Ergatividade e Transitividade em Panará Luciana DOURADO LALI-LIV-UnB 1. Introdução A língua Panará apresenta um padrão ergativo-absolutivo em sua morfologia, mas nominativo-acusativo em sua sintaxe. As construções pautadas no padrão ergativo-absolutivo ocorrem em orações no modo realis, com o SN sujeito de verbo transitivo (ergativo) marcado pela posposição he‚ ou pela nasalização da última vogal do pronome ou do nome, e com o morfema zero marcando os SN’s sujeito de verbo intransitivo e objeto direto de verbo transitivo (absolutivo). Além disso, apresenta duas diferentes séries de clíticos (ergativos e absolutivos) no sistema de concordância verbal. Nas construções com verbos transitivos, o sujeito é sistematicamente marcado pelo caso ergativo, independentemente se esse verbo descreve ou não a relação entre dois participantes, tal que um participante aja em direção ou sobre o outro. Da mesma forma, verbos intransitivos nem sempre se configuram como um verbo que descreve uma propriedade, estado ou situação envolvendo apenas um participante. Por isso, na língua Panará, a questão da transitividade não pode ser apenas considerada no nível da oração, como propõem Hopper e Thompson (1980), mas também tem que se levar em conta o tratamento da transitividade (e da intransitividade) como um fenômeno inerente às raízes verbais (Payne, 1985). 1 Os dados dessa língua sugerem que: (a) a transitividade e a intransitividade são principalmente uma propriedade inerente às raízes verbais; (b) existe uma divisão dicotômica, morfologicamente marcada, entre verbos inerentemente transitivos e verbos inerentemente intransitivos; (c) o sistema verbal apresenta graus de transitividade e intransitividade que podem ser aumentados ou reduzidos, de acordo com processos morfossintáticos. Para os verbos intransitivos será considerado como altamente intransitivo aquele verbo que comporta apenas um participante. Para os verbos transitivos, será considerado como altamente transitivo aquele verbo que apresenta dois (ou mais) participantes, sendo um deles obrigatoriamente o paciente. 2. Verbos transitivos e intransitivos Os verbos transitivos e intransitivos em Panará apresentam as seguintes características: têm o seu núcleo marcado por modo, aspecto e concordância; podem ter um, dois e até três argumentos; admitem a incorporação de nomes e posposições; podem ser precedidos por direcionais; podem co-ocorrer com outros verbos em construções seriais, e também com modais e auxiliares. As marcas de modo e concordância distinguem formalmente verbos transitivos de intransitivos. No modo realis, os primeiros recebem a marca zero, ao passo que os segundos são marcados pelo clítico yˆ, como nos exemplos (1) e (2) respectivamente. (1) O i‚kye‚ he‚ eu O re waya-ni p´rik´ ERG REAL.TR 1SG.ERG 3SG.ABS fazer-PERF canoa.ABS ‘Eu fiz uma canoa.’ (2) i‚kye‚ yˆ ra te‚ eu.ABS REAL.INTR 1SG.ABS cair ‘Eu caí.’ As séries de clíticos de concordância referentes aos casos ergativo e absolutivo que marcam os verbos transitivos e intransitivos no modo realis podem ser vistos na tabela (I) abaixo: 2 Tabela I. Clíticos pronominais Número Pessoa SINGULAR 1 2 3 DUAL 1 2 3 1 PLURAL 2 e 3 PAUCAL Ergativo ri ~ re ka ti rime‚ ~reme‚ kame‚ time‚ ne ~ re kare ~ kari ne ~ re Absolutivo ra a ~ ha O me‚ra me‚a me‚ ra, pa, mi‚ ria ra 3. Graus de transitividade e intransitividade Tradicionalmente a transitividade é concebida como uma propriedade do verbo, mais tarde foi considerada como propriedade global da oração (Hopper e Thompson, 1980), de maneira que uma atividade é transferida de um ator ou agente para um um paciente. Portanto, a transitividade envolve, pelo menos, dois participantes e uma ação efetiva em algum sentido. Já a intransitividade se caracteriza pelo evento no qual há apenas um participante. No Panará, tanto a transitividade quanto a intransitividade parecem ser um componente das raízes verbais em si mesmas, mais do que uma propriedade da oração, como veremos a seguir. Os verbos transitivos e intransitivos em Panará podem ser resumidos em seis tipos fundamentais, classificados de acordo com o número e o papel temático dos argumentos e que refletem o seu grau de transitividade e intransitividade inerente. (i) Verbos intransitivos com um único argumento (univalentes) o verbo concorda apenas com o seu sujeito no caso absolutivo. Um prototípico verbo dessa classe é o verbo de movimento kuˆ ‘ir/vir’, o qual pode ocorrer seguido por um adjunto. (3) i‚kye‚ yˆ =ra =kuˆ eu.ABS REAL.TR=1SG.ABS=ir puu tã roça ALA ‘eu fui para a roça.’ Esses tipos de verbos podem ser considerados, do ponto de vista da intransitividade inerente, os que detêm maior grau de intransitividade. Nessa 3 classe de predicados itens lexicais de outras classes de palavras podem ocorrer como núcleo. (4) nome: i‚kye‚ yˆ =ra =tua/tu‚ ABS REAL.INTR=1SG.ABS=mulher velha ‘eu sou velha.’ (5) nome/ classificador: mõsˆ yˆ =O =sˆ milho.ABS REAL.INTR=3SG.ABS=semente ‘o milho brotou.’ (6) adjetivo: í‚kiara yˆ =ra =nãpr´ mulheres.ABS REAL.INTR=3SG.ABS=vermelho ‘as mulheres estão pintadas.’ (7) partícula: i‚tç yˆ =O =piçw festa.ABS REAL.INTR=3SG.ABS=não ‘a festa acabou.’ (8) pronome: panãra yˆ =ra =i‚kieti Panará.ABS REAL.INTR=3SG.ABS=muitos ‘os Panará eram muitos.’ (9) posposição: yu kare =si =O =hçw puu INT 2PL.ERG=AUX=3SG.ABS=INSTR roça.ABS ‘como vocês fazem roça?’ (ii) Verbos intransitivos com dois argumentos (bivalentes) são bastante produtivos em Panará. O verbo concorda duplamente com o sujeito absolutivo e com o objeto de posposições comitativas, locativas e instrumentais. A mesma série de clíticos absolutivos é usada para estabelecer concordância com os dois argumentos, no modo realis. No modo irrealis, o nominativo concorda com o sujeito e o absolutivo com o objeto da posposição. Nessa língua, posposições benefactiva, malefactiva, instrumental-comitativa, comitativa e inessiva podem se incorporar a verbos transitivos e intransitivos para formar construções aplicativas. O verbo concorda com o objeto dessas posposições. Quando essas posposições se incorporam ao verbo, sem deixar uma cópia externa, os seus objetos são promovidos a objetos diretos, como se pode observar nos exemplos em (b) de (10) e (11). Os verbos nessas construções são considerados menos intrasitivos do que aqueles em (i). 4 (10) (a) moto yˆ =ra =O =po panãra hçw barco.ABS REAL.INTR=3PL.ABS=3SG.ABS=chegar Panará ICOM ‘o barco trouxe os Panará.’ (b) moto yˆ =hçw =ra =O =po panãra barco.ABS REAL.INTR=ICOM=3PL.ABS=3SG.ABS=chegar Panará ‘o barco trouxe os Panará.’ (11) (a) ka ka =ti =ra =kuˆ i‚kye‚ kõ você.ABS IRR=2SG.NOM=1SG.ABS=ir eu COM ‘você irá comigo.’ (b) ka ka =ti =ra =kõ =kuˆ i‚kye‚ você.ABS IRR=2SG.NOM=1SG.ABS=COM ir eu ‘você irá comigo.’ (iii) Verbos intransitivos com dois objetos indiretos (trivalentes), foram, também, encontrados em Panará, embora muito raramente. A hipótese é de que o verbo concorda triplamente com o sujeito e com os dois objetos indiretos (a concordância com os três argumentos é de 3a pessoa absolutivo = zero). Também neste caso é possível a incorporação de ambas as posposições, com ou sem as suas realizações externas, como nesse exemplo retirado de um texto mítico. O verbo nessa construção tem o mais baixo grau de intransitividade em relação aos verbos em (i) e (ii). (13) yˆ =O =pe =O =hçw =O =te‚ REAL.INTR=3SG.ABS=MAL=3SG.ABS=ICOM=3SG.ABS=correr sõkrEpakçkç i´´ hçw jacu.ABS nãsow pe fogo ICOM urubu MAL ‘o jacu correu com o fogo em detrimento do urubu.’ (iv) Verbos transitivos com dois argumentos (bivalentes): sujeito e objeto direto ou com três argumentos (trivalentes); sujeito, objeto direto e objeto indireto. No caso dos verbos bivalentes, o sujeito concorda com o clítico da série ergativa e o objeto com o clítico da série absolutiva (14). No caso dos verbos trivalentes, as posposições que regem o objeto indireto são: benefactiva e malefactiva. O verbo concorda com o sujeito (caso ergativo) e com o objeto da posposição malefactiva ou benefactiva (caso absolutivo), mas não com o objeto direto básico (15a) e (16a). Quando a posposição se incorpora, o objeto da posposição é promovido a objeto direto (exemplos em (15b) e (16b)). Então o verbo passa a ter mais um objeto direto, além do objeto temático. Consideramos 5 que nesse caso o mais alto grau de transitividade inerente, tanto para os verbos bivalentes quanto para os verbos trivalentes, com ou sem a incorporação da posposição. (14) i‚pˆarã O =ne =me‚ =pari mi‚ pˆtira homens.ERG REAL.TR=3PL.ERG=3DU.ABS=matar jacaré.ABS dois ‘os homens mataram dois jacarés.’ (15) (a) tçputu‚ he‚‚ chefe O =ti =ra =sõ-ri kiãrãpE ERG REAL.TR=3SG.ERG=1SG.ABS=dar-PERF cocar.ABS i‚kye‚ mã eu BEN ‘o chefe me deu o cocar.’ (b) tçputu‚ he‚‚ O =ti =ra kiãrãpE i‚kye‚ =mã =sõ-ri chefe ERG REAL.TR=3SG.ERG=1SG.ABS=BEN=dar-PERF cocar.ABS eu ‘o chefe me deu o cocar.’ O (16) (a) mara he‚ ele =ti =a =pˆri sõsesua ka pe ERG REAL.TR=3SG.ERG=2SG.ABS=pegar anzol.ABS você MAL ‘ele pegou o anzol em detrimento de você.’ (b) mara he‚ O ele =ti =a =pe =pˆri sõsesua ka ERG REAL.TR=3SG.ERG=2SG.ABS=MAL=pegar anzol.ABS você ‘ele pegou o anzol em detrimento de você.’ (v) Verbos transitivos com dois argumentos: o sujeito e um sintagma posposicional, objeto indireto. As posposições passíveis de ocorrer como núcleo desse sintagma são: a instrumental-comitativa e a comitativa. O verbo concorda duplamente com o sujeito ergativo e com o objeto da posposição, por meio da série de clíticos absolutivos. Também nesse caso é possível a incorporação da posposição, com a respectiva promoção do objeto da posposição para objeto direto, como nos exemplos em (b). O grau de transitividade inerente nesse caso é inferior aos casos apresentados em (iv). (17) (a) ka he‚ O =ka =ra =piãse-ri pri‚ara hçw você ERG REAL.TR=2SG.ERG=3PL.ABS=brincar-PERF crianças ICOM ‘você brincou com as crianças.’ (b) ka he‚ O =ka =ra =hçw =piãse-ri pri‚ara você ERG REAL.TR=2SG.ERG=3PL.ABS=ICOM=brincar-PERF crianças ‘você brincou com as crianças.’ 6 (18) (a) i‚kye‚ he‚ eu O re rã (i‚)ku´ri i‚kiara ERG REAL.TR 1SG.ERG 3PL.ABS fazer k‚o mulheres COM ‘eu ajudei as mulheres. (lit=eu fiz com as mulheres).’ (b) i‚kye‚ he‚ eu O =re =rã =kõ =(i‚)ku´ri i‚kiara ERG REAL.TR=1SG.ERG=3PL.ABS=COM=fazer mulheres ‘eu ajudei as mulheres. (lit=eu fiz com as mulheres).’ (vi) verbos transitivos que ocorrem com um único argumento (univalentes), o sujeito ergativo, com quem apenas mantêm concordância. São de três tipos: (a) com a incorporação do objeto direto ao núcleo verbal. Quando o objeto se incorpora ao verbo, este permanece transitivo. De acordo com Rosen (1989), este é o tipo de incorporação classificatória (classifier NI). Neste tipo de incorporação a estrutura argumental do verbo não é afetada, porque, como um classificador, o nome incorporado age sobre o nome ao qual está associado – um argumento não realizado fonologicamente que se submete a apagamento típico de línguas pro-drop1. Assim o grau de transitividade inerente do verbo nessas construções situa-se imediatamente abaixo das construções em (v). (18) i‚kye‚ he‚ eu ka =O =s‚o =su´ ia hã ERG IRR=1SG.NOM=comida=fazer aqui ADES ‘eu vou fazer comida aqui.’ (19) i‚kye‚ he‚ eu O =re =nãkã =yu‚pa ERG REAL.TR=1SG.ERG=cobra=ter medo ‘eu tenho medo de cobra.’ (b) com o verbo nas vozes reflexiva, recíproca e média. O verbo permanece transitivo, embora não haja argumento nominal externo, em posição de objeto direto. As orações reflexivas e recíprocas são semanticamente próximas das transitivas ativas, embora menos transitivas. Já a oração com o verbo na voz média situa-se mais próxima da intransitiva. As orações em que esta ocorre apresentam apenas um participante do evento. Nesse caso há que se colocar os verbos nas vozes reflexivas e recíprocas com um grau de transitividade inerente inferior ao caso em (a), mas superior ao verbo na voz média, este situado mais abaixo no que se refere ao grau de transitividade inerente. 1 O Panará é uma língua pro-drop, que permite o apagamento do sujeito, do objeto direto e do objeto indireto. 7 (20) i‚pˆ O he‚ =ti =yi‚ =pi‚-ri homem ERG REAL.TR=3SG.ERG=REFX=matar-PERF ‘o homem se matou.’ (21) O mararã =time‚ =pi‚ =waya-ni eles dois.ERG REAL.TR=3DU.ERG=lutar=fazer-PERF ‘eles lutaram um com o outro.’ (22) ki‚e‚y O he‚ =ti =yi‚ =ku´-ri pedra ERG REAL.TR=3SG.ERG=MED=partir-PERF ‘a pedra partiu-se.’ c) verbos transitivos sem qualquer complemento, sem que se identifique nessas construções o fenômeno de apagamento do objeto. (23) i‚koi‚pˆ he O =ti =pu filtro ERG REAL.TR=3SG.ERG=encher ‘o filtro encheu.’ (24) pri‚ he‚ O =ti =piasow-ri criança ERG REAL.TR=3SG.ERG=mamar-PERF ‘a criança mamou.’ Considerações finais Na língua Panará, a transitividade e a intransitividade, como sugere a análise aqui proposta, são propriedades inerentes às raízes verbais (Payne, 1985), descartando-se, assim, a possibilidade de serem consideradas no nível da oração, como propõem Hopper e Thompson (1980). Verbos inerentemente transitivos e intransitivos são morfologicamente codificados de forma diversa e apresentam graus de transitividade e intransitividade, que podem ser aumentados ou reduzidos de acordo com processos morfossintáticos. Referências DOURADO, L. 2001. Aspectos mofossintáticos da língua Panará. Tese de doutorado. UNICAMP. Campinas, SP. HOPPER, P & THOMPSON, S. 1980. Transitivity in grammar and discourse. Language 56.251-99 PAYNE, D. 1985. Degrees of inherent transitivity in Yagua verbs. International Journal of American Linguistics (IJAL). Volume 51, no. 1, pp 19-37. 8