social ampliada. No direcionamento desse estudo, e para atender ao objetivo principal, foram estabelecidos os seguintes objetivos específicos: identificar como são desenvolvidas as ações de enfrentamento à violência doméstica contra crianças e adolescentes, na direção da garantia dos direitos destes sujeitos; descrever a forma como vem sendo desenvolvida a articulação da rede de atendimento e integração que compõe a implementação das ações do programa EqP; compreender qual a direção tomada pelo programa na implementação de suas ações e as contribuições do mesmo, na direção da garantia de direitos de crianças e adolescentes vitimadas pela violência doméstica/intrafamiliar. Diante da complexidade e das várias dimensões que envolvem o problema estudado e, sendo este permeado por contradições e conflitos, utilizamos como método de análise materialista histórico dialético, o qual considera o processo da realidade como uma teoria aberta. O estudo possui caráter qualitativo esse que incorpora os significados e a intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais (RICHARDSON, 1999). No estudo qualitativo, a apreensão da realidade, em sua perspectiva de totalidade, visa, em última instância, atingir o conhecimento de um fenômeno histórico que é significativo em sua singularidade, no entanto não se faz em oposição ao quantitativo, o debate metodológico no campo das Ciências Sociais aponta para uma possível e desejável complementaridade entre as duas abordagens (HAGUETTE, 1987), nesse sentido, desenvolvemos nossa análise, conferindo, confrontando e analisando os dados quantitativos e qualitativos para auxiliar, de forma complementar e interativa na descrição, análise e compreensão das ações do programa em questão. Realizamos inicialmente uma pesquisa documental em publicações contidas no site do MEC – detivemo-nos aos relatórios, fichas e documentos oficiais a fim de definirmos o recorte do formato do programa para estudo, em seguida tomamos como unidade de análise da pesquisa o Programa Escola que Protege no Município do Recife, Estado de PE - Brasil. Nossa análise deteve-se a investigar como os eixos propostos como base pelo Programa EqP, vêm sendo efetivados na defesa dos direitos da criança e adolescente: O Eixo 1 - Capacitação de educadores tem como objetivo despertar a atenção dos profissionais da educação para perceberem e tomarem como responsabilidade o encaminhamento à rede de proteção integral nos casos de vítimas de violência. Buscamos identificar se de fato as capacitações motivaram e possibilitaram os profissionais da educação na identificação e encaminhamento dos casos de vítimas de violência, investigamos qual a importância desse envolvimento da escola no processo de combate a esse fenômeno e como vem ocorrendo a articulação entre a escola e as instituições envolvidas na rede de proteção integral. Para tal, aplicamos 30 questionários, com perguntas abertas e fechadas, aos profissionais da educação que haviam realizado as capacitações do programa entre os anos de 2004 e 2012 em 8 escolas que compõem as 6 (seis) RPA’s na cidade do Recife e, nessas, O Eixo 2 - Atendimento às crianças e adolescentes em situação de violência e o Eixo 3 - Escola para Pais - EpP foram os alvos para compreendermos qual a direção tomada pelo programa na implementação de suas ações e quais contribuições no que se refere à garantia de direitos de crianças e adolescentes vitimadas pela violência doméstica/intrafamiliar, para alcançarmos esse objetivo realizamos entrevistas semi-estruturadas com os profissionais que atuam nos respectivos eixos 2 e 3. 1. O Programa Escola Que Protege no Contexto da Efetivação dos Direitos da Criança e do Adolescente no Município do Recife – PE. O Ministério da Educação - Brasil, reconhecendo a importância da escola no combate à violência contra crianças e adolescentes, por intermédio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), desenvolveu, em 2004, o Projeto Piloto Escola que Protege - EqP. O projeto destinou-se à capacitação de professores de escolas de Ensino Fundamental e Médio, para que atuassem na prevenção e intervenção nas situações de violência contra os alunos da rede (BRASIL/MEC/SECAD, 2006c); seguindo as diretrizes da doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente, pressupondo os princípios da integralidade e da intersetorialidade, preconizados na Política Nacional de Proteção aos Direitos da Criança e do Adolescente. Com a consolidação do projeto piloto, foi firmado um convênio - nº 014/2005 - em dezembro de 2005, entre o Ministério da Educação – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade e a Prefeitura Municipal do Recife. Sua cláusula primeira consiste em “apoiar o Projeto Escola que Protege – Recife/PE, combater à violência infanto-juvenil, física, psicológica e ou sexual sofrida por seus educandos, através do atendimento especializado nas áreas de Psicologia e Serviços Sociais para crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violência, e formação dos profissionais da Educação (...)”.1 1 Cláusula primeira – do objeto. Convênio Nº 014/2005. No ano de 2006, o programa EqP, implementado a partir do convênio acima citado, sob a gestão da Secretaria de Educação Municipal do Recife, Esporte e Lazer, capacitou professores de 213 escolas municipais, regulares, que compõem os bairros das RPAs 1 e 6 da rede pública, na modalidade presencial. O critério de seleção das duas RPAs obedeceu à prioridade de intervenção em função dos altos índices de violências contra crianças e adolescentes na época. Entre os anos de 2007 e 2012, no município do Recife, as capacitações não obedeceram a uma sistematização de períodos e prazos. O Eixo 1 - Capacitação de educadores do Programa EqP tem o objetivo de capacitar os profissionais para identificar e encaminhar os casos de violências contra crianças e adolescentes detectados no contexto escolar, para tal, as capacitações discutiram as informações acerca das múltiplas formas de violências cometidas contra crianças e adolescentes, sobre o ECA e sobre a rede de proteção dos direitos de crianças e adolescentes.2 Os documentos referentes aos resultados das atividades do Programa EqP no Recife, entre 2004 e 2011, apresentam falta de sistematização. No entanto, os registros dos relatórios do EqP indicam que desde a experiência-piloto no Recife, 2004–2005, até o ano de 2008, foram capacitados 572 professores nas modalidades à distância e presencial, atingindo os professores que atuam em todas as seis RPAs do município do Recife. Porém, até o ano de 2012, as capacitações não contemplaram a totalidade dos educadores. Sobre a importância da capacitação do Projeto EqP, na prática pedagógica dos/as Profissionais da Educação nas escolas do município do Recife, os dados indicam haver uma aprovação unânime à capacitação recebida. Observa-se que os conhecimentos adquiridos os instigaram a um sentimento de maior atenção para o problema da violência contra crianças e adolescentes no espaço escolar. Segundo os interlocutores, foi como um “despertar” para algo que existia, mas, ao mesmo tempo, era imperceptível no sentido de sua gravidade, a exemplo da fala a seguir: 2 A execução das capacitações foram realizadas por Instituições Públicas de Educação Superior e pelas Instituições da Rede Federal de Ensino Profissional e Tecnológico (com educação superior), desenvolvendo ações em suas unidades descentralizadas. As Secretarias Estaduais e Municipais se articulam com uma Instituição Federal de Educação Superior para a apresentação de projetos, a fim de liberar a participação dos profissionais de educação, além de auxiliar na organização dos cursos de capacitação. “As informações passadas pelo EqP, que antes eu desconhecia, me deu mais segurança para lidar com o problema, hoje sei como agir ao identificar uma criança vítima de violência na minha escola” (R1-1). Ao citarem os pontos positivos, chamam atenção para uma apreensão qualificada do conteúdo das capacitações, fundamentado no ECA e o apoio dado à escola pelo programa: “A riqueza das informações e aprofundamento sobre o ECA, um conteúdo muito bom” (R6-1). E, para além do entendimento sobre a importância de sua intervenção na situação de violência identificada, os profissionais compreendem que a sua atuação favorece a garantia dos direitos das crianças e adolescentes: “Realizo atividades com meus alunos para informar-lhe sobre os seus direitos” (R1-1). Ao questionarmos sobre identificação e encaminhamento dos casos, dos 21 (vinte e um) profissionais participantes da pesquisa, 15 (quinze) citaram ter suspeitado ou identificado, muitas vezes, a violência contra crianças e adolescentes (alunos/as); 4 (quatro) citaram poucas vezes; e, apenas 2 (dois) relataram não ter identificado, até o momento, uma criança ou adolescente no espaço escolar como vítima de violência. Esses dados refletem uma avaliação positiva do Programa EqP, uma vez que a maioria dos profissionais conseguiu colocar em prática os conhecimentos adquiridos na formação, agindo com segurança e percepção aguçada para identificar as diversas formas de violências contra crianças e adolescentes. Com relação ao tipo de violência suspeita ou identificada pelos profissionais da educação, predominou a negligência - citada 18 vezes seguida pela violência física - com 15 citações; psicológica - 9 vezes; violência sexual/abuso - 5 vezes; trabalho infantil - com 3 identificação; não sendo citada a violência sexual/exploração comercial. O predomínio na identificação da negligência e da violência física, respectivamente, trata-se da manifestação de violência mais fácil de ser identificada, sobressaem-se independente do medo e do silêncio das vítimas, nesse sentido, os professores são figuras importantes na identificação e denúncia dos casos. O que chama a atenção nos dados é a posição da violência física em segundo lugar, com pouca diferença entre os números da negligência, caracterizando a naturalização dos castigos físicos como ato de punição para ‘educar’ os filhos em nossa sociedade. Os dados indicam que, sendo os profissionais capacitados na direção do que preconiza o ECA, os mesmos compreendem que o ato da violência física contraria os direitos da criança e do adolescente - garantidos em lei. Sugere uma sensibilização de fato desses profissionais, diante do fenômeno da violência física. No tocante às formas como os profissionais suspeitaram ou identificaram as violências, num total de 19 citações, predominou a forma de percepção através da observação de alguma mudança no comportamento da criança/adolescente - 11 casos; seguido pelo relato da própria criança/adolescente - citada 6 vezes, e duas referências a relato de parentes ou vizinhos. Em relação às atitudes dos/as Profissionais da Educação, ao suspeitarem ou identificarem situações de violência contra criança e adolescente no contexto escolar, verificamos que nenhum Profissional se omitiu por medo de prejudicar a criança/adolescente; nem por medo de sofrer represálias do/a agressor/a. Concluise que estas possibilidades não paralisaram os/as Profissionais da Educação que afirmaram ter suspeitado e/ou identificado as situações de violências, estando em conformidade com o Art. 245, do ECA em que estão elencadas de forma clara o dever legal dos profissionais de saúde e educação em notificar à autoridade competente os casos de suspeita ou confirmação de violência, atribuindo-lhes consequências no caos de omissão.3 No que diz respeito aos aspectos negativos apontados pelos profissionais, predominaram a descontinuidade das capacitações e a dificuldade do programa em atender a demanda, a exemplo da seguinte fala: “Deveria acontecer mais capacitações diariamente, pelo menos a cada 6 meses, ainda existem muitos professores precisando se capacitar, pois a violência tem sido assustadora, a cada dia piora”( R1-1). Outro dado que chama atenção refere-se à forma como as escolas realizam os encaminhamentos dos casos de violência contra crianças e adolescentes e seus familiares. Da maioria dos casos identificados pelas escolas, 19 (dezenove) ao todo, 3 “Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança e adolescente: Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência”. www.mp.rs.gov.br/infancia/doutrina/id109.htm apenas 4 (quatro) foram notificados através de ofício aos órgãos oficiais do SGD. Os outros 15 (quinze) foram encaminhados para a Escola que Protege, sem a devida notificação, ficando por responsabilidade do EQP realizá-las. Tal procedimento contraria a determinação da lei sobre a notificação obrigatória dos casos, Lei 8.069/90 – ECA – determina que todos os casos suspeitos ou confirmados devem ser notificados para os Conselhos Tutelares, Polícia, Ministério Público ou Autoridade Judiciária. Professores e diretores devem fazê-lo por meio de fichas de notificação específica, obedecendo às normas explícitas nas mesmas em sua totalidade. No entanto, identificamos aqui um desvio ao que está estabelecido em lei, uma vez que é “responsabilidade do professor”, com o suporte da direção/apoio da unidade de ensino, fazer essa notificação (Art. 245, ECA). Esse desvio de responsabilidade compromete o objetivo do programa que é “prevenir e enfrentar à violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes”. O que aqui denominamos desvio de responsabilidade pode estar ocorrendo pela carência de novas capacitações para atualizar os educadores e comunidade escolar em relação às determinações legais para a conduta dos encaminhamentos, além de formar os demais profissionais da educação que não receberam tal formação. Em síntese constatamos, ao que se refere ao Eixo 1: Capacitação de educadores com o objetivo de despertar a atenção, percepção e responsabilidade no encaminhamento dos casos de vítimas de violência houve uma aproximação ao objetivo. A formação do projeto promoveu a adoção de uma postura orientada para a mudança de comportamento nas ações de identificação, notificação e encaminhamento das situações de violências por eles identificadas no contexto escolar aos órgãos que integram o Sistema de Garantia de Direitos - SDG no município do Recife. No entanto, é importante salientar que existem demandas de ações para o enfrentamento das múltiplas formas de violências cometidas contra criança e adolescente, identificadas no contexto escolar, que extrapolam a esfera de abrangência do dever, dos limites e das possibilidades da Escola e de seus profissionais. Não basta à escola, seus profissionais engajarem-se na formação de educandos e educadores e alhearem-se às condições sociais culturais, econômicas de seus alunos e de suas famílias. É necessário, sobretudo, considerar, nesse contexto, a falta de articulação de outras políticas públicas para a criança, o adolescente e suas famílias, e, dos organismos que compõem o SDG para, juntos à Escola e ao Conselho Tutelar, prestarem serviços de qualidade e, assim, garantirem os direitos destes sujeitos. O Eixo 2: Atendimento às Crianças e Adolescentes em Situação de Violência, se dá a partir da identificação dos casos de violências, realizada pelos profissionais nas escolas, conselhos tutelares e outros órgãos integrantes do SGD, as crianças e adolescentes vitimadas são encaminhadas ao atendimento psicossocial. Este atendimento é realizado através de, prioritariamente, consultas psicoterápicas, com psicólogos nas duas unidades do EqP; e grupos operativos, com profissionais das áreas de psicologia, serviço social, educação e direito. O público alvo dos atendimentos psicoterápicos são especificamente crianças e adolescentes vítimas de violência entre 6 a 14 anos, encaminhados pelas escolas e órgãos ligados ao SDG. Em relação à demanda, observamos uma limitação no que se refere às unidades de atendimento. Em que pese, estando a serviço de todas as RPAs, os atendimentos hoje ocorrem apenas em duas unidades: “Diante de uma grande busca para o serviço, sentimos a necessidade (...) da criação de novas unidades que possam atender o beneficiário em locais mais próximos às suas residências, pois muitos se deslocam de lugares distantes , dificultando o cumprimento dos horários marcados, por questões de trânsito e horário escolar, do trabalho e tarefas dos responsáveis devido ao tempo que gastam no trajeto para trazerem os filhos (...)” (SUPP). Sobre a importância dos atendimentos psicoterápicos para crianças e adolescentes vítimas de violência, as respostas foram similares no sentido de afirmar o significado do acolhimento e do tratamento especializado para transformar algo negativo em um sentimento de positividade em relação à vida, como podemos verificar na fala a seguir: “Transformar o ocorrido em uma influência para a vida, ao invés de ser obstáculo, motivando a criança crescer e viver melhor, e com esperança. O regate da auto-estima e da esperança é fundamental, pois a violência distorce a visão da criança do que a vida pode lhe oferecer” (AUPP). Ao serem indagadas sobre o significado da existência do fenômeno da violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes, as profissionais expressam a percepção da multicausalidade desse tipo de violência: “É um somatório de vários fatores como as dificuldades do dia a dia, a pobreza, problemas financeiros, as características individuais como temperamento, hiperatividade, déficit intelectual, etc. Aspectos sociais e culturais. Não há uma causa que determine, mas um conjunto destas que promovem” (SUPP). Os dados sugerem que o Programa EqP vem priorizando as suas ações aos atendimentos do serviço de Psicologia, o atendimento é centrado no “tratamento” das crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica, caracterizando, portanto, uma focalização nas manifestações do problema. Essa focalização nos parece indicar que o reconhecimento da complexidade que a Violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes estão inseridas no discurso, e não na prática, uma vez que não encontramos evidências nas ações desenvolvidas pelo programa em considerar as múltiplas determinações que contribuem para o desenvolvimento e permanência dessa violência; determinações essas que se encontram nos contextos sócio histórico, cultural e econômico. No Eixo 3, o Programa EqP insere essa, que consideramos uma importante ação para fechar o ciclo no enfrentamento e prevenção das violências doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes: Escola para Pais - EpP, cujo público alvo são os pais e responsáveis que cometem violências contra seus filhos, oferecendo-lhes apoio psicossociopedagógico, a ação tem como objetivo romper com o ciclo da violência no cotidiano das famílias. A EpP ocorria na unidade I do EqP, com os pais das crianças e adolescentes em atendimento psicossocial, através de encontros não sistemáticos, realizados em parceria com a Prefeitura Municipal do Recife – PMR. O objetivo do projeto EpP apresenta uma conotação educativa, visando uma transformação comportamental e responsabilizante dos agressores, desenvolvendo um conjunto de ações que visa educar os pais atendidos pelo programa. Estas ações são realizadas por psicólogos, que trabalham as temáticas relacionadas aos diversos tipos de violência através de oficinas. Buscando uma ação mais sistematizada para atender aos objetivos do Eixo 3 a partir do ano de 2009, o Programa Escola que Protege estabeleceu uma parceria, com o Tribunal de Justiça de Pernambuco, representado pelo Centro de Referência Interprofissional na Atenção a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência – CRIAR – criando o Projeto Responsabilização e Educação dos Agressores. A parceria entre o programa EqP e o CRIAR intenciona um trabalho preventivo no sentido de romper com o ciclo da violência na família, indo além da responsabilização e punição dos agressores. Essa parceria foi acordada pela troca/apoio, referente aos atendimentos às crianças e famílias envolvidas em situação de violências. Em 2009 o CRIAR participou como palestrante/facilitador de uma oficina do eixo Escola para Pais. Em 2010, a partir de nova articulação do CRIAR com a Secretaria de Educação “encaminhamos novamente o projeto Educação e Responsabilização dos Agressores (...) e estendeu a parceria com o CRIAR para o eixo/ação Escola para Pais, entendendo que a proposta educativa daria conta do objetivo/montagem de um trabalho de cunho preventivo contribuindo, também, para o fortalecimento da notificação e responsabilização dos casos” (AEPP). A partir dessa nova articulação, em 2010, pretendeu-se a ampliação das metas para os atendimentos às famílias, essas metas contemplavam para 2010 atender 60 famílias, e, em 2011, estender o atendimento para 100 famílias em situação de violências, encaminhadas pela rede de proteção nas atividades/encontros previstos da Escola para Pais e nas atividades de acompanhamento psicológico, social e pedagógico. A operacionalização da parceira ocorreu de fato a partir de 2010. No entanto, em 2011, a meta em atender 100 famílias não foi possível, pois o EqP não conseguiu reunir o público, não atendendo a frequência continuada que justificasse o contexto escolar. A descontinuação dessa atividade foi aprofundada no ano de 2012, enfraquecendo e desarticulando a parceria CRIAR e EQP no eixo Escola para Pais concernente ao planejamento e operacionalização das ações do programa EpP por parte do CRIAR. A falta de condições favoráveis, para que os encontros continuassem com a mesma frequência e organização para o qual foi criado, foi à causa dessa desarticulação. As fragilidades identificadas na pesquisa e que resulta no enfraquecimento da parceria entre o CRIAR e o EqP em relação ao projeto EpP, revelam, sobretudo, a carência de apoio da gestão administrativa - prefeitura do Recife. Essa falta de apoio é caracterizada tanto pela fragilidade da estrutura física e política, quanto ao número pequeno de profissionais de psicologia e serviço social disponíveis para realizar o atendimento às crianças e adolescentes vítimas de violência e as suas famílias. Observamos que, embora estejam estabelecidos como meta do projeto 20 (vinte) encontros anuais, sendo 10 (dez) encontros por semestre, esses encontros/oficinas com as famílias não ocorreu com a efetividade que foi planejada, salvo o ano de 2010 e 2011, em nenhum outro ano essa meta foi alcançada. “(...) esse ano (2012) a gente tá querendo fazer uma oficina agora (agosto), e uma no final (novembro), mas a gente tem coisas assim (...) que não dá muita conta” (LEQP). A narrativa nos leva a questionar se esses encontros, realizados em uma ou duas vezes ao ano, podem ser considerados, em sua essência e dimensão pedagógica, como capazes de ‘reeducar’ os pais. Essa fragilidade na implementação das ações do programa também pode ser caracterizada pela freqüente mudança em sua gestão. Durante o período de vigência do EQP 2004-2012, constatou-se a presença de três coordenações diferentes, que, ao saírem do cargo, levavam consigo toda equipe de trabalho, passando pelo risco de desmontar a estrutura existente, inviabilizando o amadurecimento das ações uma vez que provocava a interrupções das atividades em curso ou previamente planejadas. Outro dado, mencionado também nos outros eixos, que indica entrave para o alcance dos objetivos do Projeto Escola para Pais, em parceria com o Programa Escola que Protege, centra-se na frágil articulação entre os parceiros do programa, que resulta na não realização de encontros para discussão sobre os temas relevantes acerca do combate à violência contra crianças e adolescentes, como relatada a fala a seguir: “também, são poucas as capacitações intersetoriais que poderiam ser realizadas pelas duas secretarias envolvendo/promovendo espaços de diálogos e qualificação de profissionais de educação e de saúde para o enfrentamento/notificação dos casos identificados pela escola” (A-EPP). Cabe ressaltar que, mesmo não dando conta de atender ao público–alvo do projeto - Eixo 3: os pais envolvidos em situação de violências contra os seus filhos, o EQP expande-se ao público referente às mães do programa Bolsa Família, selecionadas pela PCR, mesmo que essas mães não tenham histórico de violências cometidas contra seus filhos. Esse dado indica uma vinculação entre pobreza e violência, ou seja, pressupõe-se que as mães do Bolsa Família, por estarem em condição de vulnerabilidade social e econômica, são potenciais agentes de violências contra seus filhos. Ora, se o programa apresenta fragilidades em sua estrutura para atender aos pais que de fato cometeram agressões contra seus filhos, como expandir esse atendimento aos que não fazem parte dessa condição de agressores? O projeto EpP, em sua intencionalidade, tem relevância e significado para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes. Ressaltamos ser o eixo 3, EpP, o grande diferencial do programa EqP, justamente por incorporar, em seus objetivos, atividades de ação à família. No entanto, o objetivo centrado na “reeducação” dos pais, tendo como público alvo as famílias, especificamente, em situação de vulnerabilidade e risco social (leia-se: pobres), pressupõe a ideologia de naturalização do pobre como agente violento, sem considerar a complexidade do fenômeno, sem observar a construção sóciohistórica-cultural, que envolvem o problema da violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes. Também, ao centrar suas ações na re-educação dos pais para que lidem melhor com os seus filhos e não voltem a maltratá-los, revela uma ação focalizada e minimalista, visto que o problema é complexo e permeado de múltiplas determinações, como já pontuadas: são determinações históricas, culturais, econômicas. Nesse contexto, entendemos que ações focalizadas tendem a se fragilizar, sobretudo, aquelas que estão centradas na responsabilização e culpabilidade dos sujeitos, sem considerar as suas condições objetivas e subjetivas, que, na maioria das vezes, são a base geradora da violência doméstica/intrafamiliar. Os mecanismos ideológicos do Estado, presentes nos objetivos das ações do Projeto Escola Para Pais ao responsabilizar apenas o sujeito que pratica a violência ou que possa vir a praticá-la, impõe a este um caráter excludente, no qual o único responsável é o próprio agressor que desvia-se do “bom comportamento” da sociedade. Esse mecanismo ideológico nega, sobretudo, a natureza destrutiva do sistema social vigente. Nesse sentido, cabe um questionamento: Quem ‘reeduca’ os que abandonam, negligenciam e promove maus-tratos e descumprem a lei que confere à criança e ao adolescente a condição de sujeitos de direitos, se não o próprio Estado? A resposta não se esgotou na presente pesquisa, mas instiga novas análises e propostas para estudos futuros. Considerações Finais A pesquisa desenvolvida revela a fragilidade existente na articulação entre as instituições parceiras, fragilidade essa que indica ser limitada as ações de enfrentamento ao fenômeno da violência propostos pelo programa EqP. Vê-se, no entanto, progressos alcançados no que se refere ao Eixo 1 do programa: Capacitação de educadores, despertando a atenção, percepção e responsabilidade desses profissionais no encaminhamento dos casos de vítimas de violência; os Eixos 2 e 3 apresentam lacunas que impossibilitam o atendimento integral às crianças, adolescentes e seus familiares, como é a proposta do programa EQP. Durante toda a pesquisa, procurou-se acentuar a ideia de que a violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes é permeada por múltiplas determinações e expressões, que apenas as imposições legais não dão conta de combatê-las, mas fazem-se necessárias intervenções que norteiem a prática efetiva do que determina a lei. A violência doméstica/intrafamiliar trata-se de um fenômeno que reflete as relações sociais hegemônicas – de subordinação/dominação do pequeno pelo grande, da criança pelo adulto; de naturalização da violência, sobretudo, no interior do espaço familiar e não deve ser enfrentada sem levar em consideração essa múltiplas determinações. A exacerbação das práticas violentas na contemporaneidade é consequência de problemas sociais e econômicos, sequela de um sistema que se reflete diretamente nos contextos familiares, expondo seus membros a situações de vulnerabilidade. Nesse sentido, a complexidade do fenômeno da violência doméstica/intrafamiliar nos remete à tese de que seu enfrentamento não se esgota na institucionalização de leis e políticas, haja vista os limites dessas iniciativas no âmbito do Estado capitalista. Nesse sentido, compreendemos que os programas implementados ainda precisam amadurecer bastante suas estruturas para garantir o enfrentamento dessa questão multicausal. A violência em debate é histórica, sobretudo, levando-se em consideração a cultura patriarcal e de gênero que predomina no Brasil, é social e estrutural e, como tal, devem ser consideradas as condições objetivas e subjetivas dos sujeitos envolvidos. Contrariando o Estatuto da Criança e do Adolescente cresce o índice de violência contra esses sujeitos, nesse contexto, mesmo sem uma efetivação plena das ações, os programas criados e implementados para operacionalizar a defesa dos direitos da criança e do adolescente assumem um papel de grande importância na sociedade, sobretudo, quando procura integrar-se a outros projetos, órgãos e instituições. Contudo, há um grande distanciamento entre o que se propõe o programa EqP e o que é verdadeiramente efetivado, ficando o mesmo pautado na lei de defesa que protege as vítimas, mas, sem criar condições plenas de efetivação dessa lei, caminhando, pois em um descompasso entre o Brasil legal e o Brasil real. Referência Bibliográfica BRASIL, Ministério da Educação. 2006c. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/escqprote_eletronico.pdf Acesso em: 05/04/2012. BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. – Brasília : Ministério da Saúde, 2010, 104, p. : il. - (Série F. Comunicação e Educação em Saúde) ISBN 978-85-334-1688-8. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/linha_cuidado_criancas_familias_violencias.pdf Acesso: 10/08/2012. BRASIL. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Cadernos SECAD 5 – Proteger para Educar: a escola articulada com as redes de proteção de crianças e adolescentes. Brasília-DF, Maio de 2007. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13605&Itemid=913 Acesso em: 05/04/2012. Declaração Universal dos Direitos da Criança. 1959. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Crian%C3%A7a/declaracao-dos-direitos-dacrianca.html Acesso em: 20/08/2012. Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm Acesso em: 02/03/2012 HAGUETTE, T.M.F. Metodologias Qualitativas na Sociologia. 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