Universidade Federal do Rio de Janeiro Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde A Atenção Domiciliar no município de Londrina Laura Feuerwerker 1. Contextualização Londrina, localizada no norte do Estado do Paraná tem uma população em torno de 450 mil habitantes e forte tradição na construção do Sistema Único de Saúde. Lado a lado com Niterói e Campinas, foi dos primeiros municípios a iniciar a constituição de uma rede municipal de serviços de atenção à saúde já no final dos anos 1970 e a desenvolver coordenação entre as atividades de formação de profissionais e a prestação de serviços de saúde. No início dos anos 1990, foi também dos primeiros municípios a entrar em gestão semiplena, a desenvolver ações regulatórias em relação aos prestadores privados do SUS e a criar serviços municipais de resgate e de internação domiciliar. Atualmente conta com ampla rede de atenção primária à saúde – são mais de cem equipes de saúde da família, uma rede de atenção ambulatorial especializada, uma maternidade, SAMU operante e uma rede substitutiva em saúde mental ainda em fase inicial de implantação. No campo da formação há uma história de inovação na formação dos profissionais de saúde, particularmente nos cursos de medicina e de enfermagem da Universidade Estadual de Londrina, bem como um movimento popular em saúde forte e com alta capacidade de ação e proposição. A visita que deu início à investigação ocorreu nos dias 5 e 6 de dezembro de 2005. 2. Arranjos e composição da equipe O Serviço de Internação Domiciliar foi criado pela Autarquia Municipal de Saúde em 1996, com o objetivo de instituir modalidades de cuidado que possibilitassem a diminuição da internação hospitalar no município. Durante a gestão municipal subseqüente (1997 a 2000), o serviço enfrentou uma ameaça de desativação – que foi evitada graças à mobilização do Conselho Municipal de Saúde. A Internação Domiciliar, então, foi mantida, mas com funcionamento relativamente autônomo, desarticulado do restante da rede de serviços de saúde. Na gestão atual (iniciada em 2001 e reeleita em 2004), ocorreu um momento de avaliação que levou a uma reorganização das equipes para sua conformação atual. Hoje as equipes estão organizadas para realizar quatro modalidades de atenção domiciliar: cuidados paliativos para usuários com câncer, cuidados aos portadores de AIDS, internação domiciliar (definida pela utilização de medicação endovenosa) e assistência domiciliar (definida como cuidados a usuários com problemas crônicos, como portadores de feridas, doença pulmonar obstrutiva crônica, seqüelados de acidentes vascular cerebral, traumas medulares etc.). O programa tem uma organização mista: duas equipes são temáticas (cuidados paliativos e AIDS) e abrangem toda a cidade, outra é de internação domiciliar - também cobre toda a cidade e há duas outras equipes de assistência domiciliar que têm atuação regionalizada – sul+ leste e norte+oeste. Existe uma limitação de “vagas” para inclusão de usuários e uma pequena fila de espera. A capacidade de atenção é a que “cabe” dentro dos recursos destinados para o serviço, que provêm inteiramente da Autarquia Municipal de Saúde. O único segmento que recebeu recursos da esfera federal para sua implantação foi a equipe responsável pelos cuidados aos pacientes com AIDS, mas mesmo neste caso a manutenção corre por conta do município. Todas as equipes contam com médico, enfermeiro e auxiliar/técnico de enfermagem. Há uma equipe de apoio composta por nutricionista, duas fisioterapeutas, duas assistentes sociais e duas psicólogas, que apóia matricialmente todas as equipes de campo. O esquema de contratação dos trabalhadores implica limitações à capacidade de efetivamente realizar ações de internação hospitalar, já que não há cobertura de médicos e enfermeiros durante a noite e finais de semana. Existe um esquema de cobertura em que médicos e enfermeiros são acionados para respaldar as/os auxiliares/técnicos de enfermagem. Todos os trabalhadores são celetistas, e a rotatividade das equipes é relativamente baixa. 3. Articulação do SID (Sistema de Internação Domiciliar) com o sistema local de saúde Atualmente as duas principais procedências de pacientes para o Serviço de Internação Domiciliar são o Hospital Universitário (o mais importante referenciador) e as equipes de saúde da família, seguidas de longe pelos dois hospitais secundários sob gestão estadual (Zona Norte e Zona Sul). A equipe do SID costuma fazer um trabalho de estímulo à indicação de internação domiciliar, principalmente junto aos hospitais, sempre que existe uma diminuição no fluxo de pacientes. A integração com as equipes de saúde da família ainda está em processo de construção e depende da postura das equipes do SID e das características das equipes de saúde da família de cada região: às vezes há apenas contato telefônico, às vezes encontros presenciais, às vezes acompanhamento mútuo do trabalho realizado. Em função do forte vínculo desenvolvido entre equipes de internação/atenção domiciliar e usuários, existe uma tendência a manter os pacientes sob cuidado deste serviço, mesmo quando hipoteticamente poderiam ser transferidos. Por um lado, para que as equipes de saúde da família possam assumir uma parte mais significativa do trabalho de assistência domiciliar, consideram necessário garantir acesso a alguns materiais e equipamentos e também a algum processo de qualificação específica. Por outro lado, a disponibilidade de atenção – em função da sobrecarga de trabalho – das equipes de saúde da família não é a mesma das equipes de atenção domiciliar. Atualmente não há dificuldades de relação com o SAMU quando a remoção de urgência se faz necessária, mas essa foi uma relação construída “a duras penas”, por disputas em relação à avaliação da necessidade de remoção (atribuição de quem?). Não há acompanhamento domiciliar de situações que envolvam a Saúde Mental. Não há relação estreita com grupos comunitários organizados, embora em algumas regiões da saúde o movimento popular de saúde seja muito forte, estruturado e ativo (particularmente na região sul). Sempre que necessários, os exames laboratoriais são colhidos no domicílio e processados no laboratório do PAI (Pronto-Atendimento Infantil, em cujo prédio está localizada a sede do SID). Quando são necessários RX, a ambulância do SID se encarrega do transporte – ida e volta – dos usuários. Os exames são feitos nos Hospitais Zona Sul, Zona Norte ou no Ambulatório São Lucas. De modo geral são solicitados poucos exames laboratoriais e radiológicos, somente quando realmente indispensáveis, pois todos se incomodam com o transtorno que a remoção impõe para usuários e cuidadores. 4. Cuidador Todos os casos “candidatos” a cuidados domiciliares são visitados pela equipe completa do SID - no hospital ou em casa, dependendo da situação. O trabalho de identificação e preparo inicial dos cuidadores é feito pelo serviço social depois de uma conversa da equipe sobre o tipo de cuidado que, a priori, imaginam que será necessário. Médico, enfermeira e auxiliar/técnico se encarregam da orientação específica do cuidador inicialmente, mas se necessário outros membros da equipe entram em ação. O médico faz a orientação geral, a enfermeira ensina os cuidados específicos e o auxiliar se ocupa do acompanhamento cotidiano do trabalho do cuidador. Como dizem, cada caso é um caso e sempre são necessárias muitas adaptações específicas para cada situação. No caso da equipe de ADT-AIDS, muitas vezes o cuidador é o próprio paciente - que precisa aprender a “gerenciar” sua própria vida em novas condições. Nesse grupo também é freqüente haver pessoas com todos os vínculos familiares rompidos e a equipe busca ativamente alternativas para a fase inicial de cuidados. Mensalmente as assistentes sociais e psicólogas organizam um encontro de cuidadores. Muitas pessoas que já foram cuidadoras e não o são mais continuam freqüentando as reuniões. Nesses encontros são propiciados momentos de conversa, intercâmbio de experiências e também informações, quando necessárias. Há uma preocupação específica em conversar sobre os ganhos e as perdas dos cuidadores, que abrem mão de seu tempo privado para dedicarem-se ao cuidado de um familiar. Muitas vezes as equipes acompanham pessoas cujos cuidadores são analfabetos ou têm muita dificuldade na leitura. Utilizam muitos artifícios para deixar claras as orientações, sobretudo em relação aos remédios a serem administrados pelos familiares. Também fazem muitas adaptações e improvisações para viabilizar o cuidado no domicílio (erguer as camas com canos de PVC, improvisar suporte de soro etc.). Algumas vezes as equipes “esbarram” com as opiniões da família, contraditórias com as orientações que pretendem adotar. São intensos processos de negociação, em geral bem-sucedidos, pois chegam a bons acordos. Reconhecem, portanto, que existe uma construção compartilhada do cuidado, pois muitas vezes as famílias oferecem alternativas interessantes. Nos momentos de tensão (por agravamento das condições do paciente, dificuldades de relacionamento com o cuidador etc.), as equipes conversam intensamente buscando soluções. Para além das reuniões semanais, o tempo que passam juntos no carro (quando indo e voltando das casas das pessoas) é um momento privilegiado de trocas, conversas e proposição de condutas. Às vezes sentem-se como “invasores” da intimidade das famílias, pois a presença do cuidado domiciliar muda de maneira importante a rotina da casa e algumas regras acabam sendo impostas, mas essa sensação geralmente muda ao longo da internação, com o estabelecimento de vários processos de negociação (cuja amplitude varia de equipe para equipe do SID). Algumas vezes acabam prolongando a permanência das pessoas no SID em função de “conjunturas sociais” (dificuldade de transporte para exames ou procedimentos de suporte, dificuldade de acesso a determinados materiais ou medicamentos etc.). 5. Dinâmica das equipes 5.1. O lugar da atenção domiciliar no sistema municipal de saúde Apesar de ser uma iniciativa da Secretaria Municipal, inaugurada pelo atual secretário de saúde em 1996 e reformulada em 2002, o significado e o potencial da atenção domiciliar como alternativa de organização do cuidado não são bem compreendidos ou amplamente conhecidos. O SID é um dispositivo de atenção integral, de construção de linhas de cuidado, recheado de tecnologias leves e de trabalho em equipe, mas não é percebido como alternativa potente de organização dos cuidados em saúde nem pelo nível central da secretaria, nem pelos outros segmentos da atenção à saúde. A razão principal para esta “cegueira” parece ser o fato de o SID ser “olhado” e “avaliado” sobretudo sob uma lógica de racionalização econômico-financeira (diminuição de custos em função da diminuição da duração e/ou diminuição das próprias internações hospitalares). 5.2. A intensidade do compromisso das equipes com o trabalho de atenção domiciliar Assim como acontece com as equipes de saúde mental, as equipes de atenção domiciliar de Londrina são apaixonadas por seu trabalho, dedicam-se a ele de maneira muito intensa, comprometem-se com as pessoas de que cuidam e com suas famílias muito além do que a responsabilidade técnica prescreve. Qual será o elemento desencadeador dessa paixão? Aparentemente, por suas falas, o trabalho desinstitucionalizado, realizado nas casas das pessoas, oferece-lhes mais liberdade de criação na condução de seu trabalho (inclusive nos aspectos clínicos), permite-lhes relacionar-se diretamente com as pessoas (sem intermediários), possibilita-lhes conhecer e vivenciar seus contextos de vida e essa vivência mobiliza sua capacidade de produzir alternativas criativas e apropriadas para o cuidado e a produção da autonomia; tudo isso lhes possibilita construir vínculos mais fortes, permite-lhes resgatar de maneira intensiva a dimensão cuidadora do trabalho em saúde. 5.3. A influência da natureza do trabalho (a racionalidade envolvida) sobre a conformação das dinâmicas de atuação das equipes Apesar de haver uma filosofia do serviço e marcas características - presentes no trabalho de todos cada uma das cinco equipes tem uma dinâmica própria de funcionamento, inclusive na construção das relações com o restante da rede de serviços. Aparentemente a natureza do trabalho interfere de maneira decisiva na maneira como as equipes se conformam, nas relações que estabelecem com os pacientes e suas famílias e nas tecnologias que inventam para compor sua caixa de ferramentas. A equipe de Cuidados Paliativos sabe não deter o poder de contribuir para a melhora ou cura das pessoas sob seus cuidados; o que eles têm a oferecer é conforto, carinho, alívio da dor, a preparação para a morte. Por conta disso, constroem suas relações com os pacientes e suas famílias desde outro lugar que não o poder conferido pelo saber técnico. Dedicam-se profundamente ao cuidado paliativo, defrontando-se de maneira intensa com o sofrimento. É a equipe mais claramente atravessada pelos valores culturais e religiosos das pessoas sob seus cuidados. A equipe de ADT defronta-se com a situação oposta: se conseguirem a adesão dos pacientes ao tratamento, podem proporcionar a eles uma perspectiva muito forte de melhora, de conquista de autonomia, de prolongamento da vida com qualidade. Com base nessa perspectiva, dedicam-se loucamente ao trabalho: resgate das pessoas, de suas relações com a vida, aceitação da doença, compreensão de suas perspectivas futuras, autonomia no cuidado da própria saúde, tudo isso acompanhado de uma abordagem clínica pesada, que implica visitas médicas diárias, esquemas terapêuticos que demandam duas a três visitas da enfermagem ao dia etc. Tudo vale pela perspectiva de vida. As duas equipes de assistência domiciliar cuidam, em geral, de pessoas portadoras de doenças crônicas, acamadas há longo tempo. Algumas vezes há perspectiva de ampliação da autonomia da pessoa doente, outras vezes há perspectiva de construção de autonomia do cuidador em relação às equipes de saúde. Em qualquer das duas situações, o cuidado domiciliar oferece melhores perspectivas de recuperação do que a internação hospitalar. São em geral processos longos de acompanhamento, que demandam a participação de toda a equipe multiprofissional e a construção de estratégias inovadoras de cuidado, considerando os contextos materiais e familiares. As famílias passam a estar sob cuidado e não somente a pessoa doente. As equipes redescobrem o poder da afetividade e do carinho na recuperação da saúde e constroem linhas de cuidado integral em ato. A equipe de internação domiciliar é a que tem menos oportunidades de construir práticas inovadoras em saúde. Em geral cuidam de pessoas com quadros infecciosos agudos, que iniciaram antibioticoterapia endovenosa no hospital e devem ser acompanhadas em casa por mais 7 a 10 dias para completar o esquema terapêutico. Claramente há uma lógica de racionalização de gastos, de diminuição da duração das internações hospitalares e aumento da rotatividade dos leitos envolvida neste trabalho. É a equipe com maior rotatividade de casos e com menores possibilidades de construir vínculos e trabalho cuidador. É a equipe cujo trabalho é mais marcadamente instrumental, orientado pela utilização de tecnologias leve-duras e duras. O auxiliar de enfermagem é quem tem presença mais marcante nas casas – porque comparece diariamente para ministrar a medicação. A enfermeira acompanha o trabalho, particularmente na admissão. O médico só é acionado quando não há evolução favorável. A equipe percebe essas diferenças e ressente-se da possibilidade de maiores vínculos com as famílias. 5.4. A construção do projeto terapêutico na atenção domiciliar A atenção domiciliar muda a dinâmica da casa, muda a vida do cuidador, mas para ser bem-sucedida essa operação envolve profundas negociações e intensos diálogos interculturais. Quanto maior a autonomia do cuidador e do doente, mais bem-sucedido o trabalho da equipe e, portanto, maior a necessidade de diálogo e compartilhamento do projeto terapêutico. A equipe leva a lógica instrumental para dentro das casas, mas é atravessada pela cultura, pela religião, pela dinâmica familiar e pelo contexto das casas. Reconhecem haver diferenças na dinâmica da família ao lidar com as situações de atenção domiciliar. Nas famílias dos bairros populares, em geral toda a família e a vizinhança participam do processo. Nas famílias com maior poder aquisitivo o processo é mais solitário, envolvendo estritamente as pessoas de convívio mais próximo. Consideram haver, em geral, mais dificuldades para trabalhar com as famílias de melhor poder aquisitivo, principalmente as que continuam vinculadas a outros serviços / profissionais de saúde. Reconhecem que na “briga de especialistas”, quem tem dois médicos, não tem nenhum... Já notaram também que as famílias falam de diferentes tipos de problemas com diferentes tipos de profissionais, por isso, para evitar ruídos e disputas, a comunicação constante e aberta dentro da equipe é fundamental. Aprenderam que não dá para “empurrar problemas e desconfortos dentro da equipe com a barriga”, pois a situação de convivência vai ficando insustentável e o contato entre eles é íntimo e cotidiano!!! Às vezes faz falta uma mediação. Como não há preparo prévio dos profissionais para trabalhar na atenção domiciliar, eles têm aprendido na prática. Abertura para escuta, flexibilidade e a disposição para um bom relacionamento entre os trabalhadores são fundamentais. As equipes consideram trabalhar na atenção domiciliar muito gratificante. Consideram muito enriquecedor conhecer o ambiente em que a pessoa vive. Dizem que saber disso teoricamente é muito diferente do que vivenciar com as famílias suas condições de vida. Além disso, valorizam a proximidade e a possibilidade de se responsabilizarem diretamente pelas relações e pelo cuidado, sem intermediários. Os médicos valorizam a oportunidade de utilizar muito mais o raciocínio clínico. E consideram muito positivo haver oportunidade e terem que aprender a lidar com a autonomia dos pacientes, com sua religião, com sua cultura, ou seja, é positivo ampliar os referenciais utilizados para pensar o cuidado. As equipes sentem-se muito responsáveis pelas famílias e pacientes: a relação afetiva é muito mais intensamente desenvolvida e todos se mobilizam para ações solidárias de diferentes tipos, de acordo com as necessidades das pessoas. Consideram haver uma riqueza muito grande no trabalho do cuidado dentro das casas, que possibilita aprender muito para a vida, já que “a família de todo mundo é igual – sempre há problemas, brigas, os que se omitem, os que assumem a carga pesada, as mágoas etc. etc”. Consideram que o trabalho no hospital não oferece essas oportunidades de aprendizagem e de prática satisfatória. Palavras de toda a equipe: “no hospital, o paciente tem uma atitude muito mais passiva, em casa ele é dono da sua vida, sua família participa ativamente. É preciso ter criatividade para adaptar as situações, oferecer o que o paciente precisa, mas considerando o que ele têm. O resgate das relações familiares é muito gratificante. E toda a família passa a estar sob cuidado, pois não dá para ignorar os demais problemas que existem.”